jean-honoré fragonard - a ilha do amor

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FRANÇA, C. 1770 * ÓLEO SOBRE TELA * 71 X 90 CM * MUSEU GULBENKIAN, LISBOA Jean-Honoré Fragonard THE ISLAND OF LOVE (FÊTE AT RAMBOUILLET) A ILHA DO AMOR (FESTA EM RAMBOUILLET) PAULO JORGE DA COSTA DOS SANTOS PINTO ESTUDOS ARTÍSTICOS E CULTURAIS - FACULDADE DE FILOSOFIA DE BRAGA - UCP [email protected] PALAVRAS-CHAVE FRAGONARD; ROCOCÓ; PINTURA; HEDONISMO SUMÁRIO A ILHA DO AMOR (FESTA EM RAMBOUILLET) REFLECTE, DE FORMA CLARA, UMA IMPORTANTE TRANSFORMAÇÃO NA CULTURA EUROPEIA NA VIRAGEM DO SÉCULO XVIII PARA O SÉCULO XIX. A OBRA ANUNCIA UM NOVO PRAZER AMBÍGUO E SUBJECTIVO, ONDE A NATUREZA DEIXA DE SER OBJECTO DE ESTUDO, TRANSFORMANDO-SE EM FONTE DE PRAZER E LOCAL DE INTENSA PAIXÃO.

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Page 1: Jean-Honoré Fragonard - A Ilha do Amor

FRANÇA, C. 1770 * ÓLEO SOBRE TELA * 71 X 90 CM * MUSEU GULBENKIAN, LISBOA

Jean-Honoré FragonardTHE ISLAND OF LOVE (FÊTE AT RAMBOUILLET)

A ILHA DO AMOR (FESTA EM RAMBOUILLET)

PAULO JORGE DA COSTA DOS SANTOS PINTOESTUDOS ARTÍSTICOS E CULTURAIS - FACULDADE DE FILOSOFIA DE BRAGA - UCP

[email protected]

PALAVRAS-CHAVE

FRAGONARD; ROCOCÓ; PINTURA; HEDONISMO

SUMÁRIO

A ILHA DO AMOR (FESTA EM RAMBOUILLET) REFLECTE, DE FORMA CLARA, UMA IMPORTANTE TRANSFORMAÇÃO NA CULTURA EUROPEIA NA VIRAGEM DO SÉCULO XVIII PARA O SÉCULO XIX. A OBRA

ANUNCIA UM NOVO PRAZER AMBÍGUO E SUBJECTIVO, ONDE A NATUREZA DEIXA DE SER OBJECTO DE ESTUDO, TRANSFORMANDO-SE EM FONTE DE PRAZER E LOCAL DE INTENSA PAIXÃO.

Page 2: Jean-Honoré Fragonard - A Ilha do Amor

JEAN-HONORÉ FRAGONARD - A ILHA DO AMOR

Pág. 2

Jean-Honoré Fragonard

(1732- 1806)

ÍNDICE

...................................................................................Introdução Histórico-Contextual 3........................................................................................................Comentário Crítico 4

.........................................................................Relação intertextual com outras obras 6....................................................................................................................Bibliografia 7

..........................................................................................................................Anexo I 8

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JEAN-HONORÉ FRAGONARD - A ILHA DO AMOR

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O RococóO termo rococó deriva da palavra

francesa rocai l le que significa

embrechado (ornatos de conchas ou búzios normalmente incrustados em paredes de grutas, repuxos, etc.). Na

França, país onde o estilo se desenvolve, é também conhecido por

estilo Luís XV. Entre as características mais marcantes do rococó conta-se o uso abundante de formas curvas, a

profusão de elementos decorativos - tais como conchas, laços e flores -, a

leveza, o carácter intimista e a elegância.

Entre os temas mais frequentes

encontram-se cenas eróticas ou de galanteio da vida cortesã (les fêtes

galantes), a mitologia, os temas pastoris e a estilização naturalista do mundo vegetal.

A pintura rococóA pintura rococó nasce em Paris

nos inícios do século XVIII, sendo o

resultado de uma reacção da aristrocacia francesa contra um barroco demasiado ligado a temas

r e l i g i o s o s , c o m e x c e s s o d e sumptuosidade e solenidade, que foi

uma característica do reinado de Luís XIV. O novo estilo, considerado por muitos como uma variação profana

do barroco, fala uma linguagem hedonista e delicada, encontrando na

linha curva, nas cores claras e na assimetria uma forma de se demarcar da pesada herança do religioso. A

ousadia do seu estilo faz com que seja vista como o barroco levado ao

extremo. Ainda que o rococó se assuma como um estilo autónomo, não evita que sobre ele pese uma

pejorativa associação à decoração de interiores. Não é despiciendo o

determinante papel da Revolução

Francesa (1789) na descredibilização do estilo rococó. Os ideais iluministas

consideram-na agora uma arte de índole superficial, frívola, imoral e puramente decorativa.

Fig. 1 - O Baloiço (c. 1766)

Jean-Honoré FragonardJean-Honoré Fragonard nasce

em Grasse, na região francesa de Provence, no ano de 1732. Mais

tarde viaja para Paris, a mando de seu pai, onde trava conhecimento

com François Boucher. A experiência revelar-se-á decisiva para o seu percurso como pintor. Fragonard

torna-se o seu discípulo mais notável, chegando a pintar réplicas

de quadros seus. Em 1756, muda-se para Roma onde conhece Giovanni Battista Tiepolo. Em Itália, parte à

descoberta dos clássicos e fica deslumbrado por Miguel Ângelo e

Rafael, cujas obras o marcam indelevelmente. De volta a Paris, em 1761, consegue o ingresso na

prestigiada Academia Real Francesa.Grande parte das obras de

Fragonard são encomendas, como é o caso dos quatro momentos do amor (O Encontro, A Perseguição, A

Recordação e A Coroação), obras

encomendadas por Madame Du Barry.

Como homem do seu tempo, Jean-Honoré Fragonard desenvolve o estilo rococó de uma forma prolífica,

produzindo cerca de meio milhar de pinturas. Fragonard é popularizado

pela pintura de género (petit genre), um estilo de pintura flamenga que tem no realismo a sua principal

característica: cenas rotineiras, temas da vida quotidiana, paisagens.

O pintor utiliza o estilo não raras vezes com uma atmosfera de intimidade e erotismo. É igualmente

um notável paisagista. As suas obras mais famosas são O Baloiço (Cf. Fig.

1) e O Beijo Furtivo (Cf. Fig. 2). A temática erótica na abordagem de F r a g o n a r d d e s p r e n d e - s e d a

moderação patenteada em Watteau, mostrando uma face mais frívola e

galante, cheia de encanto, com pincelada solta e vibrante, que parece querer abrir caminho ao

impressionismo. Numa fase mais adiantada da sua carreira, Fragonard

introduz elementos que prefiguram o Romantismo.

Jean-Honoré Fragonard morre

em Agosto de 1806. Só muito tarde é reconhecido como um dos pintores

mais influentes e decisivos do rococó.

Fig. 2 - O Beijo Furtivo (c. 1770)

Introdução Histórico-Contextual

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JEAN-HONORÉ FRAGONARD - A ILHA DO AMOR

Pág. 4

Identificação do local representado no quadro

A identificação do local preciso, q u e F r a g o n a rd u t i l i z a c o m o

inspiração para a sua obra, nunca chegou a ser aferida com rigor. São apontadas diversas propostas: festa

de jardim numa propriedade do Duque de Penthièvre, em Rambouillet

(hipótese que sustenta o título de Fête at Rambouillet), celebrações em honra do Comte du Nord, realizadas

em Chantilly em 1782, Parque de Bergeret de Grancourt em Château

de Cassan. Nenhum documento existe que confirme qualquer das hipóteses apresentadas. “Admite-se

s e r e s t e j a r d i m f r u t o d o conhecimento de diferentes espaços

que o pintor vai acumulando ao longo da sua vida” (Milan, 2006: 6 [trad. livre nossa]).

O sentimento do jogo visualA Ilha do Amor representa um

conjunto de figuras humanas, num

momento de ócio, dentro de um cenário de natureza, num apelo constante ao jogo visual. No primeiro

plano, à direita, um grupo de homens e mulheres, trajados com vestes

pomposas, navegam num barco que é alcançado por um casal em gôndola (Cf. Fig. 3).

Fig. 3 - Festa dos barcos

Reunidas na ensombrada floresta

acima da festa dos barcos, e debruçando-se sobre a balustrada

central, um grupo de pessoas contemplam, presumivelmente, as

quedas de água (Cf. Fig. 4).

Fig. 4 - Pessoas sobre a balustrada

Acções específicas, expressões e gestos são, contudo, impossíveis de discernir. A paisagem não é

exacta. Estes factos provocam um sent imento de jogo visual no

contemplador: o reconhecimento de um lugar familiar e ainda assim inidentificável, pintado de forma a

provocar a observação cuidada e a e s t i m u l a r a p r o d u ç ã o d e

pensamentos baseados - mas não determinados - pela experiência. Será este, porventura, um local

provido de um “efeito mágico” e de um “toque espiritual”, um jardim

intangível que inspira uma resposta enigmática provocada pela forma como o pintor nos conduz a interagir

com o canvas. Contemplamos na paisagem elementos que aparecem

na natureza - água que flui, ramos irregulares, vegetação exuberante, o pôr-do-sol na orla de uma árvore -,

mas reconhecemos que esses epítetos são produto da mão do

artista, da qualidade irreal das formas. A densa vegetação torna-se impenetrável para o olho humano, ao

mesmo tempo que o interior escuro gera uma atracção magnética que

atrai o olhar. Os detalhes que se e s c o n d e m r e d o b r a m - n o s a

atenção.O contemplador vê-se perante um espaço ficcional que o remete para a materialidade da obra.

Este é o jogo que provoca a reflexão sobre a forma e o conteúdo, levando

não a uma explicação do tema tratado, mas a uma maior atenção d a s a c ç õ e s d o a r t i s t a e d a

participação do contemplador na experiência visual da arte. Fragonard

postula uma formal participação: uma activa cooperação entre obra e contemplador.

Fig. 5 - Água que flui

Fig. 6 - Ramos irregulares

Fig. 7 - Pôr-do-sol na árvore

Comentário Crítico

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JEAN-HONORÉ FRAGONARD - A ILHA DO AMOR

Pág. 5

As cavidades como elemento estrutural mais proeminente

As cavidades são o elemento estrutural mais proeminente de A Ilha

do Amor. Todo o espaço sucumbe sob o peso da massa das orlas bizarras e cavernosas que, de tão

sugestivas, parecem constituir-se como o verdadeiro tema desta

representação. Não será alheia a este facto a importância que Fragonard dedica ao poder que os cenários

n a t u r a i s e x e r c e m s o b r e o contemplador.

Fig. 8 - Pormenor das cavidades

O que representam exactamente essas imponentes estruturas verde-

escuras e espongiformes moldadas pela luz? Elas nada têm a ver com as

formas padronizadas da arquitectura de jardins, nem com os límpidos arranjos dos chamados jardin

pittoresque. “Mesmo por negligência de um jardineiro, nada de tão

perturbador poderia ser produzido nesta paisagem” (Lajer-Burcharth, 2003: 40 [trad. livre nossa]). Há um

tom excessivo, aumentado pelo “drama tempestivo sugerido pelos

raios que rasgam a dissimulada árvore de fundo” (Lajer-Burcharth, 2003: 40 [trad. livre nossa]) (Cf. supra

Fig. 6).

Que ilha será esta?Que amor podemos imaginar

d e n t r o d e s t a i l h a , o n d e a interioridade que observamos no espaço pictórico ganha supremacia e

onde todo o cenário explode para um

“interior fantasmagórico” (Lajer-Burcharth, 2003: 40 [trad. nossa])? As

formações peculiares em Fragonard sugerem um “corpo interior” que se abre à contemplação, “uma cavidade

de um organismo imaginário, com as suas paredes cobertas de tecido

adiposo, com as suas veias e artérias - os ramos ziguezagueantes da árvore escondida podem ser vistos

como tal - e as suas secreções escorrendo dos compartimentos

cavernosos” (Lajer-Burcharth, 2003: 41 [trad. livre nossa]). A associação entre a paisagem e a anatomia era

u s u a l n e s s a é p o c a , c o m o o comprovam os cenários feitos de

esqueletos humanos no início do séc. XVIII pelo anatomista holandês Frederik Ruysch (Lajer-Burcharth,

2003). Fragonard não pretende mais do que acentuar o propósi to

enigmático da pintura. O véu deste enigma pode levantar-se se tivermos em conta a especificidade cultural da

visão da natureza do pintor: “Poucos foram os comentadores que não

f o r a m c a p a z e s d e n o t a r a proeminência dada à vegetação no trabalho de Fragonard, não só em A

Ilha do Amor, mas em toda a sua obra, onde se podem encontrar

‘essas árvores tremendas com coroas que se desprendem como flocos de neve’” (Rosenberg cit. por

Lajer-Burcharth, 2003: 42 [trad. livre nossa]).

A natureza como uma força vivaOs pouco usuais aspectos da

visão de Fragonard - tão distintos das imagens do rococó dos seus

predecessores, como Watteau, e, mais imediatamente, os seus mestres

Boucher e Chardin - devem-se a um desvio importante no entendimento da natureza que se registava na

época. De uma forma cruel, Deus abandonava o reino da natureza à

m e d i d a q u e o s p e n s a d o r e s iluminados expandiam o escrutínio à

ciência. Não significa isto que a ciência natural do séc. XVIII fosse

uniformemente ateísta, mas que virou o foco da atenção do Criador para a criação e para as leis específicas que

regiam o seu funcionamento. Uma pintura da natureza produzida nesse

tempo dificilmente era tida como panteísta. Pelo contrário, esperava-se “uma visão materialista do mundo

pene t rada não po r um Deus omnipotente , mas por novos

princípios de base científica” (Lajer-Burcharth, 2003: 42 [trad. livre nossa]). Em A Ilha do Amor podemos

ver um reconhecimento da natureza como uma força viva: um contínuo

molecular, animado desde o seu interior, em constante movimento e proliferação incessante.

Se não Deus, quem é responsável por este crescimento?

É esta função interrogativa que as ameaçadoras estátuas das

paisagens de Fragonard, como as figuras femininas de A Ilha do Amor (Cf. Fig. 9), desempenham.

Fig. 9 - Figuras femininas

Elas remetem para a ideia da presença feminina, mas recusam-se a fornecer uma resposta. As suas

fo rmas permanecem vagas e distantes, impossíveis de identificar.

Mas a feminilidade que preside às composições de Fragonard remete para um outro sentido morfológico:

dentro do contínuo molecular desta ilha, a matéria parece transformar-se

em fertilidade; o útero como um local na natureza onde a vida tem origem.

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JEAN-HONORÉ FRAGONARD - A ILHA DO AMOR

Pág. 6

Relação com outras obras

In Arcádia Precária (pp. 131-140):

“Tentei distrair-me com as especulações de Cavalcanti sobre A Festa em Rambouillet, que, de todos os quadros

de Fragonard, é sem dúvida o mais misterioso. É também um dos mais belos quadros produzidos pelo Rococó

francês e decerto o mais perturbador. A Festa em Rambouillet representa um grupo de pessoas em uma gôndola

dourada, coisa veneziana, copada de dossel lilás, flutuando num riacho violento, do qual protuberam muitas

rochas. Em derredor, miniturizando a gôndola, se elevam grandes sebes de vaporosa verdura, que, a despeito da

macia perfeição com que foram pintadas, parecem carregar ainda mais o ambiente de ameaça, já criado pelos

escolhos no riacho. Figuras misteriosas vêem-se por toda a parte, camufladas pela verdura. No centro da

composição, a luz do sol incide sobre uma árvore retorcida e sem folhas; árvore alta e fina, forqueada como num

desenho chinês, o que nos dá a impressão de ter sido fulminada por um relâmpago. Os convivas na gôndola

parecem inscientes de todas essas ameaças e formam, juntamente com a riba coberta de urze cor de malva, um

frágil núcleo de despreocupação, no meio de uma Arcádia que deveras se tornou precária (…) De facto, é difícil

pensar que aquelas árvores possam realmente ter existido. Árvores de um verde inefável. Tão imponentes e

amorfas que poderiam confundir-se com nuvens”.

A Formosa Pintura do MundoEm ecfrasis, Eduardo Lourenço, na sua obra ficcionada A Formosa Pintura do Mundo, editada em 2005

pelas Edições Cotovia, descreve de uma forma ilucidativa e bela A Ilha do Amor.

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JEAN-HONORÉ FRAGONARD - A ILHA DO AMOR

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BibliografiaLajer-Burcharth, E. (2003). Fragonard in Detail. Differences: A Journal of Feminist Cultural

Studies, 14, 34-56.

Lourenço, F. (2005). A Formosa Pintura do Mundo. Lisboa: Edições Cotovia.

Milam, J. (2006). Fragonard’s playful paintings. Visual games in Rococo art. Manchester:

Manchester University Press.

Wikipedia [em linha]. Obtido em 22 Dez. 2009] Disponível em:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Jean-Honoré_Fragonard

Wikipedia [em linha]. Obtido em 22 Dez. 2009] Disponível em:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Rococó

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Anexo I