franço hartog. o espelho de heródoto. pt. ii: heródoto, rapsodo e agrimensor

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HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Tradução da Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: UFMG, 1999.

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  • Como um rastro, seguimos o nome citas e reunimos a coleo dos predicados que o constituem: leitura passo a passo atravs das Histrias e leitura fundada na prtica d o desvio sistemtico. O lgos constri a figura d o nmade que torna pensvel sua alteridade. Passa-se d e uma alteridade compacta, opaca para o destinatrio, como aparece no captulo 2 (eles cegam seus prisioneiros, pois so nmades'), a uma alteridade que faz sentido (o nomadismo antes d e tudo uma estratgia) - ou seja, de uma "falsa" inteligibilidade, que no faz mais que redobrar a estranheza, a uma inteligibi- lidade "verdadeira", isto , que tem sentido para um grego d e em torno dos anos 430.

    Neste ponto (j que se trata de inventariar os outros em Herdoto) conviria considerar outros povos e outros Zgoi: antes d e mais nada, aqueles que so mais fascinantes ainda para os gregos, isto , os egpcios, os quais ocupam, nas Histrias, um lugar a o mesmo tempo simtrico e inverso com relao a o dos citas; mas tambm os lbios, em parte nmades, dos quais se trata logo aps o Igoscita; ou ainda os hindus, os ltimos homens que habitam na direo d o leste; sem falar dos persas, com a figura emblemtica do Grande Iiei ... Realizando, pelo menos para comear, uma leitura fundamen- tada no mesmo desvio sistemtico, se poderia tentar capturar sua alteridade no imaginrio grego do sculo V. Todavia, alm d o fato de que seguir os citas j nos levou a encontrar, por exemplo, os egpcios e os persas, parece mais interessante prosseguir na direo d e uma generalizao: no mais o movimento d e ida e volta da narrativa a o saber comparti- lhado em torno da figura d o cita, no mais pesquisar que outros a narrativa pe sucessivamente em cena, mas como ela os constri.

  • Se a narrativa se desenvolve justamente entre um narrador e um destinatrio implicitamente presente no prprio texto, a questo ento perceber como ela "traduz" o outro e como faz com que o destinatrio creia no outro que ela constri. Em outros termos, tratar-se- d e descobrir uma retrica da alteridade em ao n o texto, de capturar algumas de suas figuras e de desmontar alguns de seus procedimentos - em resumo, d e reunir as regras atravs das quais se opera r i fabricao d o outro.

    Entretanto, embora necessrio, no suficiente esse trabalho d e reunio e de recorte que, na melhor das hipteses, levaria a um inventrio mais ou menos completo de figuras inertes. Com efeito, as diversas figuras so postas em niovi- nlento pelo narrador, que intervm de mltiplos modos no interior de sua prpria narrativa. A leitura deve, pois, atentar para todas as marcas d e enunciao que apresentam essas figuras e que, para o destinatrio, as carregam finalmente com um peso especfico de persuaso. Nas Histrias, tudo se passa, antes d e tudo, entre estas quatro marcas ou estas quatro operaes: eu vi, eu ozlvi- mas tambm eti digo, eu escrevo.

    A necessria ateno s marcas d e enunciao faz com que no se possa ler uma narrativa como as Histrias, contentando-se com uma leitura de tipo estrutural, que recorta seu objeto, reduz o texto a um plano e combna os enunciados entre si. A narrativa no se desenvolve de um modo linear, uma frase sucedendo a outra para formar, no fim das contas, sob o olho d o leitor-comentador, um sistema de transformaes. Muito pelo contrrio, existem diferenas de nvel e processos que desengancham os enunciados sucessivos, o que precisamente indicado pelo jogo de marcas de enunciao. Apenas a aten8o a essa dimenso "vertical" d o texto ou a considerao dessa interrogao (quem fala, a quem e como?) permite levantar, em sua complexidade, a questo d o efeito d o texto.

  • UMA RETRICA DA ALTERIDADE

    DIFERENA E INVERSO Dizer o outro enunci-lo como diferente - enunciar

    que h dois termos, a e b, e que a no b. Por exemplo: existem gregos e no-gregos. Mas a diferena no se torna interessante seno a partir do momento em que a e b entram num mesmo sistema. No se tinha antes seno urna pura e simples no-coincidncia. Da para a frente, encontramos desvios, portanto uma diferena possvel d e ser assinalada e significativa entre os dois termos.' Por exemplo: existem gregos e brbaros. Desde quando a diferena dita ou transcrita, torna-se significativa, j que captada nos sistemas da lngua e da escrita. Comea ento esse trabalho, incessante e indefinido como os das ondas quebrando na praia, que consiste em levar d o outro a o prprio.

    A partir da relao fundamental que a diferena significativa instaura entre os dois conjuntos, pode-se desenvolver uma retrica da alteridade prpria das narrativas q u e falam sobretudo do outro, especificamente as narrativas d e viagem, em sentido amplo. Um narrador, pertencente ao grupo a, contar b s pessoas de a: h o mundo em que se conta e o mundo que se conta. Como, de modo persuasivo, inscrever o mundo que se conta no mundo em que se conta? Esse o problema do narrador. E le confronta-se com um problema d e traduo.

    Para traduzir a diferena, o viajante tem 2 sua disposio a figura cmoda da inverso, em que a alteridade se transcreve como um antiprprio. Entende-se que as narrativas de viagem c as utopias recorram abundantemente a isso, j que essa

  • figura constri uma alteridade "transparente" para o ouvinte ou leitor. No h mais a e b, mas simplesmente a e o inverso de a. Entende-se mesmo que essa seja a figura privilegiada do discurso utpico, cujo projeto no mais q u e falar do prprio.

    As Histrias recorrem a essa figura em muitas ocasies. Dois exemplos mostram a que ponto ela constitui uma tentao sempre presente para a narrativa que pretenda dizer o outro: num primeiro momento, levanta-se a diferena; num segundo momento, ela "traduzida" ou "apreendida" pondo-se em ao um esquema d e inverso. Tomemos um primeiro exemplo, bem conhecido - o d o Egito: os egpcios vivem num clima outro (hteros), s margens de um rio dqerente (llos) d e todos os outros rios, e "adotaram tambm, em quase todas as coisas, modos e costumes que so o inverso (mpalin) dos d e todos os outros h ~ m e n s " . ~ Quando se trata dos costumes, a diferena tranforma-se em inverso. Alm disso, o enunciado tem pretenses d e universalidade: a inverso mede-se com relao a o resto d o gnero humano. Ora, to logo Herdoto comea a desfiar os exemplos d e inverso, percebe-se que, com a expresso "todos os homens" deve-se entender, d e princpio e antes de tudo, os gregos:

    Entre eles, so as mulheres que vo a o mercado e fazern negcios; os homens ficam em casa e tecem. Ao tecer-se, nos outros pases puxa-se a trama para o alto; no Egito, ela puxada para baixo. No Egito, os homens levam os fardos na cabeqa, as mulheres nos ombros. As mulheres urinam d e p, os homens agachados. ..3

    A pretendida universalidade da regra uma maneira de a narrativa mascarar o procedimento de inverso, d e apagar a marca d e fabricao (ns os gregodo inverso dos gregos) - e no uma forma d e dizer que "todos os outros homens" e os gregos so equivalentes ou so dois termos que tm a mesma e ~ t e n s o . ~

    A inverso pode tambm dissimular-se pela eliso d o segundo termo da oposio: tem-se ento uma inverso que se d a entender como diferena (ainda que implicitamente no funcione seno como inverso). o caso da descrio do clima cita5 em que, insensivelmente, o esquema de inverso

  • confere inteligibilidade a um dado que, d e princpio, no apresentado seno como um excesso d e inverno no curso d o qual o mar s e torna uma via de passagem para os carros. O principio da inverso , portanto, uma maneira de transcrever a alteridade, tornando-a fcil d e apreender no mundo em que se conta (trata-se da mesma coisa, embora invertida). Entretanto, pode funcionar tambm como um princpio heurstico, permitindo compreender, considerar, dar sentido a uma alteridade que, sem isso, permaneceria completamente opaca. A inverso uma ficiio que faz "ver" e que faz compreender: trata-se de uma das figuras que concorrem para a elaborao d e uma representao d o r n ~ n d o . ~

    Descrevendo o Egito, Herdoto passa, pois, "naturalmente", da posio da diferena afirmao da inverso. Jean de Lry, no sculo XVI, procede de outro modo, indo do dessemelhante ao novo:

    Esse pas da Amrica, como dedzrzir quem o vir, no que diz respeito ao modo de vida de seus habitantes, forma dos animais e , em geral, ao que a terra produz, to dessemelhante em vista do que temos na Europa, na sia e na frica, que pode bem ser chamado de mundo novo com relao a ns?

    Bem entendido, o novo pode em seguida ser decomposto parcialmente em inverso (com relao ao que se encontra no mundo d e aqum).

    No s e deve todavia crer que o emprego da figura da inverso seja suficiente para produzir toda a etnografia d e Herdoto: inverso entre os nmoi gregos e os nmoi dos outros, inverso entre o norte da oikournne, onde os fenmenos se explicam pelo frio, e o sul, onde se explicam pelo calor.8 De incio, mesmo se h outros privilegiados (egpcios, citas, persas), as Histrias pem em cena numerosos outros. Ora, se seus respectivos nmoi so o inverso dos adotados pelos gregos, n o fim das contas todos teriam os mesmos nmoi, o que no absolutamente o caso. Alm disso, a leitura do lgoscita mostrou que os nmoi dos citas excedem amplamente a figura da inverso: no se poderia dizer que o sacrifcio cita o inverso d o sacrifcio cvico, sob o risco d e no se estar dizendo absolutamente nada;9 uma seqncia d o ritual (por exemplo: os ossos queimados sob o altar como

  • combustvel) pode seguir o esquema da inverso, sem que a precedente ou a seguinte obedea necessariamente ao mesmo modelo. Do mesmo modo, os funerais dos reis citas organi- zam-se espacialmente segundo um esquema d e inverso: os skhata desempenham o papel d e centro, e a prthesis ordinria (exposio d o cadver) substituda por uma prthesis invertida (o rei morto "visita" seus sditos).'" Mas muitos traos da cerimnia so alheios figura da inverso que, com efeito, no considera diretamente o tratamento do cadver, nem a mutilao que se infligem os participantes, nem os sacrifcios humanos por estrangulamento, nem a ronda imvel dos cavaleiros mortos cavalgando seus cavalos empalhados. A inverso, funcionando como um interruptor, d sentido a tal prtica ou a tal conduta - um sentido que pode ser explcito ou implcito. Portanto, na narrativa d e viagem, a inverso revela-se uma operao de traduo: trata-se d e um dos procedimentos que permitem passar do mundo que se conta a o mundo em que se conta.

    Mas o que acontece com os traos no considerados pela inverso? Tm eles um sentido? Tm simplesmente sentido? Ou seu sentido no ter aparentemente sentido, ficar fora e marcar os limites? Em suma: trata-se d e traos intraduzveis? Mesmo que eles resistam ao trabalho que visa a torn-los inteligveis (mesmo que o viajante no possa ou no queira traduzi-los), no so, por isso, expulsos da esfera d o veros- smil. Muito pelo contrrio, poderamos pensar que sua verossimilhana reside precisamente nessa aparente falta d e sentido. A verossimilhana desses traos que escapam ao processo d e inverso estaria no fato de eles se apresentarem, na narrativa, como "idiotismos", cujo sentido no s e deixa capturar, constituindo uma espcie de meteoritos. justamente a impossibilidade d e capturar seu sentido que lhes garante a alteridade: basta que se recorde a cerimnia fnebre em honra dos reis citas.

    Um ltimo caso, o das amazonas, permite refletir sobre a inverso.ll Para os gregos, existe uma polaridade, isto , ao mesmo tempo uma disjuno e uma complementaridade entre a guerra e o casamento: uma o destino dos homens; o outro, o das mulheres. A guerra e o casamento marcam a realizaao, respectivamente, do rapaz e da moa.lz Imaginar uma inverso

  • dos papis implica fazer as mulheres passarem da esfera do casamento para a da guerra, excluindo os homens desta: as mulheres passam a ter ento o monoplio da funo guerreira. E o casamento? Duas solues so possveis. A primeira: as mulheres recusam o casamento e vivem sem homens. Essa a alternativa admitida por Estrabo quando afirma que as amazonas passam a maior parte d o tempo entre elas prprias e apenas uma vez por ano tm relaes com os homens d e um povo vizinho, os gargareus, numa unio que acontece na obscuridade e no acaso d o encontro:

    Quando eles as engravidam, elas os inandarn embora. As que do luz uma criana d o sexo feminino guardam-na consigo. Quanto s crianas d o sexo masculino, levam-nas para os gargareus, a fim de que as criem. Estes as adotam individualmente, admitindo cada um que a criana trazida seu filho.I3

    A segunda soluo seria admitir que elas s e casam, mas so o s homens que se responsabilizam pelos "trabalhos femininos". Este o modelo apresentado por Diodoro da Siclia: os homens ficam e m casa, cuidam das crianas e obedecem s ordens.14 Todavia, a polaridade guerra/casamenfo to densa que se manifesta na narrativa transmitida por Diodoro. Enquanto as amazonas guerreiam, permanecem virgens; a partir d o momento em que geram filhos, no mais guerreiam. Do mesmo modo, para que o esquema de inverso d e papis continue a funcionar, apesar dessa "anomalia", preciso supor que, na cidade das amazonas, existe (bagatela!) tambm uma separao entre guerra e poltica. Com efeito, aps gerarem filhos, elas no lutam mais, passando entretanto a exercer magistraturas e a ocupar-se dos "negcios comuns" (t2 koinb) da cidade; bem entendido, fazem isso sozinhas, com a excluso dos homens, que no so portanto nem hoplitas, nem cidados. Dito de outro modo, a guerra a funo das amazonas-virgens, que se encontram numa faixa etria equivalente 2 da efebia, qual o casamento pe fim. Com efeito, elas so uma sorte d e efebos.

    Quanto ao texto de Herdoto sobre as amazonas, clara- mente mais complexo. Se a polaridade guerra/casamento tem nele funo, age diferentemente: no guerra ou casamento - mas guerra e ~ a s a m e n t o . ' ~ As passagens citadas d e Diodoro e

  • de Estrabo pem em cena apenas as amazonas (diz-se que as amazonas etc.) e os gregos, que so apresentados no plano de fundo ou somente nos bastidores. O encenador herodotiano dispe d e um nmero maior d e personagens: as amazonas, os citas, os mais jovens dos citas, os sauromatas e , por ltimo, os gregos que, no limite, podem aparecer apenas como o ausente em funo de quem tudo se organiza - isto , o espectador. As relaes entre as diversas personagens so portanto forosamente mais complexas. Com efeito, em Estrabo e Diodoro, as relaes so simplesmente duais: amazonas e (gregos).I6 O esquema de inverso portanto se aplica facilmente. Em Herdoto, as relaes se estabelecem com base e m pelo menos trs termos: amazonas, citas e (gregos), havendo portanto relaes entre as amazonas e os citas, entre as amazonas e os gregos e entre os citas e os (gregos). Essa disposio cnica triangular conduz, pois, a pensar que o esquema de inverso tem poucas chances de aplicar-se tal qual: o que no exclui que a narrativa d lugar, em certas seqncias, a elementos de inverso.

    Mais ainda, o texto no uma descrio das amazonas e d e seus costumes, baseado na evidncia atemporal d o presente," mas conta a origem dos sauromatas, a quem os citas pedem ajuda para fazer face invaso d e Dario. O texto , pois, escandido segundo um antes e um depois: d e inicio, a s amazonas e o modo como elas escapam dos gregos, matando-os; depois, o encontro entre os citas e as amazonas e o nascimento dos sauromatas; enfim, o modo d e vida dos sauromatas. Essa progresso no tempo contribui para a complexidade d o texto, impedindo que se organize de acordo com a simples inverso.

    Aps terem escapado dos gregos, as amazonas desembarcam na Ctia e pem-se a fazer o que tm costume, isto , dedicar-se pilhagem:

    A primeira vez que elas encontraram uma manada d e cavalos, apossaram-se deles e , montadas sobre esses mesmos cavalos, puseram-se a pilhar os bens dos citas. Os citas no podiam entender o que estava acontecendo,I8 pois no conheciam nem a lngua, nem o traje, nem o povo das amazonas, perguntando-se espantados de onde elas vinham. Tonlaram-nas por homens que tinham todos a mesma idade e entraram em combate com elas.

  • E claro que os citas decidem fazer guerra contra esses desconhecidos belicosos que tomam por um bando d e homens "da mesma idade" - e, sem dvida, como esses guerreiros so imberbes, consideram que se trata de um bando de jovens.

    A partir d o desprezo inicial, desenvolve-se, pois, uma conduta d e acordo com todas as regras. Mas, "no final d o combate, tendo-se apossado de alguns cadveres, reconhecem eles que se trata d e mulheres. Discutem ento e decidem no mat-las mais de modo algum". Assim, desde o momento em que se constata que so mulheres, no se trata mais de mati-Ias: o texto postula que a mulher est excluda do mundo da guerra, "raciocinando" os citas, implicitamente, como os gregos. Eles decidem no mais mat-las, mas sim "enviar at elas os mais jovens dentre eles (netatoi), no mesmo nmero que Ihes pareceu haver de mulheres. I...] Os citas tomaram essa deciso porque queriam que nascessem crianas delas." Eis como se reencontra a polaridade guerra/casamento: com mulheres no se faz guerra e sim crianas.19

    Ora, para realizar esse programa, so despachados "os mais jovens" dos citas que , n o curso da narrativa, no sero designados seno como uma faixa etria (os jovens, os mais jovens). Por que, numa deciso estranha, os citas apelam para os " e f e b ~ s " ? ~ ~ Com efeito, existe claramente, na Grcia, uma separao entre casamento e efebia: um efebo no se casa e, se se casa, porque no mais efebo; no se pode ser ao mesmo tempo efebo e casado, pois isso equivaleria a confundir dois acontecimentos que devem suceder-se, ou melhor, duas seqncias, pois passa-se de uma outra antes de se tornar plenamente adulto. Mas algum no "pode", inversamente, ser efebo e recusar o casamento: essa a histria d e Hiplito, um efebo que, para continuar a s-10 indefinidamente, decide recusar o casamento, desconhecendo que a efebia uma fase transitria que deve desembocar no casamento.

    Ora, os citas parecem conjugar casamento e efebia: os netatoi recebem, por suas qualidades, a misso de desposar as amazonas.21 Por qu? Uma resposta simples e evidente: todos os citas adultos sendo casados, so os nicos homens disponveis. De mais a mais, o texto no precisa se, uma vez casados, continuam a ser considerados netatoi, ou, dito de outro modo, no se esclarece se h verdadeiramente confuso

  • entre as duas seqncias. Feitas essas reservas, nada diminui o fato d e que 6 enquanto "efebos" que eles so encarregados da misso: e m face desse bando d e moas, so encarregados no de combater, mas de casar. O gnero de vida das amazonas, fundado na caa e na pilhagem, convm melhor a efebos, habituados com as margens, d o que a adultos; pressuposto implcito que mostra como, insensivelmente, no desenrolar da narrativa, s e opera um deslizamento entre os citas e os gregos: e m face das amazonas, os citas tendem em transfor- mar-se e m gregos.

    Para "vencer" as amazonas, recomenda-se aos jovens unia conduta ardilosa, o que tambm est mais d e acordo com as prticas dos efebos d o que com as regras d e vicia dos adultos:

    Eles deveriam acampar junto delas e fazer o que elas fizessem. Se elas os perseguisseril, fugiriam sem combater e , quando tivessem cessado, eles voltariam a acampar ao lado delas [...I As amazonas, quando constataram que eles no tinham vindo para fazer-lhes nenhuili mal, deixaram-nos em paz. E , a cada dia, um dos acailipamentos aproxin~ava-se do outro. Os jovens, assim conio as amazonas, no tinliam nada alm de suas armas e viviarri, c01110 elas, de caa e de pilliagem.

    A mola desse ardil a imitao. Com efeito, s e se tratasse d e homens, eles seriam combatidos; se se tratasse d e mulheres, elas seriam raptadas; mas trata-se d e mulheres guerreiras, um autntico monstro lgico q u e a um s tempo homem e mulher, d e quem s se pode aproximar, segundo os citas mais velhos, atravs da imitao. Nesse sentido, escolhem-se os que se parecem mais com elas (ou com os quais elas se parecem mais), os "efebos", aqueles que, em seu prprio estatuto, conjugam ainda, por pouco tempo, o masculino e o feminino. A ambigidade d e sua posio os torna, ao mesmo tempo, muito prximos e muito distantes das amazonas. Para seduzir essas virgens guerreiras, enviam-se guerreiros virgens.

    Se o texto trabalhado por "elementos da efebia", organiza-o tambm no um simples esquema d e inverso, mas elementos d e inverso. Efebia e inverso articulam-se bem, j que a inverso constitui um dos operadores lgicos da prpria efebia.

    A cena d e seduo apresenta-se, globalmente, como uma anticena d e seduo, uma vez que os citas agem a o ar livre,

  • em pleno meio-dia e no momento em que as amazonas se isolam para fazer suas necessidades - vrias condies, portanto, que se opem aos libitos g r e g ~ s . ~ W a s o ponto mais interessante que essa cena no absolutamente uma violao: a amazona consente, "ela no repele o cita, ~ r a s deixa-o gozar d e sua pessoa" (perieide khrsasthni). No s e viola uma amazona: h uma contradio entre os dois termos.

    Se a ambigidade d e seu estatuto qualifica os efebos para encontrar as amazonas, seu casamento com elas no o s transformar em homens adultos. Muito pelo contrrio, tudo se passa como se fosse a parte feminina de seu ser que ficasse reforada. De incio, eles propem 2s mulheres que deixem as "margens", a fim d e ir para junto deles, viver uma vida "normal" (no preciso dizer que essa cena no s e compreende seno com relao ao modelo grego de casamento, o que prova que os citas se tornaram efetivamente gregos). As amazonas ento respondem que no saberiam viver como as mulheres citas e que isso no estava em questo. Por ltimo, ajuntaram o seguinte: " . . M e vs encontrar vossos pais, recebei vossa parte de seus bens, depois voltai e moraremos em um lugar nosso [...I Os jovens obedeceram e fizeram assim." Observe-se como, neste caso, o esposo que fornece o "dote" e no, como habitual-, a jovem mulher. A jovem casada - e essa a segunda anomalia da cena - vem geralmente morar na casa de seu marido: ela deixa o o%os paterno para entrar no d e seu marido. As amazonas recusam issoez3 Bem entendido, elas no podem fazer seus maridos entrarem em seus prprios ozkoi, j que no tm nenhuma morada, mas decidem instalar-se num outro lugar, alm do rio Tnais, que marca a fronteira oriental da Ctia. Do mesmo modo que a recm-casada ultrapassa a soleira da casa nos braos d o marido (o texto joga com essa analogia), as amazonas fazem seus maridos ultrapassarem o Tnais para conduzi-los alm, fora da Ctia, a um pas que , ao mesmo tempo, territrio novo e no man's land.

    Quando os citas percebem que as amazonas so mulheres, decidem ter filhos com elas. Entretanto, pode-se perguntar se, no fim da histria, no foram as amazonas que asseguraram sua prpria descendncia. Em Estrabo, por exemplo, esclarece-se que as amazonas, uma sociedade sem homens, no cuidam seno de sua descendncia feminina, no se

  • encarregando da educao dos machos: o jogo do esquema de inverso conduz logicamente a isso. Herdoto no diz que as amazonas ou suas descendentes se interessam apenas por suas filhas, afirmando mesmo que os sauromatas so um povo em que as partes masculina e feminina da populao vivem juntas. No entanto, a nica regra d e educao que nos transmitida diz respeito s meninas: "Eis qual entre eles a regra em matria d e casamento: nenhuma moa casa-se antes d e ter matado um inimigo macho (ndmpolemon); h algun~as que morrem - e morrem velhas - antes de terem casado, por no poderem satisfazer a essa lei." Longe de dissociar (como em Estrabo e Diodoro) guerra e casamento, os sauro- matas, pelo contrrio, conjugam os dois: para ter o direito d e no ser mais virgem, preciso matar um homem, ter feito correr o sangue de um homem; assim justificam elas seu nome d e oirpata, "matadoras de homens", segundo a etimologia cita transmitida por Herdoto. Uma exigncia desse tipo faz pensar n o ritual d e agregao d e um rapaz casta dos guerreiros: por exemplo, quando um cita abate seu primeiro homem, bebe seu sangue; em seguida, contenta-se, para festejar aqueles que matou a cada ano, em tomar uma bebida simblica composta d e vinho e gua.24 A guerra, longe de opor-se a o casamento (as amazonas de Diodoro param de guerrear quando no so mais virgem), o que qualifica pam o casamento. Do mesmo modo como no basta guerrear para ser guerreiro, assim tambem no basta, para um sauromata, guerrear para poder casar-se, devendo ser realizada ainda uma proeza: o guerreiro aspirante deve, por exemplo, trazer um e s ~ a l p e , ~ ~ como a aspirante a o casamento deve matar um homem.

    Quanto 5s prprias amazonas, o casamento com os "efebos" citas no as impede absolutamente d e conjugar a dupla "fazer guerra" e "fazer amor". Como mulheres, no se tornam menos guerreiras. N o que diz respeito a seu modo de vida, o casamento no marca uma ruptura entre um antes e um depois. E mesmo a exigncia de continuar a guerrear que elas pem antes d e tudo, para recusarem-se a viver na Ctia:

    No saberamos conviver com as mulheres que vivem entre vs, pois nossos hbitos (nmaia) no so os mesmos delas. Ns atiramos com o arco, lanamos o dardo, montamos a

  • cavalo; ns no aprendemos os trabalhos femininos (rga gynaikea); as mulheres que vivem entre vs no fazem nada do que dissemos, ocupando-se de trabalhos femininos e ficando nas carroas, sem sair para caar nem para ir a nenhum lugar. No poderemos, portanto, entrar em acordo com elas.

    As mulheres citas, s quais so confiados os "trabalhos femininos", parecem-se muito com as mulheres gregas. Com efeito, vivem e m suas carroas, como as mulheres gregas em suas casas. Produz-se ento, d e novo, o deslizamento j apontado: em face das amazonas, o s citas tornam-se quase gregos. Com relao s mulheres citas, as amazonas ocupam indiscutivelmente uma posio masculina: percorrem o espao exterior, manejam armas, montam cavalos e ignoram os "trabalhos femininos".

    Diante dos netatoi citas, as amazonas ocupam mais a posio d o esposo que a da esposa, j que so os maridos que trazem o "dote", deixam o oikospaterno e ainda obedecem.26 De um modo geral, a histria mostra que, d o comeo ao fim, as amazonas tm a iniciativa, podendo assim intitular-se: a origem dos sauromatas ou como assegurar-se uma descen- dncia. Mas se as amazonas ocupam antes a posio de maridos, nem por isso seus maridos se tornam "esposas". O texto no se baseia numa inverso sistemtica ou mecnica dos papis, mas funciona de modo mais sutil. As mulheres recusam os rga gynaikea, mas os homens no se encarregam deles, como acontece em Diodoro Sculo: "As mulheres dos sauromatas levam o modo d e vida d e seus antigos ancestrais: andam a cavalo, tanto com seus maridos como sem eles; vo guerra; usam o mesmo traje dos homens." Enfim, quem faz o s "trabalhos femininos"?

    A narrativa de Herdoto, ainda que utilize elementos de inverso, no se organiza segundo um simples esquema de inverso. Sua mola no uma inverso generalizada. Se a inverso constitui um mtodo de traduo, a traduo , pois, mais complexa. Sendo a inverso uma relao dual, a presena de mais de duas personagens sobre a cena suficiente para explicar sua inadequao? Numa primeira seqncia, esto presentes as amazonas e os gregos:27 elas justificam seu nome de matadoras de homens2' e mostram que se encontram aqum de todo saber tcnico; desconhecem a Atena que dirige

  • os navios, bem como a Atena do frei^;'^ no sabem navegar, mas naturalmente sabem montar a cavalo. No segundo momento, a cena passa-se entre as amazonas e os citas que, eles prprios, se dividem em "efebos", adultos e mulheres - sendo que o que h ento de interessante a transformao da sociedade cita em uma sociedade quase grega, como se fosse indispensvel fazer com que as amazonas lidassem com gregos vestidos de citas, a fim de tornar compreensvel para o espectador grego a alteridade delas. Imperceptivelmente, o texto tende, pois, a cair de novo na rotina da relao dual: as amazonas e os citas-gregos.

    A COMPARAO E A ANALOGIA

    Para dizer o outro, o viajante dispe tambm da comparao. Com efeito, ela uma maneira de reunir o mundo que se conta e o mundo em que se conta, passando d e um ao outro. uma rede que joga o narrador nas guas da alteridade: o tamanho das malhas e a montagem da trama determinam o tipo de peixe e a qualidade das presas, constituindo o prprio ato de puxar a rede um modo de reconduzir o outro ao mesr-iio. Assim, a comparao tem lugar numa retrica da alteridade, em que intervm na qualidade d e procedin~ento de traduo.

    Bem entendido, essa figura no privilgio da narrativa d e viagem, nem Herdoto foi o primeiro autor grego a utiliz-la. Muito pelo contrrio, sabe-se como se trata d e um trago fundamental do pensamento arcaico, sendo encontrada tanto na epopia, especialmente nas famosas descries h o m G r i ~ a s , ~ ~ quanto nos pensadores jnicos, que a usani como instrumento d e conhecimento, na medida em que lhes permite representar alguma coisa desconhecida seja um objeto, seja um f en rnen~ .~ ' Na narrativa d e viagem, funcionando como traduo, a comparao estabelece semelhanas e diferenas entre "alm" e esboando classificaes. Para que a comparao tenha efeito, convem que o segundo termo pertena ao saber compartilhado pelas pessoas a quem se dirige o viajante.33 Por exemplo: referindo-se regio do rio Araxes, alm do qual habitam os massagetas, Herdoto precisa que muitas ilhas que balizam seu curso so "comparveis" (pai-aplesai), pela dimenso, com L e ~ b o ; ~ ~ em outro ponto, descrevendo o

  • Nilo, ele informa que, alm da cidade de Elefantina, seu curso to sinuoso quanto (katper) o do Meandro.j5 A nica questo interessante que levantam essas comparaes, cujo mecanismo evidente, respeita a sua extenso: a quem a evocao d e Lesbo e d o Meandro diz algo? Se tomarmos a abstrao tpica d e nossa histria da Grcia, isto , o ateniense d e planto, o que que isso representava para ele?

    Vm em seguida as comparaes classificatrias que , marcando as semelhanas, assinalam deveras os desvios. Encontramo-las sobretudo nos quadros d e costumes: hbitos sexuais, por exemplo, em que se precisa que tal ou tal populao copula como (katper) os a n i m a i ~ ; 3 ~ ou nmoi em geral: os ldios tm mais ou menos os mesmos costumes dos gregos (paraplesoi), no fosse o fato de que entregam suas filhas prost i t~io.~ ' Alm disso, as comparaes permitem que se estenda o conhecimento por etapas, avanando-se d o prxin~o ao prximo: os giligamas (populao da Ldia) tm mais ou menos os mesmos costumes que os outros lbios (dos quais

    L Herdoto descreveu anteriormente os nm~i).~"nfini, os "gregos" enquanto tais ocupam frequentemente, nesse grupo d e comparaes, a posio d o segundo termo.39

    Ao lado dessas comparaes elementares, d o tipo a como b (a e b sendo diretamente comparveis), existem comparaes em que o viajante deve demonstrar mais finura: trata-se daquelas q u e repousam sobre uma mudana d e registro. Com efeito, quando o primeiro termo no tem equivalente direto no mundo em que se conta ou quando o mundo e m que se conta no pode funcionar diretamente como referncia, a traduo deve ento tornar-se transposio.

    Assim, Herdoto descreve o revezamento dos mensageiros persas a o longo da rota real at Susa, a residncia d o Grande Rei. Depois,. para fazer com que o destinatrio compreenda o que essa instituio, que no tem correspondente direto na Grcia, ajunta que a corrida desses mensageiros que se revezam como as lampadoforias praticadas na Grcia:

    O primeiro corredor transmite ao segundo as mensagens de que encarregado, o segundo ao terceiro e assim por diante at chegarem eles ao fim, passando de um a outro, como (katper) entre os gregos [se passa a tocha, durante] a corrida dos portadores de tochas que se celebra ern honra de Hefesto.'"'

  • Bem entendido, o servio dos mensageiros e as lampadoforias no so, d e modo algum, a mesma coisa, mas Herdoto estima q u e um pode ajudar a fazer com que s e veja melhor o que o outro, valendo a pena, ainda que s por um instante, aproxim-los: as tochas que passam de mo em mo so como as notcias que se divulgam d e mensageiro em mensageiro, at o palcio real de Susa.

    Eis um outro exemplo em que, graas comparao, a alteridade de uma conduta, de incio apresentada maciamente, termina tornando-se inteligvel: quando os issedons, povo da margem nordeste da Ctia, perdem seus pais, organizam um banquete canibal, no curso d o qual comem o cadver paterno misturado com carnes de animais; depois, conservam "a cabea depilada, esvaziada, dourada e tratam-na como um objeto d e culto, por ocasio dos grandes sacrifcios que oferecem todos os anosJ'. Aparentemente estamos num contexto muito pouco grego - e todavia a frase logo conduz a isso, pois precisa-se que os filhos prestam assim honra a seus pais, como (katper) os gregos celebram o aniversrio dos mortos (os g e n ~ i a ) . ~ ' Essas cerimnias e os gensia gregos no s o a mesma coisa mas, de um ponto d e vista funcional, desempenham o mesmo papel: uma , na sociedade dos issedons, o que a outra na sociedade grega.

    Essa forma d e comparao, que opera por aproximao e transferncia, corresponde 2 similitudo p e r collationem da Retrica a Hernio, que enumera com efeito quatro formas de "similitudes": similitudo per contrarium, s imi l i t t~do per negationem, simili tudo p e r breuitatem e t simili tudo p e r collationem, sendo esta ltima chamada de paralelo.42 A cada forma atribuda uma funo e a quarta recebe a d e "pr a coisa diante dos olhos" (ante oculosponere).

    Pr a coisa diante dos olhos, que seja, mas precisamente pondo uma outra coisa: essa a originalidade da narrativa de viagem. Como figura desse tipo d e narrativa, o paralelo portanto uma fico que faz com que o destinatrio veja como se estivesse l, mas dando a ver uma outra coisa. Assim, no momento em que Herdoto mede a Ctia e constri sua figura, encontra o promontrio do pas dos tauros, que representa da seguinte forma:

  • A Ctia, como (katper) a tica, limitada pelo mar dos dois lados - rilar d o lado d o meio-dia, mar d o lado da aurora; e , semelhantemente ao que aconteceria na tica, os tauros habitam na Citia como se (paralsia, hos ei), na tica, uiil outro povo que no os atenienses habitasse o promontrio do Snio, que se estende mar adentro desde Trico at o povoado de Anaflisto; o que eu digo vale na medida e m que se pode comparar pequenas coisas s grandes. Tal a situao da Turida.+j

    Portanto, a Turida est para a Ctia como o Cabo Snio est para a tica: esse o primeiro paralelo que se d a ver. Alm disso, o agrimensor precisa as condies de validade de sua comparao: ela vale "na medida em que se pode comparar pequenas coisas s grandes".44 Mas esses escrpulos so tambm uma forma de dizer que a diferena entre os dois puramente quantitativa e no qualitativa: simples questo d e medida. Sem dvida, a Turida maior que o Snio mas, salvo por isso, a Turida exatamente como o Snio. A diferena no negada, mas canalizada.

    Depois, o viajante prossegue, desenvolvendo um segundo paralelo:

    Para quem no costeou (parapploke) essa regio da tica, farei ver de um outro modo (llos cEelso): como se (hos e i ) , em Iapgia (na Apiia), um outro povo que no os iapgios ocupasse separadamente a parte da regio que avana sobre o mar, desde o porto de Brendsio (Brndisi) at Tarento.

    A Turida , portanto, com relao Ctia, como o salto da bota italiana com relao Aplia. Esse segundo paralelo apela para um outro saber geogrfico: esse outro saber , de fato, um outro saber compartilhado, limitado aos gregos da Magna Grcia? Deve-se observar que o viajante no diz "para quem no mora na tica", ou "para quem no viu a tica", mas "para quem no navegou a o longo da costa" da tica. Qual , pois, o primeiro destinatrio desse paralelo? Os gregos da Magna Grcia? - entendendo-se que os que fizeram a viagem, para vir da Grcia ou para ir Grcia, no podem t-la feito seno de barco? Ou trata-se dos navegadores? Essas comparaes so portanto mais da alada da literatura dos prqlos, essas espcies d e instrues nuticas usadas pelos viajantes? Seja como for, a con~parao constri-se sobre a

  • possibilidade (quase ilimitada) de fabricar outros paralelos, pois "o que eu digo desses dois promontrios pode-se entender d e muitos outros semelhantes, com os quais a Turida se parece". Assim o viajante d mostras de seu saber: eu poderia mostrar outros paralelos a vocs. Do mesmo modo, ele libera os ouvintes ou leitores que no conseguem ver bem, para que construam outros paralelos ainda mais s a t i~ f a t r i o s .~~

    O paralelo repousa sobre o jogo de quatro termos, associados dois a dois, conforme a seguinte frmula: a para b o que c para d. Dito d e outro modo, a comparao, tomando emprestada a frmula da analogia, faz-se, se posso assim dizer, viso analgica. Com efeito, quando o narrador, para fazer ver as relaes entre a Turida e a Ctia, "pe diante dos olhos" d o destinatrio as relaes entre o Cabo Snio e a tica, suscita uma viso analgica. Ou ainda, faz sua a frase d e Anaxgoras: psis adlon ta phainmend6 - d o que se v ao que no se v, do conhecido ao desconhecido.

    A analogia desempenha um papel importante nas origens da cincia grega, em que funciona tanto como mtodo d e inveno, quanto como sistema d e e~p1icac;o.~' , pois, interessante ver uma narrativa como as Histrins recorrer a esse verdadeiro modo d e conhecimento que o conhecimento "por comparao", adaptando-o a seu prprio uso; no limite, encontra-se um bom exemplo disso no paralelo que Herdoto estabelece entre o Istro (o Danbio) e o Nilo: "O Istro, correndo atravs d e regies habitadas, conhecido por muita gente, enquanto ningum pode falar das nascentes d o Nilo, porque a Lbia, que ele atravessa, inabitada e de~e r t a . " ' ~ Portanto, do conhecido para o desconhecido, d o manifesto a o escondido - para "encontrar" a nascente d o Nilo fao uma volta pela do Istro e procedo por inferncia: "Tanto quanto posso, por conjetura, fazer uma idia do que no se conhece, d e acordo com o que manifesto ..."*' Hiptese geral: o Nilo como o Istro. Entretanto, para que a comparao adquira uma capacidade heurstica, preciso que eu postule uma simetria entre o norte e o sul d o mundo habitado - e a aplicao desse princpio que ir transformar a comparao em verdadeiro paralelo: o Nilo no sul o que o Istro no norte - ou, o Nilo na Lbia o que o Istro na Europa. Esse exemplo representa um caso no limite. Em primeiro lugar,

  • porque supe, para que possa proceder a uma "descoberta", a pertinncia d o princpio d e simetria. Com efeito, o paralelo em pauta requer, para tornar-se possvel, a aplicao desse princpio. Em seguida e sobretudo, porque o segundo termo da comparao (o curso do Istro), diferentemente do Snio e da tica, no pertence ao mundo em que se conta - no integrando o horizonte concreto do destinatrio, no fazendo parte d o saber compartilhado (provavelmente), nem mesmo sendo. garantido pelo olho do narrador (eu mesmo vi). Ora, toda a demonstrao entretanto repousa sobre a afirmao rpida do narrador, segundo o qual seu curso pertence bem ao que conhecido: ele o sabe, mas muitos outros igualmente sabem.

    Tecida d o mundo em que se conta, a comparao faz ver. Diretamente: a como b; ou analogicamente: a para bcomo c para d. Operador de traduo, ela filtra o outro no mesmo. Fico narrativa, que tem como garantia o olho d o viajante ou o saber do narrador, visa a convencer o destinatrio. E se, uma vez puxada a rede, subsiste algo da diferena, trata-se de uma diferena assinalvel e mensurvel, o que significa que dominvel ("na medida em que se pode comparar coisas pequenas a grandes. ..").

    A MEDIDA DO ~ M A

    A narrativa d e viagem, se se pretende relao fiel, deve comportar uma rubrica dedicada aos "thma" (maravilhas, curiosidades). Nas Histrias ela no falta. Com efeito, mostrou-se 5 saciedade como os lgoi etnogrficos so, na maior parte das vezes, organizados assim: abertura referente natureza da regio; passagem em revista dos nmoi; meno dos thomsia; enfim, histria poltica.jO Que o thma um verdadeiro tpos d o discurso etnogrfico, prova-o a * '1 b ertura deste captulo sobre a Ldia: "Com relao a maravilhas, o territrio da Ldia no tem mesmo nada que merea ser escrito, como h em outras regies, a no ser as palhetas d e ouro que descem d o Tmolo ...".jl Confirma-o ainda a retomada da mesma estrutura frasal a propsito da Ctia e d o pouco que ela oferece a o viajante em termos d e maravilhas.j2 A importncia q u e tem para o narrador a abordagem das

  • maravilhas-curiosidades indicada com clareza no prlogo d e sua obra, no qual se definem seus objetivos: ele visa a , entre outras coisas, mencionar e mostrar os rga megla te kai thomast, feitos tanto pelos gregos, quanto pelos brbaros. O que so esses rga? Houve muitas discusses sobre esse assunto e as opinies dividem-se: so os "monumentos", isto , os monumentos mais importantes construdos pelos gregos e pelos brbaros? So as aes, isto , os altos feitos? So ainda, como provvel, tanto as maravilhas da natureza, quanto os monumentos e os altos feitos? No importa: no nos interessa, com efeito, seno seu qualificativo de thomast." Herdoto quer referir-se a eles porque so thomast ( e megla, grandes), portanto, dignos de memria. Ele prprio afirma que faz isso para que no se corra o risco de que cessem d e ser renomados (akla).

    J que a narrativa lhe atribui um lugar, o tbma deve figurar n o elenco dos procedimentos da retrica da alteridade. De uma maneira geral, produz um efeito d e credibilidade, at porque o narrador no pode deixar de usar essa rubrica que o pblico espera: se a omitir, arruinar de uma vez seu crdito. Tudo se passa como se estivesse em ao o seguinte postulado: nesses pases distantes (ou nesses pases outros), no pode deixar d e haver maravilhas-curiosidades. Assim, quando Herdoto se refere 2 eskhati, o limite do mundo l~abitado, encontramos um eco dessa "teoria": "As extremidades da terra habitada dir-se-ia que receberam em partilha o que h de mais belo, como a Grcia recebeu para si o clima mais temperado"; ou ainda: "as regies extremas, que circundam o resto d o mundo e o fecham entre si, possuem s coisas que julgamos as mais belas e que so as mais raras".jq Enorme beleza, excessiva raridade - esses so os constituintes do thma. Dito de outro modo, o thma apresenta-se como uma traduo da diferena: ele uma das transcries possveis da diferena entre aqui e alm.

    Bem entendido, o thma, tomado como categoria da narrativa etnogrfica, no uma inveno de Herdoto. Pelo contrrio, encontrado na epopia e em Hesodo, onde no designa somente a maravilha, mas "o milagre como objeto d e estupor": pondo em relevo o divino, ele , da parte dos deuses, sma; j da parte dos mortais constitui propriamente

  • t h ~ 5 m a . ~ ~ Nas Histrias, a referncia esfera divina desaparece, e o thma assume aparentemente uma dupla estrutura. Com efeito, ele qualitativamente extraordinrio ou quantitati- vamente notvel.

    Nas extremidades do mundo, onde se encontram as coisas "mais belas" e "mais raras", descobrem-se especialmente os misteriosos armatas.j6 Os rabes recolhem o incenso fazendo fumigaes para espantar as serpentes aladas que guardam as rvores onde ele brota. A canela colhida num lago habitado por espcies d e morcegos, dos quais preciso proteger-se envolvendo-se o corpo inteiro em peles de boi. "Ainda mais extraordinria d o que essas" (thomastteron) a coleta do cinamomo: certos pssaros servem-se dele para fazer seu ninho, sendo, pois, necessrio encontrar um subterfgio para fazer carem os ninhos, que so inacessveis. Quanto coleta do ldano, "ainda mais extraordinria que esta ltima": esse armata de perfume to delicioso agarra-se, com efeito, na barba dos bodes, lugar muito fedorento. Assim, esses admirveis produtos no podem ter seno uma procedncia extraordinria.

    Mas encontramo-nos, por isso, na esfera do puro qualitativo? No, pois deve-se observar como a ordem d e exposio escolhida pelo narrador expe passo a passo o carter cada vez mais "extraordinrio" das coletas, sendo a mirra, cuja colheita no apresenta problema, apenas mencionada. Isso mostra como o thma funciona como critrio d e classificao: do menos extraordinrio ao mais extraordinrio. Existe, pois, (pelo menos virtualmente) uma escala e uma medida d o thma, qual se refere o narrador. As diferentes colheitas so relatadas ao ouvinte em funo da quantidade de thma que cada uma contm, no sendo contadas seno em virtude dessa quantidade d e thma. Do mesmo modo, tambm o que organiza o qualitativamente extraordinrio parece ser, na narrativa, o quantitativamente notvel. Sem dvida, o manejo da escala d o thma compete apenas a o narrador, mas em funo d o destinatrio que ele processa suas escolhas: a escala se organiza d e acordo com o que visto implicitamente como extraordinrio, ou como mais e mais extraordinrio, do ponto d e vista de um "ns" (eu e vocs). Obedece-se portanto ao ouvido do pblico, entendendo-se que o thma

  • possa, se for o caso, tomar emprestada a figura da inverso. Por exemplo: o carter "extraordinrio" da colheita d o ldano decorre do fato de ele ser encontrado na barba dos bodes, isto , o que exala o melhor odor se agarra precisamente no que espalha o pior fedor, sendo essa espcie de atrao dos contrrios o que h de mais surpreendente. Logo em seguida, aps ter dito que o Egito o pas que oferece "mais maravill~as", Herdoto comea sua exposio sobre a diferena egpcia, que se transforma logo em inverso: passa-se portanto do thmn 21 inverso, admitindo-se que a inverso possa ser urna transcrio adequada do t13ma.~'

    O thma pode ser tambm a singularidade d e que no se consegue entender a razo, a exceo: esse o caso das mulas da lida - ou melhor, d e sua ausncia. Descrevendo o clima cita, Herdoto observa que, naquele pas, os cavalos resistem ao frio, mas as mulas (e os asnos) no, enquanto nos outros pases acontece o inverso: os cavalos no resistem ao frio e as mulas sim. Em seguida, refere-se ele aos chifres dos bois. Se os bois no tm chifres na Ctia por causa d o frio; a prova: Homero diz que, na Lbia, os cordeiros rapidamente adquirem chifres; portanto, simetria e inverso entre o frio e o calor, entre a Ctia e a Lbia. Concluso geral: "L (enthafita), isso de que eu falo explica-se pelo frio." diante disso que Herdoto ento se supreende: "Mas me pergunto com surpresa (thomzo) por que, em toda a lida, no podem ser geradas mulas, mesmo que a regio no seja fria, no tendo esse fato nenhuma causa aparente."5s Se a lida fosse uma regio fria, poderia ser invocado o precedente cita, e a anomalia seria facilmente explicada. Entretanto, fugindo a lida da regra geral, fugindo tambm d o inverso da regra, resta-me apenas ficar surpreso (thomzo). Essas observaes, apresentadas pelo narrador como "digresso" ( p r ~ s t h k e ) , ~ ~ mostram que existe uma ligao entre thma e digresso: a digresso pode ser uma forma de expresso d o thma, e o thma pode ter, na narrativa, a funo d e figura organizadora da digresso.

    rhma, segundo a qualidade, tbma, segundo a quantidade' A colheita dos armatas mostrou que, no conjunto, o qualitativo se transcrevia como quantitativo, em virtude da aplicao implcita d e uma escala, que fornecia tambm uma ordem de exposio. Mais frequentemente, contudo, nas Histrias o

  • thma exprime-se segundo a quantidade e a medida: ele deixa d e ser apreciado tendo como referncia uma escala do thma (do menos extraordinrio a o mais extraordinrio), para transcrever-se diretamente em nmeros e medidas, como se o nmero e a medida constitussem o ser do thma - quanto mais a s medidas so grandes e os nmeros elevados, maior o thma. Como se a escala do thma, implcita e compartilhada pelo narrador e por seu pblico, lhe parecesse muito vaga e indigna d e confiana. Assim, ele refaz sua escala a partir da escala imediatamente segura e disponvel dos nmeros.

    Por exemplo: "os rabes tm duas espcies de carneiros dignas d e admirao (xia thmatos), que no existem em nenhuma outra parte" - singularidade. Transcrio da singularidade em quantidade: "Os da primeira espcie tm uma longa cauda que no mede menos de trs cvados; [...I os da segunda tm uma comprida cauda, de um compri- mento que atinge um c ~ a d o . " ~ ~ Do mesmo modo, entre as raras curiosidades da ctia, encontra-se uma pegada notvel por seu comprimento de dois c ~ a d o s ; ~ ' quanto ao autor dessa gigantesca marca, trata-se de Hracles. A atribuio no levanta nenhum problema para Herdoto, ainda mais considerando-se que Heracles, na verso da origem dos citas contada pelos gregos d o ~ o n t o , ~ ' esteve efetivamente na Ctia. De um modo geral, os gregos tm um estoque de personagens disponveis e prontas para atuar em todas as situaes: presentes como operadores de inteligibilidade, servem para classificar e ordenar os fenmenos, ajudando a pensar o mundo, o que os torna uma espcie d e instrumentos d o pensamento, uma sorte de ferramentas lgicas. Uma grande pegada igual a uma marca d e Hracles - e, d e modo algum, o que seria uma abordagem moderna, uma grande pegada indica a existncia de um homem selvagem ou a presena d e algum "abominvel homem das neves" cita!

    Para qualificar o thma, Homero e Hesodo utilizam o adjetivo "grande" (mgas), mas essa grandeza no se mede;63 associado a mgas encontramos, com efeito, deins, terrvel, formidvel. O "milagre" , pois, grande ou terrvel - e grande porque terrvel. Nas Histrias, a o contrrio, a figura d o thma muito frequentemente uma cifra. Os exemplos so abundante^.^^ Citarei apenas o labirinto do Egito, que produz

  • sobre o visitante "mil espantos", um thma myron, isto , um espanto cuja prpria intensidade se aprecia segundo um nmero. Com efeito, "se fizermos a soma das construes e das obras de arte que os gregos produziram, elas se mostraro inferiores a esse labirinto, tanto no que se refere ao trabalho, quanto ao custo".'j Ele "ultrapassa as pirmides":

    [O labirinto] compreende doze ptios cobertos [...I; duas sries d e salas, umas subterrneas, outras acima d o solo, sobre as primeiras, em nmero de trs mil, sendo cada srie d e iilil e quinhentas. Vimos e percorremos ns mesmos as salas que ficam acima d o solo e dizemos o que constatamos com nossos prprios olhos; sobre as salas subterrneas, fomos informados verbalmente, pois os egpcios que as guardam no quiseram n~ostr-Ias a ns. [...I Assim, das salas inferiores falamos por ouvir dizer; mas ns vimos, com nossos prprios olhos, as salas superiores, que so maiores que as obras humanas. Os caminhos que seguimos para sair dos cmodos que se atravessam, as voltas que fizemos atravessando os ptios, e m vista d e sua extrema complicao, causaram-nos um maravilhamento infinito, enquanto passvamos de um ptio s salas, das salas aos prticos, depois desses prticos a outros cmodos e dessas salas a outros ptios.

    Assim, avaliar, medir, contar so operaes necessrias para a traduo do thma no mundo em que se conta. Que se pense n o titulo algumas vezes dado ao livro de Marco Polo, o Milione, sem dvida um modo d e ressaltar a onipresena d o nmero, questionando ao mesmo tempo sua autoridade. Alm disso, o prlogo das Hitrias, citando os rga megla te kai thomast, j procede aproximao entre thma e grandeza. Se a frmula um eco de Homero e de Hesodo, quer dizer que, da em diante, a grandeza mensurvel. Por outro lado, o caso d o labirinto detalha que o thma est ligado a o olho do viajante - eu vi com meus prprios olhos e esse olho encontra-se a como garantia d o thma.

    Quando Hesodo descreve o Trtaro, declara que se trata d e um prodgio "mesmo para os deuses i m ~ r t a i s " . ~ ~ Com a narrativa etnogrfica, o viajante que se torna a medida d o thma: com relao a mim - e no com relao aos deuses - que algo se entende como thma; sou eu que estimo que tal paisagem ou tal construo "admirvel" ou "extraordinria".

  • Como escreve Herdoto: "Direi o que para mim o mais admirvel (thma mgiston) na Babilnia."" Existe, pois, uma ligao entre thma e enunciao: o olho do viajante opera como medida d o thma, e o narrador "faz ver" o tbma a o destinatrio, fornecendo-lhe precisamente as suas medidas. O thma, no conjunto, decorre das tcnicas da agrimensura.

    Se o thma pode ser o fio condutor da digresso, tambm, de um modo mais geral, produtor da narrativa, na medida em que ele que faz dizer ou escrever: "Passo agora ao Egito, d o qual falarei longamente pois, comparado com todos os outros pases, o que contm o maior nmero de maravilhas (plezsta thomsia) e o que oferece o maior nmero d e obras que ultrapassan~ o que se pode delas dizer. Assim, direi mais coisas sobre ele."68 A extenso da narrativa define-se em funo da quantidade de thma: quanto mais thma h, mais minha narrativa ser longa. Mas essa narrativa, to longa quanto seja, no suficiente para esgotar o tbma, que sempre corre o risco d e escapar: h um resto, um alm dos verba, um indizvel.69 Assim, o Egito o pas "que oferece o maior nmero d e obras que ultrapassam o que se pode dizer" (rga lgou mzo), mas um modo d e faz-las entrar no lgos, d e dar-lhes razo ou de dar conta delas, precisamente informar o seu nmero e a sua medida.

    Traduo da diferena entre aqum e alm, o thma produz finalmente um efeito d e realidade, como se dissesse: eu sou o real do outro. Com efeito, na esfera d o outro, as coisas, os rga no podem menos que thomast. Nesse postulado repousa sua verossimilhana. Na medida em que sua presena na narrativa produz um efeito srio, na medida em que cria um efeito d e realidade (e h o efeito srio apenas porque h efeito de realidade), enfim, na medida em que repousa no olho-medida do viajante, o thma bem um procedimento para fazer-crer, desenvolvido pela narrativa d e viagem.

    TRADUZIR, NOMEAR, CLASSIFICAR

    Uma retrica da alteridade , no fundo, uma operao d e traduo: visa a transportar o outro ao mesmo (tradere) - constituindo portanto uma espcie d e transportador da

  • diferena. Mas qual , nas Histrias, o estatuto da traduo propriamente dita? Que lugar ela ocupa? O narrador mostra-se tomado pelo cuidado d e traduzir, isto , d e "fazer com que aquilo que enunciado numa lngua o seja numa outra, visando equivalncia semntica e expressiva de dois enunciado^"?'^

    Em 1578, apareceu a narrativa d e Jean d e Lry, Histria de uma Viagem Feita Terra do Brasil. Esse texto organiza-se segundo uma verdadeira "economia da t r a d ~ o " , ' ~ ou seja, estabelece ele pouco a pouco que, entre "aqum" e "alm", no so tanto as coisas que diferem, mas sua aparncia, pois, n o conjunto, a natureza humana a mesma e s a lngua outra. Mas a lngua traduzvel e , portanto, a diferena suscetvel d e ser apreendida. Entre o Antigo e o Novo Mundo, a traduo o q u e mantm e reduz a distncia ocenica, constituindo, a o mesmo tempo, a marca sempre presente d o corte entre ambos, bem como o signo, sempre retomado, d e sua sutura: corte-sutura, dois tempos d e um mesmo movimento que produz o texto. Para que se possa estabelecer teoricamente esse tipo d e economia da traduo, supe-se que seja possvel fazer referncia a um conjunto de problemas, distinguindo-se entre o ser e o aparecer.

    Esse cuidado com a traduo explicita-se d e fato n o livro de Lry, tanto que o captulo XX um dicionrio francs-tupi - o u melhor, um verdadeiro "mtodo A~simil", '~ que se apresenta sob a forma d e um dilogo entre um tupinamb e um francs. Se a diferena um dado no nvel da lngua, a funo desse captulo fornecer "o cdigo da transformao l ing~st ica". '~ Alem disso, esse "colquio" fecha o quadro da vida indgena, pois no lhe seguem seno os dois ltimos captulos consa- grados s peripcias d o retorno "para o aqum".

    Pode-se descobrir, nas Histrias, uma economia da traduo? No sentido preciso da palavra, certamente no. Com efeito, no existe nelas nenhum "colquio" egpcio-grego, ou persa- grego, ou ainda cita-grego. Marco Polo aprendeu o persa, o mongol e um pouco d e chins. Lry recorre aos servios d e um "trugimo", d e um intrprete, aprende tambm o tupi e n o campo da competncia lingstica que critica Thvet, seu velho inimigo; este ltimo consagrou um captulo d e sua Cosmografia lngua dos americanos, mas, segundo Lry, no fez mais que "falar grias", "confiisamente e sem ordem",

  • pois, na realidade, no conhecia dela nenhuma palavra. O prprio Lry emprega frequentemente palavras tupis, na maioria dos casos nomes dos quais d em seguida a tradu2o e a explicao. Esse modo d e agir produz seguramente um efeito extico, mas tambm um efeito srio. J Herdoto, muito provavelmente, s conhecia o grego.74 Isso poderia ser explicado pelo fato d e que , sem dvida, ele no visitou apenas uma nao, como Lry, nem, como Marco Polo, viveu dezesseis anos apenas numa mesma regio. Entretanto, isso no diminuiu o fato d e que os gregos, de um modo geral, no falavam seno grego: "No era hbito deles" - escreve Momigliano - "conversar com os nativos em lnguas nativas. [...I No havia tradio de traduzir livros estrangeiros em grego." E o olhar que Herdoto joga sobre as outras civilizaes seria, em ltima anlise, "frio e seguro de si mesmo": "No se experimentava a tentao d e entregar-se s civilizaes estrangeiras. De fato, no se experimentava o desejo d e chegar a conhec-las intimamente, atravs do domnio das lnguas estrangeira^."'^

    De fato, Herdoto conversa ou com gregos, ou com pessoas que falam grego, o u ento informa-se por intermdio de interpretes, como se v quando d e sua viagem a o Egito. Visitando a pirmide de Queops, assinala uma inscrio, ajuntando: "Se me recordo bem d o que disse o intrprete que leu para mim a inscr i~o ." '~ Mas trata-se d e caso nico. Das outras vezes, quando transmite palavras, cita u m texto ou uma inscrio, o problema da traduo no sequer considerado. De um modo geral, no se vem os gregos das Histrias terem relaes com os persas a no ser atravs d e intrpretes," com a nica exceo de Histieu de Mileto, tirano e fantoche d o Grande Rei, que, numa ocasio, profere pelo menos algumas palavras em lngua persa; mais ainda, trata-se de um momento de todo particular: num combate, a ponto d e ser morto por um soldado persa, e le faz-se reconhecer por ele; portanto, havia pelo menos ~ r g n c i a ! ' ~ No q u e diz respeito formao dos intrpretes, o livro I1 d uma informao precisa e interessante. Psamtico, tendo chegado ao poder graas ajuda dos jnios e dos crios, concedeu-lhes terras e "confiou-lhes tambm os jovens egpcios, para serem instrudos na lngua grega; desses jovens que aprenderam a lngua grega que descendem os intkrpretes que existem hoje

  • n o E g i t ~ " . ' ~ Portanto, -se intrprete d e pai para filho e , sobretudo, os intrpretes so egpcios que falam grego e no gregos que conhecem o egpcio.

    Se as Histrias no se organizam segundo uma "atividade de traduo", encontra-se nelas, todavia, um certo nmero de tradues (uma trintena). De quais tipos e o que indicam do ponto d e vista d e uma relao com o outro? Trata-se sobretudo d e nomes e , principalmente, d e nomes prprios; em contrapartida, a traduo no acontece jamais com relao a enunciados; encontra-se, pois, fundamentalmente, ligada atividade d e nomeao: numa narrativa que diz o outro, ela um modo da nomeao.

    O nome prprio significa alguma coisa, como se v, por exemplo, com os nomes dos Grandes Iieis, Dario, Xerxes e Artaxerxes. Com efeito, traduzidos em grego significam "O Repressor", "O Guerreiro", "O Grande Guerreiro" - e "os gregos poderiam, em sua lngua, sem errar (orths), chamar assim esses prncipes"." Pela operao da traduo, o nome aparece, a o mesmo tempo, como nome prprio e como denominao: Dario e Xerxes so como Ricardo Corao d e Leo e Ivan o Terrvel. A traduo prov um suplemento de sentido. O que se dava como simples classificao (houve um rei que se chamava Dario, um outro chamado Xerxes etc.), entende-se da e m diante tambm como denominao, na medida em que esses nomes dizem alguma coisa d e seu portador. Xerxes o terceiro soberano da dinastia, aps Ciro e Dario, mas tambm "O Guerreiro".

    Eis um segundo exemplo de traduo-denominao mais rico que o precedente: os citas chamam as amazonas d e oirpata, palavra que, traduzida em grego, significa "matadoras de machos", pois em cita homem se diz "oior", e "pata" quer dizer matar.81 Portanto, a traduo parece que se faz em dois tempos: na Ctia, as amazonas so chamadas de oirpata, nome que, em grego, quer dizer "matadoras de machos". Dito d e outra forma, se oirpata bem uma traduo de "amazonas", os dois nomes no tm a mesma "etimologia": pela "etimologia cita", chega-se, com efeito, ao sentido d e "matadoras d e machos"; por outro lado, pela etimologia popular grega, que Herdoto no menciona (mas que muito provavelmente deveria ser conhecida pelo destinatrio), obtm-se a-mazs,

  • "sem seio".*Assim, a simples nomeao tradutora, agindo no registro grego e no registro cita, contribui para construir a figura das amazonas, pois, graas traduo, a denominao oirpata torna-se, para um grego, uma descrio que aumenta seu saber sobre aquele povo.

    ltimo exemplo, o de Bato, fundador da colnia de Cirene, na Lbia:

    ... Nasceu um menino que tinha a fala embaraada e gaguejava - a quem, d e acordo com o que dizem os habitantes de Tera e d e Cirene, foi dado o nome d e Battos [em grego, bttos significa gago]; mas, na minha opinio, deram-lhe sim un1 outro nome, que ele trocou pelo de Battos quando veio para a Lbia. [...I Pois os Ibios chamam o rei de battos . . . 8 3

    Assim, a mesma denominao, Bttos, designa a mesma pessoa como "o gagon, se se tem em vista o registro grego, e como "o rei", se se adota o ponto de vista lbio, sendo justamente a nomeao tradutora aquilo que permite passar de um a o outro, em vista da garantia que fornece o saber do narrador ("na minha opinio").

    Alm desses exemplos,** a nomeao tradutora exerce-se no domnio particular dos nomes de deuses. Com efeito, o que so esses nomes de deuses? Trata-se de nomes prprios, de denominaes ou simplesmente de nomes comuns? O que significam? A questo dos nomes, dos ounmata, vasta e complexa, pois desemboca na questo do espao divino e da representao do divino nas Histrias. No seria aqui o lugar de abordar esse ponto em si mesmo, contentando-me eu em avaliar a atividade de traduo em suas relaes com uma retrica da alteridade: a traduo como um dos procedimentos dessa retrica.

    Ela pode operar tanto no sentido de verso (comeqa-se dando o nome de uma divindade em grego e depois seu nome em lngua brbara), quanto no sentido especializado d e traduo (parte-se do nome em lngua brbara, dando-se em seguida o nome grego), com predominncia d o primeiro modelo (onze exemplos, contra cinco do segundo).85

    Os exemplos de traduo encontram-se todos no lgos egpcio: tal deus (segue o nome egpcio), em lngua grega

  • (kata Hellda glssan), tal deus;86 em contrapartida, o panteo cita inteiramente composto no sentido da verso.67

    Segunda observao: a importncia do nome. Sabe-se, desde a narrativa do Gnesis, que a nomeao supe domnio: renomeando as criaturas de Deus, Ado proclama, ao mesmo tempo, sua preeminncia sobre elas. O segredo uma outra maneira d e indicar a importncia d o nome. Com efeito, conhecem-se numerosas sociedades primitivas em que os nomes prprios dos homens so mantidos em segredo (o que significa que no so revelados seno a alguns e segundo um ritual preciso). Impor um nome ou conliecer os nomes implica, pois, um certo poder: o nome sempre mais que a simples proferio sonora.

    No contexto grego, Demcrito, que escreveu um Onomastikn, diz-que os nomes dos deuses so "imagens sagradas dotadas de voz" (aglmata p h ~ n e n t a ) . ~ ~ O nome do deus constitui, pois, sua "representao sonora", como as imagens so sua representao visual. E bem antes de Demcrito, os pitagricos haviam considerado no somente os nomes dos deuses, mas todos os nomes como imagens das coisas (aglmata, eik~zes).~~ Dessa perspectiva, os nomes ensinam sobre as coisas; e os nomes dos deuses ensinam sobre os deuses: conhecer os deuses, saber seus nomes. Antstenes, por exemplo, para quem a educao comea pelo estudo dos nomes, escreveu um livro Sobre a Educao ou os Nomes.9o Essas teses sero retomadas mais tarde no Crtilo, que consagra algumas pginas questo dos nomes dos deu se^.^' Com efeito, Scrates diverte-se examinando a correo da composio de seus nomes, dando uma etimologia d o nome em funo das qualidades do deus. Esse , em grandes linhas, o contexto no qual pode inscrever-se a questo dos ounmata divinos e , particular- mente, a seguinte afirmao de Herdoto, to discutida, sobre a origem egpcia dos nomes dos deuses: "Quase todos os ounmata dos deuses foram trazidos, Grcia, d o E g i t ~ . " ~ '

    Terceira observao: o que implica a possibilidade d e traduo, isto , o fato d e que eu possa dizer que Hstia em cita Tabiti, ou que Osris em grego Dioniso? Linforth conclui que os nomes dos deuses so tratados como nomes comuns.g3 Finalmente, os nomes de deuses ocupam o mesmo lugar que os outros nomes da lngua, concebida como um

  • repertrio: como estes, aqueles so, pois, suscetveis d e traduo, graas constituio de tabelas de equivalncia.

    Mas esta distino entre nome prprio e nome comum d e fato pertinente? Sem entrar nas discusses dos lgicos e dos lingistas sobre o que seria um nome prprio, pode-se todavia observar como o Crtilo, em que Plato busca uma teoria d a nomeao das coisas em geral, parece passar indiferentemente do nome prprio ao nome comum: em cento e trinta e nove exemplos de nomeao, quarenta e nove so tirados d e nomes prprios." Tudo se passa, pois, como se essas duas operaes de nomeao pudessen~ ser assimiladas uma outra. Alm disso, Lvi-Strauss observa que "o carter mais ou menos 'prprio' dos nomes no pode ser determinado d e modo intrnseco, nem por sua simples comparao com as outras palavras da lngua; isso depende d o momento em que cada sociedade declara terminada sua obra d e classificao". Com efeito, para o etnlogo, o nome prprio, como um lugar que se nomeia, um ponto de balizamento no seio d o grupo social, sendo impossvel defini-lo de outro modo seno como "um meio de assinalar uma posio, num sistema que comporta mltiplas dimenses". Pela aplicao d e regras de atribuio, o nome prprio identifica um lugar e "confirma o pertencimento d o indivduo que se nomeia a uma classe antecipadamente ordenada". Nessas condies, "dizer que uma palavra percebida como nome prprio, dizer que ela se situa num nvel alm d o qual no se requer nenhuma classificao, no absolutamente, mas no seio d e um sistema cultural determinado".95 O nome prprio classifica e significa sempre pelo menos isso.

    Os ounmata divinos, na medida em que "identificam um lugar", parecem pertencer esfera do nome prprio. Com efeito, eles "confirmam o pertencimento do indivduo que se nomeia a uma classe antecipadamente ordenada" (a dos deuses); por outro lado, evidente que no posso lhes dar qualquer nome, j que os nomes dos deuses procedem de um conjunto paradigmtico, portanto, so nomes prprios. Mas a traduo, o fato d e que podem ser traduzidos de egpcio eni grego ou do grego em cita, parece remet-los para a esfera d o nome comum. Todavia, consultando-se o "dicionrio" de Herdoto, observa-se como ele est longe de ser completo, uma vez que

  • muitos nomes de deuses no so traduzidos: assim, sabemos que os lbios dirigem preces a Atena, Zeus, Hlio, Posseidon etc., mas no sabemos os nomes desses deuses em lbio. Encontramos en to apenas o nome grego, no o nome indgena.% Que significa essa ausncia da verso? O narrador ignora ou julgou intil dar as equivalncias, na medida em que a nomeao d o panteo indgena em grego constitua um ponto d e referncia suficiente para o destinatrio?

    Mas existe tambm o caso inverso: uma ausncia d e traduo, quando o texto d um nome indgena, mas no o equivalente grego. A partir da surge um espao em branco na tabela d e correspondncias dos nomes divinos, ou melhor, um triplo espao em branco, pois o fenmeno repete-se trs vezes, para trs divindades: Cibebe, Plstoro e Zlmoxis. Todos os trs so desginados como uma "divindade indgena" (thes epikhrios), constituindo a presena desse adjetivo o ndice d e sua no-traduzibilidade. Cibebe apresentada "como a deusa local d e Sardes". Por que seu nome, nesse momento, no pode ser traduzido como Cibele ou como Me dos Deuses? Por uma dupla razo: os jnios, revoltados contra o Grande Rei, chegando a Sardes, queimaram seu templo (portanto, essa deusa no pode ser grega); os persas, em contrapartida, "alegaram esse incndio para queimar os santurios das regies gregas" (portanto, essa deusa faz parte d o domnio p e r ~ a ) . ~ ' J Plistoro um deus dos trcios apsntios, ao qual se oferecem sacrifcios 11umanos;~~ esse trao provavelnlente explica o espao em branco na tabela das correspondncias. Com efeito, ele no poderia ter equivalente em grego. Quanto a Z l m ~ x i s , ~ ~ a incerteza com relao a sua identidade (ele deus, homem ou demnio?), bem como a horrvel maneira d e se lhe "enviar" mensageiros explicam a ausncia d e traduo. No somente sua alteridade no traduzvel, mas ainda redobrada pelo outro nome que alguns lhe do: "Esse mesmo Zlmoxis, alguns dentre eles o chamam de Gebeleizis." De Zlmoxis a Gebeleizis distancia-se ainda mais a possibilidade d e uma traduo, em vista dessa sonoridade estranha.loO Nos trs casos, a ausncia de traduo vem a ser verdadeiramente o indcio d e uma ausncia na tabela de equivalncias: em face de Cibebe, Plistoro e Zlmoxis, no h nada a pr em grego.

    No total, os espaos em branco do "dicionrio" confirmam que nomear o outro implica classific-lo. Alm disso, o exemplo

  • d e Plstoro ou o de Zlmoxis-Gebeleizis mostra bem que no traduzir significa no somente classificar os deuses, mas tambm as pessoas. A alteridade do nome no , com efeito, seno metonmia da alteridade dos povos. No traduzir classificar mas, evidentemente, traduzir no o 6 menos. De fato, constata-se isso explicitamente na retomada da seguinte expresso, quando se trata dos pantees brbaros: "os nicos deuses que eles veneram s^..."'^'. Os massagetas, por exemplo, no conhecem seno o sol, e os citas no cultuam seno oito divindades - mas, em todos os casos, os pantees brbaros so menos numerosos que o panteo grego dos doze grandes deuses. Dito de outro modo, classificando o outro, classifico-me a mim mesmo e tudo se passa como se a traduo se fizesse sempre na esfera da verso, isto , como se o panteo d e referncia fosse o panteo grego e como s e o narrador procedesse de acordo com um sistema de presena-ausncia.

    A partir dessa operao de nomeao tradutora, necessrio concluir que, entre os deuses, a diferena no seno nominal, que h nada mais que um nome a ser traduzido para que se encontre, d o outro lado, a identidade - e que, afinal, os deuses so os mesmos em toda parte, mesmo se no existem em toda parte os mesmos deuses? Se esse o caso, ento h espao para uma atividade d e traduo, retirando a narrativa as pelculas heterogneas das lnguas para fazer surgir a identidade das substncias. E, por detrs da diversidade dos espaos geogrficos, haveria uma unidade do espao divino. Nesse sentido que se encaminham as equivalncias dadas para o nome da Afrodite Urnia, tomada como ponto d e referncia: 3 Afrodite Urnia os assrios chamam Milita, os rabes Alilat, os persas Mitra.'02 Seguiriam tambm no mesmo sentido as observaes do narrador a propsito da "deusa indgena" (authigens) dos auseus e dos mclies, "que ns chamamos de Atena":'03 o nsdesigna os gregos e distingue-os deles, os lbios - mas, d e fato, tanto para uns como para os outros, trata-se da mesma divindade. Seguiria ainda no mesmo sentido a opinio sustentada a respeito de Lino, que tanto um canto, quanto uma personagem celebrados na Grcia, no Egito, na Fencia, em Chipre e em outros lugares. Na Grcia s e chama Lino, Manero e m egpcio - e "seu nome varia d e povo para povo, mas se levado a pensar q u e se trata d o mesmo q u e os gregos cantam sob o nome d e Lino".'04

  • Tambm neste ltimo caso, por detrs da diversidade dos nomes, identidade da personagem.

    Mas iriam contra essa tendncia principalmente as prticas dos gelonos, povo situado ao norte dos citas, que cultuam " grega" (helleniks) os deuses gregos (theoi h e l l e n i k ~ i ) . ' ~ ~ Herdoto precisa que os gelonos tm anscestrais gregos. J Xerxes no parece acreditar na unidade d o espao divino, posto que, antes de passar para a Europa, atravessando o Helesponto, manda que se dirijam preces aos deuses "que receberam a terra da Prsia em partilha" ( l e lnkha~i ) . '~~ Bem entendido, Xerxes quem fala e Herdoto avaliza essa prece.

    Nessa operao, o momento mais importante o da nomeao, sendo a traduo, enfim, nada mais que uma nomeao duplicada, que opera antes d e tudo no sentido da verso, no esclarecendo o narrador o modo como so estabelecidas as tabelas de equivalncia: a correspondncia dada como algo evidente e bem conhecido. Com efeito, Herdoto no a justifica, no se responsabiliza por ela, nem mesmo a explica. A traduo classifica, o que significa que no visa a conduzir o outro ao mesmo, fazendo o inventrio das diferenas - mas apenas que se contenta em circular pelo mundo dos critrios de classificao. De sorte que, no limite, no h "traduo", mas simplesmente imposio de uma grade sobre o espao divino dos outros, atravs da qual ele decifrado e , portanto, construdo. A partir de ento, basta "ler" de acordo com o sistema simples de presena-ausncia.

    A traduo conduziu-nos at a nomeao, e a nomeao revelou-se um modo de classificao. Ora, quem classifica, nomeia e traduz o viajante. De fato, o viajante aquele que sabe os nomes: no espao geogrfico, sabe recortar os nomes dos lugares; no tecido dos acontecimentos, sabe recortar os nomes dos atores principais; n o espao divino, sabe recortar os nomes dos deuses. Ele sabe, para os que o escutam, dar o nome (considerando-se o que a proferio sonora comporta d e saber e importa d e poder tanto sobre os que escutam, quanto sobre a coisa nomeada); ou, situao ainda mais favorvel, repetindo a experincia d e Ado, ele d um nome quilo que jamais teve um, no o tem mais o u no o tem ainda (pelo menos que seja d o seu conhecimento). impulsionado por um grande apetite d e dar nomes e

  • experimenta um grande jbilo ao faz-lo. Herdoto precisa com freqncia que sabe os nomes: que at tal ponto d o mundo, para o norte ou para o sul, conhecem-se os nomes dos diferentes povos, mas que alm de tal ponto no mais - "At os atlantes da Lbia, posso pois enumerar os nomes dos que habitam a colina; alm desse ponto, no posso mais. i, 107 Ainda, gosta ele de sublinhar que poderia dar os nomes (pois os recolheu) de todos os soldados que tomaram parte neste ou naquele combate. Ele sabe que Bato, o gago, ao mesmo tempo o rei. Ele sabe que a deusa dos auseus e dos mclies a que ns chamamos d e Atena. Ele quem permite passar d e uma denominao outra. Ele o pros e a garantia dessa passagem.

    De uma parte, a narrativa de-Marco Polo avana de nome extico em nome extico e expe, de cada vez, o que esses nomes contm d e importante. Lry, por sua parte, nomeia a flora, depois a fauna, depois os nmoi dos tupis.

    Se verdade que a non~eao uma das molas da escrita da narrativa d e viagem,lo8 se verdade que h um prazer na nomeao - verdade tambm que a traduo, a nomeao tradutora, como que a duplicao d o prazer da nomeao, tendo seu lugar como figura d e uma retrica da alteridade.

    DESCREVER: VER E FAZER VER ...

    Descrever ver e fazer ver: dizer o que voc viu, tudo o que viu e nada mais do que viu. Mas se voc no pode dizer seno o que viu, no pode ver seno o que dito:''' voc, leitor ou ouvinte, mas voc tambm, testemunha que conta algo.

    Em Herdoto, a descrio desempenha uma funo impor- tante. As Histrias podem ser consideradas seja como uma justaposio, seja como um encaixe de descries e de histrias, ou de quadros e d e narrativas. Justaposio: o s quatro primeiros livros so principalmente uma descrio dos diferentes nmoi d e povos no-gregos; os cinco seguintes, uma histria das Guerras Mdicas. Encaixe: os captulos d e 2 a 82 do livro IV so uma descrio da Ctia e um quadro d e seus nmoi,

  • enquanto o captulo 1 e, depois, os captulos de 83 a 144 so uma narrativa da expedio d e Dario.

    Com a personagem de Z l m ~ x i s " ~ e, mais ainda, com os funerais dos reis citas,"' deparamo-nos j5 com a questo da descrio. Antes, contudo, de retornar a essas duas estranhas descries, quero abordar uma outra espcie muito comum nas narrativas d e viagem: o quadro sustentado por um ver. Assim, por exemplo, a descrio d o hipoptamo, que encontrado no Egito:

    Eis que aspecto ele tem. u m quadrpede, de ps fendidos como o boi, de nariz chato, possuindo uma crina d e cavalo e tendo dentes salientes (ou dentes de javali), a cauda do cavalo e seu relincho. Seu tamanho atinge o dos maiores bois. Sua pele bastante espessa, de modo que, depois de seca, com ela se fabricam hastes de dardo^."^

    A descrio da natureza (physis) do crocodilo pe em movi- mento o modelo. Quadrpede, vive ele na terra firme e na gua. Bota ovos no maiores que os de ganso - mas o filhote que sai deles, aps crescer, chega a medir ate dezessete cvados ou mais ainda. Ele tem olhos d e porco, dentes grandes e salientes (ou de javali). o nico animal que no tem lngua."'

    Supe-se uma linha de demarcao entre o mundo em que se fala e o mundo d e que se fala, entre elese ns, entre "alm" e "aqum". Como observa J. de Lry, no incio de seu captulo intitulado "Dos Animais, Carnes de Caa, Grandes Lagartos, Serpentes e Outros Bichos Monstruosos da Amrica": "No que se refere aos animais d e quatro patas, no somente em geral, mas sem exceo, no se encontra um nico nesta terra do Brasil, na Amrica, que em tudo e por tudo seja semelhante aos nossos."114 Portanto, reino da diferena. Problema: col~lo circunscrev-la? A "figura d o dessemelhante" se construir como desvio em face d o que se v "aqum", na medida mesma em que ser uma combinao inslita das formas d e "aqum". O hipoptamo tem caractersticas do boi, d o cavalo, at do javali, mas no nem boi, nem cavalo, nem javali. Um monstro sempre uma reunio d e elementos conhecidosn5 - e convm mesmo que os elementos sejam conhecidos, para que sua reunio seja, no conjunto, monstruosa.

  • O q u e autoriza uma descrio desse tipo o olho da testemunha, seja esse olho o d o narrador principal, ou o d e um narrador local ou delegado: "eu vi", ou ento - "ele diz que viu". Alm disso, o olho do viajante encontra-se na posio de trao d e unio entre os elementos heterclitos que compem os animais diferentes d e "alm" - com efeito, ele que o ordenador e a garantia dessa reunio, portanto, o produtor d o monstruoso, pelo modo como recorta o visvel. Sem ele, jamais esses elementos poderiam ficar juntos.

    Depois de ter longamente descrito, de um modo absoluta- mente neutro, empregando um vocabulrio tcnico, as prticas antropofgicas dos tupinambs, J. d e Lry fecha assim sua narrativa: "Eis pois q u e assim e u vi como os selvagens americanos cozinham a carne dos prisioneiros que capturam na guerra: a saber, moqueando, que uma forma de assar para ns de~conhecida .""~ A descrio estabelece, pois, uma variedade d e assado, desconhecida na Europa, baseando-se numa autpsia que a autoriza: pretende ser um olho (no caso o olho d e Lry) que fala sem mediao, diretamente, que ou que se faz "objetivo". O olho fala e diz o visvel.

    Quando Herdoto descreve o hipoptamo e o crocodilo do Egito, o u o cnhamo da Ctia,"' quando Lry descreve o tapiruu e a flora d o Novo Mundo - ambos pem em ao uma taxionomia: quando um constri um quadro d o mundo egpcio o u cita e o outro um quadro d o mundo tupi, ambos operam uma espacializao d o saber.l18 P. Hamon mostrou como, para os textos naturalistas, a descrio constitui introduo do taxionmico na narrativa,l19 que apela no para a competncia lgica do leitor, mas para sua competncia lexical e metalingstica. Bem entendido, a descrio no se reduz a o taxionmico, pois no nada mais que isso, vindo a ser a prpria mise e n scne do taxionmico.

    Nem Herdoto nem Lry so escritores naturalistas, mas inegvel que, num e noutro, as descries tm a ver com a taxionomia. Pode-se ento tirar a primeira concluso disso: a descrio ver e fazer ver, mas, desde o momento em que se articulam espao e saber, em que ela espacializao de um saber, e m resumo, um quadro - a descrio vem a ser tambm saber e fazer saber (esse fazer constituindo precisamente a mise e n scne d o taxionmico).

  • Essas descries fazem ver e fazem ver um saber: tm o olho como ponto focal, j que ele que as organiza (o visvel), delimita sua proliferao e as controla (campo visual), bem como as autentifica (testemunha). , pois, ele que faz crer que se v e que se sabe, ele que produtor de peith, d e persuaso: eu vi, ve rdade i r~ . "~

    Se o olho, alojado na descrio, o ponto d e vista que a constitui, que dizer das descries estranhas, como a cerimnia em honra d e Zlmoxis ou os funerais dos reis citas, que parecem excluir a presena d e qualquer olho? Mais ainda: se h um olho, no o olho d e ningum: um olho que fala. Em Herdoto, no existe nenhuma distncia entre dizer e ver: ver e dizer, visvel e dizvel con~unicam-se plenamente ou sobretudo no so constitudos em duas esferas separadas.

    As descries precedentes (um quadro do mundo) tinham necessidade d e marcas fortes d e enunciao ("eu vi"). J as duas ltimas, pelo contrrio, apresentam-se aparentemente desprovidas disso. Com efeito, no so sustentadas nem por um ver, nem por um dizer que finalmente remete, explicitamente ou no, a um ver fundador. Todavia, a enunciao, ausente sob a forma positiva de marcas (nem o narrador, nem nenhum de seus delegados no se encontram a), no poderia ser descoberta sob a forma de vestgios?

    Retomemos a narrativa dos funerais dos reis, que comea assim: "Os tmulos dos reis encontram-se entre os gerros, no ponto at o qual o Boristenes navegvel. L (enthadta)..."'21 O que implica essa maneira de exprimir-se? Que se fala grego, pois localizar os tmulos dos reis em funo d o limite at o qual o Borstenes navegvel implica evidentemente falar em grego para os gregos. Como apostar que os citas teriam recorrido a essa preciso, d e todo impertinente em face de seu gnero de vida? Eles no so nem marinheiros d e alto mar, nem marinheiros da costa, mas povos dos carros e dos cavalos. Eles no sabem utilizar a gua seno quando congelada, precisamente para conduzir sobre ela os seus carros."' Falando d o limite d e navegabilidade, dirijo-me, pois, aos gregos, para os quais deslocar-se d e barco prtica corrente e para os quais, alm disso, o barco um meio de medida (eu preciso, por exemplo, que seu curso navegvel durante quarenta dias). Mais particularmente ainda, dirijo-me talvez

  • aos gregos das cidades d o Mar Negro, os quais se interessam pelas possibilidades d e penetrao no interior das terras que os cercam. Dirijo-me, enfim, aos outros viajantes gregos, que eventualmente completo, corrijo - e ajo como gegrafo, precisando a configurao espacial dessa zona d e confins. Esse limite tambm um limite do conhecimento: ningum sabe o que h alm. O limite de navegabilidade transforma-se ento, na construo do mundo de Herdoto, em limite do espao e limite do dizvel: "Acima dos homens no meio dos quais ele corre, ninguem tem nada a dizer. O 1 2 3

    A palavra que vem logo depois (enthauta, "naquele lugar": "l [. . . I eles cavam uma grande fossa quadrada") no se encontra isenta d e uma certa ambigidade. Esse "l" vale com relao aos citas (l longe, ao norte, em relao a eles), mas vale tambm, d o mesmo modo, com relao aos gregos (l longe, a o norte, com relao ao ns). A mesma coisa acontece no que diz respeito i designao d o pas dos gerros como skhata. Trata-se bem, para os citas, de uma zona de confins com relao a seu lugar d e permanncia habitual e justa- mente por isso que eles a escolheram para enterrar seus reis; mas trata-se tambm de uma regio d e skhata com relao a mim, grego, que digo ou que ouo essa narrativa: o pas dos gerros, situado nos limites d o mundo conhecido, por definio uma zona das margens. Mas, vista da Grcia, a Ctia, em seu conjunto, no o menos.

    Na realidade, a utilizao, pelo narrador, do termo skhata indica mais: o pas dos gerros encontra-se, com efeito, na mesma posio com relao Ctia que as zonas de skhata com relao ao territrio d e uma cidade. Uma prova disso, dada por ocasio dos funerais dos reis, o esquema grego que, implicitamente, est subentendido na representao do espao: os citas fazem dos skhata o centro; mas, para que essa conduta possa ter sentido, isto , para que possa ser decifrada pelo destinatrio como reviravolta das prticas funerrias gregas, necessrio que seja pelo menos pensvel, no contexto do saber compartilhado, uma analogia entre o pas dos gerros e os skhata, bem como entre a Ctia e o territrio da cidade.

    Ressalta ainda um outro vestgio de enunciao no fim d o texto, mais incisivo que os dois precedentes: "Aps haver

  • erguido tais (toiotous) cavaleiros em crculo em torno do tmulo" - trata-se dos cinqenta jovens empalhados - "os citas se retiramn."* Esse toiotous constitui para o narrador, a um s tempo, uma maneira d e avaliar a descrio que acaba de fazer e uma maneira d e bater em retirada: sobre tais cavaleiros, da minha parte, no direi nada mais ...

    Enfim, um ltimo vestgio aparece no parntese sobre a escravido: "Eles so citas de nascimento, so servos do rei, aqueles a quem ele prprio d ordens, no tendo os citas servos (therpontes) comprados (argyrnetoi)." Com efeito, evidente que essa frase no pode dirigir-se seno a ouvintes gregos - e talvez dirija-se mesmo especialmente a ouvintes atenienses, se verdade que, para eles, o escravo antes d e tudo uma mercadoria que se compra. Essa breve observao d, pois, a medida da diferena entre eles e ns.

    No fim da histria de Zlmoxis, o narrador intervm muito abertamente na primeira pessoa - "por mim, eu no me recuso a crer [...I e eu no creio muito [...I, mas eu penso ..." Isso no acontece entretanto na primeira parte, a mais misteriosa e cuidadosamente desprovida d e qualquer marca explcita, que conta a embaixada a Zlmoxis. Todavia, como no caso dos funerais, parece-me que a enunciao est sim presente sob a forma de vestgios. Assim, quando Herdoto comea seu captulo pelos getas, boi athanatzontes - os getas, "praticantes da imortalidade" - no fundo intervm na narrativa e intervm mais ainda, se admitirmos, com Linforth,'j que a expresso uma citao (se no uma alcunha) que faz surgir e pe em derriso a imagem dos pitagricos: aplicada aos getas, provoca um efeito de surpresa e, a o mesmo tempo, cataloga-os. Pode-se ainda lembrar a observao feita por Herdoto a propsito de thes, o cu, que constitui importao subreptcia de uma viso de mundo grega e, portanto, um modo d e avaliar o comportamento dos getas quando arremessam flechas para o cu: atitude tanto v, quanto derrisria d e algum que no sabe seguramente o que faz.

    Assim, essas descries estranhas, embora sejam desprovidas d e marcas d e enunciao, deixam todavia espao para a enunciao, sob a forma de vestgios. Se no h5 olho no ponto focal, h de qualquer modo piscadelas, que podem ser percebidas pelo destinatrio.

  • As descries "com olho" ou "sem olho" so feitas todas no presente. Ora, esse presente no conota o atual, "o tempo em que se est", isto , "o tempo em que se fala"."6 Desta maneira, no h simultaneidade entre histria e narrativa, entre o s funerais dos reis e Herdoto falando deles ou escrevendo sobre eles. Esse presente que, ao contrrio, conota a indeterminao temporal, reservado para certos tipos d e narrativa (adivinhaes, provrbios, experincias cientficas, resumos d e intrigas...)."' Grevisse o chama d e presente g n m i c ~ . ' ~ W o caso em pauta, refere-se aos nmoi citas em matria de funerais reais. Para Weinrich, o presente o mais frequente dos "tempos comentativos" (distingue ele duas grandes categorias de tempo: os comentativos e os narrativo^)."^

    Essas descries no presente "gnmico" so, por outra parte, intercaladas entre o s momentos da ao: assim, a de