gilvicente casadosaber 2009 1
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PAGE 2GIL VICENTE
AUTO DA ALMA
ORAO para Santo Agostinho
Agostinho.
Alto Deos maravilhoso,
que o mundo visitaste
em carne humana,
605
neste vale temeroso
e lacrimoso
tua glria nos mostraste
soberana;
e teu filho delicado,
610
mimoso da divindade
e natureza,
per todas partes chagado,
e mui sangrado,
pola nossa infirmidade
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e vil fraqueza!
Oh emperador celeste,
Deos alto mui poderoso,
essencial,
que polo homem que fizeste,
620
ofereceste
o teu estado glorioso
a ser mortal!
E tua filha, madre, esposa,
horta nobre, frol dos cos,
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Virgem Maria,
mansa pomba, gloriosa,
oh quo chorosa
quando o seu Deos padecia!
Oh lgrimas preciosas,
630
do virginal corao
estiladas,
correntes das dores vossas,
com os olhos da perfeio
derramadas!
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Quem a s podera ver,
vira claramente nela
aquela dor,
aquela pena e padecer
com que chorveis, donzela,
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vosso amor.
E quando vs, amortecida,
se lgrimas vos faltavam,
no faltava
a vosso filho e vossa vida
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chorar as que lhe ficaram
de quando orava.
Porque muito mais sentia
polos seus padecimentos
ver-vos tal;
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mais que quanto padecia,
lhe doa,
e dobrava seus tormentos
vosso mal.
Se se podesse dizer,
655
se se podesse rezar
tanta dor,
se se podesse fazer
podermos ver
qual estveis ao clavar
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do Redentor!
Oh fermosa face bela,
oh resplandor divinal,
que sentistes,
quando a cruz se ps vela,
665
e posto nela
o filho celestial
que paristes?
Vendo por cima da gente
assomar vosso conforto
670
to chagado,
cravado to cruelmente,
e vs presente,
vendo-vos ser me do morto
e justiado!
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rainha delicada,
santidade escurecida,
quem no chora
em ver morta e debruada
a avogada,
680
a fora de nossa vida?
AUTO DA MOFINA MENDES
(fragmento)( 1515
Em este passo se vai o Anjo Gabriel, e os anjos sua partida tocam seus instrumentos, e cerra-se a cortina, e ajuntam-se os pastores pera o tempo do nacimento. Entra primeiro Andr, e diz:
Andr
Eu perdi, se sacontece,
315
a asna rua de meu pai;
o rasto perequi vai,
mas a burra no parece
nem sei em que vale cai:
leva os tarros e apeiros
320
e o surro com os chocalhos,
os samarros dos vaqueiros,
dous sacos de pes inteiros,
porros, cebolas e alhos.
Leva as apeas da boiada,
325
as carrancas dos rafeiros,
e foi-se a pacer folhada,
porque besta despeada
no pace nos sovereiros:
e, sela no parecer
330
ats per noite fechada,
no temos hoje prazer,
que na festa sem comer
no h i gaita temperada.
Entra Paio Vaz e diz:
Paio
Mofina Mendes c
335
cum fato de gado meu?
Andr
Mofina Mendes ouvi eu
assoviar, pouco h,
no vale de Jo Viseu.
Paio
Nunca esta moa sessega
340
nem samica quer fortuna:
anda em saltos, como pega,
tanto faz, tanto trasfega,
que a muitos emportuna.
Andr
Mofina Mendes quanto h
345
que vos serve de pastora?
Paio
Bem trinta anos haver,
ou creio que os faz agora;
mas sessego no alcana,
no sei que maleita a toma:
350
ela deu o saco em Roma
e prendeu el-rei de Frana;
agora andou com Mafoma
e ps o Turco em balana.
Quando cuidei que ela andava
355
com meu gado onde soa,
pardeus! ela era em Turquia
e os Turcos amofinava
e a Calros Csar servia.
Diz que assi resplandecia,
360
neste capito do Co
a vontade que trazia,
que o Turco esmoreceu
e a gente que o seguia.
Receou a guerra crua
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que o Csar lhe prometia:
entances per aliam viam
reverte sunt in patria sua
com quanta gente trazia.
Entra Pessival.
Pessival
Achaste a tua burra, Andrel?
370
Andr
Bof, no.
Pessival
No pode ser,
busca bem, leixa o fardel,
que a burra no era mel,
que a haviam de comer.
Andr
Saltariam pegas nela
375
por caso da matadura?
Pessival
Pardeus! essa seriela!
E que pega ser aquela
que lhe tire a albardadura?
Paio
Mas cr que andou per i
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Mofina Mendes, rapaz,
que, segundo as cousas faz,
se isto no for assi,
que no seja eu Paio Vaz.
Ora chama tu por ela,
385
e aposto-te a carapua
que a negra burra rua,
Mofina Mendes deu nela.
Andr
Mofina Mendes, ah, Mofina Mem!
Mofina
Que queres, Andr, que hs?
390
Andr
Vem tu c e v-lo-s,
e, se hs de vir, logo vem,
e achars aqui tambm
a teu amo Paio Vaz.
Entra Mofina Mendes, e diz Paio Vaz, seu amo:
Paio
Onde deixas a boiada
395
e as vacas, Mofina Mendes?
Mofina
Mas que cuidado vs tendes
de me pagar a soldada,
que h tanto que me retendes?
Paio
Mofina, d-me conta tu
400
onde fica o gado meu.
Mofina
A boiada no vi eu,
andam l no sei per u
nem sei que pacigo o seu.
Nem as cabras no nas vi;
405
samicas cos arvoredos...
Mas no sei a quem ouvi
que andavam elas per i
saltando pelos penedos.
Paio
D-me conta rs e rs,
410
pois pedes todo teu frete.
Mofina
Das vacas morreram sete
e dos bois morreram trs.
Paio
Que conta de negregura!
Que tais andam os meus porcos?
415
Mofina
Dos porcos os mais so mortos
de magreira e m ventura.
Paio
E as minhas trinta vitelas
das vacas que tentregaram?
Mofina
Creo que i ficaram delas,
420
porque os lobos dezimaram
e deu olho mau por elas,
que mui poucas escaparam.
Paio
Dize-me: e dos cabritinhos
que recado me ds tu?
425
Mofina
Eram tenros e gordinhos,
e a zorra tinha filhinhos
e levou-os um e um.
Paio
Essa zorra, essa malina,
se lhe correras trigosa,
430
no fizera essa chacina,
porque mais corre a Mofina
vinte vezes c raposa.
Mofina
Meu amo, j tenho dada
a conta do vosso gado
435
muito bem, com bom recado;
pagai-me minha soldada,
como temos concertado.
Paio
Os carneiros que ficaram
e as cabras, que se fizeram?
440
Mofina
As ovelhas reganharam,
as cabras engafeceram,
os carneiros se afogaram,
e os rafeiros morreram.
Pessival
Paio Vaz, se queres gado,
445
d demo essa pastora:
paga-lho seu, v-se embora
ou maora,
e pe o teu em recado.
Paio
Pois Deos quer que pague e peite
450
a to daninha pegureira,
em pago desta canseira
toma este pote dazeite
e vai-o vender feira;
e quiais medrars tu
455
o queu contigo no posso.
Mofina
Vou-me feira de Trancoso
logo, nome de Jesu,
e farei dinheiro grosso.
Do queste azeite render
460
comprarei ovos de pata,
que a cousa mais barata
queu de l posso trazer:
e estes ovos chocaro,
cada ovo dar um pato,
465
e cada pato um tosto,
que passar de um milho
e meo, a vender barato.
Casarei rica e honrada
per estes ovos de pata,
470
e o dia que for casada
sairei ataviada
com um brial descarlata;
e diante o desposado
que mestar namorando,
475
virei de dentro bailando,
assi desta arte bailado,
esta cantiga cantando.
Estas cousas diz Mofina Mendes, co pote dazeite cabea, e, andando enlevada no bailo, cai-lhe, e diz:
Paio
Agora posso eu dizer,
e jurar, e apostar,
480
qus Mofina Mendes toda.
Pessival
E sela bailava na voda,
quest inda por sonhar,
e os patos por nacer
e o azeite por vender
485
e o noivo por achar,
e a Mofina a bailar,
que menos podia ser?
Vai-se Mofina Mendes cantando.
Mofina
Por mais que a dita menjeite,
pastores, no me deis guerra,
490
que todo o humano deleite,
como o meu pote dazeite,
h de dar consigo em terra. se ps vela foi erguida.
escurecida afligida, atormentada, infeliz.
( Nos 334 primeiros versos do auto tem-se um longo monlogo de um Frade que alude s distines escolsticas, passando a informar que a obra chamada (v. 98-99) Os Mistrios da Virgem. Esta entrar acompanhada das Virtudes: Pobreza, Humildade, F e Prudncia. Depois de uma cena em que dialogam as cinco, entra o Anjo Gabriel e anuncia a Maria que ela ser a me do Redentor. Cerra-se uma cortina. Entram Pastores que se juntam pera o tempo do nacimento. O primeiro a entrar Andr, que vem buscando a asna rua de seu pai. Entra tambm Paio Vaz, que procura sua pastora, Mofina Mendes. Esta segunda parte do auto, totalmente diversa da primeira, deve ter tido tal impacto sobre o pblico pelo cmico das situaes, pela graa e atrevimento da personagem feminina, pelos dilogos rpidos e incisivos , que passou a nomear o auto que na prpria Copilao est como Auto da Mofina Mendes. esta a cena que aqui se traz integralmente. Na parte seguinte (a final), que no aqui inserida, chegam outros pastores, cansados da jornada, e deitam-se a dormir. Diz ento a rubrica que a breve contemplao sobre o Nacimento. Novamente esto em cena a Virgem, S. Jos, as Virtudes e o Anjo. Chora o Menino. O Anjo chama os Pastores para que vejam a Virgem Sagrada que se encaminha para Jerusalm.
se sacontece: se que aconteceu, se que a perdi.
est.
deu o saco: saqueou. Aluso ao saque de Roma em 1527 pelas tropas de Carlos V (A.J.S.).
Francisco I de Frana foi derrotado e preso em Pavia, 1525, pelas tropas de Carlos V (A.J.S.).
Mafoma Maom.
Depois de um perodo de conquistas na Europa, os turcos foram postos em xeque nas tentativas infrutuosas para conquistar Viena em 1529-1530. (A.J.S.).
em balana em m situao, em perigo.
Calros: Carlos; trata-se aqui de Carlos V.
Diz que: dizem que, com sujeito indeterminado.
v. 367-368: ento, por outro caminho, voltaram sua ptria. A frase latina (mas estropiada) extrada do evangelho de S. Mateus. (A.J.S.).
por caso por causa.
pedes todo teu frete pedes todo o teu salrio.
conta de negregura! conta de tristeza, desgraada.
os mais so morrtos a maioria morreu.
Creo que i ficaram delas Creio que por a ficaram algumas delas.
c que a, do que a.
o teu em recado o que te pertence, os teus bens, em segurana.
um brial descarlata uma veste de seda ou tela rica, de cor escarlate.