imposturas intelectuais

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Traduo de Jos Marcos Macedo

Traduo de Jos Marcos Macedo.

Imposturas e fantasias

13/06/98

Autor: ALAN SOKAL; JEAN BRICMONT

Editoria: CADERNO ESPECIAL Pgina: Especial-3 6/6322

Edio: Nacional Jun 13, 1998

Crdito Foto: Marcos Benjamim, 1991, madeira/Foto de Arnold Borghet

Observaes: JORNAL DE RESENHAS; P BIOGRFICO; TRADUO: CAETANO PLASTINO

Vinheta/Chapu: RPLICA

Assuntos Principais: IMPOSTURES INTELLECTUELLES /LIVRO/

Imposturas e fantasias

ALAN SOKAL

JEAN BRICMONT

J nos habituamos a ver nosso livro "Impostures Intellectuelles" ser debatido por pessoas que no o leram. Porm, surpreendente que algum que obviamente leu nosso livro _um professor de filosofia, alis_ possa ter escrito uma longa resenha, em um jornal srio, na qual ignora quase tudo o que escrevemos no livro e ainda nos atribui coisas que no escrevemos (Jornal de Resenhas, n 38, 9/5/98, pg. 10).

Nosso ! livro surgiu a partir da pea pregada por um de ns, que publicou, na revista americana de estudos culturais "Social Text", uma pardia repleta de citaes sem sentido, mas infelizmente autnticas, a respeito da fsica e da matemtica, extradas de obras de eminentes intelectuais franceses e americanos. No entanto, apenas uma pequena parte do dossi descoberto durante a pesquisa bibliogrfica de Sokal pde ser includa na pardia. Aps mostrar esse longo dossi a amigos, cientistas ou no, fomos (lentamente) nos convencendo de que poderia valer a pena torn-lo acessvel a um pblico mais amplo. Desejvamos explicar, em termos no tcnicos, por que as passagens citadas so absurdas ou, em muitos casos, simplesmente carentes de sentido; e tambm desejvamos discutir as circunstncias culturais que permitiram a esses discursos adquirir tamanho renome e permanecer, at ento, sem exame. Um segundo alvo de nosso livro o relativismo cognitivo, a saber, a idia de que as asseres ! fatuais _sejam elas mitos tradicionais ou teorias cientficas modernas_ podem ser consideradas verdadeiras ou falsas apenas "em relao a uma cultura particular".

Como Bento Prado Jr. reage a este livro? Deixemos de lado os eptetos pejorativos: "panfleto", "ressentimento", "red neck", "estilo monsieur Homais", "15 minutos de notoriedade". bvio que ele no gosta de nosso livro, mas honestamente no compreendemos por qu. Ele admite nossa tese principal: "Este livro pe em ridculo, muitas vezes com razo, um uso obscuro da linguagem" por parte de famosos filsofos-literatos franceses (Lacan, Kristeva, Baudrillard, Deleuze e outros). Ele no procura defender nenhum dos textos que criticamos, e ainda acrescenta que "a antologia levantada pelos dois autores poderia ser muito ampliada". Muito bom.

Quais so ento as suas crticas?

Ele se queixa de nosso alvo _"a nebulosa ps-moderna"_ ser "definido, ele mesmo, de maneira muito nebulosa: trata-se da nebulosa 'ps-estrut! uralista' ou 'desconstrucionista' ". Mas essa "definio" inveno do prprio Prado; ademais, ele suprime a definio dada no primeiro pargrafo de nosso livro: "Uma corrente intelectual caracterizada pela rejeio mais ou menos explcita da tradio racionalista do Iluminismo, por elaboraes tericas independentes de qualquer teste emprico, e por um relativismo cognitivo e cultural que trata as cincias como 'narrativas' ou construes sociais como quaisquer outras".

Prado afirma, sem apresentar a mnima evidncia, que nosso alvo ps-moderno "inclui quase toda a epistemologia e mesmo a filosofia de lngua inglesa". Ele nos atribui a idia de que "o pobre Quine arca com a responsabilidade de desligar a cincia do real (...). Descobrimos que Quine desconstrucionista". Sejamos srios! Quine figura apenas uma vez em nosso livro (pgs. 65-66), em que apoiamos sua assero de que os enunciados cientficos no podem ser testados individualmente, mas criticamos as formulae! s mais extremas dessa tese.

Prado chega a nos atribuir uma "arqueologia da Desrazo que explica o delrio epistemolgico-cosmolgico de um certo feminismo a partir dos 'equvocos' lgico-semnticos de Quine". Mas isso pura inveno, sem nenhuma base em nosso livro. Nosso captulo filosfico no menciona o feminismo e nosso captulo sobre Irigaray no menciona Quine.

Prado afirma que relegamos Hegel "ao inferno do 'irracionalismo'". Mas Hegel mencionado s em duas breves passagens de nosso livro (pgs. 16-17, 146) e somente a propsito de seus escritos sobre o clculo diferencial e integral _erros que foram repetidos, 150 anos depois, por Deleuze. No tomamos nenhuma posio a respeito da filosofia de Hegel.

Prado zomba de termos que supostamente consideram Bergson um ps-modernista. De fato, escrevemos (pg. 166): "Obviamente, Bergson no um autor ps-moderno. (...) H certamente uma seriedade em Bergson que contrasta nitidamente com a desenvoltura e o carter ! 'blas' dos ps-modernos". Por uma razo diferente, inclumos um captulo sobre os mal-entendidos de Bergson e seus sucessores (Janklvitch, Merleau-Ponty e Deleuze) a respeito da relatividade: porque os consideramos um exemplo que ilustra a "trgica ausncia de comunicao entre os cientistas e certos filsofos (e no os menores)" (pg. 168) _uma situao que persiste ainda hoje, a julgar pelos prprios mal-entendidos do professor Prado.

Ele afirma que "Bergson jamais criticou, claro, a teoria (da relatividade) enquanto tal" e que "Bergson reconheceu que seus argumentos tericos (...) estavam literalmente errados". Ambas as asseres so falsas. Como mostramos (pgs. 175-176), Bergson fez uma predio emprica a respeito do comportamento de relgios em movimento que diferente da predio da teoria da relatividade (talvez ele no tivesse percebido que sua predio contradiz a relatividade, mas essa uma outra questo; na verdade, um de nossos objetivos refutar a opi! nio difundida de que Bergson no criticou a relatividade, mas apenas sua interpretao).

E embora Bergson no tenha publicado "Dure et Simultanit" (Durao e Simultaneidade) aps 1931, ele repetiu as mesmas idias em "La Pense et le Mouvant" (O Pensamento e o Movente), de 1934, e, pelo que sabemos, nunca as negou e muito menos explicou o que havia de errado com elas. Mas, se o tivesse feito, isso apenas reforaria nossa questo principal, que no concerne a Bergson mas a seus sucessores: por que eles repetiram os mesmos erros dcadas depois de terem sido corrigidos, paciente e pedagogicamente, por numerosos fsicos?

Prado conclui dizendo-nos condescendentemente que, "desencaminhados por seus informantes, (Sokal e Bricmont) no leram as melhores pginas que Merleau-Ponty consagrou questo Bergson-Einstein. Deveriam ler os ensaios 'Bergson Se Fazendo' e 'Einstein e a Crise da Razo' ". Perguntamo-nos como Prado pode estar to seguro acerca do que temos e do que no ! temos lido. No apenas conhecemos esses ensaios (que contm graves mal-entendidos sobre a relatividade), como criticamos explicitamente um deles em nosso livro (ver nota 232 nas pgs. 180-181).

Cabe notar que as confuses de Merleau-Ponty sobre a relatividade so sistemticas: repetem-se em suas conferncias no final dos anos 50 no Collge de France, conforme examinamos (pgs. 179-181). Essas mesmas confuses reaparecem no livro "Le Bergsonisme" (1968), de Deleuze.

Consideremos, finalmente, o captulo de nosso livro dedicado filosofia da cincia: trata-se de um esforo pedaggico para esclarecer os fundamentos conceituais do conhecimento cientfico e, em particular, para desfazer algumas confuses comuns a respeito de questes como a impregnao terica da observao, a subdeterminao das teorias pelos dados e a suposta incomensurabilidade entre paradigmas. Em particular, examinamos algumas ambiguidades nos escritos de Kuhn e Feyerabend e criticamos a corrente "constr! utivista social" radical da sociologia da cincia (Barnes, Bloor, [] Latour[] ).

No pretendemos que essas idias sejam novas; de fato, elas se enquadram no "mainstream" da filosofia analtica contempornea da cincia. Nossa principal preocupao , antes, desfazer os mal-entendidos que tm proliferado dentro de muitos domnios das cincias sociais e que tm conduzido, pelo descuido de pensamento e linguagem, a um relativismo cognitivo radical.

Estamos cientes de que essas questes filosficas so sutis e ficaremos contentes se nossas idias forem submetidas a uma crtica vigorosa. Infelizmente, os comentrios de Prado pouco contribuem para esse debate, ao refletirem uma compreenso confusa daquilo que escrevemos. Prado afirma que consideramos que o relativismo "hegemnico na epistemologia", mas ns no dissemos nada disso. Muito pelo contrrio, o relativismo uma te! ndncia minoritria dentro da filosofia analtica, mas se tem tornado dominante em certos setores das cincias humanas, mais como um vago "Zeitgeist" ("esprito do tempo") do que como uma doutrina filosfica coerente.

Prado distorce nossas idias sobre a relao entre conhecimento cientfico e conhecimento ordinrio, ao desconsiderar nossa distino entre metodologia e contedo. Insistimos na continuidade entre o "mtodo cientfico" e a atitude racional cotidiana, mas salientamos que os resultados cientficos "amide entram em conflito com o senso comum" (pg. 57).

Em suma, estamos perplexos diante da reao a nosso livro. Quando inicialmente tomamos contato com os textos de Lacan, Deleuze e outros, ficamos chocados com seus abusos grosseiros, mas no sabamos se valeria a pena gastar tempo para revel-los. Esses autores ainda so levados a srio? Foram pessoas das cincias humanas que nos convenceram de que poderia valer a pena. Assim, espervamos dar uma pequena contri! buio a esses campos, acrescentando mais uma voz contra o aviltamento do pensamento pela proliferao de um jargo intil e pretensioso.

Sabamos, claro, que seramos duramente atacados pelos nossos alvos e seus discpulos. Mas uma coisa que no prevamos era a hostilidade agressiva de algumas pessoas, ainda que no sejam, pelo visto, fs dos autores criticados. Talvez nosso livro tenha estimulado "uma estratgia de defesa de territrio" por parte de pessoas que, como Prado, erroneamente o tomaram como um lance numa disputa territorial. Mas no escrevemos este livro para defender as cincias naturais das ameaas do ps-modernismo e do relativismo; esse perigo quase inexistente. Tambm no se trata de um ataque filosofia ou s cincias humanas em geral; muito pelo contrrio, um modesto esforo para apoiar nossos colegas nesses campos, que h tempos denunciam os efeitos perniciosos do jargo obscurantista e do relativismo visceral. As reaes corporativistas contra n! osso livro esto, pois, fora de lugar.

Obviamente, Prado e muitos outros no gostam de nosso livro. Mas por que razo? Sua crtica baseia-se inteiramente em suas prprias fantasias, no em uma leitura honesta daquilo que escrevemos. Uma vez eliminadas essas fantasias, seu artigo no contm um nico argumento racional contra nossas teses. Talvez uma modesta manifestao de racionalismo provoque profundas reaes irracionalistas.

Alan Sokal professor de fsica na Universidade de Nova York (EUA).

Jean Bricmont professor de fsica terica na Universidade Catlica de Louvain (Blgica).

Traduo de Caetano Plastino