justiÇa em aristÓteles: uma análise dos conceitos de
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PONTIFIacuteCIA UNIVERSIDADE CATOacuteLICA DE MINAS GERAIS Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito
Gilberto de Andrade Pinto
JUSTICcedilA EM ARISTOacuteTELES uma anaacutelise dos conceitos de prudecircncia e equidade
Belo Horizonte 2013
Gilberto de Andrade Pinto
JUSTICcedilA EM ARISTOacuteTELES uma anaacutelise dos conceitos de prudecircncia e equidade
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Minas Gerais como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de mestre em Direito Orientador Dr Juacutelio Aguiar de Oliveira Coorientador Dr Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno
Belo Horizonte 2013
FICHA CATALOGRAacuteFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Minas Gerais
Pinto Gilberto de Andrade
P659j Justiccedila em Aristoacuteteles uma anaacutelise dos conceitos de prudecircncia e equidade
Gilberto de Andrade Pinto Belo Horizonte 2013
110f
Orientador Juacutelio Aguiar de Oliveira
Coorientador Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno
Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Minas Gerais
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito
1 Aristoacuteteles 2 Equumlidade (Direito) 3 Prudecircncia I Oliveira Juacutelio Aguiar de
II Trivisonno Alexandre Travessoni Gomes III Pontifiacutecia Universidade
Catoacutelica de Minas Gerais Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito IV Tiacutetulo
CDU 34012
Gilberto de Andrade Pinto
JUSTICcedilA EM ARISTOacuteTELES uma anaacutelise dos conceitos de prudecircncia e equidade
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Minas Gerais como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de mestre em Direito
____________________________________________________________ Juacutelio Aguiar de Oliveira (Orientador) ndash PUC Minas
____________________________________________________________ Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno (Coorientador) ndash PUC Minas
____________________________________________________________ Fernando Joseacute Armando Ribeiro ndash PUC Minas
____________________________________________________________ Mocircnica Sette Lopes ndash UFMG
Belo Horizonte 03 de junho de 2013
Dedico este trabalho
Ao meu primogecircnito Davi na esperanccedila que ele se torne um homem feliz
mediante a praacutetica reiterada da virtude
Agrave minha esposa Camila testemunha e cuacutemplice de cada hora pelo amor e
compreensatildeo a mim dispensados
Aos meus pais que natildeo mediram esforccedilos e sacrifiacutecios pelo meu sonho
Aos meus irmatildeos Ramon e Giselle por compartilharem comigo a fraterna
amizade indispensaacutevel nos momentos difiacuteceis
AGRADECIMENTOS
A todos que contribuiacuteram direta ou indiretamente para a concretizaccedilatildeo deste
sonho Fica aqui registrada a minha gratidatildeo especialmente
Ao meu Orientador Professor Juacutelio Aguiar de Oliveira que acolheu e
acreditou em minhas ideias natildeo deixando que eu acreditasse que as contingecircncias
da vida fossem outra coisa que natildeo verdadeiras liccedilotildees e incentivos para o meu
aperfeiccediloamento pessoal e acadecircmico
Agradeccedilo tambeacutem ao meu Coorientador Alexandre Travessoni Gomes
Trivisonno pelos valorosos exemplos de retidatildeo e seriedade
Aos meus colegas de curso que comungaram comigo agrave elevada aspiraccedilatildeo
acadecircmica
Ao prof Virgiacutelio Diniz pela amizade e apoio de sempre
Agrave prof Leda Soares e prof Luciana Costa que sempre estiveram dispostas
a me ajudar da melhor forma possiacutevel jamais me esquecerei disso
Obrigado do fundo do meu coraccedilatildeo a todos vocecircs
Sou com efeito vosso servo e filho de vossa serva um
homem fraco cuja existecircncia eacute breve incapaz de compreender
vosso julgamento e vossas leis []
Que homem pois pode conhecer os desiacutegnios de Deus e
penetrar nas determinaccedilotildees do Senhor
Tiacutemidos satildeo os pensamentos dos mortais e incertas as nossas
providecircncias (SABEDORIA 10)
RESUMO
Esta dissertaccedilatildeo realizou um estudo acerca da concepccedilatildeo aristoteacutelica dos conceitos
de prudecircncia e equidade Seu objetivo foi analisar os conceitos de prudecircncia e
equidade e estabelecer as possiacuteveis relaccedilotildees inerentes a tais conceitos
Primeiramente procurou-se compreender a noccedilatildeo de contingecircncia verificando que
tal noccedilatildeo estaacute estritamente relacionada agrave possibilidade de accedilatildeo e portanto agrave
questotildees de razatildeo praacutetica Em seguida realizou-se uma abordagem acerca da eacutetica
das virtudes objetivando contextualizar os conceitos estudados Realizada uma
exposiccedilatildeo sobre a prudecircncia procurou-se estabelecer em linhas gerais a concepccedilatildeo
aristoteacutelica de justiccedila Por fim foi realizada uma tentativa de reconstruccedilatildeo dos
conceitos de prudecircncia e de equidade A conclusatildeo que se chegou foi a de que tanto
o conceito de prudecircncia quanto o de equidade estatildeo relacionados agrave questotildees de
razatildeo praacutetica A principal relaccedilatildeo estabelecida entre tais conceitos eacute a de que ambos
lidam com situaccedilotildees contingenciais o que evidencia a distacircncia entre o universal e o
particular que ao final chamamos de hiato-froneacutetico
Palavras-chave Aristoacuteteles Prudecircncia Equidade
ABSTRACT
This work conducted a study on the Aristotelian conception of the concepts of
prudence and equity His goal was to analyze the concepts of prudence and equity
and establish possible relationships inherent in such concepts First we sought to
understand the notion of contingency noting that such a notion is closely related to
the possibility of action and therefore the issues of practical reason Then took place
about an approach of virtue ethics aiming to contextualize the concepts studied An
exhibition about prudence sought to establish a broadly Aristotelian conception of
justice Finally an attempt was made to reconstruct concepts of prudence and equity
The conclusion reached was that both the concepts of prudence and equity are
related to issues of practical reason The main relationship between these concepts
is to both deal with contingency situations which shows the distance between the
universal and the particular which we call the phronetic gap
Key-words Aristotle Prudence Equity
LISTA DE ABREVIATURAS
AA ndash Analiacuteticos Anteriores
DA ndash Da Alma
DI ndash Da Interpretaccedilatildeo
EE ndash Eacutetica a Eudemo
EN ndash Eacutetica a Nicocircmaco
Fiacutes - Fiacutesica
Met ndash Metafiacutesica
MM ndash Magna Moralia
Pol ndash Poliacutetica
Ret - Retoacuterica
SUMAacuteRIO 1 INTRODUCcedilAtildeO12 2 A CONTINGEcircNCIA16 21 A Loacutegica16 22 O Movimento da potecircncia para o ato21 23 Indeterminismo e a eacutetica das virtudes26 231 Primeira concepccedilatildeo de acaso A boa fortuna26 232 Segunda concepccedilatildeo de acaso Acidente28 233 Terceira concepccedilatildeo de acaso contingecircncia30 2331 Trageacutedia32 3 EacuteTICA DAS VIRTUDES35 31 Eacutetica a Nicocircmaco36 32 Partes da Alma39 33 Virtudes Morais43 331 Doutrina da Mediana45 34 Accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria47 35 Virtudes Intelectuais51 4 PRUDEcircNCIA54 41 Conceito54 42 Prudecircncia e liberdade56 43 Arte e prudecircncia57 44 Deliberaccedilatildeo e Escolha58 45 O prudente61 5 JUSTICcedilA COMO VIRTUDE67 51 Justo e injusto68 52 Justo universal69 53 Justo particular71 531 Justiccedila distributiva71 532 Justiccedila corretiva72 54 Justo domeacutestico73 55 Justo poliacutetico74 551 Justo natural75 552 Justo legal (convencional)75 6 A EQUIDADE78 61 Justiccedila e equidade ambiguidade do tema79 62 Justiccedila como equidade82 621 Justiccedila e igualdade84 63 Equidade melhor que um tipo de justiccedila86 64 Natureza essencial do equitativo a retificaccedilatildeo do justo legal87 641 A metaacutefora da reacutegua de chumbo88 642 A retificaccedilatildeo do justo legal89 65 Equidade e lacuna93 66 O homem equitativo97
67 Equidade e Prudecircncia99 7 CONCLUSAtildeO103 REFEREcircNCIAS106
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1 INTRODUCcedilAtildeO
Com o surgimento da modernidade originou-se uma ruptura nos
fundamentos da filosofia moral claacutessica Dessa forma conceitos basilares da
filosofia moral perderam os seus significados restando para o mundo
contemporacircneo apenas fragmentos de suas antigas concepccedilotildees Conforme propotildee
Alasdair MacIntyre (2001 p 15) em sua obra Depois da virtude o que possuiacutemos
satildeo apenas fragmentos de um esquema conceitual fragmentos hoje distantes de
seu contexto semacircntico o que quer dizer que utilizamos apenas os simulacros de
tais conceitos
Desse modo o significado claacutessico das virtudes da forma como
estabelecido por Aristoacuteteles foi alterado tornando-se inacessiacuteveis agrave nossa
compreensatildeo o sentido atribuiacutedo por Aristoacuteteles aos conceitos de prudecircncia e de
equidade
O conceito de prudecircncia1 apresenta significativas transformaccedilotildees
semacircnticas o que obscurece e compromete a compreensatildeo do seu significado
claacutessico Eacute o que Jean Lauand veio a perceber quando traduziu as questotildees 47-46
da Segunda Parte da Segunda Parte da Suma Teoloacutegica de Tomaacutes de Aquino
[] prudentia eacute uma daquelas tantas palavras fundamentais que sofreram desastrosas transformaccedilotildees semacircnticas com o passar do tempo
A proximidade entre nossa liacutengua e o latim de Tomaacutes natildeo nos deve enganar ocorre como diziacuteamos um conhecido fenocircmeno de alteraccedilatildeo do sentido das palavras que se manifesta muitas vezes quando lemos um autor de outra eacutepoca E natildeo soacute alteraccedilatildeo como mostra C S Lewis daacute-se frequumlentemente sobretudo no campo da eacutetica uma autecircntica inversatildeo de polaridade aquela palavra que originalmente designava uma qualidade positiva esvazia-se de seu sentido inicial ou passa a designar uma qualidade negativa
1 Optamos por escrever no termo utilizado usualmente pelos autores da liacutengua portuguesa Contudo
conforme consta desta introduccedilatildeo os conceitos proacuteprios agrave tradiccedilatildeo das virtudes perderam sua inteligibilidade restando para noacutes apenas simulacros do que um dia corresponderam De acordo com HERMANN (2007) ldquoO termo phronesis natildeo tem uma traduccedilatildeo que expresse de forma satisfatoacuteria o espectro semacircntico que possuiacutea para o mundo grego Habitualmente traduzido por prudecircncia o uso do termo descolou-se do contexto de origem e perdeu seu enraizamento eacuteticordquo O mesmo acontece com o termo Epeiqueia
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Foi o que aconteceu entre outras com as palavras ldquoprudenterdquo e ldquoprudecircnciardquo []
Se hoje a palavra prudecircncia tornou-se aquela egoiacutesta cautela da indecisatildeo (em cima do muro) em Tomaacutes ao contraacuterio prudentia expressa exatamente o oposto eacute a arte de decidir corretamente [] virtude do liacutempido conhecimento do ser (LUAND 2005 p7-10)
O conceito de equidade igualmente nos parece de difiacutecil compreensatildeo O
dicionaacuterio grego-portuguecircs de Isidro Pereira registra as seguintes traduccedilotildees para
ἐπιείκεια conveniecircncia moderaccedilatildeo equidade epiqueia doccedilura bondade (cf
PEREIRA 1998 p 210 [verbete ἐπιείκεια]) Registrando a presenccedila de uma
traduccedilatildeo ainda mais proacutexima do termo grego epieiacutekeia menos usada contudo em
nosso vocabulaacuterio epiqueia2 Disso podemos constatar que embora a equidade
goze de grande popularidade no meio juriacutedico seu emprego por vezes varia ainda
que ligeiramente do conceito elaborado pelo Estagirita3
Portanto diante de tais dificuldades questionamos O que seria a prudecircncia
e a equidade na tradiccedilatildeo aristoteacutelica Tal questionamento nos levou a procurar nos
textos do proacuteprio Aristoacuteteles e seus comentadores os indiacutecios das formulaccedilotildees
originaacuterias Por ora o que podemos levantar eacute que ambos os conceitos satildeo
visualizados em situaccedilotildees muito aproximadas O que nos leva agrave possiblidade de
existir entre ambos uma relaccedilatildeo de interdependecircncia conceitual Talvez seja por isso
que quando Aristoacuteteles aborda as virtudes morais deixa a equidade como uacuteltimo
assunto antes de tratar da virtude intelectual da prudecircncia
Neste sentido o trabalho foi elaborado traccedilando um percurso entre as
condiccedilotildees necessaacuterias ao exerciacutecio das virtudes para em seguida procurarmos
contextualizar a teoria das virtudes como um todo e por fim conhecermos a virtude
da prudecircncia No momento subsequente realizamos uma exposiccedilatildeo da virtude da
justiccedila Apoacutes esses passos entendemos ser possiacutevel a formulaccedilatildeo das concepccedilotildees
aristoteacutelicas dos conceitos de prudecircncia e equidade
2 Abbagnano registra epiqueia como sendo sinocircnimo de equidade (1999 p 338 [verbete epiqueia])
Em seu verbete epiqueia Aureacutelio Buarque de Holanda embora natildeo a coloque como sinocircnimo de equidade registra ldquoepiqueia Sf 1 Interpretaccedilatildeo razoaacutevel de lei ou preceito 2 Fig Meio-termo moderaccedilatildeordquo Entendimento que nos parece mais proacuteximo agrave proposta Aristoteacutelica 3 Referecircncia agrave Aristoacuteteles por ser natural de Estagira uma antiga cidade da Macedocircnia situada hoje
na Greacutecia na regiatildeo de Calciacutedica
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Dentro desse esquema o segundo capiacutetulo tem por objetivo analisar a
contingecircncia caracterizada pela indeterminaccedilatildeo objetiva na relaccedilatildeo entre o universal
e o particular como condiccedilatildeo para o exerciacutecio da razatildeo praacutetica4 Neste sentido
iremos buscar na loacutegica de Aristoacuteteles os elementos necessaacuterios para a sua
compreensatildeo
Uma concepccedilatildeo um tanto popular quando se trata de Aristoacuteteles eacute da
potecircncia e do ato A pretensatildeo eacute revisitar esse conceito com foco na relaccedilatildeo
contingencial que existe no movimento entre a potecircncia e o ato O objetivo do
capiacutetulo alcanccedila pouso numa concepccedilatildeo de contingecircncia proacutepria agrave eacutetica das
virtudes O que segue eacute a proposta de Pierre Aubenque (2008) em fazer uma
exposiccedilatildeo da contingecircncia nas concepccedilotildees de acaso Por fim eacute na trageacutedia grega
que Aubenque (2008) mostra as condiccedilotildees necessaacuterias ao exerciacutecio das virtudes
O terceiro capiacutetulo tem por objetivo trazer uma exposiccedilatildeo que contextualize
na tradiccedilatildeo aristoteacutelica das virtudes os conceitos que seratildeo estudados Neste
sentido eacute realizada inicialmente uma leitura acerca da teoria geral das virtudes na
Eacutetica a Nicocircmaco Observando as partes da alma e suas qualidades como racional e
irracional dividindo assim as virtudes em intelectuais e morais respectivamente
O quarto capiacutetulo procura reconstruir o conceito de prudecircncia relacionando-
o com a liberdade e a arte As temaacuteticas da deliberaccedilatildeo e da escolha satildeo neste
ponto inseridas como elementos indispensaacuteveis agrave anaacutelise do conceito de prudecircncia
O quinto capiacutetulo pretende oferecer uma visatildeo geral da teoria da justiccedila de
Aristoacuteteles como tambeacutem considerar o fato de Aristoacuteteles ter inserido sua exposiccedilatildeo
da equidade no livro V em relaccedilatildeo com o conceito de justiccedila objeto especiacutefico de
investigaccedilatildeo do livro mencionado
Por uacuteltimo procuramos o conceito de equidade Essa uacuteltima exposiccedilatildeo tem
por objetivo delinear a pretensatildeo de Aristoacuteteles com tal formulaccedilatildeo Nele natildeo
inserimos pretensotildees complexas acerca de teorias especiacuteficas e contemporacircneas
mas tatildeo somente a despretensiosa e sofisticada elaboraccedilatildeo aristoteacutelica do assunto
4 Sobre razatildeo praacutetica vide LACERDA Bruno Amaro O raciociacutenio juriacutedico uma visatildeo aristoteacutelica Belo
Horizonte Movimento Editorial da Faculdade de Direito da UFMG 2005
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Eacute neste sentido que ao explicar o desdobramento da razatildeo praacutetica ele
abandona o modelo oferecido pela geometria buscando na carpintaria um novo
modelo (fiel no entanto agrave tradiccedilatildeo das virtudes) Por fim procuramos no conceito
de equidade traccedilos pertinentes agraves virtudes em geral e em especial agrave virtude da
prudecircncia
Para a conclusatildeo reservamos a tarefa de responder a seguinte questatildeo que
se impotildee apoacutes o estudo simultacircneo desses dois conceitos existe uma relaccedilatildeo
conceitual entre os conceitos de prudecircncia e equidade
16
2 A CONTINGEcircNCIA
A prudecircncia e a equidade estatildeo condicionadas ao campo da accedilatildeo Contudo
parece que ambas soacute podem se manifestar no acircmbito do contingente Sendo
portanto a contingecircncia nosso ponto de partida
Parece ser a contingecircncia um dos fenocircmenos mais intrigantes a se tratar por
uma dupla razatildeo A contingecircncia consegue ao mesmo tempo nos desmotivar por
nos ensinar a liccedilatildeo de que natildeo podemos tudo conter e que a nossa pretensiosa
construccedilatildeo cotidiana deve estar sempre alerta para as incontaacuteveis possibilidades a
qual o mundo nos submete Por outro lado e concomitantemente eacute ela quem nos
motiva que nos convida agrave accedilatildeo Pois assim como o vento escolhe seu caminho eacute
ela que tem o poder de inserir em nossas vidas as mudanccedilas pelas quais devemos
lutar para moldarmos nossos objetivos e possibilidades um ao outro
Eacute nesse sentido que nos parece liacutecita a crenccedila em uma possiacutevel
reintegraccedilatildeo do homem com a sua natureza divina pois estatildeo nas vicissitudes da
vida as liccedilotildees praacuteticas nas quais os homens podem dar o melhor de si em busca de
um aperfeiccediloamento moral
21 A Loacutegica5
Eacute no estudo da loacutegica que pretendemos encontrar nossa primeira referecircncia
sobre o que seja a contingecircncia Tradicionalmente entende-se por loacutegica o estudo
dos raciociacutenios que pretendem atraveacutes de regras proacuteprias concluiacuterem por
resultados verdadeiros Desnudando assim os raciociacutenios que se vestem com
aparente validade mas que ocultam viacutecios que os falseiam
Tais viacutecios satildeo comumente apontados como tendo duas fontes sendo uma
relacionada aos fundamentos do raciociacutenio e outra ao nexo que se estabelece entre
5 A loacutegica normalmente eacute classificada como pertencente agrave razatildeo especulativa Nosso estudo situa-se
no acircmbito da razatildeo praacutetica Natildeo obstante parece-nos que a compreensatildeo do pensamento de Aristoacuteteles daacute-se atraveacutes da compreensatildeo de seu meacutetodo que eacute abordado na loacutegica Por outro lado quando descreve o prudente Aristoacuteteles sempre faz menccedilatildeo de que ele natildeo versa apenas sobre questotildees da razatildeo especulativa mas tambeacutem questotildees de razatildeo praacutetica Portanto o conhecimento especulativo eacute pertinente ao agente da razatildeo praacutetica Vide EN VI 7 1141b15
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eles e a conclusatildeo Nesse sentido a loacutegica aristoteacutelica eacute estudada em dois ramos
sendo eles conhecidos como Loacutegica Maior (ou material) e Loacutegica Menor (ou formal)
Comecemos pela Loacutegica Menor De acordo com o ensino tradicional de
loacutegica as proposiccedilotildees podem ser classificadas pela qualidade e pela quantidade ou
seja como afirmativas ou negativas e universais ou particulares respectivamente
Daacute-se agraves combinaccedilotildees possiacuteveis a seguinte notaccedilatildeo Se a proposiccedilatildeo for uma
universal afirmativa por exemplo Todo S eacute P6 (Todo homem eacute mortal) entatildeo temos
uma proposiccedilatildeo ldquoArdquo Se a proposiccedilatildeo for particular afirmativa por exemplo Alguns S
satildeo P (Alguns homens satildeo brancos) entatildeo temos uma proposiccedilatildeo ldquoIrdquo Se a
proposiccedilatildeo for uma universal negativa por exemplo Nenhum ldquoSrdquo eacute ldquoPrdquo (Nenhum
homem eacute mortal) entatildeo temos uma proposiccedilatildeo ldquoErdquo Se a proposiccedilatildeo for particular
negativa por exemplo Alguns S natildeo satildeo P (Alguns poliacuteticos natildeo satildeo corruptos)
entatildeo temos uma proposiccedilatildeo ldquoOrdquo
Eacute importante notar que nessa primeira classificaccedilatildeo o que se procura
evidenciar eacute a relaccedilatildeo entre o sujeito S e o predicado P sendo que pode estar-se
afirmando ou negando algo ao particular ou ao universal
Parece-nos que os termos empregados por perspicaacutecia ou feliz
coincidecircncia daacute-nos uma importante pista acerca do domiacutenio do contingente Pois eacute
justamente na tensatildeo existente entre o universal e o particular que noacutes podemos
extrair parte do conceito entatildeo estudado
Em sua liccedilatildeo sobre loacutegica Jacques Maritain (2001 p 106) explica essa
tensatildeo expondo brevemente sobre o modo como conhecemos as coisas De acordo
com ele as coisas se apresentam de duas maneiras por uma ideia ou por uma
representaccedilatildeo sensiacutevel As ideias estatildeo relacionadas como o que conhecemos por
universal ou seja lsquoaquilo que se encontra sempre idecircntico em uma multidatildeo de
indiviacuteduos um em muitos ldquounum in multisrdquorsquo
Precisando acerca do particular7 extrai-se da mesma liccedilatildeo
Aleacutem disso se examinarmos com cuidado as diversas ciecircncias isto eacute os diversos sistemas de ideacuteias pelos quais conhecemos o real constatamos que nenhuma delas tem por objeto o individual como tal [] Eacute preciso
6 ldquoSrdquo para sujeito e ldquoPrdquo para predicado
7 Maritain aborda o tema nominando o universal por ideia e o particular por representaccedilatildeo
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que assim seja porque o individual como tal natildeo eacute explicativo (representando somente a si mesmo natildeo pode evidentemente dar a razatildeo de outra coisa) (MARITAIN 2001 p 105)
Ainda comparando os extremos da tensatildeo Jaques Maritain facilita a
compreensatildeo ldquoOra esta ideia e esta representaccedilatildeo satildeo bem diferentes a prova eacute
que posso fazer variar a segunda de muitas maneiras (o desenho que imagino pode
ser maior ou menor branco vermelho amarelo etc) sem que a primeira varie por
causa dissordquo (MARITAIN 2001 p 103)
Aiacute estaacute nossa primeira pista pois eacute no acircmbito do particular onde ldquopode-se
fazer variarrdquo ou seja onde existe uma dificuldade em predominar o certo o
determinado o evidente o necessaacuterio eacute que chamamos o domiacutenio do contingente
Aleacutem da classificaccedilatildeo pela qualidade e quantidade temos outra importante
classificaccedilatildeo que eacute pela modalidade Nesta podemos encontrar as proposiccedilotildees
como Verdadeiras Falsas8 Necessaacuterias Possiacuteveis Impossiacuteveis e Contingentes
Nas necessaacuterias9 o predicado decorre do sujeito sendo a compreensatildeo de um
indissociaacutevel da compreensatildeo do outro
Quanto agraves proposiccedilotildees possiacuteveis satildeo aquelas em que o predicado pode ser
ou natildeo ser atribuiacutedo ao sujeito Alguns filoacutesofos se restringem a essas duas
modalidades assim a compreensatildeo da contingecircncia fica embutida na modalidade
possiacutevel em outras palavras aquilo que pode ou natildeo pode ser Essa compreensatildeo
aparece na Eacutetica a Nicocircmaco (EN VI 5 1140b1 negrito nosso) ldquouma vez que natildeo
se pode deliberar sobre coisas que estatildeo no acircmbito da necessidade conclui-se que
8 Aristoacuteteles apresenta seis modalidades Os manuais de loacutegica em sua maioria apresentam apenas
quatro modalidades de proposiccedilotildees quais sejam as necessaacuterias possiacuteveis impossiacuteveis e contingentes As modalidades de proposiccedilotildees verdadeiras e falsas satildeo tratadas como valores por decorrerem do emprego das demais
9 Na Metafiacutesica Aristoacuteteles explica a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio e as demais modalidades As
foacutermulas satildeo e natildeo satildeo independentemente da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo pois foi mostrado que ningueacutem as gera ou cria Eacute por esta razatildeo tambeacutem que natildeo haacute definiccedilatildeo ou demonstraccedilatildeo de coisas individuais sensiacuteveis porque contecircm mateacuteria cuja a natureza eacute tal que pode tanto existir quanto natildeo existir Consequentemente todos os exemplos individuais delas satildeo pereciacuteveis E se entatildeo a demonstraccedilatildeo e a definiccedilatildeo de verdades necessaacuterias requerem conhecimento cientiacutefico e se tal como conhecimento natildeo poder ser agraves vez conhecimento e agraves vezes ignoracircncia (eacute a opiniatildeo que possui esta natureza) do mesmo modo tambeacutem demonstraccedilatildeo e a definiccedilatildeo natildeo satildeo passiacuteveis de variaccedilatildeo (eacute a opiniatildeo que se ocupa com aquilo que pode ser de outra maneira do que eacute) (Met 1039b25 - 1040a1)
19
a prudecircncia (sabedoria praacutetica) natildeo eacute o mesmo que conhecimento cientiacutefico porque
os assuntos relacionados agrave conduta admitem mutaccedilatildeordquo
Mais claramente Santo Tomaacutes discorre na segunda parte da Segunda
Parte Questatildeo 47 artigo 5 da Suma Teoloacutegica
Consequumlentemente se diraacute que a prudecircncia estando na razatildeo como jaacute foi dito distingue-se das outras virtudes intelectuais segundo a diversidade material de objetos Pois a sabedoria a ciecircncia e o intelecto tecircm como objetos coisas necessaacuterias a arte e a prudecircncia coisas contingentes [] (AQUINO 2004 p 593 negrito nosso)
Parece-nos importante o desdobramento nas quatro modalidades pois o
possiacutevel e contingente natildeo parecem sinocircnimos O principal argumento estaacute no fato
de que na noccedilatildeo de possiacutevel estaacute impliacutecito o seu contraacuterio ou seja o Impossiacutevel
hipoacutetese em que o predicado natildeo decorre do sujeito Por sua vez a noccedilatildeo de
contingecircncia natildeo compreende o incontingente
Em seu Dicionaacuterio de Filosofia Nicola Abbagnano expotildee no verbete
Contingente a diferenccedila entre contingecircncia e possiacutevel jaacute exposta por Boeacutecio
ldquopossibuumlerdquo e contingens significam a mesma coisa salvo talvez pelo fato de natildeo
existir o negativo de contingens que deveria ser incontingens assim como existe o
negativo de possibuumle que eacute iacutempossiacutebilerdquo (ABBAGNANO 2007 p 200)
Sendo portanto quatro as classificaccedilotildees das modalidades Necessaacuterio ou ldquoeacute
necessaacuterio que S seja Prdquo Possiacutevel ou ldquoeacute possiacutevel que S seja Prdquo Impossiacutevel ou ldquoeacute
impossiacutevel que S seja Prdquo e Contingente ou ldquoeacute contingente que S seja Prdquo
Assim as proposiccedilotildees sempre recebem o valor de verdadeiras quando
pertencem agrave modalidade Necessaacuterio recebem o valor de falsas quando pertencem agrave
modalidade Impossiacutevel recebem o valor de verdadeiras ou falsas quando pertencem
agrave modalidade Possiacutevel
Quando as proposiccedilotildees pertencem agrave modalidade Contingente natildeo podem
ser dotadas de valoraccedilatildeo uma vez que natildeo se pode decidir se satildeo verdadeiras ou
falsas Isso na loacutegica eacute conhecido como acidentes10 ou aquilo que estaacute presente e
ausente ainda que natildeo haja corrupccedilatildeo do sujeito Por isso quando se fala em
10
Retomaremos acerca dos acidentes quando estudarmos o acaso
20
contingecircncia soacute pode estar-se referindo ao momento presente ou futuro mas nunca
ao passado Satildeo nesses momentos em que impera o indeterminado que se
encontra a contingecircncia
Natildeo obstante a correta formulaccedilatildeo de um raciociacutenio eacute possiacutevel que
obtenhamos conclusotildees erradas hipoacutetese essa em que as premissas natildeo satildeo
verdadeiras Destarte diferente da loacutegica menor que se preocupa com a
conformidade das conclusotildees com as premissas a loacutegica maior preocupa-se com a
veracidade
Para que possamos compreender melhor o objeto da loacutegica maior eacute preciso
conceituar o que seja a verdade em mateacuteria de loacutegica assim valhamo-nos das
liccedilotildees de Manoel Correia de Barros (1945)
Jaacute vimos que pelo processo de abstracccedilatildeo a forma do objeto que conhecemos adquire na nossa inteligecircncia uma modalidade de existecircncia completamente diferente da que tem na realidade No objecto eacute concreta individual na inteligecircncia eacute universal abstracta A verdade do nosso conhecimento tem portanto outro significado Consiste simplesmente em natildeo atribuirmos ao objeto nenhuma nota que natildeo lhe pertenccedila na realidade Eacute o caso de analogia A relaccedilatildeo que o nosso espiacuterito estabelece entre dois conceitos deve ser idecircntica a uma relaccedilatildeo existente de facto entre os dois objetos que eles representam para que o nosso conhecimento seja verdadeiro Natildeo eacute necessaacuterio que conheccedilamos todas as relaccedilotildees entre os dois objectos e muito menos todas as relaccedilotildees de que um decircles pode ser termo para ser verdadeiro o conhecimento natildeo precisa ser exaustivo basta que a nota que afirmamos pertencer ao obejcto lhe pertenccedila realmente Assim falamos verdade quando dizemos que a neve eacute branca embora agravececircrca da neve haja muitas coisas mais a dizer e a saber
Natildeo haacute que saber duma ideia isolada se eacute verdadeira ou natildeo A questatildeo natildeo se potildee dado que a verdade eacute igualdade de relaccedilotildees que exigem claro estaacute dois termos []
Soacute pode ser verdadeiro ou falso o juiacutezo que se exprime pela proposiccedilatildeo e relaciona entre si um sujeito e um predicado Ecircsse sim se o predicado que atribuiacutemos ao sujeito lhe convecircm na realidade eacute verdadeiro se lhe natildeo conveacutem eacute falso (BARROS 1945 p 329-330)
Dessa forma para o estabelecimento da verdade eacute necessaacuterio que natildeo haja
nada de estranho ao objeto ou em outras palavras o predicado deve decorrer do
sujeito natildeo lhe dando qualquer nota que natildeo lhe pertenccedila Por isso afirma Maritain
(2001) que a verdade de nosso espiacuterito consiste em sua conformidade com a coisa
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Nesse sentido eacute que podemos compreender o que afirmamos quando
falaacutevamos da loacutegica menor em que natildeo podemos atribuir o incerto ao passado
Pois por oacutebvio qualquer nota que natildeo lhe tenha ocorrido natildeo lhe pertence
[] os futuros contingentes natildeo existem no passado nem mesmo como verdades futuras Ontem por exemplo natildeo era uma verdade que ia hoje sair um determinado nuacutemero na lotaria porque natildeo existia ontem nenhum facto em que essa consequumlecircncia estivesse contida de modo necessaacuterio com o qual a proposiccedilatildeo em causa pudesse concordar (BARROS 1945 p 331)
Portanto como estaacute relacionado agrave coisa futura o contingente encontra-se
latente num estado de porvir Por isso eacute que estabelecemos nossa proacutexima
referecircncia acerca da contingecircncia no movimento
22 O Movimento11 da potecircncia para o ato
Eacute interessante notar que o momento propiacutecio agrave decisatildeo eacute um momento de
passagem ou em melhor termo um momento de movimento Natildeo eacute em vatildeo que
Pierre Aubenque (2008) em seu livro A Prudecircncia em Aristoacuteteles dedica boa parte
do capiacutetulo Cosmologia da Prudecircncia ndash o mesmo capiacutetulo no qual faz uma
abordagem sobre contingecircncia ndash ao tema O tempo oportuno (καιρος)
Nesse sentido estaacute [] a moral aristoteacutelica nos convidando a realizar nossa
excelecircncia neste mundo Natildeo podendo desconhecer que o mundo dura e muda no
tempo que eacute o ldquonuacutemerordquo de seu movimento (Aubenque 2008 p156)
Dessa forma eacute preciso compreender o movimento principalmente na tatildeo
conhecida passagem da Potecircncia para o Ato Como bem assinala Tomaacutes de Aquino
no artigo 5 da questatildeo 47 que estatildeo sob os auspiacutecios da contingencia tanto a
prudecircncia quanto a arte12 isso porque ambas ldquoestatildeo para serrdquo a prudecircncia para o
agir e arte para produzir13
11
Aristoacuteteles faz uma grande abordagem acerca do movimento de acordo com RUSSEL (2001) existem trecircs espeacutecies de movimento Movimento enquanto qualidade quantidade e mudanccedila de lugar REALE (1990) apresenta uma quarta divisatildeo enquanto substacircncia Dessa forma nomina o movimento entre a potecircncia e o ato como movimento enquanto qualidade proposta do presente item 12
Jaacute citado e referenciado no item 21 Esse assunto ainda seraacute tratado no item 43 Arte e prudecircncia 13
Sobre o movimento e a relaccedilatildeo entre a lei e o fato assina-la Carnelutti Assim aflora no discurso a conversatildeo do movimento na imobilidade E assim opotildee-se agrave lei ao direito O eterno contraste entre o
22
Ateacute Aristoacuteteles a concepccedilatildeo filosoacutefica acerca do movimento esteve
vinculada a duas teorias uma negava o movimento e outra o afirmava A corrente
que afirmava o movimento era liderada por Heraacuteclito de Eacutefeso (+- 540 aC)
Heraacuteclito afirmava que as coisas mudavam permanentemente em outras
palavras ele afirmava a inconstacircncia das coisas nesse sentido eacute atribuiacuteda a ele a
frase ldquoEntramos e natildeo entramos no mesmo rio Somos e natildeo somosrdquo Portanto o
movimento estaacute presente em todas as coisas agraves vezes afirmando que as coisas
ldquosatildeordquo e que ldquonatildeo satildeordquo ao mesmo tempo sendo como mais tarde diria Platatildeo ldquoO
nosso ser eacute um perpeacutetuo devirrdquo
Ao contraacuterio do que afirmava Heraacuteclito Parmecircnides de Eleia (+- 521 aC)
liderava a corrente que negava o movimento Assim Parmecircnides simplesmente
afirma que ldquoeacuterdquo Seu argumento eacute sustentado pela afirmaccedilatildeo de que aquilo que ldquonatildeo
eacuterdquo natildeo pode sequer ser imaginado pois natildeo se pode imaginar o nada Seu
pensamento culmina numa representaccedilatildeo do mundo como ldquouma esfera material
uniforme soacutelida e finita sem tempo movimento nem mudanccedilardquo (RUSSELL 2001 p
29-38)
De acordo com Parmecircnides os sentidos natildeo seriam instrumentos adequados
ao conhecimento verdadeiro sendo o conhecimento verdadeiro revelado pela razatildeo
Assim a verdade eacute apenas aquilo que eacute produzido pelo pensamento e portanto o
pensar eacute verdadeiramente ldquoserrdquo Eacute nesse sentido que afirma ser o movimento
impossiacutevel pois natildeo admite a passagem do ldquonatildeo serrdquo para o ldquoserrdquo uma vez que o
ldquonatildeo serrdquo eacute nada e natildeo pode ser inteligiacutevel
Ao contraacuterio de seus predecessores Aristoacuteteles inova conciliando ambas as
teorias Pois natildeo nega o que ldquoestaacute por virrdquo de Heraacuteclito e nem o ldquoserrdquo de
Parmecircnides
Aristoacuteteles natildeo nega o vir-a-ser de Heraacuteclito nem o ser de Parmecircnides mas une-os em uma siacutentese conclusiva jaacute iniciada pelos uacuteltimos preacute-socraacuteticos e grandemente aperfeiccediloada por Demoacutecrito e Platatildeo Segundo Aristoacuteteles a mudanccedila que eacute intuitiva pressupotildee uma realidade imutaacutevel que eacute de duas espeacutecies Um substrato comum elemento
ser e o mover-se apresenta-se tambeacutem ao jurista sub specie da oposiccedilatildeo do fato agrave lei A lei estaacute o fato move-se A lei eacute um estado o fato um desenvolvimento A lei eacute o presente o fato natildeo pode ser mais do que passado ou futuro A lei estaacute fora do tempo o fato estaacute dentro (CARNELUTTI 2003 p 40)
23
imutaacutevel da mudanccedila em que a mudanccedila se realiza e as determinaccedilotildees que se realizam nesse substrato a essecircncia a natureza que ele assume Essa contradiccedilatildeo Aristoacuteteles pretende evitar atraveacutes da interpretaccedilatildeo analoacutegica da noccedilatildeo de ser que lhe permite fazer uma distinccedilatildeo fundamental ser natildeo eacute apenas o que jaacute existe em ato ser eacute tambeacutem o que pode ser a virtualidade a potecircncia Assim sem contrariar qualquer princiacutepio loacutegico poder-se-ia compreender que uma substacircncia apresenta-se num dado momento certas caracteriacutesticas e noutra ocasiatildeo manifestasse caracteriacutesticas diferentes se uma folha verde torna-se amarela eacute porque verde e amarelo satildeo acidentes da folha (que eacute sempre folha independente de sua coloraccedilatildeo) A qualidade amarelo eacute uma virtualidade da folha que num certo momento se atualiza E essa passagem da potecircncia ao ato eacute que constitui segundo a teoria de Aristoacuteteles o movimento O termo movimento tem frequentemente a
mesma significaccedilatildeo que os vocaacutebulos mudanccedila e devir (ORIOLO
2009)
A compreensatildeo do ldquoserrdquo14 eacute explicada detalhadamente no Livro VII da
Metafiacutesica (Met VII 1 1028a10) Na passagem 1039b20 descreve a substacircncia
como sendo de dois tipos uma vez que o primeiro tipo seria uma combinaccedilatildeo de
foacutermula com a mateacuteria e o segundo tipo como sendo a forma em seu sentido pleno
Sendo a forma uma constante inadmitindo acidentes ao contraacuterio da foacutermula com a
mateacuteria que eacute passiacutevel de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo
Portanto a mudanccedila parece compreender como predicados ato e potecircncia
pois natildeo seria possiacutevel movimento enquanto ato uma vez que neste a causa final
jaacute fora atingida nem enquanto soacute potecircncia uma vez que algo pode permanecer
nesse estado sem que haja qualquer mudanccedila Nesse sentido o movimento eacute
potecircncia e ato
Para Aristoacuteteles o movimento eacute a a realizaccedilatildeo15 daquilo que estaacute em
potecircncia (Fiacutes III 1 201 a 10) Ou seja o movimento eacute a passagem da potecircncia
para o ato Um dos exemplos citados na Fiacutesica eacute o crescimento como sendo a
realizaccedilatildeo a passagem da potecircncia para o ato16 De acordo com Russell (2001)
14
Sobre o ser vide AUBENQUE (2012) 15
έντελέχεια (enteleacutekheia) 16
Y puesto que distinguimos en cada geacutenero lo actual y lo potencial el movimiento es la actualidad de lo potencial en cuanto a tal por ejemplo la actualidad de lo alterable en tanto que alterable es la alteracioacuten la de lo susceptible de aumento y la de su contrario lo susceptible de disminucioacuten mdash no hay nombre comuacuten para ambos mdash es el aumento y la disminucioacuten la de lo generable y lo destructible es la gene- racioacuten y la destruccioacuten la de lo desplazable es el desplazamiento en tanto que decimos que es tal estaacute en actualidad entonces estaacute siendo construido tal es el proceso de construccioacuten y lo mismo en el caso de la instruccioacuten la medicacioacuten la rotacioacuten el salto la maduracioacuten y el envejecimiento (Fiacutes III 1 201 a 16)
24
Se um frasco de oacuteleo comeccedila a queimar podemos dizer que eacute assim porque jaacute o era potencialmente mesmo antes Poreacutem evidentemente isto natildeo eacute uma explicaccedilatildeo Na verdade por motivos deste tipo algumas escolas filosoacuteficas negaram que se pudesse dizer qualquer coisa uacutetil sobre o assunto Antiacutestenes de Megara foi um deles como veremos adiante Segundo este ponto de vista uma coisa eacute de um determinado tipo ou natildeo e qualquer coisa aleacutem disto eacute tolice Mas eacute claro que fazemos afirmaccedilotildees como ldquoo oacuteleo eacute inflamaacutevelrdquo e elas fazem perfeito sentido A anaacutelise de Aristoacuteteles fornece a resposta correta Ao dizermos que uma coisa eacute potencialmente A queremos dizer que sob certas condiccedilotildees seraacute de fato assim [] As condiccedilotildees em questatildeo eacute claro devem ser tais que possam de fato ocorrer quer dizer ser atuais Neste sentido o atual eacute logicamente anterior ao potencial Agora pode-se dar uma explicaccedilatildeo da mudanccedila em virtude de uma substacircncia que eacute portadora potencial de uma seacuterie de qualidades que nela se tornam sucessivamente atuais (RUSSELL 2001 p 113)
Assim poderiacuteamos dizer que o hilemorfismo eacute o locus onde Aristoacuteteles
ensaia a teoria do movimento pois eacute da realidade sensiacutevel constituiacuteda de mateacuteria17 e
forma que podemos imaginar o salto e os possiacuteveis acidentes entre a potecircncia e o
ato ldquo[] parece que para a mesma coisa eacute possiacutevel tanto ser como natildeo ser Assim
por exemplo tudo aquilo que pode caminhar ou ser cortado pode natildeo caminhar ou
natildeo ser cortado E a razatildeo disso eacute que essas coisas que satildeo desta maneira em
potecircncia nem sempre satildeo em atordquo (Da Int 21b10) Essa postura apresentada em
Da Interpretaccedilatildeo pode ser contemplada tambeacutem na Metafiacutesica ldquo[] a mesma coisa
pois pode ser potencialmente ao mesmo tempo dois contraacuterios mas natildeo pode ser
atualmenterdquo (Met IV 5 1009b34-36)
No estudo das causas18 Aristoacuteteles as classifica em quatro quais sejam
causa formal causa material causa eficiente e causa final Considerar apenas a
forma e a mateacuteria natildeo eacute suficiente pois teriacuteamos uma teoria estaacutetica Como estamos
tratando de uma realidade dinacircmica eacute necessaacuterio portanto que consideremos a
existecircncia de um agente e seu objetivo
Assim a mateacuteria eacute potecircncia por estar apta a receber a forma e
consequentemente alcanccedilar o ato Tal como o bloco de granito estaacute apto a tornar-se
a Vecircnus de Milo
17
ύλη (hyle) 18
Sobre as quatro causas Giovanni Reale explica sua relaccedilatildeo com a Fiacutesica em especial no que
concerne ao movimento vide (REALE 2001 p 57)
25
Em De Anima (432a15 - 433b) Aristoacuteteles descreve o movimento como
pertencente agrave razatildeo praacutetica De acordo com o texto o intelecto ou a razatildeo
especulativa nada pensa na esfera do praacutetico nem delibera acerca dos objetos a
serem evitados ou buscados enquanto o movimento local diz respeito sempre ao
evitar ou ao buscar de algum objeto
Nesse importante trecho estatildeo inseridas as bases do silogismo praacutetico19
destarte a assertiva que segue o trecho eacute a seguinte ldquoe o ponto final do processo
de raciocinar constitui o ponto de partida da accedilatildeo Eacute por boa razatildeo que esses dois
nomeadamente o desejo e o intelecto praacutetico satildeo considerados fonte do
movimentordquo (DA 432a17)
Em sua Metafiacutesica (1046b5) afirma que toda potecircncia racional admite
resultados contraacuterios diferente das potecircncias irracionais onde o resultado eacute
necessaacuterio O exemplo utilizado eacute o do calor e o da medicina o calor soacute pode
produzir calor enquanto a medicina pode produzir sauacutede e doenccedila
Portanto o movimento pertencente agrave razatildeo praacutetica eacute para noacutes a passagem
da potecircncia para o ato Em tal passagem podemos constatar a presenccedila de
resultados contraacuterios ou seja aquilo que eacute em potecircncia natildeo o seraacute
19
Sobre ldquosilogismo praacuteticordquo vide Pierre Aubenque (2008 p 52) ldquologo entre a teoria e a praacutetica e
finalmente entre a ciecircncia e a prudecircncia esta uacuteltima relativa menos agrave ldquodeduccedilatildeordquo que desce do
princiacutepio agrave aplicaccedilatildeo do que a um ldquoempirismordquo que se esforccedila bem ou mal por se orientar no acircmago
mesmo do particularrdquo Neste trecho parece afastar-se da loacutegica Mais adiante na p 254 aborda
novamente o tema e conclui por uma perspectiva conciliadora ou seja apresenta duas foacutermulas para
a deliberaccedilatildeo uma a do silogismo praacutetico como aplicaccedilatildeo do universal ao particular e a outra que diz
respeito agrave escolha judiciosa dos meios Em sua Histoacuteria da Eacutetica Alasdair MacIntyre (1991 p 76 -
77) ldquoAristoacuteteles caracteriza la forma de deliberacioacuten implicada como un silogismo praacutectico La
premisa mayor de un silogismo semejante es un principio de accioacuten en el sentido de que cierta clase
de cosas es buena conviene o satisface a cierta clase de personas La premisa mayor es la
afirmacioacuten garantizada por la percepcioacuten de que hay un ejemplo de que aunque misterioso en su
contenido aclara la forma del silogismo praacutectico La premisa mayor indica que el alimento seco es
bueno para el hombre la premisa menor sentildeala la presencia de ese tipo de alimento y la conclusioacuten
es que el agente lo ingiere Que la conclusioacuten es una accioacuten pone de manifiesto que el silogismo
praacutectico es un modelo de razonamiento por parte del agente y no un modelo de razonamiento ajeno
sobre lo que el agente deberiacutea hacer (por eso una segunda premisa menor que indicara por ejemplo
la presencia de un en cuanto nos alejariacutea de la cuestioacuten) Ni tampoco es un modelo de confundirse
con aquellos silogismos muy comunes cuya conclusioacuten es una afirmacioacuten de este tipo Toda su
finalidad reside en indagar el sentido en que una accioacuten puede ser la resultante de un razonamientordquo
26
necessariamente em ato Da admissatildeo de tais resultados decorre a indeterminaccedilatildeo
Eacute justamente essa indeterminaccedilatildeo que justifica a deliberaccedilatildeo
23 Indeterminismo e a eacutetica das virtudes
Iniciamos o segundo capiacutetulo afirmando que tanto a prudecircncia quanto a
equidade pertencem ao campo da accedilatildeo e que ambas se manifestam nas situaccedilotildees
contingentes20 Revisitando os conceitos da loacutegica foi possiacutevel identificar a natureza
da contingecircncia como pertencente agraves modalidades Por fim identificamos que o
movimento entre a potecircncia e o ato eacute uma fonte contingencial uma vez que a
potecircncia admite atualizaccedilotildees contraacuterias evidenciando o que chamamos de
indeterminaccedilatildeo21
Neste item pretendemos compreender a natureza da indeterminaccedilatildeo como
um chamamento para accedilatildeo asseverando as diferentes concepccedilotildees da noccedilatildeo de
acaso nas obras de Aristoacuteteles
Pierre Aubenque (2008) em seu livro A prudecircncia em Aristoacuteteles faz uma
profunda leitura das obras do Estagirita evidenciando trecircs distintas concepccedilotildees de
acaso Na primeira delas uma leitura da Eacutetica Eudecircmia onde o acaso aparece sob a
forma de ldquofortunardquo Na segunda uma leitura da Fiacutesica esboccedilando o acaso como
inserto em sua teoria da causalidade E na terceira e uacuteltima uma leitura da Eacutetica a
Nicocircmaco o acaso enquanto indeterminaccedilatildeo objetiva isto eacute contingecircncia As trecircs
concepccedilotildees satildeo detalhadamente explicadas por Pierre Aubenque (2008 p 117-
130)
231 Primeira concepccedilatildeo de acaso A boa fortuna
20
Parece que a contingecircncia se manifesta de diversa forma em cada uma das virtudes situaccedilatildeo que seraacute analisada mais detidamente no estudo de cada uma delas 21
Aqui o emprego da expressatildeo ldquoindeterminaccedilatildeordquo refere-se a admissatildeo da existecircncia do acaso em verdade natildeo eacute nossa intenccedilatildeo trabalhar a dicotomia ldquodeterminismo-indeterminismordquo
27
Na Eacutetica Eudecircmica Aristoacuteteles procura mostrar que a boa fortuna22 natildeo se
deve ao exerciacutecio das virtudes morais ou intelectuais mas ao bom nascimento
desse modo a boa fortuna eacute algo irasciacutevel
O questionamento eacute formulado Se a boa fortuna natildeo eacute produto da razatildeo
entatildeo eacute um presente de deus ou uma causa natural
As objeccedilotildees seguem no sentido de que o bom nascimento natildeo se explica
pela proteccedilatildeo divina pois seria indigno dos deuses dispensarem favores aos maus
Da mesma forma natildeo seria pela natureza uma vez que ldquoa natureza eacute causa do que
eacute sempre uniforme ou do que acontece frequentemente e o acaso eacute o oposto dissordquo
(EE VII 14 1247a14-31)
Pierre Aubenque (2008) nos daacute a seguinte soluccedilatildeo
Tal objeccedilatildeo no entanto natildeo repousaria sobre uma concepccedilatildeo errocircnea do acaso Aristoacuteteles o pergunta para sugerir uma teoria segundo a qual ldquoeacute preciso rejeitar inteiramente o acaso e dizer que nada acontece por acaso pois quando dizemos que o acaso eacute uma causa haacute na realidade uma outra causa poreacutem ocultada para noacutes Eacute por isso que quando se define o acaso o tomamos como uma causa impenetraacutevel ao raciociacutenio humano (aitian alogon anqrwpinw logismw) como se se
tratasse de uma certa naturezardquo [] essa causa oculta ao entendimento humano que se chama impropriamente acaso eacute num certo sentido uma causa natural ndash e nesse sentido eacute verdadeiro dizer que os homens afortunados o satildeo por natureza Natureza poreacutem que natildeo deve ser entendida no sentido dos fiacutesicos eacute a boa ou maacute natureza o bom ou mau nascimento que eacute um dom dos deuses natildeo para recompensar nossos meacuteritos ou para complementaacute-los mas o dom inicial constitutivo de nosso quinhatildeo que natildeo eacute pois uma consequumlecircncia mas a fonte de nossos meacuteritos ou demeacuteritos (2008 p 119)
Portanto o acaso enquanto boa fortuna parece tanto um presente de Deus
por constituir o quinhatildeo inicial quanto uma causa natural pois os afortunados o satildeo
por natureza (EE VII 14 1247b28)23
Contudo Aubenque (2008) deixa em aberto uma seacuterie de questionamentos a
essas possiacuteveis soluccedilotildees o que nos parece liacutecito uma vez que para nosso objetivo
basta compreender as consequecircncias da boa fortuna no campo da razatildeo praacutetica
Vejamos a exposiccedilatildeo 22
eutuxia 23
Natildeo obstante a essa aparente soluccedilatildeo Pierre Aubenque (2008) natildeo a daacute por resolvida o que percebemos eacute uma questatildeo que tende agrave teologia provavelmente pretende uma soluccedilatildeo no acircmbito de outra obra
28
Mas a concepccedilatildeo de acaso sugerida pelo texto natildeo eacute nem tatildeo clara nem tatildeo isenta de dificuldades como poderia parecer agrave primeira vista Pois jaacute apresenta ao lado da noccedilatildeo religiosa de acaso ndash Forccedila oculta que a tudo dirige ndash uma outra concepccedilatildeo que liga o acaso natildeo mais a transcendecircncia insondaacutevel da divindade mas agraves falhas de sua accedilatildeo Vimos nesses textos que o acaso eacute oposto agrave natureza como excepcional ao uniforme Um pouco mais longe Aristoacuteteles esclarece que o acontecimento casual eacute aquele que certamente deriva das causas embora indefinidas e indeterminadas (apeirwn kai aoristwn) ou seja
do gecircnero de causas do qual natildeo pode haver ciecircncia Sem duacutevida o sentido geral do texto permite entender que Aristoacuteteles toma facilmente o partido da impossibilidade de uma ciecircncia do acaso visto haver algo superior agrave ciecircncia que eacute Deus (AUBENQUE 2008 p 126)
As conclusotildees que se seguem satildeo consequecircncia desta O sentido eacute o de
que o acaso eacute aparente pois seria Deus o primeiro motor Assim o sendo natildeo haacute
que se falar em deliberaccedilatildeo uma vez que a inteligecircncia Divina jaacute a teria previamente
realizado A denominaccedilatildeo ldquoacasordquo eacute funccedilatildeo de nossa ignoracircncia agrave Causa das
causas ou seja Deus
A consequecircncia que estrai Aristoacuteteles eacute que os homens afortunados natildeo devem sua fortuna agrave sua inteligecircncia nem mais particularmente agrave sua capacidade de deliberaccedilatildeo ldquopara qualquer lado que se lanccedilam triunfam sem reflexatildeo (alogoi ontej) deliberar natildeo lhes serve para nada pois
tem neles um princiacutepio que eacute melhor que o intelecto e a deliberaccedilatildeo enquanto os outros tecircm apenas raciociacutenio os afortunados natildeo o tem mas satildeo habitados pelo deusrdquo
24 (AUBENQUE 2008 p 121)
Assim para os afortunados o exerciacutecio das virtudes eacute inuacutetil uma vez que jaacute
possuem os bens necessaacuterios para alcanccedilarem a felicidade Ao contraacuterio dos
afortunados tal exerciacutecio eacute para os virtuosos o caminho alternativo para se
alcanccedilar aquilo que natildeo receberam da natureza ou da Providecircncia Divina
232 Segunda concepccedilatildeo de acaso Acidente
Na Fiacutesica eacute apresentada uma teoria da causalidade que atinge tanto os
seres dotados de escolha quanto os seres natildeo dotados Pierre Aubenque (2008)
24
EE VII 14 1248a29-33
29
explica que o acaso natildeo eacute o encontro de duas seacuteries causais mas o encontro de
uma seacuterie causal real dotada de uma certa finalidade com uma finalidade
imaginaacuteria de modo que tal encontro poderia ser retrospectivamente reconstruiacutedo a
partir do resultado
O exemplo extraiacutedo da Fiacutesica25 eacute de um homem que ao ir ao mercado
encontra-se por acaso com um algueacutem que o deve os fatos se desenrolam como
se o motivo de tal homem estar ali fosse cobrar a diacutevida quando de fato o motivo
era outro Essa interpretaccedilatildeo do acaso agora parece evidente vejamos
[] este motivo o uacutenico real eacute pois causa por acidente de um efeito que natildeo era visado como tal o ressarcimento da diacutevida Como se vecirc uma tal concepccedilatildeo do acaso natildeo introduz nenhuma falha no encadeamento causal o acaso apenas acrescenta uma intenccedilatildeo a qual sendo imaginaacuteria de fato natildeo acrescenta nem suprime nada agrave realidade do processo natural O acaso nesse sentido eacute uma ilusatildeo retrospectiva a projeccedilatildeo de uma finalidade humana sobre uma relaccedilatildeo causal que eacute por si mesma inteiramente estranha a esta finalidade (AUBENQUE 2008 p 126)
Essa noccedilatildeo que segundo AUBENQUE (2008) soa como determinista
recebe mais adiante um desenvolvimento mais apurado O acaso eacute concebido natildeo
como causa mas sim como efeito Desta forma o acaso enquanto encontro de uma
seacuterie causal e de um fim natildeo perseguido aparece como fato excepcional e sem
causas ao menos determinaacuteveis pois suas causas sendo causas acidentais satildeo
indeterminaacuteveis ldquoa causa por si mesma eacute determinada a causa por acidente eacute
indeterminada pois a pletora de acidentes possiacuteveis de uma coisa eacute infinitardquo (Fiacutes II
5 196b27-29)26 ldquoO acaso natildeo aparece senatildeo num mundo onde o acidente ndash ou
seja o que adveacutem sumbanei a uma coisa ndash natildeo se deixa reduzir agrave essecircncia um
mundo onde nada eacute dedutiacutevel onde a infinidade de acidentes possiacuteveis de uma
coisa tornam imprevisiacuteveis as combinaccedilotildees que daiacute podem resultarrdquo (AUBENQUE
2008 p 127)
Portanto a noccedilatildeo de acaso apresentada na Fiacutesica diferencia-se da boa
fortuna apresentada na Eacutetica a Eudemo pois enquanto a boa fortuna refere-se ao
25
Fiacutes II 5 196b 33-197a5 26
Fiacutes II 5 196b27-29
30
bom nascimento o acidente na Fiacutesica refere-se a incontaacuteveis possibilidades que nos
impedem de antever os possiacuteveis resultados
233 Terceira concepccedilatildeo de acaso contingecircncia
Diferente das duas concepccedilotildees anteriores a exposiccedilatildeo da Indeterminaccedilatildeo
objetiva ou contingecircncia passa a ter um cunho teoloacutegico-antropoloacutegico Parece que
a visatildeo da Eacutetica a Nicocircmaco sobre o acaso estaacute mais direcionada ao traacutegico
Pierre Aubenque (2008 p 127-28) inicia fazendo um interessante paralelo
entre o Saacutebio e o Prudente procurando entre esses aquele que poderaacute atingir a
felicidade A conclusatildeo como eacute de se esperar27 indica o prudente como aquele que
poderaacute um dia ser chamado feliz
Contudo o referido autor natildeo negligencia as aparentes objeccedilotildees ateacute mesmo
porque Aristoacuteteles natildeo as negligenciou Muito pelo contraacuterio ainda que de forma
bem tiacutemida Aristoacuteteles fez breve passagem expondo a grandeza da vida
contemplativa
A argumentaccedilatildeo apresentada por comentadores28 pode ser resumida da
seguinte forma Se o que o homem tem de mais proacuteximo a Deus eacute o intelecto entatildeo
Deus quer bem os saacutebios portanto os saacutebios satildeo felizes Nesse sentido a noccedilatildeo
temporal de felicidade inexiste pois basta o exerciacutecio das faculdades intelectivas
para alcanccedilar o estado de felicidade (AUBENQUE 2008)
A objeccedilatildeo apresentada por Pierre Aubenque (2008 p128) eacute clara De
acordo com ele eacute nesse ponto que Aristoacuteteles se afasta de toda a tradiccedilatildeo socraacutetica
pois no pensamento aristoteacutelico a virtude ainda que natildeo suficiente eacute condiccedilatildeo
necessaacuteria da felicidade
Ainda de acordo com essa objeccedilatildeo estaacute que a definiccedilatildeo de felicidade eacute
composta pela virtude e pelos bens exteriores e bens do corpo Por oacutebvio esses
dois uacuteltimos bens ldquonatildeo podem ser adquiridos pelo exerciacutecio ou meacuterito eles
dependem da boa fortunardquo (AUBENQUE 2008 p 129)
27
Afinal este eacute o tema desta dissertaccedilatildeo 28
Comentadores citados por AUBENQUE (2008) ZELLER Die Philosophie der Griechen II 2 1921 4ordf DIRLMEIER F Magna Moralia 1958
31
Destarte o primeiro desses bens a virtude natildeo pode ser compreendida sem
ter por referencial a contingecircncia Pois como jaacute exposto para ser feliz eacute preciso ser
virtuoso para ser virtuoso eacute preciso ter condiccedilotildees externas para exercitar as
virtudes
[] inicialmente porque a virtude necessita de uma mateacuteria para se exercer e como vimos de um ldquomundordquo ou seja necessita de condiccedilotildees que natildeo dependem de noacutes como amigos dinheiro um certo poder poliacutetico e tambeacutem de ocasiotildees as quais natildeo se oferecem a todos (Heacutercules teve a oportunidade de encontrar o leatildeo de Nemeacuteia e a hidra de Lerna Mas num segundo sentido natildeo pode haver felicidade completa sem a plenitude da vida (bioj teleioj) o que supotildee sem
duacutevida uma duraccedilatildeo optima mas tambeacutem a integridade do corpo e a prosperidade de nossos empreendimentos o que os gregos resumem em uma palavra eupraia (AUBENQUE 2008 p129)
Para encerrar a questatildeo entre o saacutebio e o prudente eacute exposta uma seacuterie de
argumentos que pretendem demonstrar a fragilidade dos argumentos socraacuteticos por
exemplo que enquanto Deus basta a si mesmo o homem precisa ter amigos ou
que o saacutebio necessita do oacutecio Enfim tantas satildeo as condiccedilotildees externas que natildeo
parece o saacutebio poder ser tatildeo autaacuterquico quanto pretende a visatildeo socraacutetica para ser
feliz
Mas a concepccedilatildeo perseguida em A Prudecircncia em Aristoacuteteles eacute a do fracasso
da Providecircncia Divina Isso quer dizer que a ldquovirtude depende do mundo tanto
quanto de suas condiccedilotildees de existecircncia e este mundo natildeo depende de noacutes Eis o
virtuoso de Aristoacuteteles e mesmo o contemplativo ndash os quais satildeo menos duas
personagens distintas do que a mesma personagem em niacuteveis diferentes de
excelecircnciardquo (AUBENQUE 2008 p 135) ambos condicionados agrave heteronomia e agrave
relaccedilatildeo de ldquoacasordquo Haacute algo de traacutegico na vida moral decorrente da uniatildeo entre a
felicidade e a virtude que natildeo eacute por assim dizer analiacutetica como acreditavam os
socraacuteticos mas sempre sinteacutetica porque depende numa proporccedilatildeo irredutiacutevel do
acasordquo (AUBENQUE 2008 p 135)
[] o ideal de Aristoacuteteles natildeo pode consistir numa assimilaccedilatildeo ao mundo em seu conjunto visto que este soacute eacute racional em suas partes superiores mas somente na imitaccedilatildeo da ordem que nelas reina O conhecimento dessa ordem que natildeo pode ser procurado na fiacutesica como para os estoacuteicos mas na teologia eacute o que Aristoacuteteles nomeia sabedoria Mas a
32
vida segundo a sabedoria natildeo eacute imediatamente acessiacutevel ao homem por uma ascese interior pois ela depende tambeacutem em suas condiccedilotildees de realizaccedilatildeo das circunstacircncias exteriores as quais natildeo satildeo nem na aparecircncia nem profundamente inteiramente racionais O reino da sabedoria exige pois um domiacutenio preacutevio das circunstacircncias domiacutenio que natildeo pode ser adquirido senatildeo por uma accedilatildeo teacutecnica sobre o mundo Se para os estoacuteicos a indiferenccedila em relaccedilatildeo agraves circunstacircncias se justificaraacute em uacuteltima anaacutelise pela crenccedila na Providecircncia e na convicccedilatildeo correlata de que todo real eacute racional o homem de Aristoacuteteles natildeo saberaacute fingir indiferenccedila a respeito de um mundo cuja indeterminaccedilatildeo eacute a forma propriamente aristoteacutelica do mal Poreacutem aqui se opera uma inversatildeo que forneceraacute o domiacutenio e no sentido mais forte do termo a ldquochancerdquo da accedilatildeo moral se a contingecircncia eacute a fonte do mal ela torna possiacutevel as iniciativas humanas em vista do bem a indeterminaccedilatildeo signo da impotecircncia da razatildeo universal eacute ao mesmo tempo abertura agrave accedilatildeo racional do homem [] O homem de Aristoacuteteles natildeo pode se tornar indiferente agraves circunstacircncias mas lhe eacute permitido na medida em que satildeo moldaacuteveis para moldaacute-las humanamente e se natildeo eacute convidado a mudar antes seus desejos do que a ordem do mundo eacute porque Aristoacuteteles conta com o desejo racional para terminar de ordenar o mundo tomando o lugar de uma Providecircncia faliacutevel (2008 p143-145 negrito nosso)
Dessa forma natildeo depende dos homens apenas moldar seus proacuteprios
desejos mas tambeacutem o mundo por ser somente ordenado de modo geral Dessa
forma a contingecircncia eacute o mal e o remeacutedio de acordo com o desejo29 do homem Eacute
nesse sentido que devemos abordar um tema que eacute corrente entre os
comentadores30 de Aristoacuteteles a trageacutedia
2331 Trageacutedia31
O elemento traacutegico heranccedila da mais alta literatura e ao mesmo tempo do
conhecimento popular do homem grego estaacute presente na obra do Estagirita Eacute
nesse sentido que os traccedilos mais marcantes de sua filosofia estatildeo inflados com a
nossa fraacutegil condiccedilatildeo humana
29
Sobre ldquodesejordquo eacute interessante notar que eacute a fonte do movimento e tambeacutem da escolha racional Para tanto consulte De Anima e a Eacutetica a Nicocircmaco 30
Sobre ldquotrageacutediardquo Vide AUBENQUE (2008) LOPES (2007) NUSSBAUM (2009) Martha Nussbaum (2009) faz uma detalhada exposiccedilatildeo acerca do elemento traacutegico Mocircnica Sette Lopes (2007 p 51) expotildee igualmente sobre o gecircnero literaacuterio ldquoA poesia traacutegica assemelha-se a uma escultura maleaacutevel e dinacircmica que visa agrave educaccedilatildeo da alma humana pelo exemplordquo Aqui optamos pelos aspectos expostos por Pierre Aubenque uma vez que esta em concordacircncia com sua exposiccedilatildeo sobre a contingecircncia 31
Vide item 44 Deliberaccedilatildeo e Escolha
33
O que parece ser o centro de toda sua eacutetica a felicidade estaacute mediada por
uma seacuterie de condiccedilotildees que natildeo depende de noacutes conforme jaacute citamos ldquoHaacute algo de
traacutegico na vida moral [] mas sempre sinteacutetica porque depende numa proporccedilatildeo
irredutiacutevel do acasordquo (AUBENQUE 2008 p 135)
O traacutegico eacute apresentado por Aristoacuteteles com um sentido mais humanizado
que divinizado ao contraacuterio de uma trageacutedia onde os heroacuteis satildeo imortalizados por
seus feitos o Estagirita apresenta um homem que faz o melhor que pode vejamos
Se esse traccedilo natildeo surpreendeu os comentadores eacute porque o traacutegico tem em Aristoacuteteles um aspecto residual de modo que se pocircde ver nele a sobrevivecircncia de uma prudecircncia popular ndash nada aleacutem do que natildeo ser preciso desafiar os deuses proclamando em alto e bom som a autarquia e a ldquoimortalidaderdquo do homem ndash da qual Aristoacuteteles natildeo teria inteiramente se libertado ou simplesmente uma concessatildeo puramente formal a esta mentalidade [] Em Aristoacuteteles o traacutegico eacute residual poreacutem em sentido ontoloacutegico no sentido de uma distacircncia sempre estreitaacutevel mas insuprimiacutevel que separa o homem da felicidade ou mesmo separa a felicidade do homem tout court e faz com que os homens possam ser felizes mas ldquocomo os homens podem secirc-lordquo (AUBENQUE 2008 p 136)
Dessa forma a accedilatildeo humana estaacute numa aacuterea entre o melhor possiacutevel e o
bem absoluto sendo o ponto final de nossa busca o modelo inacessiacutevel ou
superlativo absoluto
Eacute dentro dessa fronteira onde falha a Providecircncia e o traacutegico mostra um
homem que age e age o melhor possiacutevel dentro de suas possibilidades que
podemos compreender os contornos que liga a contingecircncia agrave eacutetica aristoteacutelica
Portanto Pierre Aubenque (2008 p 110-112) esclarece acerca da atuaccedilatildeo
da prudecircncia no campo da contingecircncia que agir e produzir satildeo de alguma forma
se inserir na ordem do mundo para modifica-lo eacute supor que este mundo que
oferece tal latitude comporta certo jogo certa indeterminaccedilatildeo certo inacabamento
Tanto o objeto da accedilatildeo (a prudecircncia) quanto o da produccedilatildeo (a arte) pertencem pois
ao domiacutenio daquilo que pode ser diferente Ora se a disposiccedilatildeo para produzir
acompanhada de regra chama-se arte a disposiccedilatildeo para agir acompanhada de
regra chama-se prudecircncia Por isso a accedilatildeo imanente agrave praacutexis tem menos por objeto
a natureza do que suas falhas ou inacabamentos Esta indeterminaccedilatildeo eacute
34
precisamente o que permite a Aristoacuteteles classificar os processos naturais no
domiacutenio da contingecircncia
Se for pois o homem prudente aquele que estaacute apto agrave accedilatildeo moral a
decisatildeo correta e portanto ao elo que pode ligar o conhecimento geral ao
particular32 tentaremos entendecirc-lo por sua virtude a Prudecircncia Antes poreacutem para
podermos compreender tal virtude bem como na sequecircncia seu conceito de justiccedila
e de equidade devemos fazer uma passagem pela teoria geral das virtudes
32
Essa distacircncia seraacute mais bem abordada em momento oportuno ndash quando tratarmos de prudecircncia e de equidade Aubenque reporta esse assunto em sua obra O problema do ser em Aristoacuteteles (2012 p 63)
35
3 EacuteTICA DAS VIRTUDES
No quarto capiacutetulo de seus Escritos de filosofia II Henrique C de Lima Vaz
faz uma interessante abordagem acerca da eacutetica A ilustraccedilatildeo eacute dada pelo proacuteprio
tiacutetulo Do ethos agrave sociedade Poliacutetica A gecircnese do direito
A proposta do referido capiacutetulo eacute demonstrar que o direito surge com a
relaccedilatildeo eacutetica que soacute pode ser vivenciada na poacutelis ldquoO aparecimento e
desenvolvimento da sociedade poliacutetica caminham em estreita inter-relaccedilatildeo com a
formaccedilatildeo da ciecircncia do ethosrdquo (VAZ 2000 p135) Assim podemos dizer que o
estudo da eacutetica surge e se desenvolve com o surgimento e desenvolvimento da
poacutelis
Neste sentido a lei aparece revelando ter como funccedilotildees educar o indiviacuteduo
agrave vida na cidade ao mesmo tempo em que repara os conflitos onde as virtudes natildeo
satildeo observadas33
A matriz conceptual eacute representada pela ideacuteia de lei (noacutemos) que deve permitir o estabelecimento de uma proporccedilatildeo ou correspondecircncia (analogiacutea) entre a lei ou medida (meacutetron) interior que rege a praxis do indiviacuteduo e a lei da cidade que eacute propriamente o noacutemos e deve assegurar a participaccedilatildeo equumlitativa (eunomiacutea) dos indiviacuteduos no bem que eacute comum a todos e que eacute primeiramente o proacuteprio viver-em-comum De um lado a explicitaccedilatildeo da racionalidade imanente do ethos se constitui como teoria da praxis individual e assume a forma de uma doutrina da virtude (areteacute) ou da Eacutetica no sentido estrito O ethos eacute entatildeo conceptualizado fundamentalmente como haacutebito (hexis) De outro a razatildeo do ethos iraacute exprimir-se na forma de uma teoria do existir e do agir em comum e se apresentaraacute como doutrina da lei justa (politeia) O ethos eacute entatildeo conceptualizado fundamentalmente como costume A ciecircncia da politeia ou a Poliacutetica eacute assim a outra face da Eacutetica (VAZ 2000
p135)
Portanto a eacutetica pretende orientar as relaccedilotildees humanas ordenando as
accedilotildees para o bem comum
33
Voltaremos a falar sobre o assunto quando tratarmos da Justiccedila como Virtude
36
[] as virtudes natildeo encontram seu lugar na vida do indiviacuteduo mas tambeacutem na vida da cidade e que o indiviacuteduo soacute eacute de fato inteligiacutevel como um politikon zocircon
Esse uacuteltimo comentaacuterio sugere que um modo de elucidar o relacionamento entre as virtudes e a moralidade das leis eacute pensar no que consistiria em qualquer eacutepoca fundar uma comunidade para realizar um projeto comum realizar algum bem reconhecido como bem comum por todos os participantes do projeto (MACINTYRE 2001 p 256-257)
Estabelecida a relaccedilatildeo entre a eacutetica e o direito devemos agora procurar os
fundamentos da eacutetica aristoteacutelica para entatildeo verificarmos o comportamento das
virtudes da Prudecircncia da Justiccedila e da Equidade no acircmbito da justiccedila aristoteacutelica
31 Eacutetica a Nicocircmaco
Na forma que comporta o tiacutetulo deste item passaremos a tratar algumas
questotildees pertinentes ao conteuacutedo da obra Eacutetica a Nicocircmaco a fim de contextualizar
o objeto deste trabalho
Os principais escritos de Aristoacuteteles sobre eacutetica que chegaram a noacutes satildeo
Eacutetica a Nicocircmaco Eacutetica a Eudemo e a Eacutetica Maior esta uacuteltima tambeacutem conhecida
como Magna Moraacutelia Os escritos sobre eacutetica em especial a Eacutetica a Nicocircmaco e a
Eacutetica a Eudemo comportam caracteriacutesticas de notas tomadas por disciacutepulos tendo
por base os ensinamentos passados pelo Estagirita (RUSSELL 2001 p 109)
Por ser uma obra mais amplamente aceita tomaremos a Eacutetica a Nicocircmaco
como principal referecircncia aristoteacutelica para a Eacutetica das Virtudes sem contudo
ignorar algum detalhe que possa elucidar aspectos pertinentes agrave nossa pretensatildeo e
presente nas outras duas obras citadas Nesse sentido comenta Eduardo Bittar
A Ethica Nicomachea recebeu amplo tratamento devido ao interesse que desperta dos modernos comentadores da obra o mesmo natildeo sucede com as duas outras obras dedicadas agrave temaacutetica Aliaacutes a trilogia natildeo parece gerar uniformidade no corpo dos eruditos pois a recepccedilatildeo de uma (EE ou MM) ou de ambas (EE e MM) natildeo tem sido paciacutefica questionando-se natildeo soacute acerca da pertinecircncia e da originalidade destas obras mas tambeacutem acerca da cumulaccedilatildeo tautoloacutegica de escritos para o tratamento de um mesmo problema o que seria assimeacutetrico na obra aristoteacutelica onde parece ser a regra a existecircncia de uma uacutenica obra para
37
a investigaccedilatildeo de uma problemaacutetica determinada (BITTAR 2003 p992)
A Eacutetica a Nicocircmaco inicia-se traccedilando questionamentos acerca do que seja
o bem Parte-se da ideia de que o indiviacuteduo suas accedilotildees e escolhas estatildeo voltadas
a um bem Este bem eacute aquilo a que todas as coisas possuem certa tendecircncia
Assim o fim de todas as accedilotildees humanas eacute o sumo bem (EN I 1 1094a) O
conhecimento deste fim conduz agrave determinaccedilatildeo da ciecircncia cujo bem supremo eacute o
objeto
Essa ciecircncia cujo estudo caberaacute agrave Eacutetica eacute a ciecircncia mestra isto eacute a
Poliacutetica As accedilotildees por si mesmas boas e justas podem admitir uma ampla variedade
de opiniotildees e neste sentido podem ter sua existecircncia devida agraves convenccedilotildees e natildeo
naturalmente Daiacute portanto constituem objeto da poliacutetica Assim visa-se a accedilatildeo do
bem mas o seu conhecimento natildeo eacute proveitoso a todos Agravequeles que desejam e
agem conforme um princiacutepio racional isso seraacute uacutetil por outro lado natildeo teraacute utilidade
para o jovem sem experiecircncias dos fatos da vida o qual segue tatildeo somente suas
paixotildees (ENI 3 1095a)
Essa interessante passagem revela ser o objeto das deliberaccedilotildees da poacutelis
temas como o ldquobomrdquo e o ldquojustordquo Aristoacuteteles natildeo ignora o fato de que o bom e o justo
admitem uma gama de opiniotildees por isso tais temas estatildeo na pauta das
convenccedilotildees
Aristoacuteteles argumenta que o sumo bem o bem perseguido por todos natildeo
pode ser o prazer a honra ou a riqueza Sobre o prazer argumenta que natildeo pode
se identificar com o sumo bem pois o prazer e o gozo satildeo proacuteprios agrave vida levada
pelos animais inferiores34
34
Interessante nota do tradutor quando Aristoacuteteles justifica a conduta de tais pessoas por se
espelhares em pessoas de alta posiccedilatildeo como Sardanaacutepalo De acordo com a nota de nuacutemero 08 ldquoSardanaacutepalo monarca assiacuterio sem consistecircncia histoacuterica de caraacuteter miacutetico O sofista tardio Ateneu de Naucraacutetis (circa 215 AD) atriui uma espeacutecie de maacutexima a Sardanaacutepalo que eacute esthie pine paize os talla touumltouuml ouumlk axia touuml apokrotematos (esthie pine paize os talla touumltouuml ouumlk axia touuml
apokrotematos) ou seja ldquoCome bebe diverte-te visto que tudo o mais natildeo vale um estalo dos dedosrdquo lhe atribui tambeacutem um trecho de um desabafo que assim finaliza kein ekho oss efagon kai efuumlbrisa kai met eroacutetos terpn epathon ta de polla kai olbia panta leluumltaiefagon kai efuumlbrisa kai met eroacutetos terpn epathon ta de polla kai olbia panta leluumltai) quer dizer ldquoeu tenho o que comi e ainda os voluptuosos atos de ultraje e amor carnal que realizei e experimentei ao passo que minha riqueza se foirdquo (BINI 2009 p 42)
38
Ora se todo o conhecimento e todo o trabalho visam a algum bem pode-se
afirmar que o fim seraacute a felicidade (RUSSELL 2001 p127) ndash objeto final da vida
fruto de atividade conforme a mais alta de todas as formas de excelecircncia (EN X 7
1177a)
Destarte faz-se necessaacuterio buscar o bem e conhecer o que ele eacute pois a
finalidade para tudo que se faz eacute o bem A vida ativa que possui um princiacutepio
racional eacute a melhor funccedilatildeo do homem Os bens satildeo as atividades da alma e
portanto parece que a felicidade se identifica com a virtude Por conseguinte agrave
virtude cabe a atividade virtuosa Entretanto o sumo bem estaacute em ato uma vez que
pode haver um estado de acircnimo sem gerar resultado positivo
[] pois pode existir o estado de espiacuterito sem que ele produza qualquer
resultado bom como no caso de uma pessoa adormecida ou inativa por
outra razatildeo mas natildeo pode ocorrer o mesmo com a atividade conforme agrave
excelecircncia de qualquer maneira ela se manifestaraacute e bem Da mesma
forma que nos jogos oliacutempicos os coroados natildeo satildeo os homens mais
fortes e belos e sim os que competem (alguns destes seratildeo os
vitoriosos) quem age conquista e justamente as coisas boas da vida
(EN I 8 1099a)
De acordo com Aristoacuteteles a mais apraziacutevel melhor e mais nobre coisa do
mundo eacute a felicidade pois a felicidade eacute uma atividade da alma de acordo com a
virtude e natildeo sendo necessariamente esta mesma felicidade a riqueza prazer ou
honra e outros mais Constata-se assim que estes bens exteriores satildeo necessaacuterios
agrave felicidade uma vez que natildeo se podem realizar atos nobres sem os meios (EN I
8 1099b)
Questiona-se se a felicidade eacute adquirida atraveacutes da aprendizagem do
haacutebito ou se eacute uma daacutediva da Providecircncia Divina ou eacute simples produto do acaso35
Sendo a felicidade a melhor coisa do mundo entatildeo seguramente seraacute uma daacutediva
divina ainda que resulte da virtude pela aprendizagem ou adestramento Portanto
natildeo se deve confiar ao simples acaso aquilo que eacute o melhor (EN I 9 1099b)
Esse ponto sem duacutevida eacute o convite agrave accedilatildeo humana e a admissatildeo do que
denominamos fracasso da Providecircncia Uma vez que ao homem em sua condiccedilatildeo
35
Voltaremos a este ponto quando tratarmos das virtudes morais e intelectuais
39
de mortal e natildeo-Deus natildeo eacute permitido se dar ao luxo de esperar uma soluccedilatildeo vinda
dos ceacuteus Pelo contraacuterio o melhor emprego que ele pode fazer eacute agir modificando e
adaptando seus desejos e possibilidades
Sobre as virtudes afirma o Filoacutesofo que existem as virtudes intelectuais as
que resultam do ensino e necessitam de experiecircncia e tempo e as virtudes morais
as quais satildeo adquiridas atraveacutes do haacutebito e pelo exerciacutecio como neste exemplo
[] os homens se tornam construtores construindo e se tornam citaristas tocando ciacutetara da mesma forma tornamo-os justos praticando atos justos moderados agindo moderadamente e corajosos agindo corajosamente (EN II 1103b1)
Portanto eacute atraveacutes da praacutetica reiterada que pode o homem moldar seu
caraacuteter sendo o homem virtuoso resultado de uma vida guiada pela reta razatildeo
32 Partes da Alma
Como exposto eacute ldquoo bem a finalidade de todas as coisasrdquo (EN I 1 1094a1)
sendo a felicidade o bem maior a ser alcanccedilado Nesse sentido podemos afirmar
que a accedilatildeo eacute uma ldquocerta atividade da alma em conformidade com a virtude perfeitardquo
(EN I 13 1102a5)
Aristoacuteteles divide a alma em partes de acordo com as atividades inerentes a
cada uma A primeira divisatildeo comporta duas partes sendo uma irracional e outra
dotada de razatildeo
No que se refere agrave psicologia algum ensino corrente em discursos externos eacute satisfatoacuterio e pode ser aqui adotado a saber que a alma eacute bipartida uma parte sendo irracional e a outra capacitada de razatildeo (Se essas duas partes satildeo realmente distintas no sentido que o satildeo as partes do corpo ou de qualquer outro conjunto divisiacutevel ou se embora distinguiacuteveis no pensamento como duas satildeo na realidade inseparaacuteveis como os lados convexo e cocircncavo de uma curva eacute uma questatildeo que carece de importacircncia para o assunto em pauta) (EN I 13 1102a27)
40
A segunda divisatildeo refere-se agrave parte irracional da alma Tal parte comporta a
funccedilatildeo vegetativa comum a todas as coisas vivas que diz respeito agrave nutriccedilatildeo e ao
crescimento e agrave funccedilatildeo sensitiva Sobre a parte vegetativa eacute interessante notar que
natildeo obstante ser comum a todos os seres vivos sua virtude natildeo eacute caracteriacutestica
dos seres humanos Vejamos
Considera-se ademais que na parte irracional da alma haacute uma divisatildeo que parece ser comum a todas as coisas vivas possuindo natureza vegetativa Refiro-me agrave divisatildeo que produz nutriccedilatildeo e crescimento pois eacute forccediloso supormos que uma faculdade vital dessa natureza existe em todas as coisas que assimilam alimento inclusive os embriotildees sendo que a mesma faculdade estaacute presente tambeacutem no organismo totalmente desenvolvido (o que eacute mais razoaacutevel do que supor uma faculdade nutritiva distinta no uacuteltimo) A virtude dessa faculdade parece portanto ser comum a todas as coisas animadas e natildeo caracteriacutestica do ser humano pois acredita-se que essa faculdade ou parte da alma eacute mais atuante durante o sono [enquanto a bondade e a maldade se manifestam minimamente durante o sono] natildeo podendo se distinguir um homem bom de um mau (e daiacute o adaacutegio segundo o qual durante metade de suas vidas natildeo haacute diferenccedila entre o feliz e o infeliz) Isso constitui um efeito natural do fato de o sono ser uma cessaccedilatildeo das atividades da alma das quais depende sua bondade ou maldade ndash exceto pelo fato de ser possiacutevel em algum modesto grau certas impressotildees sensoriais atingirem a alma durante o sono fazendo com que os sonhos dos bons sejam melhores do que aqueles dos homens comuns (EN I 13 1102b11)
Aristoacuteteles afirma que a parte relacionada aos apetites e desejos em geral ndash
a alma sensitiva ndash comum aos animais participa de algum modo do princiacutepio
racional Portanto ainda que tal parte esteja alojada na parte irracional ela manteacutem
em certa medida relaccedilotildees com o princiacutepio racional ldquoPois aprovamos a razatildeo do
indiviacuteduo continente tanto quanto o incontinente e a parte de suas almas que eacute
racional porque os induz na senda correta e os exorta para o curso mais excelenterdquo
(EN I 13 1102b15)
Sobre essa relaccedilatildeo da parte irracional da alma com o princiacutepio racional
Aristoacuteteles afirma que ldquonatildeo se pode duvidar de que tambeacutem na alma existe um
elemento distinto do princiacutepio [racional] que a ele se opotildee e lhe resisterdquo (EN I 13
1102b20-25) Para resolver essa aparente contradiccedilatildeo Aristoacuteteles mantecircm sua
teacutecnica de citar exemplos invocando aqui o exemplo do homem continente
argumentando no sentido do paraacutegrafo supra que ldquoesse segundo elemento como
mencionamos participa do princiacutepio racional Ao menos no homem continente ele
41
acata o comando do princiacutepio e eacute incontestaacutevel que no homem moderado e
corajoso ele eacute ainda mais submisso considerando-se que todas as artes da
natureza desse [tipo de] homem se harmonizam com o princiacutepiordquo (EN I 13
1102b25-30)
Destarte parece ser o princiacutepio racional capaz em alguma medida de
acessar essa parte irracional ldquo[] esse princiacutepio racional eacute capaz de algum modo
de recorrer agrave parte irracional eacute indicado por nossa praacutetica de advertir pelo emprego
que fazemos da censura e da exortaccedilatildeo em geralrdquo (EN I 13 1102b30)
Tal parte eacute responsaacutevel pelo movimento36 essa conclusatildeo eacute desdobrada no
De Anima
Ao menos o seguinte estaacute claro desde de que tenhamos a imaginaccedilatildeo na conta de uma espeacutecie de intelecccedilatildeo haacute duas fontes do movimento local nomeadamente o desejo e o intelecto [] A conclusatildeo eacute que estes dois satildeo fontes do movimento local o intelecto e o desejo entendendo eu aqui o intelecto que calcula ou raciocina em vista de um objetivo isto eacute o intelecto praacutetico o qual difere do intelecto teoacuterico (especulativo) em funccedilatildeo do caraacuteter de seu fim Por sua vez o desejo constantemente persegue um objetivo sendo que o proacuteprio objeto do desejo torna-se princiacutepio do intelecto praacutetico e o ponto final do processo de raciocinar constitui o ponto de partida da accedilatildeo (DA III 10 433a10-20)
Dessa forma tanto a parte irracional quanto a alma como um todo eacute dupla
Sendo que sua parte vegetativa natildeo toma parte do princiacutepio racional a outra
poreacutem que compreende os apetites e o desejo em geral participa de certo modo
do princiacutepio racional sendo obediente e submissa a ele que eacute o sentido que
emprestamos ao acatamento do ldquoracionalrdquo quando falamos em dar atenccedilatildeo ao
proacuteprio pai ou aos proacuteprios amigos e natildeo aquele que atribuiacutemos ao ldquoracionalrdquo nas
matemaacuteticas (EN I 13 1102b30)
Ora a virtude tambeacutem eacute diferenciada em consonacircncia com essa divisatildeo da alma Algumas formas de virtude satildeo chamadas de virtudes intelectuais e outras de virtudes morais A sabedoria e o entendimento e a prudecircncia satildeo virtudes intelectuais a generosidade e a temperanccedila satildeo virtudes morais Ao descrevermos o caraacuteter moral de algueacutem natildeo
36
Vide o item 22 Movimento da potecircncia para o ato
42
dizemos que se trata de algueacutem saacutebio ou capaz de entendimento mas que eacute uma pessoa moderada ou soacutebria Mas um homem saacutebio tambeacutem eacute louvado por sua disposiccedilatildeo e chamamos de virtudes as disposiccedilotildees dignas de louvor (EN I 13 1103a5)
Aristoacuteteles apresenta a parte racional da alma como dotada de duas
faculdades a faculdade cientiacutefica e a faculdade calculadora (EN VI 1 1139a15)
A primeira parte eacute dita ldquocientiacuteficardquo (epistemonikoacuten) enquanto a segunda ldquocalculadorardquo (logistikoacuten) Eacute evidente que na primeira entram todas as ciecircncias teoreacuteticas seja a matemaacutetica cujos objetos satildeo necessaacuterios seja a fiacutesica e a metafiacutesica cujos objetos tecircm ao menos princiacutepios necessaacuterios mas nela entram tambeacutem as ciecircncias praacuteticas ndash cujos objetos isto eacute os bens tecircm princiacutepios como vimos ao menos ldquogeralmenterdquo necessaacuterios ndash que portanto do ponto de vista epistemoloacutegico satildeo equiparaacuteveis agravequelas que tecircm princiacutepios necessaacuterios Na segunda entram ao contraacuterio todas as atividades que tecircm por objeto realidades independentes da ldquodeliberaccedilatildeordquo humana porque ndash diz Aristoacuteteles ndash deliberar e calcular satildeo a mesma coisa e ningueacutem delibera sobre as coisas que natildeo podem ser diferentemente (BERTI 1998 p 144)
Sobre essa divisatildeo explica Giovanni Reale
E posto que sejam duas as partes ou funccedilotildees da alma racional uma a que conhece as coisas contingentes e variaacuteveis e outra que conhece as coisas necessaacuterias e imutaacuteveis eacute natural que haja uma perfeiccedilatildeo ou virtude da primeira funccedilatildeo e uma perfeiccedilatildeo ou virtude da segunda funccedilatildeo da alma racional Estas duas partes da alma racional satildeo basicamente a razatildeo praacutetica e a razatildeo teoreacutetica e as respectivas virtudes satildeo as formas perfeitas com as quais se apreende a verdade praacutetica e a teoreacutetica (REALE 1985 p 106 traduccedilatildeo nossa)
37
Conforme vimos existe uma relaccedilatildeo entre a parte racional e a parte
irracional A parte apetitiva da alma irracional tem certa subordinaccedilatildeo agrave parte
37
Y puesto que son dos las partes o funciones del alma racional una la que conoce las cosas contingentes y variables la otra la que conoce las cosas necesarias e inmutables es natural que haya una perfeccioacuten o virtud de la primera funcioacuten y una perfeccioacuten o virtud de la segunda funcioacuten del alma racional Estas dos partes del alma racional son baacutesicamente la razoacuten praacutectica y la razoacuten teoreacutetica y las respectivas ldquovirtudesrdquo son las formas perfectas con las que se aprehende la verdad praacutectica y la teoreacutetica (REALE 1985 p 106 traduccedilatildeo nossa)
43
racional De acordo com o Estagirita eacute a faculdade calculadora que controla os
desejos proacuteprios da parte apetitiva vejamos
A virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo que diz respeito agrave escolha e escolha eacute desejo deliberado conclui-se que se a escolha deve ser boa tanto a razatildeo precisa ser verdadeira quanto o desejo correto e que o desejo tem que buscar as mesmas coisas afirmadas pela razatildeo Estamos nos referindo aqui ao raciociacutenio praacutetico e ao atingimento da verdade relativamente agrave accedilatildeo no que tange ao pensamento especulativo que natildeo concerne agrave accedilatildeo ou produccedilatildeo a funccedilatildeo certa e errada consiste na consecuccedilatildeo da verdade e falsidade respectivamente O atingir da verdade eacute efetivamente a funccedilatildeo de toda parte do intelecto mas a da inteligecircncia praacutetica eacute o atingimento da verdade correspondente ao correto desejo (EN VI 2 1139a25 negrito nosso)
Compreendidas as partes da alma na forma pertinente agrave eacutetica aristoteacutelica
torna-se necessaacuterio o estudo das virtudes em conformidade com tais partes
33 Virtudes Morais
O livro II da Eacutetica a Nicocircmaco faz uma exposiccedilatildeo geral acerca das virtudes
morais Essas virtudes pertencem ao acircmbito da parte irracional da alma mais
especificamente na parte dos desejos e apetites
De acordo com o Estagirita ldquoa virtude moral ou eacutetica eacute o produto do haacutebito
[] E portanto fica evidente que nenhuma das virtudes morais eacute em noacutes
engendrada pela natureza uma vez que nenhuma propriedade natural eacute passiacutevel de
ser alterada pelo haacutebitordquo (EN II 1 1103a15)
Em seu Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Tomaacutes de Aquino esclarece que
Em contraste a virtude eacute gerada pelo costume moral A Virtude moral estaacute na parte apetitiva portanto eacute uma inclinaccedilatildeo para algo apetitivo Esta inclinaccedilatildeo ou eacute por natureza que volta para o que estaacute em conformidade ou eacute pelo haacutebito que se volta para a natureza Assim o nome Virtude moral eacute retirado do haacutebitual com poucas alteraccedilotildees Porque escrever em grego ethos com uma letra e breve designa o caraacuteter ou virtude moral Mas ythos escrito com a letra g que eacute como
44
uma larga h que significa costume Como tambeacutem entre noacutes a palavra moral as vezes significa costumes e as vezes designa o que pertence ao viacutecio ou a virtude (AQUINO 2010 p130 traduccedilatildeo nossa)
38
Aristoacuteteles compara por analogia as virtudes morais com as artes por
ambas serem adquiridas pela reiteraccedilatildeo dos atos que lhes satildeo proacuteprios Admite a
impossibilidade de prescrever com exatidatildeo tais atos contudo descreve uma
foacutermula que pretende direcionar os atos no acircmbito das virtudes Tal foacutermula consiste
em agir de acordo com a justa razatildeo39
Dessa forma o muacutesico se torna bom muacutesico executando reiteradamente
sua(s) especialidade(s) musical (ais) assim como os homens se tornam justos
praticando atos de justos e corajosos realizando atos corajosos
Nessa altura do livro II Aristoacuteteles revela uma das funccedilotildees da lei educar
Vejamos suas palavras ldquo[] legisladores tornam os cidadatildeos bons treinando-os em
haacutebitos de accedilatildeo correta o que eacute a meta de toda a legislaccedilatildeo que se falhar no seu
atingimento seraacute um fracasso [tarefa] no que se distingue a boa constituiccedilatildeo da
maacuterdquo (EN II 1 1103b1-5)
Mas no que consistiria essa boa educaccedilatildeo A resposta dada eacute gostar e natildeo
gostar das coisas apropriadas Assim eacute desenvolvida a teoria geral das virtudes ou
doutrina da mediania pois assim como acontece no que diz respeito agrave sauacutede
acontece com as virtudes ambas satildeo afetadas pelo excesso e pela deficiecircncia
Uma indicaccedilatildeo de nossas disposiccedilotildees eacute fornecida pelo prazer ou pela dor que acompanha nossas accedilotildees []
Na verdade a virtude moral concerne a prazeres e dores pois o prazer nos leva a realizar as accedilotildees vis e a dor nos leva a deixar de realizar accedilotildees nobres []
Ademais se as virtudes tecircm a ver com accedilotildees e paixotildees e toda paixatildeo e toda accedilatildeo satildeo acompanhadas por prazer e dor isso constitui uma demonstraccedilatildeo adicional de que a virtude diz respeito ao prazer e agrave dor[]
38
En cambio la virtude se genera por la costumbre moral La virtud moral estaacute en la parte apetitiva por eso supone cierta inclinacioacuten a algo apetecible Esta inclinacioacuten o es por naturaleza la cual inclina a lo que le es conforme o es por la costumbre que se vuelca hacia la naturaleza Por eso el nombre de la virtude moral estaacute tomado de la costumbre con poco cambio Porque em grego ethos escrito com a letra e breve designa el caraacutecter o virtude moral Pero ythos escrito com la g que es
como uma N larga significa costumbre como tambieacuten entre nosotros la palabra moral a veces significa costumbre y a veces designa lo que pertenece al vicio o a la virtud (AQUINO 2010 p130) 39
Conforme formulaccedilatildeo tomista recta ratio agibilium
45
Mas os seres humanos se corrompem atraveacutes de prazeres e dores a saber quer perseguindo e evitando os prazeres e dores equiacutevocos quer os perseguindo e evitando no momento equiacutevoco ou da maneira equiacutevoca ou em um dos meios equiacutevocos [] (EN II 3 1104b)
Destarte a virtude moral eacute a qualidade segundo a qual se age da ldquomelhor
formardquo40 em relaccedilatildeo aos prazeres e dores sendo o viacutecio o oposto As virtudes satildeo
definidas por Aristoacuteteles como ldquoa disposiccedilatildeo que o torna um bom ser humano e
tambeacutem o que o faraacute desempenhar sua funccedilatildeo bemrdquo (EN II 6 1106a22)
Nesse sentindo a virtude natildeo eacute nem uma paixatildeo nem uma faculdade mas
um estado de caraacuteter O que a torna distinta eacute o fato de consistir na disposiccedilatildeo de
escolher o meio-termo
331 Doutrina da Mediania
Os atos praticados pelos homens em suas muacuteltiplas relaccedilotildees eacute que os
tornam justos ou injustos Explica o Filoacutesofo41 que eacute necessaacuterio cultivar o haacutebito de
praticar atos virtuosos desde a juventude Nesse sentido
[] a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia e pelo excesso tal como vemos acontecer com o vigor e a sauacutede (temos de explicar o invisiacutevel recorrendo a evidencia do visiacutevel) os exerciacutecios excessivos ou deficientes destroem igualmente o vigor e de maneira idecircntica as bebidas e os alimentos de mais ou menos destroem a sauacutede ao passo que seu uso em proporccedilotildees adequadas produz aumenta e conserva aquele e esta (EN II 2 1104a)
Sendo a virtude mais exata do que toda e qualquer arte e por possuir como
atributo o meio-termo o excesso ou a falta podem ser-lhe destrutivos Tanto o
excesso quanto a carecircncia satildeo graves formas de erro Entretanto o meio-termo
mostra-se como uma forma digna de louvor fazendo da virtude uma mediania Mas
ressalte-se que se trata de meio termo entre dois viacutecios Contudo nem toda accedilatildeo e
40
Vide o item 2331 Trageacutedia 41
Como Aristoacuteteles era referenciado por Tomaacutes de Aquino
46
nem toda paixatildeo admitem meio termo eacute o que observa ROSS (1957 p 231)42
ldquoPorque a mediania eacute num certo sentido um extremo []rdquo (EN II 6 1107a25)
Portanto do excesso ou da falta natildeo existe meio termo
[] se a virtude como a natureza eacute mais exata e melhor do que qualquer forma de arte se concluiraacute que a virtude deteacutem a qualidade de visar a mediania Eu me refiro agrave virtude moral
43 pois esta concerne agraves
paixotildees e accedilotildees nas quais se pode dispor de excesso ou deficiecircncia ou da devida mediania Por exemplo algueacutem pode estar receoso ou confiante sentir desejo ira ou compaixatildeo e experimentar prazer e dor em geral seja em excesso ou deficientemente e em ambos os casos indevidamente ao passo que experimentar esses sentimentos na ocasiatildeo certa oportunamente em relaccedilatildeo agraves pessoas certas para o propoacutesito certo e da maneira certa corresponde a sentir a medida melhor deles a qual eacute a quantidade meacutedia sendo que a melhor medida ou quantidade eacute evidentemente a marca da virtude Analogamente pode haver excesso deficiecircncia e a devida mediania nas accedilotildees (EN II 6 1106b20)
A virtude eacute entatildeo uma disposiccedilatildeo estabelecida que leva agrave escolha de accedilotildees
e paixotildees e que consiste essencialmente na observacircncia da mediania relativa a noacutes
sendo isso determinado pela razatildeo isto eacute como o homem prudente o determina
(EN II 6 1107a) As conclusotildees do Livro II apontam o quatildeo eacute difiacutecil atingir o meio-
termo uma vez que o mesmo natildeo eacute apreendido pelo raciociacutenio e sim pela
percepccedilatildeo Ele aponta trecircs regras como orientaccedilatildeo
A primeira regra eacute evitar o extremo que mais se opotildee agrave mediania Para natildeo
abandonar o estilo o Estagirita cita o conselho de Calipso personagem de a
Odisseacuteia ldquoPilota o navio o mantendo longe do borrifo e das vagasrdquo E continua
explicando ldquoPois dos dois extremos um deles constitui erro mais grave do que o
outro Por conseguinte porquanto atingir a mediania eacute extremamente difiacutecil a
42 Aristoteles luego nos previene contra un equivoco posible senalando queentre los sentimientos y
las acciones que se pueden nombrar no todos admiten un justo medio los nombres mismos de algunos de ellos tales como la desverguenza la envidia el adulterio el robo el asesinato implican su maldad Es decir que estos nombres no se aplican a los sentimientos moralmente indiferentes que son asunto de la virtud sino a un exceso vituperable de estos sentimientos no a las acciones que se relacionan con cierta clase de objeto sino a las acciones inicuas que se relacionan con este objeto La desverguenza es una incorrecta falta de verguenza el robo es un incorrecto exceso en la adquisicion de la riqueza El justo medio se opone al exceso y al defecto y por consecuencia no hay justo medio del exceso o del defecto como no existe exceso o defecto del justo medio (ROSS 1957 p 231)
43
Nota do tradutor de nuacutemero 48 Ou seja a teoria da mediania natildeo eacute aplicaacutevel agraves virtudes intelectuais (BINI 2009 p 77)
47
segunda melhor forma de navegar como indica o proveacuterbio eacute assumir o menor dos
males e a melhor maneira de fazecirc-lo seraacute a maneira que descrevemosrdquo (EN II 9
1109a30)
A segunda regra valendo-se do exemplo do carpinteiro em seu meacutetodo para
endireitar a madeira empenada consiste em observar os erros a que estamos mais
propensos de acordo com quais prazeres e dores experimentamos De posse de tal
observaccedilatildeo devemo-nos afastar do erro costumeiro estabelecendo assim um curso
mediano (EN II 9 1109b1)
Por fim o terceiro exemplo invocando Helena personagem de a Iliacuteada de
Homero
ldquo[] temos que em tudo que estar mais do que qualquer outra coisa de guarda contra o que eacute prazeroso e contra o prazer porque quando este estaacute em julgamento natildeo somos juiacutezes imparciais O procedimento correto eacute portanto encarar o prazer como os anciotildees do povo encaravam Helena e empregar (ou repetir) o discurso que dirigiram a ela em todas as ocasiotildees pois se assim o descartarmos teremos menos probabilidade de nos extraviar (EN II 9 1109b1)
Portanto podemos chamar de accedilatildeo virtuosa aquela que eacute direcionada pela
mediania que se projeta na melhor quantidade medida ocasiatildeo oportunidade e em
relaccedilatildeo agraves pessoas certas O acircmbito da accedilatildeo comporta uma biparticcedilatildeo que deve ser
considerada em se tratando de virtude a saber accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria
34 Accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria
Embora a virtude esteja relacionada com paixotildees e accedilotildees um sentimento ou
uma accedilatildeo pode ser algo voluntaacuterio ou involuntaacuterio Louvor e censura agraves paixotildees e
accedilotildees voluntaacuterias e perdatildeo e piedade agraves involuntaacuterias (EN III 1 1109b30)
Para Aristoacuteteles voluntaacuterio eacute o ato de escolher Mas eacute preciso fazer certas
ressalvas neste sentido Ora o que se pratica sob o impulso do momento pode ser
voluntaacuterio mas natildeo escolhido pois a escolha natildeo eacute comum aos seres irracionais
Escolher envolve um princiacutepio racional bem como o pensamento O objeto da
48
escolha apresenta-se ao alcance e o mesmo eacute desejado apoacutes uma deliberaccedilatildeo
Assim escolha eacute um desejo deliberado (EN III 1112a - 1113a) O fim eacute aquilo que
se deseja jaacute o meio eacute aquilo que eacute deliberado e escolhido e assim as accedilotildees devem
concordar com as escolhas e estas devem ser voluntaacuterias Com isso afirma o
Estagirita que a virtude estaacute ao poder de escolha do homem porque o exerciacutecio da
virtude diz respeito aos meios Aquilo cujo motor estaacute no agente que possui
conhecimento das circunstacircncias particulares do ato parece ser o que eacute voluntaacuterio
Involuntaacuterio segundo Aristoacuteteles eacute o que acontece sob compulsatildeo e
ignoracircncia em que o princiacutepio motor encontra-se externo ao indiviacuteduo e para o que
em nada contribui ou influi o indiviacuteduo que age ou sente a paixatildeo (EN III 1111b)
Assim atos encontram-se no homem e devem estar em seu poder e serem
voluntaacuterios Atraveacutes do exerciacutecio de atividades sobre os objetos particulares formam-
se as disposiccedilotildees de caraacuteter
[] um homem doente natildeo ficaraacute bom desta maneira embora possa acontecer que sua doenccedila seja voluntaacuteria no sentido de ser o resultado de sua vida de dissipaccedilatildeo e de sua desobediecircncia aos meacutedicos Neste caso de iniacutecio teria dependido dele natildeo ficar doente mas natildeo agora que ele desperdiccedilou sua oportunidade da mesma forma que depois de atirar uma pedra natildeo eacute possiacutevel fazecirc-la voltar atraacutes natildeo obstante a pessoa que atirou a pedra eacute responsaacutevel por havecirc-la apanhado e lanccedilado pois a origem do ato estava nesta pessoa (EN III 5 1114a)
Constata-se vaacuterias vezes a afirmaccedilatildeo da responsabilidade do homem diante
de suas accedilotildees Eacute importante observarmos assim como Pierre Aubenque (2008) o
fez que o homem natildeo eacute responsaacutevel por sua vontade mas por suas escolhas de
acordo com Aubenque (2008 p 222) ldquoNa perspectiva de Aristoacuteteles e dos gregos
a vontade natildeo eacute responsaacutevel pelo mal Ao contraacuterio o mal eacute o responsaacutevel pela maacute
qualidade da vontade [] Pois um homem nunca quer o mal enquanto tal pode
querer mal o bem e querendo o bem em geral escolher cada vez mais o menor
bemrdquo
49
Duas pressuposiccedilotildees fundamentam como princiacutepio da responsabilidade A
realidade eacute contingente44 e depende do indiviacuteduo que age Para que uma accedilatildeo seja
considerada virtuosa devem estar presentes estas duas exigecircncias uma vez que
[] onde estaacute ao nosso alcance agir tambeacutem estaacute ano nosso alcance
natildeo agir e onde somos capazes de dizer ldquonatildeordquo tambeacutem somos capazes
de dizer ldquosimrdquo consequumlentemente se agir quando agir eacute nobilitante
estaacute ao nosso alcance natildeo agir que seraacute ignoacutebil tambeacutem estaraacute ao
nosso alcance Se estaacute ao nosso alcance entatildeo praticar atos
nobilitantes ou ignoacutebeis e se isto era o que significava ser bom ou mau
estaacute igualmente ao nosso alcance ser moralmente excelentes ou
deficientes (EN III 5 1113b)
Para Aristoacuteteles o caraacuteter eacute resultado dos atos humanos conforme
argumenta a Eacutetica a Nicocircmaco Assim agindo desta ou daquela maneira adquire-se
uma ou outra disposiccedilatildeo eacutetica A realizaccedilatildeo de coisas justas resultaraacute em bons
haacutebitos e tornaraacute o caraacuteter justo (EN II 4 1105b) Ao agir de modo intemperante
adquire o haacutebito de ceder tatildeo somente aos desejos que conduz agrave intemperanccedila O
caraacuteter eacute assim o produto dos atos de seu autor e natildeo algo advindo da educaccedilatildeo
da condiccedilatildeo social ou da natureza
Assim os viacutecios e as virtudes possuem significado moral e natildeo satildeo somente
traccedilos psicoloacutegicos adquiridos Isto se daacute uma vez que pertencem ao campo daquilo
que depende do homem Ao agir o ser humano natildeo faz algo ao qual teraacute que
responder mais tarde como tambeacutem estaacute escolhendo o que seraacute Por isso ao agir
contra a regra que conhece estaacute consentindo em se tornar cego agrave lei e em natildeo
saber mais onde estaacute o bem Neste sentido a lei pune com maior severidade o
intemperante por ele deliberar em vista de um fim mau mesmo que possua a
capacidade de deliberar para o fim beniacutefico A ignoracircncia da regra pelo adulto
acresce a culpabilidade quando eacute produto de uma vida intemperante (EN III 5
1114a)
[] somente uma pessoa totalmente insensata poderia deixar de perceber que as disposiccedilotildees de nosso caraacuteter satildeo o resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injusto ou um homem que age
44
Veja o segundo capiacutetulo Contingecircncia
50
concupiscentimente natildeo deseje ser concupiscente Mas se uma pessoa pratica accedilotildees que a torna injusta sem ser ignorante ela seraacute injusta voluntariamente Disto natildeo resulta poreacutem que se ela quiser deixaraacute de
ser injusta e passaraacute a ser justa da mesma forma (EN III 5 1114a)
Ao abordar a responsabilidade humana Aristoacuteteles destaca que as
disposiccedilotildees satildeo voluntaacuterias de modos distintos
[] as accedilotildees e disposiccedilotildees natildeo satildeo voluntaacuterias de maneira idecircntica pois somos senhores de nossas accedilotildees do principio ao fim se conhecemos os fatos particulares mas embora tenhamos o controle da fase inicial de nossas disposiccedilotildees a evoluccedilatildeo de cada estaacutegio das mesmas natildeo eacute perceptiacutevel tal como acontece nas doenccedilas mas jaacute que a maneira de agir dependia de noacutes as disposiccedilotildees morais satildeo voluntaacuterias (EN III 5 1114a30)
O ato depende do ser humano em sua inteligibilidade porque o ser humano
possui um domiacutenio sobre as consequecircncias diretas do mesmo Por outro lado o ser
humano natildeo pode antecipar todas as consequecircncias advindas indiretamente dos
haacutebitos que ele assume O caraacuteter eacute imputaacutevel ao ser humano uma vez que agindo
ele tambeacutem estaacute forjando os seus haacutebitos
Embora o ser humano seja senhor de seus atos a cada instante ele natildeo
pode modificar o seu caraacuteter quando bem quer sendo que isso equivaleria a dizer
que o ser humano natildeo tem caraacuteter Assim apoacutes certo tempo o caraacuteter parece que
ficou tatildeo marcado que se torna impossiacutevel transformaacute-lo Resulta entatildeo o problema
da perfectibilidade do caraacuteter (EN III 5 1114a)
Ora cada ser humano eacute autor de seus atos enquanto eacute agente o que se
determina a um fim Sendo a escolha intencional dirigida pelo caraacuteter pode-se
afirmar que o ser o homem eacute causa de seus atos enquanto agente que consente
Assim de fato natildeo eacute o seu caraacuteter o determinante de sua decisatildeo (EN III 4 1113a)
Para Aristoacuteteles o caraacuteter comeccedila sua formaccedilatildeo durante a infacircncia Segundo
ele o jovem age para formar o seu caraacuteter enquanto que o adulto age a partir de seu
caraacuteter tendo a intenccedilatildeo de ser feliz Entretanto como os fins visados dependem do
caraacuteter as decisotildees do adulto apresentam-se como determinadas pelo seu
condicionamento educativo o qual ocorreu na infacircncia
51
O Estagirita afirma que o caraacuteter do jovem o qual eacute formado a partir dos
haacutebitos e da educaccedilatildeo que recebe ainda natildeo eacute nem vicioso e nem virtuoso Pode-
se prefigurar a virtude futura pelo amor ao belo pela justiccedila do gosto ou a nobreza
das paixotildees Tanto a virtude quanto o viacutecio somente se desenvolvem atraveacutes dos
atos dos quais somente o adulto eacute capaz uma vez que se realizam notadamente no
acircmbito da vida ciacutevica e militar A entrada na vida adulta quando satildeo tomadas as
primeiras decisotildees eacute quando se realizam os primeiros atos verdadeiros Natildeo se
pode negar entatildeo a influecircncia do caraacuteter adquirido pela educaccedilatildeo Assim o homem
comeccedila ao entrar na vida adulta a realizar alguma coisa que propotildee e visa fins ou
seja ele se torna o verdadeiro autor de seus atos e eacute responsaacutevel por aquilo que faz
e por aquilo que eacute Nesse momento eacute pela docilidade ou pela rebeliatildeo que o jovem
adquire boas ou maacutes disposiccedilotildees diante das paixotildees Por outro lado o adulto
adquire viacutecio ou virtude ou seja um caraacuteter moral atraveacutes de suas decisotildees
Assim com o passar do tempo um haacutebito tende a se repetir isto eacute ele
amplifica o que se comeccedilou melhorando sempre mais ou dirigindo-se cada vez mais
agrave decadecircncia Para o homem se tornar bom a exigecircncia eacutetica estaria reservada
agravequeles que tivessem comeccedilado bem aos demais soacute seria possiacutevel constatar seus
viacutecios e incoerecircncias Desta forma pode-se concluir que a eacutetica aristoteacutelica estaria
reservada somente a uns eleitos bem educados e aos outros ela condenaria a um
encadeamento fatiacutedico resultado de uma maacute educaccedilatildeo e consequente praacutetica
reiterada de viacutecios
Tendo revisitado as virtudes pertinentes agrave parte irracional da alma
passaremos a estudar as virtudes pertinentes agrave parte racional da alma que satildeo as
virtudes intelectuais
35 Virtudes Intelectuais
As virtudes como vimos satildeo de dois tipos a intelectual e a moral As
virtudes intelectuais satildeo majoritariamente tanto produzidas quanto ampliadas pela
instruccedilatildeo o que por certo exige experiecircncia e tempo (EN II 1 1103a15) As
virtudes intelectuais satildeo o objeto do livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco
52
Ao abordar tais virtudes Aristoacuteteles reapresenta a foacutermula da reta razatildeo ldquoJaacute
vimos que eacute certo escolher a mediania e evitar o excesso e a deficiecircncia e que a
mediania eacute fixada pela justa razatildeordquo (EN 1138b20)
Toda via estando algueacutem de posse dessa verdade isso natildeo o tornaraacute mais saacutebio do que antes queremos dizer por exemplo que tal pessoa natildeo saberaacute que medicamentos tomar pelo mero fato de lhe terem dito para tomar tudo que a arte a medicina ou um doutor em medicina lhe indicar Consequentemente no que toca agraves qualidades da alma igualmente natildeo bastaraacute meramente estabelecer a verdade da foacutermula acima Teremos aleacutem disso que definir com exatidatildeo qual eacute a justa razatildeo e qual eacute o padratildeo que a determina (EN 1138b20)
Aristoacuteteles define as partes da alma atribuindo agrave parte racional duas
faculdades a saber a faculdade cientiacutefica e a faculdade calculadora Enquanto o
objeto da faculdade cientiacutefica eacute aquele que se ocupa em especular as coisas cujos
primeiros princiacutepios satildeo invariaacuteveis a faculdade calculadora tem por objeto as
coisas que admitem variaccedilatildeo A definiccedilatildeo de caacutelculo eacute dada por Aristoacuteteles ldquoeacute o
mesmo que deliberaccedilatildeo e esta jamais eacute exercida sobre coisas invariaacuteveis
[entendemos] que a parte calculadora constitui uma parte independente da metade
irracional da alma (EN VI 1 1139a15)
Destaca trecircs elementos existentes na alma que controlam a accedilatildeo e o
atingimento da verdade a sensaccedilatildeo o intelecto e o desejo A sensaccedilatildeo natildeo gera
accedilatildeo pois a accedilatildeo eacute proacutepria ao homem enquanto a sensaccedilatildeo estaacute presente tanto na
alma do homem quanto na alma do animal Assim os movimentos dos animais satildeo
gerados pelos estiacutemulos sensoriais enquanto os movimentos proacuteprios ao homem a
praacutexis satildeo uma accedilatildeo guiada pelo intelecto e pelo desejo45
O pensamento especulativo desenvolvido pela faculdade cientiacutefica natildeo diz
respeito agrave accedilatildeo e ou agrave produccedilatildeo Ele se ocupa em elaborar juiacutezos de verdadeiro ou
falso
45
Conforme jaacute salientamos no capiacutetulo 2 O Movimento
53
Por outro lado o raciociacutenio praacutetico46 diz respeito ao que devemos buscar e
evitar no sentido de orientar as virtudes morais Eacute a partir dele que realizamos as
escolas entendendo por escolha o desejo deliberado (BERTI 1998 p 117)
Por conseguinte a escolha pode ser qualificada como o pensamento
relacionado ao desejo ou o desejo relacionado ao pensamento e o ser humano
como gerador da accedilatildeo eacute uma uniatildeo de desejo e intelecto (EN 1139b5)
46
Sobre razatildeo praacutetica vide LACERDA (2005)
54
4 PRUDEcircNCIA
41 Conceito
Aristoacuteteles na passagem 1140b do Livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco define a
prudecircncia como uma capacidade verdadeira e racional de agir sobre as coisas que
satildeo boas ou maacutes para o homem
De acordo com Enrico Berti a phroacutenesis ldquopara Aristoacuteteles eacute uma virtude ou
melhor a mais elevada virtude da parte calculadora da alma racional isto eacute a razatildeo
praacutetica Ela com efeito eacute por ele concebida como a capacidade de deliberar bem
ou seja de calcular os meios necessaacuterios para alcanccedilar um fim bomrdquo (BERTI 1998
p 146)
Por sua vez Tomaacutes de Aquino discorre sobre a prudecircncia na parte II-II
questotildees 47 a 56 em sua obra de referecircncia a Suma Teoloacutegica Tomaacutes eacute haacutebil na
leitura aristoteacutelica da prudecircncia e pode-se encontrar em sua obra uma foacutermula
sinteacutetica do que ele entende por prudecircncia reta razatildeo aplicada ao agir47 Portanto eacute
com fundamento em questotildees de razatildeo praacutetica que Tomaacutes define a prudecircncia ldquoE
este eacute o papel da prudecircncia aplicar os princiacutepios universais agraves conclusotildees
particulares do acircmbito do agir E assim natildeo compete agrave prudecircncia indicar o fim das
virtudes morais mas somente lidar com os meios para atingir o fimrdquo (II-II 476
negrito nosso)
Pierre Aubenque (2008) sonda pormenorizadamente os vaacuterios aspectos
apresentados pelo Estagirita do que seria a prudecircncia e de sua leitura agraves obras de
Aristoacuteteles extraiacutemos
[] a definiccedilatildeo dada por Aristoacuteteles no livro VI da Eacutetica Nicomaqueacuteia apresenta um caraacuteter demasiado elaborado ou se se prefere demasiado teacutecnico para poder conhecer a mesma fortuna Ali a prudecircncia eacute definida como uma ldquodisposiccedilatildeo praacutetica acompanhada de regra verdadeira concernente ao que eacute bom ou mau para o homemrdquo Conforme ao meacutetodo familiar a Aristoacuteteles essa definiccedilatildeo eacute apresentada como resultado de um processo ao mesmo tempo indutivo e regressivo Parte-se do uso comum constata-se que eacute chamado phronimos o
homem capaz de deliberaccedilatildeo (AUBENQUE 2008 p 60-61)
47 recta ratio agibilium
55
Ainda nessa direccedilatildeo Aubenque (2008) a distingue das outras virtudes em
particular das virtudes morais
[] enquanto a virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo (praacutetica) que concerne agrave
escolha ) a prudecircncia eacute uma disposiccedilatildeo praacutetica que
concerne agrave regra da escolha Natildeo se trata da retidatildeo da accedilatildeo mas da correccedilatildeo do criteacuterio razatildeo pela qual a prudecircncia eacute uma disposiccedilatildeo praacutetica acompanhada de uma regra verdadeira (AUBENQUE 2008 p61)
Alasdair Macintyre (2001) discorre sobre a prudecircncia como sendo a virtude
intelectual sem a qual natildeo se pode exercer nenhuma virtude de caraacuteter48
A virtude principal eacute portanto phronecircsis Phronecircsis assim como socircphrosunecirc eacute originariamente um termo aristocraacutetico de louvor Caracteriza algueacutem que sabe o que lhe eacute devido que se orgulha de reivindicar seus direitos Significa de maneira mais geneacuterica algueacutem que sabe como julgar em casos especiacuteficos Phronecircsis eacute a virtude intelectual mas eacute a virtude intelectual sem a qual natildeo se pode exercer nenhuma das virtudes de caraacuteter (MACINTYRE 2001 p15)
Javier Hervada (2008) em sua obra Liccedilotildees propedecircuticas de filosofia do
direito destaca o caraacuteter praacutetico e a inclinaccedilatildeo que a prudecircncia tem para com o
direito salientando suas caracteriacutesticas claacutessicas
A prudecircncia eacute de fato uma virtude intelectual ou dianoeacutetica a virtude do correto agir moral o que estaacute relacionado com a justiccedila que tambeacutem eacute virtude moral Isso salienta que a atividade juriacutedica depende de duas virtudes que satildeo a base do ofiacutecio de jurista a justiccedila e a prudecircncia (HERVADA 2008 p 58)
48
A interpretaccedilatildeo de MacIntyre sobre a singularidade da prudecircncia parece-nos extraiacuteda tanto de Tomaacutes quando se refere a ela como matildee das virtudes (III Sent d 33 q 2 a 5 c) quanto de Aristoacuteteles que nos ensina em sua Eacutetica a Nicocircmaco ldquoA prudecircncia proporciona todas as virtudes Ela fornece os meios de produzi-lasrdquo (VI 1145a)
56
Pierre Aubenque (2008) parece desembaraccedilar de forma haacutebil o que seria a
prudecircncia despindo dos textos de Aristoacuteteles a compreensatildeo de uma das questotildees
mais iacutentimas da filosofia grega e eacute nesse sentido que ele desenvolve sua conclusatildeo
O Estagirita encontraria aiacute a velha inquietude grega diante da imprevisibilidade do futuro e a precariedade das coisas humanas Se ele foi moderno isso se deve ao fato de natildeo ter querido dominar o acaso com preces Se a accedilatildeo sobre o acaso natildeo podia ser cientificamente determinada ndash visto que ldquodo acaso natildeo haacute ciecircnciardquo ndash natildeo seria tampouco improvisada e sem princiacutepios Natildeo retornaremos agrave soluccedilatildeo que ele deu a este problema e nomeou prudecircncia (AUBENQUE 2008 p 278)
A adoccedilatildeo do traacutegico em face ao fracasso da Providecircncia ou em outras
palavras uma vez que o futuro eacute indeterminado a escolha entre dois males faz-se
procurando o menor entre eles A accedilatildeo nesse sentido compreendendo natildeo poder
alcanccedilar o bem em absoluto o faz da melhor maneira que pode
42 Prudecircncia e liberdade
De acordo com Aubenque (2008 p 149) a liberdade do homem natildeo estaacute
ligada agrave contingecircncia muito pelo contraacuterio se opotildee a ela A metaacutefora da casa
trazida no livro da Metafiacutesica retrata uma situaccedilatildeo onde o universo eacute comparado a
uma casa onde os homens livres representam os astros porque ldquolhes eacute menos liacutecito
agir ao acasordquo tendo suas accedilotildees orientadas por regras enquanto ldquoos escravos e os
animaisrdquo cujas ldquoaccedilotildees satildeo raramente ordenadas ao bem comum mas ao contraacuterio
satildeo frequentemente abandonadas ao acasordquo representam o mundo sublunar Nessa
acepccedilatildeo os escravos eacute que satildeo ldquolivresrdquo no sentido moderno do termo porque natildeo
sabem o que fazem ldquoenquanto a liberdade do homem grego e sua perfeiccedilatildeo se
medem pela maior ou menor determinaccedilatildeo de suas accedilotildeesrdquo
A prudecircncia eacute o substituto propriamente humano de uma Providecircncia que falha [] A prudecircncia eacute tambeacutem a previdecircncia que preserva os indiviacuteduos dos perigos [] ela eacute tambeacutem virtude na medida em que realiza no mundo sublunar um pouco do Bem que a divindade foi impotente para introduzir aqui [] Mas se o mundo fosse inteiramente
57
perfeito natildeo restaria nada a fazer ora eacute no fazer ou agir e natildeo na imobilidade estranhamente comum agraves plantas e a Deus que o homem
realiza sua sua excelecircncia propriamente humana Saber nos desviaria do fazer dispensando-nos de escolher (AUBENQUE 2008 p 155)
A prudecircncia seraacute a virtude dos homens voltados agrave deliberaccedilatildeo num mundo
obscuro e difiacutecil cujo inacabamento eacute um convite ao que decerto eacute preciso nomear
como sua liberdade A prudecircncia diraacute a Magna Moralia eacute uma ldquodisposiccedilatildeo para
escolher e agir concernindo ao que estaacute em nosso poder fazer e natildeo fazerrdquo
(AUBENQUE 2008 p 155)
Por isso homens como Peacutericles satildeo julgados prudentes porque possuem uma faculdade de discernir que coisas satildeo boas para mesmos e para os seres humanos E eacute isso que coincide com nosso entendimento do que seja algueacutem conhecedor da administraccedilatildeo domeacutestica ou
49 administraccedilatildeo
poliacuteticardquo (EN VI 5 1140B10)
Santo Tomaacutes em seus Comentaacuterios agrave Eacutetica a Nicocircmaco conclui acerca da
prudecircncia ldquoDe que la prudecircncia no sea ciencia haacutebito demonstrativo acerca de lo
necesario y no sea arte haacutebito productivo con razoacuten se segue que la prudencia es
un haacutebito activo con razoacuten verdadera que no versa sobre lo producio que estaacute fuera
del hombre sino sobre el bien y el mal del hombre mesmordquo (AQUINO 2010 p 363-
364)50
43 Arte e Prudecircncia
Conforme explicado na definiccedilatildeo tomista enquanto a atividade proacutepria agrave arte
eacute a produccedilatildeo a atividade proacutepria agrave prudecircncia eacute a accedilatildeo
49
εἶναι δὲ τοιούτους ἡγούμεθα τοὺς οἰκονομικοὺς καὶ τοὺς πολιτικούς Algueacutem conhecedor da
administraccedilatildeo domeacutestica e poliacutetica [(EN VI 5 1140B10) texto original disponiacutevel no site PERSEUS DIGITAL LIBRARY traduccedilatildeo nossa] 50
De que a prudecircncia natildeo eacute ciecircncia que procura mostrar o que eacute necessaacuterio e tambeacutem natildeo eacute arte o haacutebito produtivo com o emprego da razatildeo segue que a prudecircncia eacute um habito segundo o qual se age com a razatildeo verdadeira que natildeo versa sobre o produto que estaacute fora de homem mas sobre o bem e o mal do proacuteprio homem (AQUINO 2010 p 363-364)
58
Destarte para o Estagirita a arte eacute o conhecimento teacutecnico de como fazer
as coisas Enquanto a prudecircncia eacute o conhecimento de como agir para assegurar os
fins da vida do ser humano Vejamos o texto de Aristoacuteteles
Toda arte se ocupa em trazer alguma coisa agrave existecircncia e dedicar-se a uma arte significa estudar como trazer ao existir uma coisa que eacute possiacutevel existir ou natildeo a causa eficiente da qual estando no criador e natildeo na coisa criada pois a arte natildeo se ocupa com coisas que existem ou passam a existir (vecircm a ser) necessariamente ou pela natureza uma vez que essas coisas possuem suas causas eficientes em si mesmas Mas como o criar e o fazer satildeo distintos infere-se que a arte sendo concernente ao criar natildeo concerne ao fazer E num certo sentido a arte se ocupa dos mesmos objetivos da sorte como diz Agaton A sorte eacute aficionada da arte e a arte da sorte (EN VI 4 1140a10-20)
Para Enrico Berti a arte
[] concerne a objetos que podem ser diferentemente do que satildeo ou seja contingentes por isso estaacute entre as virtudes da parte ldquocalculadorardquo da razatildeo a mesma que compreende a phroacutenesis A diferenccedila entre arte e phroacutenesis repousa no fato de que esta uacuteltima ocupa-se como vimos do que pode ser ldquopraticadordquo (to praktoacuten) das accedilotildees enquanto a arte se ocupa da produccedilatildeo de objetos A distinccedilatildeo entre ldquoaccedilatildeordquo (praacutexis) e ldquoproduccedilatildeordquo (poiacuteesis) eacute dada por Aristoacuteteles quase sempre por evidente e consiste no fato de que a accedilatildeo natildeo produz nenhum objeto diferente dela mesma isto eacute termina em si que eacute o produto (BERTI 1998 p 157)
Portanto a arte eacute como dissemos uma qualidade racional concernente ao
criar de acordo com um processo verdadeiro de raciociacutenio Em oposiccedilatildeo a lacuna
da arte eacute uma qualidade racional concernente ao criar que envolve um processo
falso de raciociacutenio Ambas lidam com aquilo que admite variaccedilatildeo (EN VI 4
1140a10-20)
44 Deliberaccedilatildeo e Escolha
Ao definir a accedilatildeo voluntaacuteria Aristoacuteteles diz que a escolha pertence ao seu
gecircnero mas que no entanto nem todo ato voluntaacuterio eacute escolhido O que ele
pretende com essa argumentaccedilatildeo e evidenciar a diferenccedila entre a escolha e a
deliberaccedilatildeo
59
Nesse sentido esclarece que a deliberaccedilatildeo eacute ldquo[] empregada em mateacuterias
que embora sujeitas a regras que geralmente satildeo para o bem satildeo incertas quanto
aos seus resultados e consequecircncias ou nas quais resultados e consequecircncias satildeo
indeterminados []rdquo (EN III 3 1112b10)
Aristoacuteteles em vaacuterias passagens insiste em indicar um ponto especiacutefico
acerca da deliberaccedilatildeo Segundo ele natildeo deliberamos a respeito dos fins mas a
respeito dos meios Daiacute a analogia ldquo[No exerciacutecio de uma arte] a questatildeo num
momento eacute saber quais ferramentas usar e num outro como usaacute-las similarmente
em outras esferas temos que considerar por vezes que meios empregar e outras
vezes como exatamente determinarmos os meios que devem ser empregadordquo (EN
III 3 1112b30) Dessa forma Aristoacuteteles afirma que o ser humano eacute princiacutepio-
fundamento de suas proacuteprias accedilotildees e que eacute proacutepria agrave deliberaccedilatildeo apontar as accedilotildees
possiacuteveis de serem realizadas pelo agente sendo que todas as accedilotildees tecircm em vista
algum fim que natildeo elas mesmas
Portanto natildeo se delibera sobre o que natildeo estaacute em nosso poder A
deliberaccedilatildeo estaacute condicionada ao que podemos Por isso mais uma vez afirmamos
que a accedilatildeo virtuosa dirige-se para o melhor possiacutevel Isso eacute esclarecido por Pierre
Aubenque (2008) quando aborda a trageacutedia grega
ldquoA trageacutedia grega natildeo dizia outra coisa e antes dela a poesia de Hesiacuteodo ou Teoacutenis Por mais que Aristoacuteteles tenha restringido o traacutegico natildeo o eliminou inteiramente eacute a distacircncia que separa oi polloi de
pantej o wj epi to polu de aei o melhor possiacutevel do bem absoluto[]rdquo
(2008 p 138)
Destarte de posse da deliberaccedilatildeo cujo objeto estaacute sob nosso poder poder-
se-aacute escolher Pois a escolha eacute o desejo deliberado de coisas em nosso poder
Aristoacuteteles (1113a13) estabelece a seguinte ordem ldquoprimeiramente deliberamos em
seguida selecionamos e finalmente fixamos nosso desejo de acordo com o
resultado de nossa deliberaccedilatildeordquo
Sobre a escolha Aristoacuteteles esclarece que ela natildeo eacute o mesmo que a
vontade pois enquanto a vontade visa o fim a escolha concerne aos meios Neste
60
sentido a escolha se opotildee agrave vontade afinal ao homem eacute permitido querer o bem
mas escolher o melhor possiacutevel51
Aristoacuteteles apresenta pela primeira vez o problema da dissonacircncia possiacutevel entre o fim e os meios e enfatiza ao mesmo tempo que a qualidade da accedilatildeo eacute medida natildeo somente pela retidatildeo da intenccedilatildeo (como acreditava Platatildeo) mas tambeacutem pela conveniecircncia dos meios (AUBENQUE 2008 p 218)
Uma outra importante observaccedilatildeo eacute feita por Aubenque (2008 p 227) Ele
encontra no texto de Aristoacuteteles duas foacutermulas comuns agrave prudecircncia A primeira eacute
esta que acabamos de descrever qual seja a capacidade de escolha judiciosa dos
meios
A segunda foacutermula eacute pertinente agrave capacidade de aplicar o universal ao
particular O que vemos eacute que o prudente deve ser capaz de operar com uma com
duas ou com ambas se eacute que eacute possiacutevel estabelecer fundada diferenccedila entre elas
que natildeo seja meramente teoacuterica
Natildeo haacute portanto nenhuma ldquocontradiccedilatildeordquo entre as duas descriccedilotildees da accedilatildeo dadas por Aristoacuteteles Pois uma vez reconhecido o particular se o universal a ele se aplica necessariamente eacute preciso inicialmente reconhecer o particular o que se deduz silogisticamente eacute a propriedade do particular de ser desejaacutevel mas natildeo a existecircncia do particular Natildeo eacute difiacutecil saber que eacute preciso ser corajoso nem decidir que o que foi reconhecido como corajoso dever ser cumprido Mas onde estaacute a coragem hic et nunc Eacute na bravata ou no sangue frio Na aventura ou na abstenccedilatildeo No combate sem esperanccedila ou na fuga que garante o futuro Eacute na infinita distacircncia entre os princiacutepios demasiado gerais e a variedade inacessiacutevel ao pensamento racional A distacircncia eacute igualmente infinita entre a eficaacutecia real do meio e a realizaccedilatildeo esperada do fim Eacute este infinito que Aristoacuteteles pede que a prudecircncia preencha por mediaccedilotildees laboriosas e incertas Mas esse infinito este aoristou que
afeta uma mateacuteria sempre mais ou menos reativa agrave determinaccedilatildeo e em geral um mundo que nunca acolhe inteiramente a ordem noacutes jaacute conhecemos o seu nome a contingecircncia (AUBENQUE 2008 p 228)
Antes de encerrar este assunto parece oportuno levantarmos uma questatildeo
que segue o acima exposto Pierre Aubenque (2008) na introduccedilatildeo ao capiacutetulo
intitulado Antropologia da prudecircncia nos fornece uma importante justificativa acerca
51
Sobre a responsabilidade pela accedilatildeo vide o item 35 Accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria
61
da ordem temaacutetica proposta no presente trabalho A questatildeo que pretendemos
levantar eacute por que tomamos como ponto de partida a contingecircncia
Mostramos ateacute aqui que a prudecircncia soacute teria razatildeo de ser num mundo contingente Ora se a encaramos natildeo mais de um ponto de vista coacutesmico mas humano a contingecircncia nos aparece como abertura agrave atividade dos homens ao mesmo tempo arriscada e eficaz Sem a contingecircncia a accedilatildeo dos homens natildeo seria apenas impossiacutevel seria tambeacutem inuacutetil Eacute tal accedilatildeo ao mesmo tempo permitida e requerida pela contingecircncia em suas relaccedilotildees com a prudecircncia que guia que se trata de analisar agora
Natildeo surpreenderaacute que encontremos aqui em termos ldquosubjetivosrdquo o que tentamos extrair acima em termos ldquoobjetivosrdquo A teoria da contingecircncia e a da accedilatildeo reta satildeo apenas o direito e o avesso de uma mesma doutrina eacute a indeterminaccedilatildeo dos futuros que faz do homem princiacutepio o inacabamento do mundo eacute o nascimento do homem (AUBENQUE 2008 p 173 negrito nosso)
Assim a deliberaccedilatildeo eacute pertinente agravequilo que podemos modificar Seja qual
for o meacutetodo adotado o problema a ser enfrentado eacute o mesmo as incontaacuteveis
possibilidades a que estamos submetidos sendo a escolha o ato intriacutenseco agrave
deliberaccedilatildeo o momento oportuno para escolher o melhor possiacutevel
De acordo com Hermann (2007) a prudecircncia proposta por Aristoacuteteles na
Eacutetica a Nicocircmaco eacute mais precisamente
[] a possibilidade de articular a relaccedilatildeo entre o universal e o particular ou ainda a aplicaccedilatildeo de princiacutepios gerais em casos particulares Inserindo no mundo o comportamento eacutetico interpotildee a individualidade de um eu entretecido em formas histoacutericas de vida com um ethos comum Assim o agir moral natildeo estaacute voltado para um bem transcendente mas realizado em accedilotildees concretas (HERMANN 2007 p 366)
Assim com o escopo de compreendermos melhor passaremos a analisar a
figura do prudente
45 O prudente
A virtude da prudecircncia eacute tratada no capiacutetulo 5 do livro VI da Eacutetica a
Nicocircmaco Aristoacuteteles para explicaacute-la toma emprestado exemplo de pessoas
62
consideradas prudentes De acordo com ele eacute caracteriacutestico do homem prudente
ser capaz de bem deliberar sobre o que eacute bom e proveitoso para si mesmo natildeo de
maneira particular mas sobre o que eacute bom e vantajoso para o bem-estar em geral
Assim o homem prudente em geral eacute aquele capaz de bem deliberar de modo
geral
Poderiacuteamos afirmar que o sistema moral de Aristoacuteteles estaacute centrado em
sua maior parte no indiviacuteduo Aleacutem dos dois livros VIII e IX que satildeo dedicados agrave
amizade pouco se diz sobre ela na totalidade da eacutetica Pouco se sugere que o ser
humano deve ter um interesse caloroso e pessoal pelas outras pessoas e o
altruiacutesmo parece-nos ausente Mesmo sobre a amizade encontram-se traccedilos de um
ponto de vista deveras egoiacutesta jaacute que a mesma natildeo constitui uma benevolecircncia
mas exige certa reciprocidade
Mas tais afirmaccedilotildees natildeo parecem prosperar Sua eacutetica esta pautada no
conceito de felicidade Tal conceito soacute pode ser compreendido no acircmbito da poacutelis e
em relaccedilatildeo ao outro Ou seja para sermos felizes devemos optar por uma vida
virtuosa e para uma vida virtuosa devemos praticar as virtudes torna-se evidente
que sua teoria natildeo soacute considera mas tem como fundamento a relaccedilatildeo muacutetua entre
os homens ou melhor entre os animais poliacuteticos Vejamos a explicaccedilatildeo de Tomaacutes
de Aquino [] compete agrave razatildeo deliberar acertadamente julgar e preceituar naquilo
que se chega ao fim devido Estaacute claro que a prudecircncia visa natildeo somente o bem
particular de um soacute mas tambeacutem o bem comum da multidatildeo (AQUINO 2004 p
602) Estabelecendo uma relaccedilatildeo com a virtude moral expotildee
[] como toda virtude moral que se refere ao bem comum se chama justiccedila legal assim a prudecircncia referida ao bem comum se chama ldquopoliacuteticardquo de modo que a poliacutetica se relaciona com a justiccedila legal da mesma forma que a prudecircncia simplesmente dita agrave virtude moral (AQUINO 2004 p 602)
Portanto podemos concluir que o prudente eacute aquele que sabe o que eacute bom
para si de um modo geral e tambeacutem para sua comunidade Tambeacutem podemos
afirmar que ele bem delibera Assim na linguagem atual prudente tem um certo
sabor daquele que calcula com vistas no interesse proacuteprio (MACINTYRE 1991 p
63
80) e consequentemente da comunidade Resta-nos entatildeo examinar sobre o que o
prudente delibera
Vimos que natildeo eacute objeto de deliberaccedilatildeo as coisas das quais natildeo podemos
deliberar ou seja as coisas que estatildeo no acircmbito do necessaacuterio Conclui-se disto
que
[] a prudecircncia (sabedoria praacutetica) natildeo eacute o mesmo que conhecimento cientiacutefico como tatildeo pouco pode ser o mesmo que a arte Natildeo eacute conhecimento cientiacutefico porque assuntos relacionados agrave conduta admitem mutaccedilatildeo e natildeo pode ser arte porque o criar e o fazer satildeo genericamente diferentes posto que o criar visa um fim que eacute distinto do ato de criar enquanto no fazer o fim natildeo pode ser outro senatildeo o proacuteprio ato ou seja fazer bem eacute em si mesmo um fim Insiste-se portanto que a prudecircncia eacute uma qualidade racional de consecuccedilatildeo da verdade que concerne agrave accedilatildeo relativamente a coisas que satildeo boas e maacutes aos seres humanos (EN VI 5 1140b1-5)
Na sequecircncia Aristoacuteteles cita Peacutericles como sendo um exemplo de homem
prudente Em suas palavras ldquoPor ter a capacidade de discernir que coisas satildeo boas
para si mesmo e para os seres humanos E eacute isso que coincide com nosso
entendimento do que seja algueacutem conhecedor da administraccedilatildeo domeacutestica ou
administraccedilatildeo poliacuteticardquo (EN VI 5 1140b1-5)
Como modelo de phroacutenimos (quem possui a phroacutenesis) isto eacute de ldquosaacutebiordquo ou ldquoprudenterdquo Aristoacuteteles indica Peacutericles (1140 b 8) o grande liacuteder poliacutetico que governa Atenas certamente natildeo um filoacutesofo de profissatildeo com o qual discutir de igual para igual talvez para dissentir Aristoacuteteles indica Soacutecrates (13 1144 b 18 28) certamente natildeo um liacuteder poliacutetico nem nunca um governador de sua cidade tambeacutem daiacute resulta a diferenccedila por ele estabelecida entre a phroacutenesis e a filosofia praacutetica
Com mais forte razatildeo a phroacutenesis difere da sabedoria a primeira efetivamente ocupa-se o homem isto eacute das realidades humanas enquanto a segunda como vimos ocupa-se das realidades mais elevadas que o homem das realidades divinas Se o modelo da phroacutenesis como vimos eacute Peacutericles os modelos de sabedoria indicados por Aristoacuteteles satildeo Tales e Anaxaacutegoras alhures considerados fiacutesicos mas aqui apresentados como investigadores de realidades divinas (os princiacutepios supremos) (BERTI 1998 p 146-147)
Em contraste agrave filosofia platocircnica o Estagirita aborda a temaacutetica acerca da
sabedoria teoacuteretica e da sabedoria praacutetica A sabedoria teoreacutetica estaacute em grau de
64
superioridade em relaccedilatildeo agrave praacutetica sendo que ao menos uma parte do valor desta
uacuteltima consiste na ajuda que daacute a produccedilatildeo da primeira
Entatildeo a felicidade chega apenas ateacute onde haacute contemplaccedilatildeo e as pessoas mais capazes de exercerem a atividade contemplativa fruem mais intensamente a felicidade natildeo como um acessoacuterio da contemplaccedilatildeo mas como algo inerente a ela pois a contemplaccedilatildeo eacute preciosa por si mesma A felicidade portanto deve ser alguma forma de contemplaccedilatildeo
Mas sendo criaturas humanas necessitamos tambeacutem de bem estar exterior pois nossa natureza natildeo eacute suficiente por si mesma para o exerciacutecio da atividade contemplativa Nosso corpo deve ser tambeacutem saudaacutevel e deve receber boa alimentaccedilatildeo e outros cuidados Nem por isso poreacutem devemos pensar que as nossas pessoas necessitam de muitas e grandes coisas para ser felizes simplesmente porque natildeo podem ser sumamente felizes sem bens exteriores com efeito a auto-suficiecircncia e a accedilatildeo natildeo pressupotildeem excessos e podemos praticar accedilotildees nobilitantes sem dominar a terra e o mar porquanto mesmo com recursos moderados eacute possiacutevel agir de conformidade com excelecircncia (isto eacute bastante evidente pois se pensa que os simples cidadatildeos praticam atos meritoacuterios natildeo menos que os detentores do poder ndash na verdade os praticam ainda mais) basta dispormos de recursos moderados pois a vida das pessoas que agem de conformidade com a excelecircncia seraacute feliz (EN X 9 1179a1)
Destarte a contemplaccedilatildeo constitui o ingrediente fundamental da felicidade
para Aristoacuteteles Eacute esta a melhor atividade de que o homem eacute capaz haja vista que
eacute o exerciacutecio do melhor do indiviacuteduo sobre o melhor de todos os objetos os quais
satildeo eternos e imutaacuteveis Por consistir naquilo que o homem pode fazer com maior
continuidade acarretar prazer puro e estaacutevel ser menos dependente dos outros
homens Em suma consiste no gecircnero de vida que se deve atribuir aos deuses jaacute
que seria absurdo atribuir-lhes vida moral
Entretanto a vida contemplativa eacute extremamente elevada para o homem
Enquanto seres humanos compostos de corpo de alma irracional e de razatildeo
homem natildeo a podem vivecirc-la Hipoteticamente poderaacute vivecirc-la somente em virtude do
elemento divino presente nele Todavia o homem natildeo deve seguir aqueles que
afirmam que pelo homem ser homem deve limitar o seu pensamento agraves coisas
humanas Ora ldquona medida do possiacutevelrdquo o homem deve apoderar-se da vida eterna
vivendo a vida desta parte de si mesmo pois eacute esta que constitui a melhor e mais
verdadeira parte de si mesmo O homem que vive assim eacute feliz
65
Entatildeo a phroacutenesis no sentido jaacute plenamente definido de sabedoria praacutetica iraacute constituir-se como virtude dianoeacutetica entre as virtudes eacuteticas de um lado e a filosofia (ou sophiacutea) como haacutebito contemplativo de outro A phroacutenesis aristoteacutelica encontra assim o seu lugar no centro dessa estrutura de uma teoria da praxis como teoria praacutetica que seraacute finalmente a alternativa aristoteacutelica agrave ontologia platocircnica do Bem (VAZ 2000 p 102)
Ainda sobre o prudente podemos extrair dos valiosos ensinamentos de
Henrique C de Lima Vaz
A phroacutenesis como virtude da razatildeo reta (orthoacutes loacutegos) ou da razatildeo que iraacute estabelecer a meacutedia razoaacutevel entre os extremos para as virtudes eacuteticas eacute a primeira das virtudes dianoeacuteticas e assinala justamente a presenccedila do logos regulador e ordenador no fluxo contingente das accedilotildees singulares Ao apontar no homem saacutebio (phroacutenimos) a norma existencial e concreta da phroacutenesis Aristoacuteteles torna patente na realidade viva as ldquocoisas humanasrdquo a dialeacutetica que se estabelece entre o impliacutecito vivido do ethos e o expliacutecito vivido pensado da Eacutetica ou ciecircncia praacutetica Essa dialeacutetica vem romper exatamente com o ciacuterculo vicioso que parece opor logo nos primeiros passos do pensamento eacutetico a praacutetica e a definiccedilatildeo das virtudes e do qual nasce a aporia inicial dos chamados diaacutelogos ldquosocraacuteticosrdquo de Platatildeo a praacutetica da virtude verdadeira conteacutem o saber da sua definiccedilatildeo e a definiccedilatildeo da virtude natildeo eacute senatildeo a abstraccedilatildeo da sua praacutetica Eacute necessaacuterio praticar a virtude para poder defini-la e eacute necessaacuterio defini-la para bem pratica-la A Eacutetica como ciecircncia se propotildee justamente instaurar um tipo de reflexatildeo que permita a ruptura deste ciacuterculo entre o abstrato e o concreto estabelecendo um fundamento racional e uma medida para o agir (VAZ 2000 p 103-104 negrito nosso)
De acordo com Werner Jaeger a prudecircncia eacute a virtude que relaciona o
conhecimento mais elevado com as coisas da vida praacutetica
A phroacutenesis eacute o transformador que converte o conhecimento eterno de Deus no movimento eacutetico da vontade e o aplica agraves particularidades da praacutetica Na Eacutetica a Nicocircmaco eacute o ldquoestado de capacidade de trabalharrdquo e nenhum homem jamais atua sem ela O conhecimento filosoacutefico de Deus natildeo eacute sua condiccedilatildeo essencial
52 (JAEGER 1963 p 265 traduccedilatildeo
nossa)
52
La phroacutenesis es el transformador que convierte el conoci-miento del Dios eterno en el movimiento
eacutetico de la voluntad y lo aplica a los detalles de la praacutecticaEn la Etica Nicomaquea es el estado de capacidad de obrar y ninguacuten hombre actuacutea jamaacutes sin ella El conocimiento filosoacutefico de Dios ya no es su condicioacuten esencial (JAEGER 1963 p 275 traduccedilatildeo nossa)
66
Eacute desse hiato entre o universal e o particular que cuida o prudente Eacute ele
quem delibera sobre o momento as circunstacircncias e a maneira como a accedilatildeo deve
ser deflagrada para que possa ser considera virtuosa
Feita essa exposiccedilatildeo geral da eacutetica contingecircncia eacutetica das virtudes e
prudecircncia noacutes acreditamos ao menos em parte estar aptos a abordar um assunto
que assume papel central na filosofia grega a justiccedila
67
5 JUSTICcedilA COMO VIRTUDE
Abordar a justiccedila ndash ou qualquer outra virtude ndash no pensamento aristoteacutelico eacute
uma tarefa aacuterdua e sinuosa A coerecircncia do pensamento de Aristoacuteteles como um
todo e ao mesmo tempo a especificaccedilatildeo das particularidades de cada mateacuteria a ser
estudada daacute agrave abordagem uma dupla sensaccedilatildeo De um lado certa seguranccedila
relacionada ao fato de sua coerecircncia nos impulsionar ainda que de forma intuitiva
agraves significacircncias de seus dizeres Por outro lado a preocupaccedilatildeo com a seguranccedila
da informaccedilatildeo a ser tratada bem como com as alteraccedilotildees semacircnticas que tornam-
se significativas principalmente com a transiccedilatildeo para modernidade53
Eacute importante observarmos que o tratamento dado agrave justiccedila por Aristoacuteteles
emprega instrumentos pouco convencionais ateacute mesmo para a eacutepoca De acordo
com Eduardo C B Bittar (2005)
A siacutentese operada pelo pensador permitiu por meio de seus textos que se congregassem inuacutemeros elementos doutrinaacuterios reunidos ao longo dos seacuteculos pelos quais se espalharam os conhecimentos gregos anteriores a ele (preacute-socraacuteticos socratismo sofistas platonismo) Eacute da reuniatildeo das opiniotildees dos saacutebios da opiniatildeo do povo da experiecircncia praacutetica analisados e avaliados criticamente dentro da visatildeo de todo o problema (justiccedila da cidade justiccedila domeacutestica justiccedila senhorial) que surgiu uma concepccedilatildeo propriamente aristoteacutelica (BITTAR 2005 p 90-91)
Tal concepccedilatildeo daacute a justiccedila um caraacuteter eacutetico pois insere a mesma entre as
virtudes Dessa forma as regras gerais aplicadas agraves virtudes em particular satildeo
igualmente aplicadas agrave justiccedila Sendo a prudecircncia como mais tarde diria Tomaacutes de
Aquino genitrix virtut e auriga virtut54 parece-nos ser conceito aristoteacutelico de justiccedila
vitalmente ligado ao conceito de prudecircncia ao passo que a prudecircncia realiza suas
accedilotildees assim como a justiccedila no espaccedilo pertinente agrave accedilatildeo racional qual seja o
domiacutenio do contingente Assim esclarece Juacutelio Aguiar de Oliveira (2011)
53
Tema amplamente abordado em por MACINTYRE (2001) 54
Matildee da virtude (III Sent d 33 q 2 a 5 c) e guia da virtude (IV Sent d 17 q 2 a 2 dco) Traduccedilatildeo nossa
68
Na medida em que se trata de uma questatildeo referente agrave accedilatildeo humana sua atuaccedilatildeo se daacute no domiacutenio do contingente Eacute por isso que a virtude da justiccedila (como todas as outras virtudes eacuteticas) depende da virtude da prudecircncia Se a accedilatildeo humana se desenrolasse no domiacutenio do necessaacuterio os preceitos da lei natural poderiam ser deduzidos do primeiro princiacutepio por meio da ciecircncia (deduccedilatildeo matemaacutetica) No entanto uma vez que a accedilatildeo humana se aacute no domiacutenio do contingente a virtude necessaacuteria para a boa deliberaccedilatildeo eacute a virtude da prudecircncia (OLIVEIRA 2011 p121)
Portanto a justiccedila em sentido amplo eacute uma virtude que ldquo[] natildeo comporta
uma compreensatildeo geneacuterica e indiferente agraves qualidade especiacuteficas dos indiviacuteduos eacute
pelo contraacuterio sensiacutevel dentro das ambiccedilotildees teoacutericas de Aristoacuteteles agrave dimensatildeo
individualrdquo (BITTAR 2005 p 93) O conceito dado eacute o seguinte [] a justiccedila eacute a
virtude perfeita por ser ela a praacutetica da virtude perfeita aleacutem do que eacute perfeita num
grau especial porque seu possuidor pode praticar sua virtude dirigindo-a aos outros
e natildeo apenas sozinho [] (ENV 1 1129b30)
Nesse sentido Alexandre Travessoni Gomes em sua obra O fundamento da
validade do direito Kant e Kelsen conclui
A justiccedila soacute eacute possiacutevel numa relaccedilatildeo com o outro Aristoacuteteles chega mesmo a afirmar que dentre as virtudes somente a justiccedila eacute o bem do outro Tanto no sentido universal quanto no particular natildeo haacute justiccedila de um indiviacuteduo consigo mesmo visto que a justiccedila e a virtude que se relaciona com o nosso proacuteximo seja ele governante ou associado[]
Soacute haacute ato justo ou injusto uma vez que algueacutem o queira O que eacute justo ou injusto eacute caracterizado pela lei mas o ato justo ou injusto pressupotildee a vontade O ato injusto eacute portanto o ato voluntaacuterio em que se conhece tanto a pessoa a quem atine quanto o ato como instrumento de justiccedila ou injusticcedila (GOMES 2004 p 61)
Destarte eacute ato justo ou injusto eacute o ato possiacutevel voluntaacuterio e direcionado ao
semelhante
51 Justo e injusto
69
O livro V da Eacutetica a Nicocircmaco trata sobre a justiccedila De acordo com o estilo
de oposiccedilatildeo frequentemente empregado pelo Estagirita a noccedilatildeo de Justo eacute
contraposta agrave noccedilatildeo do injusto
Podemos sintetizar a anaacutelise inserta na passagem 1129b1-10 nos seguintes
termos O injusto eacute de duas espeacutecies injusto legal e injusto desigual
O injusto legal eacute aquele que transgride a lei em outras palavras aquele que
age orientado pela ilegalidade
O injusto desigual por sua vez eacute aquele que toma mais do que lhe eacute devido
Aristoacuteteles eacute muito preciso nesse trecho ao indicar que o injusto desigual eacute tambeacutem
aquele que toma a menor parte das coisas indesejadas Ou seja tomar tanto
demasiado as coisas boas quanto menos as coisas maacutes55
A noccedilatildeo de justo toma parte na argumentaccedilatildeo expondo por oacutebvio que o
justo igual (ou equitativo) eacute aquele que toma a parte que lhe eacute devida
O justo legal por seu turno eacute aquele que age de acordo com as leis Nesse
sentido eacute importante destacar o caraacuteter das leis no pensamento de Aristoacuteteles As
leis satildeo produzidas pelos legisladores de acordo com as virtudes portanto elas
orientam as accedilotildees reiterando o haacutebito e consequentemente educando para a
virtude Esse eacute o fim da atividade poliacutetica A felicidade de cada um em particular e da
poacutelis como um todo
Nesse sentido o termo justo eacute aplicado agrave qualquer coisa que possa produzir
e preservar a felicidade ou as partes componentes da felicidade da comunidade
poliacutetica
Aristoacuteteles destaca que existe uma relaccedilatildeo de gecircnero e espeacutecie entre o justo
legal e o justo igual sendo o justo legal o gecircnero da qual o justo igual eacute espeacutecie A
conclusatildeo eacute a seguinte Eacute possiacutevel ser injusto legal sem ser injusto igual mas natildeo eacute
possiacutevel ser injusto igual sem ser injusto legal
52 Justo universal
55
Parte-se do pressuposto de que as pessoas desejam as coisas boas
70
O justo universal eacute o gecircnero o sentido mais amplo que se pode atribuir ao
termo justo Pode-se dizer que a justiccedila universal consiste na observacircncia da lei no
que diz respeito agravequilo que eacute legiacutetimo e que vige para o bem da comunidade
Assim a define HOumlFF (2003)
A justiccedila como virtude completa denominada justiccedila universal (iustitia universalis) por Santo Tomaacutes de Aquino significa para Aristoacuteteles com vistas ao outro a virtude perfeita ainda mais reluzente do que a estrela vespertina e matutina Consiste na atitude de cumprir voluntariamente tudo o que a lei e os costumes exigem A justiccedila universal denota uma integridade abrangente Dela fazem parte eg tambeacutem as obras da coragem e da prudecircncia a que Aristoacuteteles no entanto alude modestamente apenas com interdiccedilotildees a coragem proiacutebe cometer adulteacuterio e tornar-se violento (HOumlFF 2003 p 24 e 25)
Eduardo Bittar (2005) observa que
A accedilatildeo que se vincula agrave legalidade obedece a uma norma que a todos e para o bem de todos eacute dirigida como tal essa accedilatildeo deve corresponder a um justo legal e a forma de justiccedila que lhe eacute por consequumlecircncia eacute aqui chamada justiccedila legal Aquele que observa os conteuacutedos legais pode ser chamado de justo nesse sentido O mesmo a contrariu sensu a respeito do injusto que lhe corresponde (BITTAR 2005 p 96)
Outro ponto que parece importante nas observaccedilotildees de Eduardo C Bittar eacute
acerca da funccedilatildeo do legislador de acordo com ele a produccedilatildeo normativa da poacutelis eacute
um exerciacutecio da prudecircncia Eacute o mesmo que encontramos na passagem 1141b25
Nessa passagem Aristoacuteteles divide a prudecircncia em duas espeacutecies uma relativa agraves
coisas particulares que recebe o nome de ciecircncia poliacutetica e outra relativa agraves coisas
concernentes ao Estado que nomina ciecircncia legislativa
[] pois as accedilotildees que nascem da virtude em geral satildeo fundamentalmente idecircnticas agraves accedilotildees que estatildeo de acordo com a lei uma vez que a lei prescreve a conduta que exibe as vaacuterias virtudes particulares e proiacutebe a conduta que exibe os vaacuterios viacutecios particulares
71
Igualmente as regras estabelecidas para a educaccedilatildeo particulares (EN V 2 1130b20-25)
A conclusatildeo eacute que a injusticcedila no sentido universal tange todas as coisas que
constituem a esfera da virtude ou seja que as leis prescrevem os comportamentos
virtuosos Mas eacute possiacutevel afirmar que existe algum ato que seja injusto e que natildeo
obstante esteja em conformidade com a virtude Por certo que natildeo Apenas o fato
de um ato ser injusto por si mesmo constitui uma violaccedilatildeo agrave virtude Pois ldquoNa
Justiccedila se encontra toda a Virtude somadardquo (1129b30)56 e por isso a Justiccedila eacute a
virtude perfeita
53 Justo particular
Natildeo obstante a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos ser injustos sem nos afastar
da esfera da virtude Aristoacuteteles nos apresenta uma particcedilatildeo particularizada quanto
em relaccedilatildeo ao injusto no sentido universal
Enquanto uma parte a mais abrangente (injusticcedila universal) versa sobre a
transgressatildeo das normas a outra diz respeito particularmente agrave injusticcedila que visa o
lucro e a injusticcedila movida pelo desejo A essas duas uacuteltimas injusticcedilas ele daacute o
sentido de particular
A que visa o lucro estaacute claro que diz respeito a accedilatildeo de tomar mais do que
lhe eacute devido ela se comporta de um modo bem peculiar por que natildeo viola outra
virtude que natildeo seja a proacutepria Justiccedila A que eacute movida pelo desejo eacute descrita pelo
comportamento desregrado e natildeo por tomar mais do que lhe eacute devido
Tais manifestaccedilotildees particulares satildeo divididas em duas importantes classes
para a teoria da justiccedila aristoteacutelica a saber a justiccedila distributiva e a justiccedila corretiva
531 Justiccedila distributiva
56
De acordo com nota de nuacutemero 123 do tradutor essa maacutexima eacute atribuiacuteda a Teoacutegnis
72
A justiccedila distributiva diz respeito agrave distribuiccedilatildeo proporcional ao meacuterito de
cada pessoa de bens honra riqueza e demais ativos divisiacuteveis da comunidade
Desta forma considera o justo como o igual e o injusto como o desigual admitindo a
igualdade como uma mediania o que pressupotildee ao menos dois termos
Dado o acima podemos admitir que a justiccedila pressupotildee pelo menos quatro
termos sendo que dois deles referem-se agraves medidas e ou outros dois aos indiviacuteduos
a que agraves medidas predicam
A formulaccedilatildeo de Aristoacuteteles acerca da justiccedila distributiva eacute a conjunccedilatildeo do
primeiro termo de uma proporccedilatildeo com o terceiro e do segundo com o quarto e o
justo nesse sentido eacute uma mediania entre os extremos que satildeo desproporcionais
uma vez que a proporccedilatildeo eacute uma mediania e o justo eacute o proporcional (EN V 3
1131b10)
Eacute isso que os matemaacuteticos chamam de proporccedilatildeo geomeacutetrica aquela na
qual soma do primeiro e terceiro termos apresentaraacute a mesma relaccedilatildeo com a soma
do segundo e quarto A observaccedilatildeo que segue eacute a seguinte A justiccedila distributiva
natildeo eacute uma proporccedilatildeo contiacutenua pois seus segundo e terceiro termos um indiviacuteduo e
uma porccedilatildeo natildeo constituem um termo singular (EN V 3 1131a15)
Assim o justo eacute o proporcional e o injusto o que transgride a proporccedilatildeo O
injusto pode assim incorrer no excesso ou na deficiecircncia Isso [] porque um mal
menor comparado a um maior eacute tido como um bem porquanto o menor de dois
males eacute desejaacutevel do que o maior entretanto o que eacute [efetivamente] desejaacutevel eacute
bom e quanto mais desejaacutevel for maior o bem seraacute (EN V 3 1131a20)
532 Justiccedila corretiva
A justiccedila corretiva estaacute direcionada com as relaccedilotildees de acircmbito privado Esta
ao contraacuterio da distributiva natildeo eacute guiada pela proporccedilatildeo geomeacutetrica e sim pela
aritmeacutetica Aqui a lei leva em conta apenas a natureza do dano pois considera as
73
partes iguais seu objeto eacute identificar o sujeito que causou o dano e a quem o dano
fora causado
Elas satildeo distribuiacutedas em duas categorias voluntaacuterias e involuntaacuterias As
voluntaacuterias satildeo aquelas decorrentes da accedilatildeo volitiva entre os sujeitos O exemplo
mais utilizado para ilustrar eacute o de uma relaccedilatildeo de compra e venda
Aristoacuteteles traz para a relaccedilatildeo entre os particulares o problema que contorna
a teoria da justiccedila que eacute dar a cada um o que lhe cabe Dessa forma utiliza dos
termos ldquoperdardquo e ldquoganhordquo para as operaccedilotildees de permuta voluntaacuteria ldquoNesse contexto
ter mais do que lhe cabe eacute chamado de ganho e ter menos do que se tinha no iniacutecio
eacute chamado de perda como por exemplo comprar e vender e todas as transaccedilotildees
que recebem a imunidade da leirdquo (EN V 3 1132a15)
A justiccedila corretiva no sentido involuntaacuterio diz respeito a accedilatildeo decorrente da
vontade de apenas um dos sujeitos O Estagirita divide as do tipo involuntaacuterio em
duas espeacutecies sendo elas furtivas e violentas Ele as explica dando os seguintes
exemplos As furtivas deteacutem o furto o adulteacuterio o envenenamento a prostituiccedilatildeo a
seduccedilatildeo ou incitaccedilatildeo de escravos o assassinato agrave traiccedilatildeo o falso testemunho
Quanto agraves violentas deteacutem o assalto o aprisionamento o crime de morte o roubo
mediante violecircncia a mutilaccedilatildeo a linguagem abusiva o insulto
54 Justo domeacutestico
No trecho 1134 da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles apresenta mais duas
acepccedilotildees de justiccedila A justiccedila poliacutetica e a justiccedila domeacutestica Se avanccedilarmos mais
uma vez no texto e adentrarmos na temaacutetica prudecircncia vamos encontrar duas
figuras ou uma figura com duas caracteriacutesticas semelhantes agrave essas formas de
justiccedila Estamos referindo agrave figura do prudente como bom administrador domeacutestico
e ou bom administrador poliacutetico Proacutexima a essa mesma passagem do livro VI
encontramos uma nova referecircncia que diz respeito agrave duas manifestaccedilotildees
especiacuteficas da prudecircncia uma relativa ao Estado e outra relativa aos particulares Agrave
prudecircncia que concerne agraves coisas proacuteprias ao Estado Aristoacuteteles chama de Ciecircncia
74
Legislativa Agrave prudecircncia que concerne agraves coisas proacuteprias aos particulares ele chama
de Ciecircncia Poliacutetica
A justiccedila domeacutestica eacute aquela compreendida pelas relaccedilotildees que se
estabelecem entre marido e mulher pai e filho e senhor e escravo A mulher o filho
menor e o escravo natildeo participam ativamente das decisotildees da poacutelis o que os
isentam do conceito de justo poliacutetico Apesar da mulher natildeo participar das decisotildees
da poacutelis ela participa das decisotildees do lar o que a diferencia do escravo e do filho
Contra estes uacuteltimos natildeo se pode dizer que o senhorpai possa cometer injusticcedila
uma vez que satildeo considerados como parte do senhorpai sendo que ningueacutem pode
cometer injusticcedila contra si mesmo (BITTAR 2005 p 107)
55 Justo poliacutetico
Como jaacute referimos a compreensatildeo de justiccedila necessariamente
compreende dois termos-sujeito Essa implicaccedilatildeo natildeo eacute meramente loacutegica ela eacute
consequecircncia da teleologia que permeia toda a eacutetica aristoteacutelica Entretanto o justo
poliacutetico em especial refere-se a um grupo de pessoas que possuem a qualidade de
cidadatildeo Isso se deve principalmente por ser um pressuposto da justiccedila poliacutetica a
qualidade de participante ativo dos processos deliberativos proacuteprios agrave poacutelis
Feitas essas observaccedilotildees preliminares podemos agora procurar conceituar
o que seja a justiccedila poliacutetica De acordo com Eduardo C B Bittar
O justo poliacutetico consiste na aplicaccedilatildeo da justiccedila na cidade na poacutelis ou seja trata-se de algo que pertine ao corpo ciacutevico Assim existente no meio social eacute a justiccedila eu organiza um modo de vida que tende agrave auto-suficiecircncia da vida comunitaacuteria (autaacuterkeian) vigente entre os homens que partilham de um espaccedilo comum dividindo atividades segundo a multiplicidade de aptidotildees e necessidades de cada qual formando uma comunidade que tem por fim a eudaimoniacutea e a plena realizaccedilatildeo das
potencialidades humanas (BITTAR 2005 p 106)
75
A definiccedilatildeo dada pelo Estagirita eacute a seguinte ldquoJusticcedila poliacutetica quer dizer
justiccedila entre as pessoas livres e (real ou proporcionalmente) iguais que vivem uma
vida comum com a finalidade de satisfazer suas necessidadesrdquo (1134a25) O que
parece dizer que soacute podem agir justa ou injustamente aqueles que satildeo considerados
cidadatildeos
Aristoacuteteles divide a justiccedila poliacutetica em duas partes sendo uma a justiccedila
natural e outra a justiccedila convencional Comecemos pela natural
551 Justiccedila natural
O Estagirita explica que a justiccedila natural eacute aquela que possui idecircntica
validade em todos os lugares e natildeo depende de nossa aceitaccedilatildeo ou natildeo aceitaccedilatildeo
ldquoO justo natural (diacutekaion phyacutesikon) eacute aquele eu por si proacuteprio por todas as
partes possui a mesma potecircncia (dyacutenamis) e que natildeo depende para sua existecircncia
de qualquer decisatildeo de qualquer ato de positividade de qualquer opiniatildeo ou
conceito O que eacute por natureza eacute tal qual eacute []rdquo (BITTAR 2005) Continua definindo
A justiccedila natural eacute parte da justiccedila poliacutetica que visa permitir a realizaccedilatildeo plena do ser humano inserido na estrutura social do conviacutevio Sendo naturalmente um ser poliacutetico (zwon politikoacuten) a plena realizaccedilatildeo do animal racional estaacute condicionada agrave proacutepria natureza que o engendra o eu equivale a dizer que agrave sociabilidade agrave politicidade agrave autoridade ao relacionamento agrave reciprocidade estaacute o homem intestinamente ligado Reger-se sob o signo de sua natureza para o homem significa estar sob o governo da razatildeo o que se traduz no acircmbito social como estar sob o governo das leis que satildeo ldquoa razatildeo sem paixatildeordquo (BITTAR 2005 p 109)
552 Justo legal (convencional)
Aristoacuteteles define a justiccedila legal como aquela que em primeira instacircncia
pode ser estabelecida de um modo ou outro Isso quer dizer que a justiccedila legal eacute
76
composta pelas disposiccedilotildees definidas de um ou outro modo pela vontade do
legislador
A lei possui forccedila natildeo natural mas fundada na convenccedilatildeo Tendo vaacuterias formas de se estabelecer determinado princiacutepio como conteuacutedo da lei a opccedilatildeo eacute feita pelo legislador passando assim aquilo que a priori era indiferente que fosse de tal ou de qual maneira a ser vinculado a todos os cidadatildeos que a ela se subordinam
Tambeacutem eacute a esse tipo de justiccedila que se agregam as medias legais de caraacuteter particular os decretos e as sentenccedilas As leis em sua maior
parte dirigem-se genericamente a um grupo de cidadatildeos [] Os
decretos as decisotildees emanadas do poder administrativo do governante assim como as sentenccedilas judiciais a aplicaccedilatildeo concreta da generalidade abstrata das disposiccedilotildees legais
57 estatildeo tambeacutem atreladas ao justo
legal como parte da justiccedila poliacutetica que se realiza na vida ciacutevica (BITTAR 2005 p 110)
Dessa forma e imediatamente o fundamento de validade da disposiccedilatildeo natildeo
estaacute na justiccedila natural e sim na convenccedilatildeo orientada pela vontade do legislador
Porque ldquo[] enquanto uma lei da natureza eacute imutaacutevel e tem a mesma validade em
todos os lugares como o fogo que queima na Peacutersia observa-se que as regras da
justiccedila variam (EN V 6 1134a30)
Werner Jaeger em sua Paideia exprime a importacircncia do justo legal para o
povo grego
Acontece o mesmo na Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Anota um nuacutemero muito maior de Aretai que Platatildeo mas ao falar da justiccedila distingue um duplo conceito desta virtude existe uma justiccedila em sentido estrito juriacutedico e outra num sentido mais geral que engloba a totalidade das normas morais e poliacuteticas Reconhecemos nesta uacuteltima sem dificuldade o conceito de justiccedila do antigo Estado constitucional helecircnico Aristoacuteteles invoca expressamente o verso acima referido que inclui na justiccedila todas as virtudes A lei regula pelos seus preceitos as relaccedilotildees dos cidadatildeos com os deuses do Estado com os outros concidadatildeos e com os inimigos da Paacutetria[]
Como suma da comunidade citadina a poacutelis oferece muito Em contrapartida pode exigir ao maacuteximo Impotildee-se aos indiviacuteduos de modo vigoroso e implacaacutevel e neles imprime seu caraacuteter Eacute fonte de todas normas de vida vaacutelidas para os indiviacuteduos O valor do homem e de sua conduta mede-se exclusivamente pelo bem ou pelo mal que acarretam agrave cidade (JAEGER 1995 139-142 negrito nosso)
57
Sobre a aplicaccedilatildeo da lei geral ao caso concreto vide o capiacutetulo 5 A equidade
77
Em sua Retoacuterica Aristoacuteteles define e diferencia invocando a trageacutedia
Antiacutegona
Quando falo de dois tipos de direito ou lei refiro-me agrave lei particular e agrave lei comum A primeira varia segundo cada povo sendo parcialmente escrita a lei comum eacute a lei natural visto que haacute de fato uma justiccedila e uma injusticcedila das quais todos tecircm de alguma maneira a intuiccedilatildeo e que satildeo naturalmente comuns a todos independentemente de todo Estado e de toda convenccedilatildeo reciacuteproca Eacute isso que Antiacutegona de Soacutefocles expressa com clareza ao declarar que o sepultamento de Polinices fora um ato justo a despeito da proibiccedilatildeo ela quer dizer que fora um ato justo por ser o direito natural
Natildeo eacute de hoje ou de ontem
Mas vive eternamente ningueacutem podendo indicar sua origem (Ret I 13
1373b1-15)
Vimos o justo natural como algo imutaacutevel e com regras aplicaacuteveis agraves
diversas localidades Tambeacutem revisitamos o conceito de justo legal estabelecendo
que seu criteacuterio de validade esteja na vontade uma vez que eacute fruto de convenccedilatildeo
Agora restam-nos compreender como aproximar os princiacutepios gerais as leis
abstratas das contingecircncias que imprime em noacutes a incerta condiccedilatildeo humana
78
6 A EQUIDADE
Tanto em sua Eacutetica a Nicocircmaco quanto em sua Retoacuterica Aristoacuteteles utiliza o
termo equidade58 epieikeia em dois sentidos Num sentido lato significa benignidade
e indulgecircncia No sentido stricto eacute a correccedilatildeo da lei
ldquoSer equitativo eacute mostrar indulgecircncia ante as fraquezas humanas eacute tambeacutem
levar em conta menos a lei do que o legislador considerar natildeo a letra da lei mas a
intenccedilatildeo do legisladorrdquo (Ret I 13 1374b10)
ldquoE [tambeacutem] daqui se pode concluir claramente quem eacute o homem equitativo
ele eacute algueacutem que por escolha e haacutebito faz o que eacute equitativo e que natildeo eacute inflexiacutevel
quanto aos seus direitos se contentando em receber uma porccedilatildeo menor mesmo que
tenha a lei do seu ladordquo (EN V 10 1138a)
Sobre o sentido lato Carlos Alberto Schiavo
Por outro lado alguns autores entendem que o uso que os gregos ndash Platatildeo inclusive ndash davam para a palavra epieikeia era em um sentido vulgar de benignidade e indulgecircncia ateacute mesmo porque quando querem atribuir agrave Platatildeo um espiacuterito de rigidez na aplicaccedilatildeo da lei em atenccedilatildeo agrave supremacia que o filoacutesofo assinalava do Estado sobre o indiviacuteduo em seus ensinamentos acerca do justo (SCHIAVO 2013 p 6-7 traduccedilatildeo nossa)
59
Assim o conceito de equidade pode ser compreendido como o exerciacutecio do
justo e do bem atraveacutes da benignidade e da indulgecircncia Aqui a comunidade se
beneficia uma vez que o equacircnime alcanccedile seu bem atraveacutes de deliberaccedilotildees que
natildeo pretendem prover apenas o acircmbito individual
58
Equidade eacute a traduccedilatildeo romacircnica de aequitas e natildeo do grego epieiacutekeia Para uma traduccedilatildeo direta do grego a correspondente em liacutengua portuguesa eacute epiqueia que de acordo com Aureacutelio Buarque de Holanda ldquoepiqueia SF 1 Interpretaccedilatildeo razoaacutevel de lei ou preceito 2 Fig Meio-termo moderaccedilatildeordquo Vide PINTO G A GONCcedilALVES A L GONCcedilALVEZ V D C O problema da traduccedilatildeo do termo fairness na obra de John Rawls Belo Horizonte Editora Puc Minas 2009 59
Por otra parte algunos autores entienden que el uso que los griegos -Platon inclusive- daban a la palabra epieikeia era en un sentido vulgar de benignidad e indulgencia aun cuando hay quienes atribuyen a Platon un espiacuteritu de rigidez en la aplicacioacuten de la ley en atencioacuten a la supremaciacutea que el filosofo le asignaba al Estado sobre el individuo y a su idea respecto de persuadir de como es por naturaleza lo justo (SCHIAVO p6-7 traduccedilatildeo nossa)
59
79
Sobre o sentido stricto Aristoacuteteles afirma que a natureza essencial do
equitativo eacute uma retificaccedilatildeo da lei onde a lei eacute lacunar em funccedilatildeo de sua
generalidade
Este sentido pretende conhecer o ponto de colisatildeo entre a norma em sua
generalidade e a fraacutegil condiccedilatildeo humana em sua singularidade Em outras palavras
neste sentido Aristoacuteteles nos diz que por ser a lei geral e abstrata instala-se uma
distacircncia entre ela e seu objeto uma vez que as relaccedilotildees humanas satildeo contingentes
e portanto de difiacutecil determinaccedilatildeo
Esta distacircncia dificulta a aplicaccedilatildeo da norma podendo por vezes causar
injusticcedila Para evitar a injusticcedila proveniente da aplicaccedilatildeo do justo legal eacute necessaacuterio
acomodar este uacuteltimo agrave realidade do mundo fatiacutedico essa acomodaccedilatildeo eacute a equidade
em seu sentido stricto
61 Justiccedila e equidade ambiguidade do tema
Aristoacuteteles ao tratar da equidade comeccedila fazendo uma exposiccedilatildeo sobre a
ambiguidade terminoloacutegica entre justiccedila e equidade e o justo e o equitativo De
acordo com Eduardo Bittar
[] o uso dos termos se aproxima tamanhamente que ora chamamos de eacutequa uma situaccedilatildeo de justiccedila ora de justa uma situaccedilatildeo eacutequa De fato todos reconhecem que os termos natildeo se equivalem perfeitamente e neste caso o uso de um pelo outro conduz a equiacutevocos notoacuterios de modo que sendo semelhantes poreacutem natildeo idecircnticos devem ser distinguidos naquilo que lhes peculiariza Eacute no gecircnero (eacuteteron tocirc geacutenei) que se dizem aproximados os conceitos de ambos os termos O uso ainda mais esta a indicar a relativa e frequumlente coincidecircncia dos campos semacircmticos de ambos os significantes pois verdadeiramente se satildeo diversos ou o justo natildeo eacute bom ou o eacutequo natildeo o eacute (BITTAR 2005 p163)
Os termos no Grego de Aristoacuteteles satildeo canonicamente traduzidos por equidade e equitativo satildeo epieikeia e epiekis respectivamente Ele usa-os com muita frequecircncia na Eacutetica a Nicocircmaco e muita vezes em sua Retoacuterica e sua Poliacutetica Como ele mesmo nota que usa os termos em dois sentidos De longe o significado mais comum e geral eacute de epieikeia como simplesmente excelecircncia ou bondade A Eacutetica a Nicocircmaco
80
aplica mais tipicamente neste sentido Em uma passagem Aristoacuteteles diz que do ponto de vista da Justiccedila na rectificaccedilatildeo eacute indiferente se um homem bom tem defraudado um mau homem ou vice-versa a palavra para bom eacute epieikeis contrastava com phaulos para o mal Em trecircs passagens no entanto Aristoacuteteles usa os termos para se referir a uma virtude especiacutefica comumente dito ser a virtude da equidade um tipo particular de excelecircncia Aristoacuteteles caracteriza em verdade epieikeia no sentido especiacutefico como um epanorthoma nomou hei elleipei dia de katholou uma correccedilatildeo da lei onde a lei estaacute aqueacutem por causa de sua universalidade Na Retoacuterica descreve a justa quanto ao Paraacute para gegrammenon nomon δικαιον II que a justiccedila que se encontra aleacutem a lei escrita (SHINER 1994 p 1247 traduccedilatildeo nossa)
60
Ao tratar do assunto o Estagirita distingue a justiccedila e o justo pelas
quantificadoras universal e particular Quando aponta o sentido universal estaacute
referido agrave accedilatildeo como virtuosa ou natildeo Quando aponta o sentido particular diz que
estaacute relacionada ao prazer do ganho Eis a distinccedilatildeo ldquoEntretanto enquanto a
injusticcedila no sentido particular tange agrave honra ao dinheiro ou agrave seguranccedila ou seja laacute
qual for o termo que pudeacutessemos utilizar para englobar todas essas coisas seu
motivo sendo o prazer do ganho a injusticcedila no sentido universal tange a todas as
coisas que constituem a esfera da virtuderdquo (EN V 2 1130b1) Conclui na sequecircncia
que em sentido universal o justo eacute legal e em sentido particular o justo eacute igual ou
equitativo
O exame da natureza da equidade e do equitativo se daacute em sentido anaacutelogo
pois ldquo[] (nem tudo que eacute ilegal eacute natildeo equitativo ao passo que tudo que eacute natildeo
equitativo eacute ilegal) assim tambeacutem o injusto e a injusticcedila no sentido particular satildeo o
mesmo que o injusto e a injusticcedila no sentido universal mas destes distintos e a eles
relacionados como a parte do todordquo (EN V 2 1130b10)
60 The terms in Aristotles Greek standardly translated equity and equitable are epieikeia and
epiekis respectively He uses them frequently throughout the Nicomachean Ethics and often in the Rhetoric and Politics too As he himself notes he uses the terms in two senses By far the most common meaning is the general one-epieikeia means simply excellence or goodness The Nicomachean Ethics illustrates typically this sense In one passage Aristotle says that from the point of view of justice in rectification it is indifferent whether a good man has defrauded a bad man or vice versa the word for good is epieikeis contrasted with phaulos for bad In three passages however Aristotle uses the terms to refer to a specific virtue commonly said to be the virtue of equity a particular kind of excellence Aristotle pithily characterizes epieikeia in the specific sense as an epanorthoma nomou hei elleipei dia to katholou a correction of law where law falls short because of its universality The Rhetoric describes the equitable as to para to gegrammenon nomon dikaionII that justice which lies beyond the written law (SHINER 1994 p 1247 traduccedilatildeo nossa)
81
Justo eacute um adjetivo que se predica em uma determinada pessoa comportamento ou situaccedilatildeo atraveacutes da atribuiccedilatildeo a todas essas coisas da capacidade de justiccedila abstrata E assim o justo consiste em realizar o objeto principal da justiccedila a concretizaccedilatildeo da justiccedila ao niacutevel do caso concreto tem em primeiro plano de referecircncia o justo legal e na epikeia a concretizaccedilatildeo do justo em respeito a um comportamento que eacute completamente determinado que resulte excepcional frente ao primeiro plano de referecircncia E por justiccedila entendia o Estagirita Esti de dikaiosunh men areth di hv ta autwn ekastoi exousi kai wz o nomo z adikia de di hn ta allotpia oux wz o nomoz 61 58 en tanto los romanos la definiacutean como ldquoConstans er perpetua voluntas jus summ cuique tribuendi
62rdquo
o bien Est autem a iustitia appellantum nam ut eleganter Celsus definit ius est ars boni et aequi
63 (SCHIAVO 2013 p3)
64
Quanto agrave equidade e ao equitativo Aristoacuteteles retoma o assunto no capiacutetulo
10 do Livro V da Eacutetica a Nicocircmaco De acordo com ele a equidade e o equitativo se
relacionam com a justiccedila e com o justo respectivamente pois quando examinadas
afigura-se que justiccedila e equidade natildeo satildeo nem absolutamente idecircnticas nem
genericamente diferentes
Aqui uma nova referecircncia ao duplo sentido do termo equidade65 uma de
uso popular e outra de emprego teacutecnico Vejamos
Por vezes eacute verdade que louvamos a equidade e o homem equitativo a tal ponto que chegamos a empregar a palavra equitativo como um termo
61
Ret I 9 1367a 5-7 ldquoaquilo que fazemos por nossos benfeitores por forccedila da justiccedila disto e os serviccedilos prestados em geral pois o proveito que deles se extrai natildeo se dirige ao seu agenterdquo (ARISTOacuteTELES 2011 p 83 traduccedilatildeo Edson Bini) 62
Constante e perpeacutetua vontade de cumprir os deveres (traduccedilatildeo nossa) 63
E eacute chamada assim de justiccedila pela elegante definiccedilatildeo de Celso eacute a arte do bom e do equitativo (traduccedilatildeo nossa) 64
Justo es un adjetivo que se predica en concreto de una persona de una conducta o de una situacioacuten por el que se asigna a todas estas cosas la capacidad abstracta de justicia Y en tanto lo justo consiste en realizar el bien comuacuten como objeto principal de la justicia la concrecioacuten de la justicia a nivel del caso o del conflicto tiene un primer plano de referencia en la justicia legal y en la epiqueya la concrecioacuten de lo justo respecto de una conducta completamente determinada que resulta excepcional frente aquel primer plano de referencia Y por justicia el Estagirita entendiacutea Esti de dikaiosunh men areth di hv ta autwn ekastoi exousi kai wz o nomo z adikia de di hn ta allotpia oux wz o nomoz en tanto los romanos la definiacutean como ldquoConstans er perpetua voluntas jus summ cuique
tribuendi rdquo o bien Est autem a iustitia appellantum nam ut eleganter Celsus definit ius est ars boni et aequi (SCHIAVO 2013 p3) 65
Ao que tratamos no iniacutecio deste capiacutetulo
82
de aprovaccedilatildeo de outras coisas aleacutem do que eacute justo e a empregamos como equivalente de bom querendo dizer com mais equitativo meramente uma coisa eacute melhor Em outras oportunidades todavia quando submetemos a palavra efetivamente ao crivo da razatildeo nos parece estranho que o equitativo devesse ser louvaacutevel uma vez ser ele algo distinto do justo (ENV 10 1137b1)
Aristoacuteteles instala entatildeo certa dificuldade que nos parece proveniente da
loacutegica De acordo com ele ldquoSe satildeo diferentes [um deles] o justo ou o equitativo natildeo
eacute bom se ambos satildeo bons satildeo a mesma coisardquo (ENV 10 1137b1)
A soluccedilatildeo dada eacute que a equidade natildeo eacute diferente da justiccedila como um todo
mas diferente de uma parte dela a justiccedila legal Natildeo bastasse diferente Aristoacuteteles
ainda afirma ser a equidade superior uma vez que a equidade eacute a retificaccedilatildeo da
justiccedila legal
62 Justiccedila como equidade66
Talvez uma dificuldade na compreensatildeo da equidade aristoteacutelica esteja
associada a uma terceira concepccedilatildeo vigente em sua Eacutetica Tal concepccedilatildeo foi fruto
da investigaccedilatildeo tomista e permeia a ideia de equidade se sobrepondo por vezes agraves
duas primeiras concepccedilotildees apresentadas quais sejam a lato e a stricto
A questatildeo estaacute mais uma vez na proacutepria terminologia Sem precisar das
origens etimoloacutegicas da palavra justiccedila e da palavra equidade podemos estabelecer
um padratildeo como constante em ambos os conceitos
A palavra justiccedila nos remete agrave justeza agravequilo que estaacute conformado ou em
conformidade justificado assentado ajustado etc A palavra equidade por sua
vez nos remete agrave equalizado equiparado razoado etc
Numa primeira acepccedilatildeo a palavra equumlidade significa etimologicamente retidatildeo e justiccedila Numa segunda acepccedilatildeo poreacutem corresponde a
66
Aqui natildeo fazemos referecircncia a obra Justice as fairness do filoacutesofo John Rawls Sobre este assunto vide PINTO G A GONCcedilALVES A L GONCcedilALVEZ V D C O problema da traduccedilatildeo do termo fairness na obra de John Rawls Belo Horizonte Editora Puc Minas 2009
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moderaccedilatildeo correccedilatildeo benignidade piedade coincidindo nesse sentido com a ideacuteia aristoteacutelica de epikeya que eacute o conveniente ou o que se ajusta ou melhor norma que se adapta a uma determinada relaccedilatildeo por corresponder agrave natureza essencial desta A equumlidade complementa a justiccedila corrigindo a lei pelas caracteriacutesticas concretas e muitas vezes imprevistas que as realizadas sociais apresentam e que natildeo satildeo passiacuteveis de enquadramento nos ditamentes da justiccedila geral A lei como natildeo pode deixar de ser regula as relaccedilotildees humanas de caraacuteter juriacutedico sob um acircngulo de todo geral e abstrato A equumlidade ao contraacuterio por sua proacutepria natureza visa a corrigir a lei quando esta como anota Aristoacuteteles se demonstra incompleta para abarcar o caso especial e concreto que foge agrave aplicaccedilatildeo geneacuterica (PAUPEacuteRIO 2003 p 67)
Parece que ambos os termos remetem a uma adaptaccedilatildeo que tem por fim
tornar igual ou ao menos fazer com que a medida estabelecida conheccedila seu objeto
Neste sentido instalador da ambiguidade eacute que muitos autores fazem
referecircncia agrave equidade como sendo a proacutepria justiccedila natural ou ao menos a parte
dela que nos toca
[] o termo ldquoequumlidaderdquo natildeo eacute uniacutevoco pois natildeo se aplica a uma soacute realidade nem tampouco equiacutevoco jaacute que natildeo designa duas ou mais realidades desconexas mas sim anaacutelogo pois se refere a realidades conexas ou relacionadas entre si
De maneira que a ldquoequumlidaderdquo tem sido de certa forma entendida como um direito natural em suas vaacuterias concepccedilotildees (DINIZ 242)
Palpeacuterio destaca que ldquoNo fundo como anotam alguns autores a equumlidade eacute
o proacuteprio direito natural natildeo propriamente em seus princiacutepios mas em sua
aplicaccedilatildeo e acomodaccedilatildeo aos casos concretosrdquo67 (PALPEacuteRIO p 69)
De acordoacute com Recasegraves Siches ldquola equidad es la expresioacuten de lo justo
natural en relacioacuten com el caso concreto Es decir la equidad es lo justo pero no lo
67
Na sequencia podemos encontrar o Autor dizendo que a justiccedila se difere da equidade contudo parece-nos que o conceito de justiccedila trabalhado neste ponto eacute o conceito de justo poliacutetico natildeo alcanccedilando a latitude aparente do texto que por referir apenas agrave justiccedila poderia nos sugerir seu sentido amplo vejamos ldquoNatildeo se confundindo com a clemecircncia que segundo Secircneca eacute a moderaccedilatildeo do acircnimo no poder de castigar a equumlidade distingue-se da proacutepria justiccedila porque enquanto esta corresponde agrave aspiraccedilatildeo do legislador aquela corresponde agrave do juizrdquo (p 69)
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justo legal tal y como se desprenderiacutea de latildes palabras de la ley sino lo
auteacutenticamente justo respecto del caso particularrdquo (SICHES 2008 p 656)
Portanto tanto a justiccedila quanto a equidade parecem procurar acomodar a
medida constante das regras gerais e abstratas agraves realidades inconstantes em suas
singularidades e concretude Tal acomodaccedilatildeo procura estabelecer ou reestabelecer
certo paracircmetro de igualdade que nos parece aspiraccedilatildeo natural agrave justiccedila grega
621 Justiccedila e igualdade
A noccedilatildeo de justiccedila estaacute intimamente relacionada com a noccedilatildeo de
igualdade68 Da mesma forma em que a injusticcedila estaacute relacionada com a noccedilatildeo de
desigualdade Nuno Manoel M dos S Coelho em seu verbete Igualdade explica
que o desenvolvimento do ldquoconceito juriacutedico-filosoacutefico de igualdade no centro da
concepccedilatildeo de justiccedila como virtude diante do outro eu reconheccedilo como igual na
medida em que natildeo posso reivindicar tudo para mim mas devo dar a cada um o
seurdquo (COELHO 2011 p 215)
A igualdade eacute elemento essencial e baacutesico ldquoA justiccedila eacute uma igualdade e a injusticcedila uma desigualdaderdquo afirmou Aristoacuteteles ldquoA essecircncia da justiccedila eacute a igualdaderdquo acrescenta S Tomaacutes E mestre em tirar das palavras o que elas encerram mostra que a noccedilatildeo de igualdade estaacute contida no proacuteprio nome dessa virtude pois das coisas que estatildeo adequadas ou igualadas dizemos comumente que estatildeo ldquoajustadasrdquo (MONTORO 2009 p 170)
68
Podemos observar que a preocupaccedilatildeo com a igualdade e a tensatildeo existente entre igualdade material e igualdade formal aparece ateacute mesmo no contexto positivista como um problema a ser resolvido Tambeacutem daqui resulta que eacute errado considerar a regra que manda tratar os que satildeo iguais de forma igual como aplicaccedilatildeo do princiacutepio de justiccedila da igualdade A uacutenica norma que pode valer como princiacutepio de justiccedila da igualdade eacute a norma segundo a qual todos os homens devem ser igualmente tratados segundo a qual nenhuma das desigualdades que efetivamente existem entre eles deve ser tomada em consideraccedilatildeo (KELSEN 1998 p 55-56) Podemos ainda encontra tal preocupaccedilatildeo no liberalismo de pensadores como John Rawls vide Uma teoria da Justiccedila (2008)
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A justiccedila em Aristoacuteteles faz necessaacuteria referecircncia agrave igualdade em seu
sentido material Tanto o eacute que a medida enquanto referecircncia da mediania eacute o
fundamento de sua eacutetica
Sobre a justiccedila enquanto igualdade Andreacute Franco Montoro desdobra acerca
da foacutermula tomista Ratio justitiae in hoc consistit quod alteri reddatur quod ei
debentur secundum aequalitatem69
[] em sentido estrito e proacuteprio a justiccedila designa uma virtude com objeto especial Nesse sentido ldquoa essecircncia da justiccedila consiste em dar a outrem o que lhe eacute devido sendo uma igualdaderdquo (simples ou proporcional) conforme a definiccedilatildeo de S Tomaacutes Soacute eacute justiccedila propriamente dita a relaccedilatildeo que tem por objeto - dar a outrem - o que lhe eacute devido - segundo uma igualdade A essas trecircs notas correspondem agraves caracteriacutesticas essenciais da justiccedila em sentido estrito - a alteridade ou pluralidade de pessoas (alteras de alter) - o devido (debitum) - a igualdade (aequalitas) (MONTORO 2009 p 165 - 166)
Ainda de acordo com Montoro a igualdade eacute estabelecida atraveacutes de
criteacuterios quantitativos
Duas realidades satildeo idecircnticas quando tecircm a mesma essecircncia Semelhantes quando tecircm as mesmas qualidades Iguais quando tecircm a mesma quantidade ldquoidem est unum in substancia siacutemile unum in qualitate aequale vero unum in quantitaterdquo Um homem eacute ldquoidecircnticordquo apenas a si mesmo De duas pessoas que tecircm os mesmos traccedilos dizemos que satildeo ldquosemelhantesrdquo Vinte eacute igual a 10 mais 10
A igualdade eacute pois uma equivalecircncia de quantidades Na justiccedila de forma analoacutegica e adaptada agrave natureza moral das relaccedilotildees humanas e essa tambeacutem a significaccedilatildeo de igualdade
Com razatildeo observou Recaseacutens Siches na justiccedila natildeo se trata de estabelecer ldquoidentidaderdquo como seria o caso de entregar um objeto e receber o mesmo objeto Isso natildeo teria sentido Natildeo se trata tambeacutem de receber um objeto ldquosemelhanterdquo ou parecido Mas de estabelecer uma equivalecircncia ou ldquoigualdaderdquo (MONTORO 2009 p171)
69
A justa razatildeo consiste em dar ao outro o que lhe eacute devido de acordo com a igualdade (traduccedilatildeo nossa)
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Aristoacuteteles apresenta duas foacutermulas para que a igualdade seja alcanccedilada
uma ele denominou aritmeacutetica (conhecida como igualdade simples) e a outra
geomeacutetrica (conhecida como igualdade proporcional)
Desta forma a ldquoigualdade da justiccedila pode realizar-se de duas formas
distintasrdquo
a) igualdade simples ou absoluta eacute a equivalecircncia entre dois objetos que se verifica nas relaccedilotildees de troca o comprador de um objeto que vale 1000 dever efetuar um pagamento de igual valor (1000 = 1000) b) igualdade proporcional ou relativa eacute a que se realiza na distribuiccedilatildeo dos benefiacutecios e encargos entre os membros de uma comunidade se A que contribui com 50 recebe 5 B que contribui com 80 receberaacute 8 (550 = 880) Aristoacuteteles chamou a primeira igualdade ldquoaritmeacuteticardquo e a segunda ldquogeomeacutetricardquo Em qualquer caso a justiccedila procura realizar uma igualdade nas relaccedilotildees entre os homens Ou como diz Lachance na justiccedila devemos nos igualar ao proacuteximo por seu ato (MONTORO 2009 p 172)
A justiccedila portanto soacute pode ser compreendida a partir de seu princiacutepio de
igualdade Ainda sobre este ponto Aristoacuteteles apresenta dois importantes temas que
foram objeto de estudo dos itens 531 e 532 A justiccedila distributiva e a justiccedila
corretiva Natildeo obstante jaacute terem sido objeto de nosso estudo eacute necessaacuterio
revisitarmos tais conceitos em face da noccedilatildeo de igualdade
Assim pode-se dizer que haacute duas formas de justiccedila uma particular cujo
objeto eacute o bem particular e outra geral tambeacutem chamada legal ou social cujo objeto
eacute o bem comum A justiccedila particular realiza-se de duas formas justiccedila comutativa
quando um particular daacute a outro particular o bem que lhe eacute devido e justiccedila
distributiva quando a sociedade daacute a cada particular o bem que lhe eacute devido
Receber o devido e portanto natildeo tomar maior parcela dos bens desejados
e nem a menor parcela dos bens indesejados seja na relaccedilatildeo particular ou sobre
aquilo que eacute o bem comum parece-nos o criteacuterio da igualdade
63 Equidade melhor que um tipo de justiccedila
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De acordo com Aristoacuteteles a equidade eacute melhor que um tipo de justiccedila Ele
estaacute se referindo agrave justiccedila legal pois
[] a equidade embora superior a uma espeacutecie de justiccedila eacute ela mesma justa natildeo eacute superior agrave justiccedila ao ser genericamente distinta dela Justiccedila e equidade satildeo portanto a mesma coisa sendo ambas boas ainda que a equidade seja melhor
A origem da dificuldade eacute que ldquoa equidade embora justa natildeo eacute justiccedila legal poreacutem retificaccedilatildeo desta (EN V 10 1137b10)
O que Aristoacuteteles parece querer dizer eacute que a justiccedila em todas as suas
acepccedilotildees compreende a equidade como seu princiacutepio No entanto a acepccedilatildeo de
justiccedila legal em sua rigidez e generalidade pode objetivamente ferir o justo razatildeo
pela qual a equidade enquanto princiacutepio da justiccedila eacute melhor Afinal eacute ela que natildeo
permite que uma das espeacutecies de justiccedila aquela que eacute convencionada pelo homem
seja aplicada de forma a causar injusticcedila
Eduardo Bittar explica como Aristoacuteteles desconstitui a aparente
ambiguidade da temaacutetica
o eacutequo sendo melhor que uma forma de justo ndash e aqui se percebe nitidamente qual a estrita relaccedilatildeo entre o eacutequo e uma forma especiacutefica de justo o justo legal ndash natildeo deixa de ser justo poreacutem natildeo simplesmente pelo fato de constituir um gecircnero diferente representa algo a mais que o justo Em verdade satildeo a mesma coisa o justo e o eacutequo (tautograven aacutera diacutekaion kaigrave epieikegraves) de maneira que assim sendo o eacutequo eacute melhor e mais desejaacutevel que o justo Se eacutequo e justo se equivalem nesta medida e da forma indicada segundo o gecircnero natildeo eacute verdade que o eacutequo seja o justo segundo a lei (ou tograve katagrave noacutemon deacute) de acordo com o que estaacute consignado no corpo legislativo e foi posto pela vontade humana como vinculativo da conduta social mas sim um corretivo do justo legal (epanothoma nomiacutemou diacutekaion) (BITTAR 2005 p163)
Portanto a equidade corresponde ao justo presente na concepccedilatildeo de justiccedila
para Aristoacuteteles poreacutem eacute melhor que o justo legal por ser o princiacutepio corretor do
mesmo
64 Natureza essencial do equitativo a retificaccedilatildeo do justo legal
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O que encontramos no capiacutetulo 10 do Livro V da Eacutetica a Nicocircmaco satildeo duas
aplicaccedilotildees da equidade enquanto retificaccedilatildeo do justo legal A primeira que
examinaremos neste item 64 diz respeito ao rigor do justo legal e a segunda que
examinaremos no item 65 diz respeito agrave existecircncia de casos que o legislador natildeo
pode prever
Em verdade estas duas aplicaccedilotildees da equidade satildeo consequecircncia de uma
soacute coisa o caraacuteter geral da norma Se de um lado o rigor da norma que exige do
equacircnime a acomodaccedilatildeo do direito se daacute pela generalidade da norma de outro a
generalidade parece insuficiente para conhecer todos os casos o que oportuna o
surgimento das lacunas
641 A metaacutefora da reacutegua de chumbo
Aristoacuteteles para explicar melhor em que consiste a equidade ilustra sua
exposiccedilatildeo fazendo uma analogia das regras do direito com as reacuteguas empregadas
por pedreiros em lavras
Os construtores da ilha de Leacutesbos utilizavam em seus afazeres um
instrumento que chamou a atenccedilatildeo do Estagirita esse instrumento nada mais era do
que uma reacutegua feita de chumbo
A funccedilatildeo de tal reacutegua era manter a medida certa ainda que seu objeto
assumisse formas diversas Assim inobstante as irregularidades na forma das
pedras poderia graccedilas agrave maleabilidade da reacutegua ajustaacute-la ao objeto apurando
assim a medida certa
Com efeito essa eacute a razatildeo porque natildeo satildeo todas as coisas determinadas pela lei pelo fato de haver alguns casos [e situaccedilotildees] em relaccedilatildeo aos quais eacute impossiacutevel estabelecer uma lei eacute necessaacuteria a existecircncia de um decreto especial pois aquilo que eacute ele proacuteprio indefinido soacute pode ser medido por um padratildeo indefinido como a reacutegua pluacutembea usada pelos construtores de Lesbos tal como essa reacutegua natildeo eacute riacutegida podendo ser flexibilizada ao formato da pedra um decreto
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especial eacute feito para se ajustar agraves circunstacircncias do caso (EN V 10 1137b30)
Desprende-se do texto que a medida que eacute ali buscada ldquo[] se assemelha
agraves diversas situaccedilotildees que se encadeiam na etapa de aplicaccedilatildeo da norma juriacutedica
mormente a interpretaccedilatildeo do fato e do comando legal que o atinge em foco de
incidecircncia Assim se veria a norma geral como medida e a situaccedilatildeo da vida erigida
em controveacutersia como a pedrardquo (LOPES 1993 p 46)
O conceito de equidade muito bem explicado pela metaacutefora da reacutegua de
chumbo na passagem 1137b30 da Eacutetica a Nicocircmaco segundo Javier Hervada
(2008) ldquoabranda o dever e acomoda o direitordquo (HERVADA 2008 p 171) ldquoO
equumlitativo soacute se daacute quando a reacutegua consegue captar todas as microscoacutepicas
reentracircncias do cenaacuterio multiforme que lhe cabe medirrdquo (LOPES 2007 p 77)
A lei eacute considerada aqui como um sumaacuterio de decisotildees saacutebias Eacute por conseguinte apropriado complementaacute-la com novas decisotildees saacutebias tomadas na situaccedilatildeo presente e eacute tambeacutem apropriado corrigi-la nos pontos em que natildeo resume corretamente o que um bom juiz faria O bom juiacutezo mais uma vez proporciona tanto uma concretude superior como uma superior sensibilidade ou flexibilidade
A exigecircncia de flexibilidade tatildeo importante para o nosso entendimento da concepccedilatildeo aristoteacutelica natildeo cientiacutefica de escolha eacute descrita pois em uma viacutevida metaacutefora Aristoacuteteles nos diz que uma pessoa que tenta tomar todas as decisotildees recorrendo a algum princiacutepio geral antecedente sustentando como firme e inflexiacutevel para a ocasiatildeo eacute como um arquiteto que procura usar uma reacutegua reta sobre as curvas intricadas de uma coluna canelada O bom arquiteto ao contraacuterio mediraacute como fazem os construtores de Lesbos com um tira flexiacutevel de metal que ldquose inclina arqueada para ajustar-se agrave forma da rocha que eacute natildeo eacute fixardquo (1137b30-2) A boa deliberaccedilatildeo tal como essa regra se acomoda ao que encontra de maneira sensiacutevel e com respeito pela complexidade Natildeo assume que a forma da regra governa as aparecircncias permite que as aparecircncias governem a si mesmas e sejam normativas para a correccedilatildeo da regra (NUSSBAUM 2009 p 263)
Portanto a metaacutefora revela uma equidade que eacute em si uma regra mas uma
regra cuja forma eacute capaz de moldar-se agraves nuanccedilas proacuteprias da mateacuteria
642 A retificaccedilatildeo do justo legal
90
Aristoacuteteles define equidade70 como sendo a retificaccedilatildeo do justo legal A lei
natildeo por um erro da parte do legislador mas pela sua proacutepria generalidade pode
criar se aplicada de modo inflexiacutevel agrave multiplicidade dos casos singulares
especiacuteficos o efeito oposto para o qual foi originalmente estabelecida Ou seja
sendo ldquoinfinita a mateacuteria sobre a qual se deve legislar e sendo necessaacuterio apesar
de tudo estabelecer leis eacute forccediloso falar em geralrdquo (Ret I 13 1374a30) A equidade
seraacute o mecanismo que coloca nas matildeos do aacuterbitro discricionariedade suficiente para
aplicar a norma de modo a natildeo causar uma injusticcedila por meio do proacuteprio justo legal
A necessidade da aplicaccedilatildeo da equumlidade decorre do fato de que as leis dizem genericamente e para todos sem diferenciar todas as nuanccedilas que possam existir na esfera dos fenocircmenos de modo que surgem casos para os quais se aplicada a lei (noacutemos) em sua generalidade (kathoacutelou) estar-se-aacute a causar uma injusticcedila por meio do proacuteprio justo legal Exatamente para superar os problemas decorrentes da impossibilidade de haver uma legislaccedilatildeo minimamente detalhista e futurista eacute que existe o eacutequo []
Se a lei eacute neste ponto e para estes fins falha isto natildeo se deve nem ao conteuacutedo da lei em si nem ao legislador natildeo se trata de um erro legislativo mas sim de um problema oriundo da proacutepria peculiar conformaccedilatildeo das coisas como satildeo praticamente Cada caso eacute um caso e demanda uma atenccedilatildeo especial e especiacutefica absolutamente focalizada sobre os seus traccedilos e as suas caracteriacutesticas de modo que nenhuma legislaccedilatildeo poder-se-ia aplicar a esta dimensatildeo dos fatos (BITTAR 2005 p164 - 165)
A equidade aristoteacutelica eacute portanto ldquoa correccedilatildeo dos rigores da leirdquo (BITTAR
2002 p 116)
[hellip] no tocante aos erros legislativos e demais hipoacuteteses de produccedilatildeo de injusticcedila decorrente da generalidade no preceito legal aplicado agrave realidade faacutetica Aristoacuteteles aponta a utilizaccedilatildeo do recurso da epieacuteikeia ou seja da equidade forma de modelagem dos princiacutepios legais para serem aplicados a sujeitos concretos frente agrave problemaacutetica fenomecircnica a ser resolvida pelo juiz (dikasteacutes) (BITTAR 2003 p 1056-
1057)
70
No original ἐπιείκεια (epieiacutekeia)
91
Aristoacuteteles percebe como o perceberia Hans Kelsen dois milecircnios depois71
que na passagem de uma norma mais geral ndash a lei por exemplo ndash para uma norma
mais concreta ndash como a sentenccedila judicial ndash sempre restaraacute uma margem de escolha
que caberaacute agrave prudecircncia72 do inteacuterprete-aplicador preencher
Na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles problematiza a relaccedilatildeo entre a norma e o
caso concreto explicando que ldquoA origem da dificuldade eacute que a equidade embora
justa natildeo eacute justiccedila legal poreacutem a retificaccedilatildeo desta A razatildeo para isso eacute que a lei eacute
sempre geral entretanto haacute casos que natildeo satildeo abrangidos pelo texto geral da leirdquo
(EN V 1137b12) Nesse sentido a equidade seria a virtude destinada a solucionar
os casos em que a lei natildeo alcanccedila a concretizaccedilatildeo da justiccedila
Aristoacuteteles eacute o primeiro doutrinador das ciecircncias juriacutedicas Ele diz muito antes de Larenz ldquoCada regulamento legal ou do direito estaacute para o caso isolado na mesma relaccedilatildeo que o geral estaacute para o indiviacuteduordquo (1135a)
O que aqui eacute descoberto e expressado com autoridade loacutegica natildeo eacute menos que o princiacutepio fundamental da subsunccedilatildeo juriacutedica a imputaccedilatildeo do fato agrave lei escrita (ldquoao conceito legal do direitordquo 1135a)
Aristoacuteteles nos fornece aqui muito antes de Esser e Wiacker uma teoria das claacuteusulas gerais sejam elas inseridas de fora na lei como o Princiacutepio da Relaccedilatildeo (uso de medidas adequadas em relaccedilatildeo ao desejado fim) no Art 12 GG (Constituiccedilatildeo Alematilde) ou estejam elas jaacute consolidadas na lei como o Princiacutepio da boa-feacuterdquo no sect 242 BGB (pois sua positivaccedilatildeo eacute supeacuterflua o conteuacutedo normativo de tal paraacutegrafo eacute tatildeo pequeno o quatildeo grande eacute seu caraacuteter de advertecircncia) O princiacutepio geral vaacutelido da equumlidade []
Se tiveacutessemos percebido em tempo esta vaacutelida opiniatildeo de Aristoacuteteles entatildeo natildeo teria surgido de forma alguma nos nossos anos 60 a ilusatildeo de que toda aplicaccedilatildeo da lei pode ser formalizada e com isso computadorizada pois o computador pode ateacute realizar algo nas futuras ldquogeraccedilotildees inteligentesrdquo ou muito inteligentes mas nunca epieikeia Um pensador loacutegico eacute soacute entatildeo loacutegico quando conhece e reconhece os limites da loacutegica (ADOMEIT 2000 p138 - 140)
A liccedilatildeo de Teacutercio Sampaio Ferraz Jr evidencia a equidade enquanto
princiacutepio que estabelece razoaacutevel elo entre a norma e agrave especificidade da situaccedilatildeo
71
Veja-se a esse respeito o capiacutetulo VIII da Teoria pura do direito kelseniana 72
E eacute neste ponto que os neoaristoteacutelicos divergem de Kelsen uma vez que para este natildeo eacute necessariamente a prudecircncia mas juiacutezos poliacuteticos de conveniecircncia ndash fundados no poder e natildeo na razatildeo ndash que orientaratildeo a escolha do julgador Para uma anaacutelise mais aprofundada e criacutetica desse ponto veja-se Ferraz Juacutenior 1994 p 260-346 (Capiacutetulos 5 e 6)
92
Por uacuteltimo no conjunto da razatildeo juriacutedica costuma-se mencionar a equumlidade Aristoacuteteles eacute responsaacutevel por sua definiccedilatildeo como a justiccedila do caso concreto A soluccedilatildeo de litiacutegios por equumlidade eacute a que se obteacutem pela consideraccedilatildeo harmocircnica das circunstacircncias concretas do que pode resultar um ajuste da norma agrave especificidade da situaccedilatildeo a fim de que a soluccedilatildeo seja justa Pois como diziam os romanos summum jus summa injuria
73 Natildeo se trata de um princiacutepio que se oponha agrave justiccedila mas que a
completa a torna plena
Da mesma forma que os princiacutepios gerais a equumlidade tem no sistema dinacircmico funccedilatildeo metalinguumliacutestica Ela responde pela estrutura de concretizaccedilatildeo do direito Natildeo eacute fonte pois no mesmo sentido das demais (FERRAZ JUNIOR 2011 p 213)
Ferraz Junior em seu capiacutetulo sobre a Dogmaacutetica Hermenecircutica destaca ao
menos quatro desdobramentos possiacuteveis na integraccedilatildeo por equidade Satildeo eles
expandir uma obrigaccedilatildeo limitar o exerciacutecio de direitos criar regras para situaccedilotildees
que se alteram ou que natildeo foram previstas vejamos
[] Fala-se aqui no sentimento do justo concreto em harmonia com as circunstacircncias e adequado ao caso O juiacutezo por equumlidade na falta de norma positiva eacute o recurso a uma espeacutecie de intuiccedilatildeo no concreto das exigecircncias da justiccedila enquanto igualdade proporcional O inteacuterprete deve poreacutem sempre buscar uma racionalizaccedilatildeo dessa intuiccedilatildeo mediante uma analise das consideraccedilotildees praacuteticas dos efeitos presumiacuteveis das soluccedilotildees encontradas o que exige juiacutezos empiacutericos e de valor os quais aparecem fundidos na expressatildeo juiacutezo por equumlidade A equumlidade pode integrar o direito de diferentes modos Por exemplo por seu intermeacutedio podemos expandir uma obrigaccedilatildeo criando deveres adicionais para aleacutem dos que constam de um contrato ou decorrem expressamente de lei podemos ainda limitar o exerciacutecio de direitos para prevenir abusos podemos tambeacutem criar regras para situaccedilotildees que se alteram desde seu regulamento ou que nele natildeo foram previstas Em todo caso o juiacutezo equumlitativo de um lado apesar das consideraccedilotildees dos efeitos presumiacuteveis eacute sempre um juiacutezo jungido ao particular sem preocupaccedilotildees generalizantes Natildeo gera assim uma compulsatildeo para que outros casos semelhantes sejam interpretados e decididos do mesmo modo Por isso natildeo eacute propriamente fonte do direito mas meio de integraccedilatildeo De outro lado poreacutem pela consideraccedilatildeo dos efeitos presumiacuteveis tambeacutem natildeo aparece como arbitraacuterio mas sim representando o sentido que seja juriacutedico no contexto social em que se aplica (FERRAZ JUNIOR 2011 p 281 negrito nosso)
Interessante notar que Ferraz Junior aponta que essa proximidade do juiacutezo
ao particular natildeo eacute uma arbitrariedade mas uma representaccedilatildeo juriacutedica no contexto
em que determinada norma incide
73
Brocardo de Ciacutecero que quer dizer Supremo direito suprema injusticcedila (De Officiis I 10 33)
93
Enquanto a justiccedila eacute de ordem geral e natildeo se preocupa senatildeo com princiacutepios a equumlidade contrariamente perquire as circunstacircncias peculiares ao caso e submete a regra abstrata agraves razotildees derivadas da espeacutecie Em certos casos impotildee-se abandonar a letra da lei para acompanhar os ditames da razatildeo e da justiccedila Nisso se cifra a equumlidade que tempera e abranda o rigor legal Natildeo foi agrave-toa que se referiu Ciacutecero baseado em Terecircncio ao brocardo summum jus summa injuria que daacute ecircnfase agrave ideacuteia de que o rigor da aplicaccedilatildeo inflexiacutevel da lei pode muitas vezes quando natildeo abrandado pela equumlidade acarretar dureza demasiada ou mesmo extrema injusticcedila (PAUPEacuteRIO 2003 p68)
Cabe agora examinarmos a equidade como recurso dado por Aristoacuteteles
para os casos natildeo abarcados pela legislaccedilatildeo
65 Equidade e lacuna
A compreensatildeo do sentido stricto de equidade ou seja enquanto correccedilatildeo
do justo legal tem por pressuposto a generalidade da norma Natildeo obstante tal
generalidade existem casos que natildeo satildeo abrangidos pela lei Surge assim a
dificuldade cuja equidade mais uma vez eacute a soluccedilatildeo dada pelo Estagirita De acordo
com ele
A razatildeo para isso eacute que a lei eacute sempre geral entretanto haacute casos que natildeo satildeo abrangidos pelo texto geral da lei [ou por esta ou aquela regra legal geral] Em mateacuterias portanto nas quais embora seja necessaacuterio discursar em termos gerais natildeo eacute possiacutevel fazecirc-lo corretamente a lei toma em consideraccedilatildeo a maioria dos casos embora natildeo esteja insciente do erro que tal coisa acarreta (EN V 10 1137b12)
74
Natildeo obstante o legislador ter a generalidade como instrumento de ampliaccedilatildeo
de incidecircncia da norma esta natildeo eacute geral suficientemente para abarcar em
completude as indeterminaacuteveis possibilidades proacuteprias ao acircmbito particular
74
Conforme jaacute citado
94
Sobre lacunas adverte Kelsen
Como poreacutem o Direito vigente eacute sempre aplicaacutevel pois natildeo haacute ldquolacunasrdquo neste sentido esta foacutermula quando se penetre o seu caraacuteter fictiacutecio natildeo opera a pretendida limitaccedilatildeo do poder atribuiacutedo ao tribunal mas a auto-anulaccedilatildeo da mesma Se poreacutem o tribunal tambeacutem aceita a ideacuteia de que haacute lacunas no Direito entatildeo esta ficccedilatildeo teoreticamente inaceitaacutevel realiza o efeito pretendido Com efeito o juiz - e especialmente o juiz de carreira que estaacute sob o controle de um tribunal superior - que natildeo se sente facilmente inclinado a tomar sobre si a responsabilidade de uma criaccedilatildeo do Direito ex novo soacute muito excepcionalmente aceitaraacute a existecircncia de uma lacuna no Direito e por isso soacute raramente faraacute uso do poder que lhe eacute conferido de assumir o lugar do legislador (KELSEN 1999 p 185)
Aristoacuteteles esclarece que as lacunas podem existir pela vontade do
legislador ou contra a vontade deste
O problema legislativo que com maior frequumlecircncia ocorre eacute causado pela abstraccedilatildeo e universalidade do preceito legal De fato a lei escrita eacute um imperativo que se formula impessoalmente abarcando sob sua tutela a pluralidade de cidadatildeos aos quais se dirige e a multiplicidade de casos que surgem na vida concreta da poacutelis Lacunas aparecem em todo sistema legislativo escrito e estas podem existir por vontade do legislador de que existam ou mesmo contra a vontade deste Assim contra a sua vontade existiratildeo ldquoquando o fato lhe passa despercebidordquo e por vontade do legislador ldquoquando natildeo podendo precisar tudo eles tecircm de estatuir princiacutepios gerais que natildeo satildeo aplicaacuteveis sempre mas soacute as mais das vezes (Ret I 1375b)
Assim quando a lacuna existe pela vontade do legislador eacute porque o
mesmo percebendo que natildeo pode precisar toda mateacuteria ele estabelece um princiacutepio
geral que natildeo pode sempre ser aplicado agrave mateacuteria Por outro lado quando a lacuna
existe contra a vontade do legislador eacute porque o fato passou-lhe despercebido
Neste sentido a equidade possibilita ao juiz julgar ainda que natildeo conheccedila no
direito norma objetivamente correspondente de acordo com Machado Paupeacuterio []
ao juiz caberia em tais circunstacircncias reconhecer por equumlidade a exceccedilatildeo agrave
norma legal jaacute que se tivesse sido dado ao legislador prever a tal hipoacutetese ele
95
mesmo teria admitido que em tais condiccedilotildees devessem ser abertos os portotildees75
(2003 p 69)
De acordo com Aristoacuteteles
Essa eacute a razatildeo porque quando ocorrem disputas os indiviacuteduos recorrem a um juiz Dirigir-se a um juiz eacute dirigir-se agrave justiccedila pois o juiz ideal eacute por assim dizer a justiccedila personificada E tambeacutem os homens necessitam de um juiz para que este seja um elemento mediano pelo que efetivamente em alguns lugares ele eacute chamado de mediador pois pensam que se ele atinge a mediania atinge o que eacute justo Assim o justo eacute uma espeacutecie de mediania na medida em que o juiz eacute um meio (intermediaacuterio) entre os litigantes (EN V 4 1132a20)
Eacute importante destacar a observaccedilatildeo feita por Maria Helena Diniz em sua
obra Lacunas no Direito ela propotildee a existecircncia de certa dificuldade no emprego da
equidade
A equumlidade eacute teoricamente uma virtude de que deve lanccedilar matildeo o aplicador para temperar os rigores de uma foacutermula demasiado geneacuterica fazendo com que essa natildeo contrarie os reclamos da justiccedila Considera portanto a equumlidade como uma virtude informada pela justiccedila
Todavia Aristoacuteteles na praacutetica preconizava a absoluta submissatildeo do magistrado agrave lei porque entendia ser perigoso decidir por equumlidade no ambiente de corrupccedilatildeo que reinava nos Estados-cidades helecircnicos e nos tribunais corroiacutedos ateacute agrave medula pelas paixotildees poliacuteticas e pelas facccedilotildees Recomenda o mestre Estagira o juiacutezo arbitral para decisotildees de equumlidade (DINIZ 2002 p 242-243)
Essa uacuteltima observaccedilatildeo a que se refere agrave abstenccedilatildeo do emprego de juiacutezos
por equidade aparece na Retoacuterica ao que natildeo poderiacuteamos deixar de fazer
referecircncia ldquo[] preferimos uma arbitragem a um litiacutegio jaacute que o aacuterbitro leva em
conta a equidade ao passo que o juiz leva em conta a lei A arbitragem foi criada
com o propoacutesito expresso de garantir espaccedilo total para a equidaderdquo (Ret I 13
1374b20)
75
Paupeacuterio estaacute se referindo ao exemplo de Santo Tomaacutes sobre um vilarejo onde uma regra
determinasse que os portotildees permanecessem fechados durante a noite sendo que em determinada noite parte da populaccedilatildeo fosse acossada por inimigos e recorressem aos portotildees para se protegerem a questatildeo eacute deveria os guardas desobedecer a regra abrindo os portotildees com o escopo de proteger os habitantes
96
Na anaacutelise das condiccedilotildees que permitem a aplicaccedilatildeo da epiqueacuteia (III 15 e ss em especial 20) explicamos que uma delas devia ser ldquoextraordinaacuteriardquo De caso que a previsatildeo normativa deve ao seu tempo considerar o curso ordinaacuterio das coisas Pois quando nos permitimos expor uma questatildeo (ou nova condiccedilatildeo) do procedimento ldquoem regra epiqueacuteia eacute de aplicaccedilatildeo exceccedilatildeo e restritiva para os juiacutezesrdquo (SHIAVO 2013 p 27
traduccedilatildeo nossa)76
De acordo com HOumlFF (2003 p 68) ldquoVisto as regras de um modo geral
prejudicarem a justiccedila do caso individual poderiacuteamos querer abrir matildeo delas e
confiar integralmente na faculdade de juiacutezo de pessoas Mas leis satildeo melhores agrave
medida que diferentemente de pessoas satildeo de todo isentas de paixotildeesrdquo
Natildeo aparece em qualquer outra parte do texto referecircncia ao natildeo emprego
da equidade O Filoacutesofo por certo natildeo eacute da posiccedilatildeo de que os juiacutezos devem ser
concretizados pela abstenccedilatildeo legal Muito pelo contraacuterio o que vemos eacute que o justo
de modo geral eacute o justo legal afinal como jaacute esclarecido a lei promulgada da forma
correta representa o bem da comunidade A questatildeo eacute que como criteacuterio do justo a
equidade permanece como condiccedilatildeo necessaacuteria para acomodaccedilatildeo do direito e
concretizaccedilatildeo da justiccedila uma vez que o bem geral natildeo pretende causar prejuiacutezos
aos particulares Destarte eacute certo que a pretensatildeo aristoteacutelica eacute que a equidade seja
paracircmetro de formulaccedilatildeo do ldquodecreto especialrdquo ao caso concreto para que este ao
aplicar a lei ou na ausecircncia desta natildeo se afaste do real fim a que se propotildeem os
legisladores
Portanto podemos dizer que a problemaacutetica acerca da natureza essencial
do equitativo eacute dupla Se de um lado o justo legal em sua generalidade pode causar
injusticcedila pela aplicaccedilatildeo insensiacutevel da norma ao caso concreto de outro a
generalidade natildeo eacute suficiente para compreender ainda que em sua insensibilidade
para com o particular uma totalidade normativa isenta de lacunas
76
En el anaacutelisis de las condiciones que permiten la aplicacioacuten de la epiqueya (ut supra III 15 y ss en especial 20) explicamos que una de aquellas debiacutea ser lo ldquoextraordinariordquo del caso frente a lo cual la previsioacuten normativa debioacute a su tiempo considerar el curso ordinario de las cosas Pues ahora nos permitimos exponer una cuestioacuten (o nueva condicioacuten) de procedimiento ldquola regla de la epiqueya es de aplicacioacuten excepcional y restrictiva para los juecesrdquo (SHIAVO 2013 p 27 traduccedilatildeo nossa)
97
66 O homem equitativo
Por certo o equacircnime eacute tambeacutem um homem de prudecircncia pois procura
dentro daquilo que lhe eacute permitido escolher o melhor possiacutevel Shiner ao referir agrave
metaacutefora da reacutegua pluacutembea define o artiacutefice de Lesbos ldquoNenhum artesatildeo eacute perfeito
mas isso eacute em parte porque os materiais contecircm imperfeiccedilotildees Alguns artesatildeos satildeo
o melhor que podem ser - ou seja o melhorrdquo (SHINER 1994 p 1257 traduccedilatildeo
nossa77)
Aristoacuteteles daacute a definiccedilatildeo do homem equitativo
[] ele eacute algueacutem que por escolha e haacutebito faz o que eacute equitativo e que natildeo eacute inflexiacutevel quanto aos seus direitos se contentando em receber uma porccedilatildeo menor mesmo que tenha a lei ao seu lado Eacute a disposiccedilatildeo correspondente eacute a equidade a qual eacute um tipo especial de justiccedila e de modo algum uma qualidade diferente (EN V 10 1138a)
Analisemos este conceito
ldquoEle eacute algueacutem que por escolha e haacutebito faz o que eacute equitatitivordquo
Escolha segundo o Estagirita eacute ldquoum desejo deliberado de coisas em nosso
poderrdquo (EN III 3 1113a10) Em Da Alma esclarece que o desejo eacute a fonte do
movimento78 ldquoO desejo [] eacute capaz de gerar movimento independentemente do
caacutelculo ou raciociacutenio porque o apetite eacute uma forma de desejo Eacute de se notar
entretanto que enquanto o intelecto eacute sempre correto o desejo e a imaginaccedilatildeo
podem ser tanto corretos quanto incorretosrdquo (DA III 10 433a20) Sobre a
deliberaccedilatildeo esclarece que ldquoA deliberaccedilatildeo portanto eacute empregada em mateacuterias que
embora sujeitas a regras que geralmente satildeo para o bem satildeo incertas quanto aos
seus resultados ou consequecircncias ou nas quais resultados ou consequecircncias satildeo
indeterminados [] Aleacutem disso natildeo deliberamos acerca de fins mas acerca de
meiosrdquo (EN III 3 1112b10) Ainda sobre a deliberaccedilatildeo Aristoacuteteles deixa uma
importante observaccedilatildeo Eacute a de que soacute podemos deliberar acerca daquilo que estaacute
77 No craftsman is perfect but that is in part because the materials contain imperfections Some
craftsmen are the best they can be-that is to say the best 78
Assunto tratado no item 22 O Movimento da potecircncia para o ato
98
em nosso poder ldquotem que ser um bem passiacutevel de vir a ser pela accedilatildeo e apenas o
que pode ser diferente de como eacute pode de tal modo vir a serrdquo (DA III 10 433a30)
Acerca do haacutebito esclarece Pierre Pelegrin A virtude eacutetica eacute com efeito um
ldquoestadordquo do sujeito que eacute de certo modo a cristalizaccedilatildeo de bons haacutebitos que se
implantam tanto melhor no indiviacuteduo quanto mais cedo ele os adquire na vida (2010
p28)
Sobre o equitativo Aristoacuteteles apresenta o conceito quando trata do justo e
injusto79 De acordo com esta concepccedilatildeo pode-se ser justo ou injusto de duas
formas a primeira com relaccedilatildeo a observacircncia ou transgressatildeo da lei e a segunda
relacionada ao criteacuterio de igualdade Esta uacuteltima com relaccedilatildeo agrave igualdade Aristoacuteteles
nomina ldquojusto equitativordquo
Pode-se ferir o equitativo por excesso ou deficiecircncia Por excesso quando
reteacutem maior parcela do bem desejaacutevel e por deficiecircncia quando toma para si menor
parcela daquilo que natildeo eacute desejaacutevel80 Assim como na relaccedilatildeo entre perda e ganho
obtenho ganho quando adquiro mais ldquobemrdquo e menos ldquomalrdquo e obtenho perda quando
adquiro menos ldquobemrdquo e mais ldquomalrdquo (EN V 4 1132a5-15)
ldquoe que natildeo eacute inflexiacutevel quanto aos seus direitos se contentando em receber
uma porccedilatildeo menor mesmo que tenha a lei ao seu ladordquo
Este aspecto do homem equitativo parece fazer referecircncia ao sentido lato de
equidade onde ldquoser equitativo eacute mostrar indulgecircnciardquo (Ret I 13 1374b10) O
equacircnime eacute justo e ainda melhor porque ateacute em receber o que lhe eacute devido
apresenta moderaccedilatildeo Natildeo ser inflexiacutevel quanto aos seus direitos demonstra que o
equacircnime estaacute fundido com seu princiacutepio de justiccedila a equidade Pois eacute ele mesmo a
ldquojusticcedila personificadardquo81 Eacute a virtude paradigmaticamente do juiz e dos outros por
extensatildeo (SHINER 1994 p 1251-1252 traduccedilatildeo nossa)82
79
EN V 2 1130b10 80
Aristoacuteteles define a deficiecircncia como a parcela menor recebida pela viacutetima Parece-nos que deixou de desenvolver o conceito nessas linhas Mas podemos visualizar esse desdobramento pouco mais adiante quando trata do ganho e da perda Vide (EN V 4 1132a5-15) 81 EN V 4 1132a20 82
It is a virtue paradigmatically of the judge and of others by extension (SHINER 1994 p 1251-1252)
99
ldquoEacute a disposiccedilatildeo correspondente a equidade a qual eacute um tipo especial de
justiccedila e de modo algum uma qualidade diferenterdquo
Nesta uacuteltima sentenccedila ele enquanto justo age pela equidade seja por natildeo
ser inflexiacutevel com o direito ao aplicaacute-lo a si ou a outrem ou seja pela capacidade de
conhecer o princiacutepio da justiccedila onde natildeo foi convencionada regra alguma ldquoEacute a
marca de um homem educado Aristoacuteteles no diz em uma famosa passagem olhar
com precisatildeo para cada classe de coisas apenas como o permite a natureza do
assuntordquo (SHINER 1994 p 1257 traduccedilatildeo nossa)
67 Equidade e Prudecircncia
Entendendo que o uso da equidade busca uma interpretaccedilatildeo razoaacutevel
(interpretarla razonablemente) da lei Recasens Siches (2008) nos ensina a
equidade eacute a expressatildeo do justo natural em relaccedilatildeo ao caso concreto Em outras
palavras a equidade eacute o justo mas natildeo o justo legal tal como se desprende das
palavras da lei mas autenticamente sobre o caso particular (SICHES 2008 p 656
traduccedilatildeo nossa)83 Portanto ldquopode-se dizer que tanto a reacutegua de Lesbos quanto a
pedra a que ela se amolda para medir manteacutem iacutentegra a sua natureza ndash reacutegua
como reacutegua pedra como pedra ambas submetidas ao criteacuterio apreciador daquele
que se incumbe de definiccedilatildeo da medidardquo (LOPES 1993 p 46)
Tomaacutes de Aquino (1225-1274) em sua Suma Teoloacutegica procura a
compreensatildeo do que seja a equidade observando a inexistecircncia de termo correlato
na liacutengua latina da palavra grega ἐπιείκεια (epieiacutekeia)84 acaba por deixar expliacutecita a
popularidade dessa virtude entre os medievais
Os atos humanos ndash sobre os quais incidem as leis ndash satildeo singulares e contingentes e portanto podem se dar com uma infinita variedade de modos
Daiacute que natildeo seja possiacutevel estabelecer uma lei que natildeo falhe em algum caso concreto[]
84
Et ad hoc ordinatur epicheia quae apud nos dicitur aequitas E isso eacute a epiqueacuteia que entre noacutes diz-se aequitas (traduccedilatildeo nossa)
100
Nesses casos e em casos semelhantes eacute mau seguir o que estaacute estabelecido pela lei e pelo contraacuterio eacute bom passar por cima da letra da lei e seguir o que pede pelo espiacuterito de justiccedila e utilidade comum E eacute isso que faz a epiqueacuteia que entre noacutes se chama equumlidade Fica assim evidente que a epiqueacuteia eacute virtude (Sum II-II 1201)
Nesse sentido a prudecircncia e a equidade apontam para questotildees relativas agrave
deliberaccedilatildeo mais especificamente sobre como agir de acordo com o bem Ambas
parecem obrar no espaccedilo existente entre o particular e o universal Destarte eacute
preciso perceber que
[] a existecircncia insuperaacutevel de um obstaacuteculo ontoloacutegico entre a regra e sua aplicaccedilatildeo entre o universal e o particular Taylor chama esse obstaacuteculo ontoloacutegico de ldquohiato froneacuteticordquo (phronetic gap) em referecircncia direta agrave sua matriz aristoteacutelica Aristoacuteteles como Aubenque (2003 p 75) observa natildeo tem a expectativa platocircnica de poder deduzir o particular do universal Aristoacuteteles natildeo culpa a ignoracircncia dos homens por essa incapacidade Natildeo se trata para Aristoacuteteles de uma fraqueza psicoloacutegica algo que portanto pudesse ser superado pelo Rei-Filoacutesofo de Platatildeo ou pelo Juiz Heacutercules de Dworkin A impossibilidade de deduzir o particular do universal decorre da proacutepria realidade e nesse sentido natildeo pode ser superada por uma ciecircncia A aplicaccedilatildeo das regras eacute antes de tudo uma questatildeo de prudecircncia (phronesis) (OLIVEIRA 2009 p 24 negrito nosso)
Essa limitaccedilatildeo da ciecircncia eacute objeto da exposiccedilatildeo acerca da prudecircncia (ENVI
5 1140a30) O fato eacute que o conhecimento cientiacutefico envolve demonstraccedilatildeo ou seja
diz respeito agraves coisas imutaacuteveis necessaacuterias Por outro lado a prudecircncia cuida de
assuntos relacionados agrave conduta admitindo assim a variaccedilatildeo ldquoPara que seja objeto
do conhecimento cientiacutefico uma verdade tem que ser demonstrada pelo processo
dedutivo a partir de outras verdades ao passo que a arte e a prudecircncia (sabedoria
praacutetica) se referem somente a coisas mutaacuteveisrdquo (EN VI 6 1141a1)
O caraacuteter praacutetico isto eacute concernente agrave accedilatildeo proacuteprio da phroacutenesis exige portanto que ela possua o conhecimento dos casos individuais pois a accedilatildeo se produz sempre em situaccedilotildees individuais por isso a phroacutenesis requer certa experiecircncia que eacute justamente o conhecimento dos particulares A phroacutenesis contudo inclui em alguma medida tambeacutem o conhecimento do universal no sentido de que deve saber aplicar ao caso individual uma caracteriacutestica geral como mostra o exemplo dado por Aristoacuteteles Natildeo basta para produzir sauacutede (accedilatildeo) saber que as carnes leves satildeo saudaacuteveis (caracteriacutestica universal) caso natildeo se saiba
101
que a carne de galinha eacute leve (caso individual ou particular) e portanto que a carne de galinha eacute saudaacutevel (aplicaccedilatildeo do universal ao particular)
Martha C Nussbaum explica que Aristoacuteteles aponta trecircs traccedilos da mateacuteria
praacutetica que demonstram porque as escolhas praacuteticas natildeo podem mesmo em
princiacutepio ser adequadas e completamente assimiladas em um sistema de regras
universais Satildeo esses traccedilos a mutabilidade a indeterminaccedilatildeo e a particularidade
(NUSSABAUM 2009 p 263)
Eacutemile Boutroux sustenta que pelo princiacutepio da irredutibilidade essa
especulaccedilatildeo abstrata ndash a do conhecimento cientiacutefico ndash ldquoseraacute impotente para nos
fazer conhecer a natureza aiacute seraacute necessaacuteria a experiecircncia E na ordem moral as
leis seratildeo insuficientes para fazer reinar a justiccedila seraacute preciso acrescentar-lhes o
magistrado encarregado de aplicar judiciosamente as regras gerais agrave diversidade
dos casos individuaisrdquo (2006 p 127)
No mesmo sentido Pierre Aubenque direciona a relaccedilatildeo entre a prudecircncia e
a equidade sintetizando os principais toacutepicos de nossa exposiccedilatildeo Tal siacutentese tem
por base o julgamento eacutetico proacuteprio agrave Eacutetica a Nicocircmaco onde o prudente natildeo teraacute
mais por analogia o saber do geocircmetra mas o engenho do carpinteiro
[] Enquanto Platatildeo natildeo parece ter posto em duacutevida que um saber suficientemente transcendente poderia abranger a totalidade dos casos particulares Aristoacuteteles nunca espera poder deduzir o particular do universal ldquoa falta nos diz ele natildeo estaacute na lei nem no legislador mas na natureza da coisa em th fnsei ton prgmatojrdquo Onde Platatildeo via uma
fraqueza psicoloacutegica devido a ignoracircncia dos homens Aristoacuteteles reconhece como faz habitualmente um obstaacuteculo ontoloacutegico um hiato que afeta a proacutepria realidade e que nenhuma ciecircncia poderaacute superar [] se a indeterminaccedilatildeo eacute ontoloacutegica a lei soacute pode depender de uma regra ela proacutepria indeterminada tou gar aoristou aoristin tal como a reacutegua
de chumbo de lesbos cuja a inexatidatildeo permite adaptar-se adequadamente aos contornos da pedra [] Para Aristoacuteteles ao contraacuterio de uma justiccedila abstrata cientiacutefica via sua sorte ligada a da lei eacute pois a justiccedila mesma que necessita ser corrigida pela virtude da equidade [] Percebe-se o paralelismo dessa problemaacutetica com a da prudecircncia ou antes o encavalamento de ambas se a prudecircncia eacute a virtude intelectual que permite a cada vez definir a norma o equacircnime deveraacute possuir no mais alto grau a virtude da prudecircncia para aplica-la em seu domiacutenio proacuteprio [] (AUBENQUE 2008 73-76 negrito nosso)
102
Portanto a prudecircncia e equidade produzem seus efeitos no acircmbito da razatildeo
praacutetica especificamente no que concerne a aplicaccedilatildeo da norma em sua
generalidade e abstraccedilatildeo ao caso concreto que transcorre num mundo
contingencial
O equacircnime eacute antes de qualquer coisa um prudente ou seja a virtude da
prudecircncia eacute um pressuposto para o exerciacutecio da equidade Isso fica evidenciado
pelo proacuteprio papel da prudecircncia qual seja guiar e orientar as escolhas para a
concretizaccedilatildeo das demais virtudes Ademais ambos possuem como faculdade
central a disposiccedilatildeo para o bem escolher de forma acomodar o bem absoluto85 ao
melhor possiacutevel86
85
Aspecto formal da regra enquanto forma e universalidade 86
Aspecto material da accedilatildeo enquanto mateacuteria e singularidade
103
7 CONCLUSAtildeO
Foi objeto do presente trabalho uma anaacutelise das formulaccedilotildees aristoteacutelicas
acerca do conceito de prudecircncia e equidade anaacutelise essa que deveria sustentar-se
sob a eacutegide de uma inter-relaccedilatildeo entre tais conceitos
Para alcanccedilar tal objetivo propomos no capiacutetulo 2 que a contingecircncia eacute algo
que se encontra em comum na atividade de ambos os conceitos como condiccedilatildeo
necessaacuteria agrave compreensatildeo dos mesmos Por isso o que a pouco chamamos de
hiato froneacutetico natildeo eacute outra coisa senatildeo a distacircncia entre o ldquoparticularrdquo e o
ldquouniversalrdquo entre a ldquopotecircnciardquo e o ldquoatordquo e entre o ldquomelhor que posso fazerrdquo e o ldquobem
absolutordquo
No capiacutetulo 3 intitulado Eacutetica das Virtudes procuramos clarear o liame entre
as virtudes e a necessidade de accedilatildeo caracteriacutestica inerente ao mundo contingencial
Nele introduzimos no que eacute pertinente agrave nossa proposta a teoria geral das virtudes
em Aristoacuteteles estabelecendo sua relaccedilatildeo com as partes da alma e diferenciado em
morais e intelectuais Neste sentido a relaccedilatildeo entre prudecircncia e equidade parece
distanciar-se devido a prudecircncia estar situada na faculdade cientiacutefica da alma
enquanto a equidade estaacute inserida na faculdade calculadora Tal problema eacute
solucionado pelo proacuteprio Aristoacuteteles afinal a prudecircncia como ordenadora das accedilotildees
virtuosas eacute o ponto de contato entre aquilo que estaacute e aquilo que natildeo estaacute ao
alcance do homem ou seja ela age como princiacutepio informativo entre a faculdade
calculadora e a faculdade cientiacutefica da parte racional da alma Por fim foi feita uma
exposiccedilatildeo acerca da mediania como paracircmetro da razatildeo praacutetica seguida de uma
exposiccedilatildeo sobre as accedilotildees voluntaacuterias e involuntaacuterias
A partir do capitulo 4 procuramos analisar a proposta aristoteacutelica do que
seja a prudecircncia Assim concluiacutemos ser a prudecircncia uma virtude intelectual situada
na parte racional da alma mais precisamente na parte que forma opiniotildees por ser
seu objeto a especulaccedilatildeo das coisas que admite variaccedilotildees e portanto satildeo
trabalhadas pela faculdade calculadora Nesse sentido eacute a qualidade racional de
consecuccedilatildeo da verdade capaz de bem deliberar em geral
104
No capiacutetulo 5 a justiccedila foi delineada como sendo uma virtude Tal virtude eacute
dita a mais perfeita pois segundo o Estagirita nela se encontra somada todas as
virtudes O que ele quer dizer com isso eacute que o fato de natildeo se observar qualquer
uma das virtudes eacute um ato de injusticcedila Neste sentido vimos a produccedilatildeo legislativa
como uma ramificaccedilatildeo da prudecircncia nomeada por Aristoacuteteles como ciecircncia
legislativa por desempenhar um duplo papel controlador e diretivo ndash no sentido de
educar para a virtude A outra ramificaccedilatildeo eacute a ciecircncia poliacutetica que diz respeito agrave
deliberaccedilatildeo a qual divide em processo deliberativo e processo judiciaacuterio Apoacutes
visualizarmos os conceitos proacuteprios agrave teoria da justiccedila de Aristoacuteteles concluiacutemos ser
ela uma virtude moral sendo ela mesma uma mediania que faz realizar agir e
desejar o que eacute o justo A justiccedila de modo geral ganha trecircs sentidos quais sejam
legal igual e equitativo
Por fim no capiacutetulo 6 procuramos analisar o conceito de equidade
Inicialmente apresentamos seu conceito lato e stricto Em seguida procuramos
compreender a ambiguidade apresentada por Aristoacuteteles acerca do tema
Apresentamos a justiccedila enquanto equidade compreendendo natildeo ser a equidade
diferente da justiccedila mas apenas melhor que uma de suas espeacutecies Procuramos
compreender a justiccedila enquanto estabelecimento da igualdade A natureza essencial
da equidade foi estudada enquanto retificaccedilatildeo do justo legal De acordo com isso
estaacute para noacutes a metaacutefora da reacutegua de chumbo que encontra a medida justa em sua
flexibilidade uma vez que em rigidez natildeo poderia conhecer as muacuteltiplas e possiacuteveis
formas na qual flutua a contingecircncia material Uma uacuteltima anaacutelise abordou a relaccedilatildeo
entre a prudecircncia e a equidade concluindo por uma relaccedilatildeo de gecircnero e espeacutecie
uma vez que a equidade eacute uma qualidade do prudente e que possuem como
principal ponto em comum a contingecircncia enquanto condiccedilatildeo para accedilatildeo
Eacute na pergunta que fizemos na introduccedilatildeo que concluiacutemos estar a chave para
a compreensatildeo dos conceitos formulados Qual a relaccedilatildeo entre a prudecircncia e a
equidade aristoteacutelica A reposta dada pelos comentadores no capiacutetulo 6 em
especial Pierre Aubenque aponta para noacutes uma relaccedilatildeo que comporta em sua
estrutura conceitual uma interdependecircncia Nesse sentido natildeo podemos
compreender o conceito de equidade sem compreender o conceito de prudecircncia
105
Essa relaccedilatildeo pode ser travada porque ambas lidam com situaccedilotildees em
comum Elas estatildeo para o homem como soluccedilatildeo naquilo em que a Providecircncia
falha Suas funccedilotildees trabalham para indicar a melhor decisatildeo quando se tem que
escolher entre dois males Elas procuram sanar a distacircncia entre os princiacutepios gerais
e a realidade em particular Elas satildeo as articulaccedilotildees que permitem ao homem fazer
a escolha pelo melhor possiacutevel uma vez que na fraacutegil condiccedilatildeo parece tatildeo distante
do bem absoluto quanto o homem de Deus
106
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Gilberto de Andrade Pinto
JUSTICcedilA EM ARISTOacuteTELES uma anaacutelise dos conceitos de prudecircncia e equidade
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Minas Gerais como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de mestre em Direito Orientador Dr Juacutelio Aguiar de Oliveira Coorientador Dr Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno
Belo Horizonte 2013
FICHA CATALOGRAacuteFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Minas Gerais
Pinto Gilberto de Andrade
P659j Justiccedila em Aristoacuteteles uma anaacutelise dos conceitos de prudecircncia e equidade
Gilberto de Andrade Pinto Belo Horizonte 2013
110f
Orientador Juacutelio Aguiar de Oliveira
Coorientador Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno
Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Minas Gerais
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito
1 Aristoacuteteles 2 Equumlidade (Direito) 3 Prudecircncia I Oliveira Juacutelio Aguiar de
II Trivisonno Alexandre Travessoni Gomes III Pontifiacutecia Universidade
Catoacutelica de Minas Gerais Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito IV Tiacutetulo
CDU 34012
Gilberto de Andrade Pinto
JUSTICcedilA EM ARISTOacuteTELES uma anaacutelise dos conceitos de prudecircncia e equidade
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Minas Gerais como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de mestre em Direito
____________________________________________________________ Juacutelio Aguiar de Oliveira (Orientador) ndash PUC Minas
____________________________________________________________ Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno (Coorientador) ndash PUC Minas
____________________________________________________________ Fernando Joseacute Armando Ribeiro ndash PUC Minas
____________________________________________________________ Mocircnica Sette Lopes ndash UFMG
Belo Horizonte 03 de junho de 2013
Dedico este trabalho
Ao meu primogecircnito Davi na esperanccedila que ele se torne um homem feliz
mediante a praacutetica reiterada da virtude
Agrave minha esposa Camila testemunha e cuacutemplice de cada hora pelo amor e
compreensatildeo a mim dispensados
Aos meus pais que natildeo mediram esforccedilos e sacrifiacutecios pelo meu sonho
Aos meus irmatildeos Ramon e Giselle por compartilharem comigo a fraterna
amizade indispensaacutevel nos momentos difiacuteceis
AGRADECIMENTOS
A todos que contribuiacuteram direta ou indiretamente para a concretizaccedilatildeo deste
sonho Fica aqui registrada a minha gratidatildeo especialmente
Ao meu Orientador Professor Juacutelio Aguiar de Oliveira que acolheu e
acreditou em minhas ideias natildeo deixando que eu acreditasse que as contingecircncias
da vida fossem outra coisa que natildeo verdadeiras liccedilotildees e incentivos para o meu
aperfeiccediloamento pessoal e acadecircmico
Agradeccedilo tambeacutem ao meu Coorientador Alexandre Travessoni Gomes
Trivisonno pelos valorosos exemplos de retidatildeo e seriedade
Aos meus colegas de curso que comungaram comigo agrave elevada aspiraccedilatildeo
acadecircmica
Ao prof Virgiacutelio Diniz pela amizade e apoio de sempre
Agrave prof Leda Soares e prof Luciana Costa que sempre estiveram dispostas
a me ajudar da melhor forma possiacutevel jamais me esquecerei disso
Obrigado do fundo do meu coraccedilatildeo a todos vocecircs
Sou com efeito vosso servo e filho de vossa serva um
homem fraco cuja existecircncia eacute breve incapaz de compreender
vosso julgamento e vossas leis []
Que homem pois pode conhecer os desiacutegnios de Deus e
penetrar nas determinaccedilotildees do Senhor
Tiacutemidos satildeo os pensamentos dos mortais e incertas as nossas
providecircncias (SABEDORIA 10)
RESUMO
Esta dissertaccedilatildeo realizou um estudo acerca da concepccedilatildeo aristoteacutelica dos conceitos
de prudecircncia e equidade Seu objetivo foi analisar os conceitos de prudecircncia e
equidade e estabelecer as possiacuteveis relaccedilotildees inerentes a tais conceitos
Primeiramente procurou-se compreender a noccedilatildeo de contingecircncia verificando que
tal noccedilatildeo estaacute estritamente relacionada agrave possibilidade de accedilatildeo e portanto agrave
questotildees de razatildeo praacutetica Em seguida realizou-se uma abordagem acerca da eacutetica
das virtudes objetivando contextualizar os conceitos estudados Realizada uma
exposiccedilatildeo sobre a prudecircncia procurou-se estabelecer em linhas gerais a concepccedilatildeo
aristoteacutelica de justiccedila Por fim foi realizada uma tentativa de reconstruccedilatildeo dos
conceitos de prudecircncia e de equidade A conclusatildeo que se chegou foi a de que tanto
o conceito de prudecircncia quanto o de equidade estatildeo relacionados agrave questotildees de
razatildeo praacutetica A principal relaccedilatildeo estabelecida entre tais conceitos eacute a de que ambos
lidam com situaccedilotildees contingenciais o que evidencia a distacircncia entre o universal e o
particular que ao final chamamos de hiato-froneacutetico
Palavras-chave Aristoacuteteles Prudecircncia Equidade
ABSTRACT
This work conducted a study on the Aristotelian conception of the concepts of
prudence and equity His goal was to analyze the concepts of prudence and equity
and establish possible relationships inherent in such concepts First we sought to
understand the notion of contingency noting that such a notion is closely related to
the possibility of action and therefore the issues of practical reason Then took place
about an approach of virtue ethics aiming to contextualize the concepts studied An
exhibition about prudence sought to establish a broadly Aristotelian conception of
justice Finally an attempt was made to reconstruct concepts of prudence and equity
The conclusion reached was that both the concepts of prudence and equity are
related to issues of practical reason The main relationship between these concepts
is to both deal with contingency situations which shows the distance between the
universal and the particular which we call the phronetic gap
Key-words Aristotle Prudence Equity
LISTA DE ABREVIATURAS
AA ndash Analiacuteticos Anteriores
DA ndash Da Alma
DI ndash Da Interpretaccedilatildeo
EE ndash Eacutetica a Eudemo
EN ndash Eacutetica a Nicocircmaco
Fiacutes - Fiacutesica
Met ndash Metafiacutesica
MM ndash Magna Moralia
Pol ndash Poliacutetica
Ret - Retoacuterica
SUMAacuteRIO 1 INTRODUCcedilAtildeO12 2 A CONTINGEcircNCIA16 21 A Loacutegica16 22 O Movimento da potecircncia para o ato21 23 Indeterminismo e a eacutetica das virtudes26 231 Primeira concepccedilatildeo de acaso A boa fortuna26 232 Segunda concepccedilatildeo de acaso Acidente28 233 Terceira concepccedilatildeo de acaso contingecircncia30 2331 Trageacutedia32 3 EacuteTICA DAS VIRTUDES35 31 Eacutetica a Nicocircmaco36 32 Partes da Alma39 33 Virtudes Morais43 331 Doutrina da Mediana45 34 Accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria47 35 Virtudes Intelectuais51 4 PRUDEcircNCIA54 41 Conceito54 42 Prudecircncia e liberdade56 43 Arte e prudecircncia57 44 Deliberaccedilatildeo e Escolha58 45 O prudente61 5 JUSTICcedilA COMO VIRTUDE67 51 Justo e injusto68 52 Justo universal69 53 Justo particular71 531 Justiccedila distributiva71 532 Justiccedila corretiva72 54 Justo domeacutestico73 55 Justo poliacutetico74 551 Justo natural75 552 Justo legal (convencional)75 6 A EQUIDADE78 61 Justiccedila e equidade ambiguidade do tema79 62 Justiccedila como equidade82 621 Justiccedila e igualdade84 63 Equidade melhor que um tipo de justiccedila86 64 Natureza essencial do equitativo a retificaccedilatildeo do justo legal87 641 A metaacutefora da reacutegua de chumbo88 642 A retificaccedilatildeo do justo legal89 65 Equidade e lacuna93 66 O homem equitativo97
67 Equidade e Prudecircncia99 7 CONCLUSAtildeO103 REFEREcircNCIAS106
12
1 INTRODUCcedilAtildeO
Com o surgimento da modernidade originou-se uma ruptura nos
fundamentos da filosofia moral claacutessica Dessa forma conceitos basilares da
filosofia moral perderam os seus significados restando para o mundo
contemporacircneo apenas fragmentos de suas antigas concepccedilotildees Conforme propotildee
Alasdair MacIntyre (2001 p 15) em sua obra Depois da virtude o que possuiacutemos
satildeo apenas fragmentos de um esquema conceitual fragmentos hoje distantes de
seu contexto semacircntico o que quer dizer que utilizamos apenas os simulacros de
tais conceitos
Desse modo o significado claacutessico das virtudes da forma como
estabelecido por Aristoacuteteles foi alterado tornando-se inacessiacuteveis agrave nossa
compreensatildeo o sentido atribuiacutedo por Aristoacuteteles aos conceitos de prudecircncia e de
equidade
O conceito de prudecircncia1 apresenta significativas transformaccedilotildees
semacircnticas o que obscurece e compromete a compreensatildeo do seu significado
claacutessico Eacute o que Jean Lauand veio a perceber quando traduziu as questotildees 47-46
da Segunda Parte da Segunda Parte da Suma Teoloacutegica de Tomaacutes de Aquino
[] prudentia eacute uma daquelas tantas palavras fundamentais que sofreram desastrosas transformaccedilotildees semacircnticas com o passar do tempo
A proximidade entre nossa liacutengua e o latim de Tomaacutes natildeo nos deve enganar ocorre como diziacuteamos um conhecido fenocircmeno de alteraccedilatildeo do sentido das palavras que se manifesta muitas vezes quando lemos um autor de outra eacutepoca E natildeo soacute alteraccedilatildeo como mostra C S Lewis daacute-se frequumlentemente sobretudo no campo da eacutetica uma autecircntica inversatildeo de polaridade aquela palavra que originalmente designava uma qualidade positiva esvazia-se de seu sentido inicial ou passa a designar uma qualidade negativa
1 Optamos por escrever no termo utilizado usualmente pelos autores da liacutengua portuguesa Contudo
conforme consta desta introduccedilatildeo os conceitos proacuteprios agrave tradiccedilatildeo das virtudes perderam sua inteligibilidade restando para noacutes apenas simulacros do que um dia corresponderam De acordo com HERMANN (2007) ldquoO termo phronesis natildeo tem uma traduccedilatildeo que expresse de forma satisfatoacuteria o espectro semacircntico que possuiacutea para o mundo grego Habitualmente traduzido por prudecircncia o uso do termo descolou-se do contexto de origem e perdeu seu enraizamento eacuteticordquo O mesmo acontece com o termo Epeiqueia
13
Foi o que aconteceu entre outras com as palavras ldquoprudenterdquo e ldquoprudecircnciardquo []
Se hoje a palavra prudecircncia tornou-se aquela egoiacutesta cautela da indecisatildeo (em cima do muro) em Tomaacutes ao contraacuterio prudentia expressa exatamente o oposto eacute a arte de decidir corretamente [] virtude do liacutempido conhecimento do ser (LUAND 2005 p7-10)
O conceito de equidade igualmente nos parece de difiacutecil compreensatildeo O
dicionaacuterio grego-portuguecircs de Isidro Pereira registra as seguintes traduccedilotildees para
ἐπιείκεια conveniecircncia moderaccedilatildeo equidade epiqueia doccedilura bondade (cf
PEREIRA 1998 p 210 [verbete ἐπιείκεια]) Registrando a presenccedila de uma
traduccedilatildeo ainda mais proacutexima do termo grego epieiacutekeia menos usada contudo em
nosso vocabulaacuterio epiqueia2 Disso podemos constatar que embora a equidade
goze de grande popularidade no meio juriacutedico seu emprego por vezes varia ainda
que ligeiramente do conceito elaborado pelo Estagirita3
Portanto diante de tais dificuldades questionamos O que seria a prudecircncia
e a equidade na tradiccedilatildeo aristoteacutelica Tal questionamento nos levou a procurar nos
textos do proacuteprio Aristoacuteteles e seus comentadores os indiacutecios das formulaccedilotildees
originaacuterias Por ora o que podemos levantar eacute que ambos os conceitos satildeo
visualizados em situaccedilotildees muito aproximadas O que nos leva agrave possiblidade de
existir entre ambos uma relaccedilatildeo de interdependecircncia conceitual Talvez seja por isso
que quando Aristoacuteteles aborda as virtudes morais deixa a equidade como uacuteltimo
assunto antes de tratar da virtude intelectual da prudecircncia
Neste sentido o trabalho foi elaborado traccedilando um percurso entre as
condiccedilotildees necessaacuterias ao exerciacutecio das virtudes para em seguida procurarmos
contextualizar a teoria das virtudes como um todo e por fim conhecermos a virtude
da prudecircncia No momento subsequente realizamos uma exposiccedilatildeo da virtude da
justiccedila Apoacutes esses passos entendemos ser possiacutevel a formulaccedilatildeo das concepccedilotildees
aristoteacutelicas dos conceitos de prudecircncia e equidade
2 Abbagnano registra epiqueia como sendo sinocircnimo de equidade (1999 p 338 [verbete epiqueia])
Em seu verbete epiqueia Aureacutelio Buarque de Holanda embora natildeo a coloque como sinocircnimo de equidade registra ldquoepiqueia Sf 1 Interpretaccedilatildeo razoaacutevel de lei ou preceito 2 Fig Meio-termo moderaccedilatildeordquo Entendimento que nos parece mais proacuteximo agrave proposta Aristoteacutelica 3 Referecircncia agrave Aristoacuteteles por ser natural de Estagira uma antiga cidade da Macedocircnia situada hoje
na Greacutecia na regiatildeo de Calciacutedica
14
Dentro desse esquema o segundo capiacutetulo tem por objetivo analisar a
contingecircncia caracterizada pela indeterminaccedilatildeo objetiva na relaccedilatildeo entre o universal
e o particular como condiccedilatildeo para o exerciacutecio da razatildeo praacutetica4 Neste sentido
iremos buscar na loacutegica de Aristoacuteteles os elementos necessaacuterios para a sua
compreensatildeo
Uma concepccedilatildeo um tanto popular quando se trata de Aristoacuteteles eacute da
potecircncia e do ato A pretensatildeo eacute revisitar esse conceito com foco na relaccedilatildeo
contingencial que existe no movimento entre a potecircncia e o ato O objetivo do
capiacutetulo alcanccedila pouso numa concepccedilatildeo de contingecircncia proacutepria agrave eacutetica das
virtudes O que segue eacute a proposta de Pierre Aubenque (2008) em fazer uma
exposiccedilatildeo da contingecircncia nas concepccedilotildees de acaso Por fim eacute na trageacutedia grega
que Aubenque (2008) mostra as condiccedilotildees necessaacuterias ao exerciacutecio das virtudes
O terceiro capiacutetulo tem por objetivo trazer uma exposiccedilatildeo que contextualize
na tradiccedilatildeo aristoteacutelica das virtudes os conceitos que seratildeo estudados Neste
sentido eacute realizada inicialmente uma leitura acerca da teoria geral das virtudes na
Eacutetica a Nicocircmaco Observando as partes da alma e suas qualidades como racional e
irracional dividindo assim as virtudes em intelectuais e morais respectivamente
O quarto capiacutetulo procura reconstruir o conceito de prudecircncia relacionando-
o com a liberdade e a arte As temaacuteticas da deliberaccedilatildeo e da escolha satildeo neste
ponto inseridas como elementos indispensaacuteveis agrave anaacutelise do conceito de prudecircncia
O quinto capiacutetulo pretende oferecer uma visatildeo geral da teoria da justiccedila de
Aristoacuteteles como tambeacutem considerar o fato de Aristoacuteteles ter inserido sua exposiccedilatildeo
da equidade no livro V em relaccedilatildeo com o conceito de justiccedila objeto especiacutefico de
investigaccedilatildeo do livro mencionado
Por uacuteltimo procuramos o conceito de equidade Essa uacuteltima exposiccedilatildeo tem
por objetivo delinear a pretensatildeo de Aristoacuteteles com tal formulaccedilatildeo Nele natildeo
inserimos pretensotildees complexas acerca de teorias especiacuteficas e contemporacircneas
mas tatildeo somente a despretensiosa e sofisticada elaboraccedilatildeo aristoteacutelica do assunto
4 Sobre razatildeo praacutetica vide LACERDA Bruno Amaro O raciociacutenio juriacutedico uma visatildeo aristoteacutelica Belo
Horizonte Movimento Editorial da Faculdade de Direito da UFMG 2005
15
Eacute neste sentido que ao explicar o desdobramento da razatildeo praacutetica ele
abandona o modelo oferecido pela geometria buscando na carpintaria um novo
modelo (fiel no entanto agrave tradiccedilatildeo das virtudes) Por fim procuramos no conceito
de equidade traccedilos pertinentes agraves virtudes em geral e em especial agrave virtude da
prudecircncia
Para a conclusatildeo reservamos a tarefa de responder a seguinte questatildeo que
se impotildee apoacutes o estudo simultacircneo desses dois conceitos existe uma relaccedilatildeo
conceitual entre os conceitos de prudecircncia e equidade
16
2 A CONTINGEcircNCIA
A prudecircncia e a equidade estatildeo condicionadas ao campo da accedilatildeo Contudo
parece que ambas soacute podem se manifestar no acircmbito do contingente Sendo
portanto a contingecircncia nosso ponto de partida
Parece ser a contingecircncia um dos fenocircmenos mais intrigantes a se tratar por
uma dupla razatildeo A contingecircncia consegue ao mesmo tempo nos desmotivar por
nos ensinar a liccedilatildeo de que natildeo podemos tudo conter e que a nossa pretensiosa
construccedilatildeo cotidiana deve estar sempre alerta para as incontaacuteveis possibilidades a
qual o mundo nos submete Por outro lado e concomitantemente eacute ela quem nos
motiva que nos convida agrave accedilatildeo Pois assim como o vento escolhe seu caminho eacute
ela que tem o poder de inserir em nossas vidas as mudanccedilas pelas quais devemos
lutar para moldarmos nossos objetivos e possibilidades um ao outro
Eacute nesse sentido que nos parece liacutecita a crenccedila em uma possiacutevel
reintegraccedilatildeo do homem com a sua natureza divina pois estatildeo nas vicissitudes da
vida as liccedilotildees praacuteticas nas quais os homens podem dar o melhor de si em busca de
um aperfeiccediloamento moral
21 A Loacutegica5
Eacute no estudo da loacutegica que pretendemos encontrar nossa primeira referecircncia
sobre o que seja a contingecircncia Tradicionalmente entende-se por loacutegica o estudo
dos raciociacutenios que pretendem atraveacutes de regras proacuteprias concluiacuterem por
resultados verdadeiros Desnudando assim os raciociacutenios que se vestem com
aparente validade mas que ocultam viacutecios que os falseiam
Tais viacutecios satildeo comumente apontados como tendo duas fontes sendo uma
relacionada aos fundamentos do raciociacutenio e outra ao nexo que se estabelece entre
5 A loacutegica normalmente eacute classificada como pertencente agrave razatildeo especulativa Nosso estudo situa-se
no acircmbito da razatildeo praacutetica Natildeo obstante parece-nos que a compreensatildeo do pensamento de Aristoacuteteles daacute-se atraveacutes da compreensatildeo de seu meacutetodo que eacute abordado na loacutegica Por outro lado quando descreve o prudente Aristoacuteteles sempre faz menccedilatildeo de que ele natildeo versa apenas sobre questotildees da razatildeo especulativa mas tambeacutem questotildees de razatildeo praacutetica Portanto o conhecimento especulativo eacute pertinente ao agente da razatildeo praacutetica Vide EN VI 7 1141b15
17
eles e a conclusatildeo Nesse sentido a loacutegica aristoteacutelica eacute estudada em dois ramos
sendo eles conhecidos como Loacutegica Maior (ou material) e Loacutegica Menor (ou formal)
Comecemos pela Loacutegica Menor De acordo com o ensino tradicional de
loacutegica as proposiccedilotildees podem ser classificadas pela qualidade e pela quantidade ou
seja como afirmativas ou negativas e universais ou particulares respectivamente
Daacute-se agraves combinaccedilotildees possiacuteveis a seguinte notaccedilatildeo Se a proposiccedilatildeo for uma
universal afirmativa por exemplo Todo S eacute P6 (Todo homem eacute mortal) entatildeo temos
uma proposiccedilatildeo ldquoArdquo Se a proposiccedilatildeo for particular afirmativa por exemplo Alguns S
satildeo P (Alguns homens satildeo brancos) entatildeo temos uma proposiccedilatildeo ldquoIrdquo Se a
proposiccedilatildeo for uma universal negativa por exemplo Nenhum ldquoSrdquo eacute ldquoPrdquo (Nenhum
homem eacute mortal) entatildeo temos uma proposiccedilatildeo ldquoErdquo Se a proposiccedilatildeo for particular
negativa por exemplo Alguns S natildeo satildeo P (Alguns poliacuteticos natildeo satildeo corruptos)
entatildeo temos uma proposiccedilatildeo ldquoOrdquo
Eacute importante notar que nessa primeira classificaccedilatildeo o que se procura
evidenciar eacute a relaccedilatildeo entre o sujeito S e o predicado P sendo que pode estar-se
afirmando ou negando algo ao particular ou ao universal
Parece-nos que os termos empregados por perspicaacutecia ou feliz
coincidecircncia daacute-nos uma importante pista acerca do domiacutenio do contingente Pois eacute
justamente na tensatildeo existente entre o universal e o particular que noacutes podemos
extrair parte do conceito entatildeo estudado
Em sua liccedilatildeo sobre loacutegica Jacques Maritain (2001 p 106) explica essa
tensatildeo expondo brevemente sobre o modo como conhecemos as coisas De acordo
com ele as coisas se apresentam de duas maneiras por uma ideia ou por uma
representaccedilatildeo sensiacutevel As ideias estatildeo relacionadas como o que conhecemos por
universal ou seja lsquoaquilo que se encontra sempre idecircntico em uma multidatildeo de
indiviacuteduos um em muitos ldquounum in multisrdquorsquo
Precisando acerca do particular7 extrai-se da mesma liccedilatildeo
Aleacutem disso se examinarmos com cuidado as diversas ciecircncias isto eacute os diversos sistemas de ideacuteias pelos quais conhecemos o real constatamos que nenhuma delas tem por objeto o individual como tal [] Eacute preciso
6 ldquoSrdquo para sujeito e ldquoPrdquo para predicado
7 Maritain aborda o tema nominando o universal por ideia e o particular por representaccedilatildeo
18
que assim seja porque o individual como tal natildeo eacute explicativo (representando somente a si mesmo natildeo pode evidentemente dar a razatildeo de outra coisa) (MARITAIN 2001 p 105)
Ainda comparando os extremos da tensatildeo Jaques Maritain facilita a
compreensatildeo ldquoOra esta ideia e esta representaccedilatildeo satildeo bem diferentes a prova eacute
que posso fazer variar a segunda de muitas maneiras (o desenho que imagino pode
ser maior ou menor branco vermelho amarelo etc) sem que a primeira varie por
causa dissordquo (MARITAIN 2001 p 103)
Aiacute estaacute nossa primeira pista pois eacute no acircmbito do particular onde ldquopode-se
fazer variarrdquo ou seja onde existe uma dificuldade em predominar o certo o
determinado o evidente o necessaacuterio eacute que chamamos o domiacutenio do contingente
Aleacutem da classificaccedilatildeo pela qualidade e quantidade temos outra importante
classificaccedilatildeo que eacute pela modalidade Nesta podemos encontrar as proposiccedilotildees
como Verdadeiras Falsas8 Necessaacuterias Possiacuteveis Impossiacuteveis e Contingentes
Nas necessaacuterias9 o predicado decorre do sujeito sendo a compreensatildeo de um
indissociaacutevel da compreensatildeo do outro
Quanto agraves proposiccedilotildees possiacuteveis satildeo aquelas em que o predicado pode ser
ou natildeo ser atribuiacutedo ao sujeito Alguns filoacutesofos se restringem a essas duas
modalidades assim a compreensatildeo da contingecircncia fica embutida na modalidade
possiacutevel em outras palavras aquilo que pode ou natildeo pode ser Essa compreensatildeo
aparece na Eacutetica a Nicocircmaco (EN VI 5 1140b1 negrito nosso) ldquouma vez que natildeo
se pode deliberar sobre coisas que estatildeo no acircmbito da necessidade conclui-se que
8 Aristoacuteteles apresenta seis modalidades Os manuais de loacutegica em sua maioria apresentam apenas
quatro modalidades de proposiccedilotildees quais sejam as necessaacuterias possiacuteveis impossiacuteveis e contingentes As modalidades de proposiccedilotildees verdadeiras e falsas satildeo tratadas como valores por decorrerem do emprego das demais
9 Na Metafiacutesica Aristoacuteteles explica a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio e as demais modalidades As
foacutermulas satildeo e natildeo satildeo independentemente da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo pois foi mostrado que ningueacutem as gera ou cria Eacute por esta razatildeo tambeacutem que natildeo haacute definiccedilatildeo ou demonstraccedilatildeo de coisas individuais sensiacuteveis porque contecircm mateacuteria cuja a natureza eacute tal que pode tanto existir quanto natildeo existir Consequentemente todos os exemplos individuais delas satildeo pereciacuteveis E se entatildeo a demonstraccedilatildeo e a definiccedilatildeo de verdades necessaacuterias requerem conhecimento cientiacutefico e se tal como conhecimento natildeo poder ser agraves vez conhecimento e agraves vezes ignoracircncia (eacute a opiniatildeo que possui esta natureza) do mesmo modo tambeacutem demonstraccedilatildeo e a definiccedilatildeo natildeo satildeo passiacuteveis de variaccedilatildeo (eacute a opiniatildeo que se ocupa com aquilo que pode ser de outra maneira do que eacute) (Met 1039b25 - 1040a1)
19
a prudecircncia (sabedoria praacutetica) natildeo eacute o mesmo que conhecimento cientiacutefico porque
os assuntos relacionados agrave conduta admitem mutaccedilatildeordquo
Mais claramente Santo Tomaacutes discorre na segunda parte da Segunda
Parte Questatildeo 47 artigo 5 da Suma Teoloacutegica
Consequumlentemente se diraacute que a prudecircncia estando na razatildeo como jaacute foi dito distingue-se das outras virtudes intelectuais segundo a diversidade material de objetos Pois a sabedoria a ciecircncia e o intelecto tecircm como objetos coisas necessaacuterias a arte e a prudecircncia coisas contingentes [] (AQUINO 2004 p 593 negrito nosso)
Parece-nos importante o desdobramento nas quatro modalidades pois o
possiacutevel e contingente natildeo parecem sinocircnimos O principal argumento estaacute no fato
de que na noccedilatildeo de possiacutevel estaacute impliacutecito o seu contraacuterio ou seja o Impossiacutevel
hipoacutetese em que o predicado natildeo decorre do sujeito Por sua vez a noccedilatildeo de
contingecircncia natildeo compreende o incontingente
Em seu Dicionaacuterio de Filosofia Nicola Abbagnano expotildee no verbete
Contingente a diferenccedila entre contingecircncia e possiacutevel jaacute exposta por Boeacutecio
ldquopossibuumlerdquo e contingens significam a mesma coisa salvo talvez pelo fato de natildeo
existir o negativo de contingens que deveria ser incontingens assim como existe o
negativo de possibuumle que eacute iacutempossiacutebilerdquo (ABBAGNANO 2007 p 200)
Sendo portanto quatro as classificaccedilotildees das modalidades Necessaacuterio ou ldquoeacute
necessaacuterio que S seja Prdquo Possiacutevel ou ldquoeacute possiacutevel que S seja Prdquo Impossiacutevel ou ldquoeacute
impossiacutevel que S seja Prdquo e Contingente ou ldquoeacute contingente que S seja Prdquo
Assim as proposiccedilotildees sempre recebem o valor de verdadeiras quando
pertencem agrave modalidade Necessaacuterio recebem o valor de falsas quando pertencem agrave
modalidade Impossiacutevel recebem o valor de verdadeiras ou falsas quando pertencem
agrave modalidade Possiacutevel
Quando as proposiccedilotildees pertencem agrave modalidade Contingente natildeo podem
ser dotadas de valoraccedilatildeo uma vez que natildeo se pode decidir se satildeo verdadeiras ou
falsas Isso na loacutegica eacute conhecido como acidentes10 ou aquilo que estaacute presente e
ausente ainda que natildeo haja corrupccedilatildeo do sujeito Por isso quando se fala em
10
Retomaremos acerca dos acidentes quando estudarmos o acaso
20
contingecircncia soacute pode estar-se referindo ao momento presente ou futuro mas nunca
ao passado Satildeo nesses momentos em que impera o indeterminado que se
encontra a contingecircncia
Natildeo obstante a correta formulaccedilatildeo de um raciociacutenio eacute possiacutevel que
obtenhamos conclusotildees erradas hipoacutetese essa em que as premissas natildeo satildeo
verdadeiras Destarte diferente da loacutegica menor que se preocupa com a
conformidade das conclusotildees com as premissas a loacutegica maior preocupa-se com a
veracidade
Para que possamos compreender melhor o objeto da loacutegica maior eacute preciso
conceituar o que seja a verdade em mateacuteria de loacutegica assim valhamo-nos das
liccedilotildees de Manoel Correia de Barros (1945)
Jaacute vimos que pelo processo de abstracccedilatildeo a forma do objeto que conhecemos adquire na nossa inteligecircncia uma modalidade de existecircncia completamente diferente da que tem na realidade No objecto eacute concreta individual na inteligecircncia eacute universal abstracta A verdade do nosso conhecimento tem portanto outro significado Consiste simplesmente em natildeo atribuirmos ao objeto nenhuma nota que natildeo lhe pertenccedila na realidade Eacute o caso de analogia A relaccedilatildeo que o nosso espiacuterito estabelece entre dois conceitos deve ser idecircntica a uma relaccedilatildeo existente de facto entre os dois objetos que eles representam para que o nosso conhecimento seja verdadeiro Natildeo eacute necessaacuterio que conheccedilamos todas as relaccedilotildees entre os dois objectos e muito menos todas as relaccedilotildees de que um decircles pode ser termo para ser verdadeiro o conhecimento natildeo precisa ser exaustivo basta que a nota que afirmamos pertencer ao obejcto lhe pertenccedila realmente Assim falamos verdade quando dizemos que a neve eacute branca embora agravececircrca da neve haja muitas coisas mais a dizer e a saber
Natildeo haacute que saber duma ideia isolada se eacute verdadeira ou natildeo A questatildeo natildeo se potildee dado que a verdade eacute igualdade de relaccedilotildees que exigem claro estaacute dois termos []
Soacute pode ser verdadeiro ou falso o juiacutezo que se exprime pela proposiccedilatildeo e relaciona entre si um sujeito e um predicado Ecircsse sim se o predicado que atribuiacutemos ao sujeito lhe convecircm na realidade eacute verdadeiro se lhe natildeo conveacutem eacute falso (BARROS 1945 p 329-330)
Dessa forma para o estabelecimento da verdade eacute necessaacuterio que natildeo haja
nada de estranho ao objeto ou em outras palavras o predicado deve decorrer do
sujeito natildeo lhe dando qualquer nota que natildeo lhe pertenccedila Por isso afirma Maritain
(2001) que a verdade de nosso espiacuterito consiste em sua conformidade com a coisa
21
Nesse sentido eacute que podemos compreender o que afirmamos quando
falaacutevamos da loacutegica menor em que natildeo podemos atribuir o incerto ao passado
Pois por oacutebvio qualquer nota que natildeo lhe tenha ocorrido natildeo lhe pertence
[] os futuros contingentes natildeo existem no passado nem mesmo como verdades futuras Ontem por exemplo natildeo era uma verdade que ia hoje sair um determinado nuacutemero na lotaria porque natildeo existia ontem nenhum facto em que essa consequumlecircncia estivesse contida de modo necessaacuterio com o qual a proposiccedilatildeo em causa pudesse concordar (BARROS 1945 p 331)
Portanto como estaacute relacionado agrave coisa futura o contingente encontra-se
latente num estado de porvir Por isso eacute que estabelecemos nossa proacutexima
referecircncia acerca da contingecircncia no movimento
22 O Movimento11 da potecircncia para o ato
Eacute interessante notar que o momento propiacutecio agrave decisatildeo eacute um momento de
passagem ou em melhor termo um momento de movimento Natildeo eacute em vatildeo que
Pierre Aubenque (2008) em seu livro A Prudecircncia em Aristoacuteteles dedica boa parte
do capiacutetulo Cosmologia da Prudecircncia ndash o mesmo capiacutetulo no qual faz uma
abordagem sobre contingecircncia ndash ao tema O tempo oportuno (καιρος)
Nesse sentido estaacute [] a moral aristoteacutelica nos convidando a realizar nossa
excelecircncia neste mundo Natildeo podendo desconhecer que o mundo dura e muda no
tempo que eacute o ldquonuacutemerordquo de seu movimento (Aubenque 2008 p156)
Dessa forma eacute preciso compreender o movimento principalmente na tatildeo
conhecida passagem da Potecircncia para o Ato Como bem assinala Tomaacutes de Aquino
no artigo 5 da questatildeo 47 que estatildeo sob os auspiacutecios da contingencia tanto a
prudecircncia quanto a arte12 isso porque ambas ldquoestatildeo para serrdquo a prudecircncia para o
agir e arte para produzir13
11
Aristoacuteteles faz uma grande abordagem acerca do movimento de acordo com RUSSEL (2001) existem trecircs espeacutecies de movimento Movimento enquanto qualidade quantidade e mudanccedila de lugar REALE (1990) apresenta uma quarta divisatildeo enquanto substacircncia Dessa forma nomina o movimento entre a potecircncia e o ato como movimento enquanto qualidade proposta do presente item 12
Jaacute citado e referenciado no item 21 Esse assunto ainda seraacute tratado no item 43 Arte e prudecircncia 13
Sobre o movimento e a relaccedilatildeo entre a lei e o fato assina-la Carnelutti Assim aflora no discurso a conversatildeo do movimento na imobilidade E assim opotildee-se agrave lei ao direito O eterno contraste entre o
22
Ateacute Aristoacuteteles a concepccedilatildeo filosoacutefica acerca do movimento esteve
vinculada a duas teorias uma negava o movimento e outra o afirmava A corrente
que afirmava o movimento era liderada por Heraacuteclito de Eacutefeso (+- 540 aC)
Heraacuteclito afirmava que as coisas mudavam permanentemente em outras
palavras ele afirmava a inconstacircncia das coisas nesse sentido eacute atribuiacuteda a ele a
frase ldquoEntramos e natildeo entramos no mesmo rio Somos e natildeo somosrdquo Portanto o
movimento estaacute presente em todas as coisas agraves vezes afirmando que as coisas
ldquosatildeordquo e que ldquonatildeo satildeordquo ao mesmo tempo sendo como mais tarde diria Platatildeo ldquoO
nosso ser eacute um perpeacutetuo devirrdquo
Ao contraacuterio do que afirmava Heraacuteclito Parmecircnides de Eleia (+- 521 aC)
liderava a corrente que negava o movimento Assim Parmecircnides simplesmente
afirma que ldquoeacuterdquo Seu argumento eacute sustentado pela afirmaccedilatildeo de que aquilo que ldquonatildeo
eacuterdquo natildeo pode sequer ser imaginado pois natildeo se pode imaginar o nada Seu
pensamento culmina numa representaccedilatildeo do mundo como ldquouma esfera material
uniforme soacutelida e finita sem tempo movimento nem mudanccedilardquo (RUSSELL 2001 p
29-38)
De acordo com Parmecircnides os sentidos natildeo seriam instrumentos adequados
ao conhecimento verdadeiro sendo o conhecimento verdadeiro revelado pela razatildeo
Assim a verdade eacute apenas aquilo que eacute produzido pelo pensamento e portanto o
pensar eacute verdadeiramente ldquoserrdquo Eacute nesse sentido que afirma ser o movimento
impossiacutevel pois natildeo admite a passagem do ldquonatildeo serrdquo para o ldquoserrdquo uma vez que o
ldquonatildeo serrdquo eacute nada e natildeo pode ser inteligiacutevel
Ao contraacuterio de seus predecessores Aristoacuteteles inova conciliando ambas as
teorias Pois natildeo nega o que ldquoestaacute por virrdquo de Heraacuteclito e nem o ldquoserrdquo de
Parmecircnides
Aristoacuteteles natildeo nega o vir-a-ser de Heraacuteclito nem o ser de Parmecircnides mas une-os em uma siacutentese conclusiva jaacute iniciada pelos uacuteltimos preacute-socraacuteticos e grandemente aperfeiccediloada por Demoacutecrito e Platatildeo Segundo Aristoacuteteles a mudanccedila que eacute intuitiva pressupotildee uma realidade imutaacutevel que eacute de duas espeacutecies Um substrato comum elemento
ser e o mover-se apresenta-se tambeacutem ao jurista sub specie da oposiccedilatildeo do fato agrave lei A lei estaacute o fato move-se A lei eacute um estado o fato um desenvolvimento A lei eacute o presente o fato natildeo pode ser mais do que passado ou futuro A lei estaacute fora do tempo o fato estaacute dentro (CARNELUTTI 2003 p 40)
23
imutaacutevel da mudanccedila em que a mudanccedila se realiza e as determinaccedilotildees que se realizam nesse substrato a essecircncia a natureza que ele assume Essa contradiccedilatildeo Aristoacuteteles pretende evitar atraveacutes da interpretaccedilatildeo analoacutegica da noccedilatildeo de ser que lhe permite fazer uma distinccedilatildeo fundamental ser natildeo eacute apenas o que jaacute existe em ato ser eacute tambeacutem o que pode ser a virtualidade a potecircncia Assim sem contrariar qualquer princiacutepio loacutegico poder-se-ia compreender que uma substacircncia apresenta-se num dado momento certas caracteriacutesticas e noutra ocasiatildeo manifestasse caracteriacutesticas diferentes se uma folha verde torna-se amarela eacute porque verde e amarelo satildeo acidentes da folha (que eacute sempre folha independente de sua coloraccedilatildeo) A qualidade amarelo eacute uma virtualidade da folha que num certo momento se atualiza E essa passagem da potecircncia ao ato eacute que constitui segundo a teoria de Aristoacuteteles o movimento O termo movimento tem frequentemente a
mesma significaccedilatildeo que os vocaacutebulos mudanccedila e devir (ORIOLO
2009)
A compreensatildeo do ldquoserrdquo14 eacute explicada detalhadamente no Livro VII da
Metafiacutesica (Met VII 1 1028a10) Na passagem 1039b20 descreve a substacircncia
como sendo de dois tipos uma vez que o primeiro tipo seria uma combinaccedilatildeo de
foacutermula com a mateacuteria e o segundo tipo como sendo a forma em seu sentido pleno
Sendo a forma uma constante inadmitindo acidentes ao contraacuterio da foacutermula com a
mateacuteria que eacute passiacutevel de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo
Portanto a mudanccedila parece compreender como predicados ato e potecircncia
pois natildeo seria possiacutevel movimento enquanto ato uma vez que neste a causa final
jaacute fora atingida nem enquanto soacute potecircncia uma vez que algo pode permanecer
nesse estado sem que haja qualquer mudanccedila Nesse sentido o movimento eacute
potecircncia e ato
Para Aristoacuteteles o movimento eacute a a realizaccedilatildeo15 daquilo que estaacute em
potecircncia (Fiacutes III 1 201 a 10) Ou seja o movimento eacute a passagem da potecircncia
para o ato Um dos exemplos citados na Fiacutesica eacute o crescimento como sendo a
realizaccedilatildeo a passagem da potecircncia para o ato16 De acordo com Russell (2001)
14
Sobre o ser vide AUBENQUE (2012) 15
έντελέχεια (enteleacutekheia) 16
Y puesto que distinguimos en cada geacutenero lo actual y lo potencial el movimiento es la actualidad de lo potencial en cuanto a tal por ejemplo la actualidad de lo alterable en tanto que alterable es la alteracioacuten la de lo susceptible de aumento y la de su contrario lo susceptible de disminucioacuten mdash no hay nombre comuacuten para ambos mdash es el aumento y la disminucioacuten la de lo generable y lo destructible es la gene- racioacuten y la destruccioacuten la de lo desplazable es el desplazamiento en tanto que decimos que es tal estaacute en actualidad entonces estaacute siendo construido tal es el proceso de construccioacuten y lo mismo en el caso de la instruccioacuten la medicacioacuten la rotacioacuten el salto la maduracioacuten y el envejecimiento (Fiacutes III 1 201 a 16)
24
Se um frasco de oacuteleo comeccedila a queimar podemos dizer que eacute assim porque jaacute o era potencialmente mesmo antes Poreacutem evidentemente isto natildeo eacute uma explicaccedilatildeo Na verdade por motivos deste tipo algumas escolas filosoacuteficas negaram que se pudesse dizer qualquer coisa uacutetil sobre o assunto Antiacutestenes de Megara foi um deles como veremos adiante Segundo este ponto de vista uma coisa eacute de um determinado tipo ou natildeo e qualquer coisa aleacutem disto eacute tolice Mas eacute claro que fazemos afirmaccedilotildees como ldquoo oacuteleo eacute inflamaacutevelrdquo e elas fazem perfeito sentido A anaacutelise de Aristoacuteteles fornece a resposta correta Ao dizermos que uma coisa eacute potencialmente A queremos dizer que sob certas condiccedilotildees seraacute de fato assim [] As condiccedilotildees em questatildeo eacute claro devem ser tais que possam de fato ocorrer quer dizer ser atuais Neste sentido o atual eacute logicamente anterior ao potencial Agora pode-se dar uma explicaccedilatildeo da mudanccedila em virtude de uma substacircncia que eacute portadora potencial de uma seacuterie de qualidades que nela se tornam sucessivamente atuais (RUSSELL 2001 p 113)
Assim poderiacuteamos dizer que o hilemorfismo eacute o locus onde Aristoacuteteles
ensaia a teoria do movimento pois eacute da realidade sensiacutevel constituiacuteda de mateacuteria17 e
forma que podemos imaginar o salto e os possiacuteveis acidentes entre a potecircncia e o
ato ldquo[] parece que para a mesma coisa eacute possiacutevel tanto ser como natildeo ser Assim
por exemplo tudo aquilo que pode caminhar ou ser cortado pode natildeo caminhar ou
natildeo ser cortado E a razatildeo disso eacute que essas coisas que satildeo desta maneira em
potecircncia nem sempre satildeo em atordquo (Da Int 21b10) Essa postura apresentada em
Da Interpretaccedilatildeo pode ser contemplada tambeacutem na Metafiacutesica ldquo[] a mesma coisa
pois pode ser potencialmente ao mesmo tempo dois contraacuterios mas natildeo pode ser
atualmenterdquo (Met IV 5 1009b34-36)
No estudo das causas18 Aristoacuteteles as classifica em quatro quais sejam
causa formal causa material causa eficiente e causa final Considerar apenas a
forma e a mateacuteria natildeo eacute suficiente pois teriacuteamos uma teoria estaacutetica Como estamos
tratando de uma realidade dinacircmica eacute necessaacuterio portanto que consideremos a
existecircncia de um agente e seu objetivo
Assim a mateacuteria eacute potecircncia por estar apta a receber a forma e
consequentemente alcanccedilar o ato Tal como o bloco de granito estaacute apto a tornar-se
a Vecircnus de Milo
17
ύλη (hyle) 18
Sobre as quatro causas Giovanni Reale explica sua relaccedilatildeo com a Fiacutesica em especial no que
concerne ao movimento vide (REALE 2001 p 57)
25
Em De Anima (432a15 - 433b) Aristoacuteteles descreve o movimento como
pertencente agrave razatildeo praacutetica De acordo com o texto o intelecto ou a razatildeo
especulativa nada pensa na esfera do praacutetico nem delibera acerca dos objetos a
serem evitados ou buscados enquanto o movimento local diz respeito sempre ao
evitar ou ao buscar de algum objeto
Nesse importante trecho estatildeo inseridas as bases do silogismo praacutetico19
destarte a assertiva que segue o trecho eacute a seguinte ldquoe o ponto final do processo
de raciocinar constitui o ponto de partida da accedilatildeo Eacute por boa razatildeo que esses dois
nomeadamente o desejo e o intelecto praacutetico satildeo considerados fonte do
movimentordquo (DA 432a17)
Em sua Metafiacutesica (1046b5) afirma que toda potecircncia racional admite
resultados contraacuterios diferente das potecircncias irracionais onde o resultado eacute
necessaacuterio O exemplo utilizado eacute o do calor e o da medicina o calor soacute pode
produzir calor enquanto a medicina pode produzir sauacutede e doenccedila
Portanto o movimento pertencente agrave razatildeo praacutetica eacute para noacutes a passagem
da potecircncia para o ato Em tal passagem podemos constatar a presenccedila de
resultados contraacuterios ou seja aquilo que eacute em potecircncia natildeo o seraacute
19
Sobre ldquosilogismo praacuteticordquo vide Pierre Aubenque (2008 p 52) ldquologo entre a teoria e a praacutetica e
finalmente entre a ciecircncia e a prudecircncia esta uacuteltima relativa menos agrave ldquodeduccedilatildeordquo que desce do
princiacutepio agrave aplicaccedilatildeo do que a um ldquoempirismordquo que se esforccedila bem ou mal por se orientar no acircmago
mesmo do particularrdquo Neste trecho parece afastar-se da loacutegica Mais adiante na p 254 aborda
novamente o tema e conclui por uma perspectiva conciliadora ou seja apresenta duas foacutermulas para
a deliberaccedilatildeo uma a do silogismo praacutetico como aplicaccedilatildeo do universal ao particular e a outra que diz
respeito agrave escolha judiciosa dos meios Em sua Histoacuteria da Eacutetica Alasdair MacIntyre (1991 p 76 -
77) ldquoAristoacuteteles caracteriza la forma de deliberacioacuten implicada como un silogismo praacutectico La
premisa mayor de un silogismo semejante es un principio de accioacuten en el sentido de que cierta clase
de cosas es buena conviene o satisface a cierta clase de personas La premisa mayor es la
afirmacioacuten garantizada por la percepcioacuten de que hay un ejemplo de que aunque misterioso en su
contenido aclara la forma del silogismo praacutectico La premisa mayor indica que el alimento seco es
bueno para el hombre la premisa menor sentildeala la presencia de ese tipo de alimento y la conclusioacuten
es que el agente lo ingiere Que la conclusioacuten es una accioacuten pone de manifiesto que el silogismo
praacutectico es un modelo de razonamiento por parte del agente y no un modelo de razonamiento ajeno
sobre lo que el agente deberiacutea hacer (por eso una segunda premisa menor que indicara por ejemplo
la presencia de un en cuanto nos alejariacutea de la cuestioacuten) Ni tampoco es un modelo de confundirse
con aquellos silogismos muy comunes cuya conclusioacuten es una afirmacioacuten de este tipo Toda su
finalidad reside en indagar el sentido en que una accioacuten puede ser la resultante de un razonamientordquo
26
necessariamente em ato Da admissatildeo de tais resultados decorre a indeterminaccedilatildeo
Eacute justamente essa indeterminaccedilatildeo que justifica a deliberaccedilatildeo
23 Indeterminismo e a eacutetica das virtudes
Iniciamos o segundo capiacutetulo afirmando que tanto a prudecircncia quanto a
equidade pertencem ao campo da accedilatildeo e que ambas se manifestam nas situaccedilotildees
contingentes20 Revisitando os conceitos da loacutegica foi possiacutevel identificar a natureza
da contingecircncia como pertencente agraves modalidades Por fim identificamos que o
movimento entre a potecircncia e o ato eacute uma fonte contingencial uma vez que a
potecircncia admite atualizaccedilotildees contraacuterias evidenciando o que chamamos de
indeterminaccedilatildeo21
Neste item pretendemos compreender a natureza da indeterminaccedilatildeo como
um chamamento para accedilatildeo asseverando as diferentes concepccedilotildees da noccedilatildeo de
acaso nas obras de Aristoacuteteles
Pierre Aubenque (2008) em seu livro A prudecircncia em Aristoacuteteles faz uma
profunda leitura das obras do Estagirita evidenciando trecircs distintas concepccedilotildees de
acaso Na primeira delas uma leitura da Eacutetica Eudecircmia onde o acaso aparece sob a
forma de ldquofortunardquo Na segunda uma leitura da Fiacutesica esboccedilando o acaso como
inserto em sua teoria da causalidade E na terceira e uacuteltima uma leitura da Eacutetica a
Nicocircmaco o acaso enquanto indeterminaccedilatildeo objetiva isto eacute contingecircncia As trecircs
concepccedilotildees satildeo detalhadamente explicadas por Pierre Aubenque (2008 p 117-
130)
231 Primeira concepccedilatildeo de acaso A boa fortuna
20
Parece que a contingecircncia se manifesta de diversa forma em cada uma das virtudes situaccedilatildeo que seraacute analisada mais detidamente no estudo de cada uma delas 21
Aqui o emprego da expressatildeo ldquoindeterminaccedilatildeordquo refere-se a admissatildeo da existecircncia do acaso em verdade natildeo eacute nossa intenccedilatildeo trabalhar a dicotomia ldquodeterminismo-indeterminismordquo
27
Na Eacutetica Eudecircmica Aristoacuteteles procura mostrar que a boa fortuna22 natildeo se
deve ao exerciacutecio das virtudes morais ou intelectuais mas ao bom nascimento
desse modo a boa fortuna eacute algo irasciacutevel
O questionamento eacute formulado Se a boa fortuna natildeo eacute produto da razatildeo
entatildeo eacute um presente de deus ou uma causa natural
As objeccedilotildees seguem no sentido de que o bom nascimento natildeo se explica
pela proteccedilatildeo divina pois seria indigno dos deuses dispensarem favores aos maus
Da mesma forma natildeo seria pela natureza uma vez que ldquoa natureza eacute causa do que
eacute sempre uniforme ou do que acontece frequentemente e o acaso eacute o oposto dissordquo
(EE VII 14 1247a14-31)
Pierre Aubenque (2008) nos daacute a seguinte soluccedilatildeo
Tal objeccedilatildeo no entanto natildeo repousaria sobre uma concepccedilatildeo errocircnea do acaso Aristoacuteteles o pergunta para sugerir uma teoria segundo a qual ldquoeacute preciso rejeitar inteiramente o acaso e dizer que nada acontece por acaso pois quando dizemos que o acaso eacute uma causa haacute na realidade uma outra causa poreacutem ocultada para noacutes Eacute por isso que quando se define o acaso o tomamos como uma causa impenetraacutevel ao raciociacutenio humano (aitian alogon anqrwpinw logismw) como se se
tratasse de uma certa naturezardquo [] essa causa oculta ao entendimento humano que se chama impropriamente acaso eacute num certo sentido uma causa natural ndash e nesse sentido eacute verdadeiro dizer que os homens afortunados o satildeo por natureza Natureza poreacutem que natildeo deve ser entendida no sentido dos fiacutesicos eacute a boa ou maacute natureza o bom ou mau nascimento que eacute um dom dos deuses natildeo para recompensar nossos meacuteritos ou para complementaacute-los mas o dom inicial constitutivo de nosso quinhatildeo que natildeo eacute pois uma consequumlecircncia mas a fonte de nossos meacuteritos ou demeacuteritos (2008 p 119)
Portanto o acaso enquanto boa fortuna parece tanto um presente de Deus
por constituir o quinhatildeo inicial quanto uma causa natural pois os afortunados o satildeo
por natureza (EE VII 14 1247b28)23
Contudo Aubenque (2008) deixa em aberto uma seacuterie de questionamentos a
essas possiacuteveis soluccedilotildees o que nos parece liacutecito uma vez que para nosso objetivo
basta compreender as consequecircncias da boa fortuna no campo da razatildeo praacutetica
Vejamos a exposiccedilatildeo 22
eutuxia 23
Natildeo obstante a essa aparente soluccedilatildeo Pierre Aubenque (2008) natildeo a daacute por resolvida o que percebemos eacute uma questatildeo que tende agrave teologia provavelmente pretende uma soluccedilatildeo no acircmbito de outra obra
28
Mas a concepccedilatildeo de acaso sugerida pelo texto natildeo eacute nem tatildeo clara nem tatildeo isenta de dificuldades como poderia parecer agrave primeira vista Pois jaacute apresenta ao lado da noccedilatildeo religiosa de acaso ndash Forccedila oculta que a tudo dirige ndash uma outra concepccedilatildeo que liga o acaso natildeo mais a transcendecircncia insondaacutevel da divindade mas agraves falhas de sua accedilatildeo Vimos nesses textos que o acaso eacute oposto agrave natureza como excepcional ao uniforme Um pouco mais longe Aristoacuteteles esclarece que o acontecimento casual eacute aquele que certamente deriva das causas embora indefinidas e indeterminadas (apeirwn kai aoristwn) ou seja
do gecircnero de causas do qual natildeo pode haver ciecircncia Sem duacutevida o sentido geral do texto permite entender que Aristoacuteteles toma facilmente o partido da impossibilidade de uma ciecircncia do acaso visto haver algo superior agrave ciecircncia que eacute Deus (AUBENQUE 2008 p 126)
As conclusotildees que se seguem satildeo consequecircncia desta O sentido eacute o de
que o acaso eacute aparente pois seria Deus o primeiro motor Assim o sendo natildeo haacute
que se falar em deliberaccedilatildeo uma vez que a inteligecircncia Divina jaacute a teria previamente
realizado A denominaccedilatildeo ldquoacasordquo eacute funccedilatildeo de nossa ignoracircncia agrave Causa das
causas ou seja Deus
A consequecircncia que estrai Aristoacuteteles eacute que os homens afortunados natildeo devem sua fortuna agrave sua inteligecircncia nem mais particularmente agrave sua capacidade de deliberaccedilatildeo ldquopara qualquer lado que se lanccedilam triunfam sem reflexatildeo (alogoi ontej) deliberar natildeo lhes serve para nada pois
tem neles um princiacutepio que eacute melhor que o intelecto e a deliberaccedilatildeo enquanto os outros tecircm apenas raciociacutenio os afortunados natildeo o tem mas satildeo habitados pelo deusrdquo
24 (AUBENQUE 2008 p 121)
Assim para os afortunados o exerciacutecio das virtudes eacute inuacutetil uma vez que jaacute
possuem os bens necessaacuterios para alcanccedilarem a felicidade Ao contraacuterio dos
afortunados tal exerciacutecio eacute para os virtuosos o caminho alternativo para se
alcanccedilar aquilo que natildeo receberam da natureza ou da Providecircncia Divina
232 Segunda concepccedilatildeo de acaso Acidente
Na Fiacutesica eacute apresentada uma teoria da causalidade que atinge tanto os
seres dotados de escolha quanto os seres natildeo dotados Pierre Aubenque (2008)
24
EE VII 14 1248a29-33
29
explica que o acaso natildeo eacute o encontro de duas seacuteries causais mas o encontro de
uma seacuterie causal real dotada de uma certa finalidade com uma finalidade
imaginaacuteria de modo que tal encontro poderia ser retrospectivamente reconstruiacutedo a
partir do resultado
O exemplo extraiacutedo da Fiacutesica25 eacute de um homem que ao ir ao mercado
encontra-se por acaso com um algueacutem que o deve os fatos se desenrolam como
se o motivo de tal homem estar ali fosse cobrar a diacutevida quando de fato o motivo
era outro Essa interpretaccedilatildeo do acaso agora parece evidente vejamos
[] este motivo o uacutenico real eacute pois causa por acidente de um efeito que natildeo era visado como tal o ressarcimento da diacutevida Como se vecirc uma tal concepccedilatildeo do acaso natildeo introduz nenhuma falha no encadeamento causal o acaso apenas acrescenta uma intenccedilatildeo a qual sendo imaginaacuteria de fato natildeo acrescenta nem suprime nada agrave realidade do processo natural O acaso nesse sentido eacute uma ilusatildeo retrospectiva a projeccedilatildeo de uma finalidade humana sobre uma relaccedilatildeo causal que eacute por si mesma inteiramente estranha a esta finalidade (AUBENQUE 2008 p 126)
Essa noccedilatildeo que segundo AUBENQUE (2008) soa como determinista
recebe mais adiante um desenvolvimento mais apurado O acaso eacute concebido natildeo
como causa mas sim como efeito Desta forma o acaso enquanto encontro de uma
seacuterie causal e de um fim natildeo perseguido aparece como fato excepcional e sem
causas ao menos determinaacuteveis pois suas causas sendo causas acidentais satildeo
indeterminaacuteveis ldquoa causa por si mesma eacute determinada a causa por acidente eacute
indeterminada pois a pletora de acidentes possiacuteveis de uma coisa eacute infinitardquo (Fiacutes II
5 196b27-29)26 ldquoO acaso natildeo aparece senatildeo num mundo onde o acidente ndash ou
seja o que adveacutem sumbanei a uma coisa ndash natildeo se deixa reduzir agrave essecircncia um
mundo onde nada eacute dedutiacutevel onde a infinidade de acidentes possiacuteveis de uma
coisa tornam imprevisiacuteveis as combinaccedilotildees que daiacute podem resultarrdquo (AUBENQUE
2008 p 127)
Portanto a noccedilatildeo de acaso apresentada na Fiacutesica diferencia-se da boa
fortuna apresentada na Eacutetica a Eudemo pois enquanto a boa fortuna refere-se ao
25
Fiacutes II 5 196b 33-197a5 26
Fiacutes II 5 196b27-29
30
bom nascimento o acidente na Fiacutesica refere-se a incontaacuteveis possibilidades que nos
impedem de antever os possiacuteveis resultados
233 Terceira concepccedilatildeo de acaso contingecircncia
Diferente das duas concepccedilotildees anteriores a exposiccedilatildeo da Indeterminaccedilatildeo
objetiva ou contingecircncia passa a ter um cunho teoloacutegico-antropoloacutegico Parece que
a visatildeo da Eacutetica a Nicocircmaco sobre o acaso estaacute mais direcionada ao traacutegico
Pierre Aubenque (2008 p 127-28) inicia fazendo um interessante paralelo
entre o Saacutebio e o Prudente procurando entre esses aquele que poderaacute atingir a
felicidade A conclusatildeo como eacute de se esperar27 indica o prudente como aquele que
poderaacute um dia ser chamado feliz
Contudo o referido autor natildeo negligencia as aparentes objeccedilotildees ateacute mesmo
porque Aristoacuteteles natildeo as negligenciou Muito pelo contraacuterio ainda que de forma
bem tiacutemida Aristoacuteteles fez breve passagem expondo a grandeza da vida
contemplativa
A argumentaccedilatildeo apresentada por comentadores28 pode ser resumida da
seguinte forma Se o que o homem tem de mais proacuteximo a Deus eacute o intelecto entatildeo
Deus quer bem os saacutebios portanto os saacutebios satildeo felizes Nesse sentido a noccedilatildeo
temporal de felicidade inexiste pois basta o exerciacutecio das faculdades intelectivas
para alcanccedilar o estado de felicidade (AUBENQUE 2008)
A objeccedilatildeo apresentada por Pierre Aubenque (2008 p128) eacute clara De
acordo com ele eacute nesse ponto que Aristoacuteteles se afasta de toda a tradiccedilatildeo socraacutetica
pois no pensamento aristoteacutelico a virtude ainda que natildeo suficiente eacute condiccedilatildeo
necessaacuteria da felicidade
Ainda de acordo com essa objeccedilatildeo estaacute que a definiccedilatildeo de felicidade eacute
composta pela virtude e pelos bens exteriores e bens do corpo Por oacutebvio esses
dois uacuteltimos bens ldquonatildeo podem ser adquiridos pelo exerciacutecio ou meacuterito eles
dependem da boa fortunardquo (AUBENQUE 2008 p 129)
27
Afinal este eacute o tema desta dissertaccedilatildeo 28
Comentadores citados por AUBENQUE (2008) ZELLER Die Philosophie der Griechen II 2 1921 4ordf DIRLMEIER F Magna Moralia 1958
31
Destarte o primeiro desses bens a virtude natildeo pode ser compreendida sem
ter por referencial a contingecircncia Pois como jaacute exposto para ser feliz eacute preciso ser
virtuoso para ser virtuoso eacute preciso ter condiccedilotildees externas para exercitar as
virtudes
[] inicialmente porque a virtude necessita de uma mateacuteria para se exercer e como vimos de um ldquomundordquo ou seja necessita de condiccedilotildees que natildeo dependem de noacutes como amigos dinheiro um certo poder poliacutetico e tambeacutem de ocasiotildees as quais natildeo se oferecem a todos (Heacutercules teve a oportunidade de encontrar o leatildeo de Nemeacuteia e a hidra de Lerna Mas num segundo sentido natildeo pode haver felicidade completa sem a plenitude da vida (bioj teleioj) o que supotildee sem
duacutevida uma duraccedilatildeo optima mas tambeacutem a integridade do corpo e a prosperidade de nossos empreendimentos o que os gregos resumem em uma palavra eupraia (AUBENQUE 2008 p129)
Para encerrar a questatildeo entre o saacutebio e o prudente eacute exposta uma seacuterie de
argumentos que pretendem demonstrar a fragilidade dos argumentos socraacuteticos por
exemplo que enquanto Deus basta a si mesmo o homem precisa ter amigos ou
que o saacutebio necessita do oacutecio Enfim tantas satildeo as condiccedilotildees externas que natildeo
parece o saacutebio poder ser tatildeo autaacuterquico quanto pretende a visatildeo socraacutetica para ser
feliz
Mas a concepccedilatildeo perseguida em A Prudecircncia em Aristoacuteteles eacute a do fracasso
da Providecircncia Divina Isso quer dizer que a ldquovirtude depende do mundo tanto
quanto de suas condiccedilotildees de existecircncia e este mundo natildeo depende de noacutes Eis o
virtuoso de Aristoacuteteles e mesmo o contemplativo ndash os quais satildeo menos duas
personagens distintas do que a mesma personagem em niacuteveis diferentes de
excelecircnciardquo (AUBENQUE 2008 p 135) ambos condicionados agrave heteronomia e agrave
relaccedilatildeo de ldquoacasordquo Haacute algo de traacutegico na vida moral decorrente da uniatildeo entre a
felicidade e a virtude que natildeo eacute por assim dizer analiacutetica como acreditavam os
socraacuteticos mas sempre sinteacutetica porque depende numa proporccedilatildeo irredutiacutevel do
acasordquo (AUBENQUE 2008 p 135)
[] o ideal de Aristoacuteteles natildeo pode consistir numa assimilaccedilatildeo ao mundo em seu conjunto visto que este soacute eacute racional em suas partes superiores mas somente na imitaccedilatildeo da ordem que nelas reina O conhecimento dessa ordem que natildeo pode ser procurado na fiacutesica como para os estoacuteicos mas na teologia eacute o que Aristoacuteteles nomeia sabedoria Mas a
32
vida segundo a sabedoria natildeo eacute imediatamente acessiacutevel ao homem por uma ascese interior pois ela depende tambeacutem em suas condiccedilotildees de realizaccedilatildeo das circunstacircncias exteriores as quais natildeo satildeo nem na aparecircncia nem profundamente inteiramente racionais O reino da sabedoria exige pois um domiacutenio preacutevio das circunstacircncias domiacutenio que natildeo pode ser adquirido senatildeo por uma accedilatildeo teacutecnica sobre o mundo Se para os estoacuteicos a indiferenccedila em relaccedilatildeo agraves circunstacircncias se justificaraacute em uacuteltima anaacutelise pela crenccedila na Providecircncia e na convicccedilatildeo correlata de que todo real eacute racional o homem de Aristoacuteteles natildeo saberaacute fingir indiferenccedila a respeito de um mundo cuja indeterminaccedilatildeo eacute a forma propriamente aristoteacutelica do mal Poreacutem aqui se opera uma inversatildeo que forneceraacute o domiacutenio e no sentido mais forte do termo a ldquochancerdquo da accedilatildeo moral se a contingecircncia eacute a fonte do mal ela torna possiacutevel as iniciativas humanas em vista do bem a indeterminaccedilatildeo signo da impotecircncia da razatildeo universal eacute ao mesmo tempo abertura agrave accedilatildeo racional do homem [] O homem de Aristoacuteteles natildeo pode se tornar indiferente agraves circunstacircncias mas lhe eacute permitido na medida em que satildeo moldaacuteveis para moldaacute-las humanamente e se natildeo eacute convidado a mudar antes seus desejos do que a ordem do mundo eacute porque Aristoacuteteles conta com o desejo racional para terminar de ordenar o mundo tomando o lugar de uma Providecircncia faliacutevel (2008 p143-145 negrito nosso)
Dessa forma natildeo depende dos homens apenas moldar seus proacuteprios
desejos mas tambeacutem o mundo por ser somente ordenado de modo geral Dessa
forma a contingecircncia eacute o mal e o remeacutedio de acordo com o desejo29 do homem Eacute
nesse sentido que devemos abordar um tema que eacute corrente entre os
comentadores30 de Aristoacuteteles a trageacutedia
2331 Trageacutedia31
O elemento traacutegico heranccedila da mais alta literatura e ao mesmo tempo do
conhecimento popular do homem grego estaacute presente na obra do Estagirita Eacute
nesse sentido que os traccedilos mais marcantes de sua filosofia estatildeo inflados com a
nossa fraacutegil condiccedilatildeo humana
29
Sobre ldquodesejordquo eacute interessante notar que eacute a fonte do movimento e tambeacutem da escolha racional Para tanto consulte De Anima e a Eacutetica a Nicocircmaco 30
Sobre ldquotrageacutediardquo Vide AUBENQUE (2008) LOPES (2007) NUSSBAUM (2009) Martha Nussbaum (2009) faz uma detalhada exposiccedilatildeo acerca do elemento traacutegico Mocircnica Sette Lopes (2007 p 51) expotildee igualmente sobre o gecircnero literaacuterio ldquoA poesia traacutegica assemelha-se a uma escultura maleaacutevel e dinacircmica que visa agrave educaccedilatildeo da alma humana pelo exemplordquo Aqui optamos pelos aspectos expostos por Pierre Aubenque uma vez que esta em concordacircncia com sua exposiccedilatildeo sobre a contingecircncia 31
Vide item 44 Deliberaccedilatildeo e Escolha
33
O que parece ser o centro de toda sua eacutetica a felicidade estaacute mediada por
uma seacuterie de condiccedilotildees que natildeo depende de noacutes conforme jaacute citamos ldquoHaacute algo de
traacutegico na vida moral [] mas sempre sinteacutetica porque depende numa proporccedilatildeo
irredutiacutevel do acasordquo (AUBENQUE 2008 p 135)
O traacutegico eacute apresentado por Aristoacuteteles com um sentido mais humanizado
que divinizado ao contraacuterio de uma trageacutedia onde os heroacuteis satildeo imortalizados por
seus feitos o Estagirita apresenta um homem que faz o melhor que pode vejamos
Se esse traccedilo natildeo surpreendeu os comentadores eacute porque o traacutegico tem em Aristoacuteteles um aspecto residual de modo que se pocircde ver nele a sobrevivecircncia de uma prudecircncia popular ndash nada aleacutem do que natildeo ser preciso desafiar os deuses proclamando em alto e bom som a autarquia e a ldquoimortalidaderdquo do homem ndash da qual Aristoacuteteles natildeo teria inteiramente se libertado ou simplesmente uma concessatildeo puramente formal a esta mentalidade [] Em Aristoacuteteles o traacutegico eacute residual poreacutem em sentido ontoloacutegico no sentido de uma distacircncia sempre estreitaacutevel mas insuprimiacutevel que separa o homem da felicidade ou mesmo separa a felicidade do homem tout court e faz com que os homens possam ser felizes mas ldquocomo os homens podem secirc-lordquo (AUBENQUE 2008 p 136)
Dessa forma a accedilatildeo humana estaacute numa aacuterea entre o melhor possiacutevel e o
bem absoluto sendo o ponto final de nossa busca o modelo inacessiacutevel ou
superlativo absoluto
Eacute dentro dessa fronteira onde falha a Providecircncia e o traacutegico mostra um
homem que age e age o melhor possiacutevel dentro de suas possibilidades que
podemos compreender os contornos que liga a contingecircncia agrave eacutetica aristoteacutelica
Portanto Pierre Aubenque (2008 p 110-112) esclarece acerca da atuaccedilatildeo
da prudecircncia no campo da contingecircncia que agir e produzir satildeo de alguma forma
se inserir na ordem do mundo para modifica-lo eacute supor que este mundo que
oferece tal latitude comporta certo jogo certa indeterminaccedilatildeo certo inacabamento
Tanto o objeto da accedilatildeo (a prudecircncia) quanto o da produccedilatildeo (a arte) pertencem pois
ao domiacutenio daquilo que pode ser diferente Ora se a disposiccedilatildeo para produzir
acompanhada de regra chama-se arte a disposiccedilatildeo para agir acompanhada de
regra chama-se prudecircncia Por isso a accedilatildeo imanente agrave praacutexis tem menos por objeto
a natureza do que suas falhas ou inacabamentos Esta indeterminaccedilatildeo eacute
34
precisamente o que permite a Aristoacuteteles classificar os processos naturais no
domiacutenio da contingecircncia
Se for pois o homem prudente aquele que estaacute apto agrave accedilatildeo moral a
decisatildeo correta e portanto ao elo que pode ligar o conhecimento geral ao
particular32 tentaremos entendecirc-lo por sua virtude a Prudecircncia Antes poreacutem para
podermos compreender tal virtude bem como na sequecircncia seu conceito de justiccedila
e de equidade devemos fazer uma passagem pela teoria geral das virtudes
32
Essa distacircncia seraacute mais bem abordada em momento oportuno ndash quando tratarmos de prudecircncia e de equidade Aubenque reporta esse assunto em sua obra O problema do ser em Aristoacuteteles (2012 p 63)
35
3 EacuteTICA DAS VIRTUDES
No quarto capiacutetulo de seus Escritos de filosofia II Henrique C de Lima Vaz
faz uma interessante abordagem acerca da eacutetica A ilustraccedilatildeo eacute dada pelo proacuteprio
tiacutetulo Do ethos agrave sociedade Poliacutetica A gecircnese do direito
A proposta do referido capiacutetulo eacute demonstrar que o direito surge com a
relaccedilatildeo eacutetica que soacute pode ser vivenciada na poacutelis ldquoO aparecimento e
desenvolvimento da sociedade poliacutetica caminham em estreita inter-relaccedilatildeo com a
formaccedilatildeo da ciecircncia do ethosrdquo (VAZ 2000 p135) Assim podemos dizer que o
estudo da eacutetica surge e se desenvolve com o surgimento e desenvolvimento da
poacutelis
Neste sentido a lei aparece revelando ter como funccedilotildees educar o indiviacuteduo
agrave vida na cidade ao mesmo tempo em que repara os conflitos onde as virtudes natildeo
satildeo observadas33
A matriz conceptual eacute representada pela ideacuteia de lei (noacutemos) que deve permitir o estabelecimento de uma proporccedilatildeo ou correspondecircncia (analogiacutea) entre a lei ou medida (meacutetron) interior que rege a praxis do indiviacuteduo e a lei da cidade que eacute propriamente o noacutemos e deve assegurar a participaccedilatildeo equumlitativa (eunomiacutea) dos indiviacuteduos no bem que eacute comum a todos e que eacute primeiramente o proacuteprio viver-em-comum De um lado a explicitaccedilatildeo da racionalidade imanente do ethos se constitui como teoria da praxis individual e assume a forma de uma doutrina da virtude (areteacute) ou da Eacutetica no sentido estrito O ethos eacute entatildeo conceptualizado fundamentalmente como haacutebito (hexis) De outro a razatildeo do ethos iraacute exprimir-se na forma de uma teoria do existir e do agir em comum e se apresentaraacute como doutrina da lei justa (politeia) O ethos eacute entatildeo conceptualizado fundamentalmente como costume A ciecircncia da politeia ou a Poliacutetica eacute assim a outra face da Eacutetica (VAZ 2000
p135)
Portanto a eacutetica pretende orientar as relaccedilotildees humanas ordenando as
accedilotildees para o bem comum
33
Voltaremos a falar sobre o assunto quando tratarmos da Justiccedila como Virtude
36
[] as virtudes natildeo encontram seu lugar na vida do indiviacuteduo mas tambeacutem na vida da cidade e que o indiviacuteduo soacute eacute de fato inteligiacutevel como um politikon zocircon
Esse uacuteltimo comentaacuterio sugere que um modo de elucidar o relacionamento entre as virtudes e a moralidade das leis eacute pensar no que consistiria em qualquer eacutepoca fundar uma comunidade para realizar um projeto comum realizar algum bem reconhecido como bem comum por todos os participantes do projeto (MACINTYRE 2001 p 256-257)
Estabelecida a relaccedilatildeo entre a eacutetica e o direito devemos agora procurar os
fundamentos da eacutetica aristoteacutelica para entatildeo verificarmos o comportamento das
virtudes da Prudecircncia da Justiccedila e da Equidade no acircmbito da justiccedila aristoteacutelica
31 Eacutetica a Nicocircmaco
Na forma que comporta o tiacutetulo deste item passaremos a tratar algumas
questotildees pertinentes ao conteuacutedo da obra Eacutetica a Nicocircmaco a fim de contextualizar
o objeto deste trabalho
Os principais escritos de Aristoacuteteles sobre eacutetica que chegaram a noacutes satildeo
Eacutetica a Nicocircmaco Eacutetica a Eudemo e a Eacutetica Maior esta uacuteltima tambeacutem conhecida
como Magna Moraacutelia Os escritos sobre eacutetica em especial a Eacutetica a Nicocircmaco e a
Eacutetica a Eudemo comportam caracteriacutesticas de notas tomadas por disciacutepulos tendo
por base os ensinamentos passados pelo Estagirita (RUSSELL 2001 p 109)
Por ser uma obra mais amplamente aceita tomaremos a Eacutetica a Nicocircmaco
como principal referecircncia aristoteacutelica para a Eacutetica das Virtudes sem contudo
ignorar algum detalhe que possa elucidar aspectos pertinentes agrave nossa pretensatildeo e
presente nas outras duas obras citadas Nesse sentido comenta Eduardo Bittar
A Ethica Nicomachea recebeu amplo tratamento devido ao interesse que desperta dos modernos comentadores da obra o mesmo natildeo sucede com as duas outras obras dedicadas agrave temaacutetica Aliaacutes a trilogia natildeo parece gerar uniformidade no corpo dos eruditos pois a recepccedilatildeo de uma (EE ou MM) ou de ambas (EE e MM) natildeo tem sido paciacutefica questionando-se natildeo soacute acerca da pertinecircncia e da originalidade destas obras mas tambeacutem acerca da cumulaccedilatildeo tautoloacutegica de escritos para o tratamento de um mesmo problema o que seria assimeacutetrico na obra aristoteacutelica onde parece ser a regra a existecircncia de uma uacutenica obra para
37
a investigaccedilatildeo de uma problemaacutetica determinada (BITTAR 2003 p992)
A Eacutetica a Nicocircmaco inicia-se traccedilando questionamentos acerca do que seja
o bem Parte-se da ideia de que o indiviacuteduo suas accedilotildees e escolhas estatildeo voltadas
a um bem Este bem eacute aquilo a que todas as coisas possuem certa tendecircncia
Assim o fim de todas as accedilotildees humanas eacute o sumo bem (EN I 1 1094a) O
conhecimento deste fim conduz agrave determinaccedilatildeo da ciecircncia cujo bem supremo eacute o
objeto
Essa ciecircncia cujo estudo caberaacute agrave Eacutetica eacute a ciecircncia mestra isto eacute a
Poliacutetica As accedilotildees por si mesmas boas e justas podem admitir uma ampla variedade
de opiniotildees e neste sentido podem ter sua existecircncia devida agraves convenccedilotildees e natildeo
naturalmente Daiacute portanto constituem objeto da poliacutetica Assim visa-se a accedilatildeo do
bem mas o seu conhecimento natildeo eacute proveitoso a todos Agravequeles que desejam e
agem conforme um princiacutepio racional isso seraacute uacutetil por outro lado natildeo teraacute utilidade
para o jovem sem experiecircncias dos fatos da vida o qual segue tatildeo somente suas
paixotildees (ENI 3 1095a)
Essa interessante passagem revela ser o objeto das deliberaccedilotildees da poacutelis
temas como o ldquobomrdquo e o ldquojustordquo Aristoacuteteles natildeo ignora o fato de que o bom e o justo
admitem uma gama de opiniotildees por isso tais temas estatildeo na pauta das
convenccedilotildees
Aristoacuteteles argumenta que o sumo bem o bem perseguido por todos natildeo
pode ser o prazer a honra ou a riqueza Sobre o prazer argumenta que natildeo pode
se identificar com o sumo bem pois o prazer e o gozo satildeo proacuteprios agrave vida levada
pelos animais inferiores34
34
Interessante nota do tradutor quando Aristoacuteteles justifica a conduta de tais pessoas por se
espelhares em pessoas de alta posiccedilatildeo como Sardanaacutepalo De acordo com a nota de nuacutemero 08 ldquoSardanaacutepalo monarca assiacuterio sem consistecircncia histoacuterica de caraacuteter miacutetico O sofista tardio Ateneu de Naucraacutetis (circa 215 AD) atriui uma espeacutecie de maacutexima a Sardanaacutepalo que eacute esthie pine paize os talla touumltouuml ouumlk axia touuml apokrotematos (esthie pine paize os talla touumltouuml ouumlk axia touuml
apokrotematos) ou seja ldquoCome bebe diverte-te visto que tudo o mais natildeo vale um estalo dos dedosrdquo lhe atribui tambeacutem um trecho de um desabafo que assim finaliza kein ekho oss efagon kai efuumlbrisa kai met eroacutetos terpn epathon ta de polla kai olbia panta leluumltaiefagon kai efuumlbrisa kai met eroacutetos terpn epathon ta de polla kai olbia panta leluumltai) quer dizer ldquoeu tenho o que comi e ainda os voluptuosos atos de ultraje e amor carnal que realizei e experimentei ao passo que minha riqueza se foirdquo (BINI 2009 p 42)
38
Ora se todo o conhecimento e todo o trabalho visam a algum bem pode-se
afirmar que o fim seraacute a felicidade (RUSSELL 2001 p127) ndash objeto final da vida
fruto de atividade conforme a mais alta de todas as formas de excelecircncia (EN X 7
1177a)
Destarte faz-se necessaacuterio buscar o bem e conhecer o que ele eacute pois a
finalidade para tudo que se faz eacute o bem A vida ativa que possui um princiacutepio
racional eacute a melhor funccedilatildeo do homem Os bens satildeo as atividades da alma e
portanto parece que a felicidade se identifica com a virtude Por conseguinte agrave
virtude cabe a atividade virtuosa Entretanto o sumo bem estaacute em ato uma vez que
pode haver um estado de acircnimo sem gerar resultado positivo
[] pois pode existir o estado de espiacuterito sem que ele produza qualquer
resultado bom como no caso de uma pessoa adormecida ou inativa por
outra razatildeo mas natildeo pode ocorrer o mesmo com a atividade conforme agrave
excelecircncia de qualquer maneira ela se manifestaraacute e bem Da mesma
forma que nos jogos oliacutempicos os coroados natildeo satildeo os homens mais
fortes e belos e sim os que competem (alguns destes seratildeo os
vitoriosos) quem age conquista e justamente as coisas boas da vida
(EN I 8 1099a)
De acordo com Aristoacuteteles a mais apraziacutevel melhor e mais nobre coisa do
mundo eacute a felicidade pois a felicidade eacute uma atividade da alma de acordo com a
virtude e natildeo sendo necessariamente esta mesma felicidade a riqueza prazer ou
honra e outros mais Constata-se assim que estes bens exteriores satildeo necessaacuterios
agrave felicidade uma vez que natildeo se podem realizar atos nobres sem os meios (EN I
8 1099b)
Questiona-se se a felicidade eacute adquirida atraveacutes da aprendizagem do
haacutebito ou se eacute uma daacutediva da Providecircncia Divina ou eacute simples produto do acaso35
Sendo a felicidade a melhor coisa do mundo entatildeo seguramente seraacute uma daacutediva
divina ainda que resulte da virtude pela aprendizagem ou adestramento Portanto
natildeo se deve confiar ao simples acaso aquilo que eacute o melhor (EN I 9 1099b)
Esse ponto sem duacutevida eacute o convite agrave accedilatildeo humana e a admissatildeo do que
denominamos fracasso da Providecircncia Uma vez que ao homem em sua condiccedilatildeo
35
Voltaremos a este ponto quando tratarmos das virtudes morais e intelectuais
39
de mortal e natildeo-Deus natildeo eacute permitido se dar ao luxo de esperar uma soluccedilatildeo vinda
dos ceacuteus Pelo contraacuterio o melhor emprego que ele pode fazer eacute agir modificando e
adaptando seus desejos e possibilidades
Sobre as virtudes afirma o Filoacutesofo que existem as virtudes intelectuais as
que resultam do ensino e necessitam de experiecircncia e tempo e as virtudes morais
as quais satildeo adquiridas atraveacutes do haacutebito e pelo exerciacutecio como neste exemplo
[] os homens se tornam construtores construindo e se tornam citaristas tocando ciacutetara da mesma forma tornamo-os justos praticando atos justos moderados agindo moderadamente e corajosos agindo corajosamente (EN II 1103b1)
Portanto eacute atraveacutes da praacutetica reiterada que pode o homem moldar seu
caraacuteter sendo o homem virtuoso resultado de uma vida guiada pela reta razatildeo
32 Partes da Alma
Como exposto eacute ldquoo bem a finalidade de todas as coisasrdquo (EN I 1 1094a1)
sendo a felicidade o bem maior a ser alcanccedilado Nesse sentido podemos afirmar
que a accedilatildeo eacute uma ldquocerta atividade da alma em conformidade com a virtude perfeitardquo
(EN I 13 1102a5)
Aristoacuteteles divide a alma em partes de acordo com as atividades inerentes a
cada uma A primeira divisatildeo comporta duas partes sendo uma irracional e outra
dotada de razatildeo
No que se refere agrave psicologia algum ensino corrente em discursos externos eacute satisfatoacuterio e pode ser aqui adotado a saber que a alma eacute bipartida uma parte sendo irracional e a outra capacitada de razatildeo (Se essas duas partes satildeo realmente distintas no sentido que o satildeo as partes do corpo ou de qualquer outro conjunto divisiacutevel ou se embora distinguiacuteveis no pensamento como duas satildeo na realidade inseparaacuteveis como os lados convexo e cocircncavo de uma curva eacute uma questatildeo que carece de importacircncia para o assunto em pauta) (EN I 13 1102a27)
40
A segunda divisatildeo refere-se agrave parte irracional da alma Tal parte comporta a
funccedilatildeo vegetativa comum a todas as coisas vivas que diz respeito agrave nutriccedilatildeo e ao
crescimento e agrave funccedilatildeo sensitiva Sobre a parte vegetativa eacute interessante notar que
natildeo obstante ser comum a todos os seres vivos sua virtude natildeo eacute caracteriacutestica
dos seres humanos Vejamos
Considera-se ademais que na parte irracional da alma haacute uma divisatildeo que parece ser comum a todas as coisas vivas possuindo natureza vegetativa Refiro-me agrave divisatildeo que produz nutriccedilatildeo e crescimento pois eacute forccediloso supormos que uma faculdade vital dessa natureza existe em todas as coisas que assimilam alimento inclusive os embriotildees sendo que a mesma faculdade estaacute presente tambeacutem no organismo totalmente desenvolvido (o que eacute mais razoaacutevel do que supor uma faculdade nutritiva distinta no uacuteltimo) A virtude dessa faculdade parece portanto ser comum a todas as coisas animadas e natildeo caracteriacutestica do ser humano pois acredita-se que essa faculdade ou parte da alma eacute mais atuante durante o sono [enquanto a bondade e a maldade se manifestam minimamente durante o sono] natildeo podendo se distinguir um homem bom de um mau (e daiacute o adaacutegio segundo o qual durante metade de suas vidas natildeo haacute diferenccedila entre o feliz e o infeliz) Isso constitui um efeito natural do fato de o sono ser uma cessaccedilatildeo das atividades da alma das quais depende sua bondade ou maldade ndash exceto pelo fato de ser possiacutevel em algum modesto grau certas impressotildees sensoriais atingirem a alma durante o sono fazendo com que os sonhos dos bons sejam melhores do que aqueles dos homens comuns (EN I 13 1102b11)
Aristoacuteteles afirma que a parte relacionada aos apetites e desejos em geral ndash
a alma sensitiva ndash comum aos animais participa de algum modo do princiacutepio
racional Portanto ainda que tal parte esteja alojada na parte irracional ela manteacutem
em certa medida relaccedilotildees com o princiacutepio racional ldquoPois aprovamos a razatildeo do
indiviacuteduo continente tanto quanto o incontinente e a parte de suas almas que eacute
racional porque os induz na senda correta e os exorta para o curso mais excelenterdquo
(EN I 13 1102b15)
Sobre essa relaccedilatildeo da parte irracional da alma com o princiacutepio racional
Aristoacuteteles afirma que ldquonatildeo se pode duvidar de que tambeacutem na alma existe um
elemento distinto do princiacutepio [racional] que a ele se opotildee e lhe resisterdquo (EN I 13
1102b20-25) Para resolver essa aparente contradiccedilatildeo Aristoacuteteles mantecircm sua
teacutecnica de citar exemplos invocando aqui o exemplo do homem continente
argumentando no sentido do paraacutegrafo supra que ldquoesse segundo elemento como
mencionamos participa do princiacutepio racional Ao menos no homem continente ele
41
acata o comando do princiacutepio e eacute incontestaacutevel que no homem moderado e
corajoso ele eacute ainda mais submisso considerando-se que todas as artes da
natureza desse [tipo de] homem se harmonizam com o princiacutepiordquo (EN I 13
1102b25-30)
Destarte parece ser o princiacutepio racional capaz em alguma medida de
acessar essa parte irracional ldquo[] esse princiacutepio racional eacute capaz de algum modo
de recorrer agrave parte irracional eacute indicado por nossa praacutetica de advertir pelo emprego
que fazemos da censura e da exortaccedilatildeo em geralrdquo (EN I 13 1102b30)
Tal parte eacute responsaacutevel pelo movimento36 essa conclusatildeo eacute desdobrada no
De Anima
Ao menos o seguinte estaacute claro desde de que tenhamos a imaginaccedilatildeo na conta de uma espeacutecie de intelecccedilatildeo haacute duas fontes do movimento local nomeadamente o desejo e o intelecto [] A conclusatildeo eacute que estes dois satildeo fontes do movimento local o intelecto e o desejo entendendo eu aqui o intelecto que calcula ou raciocina em vista de um objetivo isto eacute o intelecto praacutetico o qual difere do intelecto teoacuterico (especulativo) em funccedilatildeo do caraacuteter de seu fim Por sua vez o desejo constantemente persegue um objetivo sendo que o proacuteprio objeto do desejo torna-se princiacutepio do intelecto praacutetico e o ponto final do processo de raciocinar constitui o ponto de partida da accedilatildeo (DA III 10 433a10-20)
Dessa forma tanto a parte irracional quanto a alma como um todo eacute dupla
Sendo que sua parte vegetativa natildeo toma parte do princiacutepio racional a outra
poreacutem que compreende os apetites e o desejo em geral participa de certo modo
do princiacutepio racional sendo obediente e submissa a ele que eacute o sentido que
emprestamos ao acatamento do ldquoracionalrdquo quando falamos em dar atenccedilatildeo ao
proacuteprio pai ou aos proacuteprios amigos e natildeo aquele que atribuiacutemos ao ldquoracionalrdquo nas
matemaacuteticas (EN I 13 1102b30)
Ora a virtude tambeacutem eacute diferenciada em consonacircncia com essa divisatildeo da alma Algumas formas de virtude satildeo chamadas de virtudes intelectuais e outras de virtudes morais A sabedoria e o entendimento e a prudecircncia satildeo virtudes intelectuais a generosidade e a temperanccedila satildeo virtudes morais Ao descrevermos o caraacuteter moral de algueacutem natildeo
36
Vide o item 22 Movimento da potecircncia para o ato
42
dizemos que se trata de algueacutem saacutebio ou capaz de entendimento mas que eacute uma pessoa moderada ou soacutebria Mas um homem saacutebio tambeacutem eacute louvado por sua disposiccedilatildeo e chamamos de virtudes as disposiccedilotildees dignas de louvor (EN I 13 1103a5)
Aristoacuteteles apresenta a parte racional da alma como dotada de duas
faculdades a faculdade cientiacutefica e a faculdade calculadora (EN VI 1 1139a15)
A primeira parte eacute dita ldquocientiacuteficardquo (epistemonikoacuten) enquanto a segunda ldquocalculadorardquo (logistikoacuten) Eacute evidente que na primeira entram todas as ciecircncias teoreacuteticas seja a matemaacutetica cujos objetos satildeo necessaacuterios seja a fiacutesica e a metafiacutesica cujos objetos tecircm ao menos princiacutepios necessaacuterios mas nela entram tambeacutem as ciecircncias praacuteticas ndash cujos objetos isto eacute os bens tecircm princiacutepios como vimos ao menos ldquogeralmenterdquo necessaacuterios ndash que portanto do ponto de vista epistemoloacutegico satildeo equiparaacuteveis agravequelas que tecircm princiacutepios necessaacuterios Na segunda entram ao contraacuterio todas as atividades que tecircm por objeto realidades independentes da ldquodeliberaccedilatildeordquo humana porque ndash diz Aristoacuteteles ndash deliberar e calcular satildeo a mesma coisa e ningueacutem delibera sobre as coisas que natildeo podem ser diferentemente (BERTI 1998 p 144)
Sobre essa divisatildeo explica Giovanni Reale
E posto que sejam duas as partes ou funccedilotildees da alma racional uma a que conhece as coisas contingentes e variaacuteveis e outra que conhece as coisas necessaacuterias e imutaacuteveis eacute natural que haja uma perfeiccedilatildeo ou virtude da primeira funccedilatildeo e uma perfeiccedilatildeo ou virtude da segunda funccedilatildeo da alma racional Estas duas partes da alma racional satildeo basicamente a razatildeo praacutetica e a razatildeo teoreacutetica e as respectivas virtudes satildeo as formas perfeitas com as quais se apreende a verdade praacutetica e a teoreacutetica (REALE 1985 p 106 traduccedilatildeo nossa)
37
Conforme vimos existe uma relaccedilatildeo entre a parte racional e a parte
irracional A parte apetitiva da alma irracional tem certa subordinaccedilatildeo agrave parte
37
Y puesto que son dos las partes o funciones del alma racional una la que conoce las cosas contingentes y variables la otra la que conoce las cosas necesarias e inmutables es natural que haya una perfeccioacuten o virtud de la primera funcioacuten y una perfeccioacuten o virtud de la segunda funcioacuten del alma racional Estas dos partes del alma racional son baacutesicamente la razoacuten praacutectica y la razoacuten teoreacutetica y las respectivas ldquovirtudesrdquo son las formas perfectas con las que se aprehende la verdad praacutectica y la teoreacutetica (REALE 1985 p 106 traduccedilatildeo nossa)
43
racional De acordo com o Estagirita eacute a faculdade calculadora que controla os
desejos proacuteprios da parte apetitiva vejamos
A virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo que diz respeito agrave escolha e escolha eacute desejo deliberado conclui-se que se a escolha deve ser boa tanto a razatildeo precisa ser verdadeira quanto o desejo correto e que o desejo tem que buscar as mesmas coisas afirmadas pela razatildeo Estamos nos referindo aqui ao raciociacutenio praacutetico e ao atingimento da verdade relativamente agrave accedilatildeo no que tange ao pensamento especulativo que natildeo concerne agrave accedilatildeo ou produccedilatildeo a funccedilatildeo certa e errada consiste na consecuccedilatildeo da verdade e falsidade respectivamente O atingir da verdade eacute efetivamente a funccedilatildeo de toda parte do intelecto mas a da inteligecircncia praacutetica eacute o atingimento da verdade correspondente ao correto desejo (EN VI 2 1139a25 negrito nosso)
Compreendidas as partes da alma na forma pertinente agrave eacutetica aristoteacutelica
torna-se necessaacuterio o estudo das virtudes em conformidade com tais partes
33 Virtudes Morais
O livro II da Eacutetica a Nicocircmaco faz uma exposiccedilatildeo geral acerca das virtudes
morais Essas virtudes pertencem ao acircmbito da parte irracional da alma mais
especificamente na parte dos desejos e apetites
De acordo com o Estagirita ldquoa virtude moral ou eacutetica eacute o produto do haacutebito
[] E portanto fica evidente que nenhuma das virtudes morais eacute em noacutes
engendrada pela natureza uma vez que nenhuma propriedade natural eacute passiacutevel de
ser alterada pelo haacutebitordquo (EN II 1 1103a15)
Em seu Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Tomaacutes de Aquino esclarece que
Em contraste a virtude eacute gerada pelo costume moral A Virtude moral estaacute na parte apetitiva portanto eacute uma inclinaccedilatildeo para algo apetitivo Esta inclinaccedilatildeo ou eacute por natureza que volta para o que estaacute em conformidade ou eacute pelo haacutebito que se volta para a natureza Assim o nome Virtude moral eacute retirado do haacutebitual com poucas alteraccedilotildees Porque escrever em grego ethos com uma letra e breve designa o caraacuteter ou virtude moral Mas ythos escrito com a letra g que eacute como
44
uma larga h que significa costume Como tambeacutem entre noacutes a palavra moral as vezes significa costumes e as vezes designa o que pertence ao viacutecio ou a virtude (AQUINO 2010 p130 traduccedilatildeo nossa)
38
Aristoacuteteles compara por analogia as virtudes morais com as artes por
ambas serem adquiridas pela reiteraccedilatildeo dos atos que lhes satildeo proacuteprios Admite a
impossibilidade de prescrever com exatidatildeo tais atos contudo descreve uma
foacutermula que pretende direcionar os atos no acircmbito das virtudes Tal foacutermula consiste
em agir de acordo com a justa razatildeo39
Dessa forma o muacutesico se torna bom muacutesico executando reiteradamente
sua(s) especialidade(s) musical (ais) assim como os homens se tornam justos
praticando atos de justos e corajosos realizando atos corajosos
Nessa altura do livro II Aristoacuteteles revela uma das funccedilotildees da lei educar
Vejamos suas palavras ldquo[] legisladores tornam os cidadatildeos bons treinando-os em
haacutebitos de accedilatildeo correta o que eacute a meta de toda a legislaccedilatildeo que se falhar no seu
atingimento seraacute um fracasso [tarefa] no que se distingue a boa constituiccedilatildeo da
maacuterdquo (EN II 1 1103b1-5)
Mas no que consistiria essa boa educaccedilatildeo A resposta dada eacute gostar e natildeo
gostar das coisas apropriadas Assim eacute desenvolvida a teoria geral das virtudes ou
doutrina da mediania pois assim como acontece no que diz respeito agrave sauacutede
acontece com as virtudes ambas satildeo afetadas pelo excesso e pela deficiecircncia
Uma indicaccedilatildeo de nossas disposiccedilotildees eacute fornecida pelo prazer ou pela dor que acompanha nossas accedilotildees []
Na verdade a virtude moral concerne a prazeres e dores pois o prazer nos leva a realizar as accedilotildees vis e a dor nos leva a deixar de realizar accedilotildees nobres []
Ademais se as virtudes tecircm a ver com accedilotildees e paixotildees e toda paixatildeo e toda accedilatildeo satildeo acompanhadas por prazer e dor isso constitui uma demonstraccedilatildeo adicional de que a virtude diz respeito ao prazer e agrave dor[]
38
En cambio la virtude se genera por la costumbre moral La virtud moral estaacute en la parte apetitiva por eso supone cierta inclinacioacuten a algo apetecible Esta inclinacioacuten o es por naturaleza la cual inclina a lo que le es conforme o es por la costumbre que se vuelca hacia la naturaleza Por eso el nombre de la virtude moral estaacute tomado de la costumbre con poco cambio Porque em grego ethos escrito com a letra e breve designa el caraacutecter o virtude moral Pero ythos escrito com la g que es
como uma N larga significa costumbre como tambieacuten entre nosotros la palabra moral a veces significa costumbre y a veces designa lo que pertenece al vicio o a la virtud (AQUINO 2010 p130) 39
Conforme formulaccedilatildeo tomista recta ratio agibilium
45
Mas os seres humanos se corrompem atraveacutes de prazeres e dores a saber quer perseguindo e evitando os prazeres e dores equiacutevocos quer os perseguindo e evitando no momento equiacutevoco ou da maneira equiacutevoca ou em um dos meios equiacutevocos [] (EN II 3 1104b)
Destarte a virtude moral eacute a qualidade segundo a qual se age da ldquomelhor
formardquo40 em relaccedilatildeo aos prazeres e dores sendo o viacutecio o oposto As virtudes satildeo
definidas por Aristoacuteteles como ldquoa disposiccedilatildeo que o torna um bom ser humano e
tambeacutem o que o faraacute desempenhar sua funccedilatildeo bemrdquo (EN II 6 1106a22)
Nesse sentindo a virtude natildeo eacute nem uma paixatildeo nem uma faculdade mas
um estado de caraacuteter O que a torna distinta eacute o fato de consistir na disposiccedilatildeo de
escolher o meio-termo
331 Doutrina da Mediania
Os atos praticados pelos homens em suas muacuteltiplas relaccedilotildees eacute que os
tornam justos ou injustos Explica o Filoacutesofo41 que eacute necessaacuterio cultivar o haacutebito de
praticar atos virtuosos desde a juventude Nesse sentido
[] a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia e pelo excesso tal como vemos acontecer com o vigor e a sauacutede (temos de explicar o invisiacutevel recorrendo a evidencia do visiacutevel) os exerciacutecios excessivos ou deficientes destroem igualmente o vigor e de maneira idecircntica as bebidas e os alimentos de mais ou menos destroem a sauacutede ao passo que seu uso em proporccedilotildees adequadas produz aumenta e conserva aquele e esta (EN II 2 1104a)
Sendo a virtude mais exata do que toda e qualquer arte e por possuir como
atributo o meio-termo o excesso ou a falta podem ser-lhe destrutivos Tanto o
excesso quanto a carecircncia satildeo graves formas de erro Entretanto o meio-termo
mostra-se como uma forma digna de louvor fazendo da virtude uma mediania Mas
ressalte-se que se trata de meio termo entre dois viacutecios Contudo nem toda accedilatildeo e
40
Vide o item 2331 Trageacutedia 41
Como Aristoacuteteles era referenciado por Tomaacutes de Aquino
46
nem toda paixatildeo admitem meio termo eacute o que observa ROSS (1957 p 231)42
ldquoPorque a mediania eacute num certo sentido um extremo []rdquo (EN II 6 1107a25)
Portanto do excesso ou da falta natildeo existe meio termo
[] se a virtude como a natureza eacute mais exata e melhor do que qualquer forma de arte se concluiraacute que a virtude deteacutem a qualidade de visar a mediania Eu me refiro agrave virtude moral
43 pois esta concerne agraves
paixotildees e accedilotildees nas quais se pode dispor de excesso ou deficiecircncia ou da devida mediania Por exemplo algueacutem pode estar receoso ou confiante sentir desejo ira ou compaixatildeo e experimentar prazer e dor em geral seja em excesso ou deficientemente e em ambos os casos indevidamente ao passo que experimentar esses sentimentos na ocasiatildeo certa oportunamente em relaccedilatildeo agraves pessoas certas para o propoacutesito certo e da maneira certa corresponde a sentir a medida melhor deles a qual eacute a quantidade meacutedia sendo que a melhor medida ou quantidade eacute evidentemente a marca da virtude Analogamente pode haver excesso deficiecircncia e a devida mediania nas accedilotildees (EN II 6 1106b20)
A virtude eacute entatildeo uma disposiccedilatildeo estabelecida que leva agrave escolha de accedilotildees
e paixotildees e que consiste essencialmente na observacircncia da mediania relativa a noacutes
sendo isso determinado pela razatildeo isto eacute como o homem prudente o determina
(EN II 6 1107a) As conclusotildees do Livro II apontam o quatildeo eacute difiacutecil atingir o meio-
termo uma vez que o mesmo natildeo eacute apreendido pelo raciociacutenio e sim pela
percepccedilatildeo Ele aponta trecircs regras como orientaccedilatildeo
A primeira regra eacute evitar o extremo que mais se opotildee agrave mediania Para natildeo
abandonar o estilo o Estagirita cita o conselho de Calipso personagem de a
Odisseacuteia ldquoPilota o navio o mantendo longe do borrifo e das vagasrdquo E continua
explicando ldquoPois dos dois extremos um deles constitui erro mais grave do que o
outro Por conseguinte porquanto atingir a mediania eacute extremamente difiacutecil a
42 Aristoteles luego nos previene contra un equivoco posible senalando queentre los sentimientos y
las acciones que se pueden nombrar no todos admiten un justo medio los nombres mismos de algunos de ellos tales como la desverguenza la envidia el adulterio el robo el asesinato implican su maldad Es decir que estos nombres no se aplican a los sentimientos moralmente indiferentes que son asunto de la virtud sino a un exceso vituperable de estos sentimientos no a las acciones que se relacionan con cierta clase de objeto sino a las acciones inicuas que se relacionan con este objeto La desverguenza es una incorrecta falta de verguenza el robo es un incorrecto exceso en la adquisicion de la riqueza El justo medio se opone al exceso y al defecto y por consecuencia no hay justo medio del exceso o del defecto como no existe exceso o defecto del justo medio (ROSS 1957 p 231)
43
Nota do tradutor de nuacutemero 48 Ou seja a teoria da mediania natildeo eacute aplicaacutevel agraves virtudes intelectuais (BINI 2009 p 77)
47
segunda melhor forma de navegar como indica o proveacuterbio eacute assumir o menor dos
males e a melhor maneira de fazecirc-lo seraacute a maneira que descrevemosrdquo (EN II 9
1109a30)
A segunda regra valendo-se do exemplo do carpinteiro em seu meacutetodo para
endireitar a madeira empenada consiste em observar os erros a que estamos mais
propensos de acordo com quais prazeres e dores experimentamos De posse de tal
observaccedilatildeo devemo-nos afastar do erro costumeiro estabelecendo assim um curso
mediano (EN II 9 1109b1)
Por fim o terceiro exemplo invocando Helena personagem de a Iliacuteada de
Homero
ldquo[] temos que em tudo que estar mais do que qualquer outra coisa de guarda contra o que eacute prazeroso e contra o prazer porque quando este estaacute em julgamento natildeo somos juiacutezes imparciais O procedimento correto eacute portanto encarar o prazer como os anciotildees do povo encaravam Helena e empregar (ou repetir) o discurso que dirigiram a ela em todas as ocasiotildees pois se assim o descartarmos teremos menos probabilidade de nos extraviar (EN II 9 1109b1)
Portanto podemos chamar de accedilatildeo virtuosa aquela que eacute direcionada pela
mediania que se projeta na melhor quantidade medida ocasiatildeo oportunidade e em
relaccedilatildeo agraves pessoas certas O acircmbito da accedilatildeo comporta uma biparticcedilatildeo que deve ser
considerada em se tratando de virtude a saber accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria
34 Accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria
Embora a virtude esteja relacionada com paixotildees e accedilotildees um sentimento ou
uma accedilatildeo pode ser algo voluntaacuterio ou involuntaacuterio Louvor e censura agraves paixotildees e
accedilotildees voluntaacuterias e perdatildeo e piedade agraves involuntaacuterias (EN III 1 1109b30)
Para Aristoacuteteles voluntaacuterio eacute o ato de escolher Mas eacute preciso fazer certas
ressalvas neste sentido Ora o que se pratica sob o impulso do momento pode ser
voluntaacuterio mas natildeo escolhido pois a escolha natildeo eacute comum aos seres irracionais
Escolher envolve um princiacutepio racional bem como o pensamento O objeto da
48
escolha apresenta-se ao alcance e o mesmo eacute desejado apoacutes uma deliberaccedilatildeo
Assim escolha eacute um desejo deliberado (EN III 1112a - 1113a) O fim eacute aquilo que
se deseja jaacute o meio eacute aquilo que eacute deliberado e escolhido e assim as accedilotildees devem
concordar com as escolhas e estas devem ser voluntaacuterias Com isso afirma o
Estagirita que a virtude estaacute ao poder de escolha do homem porque o exerciacutecio da
virtude diz respeito aos meios Aquilo cujo motor estaacute no agente que possui
conhecimento das circunstacircncias particulares do ato parece ser o que eacute voluntaacuterio
Involuntaacuterio segundo Aristoacuteteles eacute o que acontece sob compulsatildeo e
ignoracircncia em que o princiacutepio motor encontra-se externo ao indiviacuteduo e para o que
em nada contribui ou influi o indiviacuteduo que age ou sente a paixatildeo (EN III 1111b)
Assim atos encontram-se no homem e devem estar em seu poder e serem
voluntaacuterios Atraveacutes do exerciacutecio de atividades sobre os objetos particulares formam-
se as disposiccedilotildees de caraacuteter
[] um homem doente natildeo ficaraacute bom desta maneira embora possa acontecer que sua doenccedila seja voluntaacuteria no sentido de ser o resultado de sua vida de dissipaccedilatildeo e de sua desobediecircncia aos meacutedicos Neste caso de iniacutecio teria dependido dele natildeo ficar doente mas natildeo agora que ele desperdiccedilou sua oportunidade da mesma forma que depois de atirar uma pedra natildeo eacute possiacutevel fazecirc-la voltar atraacutes natildeo obstante a pessoa que atirou a pedra eacute responsaacutevel por havecirc-la apanhado e lanccedilado pois a origem do ato estava nesta pessoa (EN III 5 1114a)
Constata-se vaacuterias vezes a afirmaccedilatildeo da responsabilidade do homem diante
de suas accedilotildees Eacute importante observarmos assim como Pierre Aubenque (2008) o
fez que o homem natildeo eacute responsaacutevel por sua vontade mas por suas escolhas de
acordo com Aubenque (2008 p 222) ldquoNa perspectiva de Aristoacuteteles e dos gregos
a vontade natildeo eacute responsaacutevel pelo mal Ao contraacuterio o mal eacute o responsaacutevel pela maacute
qualidade da vontade [] Pois um homem nunca quer o mal enquanto tal pode
querer mal o bem e querendo o bem em geral escolher cada vez mais o menor
bemrdquo
49
Duas pressuposiccedilotildees fundamentam como princiacutepio da responsabilidade A
realidade eacute contingente44 e depende do indiviacuteduo que age Para que uma accedilatildeo seja
considerada virtuosa devem estar presentes estas duas exigecircncias uma vez que
[] onde estaacute ao nosso alcance agir tambeacutem estaacute ano nosso alcance
natildeo agir e onde somos capazes de dizer ldquonatildeordquo tambeacutem somos capazes
de dizer ldquosimrdquo consequumlentemente se agir quando agir eacute nobilitante
estaacute ao nosso alcance natildeo agir que seraacute ignoacutebil tambeacutem estaraacute ao
nosso alcance Se estaacute ao nosso alcance entatildeo praticar atos
nobilitantes ou ignoacutebeis e se isto era o que significava ser bom ou mau
estaacute igualmente ao nosso alcance ser moralmente excelentes ou
deficientes (EN III 5 1113b)
Para Aristoacuteteles o caraacuteter eacute resultado dos atos humanos conforme
argumenta a Eacutetica a Nicocircmaco Assim agindo desta ou daquela maneira adquire-se
uma ou outra disposiccedilatildeo eacutetica A realizaccedilatildeo de coisas justas resultaraacute em bons
haacutebitos e tornaraacute o caraacuteter justo (EN II 4 1105b) Ao agir de modo intemperante
adquire o haacutebito de ceder tatildeo somente aos desejos que conduz agrave intemperanccedila O
caraacuteter eacute assim o produto dos atos de seu autor e natildeo algo advindo da educaccedilatildeo
da condiccedilatildeo social ou da natureza
Assim os viacutecios e as virtudes possuem significado moral e natildeo satildeo somente
traccedilos psicoloacutegicos adquiridos Isto se daacute uma vez que pertencem ao campo daquilo
que depende do homem Ao agir o ser humano natildeo faz algo ao qual teraacute que
responder mais tarde como tambeacutem estaacute escolhendo o que seraacute Por isso ao agir
contra a regra que conhece estaacute consentindo em se tornar cego agrave lei e em natildeo
saber mais onde estaacute o bem Neste sentido a lei pune com maior severidade o
intemperante por ele deliberar em vista de um fim mau mesmo que possua a
capacidade de deliberar para o fim beniacutefico A ignoracircncia da regra pelo adulto
acresce a culpabilidade quando eacute produto de uma vida intemperante (EN III 5
1114a)
[] somente uma pessoa totalmente insensata poderia deixar de perceber que as disposiccedilotildees de nosso caraacuteter satildeo o resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injusto ou um homem que age
44
Veja o segundo capiacutetulo Contingecircncia
50
concupiscentimente natildeo deseje ser concupiscente Mas se uma pessoa pratica accedilotildees que a torna injusta sem ser ignorante ela seraacute injusta voluntariamente Disto natildeo resulta poreacutem que se ela quiser deixaraacute de
ser injusta e passaraacute a ser justa da mesma forma (EN III 5 1114a)
Ao abordar a responsabilidade humana Aristoacuteteles destaca que as
disposiccedilotildees satildeo voluntaacuterias de modos distintos
[] as accedilotildees e disposiccedilotildees natildeo satildeo voluntaacuterias de maneira idecircntica pois somos senhores de nossas accedilotildees do principio ao fim se conhecemos os fatos particulares mas embora tenhamos o controle da fase inicial de nossas disposiccedilotildees a evoluccedilatildeo de cada estaacutegio das mesmas natildeo eacute perceptiacutevel tal como acontece nas doenccedilas mas jaacute que a maneira de agir dependia de noacutes as disposiccedilotildees morais satildeo voluntaacuterias (EN III 5 1114a30)
O ato depende do ser humano em sua inteligibilidade porque o ser humano
possui um domiacutenio sobre as consequecircncias diretas do mesmo Por outro lado o ser
humano natildeo pode antecipar todas as consequecircncias advindas indiretamente dos
haacutebitos que ele assume O caraacuteter eacute imputaacutevel ao ser humano uma vez que agindo
ele tambeacutem estaacute forjando os seus haacutebitos
Embora o ser humano seja senhor de seus atos a cada instante ele natildeo
pode modificar o seu caraacuteter quando bem quer sendo que isso equivaleria a dizer
que o ser humano natildeo tem caraacuteter Assim apoacutes certo tempo o caraacuteter parece que
ficou tatildeo marcado que se torna impossiacutevel transformaacute-lo Resulta entatildeo o problema
da perfectibilidade do caraacuteter (EN III 5 1114a)
Ora cada ser humano eacute autor de seus atos enquanto eacute agente o que se
determina a um fim Sendo a escolha intencional dirigida pelo caraacuteter pode-se
afirmar que o ser o homem eacute causa de seus atos enquanto agente que consente
Assim de fato natildeo eacute o seu caraacuteter o determinante de sua decisatildeo (EN III 4 1113a)
Para Aristoacuteteles o caraacuteter comeccedila sua formaccedilatildeo durante a infacircncia Segundo
ele o jovem age para formar o seu caraacuteter enquanto que o adulto age a partir de seu
caraacuteter tendo a intenccedilatildeo de ser feliz Entretanto como os fins visados dependem do
caraacuteter as decisotildees do adulto apresentam-se como determinadas pelo seu
condicionamento educativo o qual ocorreu na infacircncia
51
O Estagirita afirma que o caraacuteter do jovem o qual eacute formado a partir dos
haacutebitos e da educaccedilatildeo que recebe ainda natildeo eacute nem vicioso e nem virtuoso Pode-
se prefigurar a virtude futura pelo amor ao belo pela justiccedila do gosto ou a nobreza
das paixotildees Tanto a virtude quanto o viacutecio somente se desenvolvem atraveacutes dos
atos dos quais somente o adulto eacute capaz uma vez que se realizam notadamente no
acircmbito da vida ciacutevica e militar A entrada na vida adulta quando satildeo tomadas as
primeiras decisotildees eacute quando se realizam os primeiros atos verdadeiros Natildeo se
pode negar entatildeo a influecircncia do caraacuteter adquirido pela educaccedilatildeo Assim o homem
comeccedila ao entrar na vida adulta a realizar alguma coisa que propotildee e visa fins ou
seja ele se torna o verdadeiro autor de seus atos e eacute responsaacutevel por aquilo que faz
e por aquilo que eacute Nesse momento eacute pela docilidade ou pela rebeliatildeo que o jovem
adquire boas ou maacutes disposiccedilotildees diante das paixotildees Por outro lado o adulto
adquire viacutecio ou virtude ou seja um caraacuteter moral atraveacutes de suas decisotildees
Assim com o passar do tempo um haacutebito tende a se repetir isto eacute ele
amplifica o que se comeccedilou melhorando sempre mais ou dirigindo-se cada vez mais
agrave decadecircncia Para o homem se tornar bom a exigecircncia eacutetica estaria reservada
agravequeles que tivessem comeccedilado bem aos demais soacute seria possiacutevel constatar seus
viacutecios e incoerecircncias Desta forma pode-se concluir que a eacutetica aristoteacutelica estaria
reservada somente a uns eleitos bem educados e aos outros ela condenaria a um
encadeamento fatiacutedico resultado de uma maacute educaccedilatildeo e consequente praacutetica
reiterada de viacutecios
Tendo revisitado as virtudes pertinentes agrave parte irracional da alma
passaremos a estudar as virtudes pertinentes agrave parte racional da alma que satildeo as
virtudes intelectuais
35 Virtudes Intelectuais
As virtudes como vimos satildeo de dois tipos a intelectual e a moral As
virtudes intelectuais satildeo majoritariamente tanto produzidas quanto ampliadas pela
instruccedilatildeo o que por certo exige experiecircncia e tempo (EN II 1 1103a15) As
virtudes intelectuais satildeo o objeto do livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco
52
Ao abordar tais virtudes Aristoacuteteles reapresenta a foacutermula da reta razatildeo ldquoJaacute
vimos que eacute certo escolher a mediania e evitar o excesso e a deficiecircncia e que a
mediania eacute fixada pela justa razatildeordquo (EN 1138b20)
Toda via estando algueacutem de posse dessa verdade isso natildeo o tornaraacute mais saacutebio do que antes queremos dizer por exemplo que tal pessoa natildeo saberaacute que medicamentos tomar pelo mero fato de lhe terem dito para tomar tudo que a arte a medicina ou um doutor em medicina lhe indicar Consequentemente no que toca agraves qualidades da alma igualmente natildeo bastaraacute meramente estabelecer a verdade da foacutermula acima Teremos aleacutem disso que definir com exatidatildeo qual eacute a justa razatildeo e qual eacute o padratildeo que a determina (EN 1138b20)
Aristoacuteteles define as partes da alma atribuindo agrave parte racional duas
faculdades a saber a faculdade cientiacutefica e a faculdade calculadora Enquanto o
objeto da faculdade cientiacutefica eacute aquele que se ocupa em especular as coisas cujos
primeiros princiacutepios satildeo invariaacuteveis a faculdade calculadora tem por objeto as
coisas que admitem variaccedilatildeo A definiccedilatildeo de caacutelculo eacute dada por Aristoacuteteles ldquoeacute o
mesmo que deliberaccedilatildeo e esta jamais eacute exercida sobre coisas invariaacuteveis
[entendemos] que a parte calculadora constitui uma parte independente da metade
irracional da alma (EN VI 1 1139a15)
Destaca trecircs elementos existentes na alma que controlam a accedilatildeo e o
atingimento da verdade a sensaccedilatildeo o intelecto e o desejo A sensaccedilatildeo natildeo gera
accedilatildeo pois a accedilatildeo eacute proacutepria ao homem enquanto a sensaccedilatildeo estaacute presente tanto na
alma do homem quanto na alma do animal Assim os movimentos dos animais satildeo
gerados pelos estiacutemulos sensoriais enquanto os movimentos proacuteprios ao homem a
praacutexis satildeo uma accedilatildeo guiada pelo intelecto e pelo desejo45
O pensamento especulativo desenvolvido pela faculdade cientiacutefica natildeo diz
respeito agrave accedilatildeo e ou agrave produccedilatildeo Ele se ocupa em elaborar juiacutezos de verdadeiro ou
falso
45
Conforme jaacute salientamos no capiacutetulo 2 O Movimento
53
Por outro lado o raciociacutenio praacutetico46 diz respeito ao que devemos buscar e
evitar no sentido de orientar as virtudes morais Eacute a partir dele que realizamos as
escolas entendendo por escolha o desejo deliberado (BERTI 1998 p 117)
Por conseguinte a escolha pode ser qualificada como o pensamento
relacionado ao desejo ou o desejo relacionado ao pensamento e o ser humano
como gerador da accedilatildeo eacute uma uniatildeo de desejo e intelecto (EN 1139b5)
46
Sobre razatildeo praacutetica vide LACERDA (2005)
54
4 PRUDEcircNCIA
41 Conceito
Aristoacuteteles na passagem 1140b do Livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco define a
prudecircncia como uma capacidade verdadeira e racional de agir sobre as coisas que
satildeo boas ou maacutes para o homem
De acordo com Enrico Berti a phroacutenesis ldquopara Aristoacuteteles eacute uma virtude ou
melhor a mais elevada virtude da parte calculadora da alma racional isto eacute a razatildeo
praacutetica Ela com efeito eacute por ele concebida como a capacidade de deliberar bem
ou seja de calcular os meios necessaacuterios para alcanccedilar um fim bomrdquo (BERTI 1998
p 146)
Por sua vez Tomaacutes de Aquino discorre sobre a prudecircncia na parte II-II
questotildees 47 a 56 em sua obra de referecircncia a Suma Teoloacutegica Tomaacutes eacute haacutebil na
leitura aristoteacutelica da prudecircncia e pode-se encontrar em sua obra uma foacutermula
sinteacutetica do que ele entende por prudecircncia reta razatildeo aplicada ao agir47 Portanto eacute
com fundamento em questotildees de razatildeo praacutetica que Tomaacutes define a prudecircncia ldquoE
este eacute o papel da prudecircncia aplicar os princiacutepios universais agraves conclusotildees
particulares do acircmbito do agir E assim natildeo compete agrave prudecircncia indicar o fim das
virtudes morais mas somente lidar com os meios para atingir o fimrdquo (II-II 476
negrito nosso)
Pierre Aubenque (2008) sonda pormenorizadamente os vaacuterios aspectos
apresentados pelo Estagirita do que seria a prudecircncia e de sua leitura agraves obras de
Aristoacuteteles extraiacutemos
[] a definiccedilatildeo dada por Aristoacuteteles no livro VI da Eacutetica Nicomaqueacuteia apresenta um caraacuteter demasiado elaborado ou se se prefere demasiado teacutecnico para poder conhecer a mesma fortuna Ali a prudecircncia eacute definida como uma ldquodisposiccedilatildeo praacutetica acompanhada de regra verdadeira concernente ao que eacute bom ou mau para o homemrdquo Conforme ao meacutetodo familiar a Aristoacuteteles essa definiccedilatildeo eacute apresentada como resultado de um processo ao mesmo tempo indutivo e regressivo Parte-se do uso comum constata-se que eacute chamado phronimos o
homem capaz de deliberaccedilatildeo (AUBENQUE 2008 p 60-61)
47 recta ratio agibilium
55
Ainda nessa direccedilatildeo Aubenque (2008) a distingue das outras virtudes em
particular das virtudes morais
[] enquanto a virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo (praacutetica) que concerne agrave
escolha ) a prudecircncia eacute uma disposiccedilatildeo praacutetica que
concerne agrave regra da escolha Natildeo se trata da retidatildeo da accedilatildeo mas da correccedilatildeo do criteacuterio razatildeo pela qual a prudecircncia eacute uma disposiccedilatildeo praacutetica acompanhada de uma regra verdadeira (AUBENQUE 2008 p61)
Alasdair Macintyre (2001) discorre sobre a prudecircncia como sendo a virtude
intelectual sem a qual natildeo se pode exercer nenhuma virtude de caraacuteter48
A virtude principal eacute portanto phronecircsis Phronecircsis assim como socircphrosunecirc eacute originariamente um termo aristocraacutetico de louvor Caracteriza algueacutem que sabe o que lhe eacute devido que se orgulha de reivindicar seus direitos Significa de maneira mais geneacuterica algueacutem que sabe como julgar em casos especiacuteficos Phronecircsis eacute a virtude intelectual mas eacute a virtude intelectual sem a qual natildeo se pode exercer nenhuma das virtudes de caraacuteter (MACINTYRE 2001 p15)
Javier Hervada (2008) em sua obra Liccedilotildees propedecircuticas de filosofia do
direito destaca o caraacuteter praacutetico e a inclinaccedilatildeo que a prudecircncia tem para com o
direito salientando suas caracteriacutesticas claacutessicas
A prudecircncia eacute de fato uma virtude intelectual ou dianoeacutetica a virtude do correto agir moral o que estaacute relacionado com a justiccedila que tambeacutem eacute virtude moral Isso salienta que a atividade juriacutedica depende de duas virtudes que satildeo a base do ofiacutecio de jurista a justiccedila e a prudecircncia (HERVADA 2008 p 58)
48
A interpretaccedilatildeo de MacIntyre sobre a singularidade da prudecircncia parece-nos extraiacuteda tanto de Tomaacutes quando se refere a ela como matildee das virtudes (III Sent d 33 q 2 a 5 c) quanto de Aristoacuteteles que nos ensina em sua Eacutetica a Nicocircmaco ldquoA prudecircncia proporciona todas as virtudes Ela fornece os meios de produzi-lasrdquo (VI 1145a)
56
Pierre Aubenque (2008) parece desembaraccedilar de forma haacutebil o que seria a
prudecircncia despindo dos textos de Aristoacuteteles a compreensatildeo de uma das questotildees
mais iacutentimas da filosofia grega e eacute nesse sentido que ele desenvolve sua conclusatildeo
O Estagirita encontraria aiacute a velha inquietude grega diante da imprevisibilidade do futuro e a precariedade das coisas humanas Se ele foi moderno isso se deve ao fato de natildeo ter querido dominar o acaso com preces Se a accedilatildeo sobre o acaso natildeo podia ser cientificamente determinada ndash visto que ldquodo acaso natildeo haacute ciecircnciardquo ndash natildeo seria tampouco improvisada e sem princiacutepios Natildeo retornaremos agrave soluccedilatildeo que ele deu a este problema e nomeou prudecircncia (AUBENQUE 2008 p 278)
A adoccedilatildeo do traacutegico em face ao fracasso da Providecircncia ou em outras
palavras uma vez que o futuro eacute indeterminado a escolha entre dois males faz-se
procurando o menor entre eles A accedilatildeo nesse sentido compreendendo natildeo poder
alcanccedilar o bem em absoluto o faz da melhor maneira que pode
42 Prudecircncia e liberdade
De acordo com Aubenque (2008 p 149) a liberdade do homem natildeo estaacute
ligada agrave contingecircncia muito pelo contraacuterio se opotildee a ela A metaacutefora da casa
trazida no livro da Metafiacutesica retrata uma situaccedilatildeo onde o universo eacute comparado a
uma casa onde os homens livres representam os astros porque ldquolhes eacute menos liacutecito
agir ao acasordquo tendo suas accedilotildees orientadas por regras enquanto ldquoos escravos e os
animaisrdquo cujas ldquoaccedilotildees satildeo raramente ordenadas ao bem comum mas ao contraacuterio
satildeo frequentemente abandonadas ao acasordquo representam o mundo sublunar Nessa
acepccedilatildeo os escravos eacute que satildeo ldquolivresrdquo no sentido moderno do termo porque natildeo
sabem o que fazem ldquoenquanto a liberdade do homem grego e sua perfeiccedilatildeo se
medem pela maior ou menor determinaccedilatildeo de suas accedilotildeesrdquo
A prudecircncia eacute o substituto propriamente humano de uma Providecircncia que falha [] A prudecircncia eacute tambeacutem a previdecircncia que preserva os indiviacuteduos dos perigos [] ela eacute tambeacutem virtude na medida em que realiza no mundo sublunar um pouco do Bem que a divindade foi impotente para introduzir aqui [] Mas se o mundo fosse inteiramente
57
perfeito natildeo restaria nada a fazer ora eacute no fazer ou agir e natildeo na imobilidade estranhamente comum agraves plantas e a Deus que o homem
realiza sua sua excelecircncia propriamente humana Saber nos desviaria do fazer dispensando-nos de escolher (AUBENQUE 2008 p 155)
A prudecircncia seraacute a virtude dos homens voltados agrave deliberaccedilatildeo num mundo
obscuro e difiacutecil cujo inacabamento eacute um convite ao que decerto eacute preciso nomear
como sua liberdade A prudecircncia diraacute a Magna Moralia eacute uma ldquodisposiccedilatildeo para
escolher e agir concernindo ao que estaacute em nosso poder fazer e natildeo fazerrdquo
(AUBENQUE 2008 p 155)
Por isso homens como Peacutericles satildeo julgados prudentes porque possuem uma faculdade de discernir que coisas satildeo boas para mesmos e para os seres humanos E eacute isso que coincide com nosso entendimento do que seja algueacutem conhecedor da administraccedilatildeo domeacutestica ou
49 administraccedilatildeo
poliacuteticardquo (EN VI 5 1140B10)
Santo Tomaacutes em seus Comentaacuterios agrave Eacutetica a Nicocircmaco conclui acerca da
prudecircncia ldquoDe que la prudecircncia no sea ciencia haacutebito demonstrativo acerca de lo
necesario y no sea arte haacutebito productivo con razoacuten se segue que la prudencia es
un haacutebito activo con razoacuten verdadera que no versa sobre lo producio que estaacute fuera
del hombre sino sobre el bien y el mal del hombre mesmordquo (AQUINO 2010 p 363-
364)50
43 Arte e Prudecircncia
Conforme explicado na definiccedilatildeo tomista enquanto a atividade proacutepria agrave arte
eacute a produccedilatildeo a atividade proacutepria agrave prudecircncia eacute a accedilatildeo
49
εἶναι δὲ τοιούτους ἡγούμεθα τοὺς οἰκονομικοὺς καὶ τοὺς πολιτικούς Algueacutem conhecedor da
administraccedilatildeo domeacutestica e poliacutetica [(EN VI 5 1140B10) texto original disponiacutevel no site PERSEUS DIGITAL LIBRARY traduccedilatildeo nossa] 50
De que a prudecircncia natildeo eacute ciecircncia que procura mostrar o que eacute necessaacuterio e tambeacutem natildeo eacute arte o haacutebito produtivo com o emprego da razatildeo segue que a prudecircncia eacute um habito segundo o qual se age com a razatildeo verdadeira que natildeo versa sobre o produto que estaacute fora de homem mas sobre o bem e o mal do proacuteprio homem (AQUINO 2010 p 363-364)
58
Destarte para o Estagirita a arte eacute o conhecimento teacutecnico de como fazer
as coisas Enquanto a prudecircncia eacute o conhecimento de como agir para assegurar os
fins da vida do ser humano Vejamos o texto de Aristoacuteteles
Toda arte se ocupa em trazer alguma coisa agrave existecircncia e dedicar-se a uma arte significa estudar como trazer ao existir uma coisa que eacute possiacutevel existir ou natildeo a causa eficiente da qual estando no criador e natildeo na coisa criada pois a arte natildeo se ocupa com coisas que existem ou passam a existir (vecircm a ser) necessariamente ou pela natureza uma vez que essas coisas possuem suas causas eficientes em si mesmas Mas como o criar e o fazer satildeo distintos infere-se que a arte sendo concernente ao criar natildeo concerne ao fazer E num certo sentido a arte se ocupa dos mesmos objetivos da sorte como diz Agaton A sorte eacute aficionada da arte e a arte da sorte (EN VI 4 1140a10-20)
Para Enrico Berti a arte
[] concerne a objetos que podem ser diferentemente do que satildeo ou seja contingentes por isso estaacute entre as virtudes da parte ldquocalculadorardquo da razatildeo a mesma que compreende a phroacutenesis A diferenccedila entre arte e phroacutenesis repousa no fato de que esta uacuteltima ocupa-se como vimos do que pode ser ldquopraticadordquo (to praktoacuten) das accedilotildees enquanto a arte se ocupa da produccedilatildeo de objetos A distinccedilatildeo entre ldquoaccedilatildeordquo (praacutexis) e ldquoproduccedilatildeordquo (poiacuteesis) eacute dada por Aristoacuteteles quase sempre por evidente e consiste no fato de que a accedilatildeo natildeo produz nenhum objeto diferente dela mesma isto eacute termina em si que eacute o produto (BERTI 1998 p 157)
Portanto a arte eacute como dissemos uma qualidade racional concernente ao
criar de acordo com um processo verdadeiro de raciociacutenio Em oposiccedilatildeo a lacuna
da arte eacute uma qualidade racional concernente ao criar que envolve um processo
falso de raciociacutenio Ambas lidam com aquilo que admite variaccedilatildeo (EN VI 4
1140a10-20)
44 Deliberaccedilatildeo e Escolha
Ao definir a accedilatildeo voluntaacuteria Aristoacuteteles diz que a escolha pertence ao seu
gecircnero mas que no entanto nem todo ato voluntaacuterio eacute escolhido O que ele
pretende com essa argumentaccedilatildeo e evidenciar a diferenccedila entre a escolha e a
deliberaccedilatildeo
59
Nesse sentido esclarece que a deliberaccedilatildeo eacute ldquo[] empregada em mateacuterias
que embora sujeitas a regras que geralmente satildeo para o bem satildeo incertas quanto
aos seus resultados e consequecircncias ou nas quais resultados e consequecircncias satildeo
indeterminados []rdquo (EN III 3 1112b10)
Aristoacuteteles em vaacuterias passagens insiste em indicar um ponto especiacutefico
acerca da deliberaccedilatildeo Segundo ele natildeo deliberamos a respeito dos fins mas a
respeito dos meios Daiacute a analogia ldquo[No exerciacutecio de uma arte] a questatildeo num
momento eacute saber quais ferramentas usar e num outro como usaacute-las similarmente
em outras esferas temos que considerar por vezes que meios empregar e outras
vezes como exatamente determinarmos os meios que devem ser empregadordquo (EN
III 3 1112b30) Dessa forma Aristoacuteteles afirma que o ser humano eacute princiacutepio-
fundamento de suas proacuteprias accedilotildees e que eacute proacutepria agrave deliberaccedilatildeo apontar as accedilotildees
possiacuteveis de serem realizadas pelo agente sendo que todas as accedilotildees tecircm em vista
algum fim que natildeo elas mesmas
Portanto natildeo se delibera sobre o que natildeo estaacute em nosso poder A
deliberaccedilatildeo estaacute condicionada ao que podemos Por isso mais uma vez afirmamos
que a accedilatildeo virtuosa dirige-se para o melhor possiacutevel Isso eacute esclarecido por Pierre
Aubenque (2008) quando aborda a trageacutedia grega
ldquoA trageacutedia grega natildeo dizia outra coisa e antes dela a poesia de Hesiacuteodo ou Teoacutenis Por mais que Aristoacuteteles tenha restringido o traacutegico natildeo o eliminou inteiramente eacute a distacircncia que separa oi polloi de
pantej o wj epi to polu de aei o melhor possiacutevel do bem absoluto[]rdquo
(2008 p 138)
Destarte de posse da deliberaccedilatildeo cujo objeto estaacute sob nosso poder poder-
se-aacute escolher Pois a escolha eacute o desejo deliberado de coisas em nosso poder
Aristoacuteteles (1113a13) estabelece a seguinte ordem ldquoprimeiramente deliberamos em
seguida selecionamos e finalmente fixamos nosso desejo de acordo com o
resultado de nossa deliberaccedilatildeordquo
Sobre a escolha Aristoacuteteles esclarece que ela natildeo eacute o mesmo que a
vontade pois enquanto a vontade visa o fim a escolha concerne aos meios Neste
60
sentido a escolha se opotildee agrave vontade afinal ao homem eacute permitido querer o bem
mas escolher o melhor possiacutevel51
Aristoacuteteles apresenta pela primeira vez o problema da dissonacircncia possiacutevel entre o fim e os meios e enfatiza ao mesmo tempo que a qualidade da accedilatildeo eacute medida natildeo somente pela retidatildeo da intenccedilatildeo (como acreditava Platatildeo) mas tambeacutem pela conveniecircncia dos meios (AUBENQUE 2008 p 218)
Uma outra importante observaccedilatildeo eacute feita por Aubenque (2008 p 227) Ele
encontra no texto de Aristoacuteteles duas foacutermulas comuns agrave prudecircncia A primeira eacute
esta que acabamos de descrever qual seja a capacidade de escolha judiciosa dos
meios
A segunda foacutermula eacute pertinente agrave capacidade de aplicar o universal ao
particular O que vemos eacute que o prudente deve ser capaz de operar com uma com
duas ou com ambas se eacute que eacute possiacutevel estabelecer fundada diferenccedila entre elas
que natildeo seja meramente teoacuterica
Natildeo haacute portanto nenhuma ldquocontradiccedilatildeordquo entre as duas descriccedilotildees da accedilatildeo dadas por Aristoacuteteles Pois uma vez reconhecido o particular se o universal a ele se aplica necessariamente eacute preciso inicialmente reconhecer o particular o que se deduz silogisticamente eacute a propriedade do particular de ser desejaacutevel mas natildeo a existecircncia do particular Natildeo eacute difiacutecil saber que eacute preciso ser corajoso nem decidir que o que foi reconhecido como corajoso dever ser cumprido Mas onde estaacute a coragem hic et nunc Eacute na bravata ou no sangue frio Na aventura ou na abstenccedilatildeo No combate sem esperanccedila ou na fuga que garante o futuro Eacute na infinita distacircncia entre os princiacutepios demasiado gerais e a variedade inacessiacutevel ao pensamento racional A distacircncia eacute igualmente infinita entre a eficaacutecia real do meio e a realizaccedilatildeo esperada do fim Eacute este infinito que Aristoacuteteles pede que a prudecircncia preencha por mediaccedilotildees laboriosas e incertas Mas esse infinito este aoristou que
afeta uma mateacuteria sempre mais ou menos reativa agrave determinaccedilatildeo e em geral um mundo que nunca acolhe inteiramente a ordem noacutes jaacute conhecemos o seu nome a contingecircncia (AUBENQUE 2008 p 228)
Antes de encerrar este assunto parece oportuno levantarmos uma questatildeo
que segue o acima exposto Pierre Aubenque (2008) na introduccedilatildeo ao capiacutetulo
intitulado Antropologia da prudecircncia nos fornece uma importante justificativa acerca
51
Sobre a responsabilidade pela accedilatildeo vide o item 35 Accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria
61
da ordem temaacutetica proposta no presente trabalho A questatildeo que pretendemos
levantar eacute por que tomamos como ponto de partida a contingecircncia
Mostramos ateacute aqui que a prudecircncia soacute teria razatildeo de ser num mundo contingente Ora se a encaramos natildeo mais de um ponto de vista coacutesmico mas humano a contingecircncia nos aparece como abertura agrave atividade dos homens ao mesmo tempo arriscada e eficaz Sem a contingecircncia a accedilatildeo dos homens natildeo seria apenas impossiacutevel seria tambeacutem inuacutetil Eacute tal accedilatildeo ao mesmo tempo permitida e requerida pela contingecircncia em suas relaccedilotildees com a prudecircncia que guia que se trata de analisar agora
Natildeo surpreenderaacute que encontremos aqui em termos ldquosubjetivosrdquo o que tentamos extrair acima em termos ldquoobjetivosrdquo A teoria da contingecircncia e a da accedilatildeo reta satildeo apenas o direito e o avesso de uma mesma doutrina eacute a indeterminaccedilatildeo dos futuros que faz do homem princiacutepio o inacabamento do mundo eacute o nascimento do homem (AUBENQUE 2008 p 173 negrito nosso)
Assim a deliberaccedilatildeo eacute pertinente agravequilo que podemos modificar Seja qual
for o meacutetodo adotado o problema a ser enfrentado eacute o mesmo as incontaacuteveis
possibilidades a que estamos submetidos sendo a escolha o ato intriacutenseco agrave
deliberaccedilatildeo o momento oportuno para escolher o melhor possiacutevel
De acordo com Hermann (2007) a prudecircncia proposta por Aristoacuteteles na
Eacutetica a Nicocircmaco eacute mais precisamente
[] a possibilidade de articular a relaccedilatildeo entre o universal e o particular ou ainda a aplicaccedilatildeo de princiacutepios gerais em casos particulares Inserindo no mundo o comportamento eacutetico interpotildee a individualidade de um eu entretecido em formas histoacutericas de vida com um ethos comum Assim o agir moral natildeo estaacute voltado para um bem transcendente mas realizado em accedilotildees concretas (HERMANN 2007 p 366)
Assim com o escopo de compreendermos melhor passaremos a analisar a
figura do prudente
45 O prudente
A virtude da prudecircncia eacute tratada no capiacutetulo 5 do livro VI da Eacutetica a
Nicocircmaco Aristoacuteteles para explicaacute-la toma emprestado exemplo de pessoas
62
consideradas prudentes De acordo com ele eacute caracteriacutestico do homem prudente
ser capaz de bem deliberar sobre o que eacute bom e proveitoso para si mesmo natildeo de
maneira particular mas sobre o que eacute bom e vantajoso para o bem-estar em geral
Assim o homem prudente em geral eacute aquele capaz de bem deliberar de modo
geral
Poderiacuteamos afirmar que o sistema moral de Aristoacuteteles estaacute centrado em
sua maior parte no indiviacuteduo Aleacutem dos dois livros VIII e IX que satildeo dedicados agrave
amizade pouco se diz sobre ela na totalidade da eacutetica Pouco se sugere que o ser
humano deve ter um interesse caloroso e pessoal pelas outras pessoas e o
altruiacutesmo parece-nos ausente Mesmo sobre a amizade encontram-se traccedilos de um
ponto de vista deveras egoiacutesta jaacute que a mesma natildeo constitui uma benevolecircncia
mas exige certa reciprocidade
Mas tais afirmaccedilotildees natildeo parecem prosperar Sua eacutetica esta pautada no
conceito de felicidade Tal conceito soacute pode ser compreendido no acircmbito da poacutelis e
em relaccedilatildeo ao outro Ou seja para sermos felizes devemos optar por uma vida
virtuosa e para uma vida virtuosa devemos praticar as virtudes torna-se evidente
que sua teoria natildeo soacute considera mas tem como fundamento a relaccedilatildeo muacutetua entre
os homens ou melhor entre os animais poliacuteticos Vejamos a explicaccedilatildeo de Tomaacutes
de Aquino [] compete agrave razatildeo deliberar acertadamente julgar e preceituar naquilo
que se chega ao fim devido Estaacute claro que a prudecircncia visa natildeo somente o bem
particular de um soacute mas tambeacutem o bem comum da multidatildeo (AQUINO 2004 p
602) Estabelecendo uma relaccedilatildeo com a virtude moral expotildee
[] como toda virtude moral que se refere ao bem comum se chama justiccedila legal assim a prudecircncia referida ao bem comum se chama ldquopoliacuteticardquo de modo que a poliacutetica se relaciona com a justiccedila legal da mesma forma que a prudecircncia simplesmente dita agrave virtude moral (AQUINO 2004 p 602)
Portanto podemos concluir que o prudente eacute aquele que sabe o que eacute bom
para si de um modo geral e tambeacutem para sua comunidade Tambeacutem podemos
afirmar que ele bem delibera Assim na linguagem atual prudente tem um certo
sabor daquele que calcula com vistas no interesse proacuteprio (MACINTYRE 1991 p
63
80) e consequentemente da comunidade Resta-nos entatildeo examinar sobre o que o
prudente delibera
Vimos que natildeo eacute objeto de deliberaccedilatildeo as coisas das quais natildeo podemos
deliberar ou seja as coisas que estatildeo no acircmbito do necessaacuterio Conclui-se disto
que
[] a prudecircncia (sabedoria praacutetica) natildeo eacute o mesmo que conhecimento cientiacutefico como tatildeo pouco pode ser o mesmo que a arte Natildeo eacute conhecimento cientiacutefico porque assuntos relacionados agrave conduta admitem mutaccedilatildeo e natildeo pode ser arte porque o criar e o fazer satildeo genericamente diferentes posto que o criar visa um fim que eacute distinto do ato de criar enquanto no fazer o fim natildeo pode ser outro senatildeo o proacuteprio ato ou seja fazer bem eacute em si mesmo um fim Insiste-se portanto que a prudecircncia eacute uma qualidade racional de consecuccedilatildeo da verdade que concerne agrave accedilatildeo relativamente a coisas que satildeo boas e maacutes aos seres humanos (EN VI 5 1140b1-5)
Na sequecircncia Aristoacuteteles cita Peacutericles como sendo um exemplo de homem
prudente Em suas palavras ldquoPor ter a capacidade de discernir que coisas satildeo boas
para si mesmo e para os seres humanos E eacute isso que coincide com nosso
entendimento do que seja algueacutem conhecedor da administraccedilatildeo domeacutestica ou
administraccedilatildeo poliacuteticardquo (EN VI 5 1140b1-5)
Como modelo de phroacutenimos (quem possui a phroacutenesis) isto eacute de ldquosaacutebiordquo ou ldquoprudenterdquo Aristoacuteteles indica Peacutericles (1140 b 8) o grande liacuteder poliacutetico que governa Atenas certamente natildeo um filoacutesofo de profissatildeo com o qual discutir de igual para igual talvez para dissentir Aristoacuteteles indica Soacutecrates (13 1144 b 18 28) certamente natildeo um liacuteder poliacutetico nem nunca um governador de sua cidade tambeacutem daiacute resulta a diferenccedila por ele estabelecida entre a phroacutenesis e a filosofia praacutetica
Com mais forte razatildeo a phroacutenesis difere da sabedoria a primeira efetivamente ocupa-se o homem isto eacute das realidades humanas enquanto a segunda como vimos ocupa-se das realidades mais elevadas que o homem das realidades divinas Se o modelo da phroacutenesis como vimos eacute Peacutericles os modelos de sabedoria indicados por Aristoacuteteles satildeo Tales e Anaxaacutegoras alhures considerados fiacutesicos mas aqui apresentados como investigadores de realidades divinas (os princiacutepios supremos) (BERTI 1998 p 146-147)
Em contraste agrave filosofia platocircnica o Estagirita aborda a temaacutetica acerca da
sabedoria teoacuteretica e da sabedoria praacutetica A sabedoria teoreacutetica estaacute em grau de
64
superioridade em relaccedilatildeo agrave praacutetica sendo que ao menos uma parte do valor desta
uacuteltima consiste na ajuda que daacute a produccedilatildeo da primeira
Entatildeo a felicidade chega apenas ateacute onde haacute contemplaccedilatildeo e as pessoas mais capazes de exercerem a atividade contemplativa fruem mais intensamente a felicidade natildeo como um acessoacuterio da contemplaccedilatildeo mas como algo inerente a ela pois a contemplaccedilatildeo eacute preciosa por si mesma A felicidade portanto deve ser alguma forma de contemplaccedilatildeo
Mas sendo criaturas humanas necessitamos tambeacutem de bem estar exterior pois nossa natureza natildeo eacute suficiente por si mesma para o exerciacutecio da atividade contemplativa Nosso corpo deve ser tambeacutem saudaacutevel e deve receber boa alimentaccedilatildeo e outros cuidados Nem por isso poreacutem devemos pensar que as nossas pessoas necessitam de muitas e grandes coisas para ser felizes simplesmente porque natildeo podem ser sumamente felizes sem bens exteriores com efeito a auto-suficiecircncia e a accedilatildeo natildeo pressupotildeem excessos e podemos praticar accedilotildees nobilitantes sem dominar a terra e o mar porquanto mesmo com recursos moderados eacute possiacutevel agir de conformidade com excelecircncia (isto eacute bastante evidente pois se pensa que os simples cidadatildeos praticam atos meritoacuterios natildeo menos que os detentores do poder ndash na verdade os praticam ainda mais) basta dispormos de recursos moderados pois a vida das pessoas que agem de conformidade com a excelecircncia seraacute feliz (EN X 9 1179a1)
Destarte a contemplaccedilatildeo constitui o ingrediente fundamental da felicidade
para Aristoacuteteles Eacute esta a melhor atividade de que o homem eacute capaz haja vista que
eacute o exerciacutecio do melhor do indiviacuteduo sobre o melhor de todos os objetos os quais
satildeo eternos e imutaacuteveis Por consistir naquilo que o homem pode fazer com maior
continuidade acarretar prazer puro e estaacutevel ser menos dependente dos outros
homens Em suma consiste no gecircnero de vida que se deve atribuir aos deuses jaacute
que seria absurdo atribuir-lhes vida moral
Entretanto a vida contemplativa eacute extremamente elevada para o homem
Enquanto seres humanos compostos de corpo de alma irracional e de razatildeo
homem natildeo a podem vivecirc-la Hipoteticamente poderaacute vivecirc-la somente em virtude do
elemento divino presente nele Todavia o homem natildeo deve seguir aqueles que
afirmam que pelo homem ser homem deve limitar o seu pensamento agraves coisas
humanas Ora ldquona medida do possiacutevelrdquo o homem deve apoderar-se da vida eterna
vivendo a vida desta parte de si mesmo pois eacute esta que constitui a melhor e mais
verdadeira parte de si mesmo O homem que vive assim eacute feliz
65
Entatildeo a phroacutenesis no sentido jaacute plenamente definido de sabedoria praacutetica iraacute constituir-se como virtude dianoeacutetica entre as virtudes eacuteticas de um lado e a filosofia (ou sophiacutea) como haacutebito contemplativo de outro A phroacutenesis aristoteacutelica encontra assim o seu lugar no centro dessa estrutura de uma teoria da praxis como teoria praacutetica que seraacute finalmente a alternativa aristoteacutelica agrave ontologia platocircnica do Bem (VAZ 2000 p 102)
Ainda sobre o prudente podemos extrair dos valiosos ensinamentos de
Henrique C de Lima Vaz
A phroacutenesis como virtude da razatildeo reta (orthoacutes loacutegos) ou da razatildeo que iraacute estabelecer a meacutedia razoaacutevel entre os extremos para as virtudes eacuteticas eacute a primeira das virtudes dianoeacuteticas e assinala justamente a presenccedila do logos regulador e ordenador no fluxo contingente das accedilotildees singulares Ao apontar no homem saacutebio (phroacutenimos) a norma existencial e concreta da phroacutenesis Aristoacuteteles torna patente na realidade viva as ldquocoisas humanasrdquo a dialeacutetica que se estabelece entre o impliacutecito vivido do ethos e o expliacutecito vivido pensado da Eacutetica ou ciecircncia praacutetica Essa dialeacutetica vem romper exatamente com o ciacuterculo vicioso que parece opor logo nos primeiros passos do pensamento eacutetico a praacutetica e a definiccedilatildeo das virtudes e do qual nasce a aporia inicial dos chamados diaacutelogos ldquosocraacuteticosrdquo de Platatildeo a praacutetica da virtude verdadeira conteacutem o saber da sua definiccedilatildeo e a definiccedilatildeo da virtude natildeo eacute senatildeo a abstraccedilatildeo da sua praacutetica Eacute necessaacuterio praticar a virtude para poder defini-la e eacute necessaacuterio defini-la para bem pratica-la A Eacutetica como ciecircncia se propotildee justamente instaurar um tipo de reflexatildeo que permita a ruptura deste ciacuterculo entre o abstrato e o concreto estabelecendo um fundamento racional e uma medida para o agir (VAZ 2000 p 103-104 negrito nosso)
De acordo com Werner Jaeger a prudecircncia eacute a virtude que relaciona o
conhecimento mais elevado com as coisas da vida praacutetica
A phroacutenesis eacute o transformador que converte o conhecimento eterno de Deus no movimento eacutetico da vontade e o aplica agraves particularidades da praacutetica Na Eacutetica a Nicocircmaco eacute o ldquoestado de capacidade de trabalharrdquo e nenhum homem jamais atua sem ela O conhecimento filosoacutefico de Deus natildeo eacute sua condiccedilatildeo essencial
52 (JAEGER 1963 p 265 traduccedilatildeo
nossa)
52
La phroacutenesis es el transformador que convierte el conoci-miento del Dios eterno en el movimiento
eacutetico de la voluntad y lo aplica a los detalles de la praacutecticaEn la Etica Nicomaquea es el estado de capacidad de obrar y ninguacuten hombre actuacutea jamaacutes sin ella El conocimiento filosoacutefico de Dios ya no es su condicioacuten esencial (JAEGER 1963 p 275 traduccedilatildeo nossa)
66
Eacute desse hiato entre o universal e o particular que cuida o prudente Eacute ele
quem delibera sobre o momento as circunstacircncias e a maneira como a accedilatildeo deve
ser deflagrada para que possa ser considera virtuosa
Feita essa exposiccedilatildeo geral da eacutetica contingecircncia eacutetica das virtudes e
prudecircncia noacutes acreditamos ao menos em parte estar aptos a abordar um assunto
que assume papel central na filosofia grega a justiccedila
67
5 JUSTICcedilA COMO VIRTUDE
Abordar a justiccedila ndash ou qualquer outra virtude ndash no pensamento aristoteacutelico eacute
uma tarefa aacuterdua e sinuosa A coerecircncia do pensamento de Aristoacuteteles como um
todo e ao mesmo tempo a especificaccedilatildeo das particularidades de cada mateacuteria a ser
estudada daacute agrave abordagem uma dupla sensaccedilatildeo De um lado certa seguranccedila
relacionada ao fato de sua coerecircncia nos impulsionar ainda que de forma intuitiva
agraves significacircncias de seus dizeres Por outro lado a preocupaccedilatildeo com a seguranccedila
da informaccedilatildeo a ser tratada bem como com as alteraccedilotildees semacircnticas que tornam-
se significativas principalmente com a transiccedilatildeo para modernidade53
Eacute importante observarmos que o tratamento dado agrave justiccedila por Aristoacuteteles
emprega instrumentos pouco convencionais ateacute mesmo para a eacutepoca De acordo
com Eduardo C B Bittar (2005)
A siacutentese operada pelo pensador permitiu por meio de seus textos que se congregassem inuacutemeros elementos doutrinaacuterios reunidos ao longo dos seacuteculos pelos quais se espalharam os conhecimentos gregos anteriores a ele (preacute-socraacuteticos socratismo sofistas platonismo) Eacute da reuniatildeo das opiniotildees dos saacutebios da opiniatildeo do povo da experiecircncia praacutetica analisados e avaliados criticamente dentro da visatildeo de todo o problema (justiccedila da cidade justiccedila domeacutestica justiccedila senhorial) que surgiu uma concepccedilatildeo propriamente aristoteacutelica (BITTAR 2005 p 90-91)
Tal concepccedilatildeo daacute a justiccedila um caraacuteter eacutetico pois insere a mesma entre as
virtudes Dessa forma as regras gerais aplicadas agraves virtudes em particular satildeo
igualmente aplicadas agrave justiccedila Sendo a prudecircncia como mais tarde diria Tomaacutes de
Aquino genitrix virtut e auriga virtut54 parece-nos ser conceito aristoteacutelico de justiccedila
vitalmente ligado ao conceito de prudecircncia ao passo que a prudecircncia realiza suas
accedilotildees assim como a justiccedila no espaccedilo pertinente agrave accedilatildeo racional qual seja o
domiacutenio do contingente Assim esclarece Juacutelio Aguiar de Oliveira (2011)
53
Tema amplamente abordado em por MACINTYRE (2001) 54
Matildee da virtude (III Sent d 33 q 2 a 5 c) e guia da virtude (IV Sent d 17 q 2 a 2 dco) Traduccedilatildeo nossa
68
Na medida em que se trata de uma questatildeo referente agrave accedilatildeo humana sua atuaccedilatildeo se daacute no domiacutenio do contingente Eacute por isso que a virtude da justiccedila (como todas as outras virtudes eacuteticas) depende da virtude da prudecircncia Se a accedilatildeo humana se desenrolasse no domiacutenio do necessaacuterio os preceitos da lei natural poderiam ser deduzidos do primeiro princiacutepio por meio da ciecircncia (deduccedilatildeo matemaacutetica) No entanto uma vez que a accedilatildeo humana se aacute no domiacutenio do contingente a virtude necessaacuteria para a boa deliberaccedilatildeo eacute a virtude da prudecircncia (OLIVEIRA 2011 p121)
Portanto a justiccedila em sentido amplo eacute uma virtude que ldquo[] natildeo comporta
uma compreensatildeo geneacuterica e indiferente agraves qualidade especiacuteficas dos indiviacuteduos eacute
pelo contraacuterio sensiacutevel dentro das ambiccedilotildees teoacutericas de Aristoacuteteles agrave dimensatildeo
individualrdquo (BITTAR 2005 p 93) O conceito dado eacute o seguinte [] a justiccedila eacute a
virtude perfeita por ser ela a praacutetica da virtude perfeita aleacutem do que eacute perfeita num
grau especial porque seu possuidor pode praticar sua virtude dirigindo-a aos outros
e natildeo apenas sozinho [] (ENV 1 1129b30)
Nesse sentido Alexandre Travessoni Gomes em sua obra O fundamento da
validade do direito Kant e Kelsen conclui
A justiccedila soacute eacute possiacutevel numa relaccedilatildeo com o outro Aristoacuteteles chega mesmo a afirmar que dentre as virtudes somente a justiccedila eacute o bem do outro Tanto no sentido universal quanto no particular natildeo haacute justiccedila de um indiviacuteduo consigo mesmo visto que a justiccedila e a virtude que se relaciona com o nosso proacuteximo seja ele governante ou associado[]
Soacute haacute ato justo ou injusto uma vez que algueacutem o queira O que eacute justo ou injusto eacute caracterizado pela lei mas o ato justo ou injusto pressupotildee a vontade O ato injusto eacute portanto o ato voluntaacuterio em que se conhece tanto a pessoa a quem atine quanto o ato como instrumento de justiccedila ou injusticcedila (GOMES 2004 p 61)
Destarte eacute ato justo ou injusto eacute o ato possiacutevel voluntaacuterio e direcionado ao
semelhante
51 Justo e injusto
69
O livro V da Eacutetica a Nicocircmaco trata sobre a justiccedila De acordo com o estilo
de oposiccedilatildeo frequentemente empregado pelo Estagirita a noccedilatildeo de Justo eacute
contraposta agrave noccedilatildeo do injusto
Podemos sintetizar a anaacutelise inserta na passagem 1129b1-10 nos seguintes
termos O injusto eacute de duas espeacutecies injusto legal e injusto desigual
O injusto legal eacute aquele que transgride a lei em outras palavras aquele que
age orientado pela ilegalidade
O injusto desigual por sua vez eacute aquele que toma mais do que lhe eacute devido
Aristoacuteteles eacute muito preciso nesse trecho ao indicar que o injusto desigual eacute tambeacutem
aquele que toma a menor parte das coisas indesejadas Ou seja tomar tanto
demasiado as coisas boas quanto menos as coisas maacutes55
A noccedilatildeo de justo toma parte na argumentaccedilatildeo expondo por oacutebvio que o
justo igual (ou equitativo) eacute aquele que toma a parte que lhe eacute devida
O justo legal por seu turno eacute aquele que age de acordo com as leis Nesse
sentido eacute importante destacar o caraacuteter das leis no pensamento de Aristoacuteteles As
leis satildeo produzidas pelos legisladores de acordo com as virtudes portanto elas
orientam as accedilotildees reiterando o haacutebito e consequentemente educando para a
virtude Esse eacute o fim da atividade poliacutetica A felicidade de cada um em particular e da
poacutelis como um todo
Nesse sentido o termo justo eacute aplicado agrave qualquer coisa que possa produzir
e preservar a felicidade ou as partes componentes da felicidade da comunidade
poliacutetica
Aristoacuteteles destaca que existe uma relaccedilatildeo de gecircnero e espeacutecie entre o justo
legal e o justo igual sendo o justo legal o gecircnero da qual o justo igual eacute espeacutecie A
conclusatildeo eacute a seguinte Eacute possiacutevel ser injusto legal sem ser injusto igual mas natildeo eacute
possiacutevel ser injusto igual sem ser injusto legal
52 Justo universal
55
Parte-se do pressuposto de que as pessoas desejam as coisas boas
70
O justo universal eacute o gecircnero o sentido mais amplo que se pode atribuir ao
termo justo Pode-se dizer que a justiccedila universal consiste na observacircncia da lei no
que diz respeito agravequilo que eacute legiacutetimo e que vige para o bem da comunidade
Assim a define HOumlFF (2003)
A justiccedila como virtude completa denominada justiccedila universal (iustitia universalis) por Santo Tomaacutes de Aquino significa para Aristoacuteteles com vistas ao outro a virtude perfeita ainda mais reluzente do que a estrela vespertina e matutina Consiste na atitude de cumprir voluntariamente tudo o que a lei e os costumes exigem A justiccedila universal denota uma integridade abrangente Dela fazem parte eg tambeacutem as obras da coragem e da prudecircncia a que Aristoacuteteles no entanto alude modestamente apenas com interdiccedilotildees a coragem proiacutebe cometer adulteacuterio e tornar-se violento (HOumlFF 2003 p 24 e 25)
Eduardo Bittar (2005) observa que
A accedilatildeo que se vincula agrave legalidade obedece a uma norma que a todos e para o bem de todos eacute dirigida como tal essa accedilatildeo deve corresponder a um justo legal e a forma de justiccedila que lhe eacute por consequumlecircncia eacute aqui chamada justiccedila legal Aquele que observa os conteuacutedos legais pode ser chamado de justo nesse sentido O mesmo a contrariu sensu a respeito do injusto que lhe corresponde (BITTAR 2005 p 96)
Outro ponto que parece importante nas observaccedilotildees de Eduardo C Bittar eacute
acerca da funccedilatildeo do legislador de acordo com ele a produccedilatildeo normativa da poacutelis eacute
um exerciacutecio da prudecircncia Eacute o mesmo que encontramos na passagem 1141b25
Nessa passagem Aristoacuteteles divide a prudecircncia em duas espeacutecies uma relativa agraves
coisas particulares que recebe o nome de ciecircncia poliacutetica e outra relativa agraves coisas
concernentes ao Estado que nomina ciecircncia legislativa
[] pois as accedilotildees que nascem da virtude em geral satildeo fundamentalmente idecircnticas agraves accedilotildees que estatildeo de acordo com a lei uma vez que a lei prescreve a conduta que exibe as vaacuterias virtudes particulares e proiacutebe a conduta que exibe os vaacuterios viacutecios particulares
71
Igualmente as regras estabelecidas para a educaccedilatildeo particulares (EN V 2 1130b20-25)
A conclusatildeo eacute que a injusticcedila no sentido universal tange todas as coisas que
constituem a esfera da virtude ou seja que as leis prescrevem os comportamentos
virtuosos Mas eacute possiacutevel afirmar que existe algum ato que seja injusto e que natildeo
obstante esteja em conformidade com a virtude Por certo que natildeo Apenas o fato
de um ato ser injusto por si mesmo constitui uma violaccedilatildeo agrave virtude Pois ldquoNa
Justiccedila se encontra toda a Virtude somadardquo (1129b30)56 e por isso a Justiccedila eacute a
virtude perfeita
53 Justo particular
Natildeo obstante a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos ser injustos sem nos afastar
da esfera da virtude Aristoacuteteles nos apresenta uma particcedilatildeo particularizada quanto
em relaccedilatildeo ao injusto no sentido universal
Enquanto uma parte a mais abrangente (injusticcedila universal) versa sobre a
transgressatildeo das normas a outra diz respeito particularmente agrave injusticcedila que visa o
lucro e a injusticcedila movida pelo desejo A essas duas uacuteltimas injusticcedilas ele daacute o
sentido de particular
A que visa o lucro estaacute claro que diz respeito a accedilatildeo de tomar mais do que
lhe eacute devido ela se comporta de um modo bem peculiar por que natildeo viola outra
virtude que natildeo seja a proacutepria Justiccedila A que eacute movida pelo desejo eacute descrita pelo
comportamento desregrado e natildeo por tomar mais do que lhe eacute devido
Tais manifestaccedilotildees particulares satildeo divididas em duas importantes classes
para a teoria da justiccedila aristoteacutelica a saber a justiccedila distributiva e a justiccedila corretiva
531 Justiccedila distributiva
56
De acordo com nota de nuacutemero 123 do tradutor essa maacutexima eacute atribuiacuteda a Teoacutegnis
72
A justiccedila distributiva diz respeito agrave distribuiccedilatildeo proporcional ao meacuterito de
cada pessoa de bens honra riqueza e demais ativos divisiacuteveis da comunidade
Desta forma considera o justo como o igual e o injusto como o desigual admitindo a
igualdade como uma mediania o que pressupotildee ao menos dois termos
Dado o acima podemos admitir que a justiccedila pressupotildee pelo menos quatro
termos sendo que dois deles referem-se agraves medidas e ou outros dois aos indiviacuteduos
a que agraves medidas predicam
A formulaccedilatildeo de Aristoacuteteles acerca da justiccedila distributiva eacute a conjunccedilatildeo do
primeiro termo de uma proporccedilatildeo com o terceiro e do segundo com o quarto e o
justo nesse sentido eacute uma mediania entre os extremos que satildeo desproporcionais
uma vez que a proporccedilatildeo eacute uma mediania e o justo eacute o proporcional (EN V 3
1131b10)
Eacute isso que os matemaacuteticos chamam de proporccedilatildeo geomeacutetrica aquela na
qual soma do primeiro e terceiro termos apresentaraacute a mesma relaccedilatildeo com a soma
do segundo e quarto A observaccedilatildeo que segue eacute a seguinte A justiccedila distributiva
natildeo eacute uma proporccedilatildeo contiacutenua pois seus segundo e terceiro termos um indiviacuteduo e
uma porccedilatildeo natildeo constituem um termo singular (EN V 3 1131a15)
Assim o justo eacute o proporcional e o injusto o que transgride a proporccedilatildeo O
injusto pode assim incorrer no excesso ou na deficiecircncia Isso [] porque um mal
menor comparado a um maior eacute tido como um bem porquanto o menor de dois
males eacute desejaacutevel do que o maior entretanto o que eacute [efetivamente] desejaacutevel eacute
bom e quanto mais desejaacutevel for maior o bem seraacute (EN V 3 1131a20)
532 Justiccedila corretiva
A justiccedila corretiva estaacute direcionada com as relaccedilotildees de acircmbito privado Esta
ao contraacuterio da distributiva natildeo eacute guiada pela proporccedilatildeo geomeacutetrica e sim pela
aritmeacutetica Aqui a lei leva em conta apenas a natureza do dano pois considera as
73
partes iguais seu objeto eacute identificar o sujeito que causou o dano e a quem o dano
fora causado
Elas satildeo distribuiacutedas em duas categorias voluntaacuterias e involuntaacuterias As
voluntaacuterias satildeo aquelas decorrentes da accedilatildeo volitiva entre os sujeitos O exemplo
mais utilizado para ilustrar eacute o de uma relaccedilatildeo de compra e venda
Aristoacuteteles traz para a relaccedilatildeo entre os particulares o problema que contorna
a teoria da justiccedila que eacute dar a cada um o que lhe cabe Dessa forma utiliza dos
termos ldquoperdardquo e ldquoganhordquo para as operaccedilotildees de permuta voluntaacuteria ldquoNesse contexto
ter mais do que lhe cabe eacute chamado de ganho e ter menos do que se tinha no iniacutecio
eacute chamado de perda como por exemplo comprar e vender e todas as transaccedilotildees
que recebem a imunidade da leirdquo (EN V 3 1132a15)
A justiccedila corretiva no sentido involuntaacuterio diz respeito a accedilatildeo decorrente da
vontade de apenas um dos sujeitos O Estagirita divide as do tipo involuntaacuterio em
duas espeacutecies sendo elas furtivas e violentas Ele as explica dando os seguintes
exemplos As furtivas deteacutem o furto o adulteacuterio o envenenamento a prostituiccedilatildeo a
seduccedilatildeo ou incitaccedilatildeo de escravos o assassinato agrave traiccedilatildeo o falso testemunho
Quanto agraves violentas deteacutem o assalto o aprisionamento o crime de morte o roubo
mediante violecircncia a mutilaccedilatildeo a linguagem abusiva o insulto
54 Justo domeacutestico
No trecho 1134 da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles apresenta mais duas
acepccedilotildees de justiccedila A justiccedila poliacutetica e a justiccedila domeacutestica Se avanccedilarmos mais
uma vez no texto e adentrarmos na temaacutetica prudecircncia vamos encontrar duas
figuras ou uma figura com duas caracteriacutesticas semelhantes agrave essas formas de
justiccedila Estamos referindo agrave figura do prudente como bom administrador domeacutestico
e ou bom administrador poliacutetico Proacutexima a essa mesma passagem do livro VI
encontramos uma nova referecircncia que diz respeito agrave duas manifestaccedilotildees
especiacuteficas da prudecircncia uma relativa ao Estado e outra relativa aos particulares Agrave
prudecircncia que concerne agraves coisas proacuteprias ao Estado Aristoacuteteles chama de Ciecircncia
74
Legislativa Agrave prudecircncia que concerne agraves coisas proacuteprias aos particulares ele chama
de Ciecircncia Poliacutetica
A justiccedila domeacutestica eacute aquela compreendida pelas relaccedilotildees que se
estabelecem entre marido e mulher pai e filho e senhor e escravo A mulher o filho
menor e o escravo natildeo participam ativamente das decisotildees da poacutelis o que os
isentam do conceito de justo poliacutetico Apesar da mulher natildeo participar das decisotildees
da poacutelis ela participa das decisotildees do lar o que a diferencia do escravo e do filho
Contra estes uacuteltimos natildeo se pode dizer que o senhorpai possa cometer injusticcedila
uma vez que satildeo considerados como parte do senhorpai sendo que ningueacutem pode
cometer injusticcedila contra si mesmo (BITTAR 2005 p 107)
55 Justo poliacutetico
Como jaacute referimos a compreensatildeo de justiccedila necessariamente
compreende dois termos-sujeito Essa implicaccedilatildeo natildeo eacute meramente loacutegica ela eacute
consequecircncia da teleologia que permeia toda a eacutetica aristoteacutelica Entretanto o justo
poliacutetico em especial refere-se a um grupo de pessoas que possuem a qualidade de
cidadatildeo Isso se deve principalmente por ser um pressuposto da justiccedila poliacutetica a
qualidade de participante ativo dos processos deliberativos proacuteprios agrave poacutelis
Feitas essas observaccedilotildees preliminares podemos agora procurar conceituar
o que seja a justiccedila poliacutetica De acordo com Eduardo C B Bittar
O justo poliacutetico consiste na aplicaccedilatildeo da justiccedila na cidade na poacutelis ou seja trata-se de algo que pertine ao corpo ciacutevico Assim existente no meio social eacute a justiccedila eu organiza um modo de vida que tende agrave auto-suficiecircncia da vida comunitaacuteria (autaacuterkeian) vigente entre os homens que partilham de um espaccedilo comum dividindo atividades segundo a multiplicidade de aptidotildees e necessidades de cada qual formando uma comunidade que tem por fim a eudaimoniacutea e a plena realizaccedilatildeo das
potencialidades humanas (BITTAR 2005 p 106)
75
A definiccedilatildeo dada pelo Estagirita eacute a seguinte ldquoJusticcedila poliacutetica quer dizer
justiccedila entre as pessoas livres e (real ou proporcionalmente) iguais que vivem uma
vida comum com a finalidade de satisfazer suas necessidadesrdquo (1134a25) O que
parece dizer que soacute podem agir justa ou injustamente aqueles que satildeo considerados
cidadatildeos
Aristoacuteteles divide a justiccedila poliacutetica em duas partes sendo uma a justiccedila
natural e outra a justiccedila convencional Comecemos pela natural
551 Justiccedila natural
O Estagirita explica que a justiccedila natural eacute aquela que possui idecircntica
validade em todos os lugares e natildeo depende de nossa aceitaccedilatildeo ou natildeo aceitaccedilatildeo
ldquoO justo natural (diacutekaion phyacutesikon) eacute aquele eu por si proacuteprio por todas as
partes possui a mesma potecircncia (dyacutenamis) e que natildeo depende para sua existecircncia
de qualquer decisatildeo de qualquer ato de positividade de qualquer opiniatildeo ou
conceito O que eacute por natureza eacute tal qual eacute []rdquo (BITTAR 2005) Continua definindo
A justiccedila natural eacute parte da justiccedila poliacutetica que visa permitir a realizaccedilatildeo plena do ser humano inserido na estrutura social do conviacutevio Sendo naturalmente um ser poliacutetico (zwon politikoacuten) a plena realizaccedilatildeo do animal racional estaacute condicionada agrave proacutepria natureza que o engendra o eu equivale a dizer que agrave sociabilidade agrave politicidade agrave autoridade ao relacionamento agrave reciprocidade estaacute o homem intestinamente ligado Reger-se sob o signo de sua natureza para o homem significa estar sob o governo da razatildeo o que se traduz no acircmbito social como estar sob o governo das leis que satildeo ldquoa razatildeo sem paixatildeordquo (BITTAR 2005 p 109)
552 Justo legal (convencional)
Aristoacuteteles define a justiccedila legal como aquela que em primeira instacircncia
pode ser estabelecida de um modo ou outro Isso quer dizer que a justiccedila legal eacute
76
composta pelas disposiccedilotildees definidas de um ou outro modo pela vontade do
legislador
A lei possui forccedila natildeo natural mas fundada na convenccedilatildeo Tendo vaacuterias formas de se estabelecer determinado princiacutepio como conteuacutedo da lei a opccedilatildeo eacute feita pelo legislador passando assim aquilo que a priori era indiferente que fosse de tal ou de qual maneira a ser vinculado a todos os cidadatildeos que a ela se subordinam
Tambeacutem eacute a esse tipo de justiccedila que se agregam as medias legais de caraacuteter particular os decretos e as sentenccedilas As leis em sua maior
parte dirigem-se genericamente a um grupo de cidadatildeos [] Os
decretos as decisotildees emanadas do poder administrativo do governante assim como as sentenccedilas judiciais a aplicaccedilatildeo concreta da generalidade abstrata das disposiccedilotildees legais
57 estatildeo tambeacutem atreladas ao justo
legal como parte da justiccedila poliacutetica que se realiza na vida ciacutevica (BITTAR 2005 p 110)
Dessa forma e imediatamente o fundamento de validade da disposiccedilatildeo natildeo
estaacute na justiccedila natural e sim na convenccedilatildeo orientada pela vontade do legislador
Porque ldquo[] enquanto uma lei da natureza eacute imutaacutevel e tem a mesma validade em
todos os lugares como o fogo que queima na Peacutersia observa-se que as regras da
justiccedila variam (EN V 6 1134a30)
Werner Jaeger em sua Paideia exprime a importacircncia do justo legal para o
povo grego
Acontece o mesmo na Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Anota um nuacutemero muito maior de Aretai que Platatildeo mas ao falar da justiccedila distingue um duplo conceito desta virtude existe uma justiccedila em sentido estrito juriacutedico e outra num sentido mais geral que engloba a totalidade das normas morais e poliacuteticas Reconhecemos nesta uacuteltima sem dificuldade o conceito de justiccedila do antigo Estado constitucional helecircnico Aristoacuteteles invoca expressamente o verso acima referido que inclui na justiccedila todas as virtudes A lei regula pelos seus preceitos as relaccedilotildees dos cidadatildeos com os deuses do Estado com os outros concidadatildeos e com os inimigos da Paacutetria[]
Como suma da comunidade citadina a poacutelis oferece muito Em contrapartida pode exigir ao maacuteximo Impotildee-se aos indiviacuteduos de modo vigoroso e implacaacutevel e neles imprime seu caraacuteter Eacute fonte de todas normas de vida vaacutelidas para os indiviacuteduos O valor do homem e de sua conduta mede-se exclusivamente pelo bem ou pelo mal que acarretam agrave cidade (JAEGER 1995 139-142 negrito nosso)
57
Sobre a aplicaccedilatildeo da lei geral ao caso concreto vide o capiacutetulo 5 A equidade
77
Em sua Retoacuterica Aristoacuteteles define e diferencia invocando a trageacutedia
Antiacutegona
Quando falo de dois tipos de direito ou lei refiro-me agrave lei particular e agrave lei comum A primeira varia segundo cada povo sendo parcialmente escrita a lei comum eacute a lei natural visto que haacute de fato uma justiccedila e uma injusticcedila das quais todos tecircm de alguma maneira a intuiccedilatildeo e que satildeo naturalmente comuns a todos independentemente de todo Estado e de toda convenccedilatildeo reciacuteproca Eacute isso que Antiacutegona de Soacutefocles expressa com clareza ao declarar que o sepultamento de Polinices fora um ato justo a despeito da proibiccedilatildeo ela quer dizer que fora um ato justo por ser o direito natural
Natildeo eacute de hoje ou de ontem
Mas vive eternamente ningueacutem podendo indicar sua origem (Ret I 13
1373b1-15)
Vimos o justo natural como algo imutaacutevel e com regras aplicaacuteveis agraves
diversas localidades Tambeacutem revisitamos o conceito de justo legal estabelecendo
que seu criteacuterio de validade esteja na vontade uma vez que eacute fruto de convenccedilatildeo
Agora restam-nos compreender como aproximar os princiacutepios gerais as leis
abstratas das contingecircncias que imprime em noacutes a incerta condiccedilatildeo humana
78
6 A EQUIDADE
Tanto em sua Eacutetica a Nicocircmaco quanto em sua Retoacuterica Aristoacuteteles utiliza o
termo equidade58 epieikeia em dois sentidos Num sentido lato significa benignidade
e indulgecircncia No sentido stricto eacute a correccedilatildeo da lei
ldquoSer equitativo eacute mostrar indulgecircncia ante as fraquezas humanas eacute tambeacutem
levar em conta menos a lei do que o legislador considerar natildeo a letra da lei mas a
intenccedilatildeo do legisladorrdquo (Ret I 13 1374b10)
ldquoE [tambeacutem] daqui se pode concluir claramente quem eacute o homem equitativo
ele eacute algueacutem que por escolha e haacutebito faz o que eacute equitativo e que natildeo eacute inflexiacutevel
quanto aos seus direitos se contentando em receber uma porccedilatildeo menor mesmo que
tenha a lei do seu ladordquo (EN V 10 1138a)
Sobre o sentido lato Carlos Alberto Schiavo
Por outro lado alguns autores entendem que o uso que os gregos ndash Platatildeo inclusive ndash davam para a palavra epieikeia era em um sentido vulgar de benignidade e indulgecircncia ateacute mesmo porque quando querem atribuir agrave Platatildeo um espiacuterito de rigidez na aplicaccedilatildeo da lei em atenccedilatildeo agrave supremacia que o filoacutesofo assinalava do Estado sobre o indiviacuteduo em seus ensinamentos acerca do justo (SCHIAVO 2013 p 6-7 traduccedilatildeo nossa)
59
Assim o conceito de equidade pode ser compreendido como o exerciacutecio do
justo e do bem atraveacutes da benignidade e da indulgecircncia Aqui a comunidade se
beneficia uma vez que o equacircnime alcanccedile seu bem atraveacutes de deliberaccedilotildees que
natildeo pretendem prover apenas o acircmbito individual
58
Equidade eacute a traduccedilatildeo romacircnica de aequitas e natildeo do grego epieiacutekeia Para uma traduccedilatildeo direta do grego a correspondente em liacutengua portuguesa eacute epiqueia que de acordo com Aureacutelio Buarque de Holanda ldquoepiqueia SF 1 Interpretaccedilatildeo razoaacutevel de lei ou preceito 2 Fig Meio-termo moderaccedilatildeordquo Vide PINTO G A GONCcedilALVES A L GONCcedilALVEZ V D C O problema da traduccedilatildeo do termo fairness na obra de John Rawls Belo Horizonte Editora Puc Minas 2009 59
Por otra parte algunos autores entienden que el uso que los griegos -Platon inclusive- daban a la palabra epieikeia era en un sentido vulgar de benignidad e indulgencia aun cuando hay quienes atribuyen a Platon un espiacuteritu de rigidez en la aplicacioacuten de la ley en atencioacuten a la supremaciacutea que el filosofo le asignaba al Estado sobre el individuo y a su idea respecto de persuadir de como es por naturaleza lo justo (SCHIAVO p6-7 traduccedilatildeo nossa)
59
79
Sobre o sentido stricto Aristoacuteteles afirma que a natureza essencial do
equitativo eacute uma retificaccedilatildeo da lei onde a lei eacute lacunar em funccedilatildeo de sua
generalidade
Este sentido pretende conhecer o ponto de colisatildeo entre a norma em sua
generalidade e a fraacutegil condiccedilatildeo humana em sua singularidade Em outras palavras
neste sentido Aristoacuteteles nos diz que por ser a lei geral e abstrata instala-se uma
distacircncia entre ela e seu objeto uma vez que as relaccedilotildees humanas satildeo contingentes
e portanto de difiacutecil determinaccedilatildeo
Esta distacircncia dificulta a aplicaccedilatildeo da norma podendo por vezes causar
injusticcedila Para evitar a injusticcedila proveniente da aplicaccedilatildeo do justo legal eacute necessaacuterio
acomodar este uacuteltimo agrave realidade do mundo fatiacutedico essa acomodaccedilatildeo eacute a equidade
em seu sentido stricto
61 Justiccedila e equidade ambiguidade do tema
Aristoacuteteles ao tratar da equidade comeccedila fazendo uma exposiccedilatildeo sobre a
ambiguidade terminoloacutegica entre justiccedila e equidade e o justo e o equitativo De
acordo com Eduardo Bittar
[] o uso dos termos se aproxima tamanhamente que ora chamamos de eacutequa uma situaccedilatildeo de justiccedila ora de justa uma situaccedilatildeo eacutequa De fato todos reconhecem que os termos natildeo se equivalem perfeitamente e neste caso o uso de um pelo outro conduz a equiacutevocos notoacuterios de modo que sendo semelhantes poreacutem natildeo idecircnticos devem ser distinguidos naquilo que lhes peculiariza Eacute no gecircnero (eacuteteron tocirc geacutenei) que se dizem aproximados os conceitos de ambos os termos O uso ainda mais esta a indicar a relativa e frequumlente coincidecircncia dos campos semacircmticos de ambos os significantes pois verdadeiramente se satildeo diversos ou o justo natildeo eacute bom ou o eacutequo natildeo o eacute (BITTAR 2005 p163)
Os termos no Grego de Aristoacuteteles satildeo canonicamente traduzidos por equidade e equitativo satildeo epieikeia e epiekis respectivamente Ele usa-os com muita frequecircncia na Eacutetica a Nicocircmaco e muita vezes em sua Retoacuterica e sua Poliacutetica Como ele mesmo nota que usa os termos em dois sentidos De longe o significado mais comum e geral eacute de epieikeia como simplesmente excelecircncia ou bondade A Eacutetica a Nicocircmaco
80
aplica mais tipicamente neste sentido Em uma passagem Aristoacuteteles diz que do ponto de vista da Justiccedila na rectificaccedilatildeo eacute indiferente se um homem bom tem defraudado um mau homem ou vice-versa a palavra para bom eacute epieikeis contrastava com phaulos para o mal Em trecircs passagens no entanto Aristoacuteteles usa os termos para se referir a uma virtude especiacutefica comumente dito ser a virtude da equidade um tipo particular de excelecircncia Aristoacuteteles caracteriza em verdade epieikeia no sentido especiacutefico como um epanorthoma nomou hei elleipei dia de katholou uma correccedilatildeo da lei onde a lei estaacute aqueacutem por causa de sua universalidade Na Retoacuterica descreve a justa quanto ao Paraacute para gegrammenon nomon δικαιον II que a justiccedila que se encontra aleacutem a lei escrita (SHINER 1994 p 1247 traduccedilatildeo nossa)
60
Ao tratar do assunto o Estagirita distingue a justiccedila e o justo pelas
quantificadoras universal e particular Quando aponta o sentido universal estaacute
referido agrave accedilatildeo como virtuosa ou natildeo Quando aponta o sentido particular diz que
estaacute relacionada ao prazer do ganho Eis a distinccedilatildeo ldquoEntretanto enquanto a
injusticcedila no sentido particular tange agrave honra ao dinheiro ou agrave seguranccedila ou seja laacute
qual for o termo que pudeacutessemos utilizar para englobar todas essas coisas seu
motivo sendo o prazer do ganho a injusticcedila no sentido universal tange a todas as
coisas que constituem a esfera da virtuderdquo (EN V 2 1130b1) Conclui na sequecircncia
que em sentido universal o justo eacute legal e em sentido particular o justo eacute igual ou
equitativo
O exame da natureza da equidade e do equitativo se daacute em sentido anaacutelogo
pois ldquo[] (nem tudo que eacute ilegal eacute natildeo equitativo ao passo que tudo que eacute natildeo
equitativo eacute ilegal) assim tambeacutem o injusto e a injusticcedila no sentido particular satildeo o
mesmo que o injusto e a injusticcedila no sentido universal mas destes distintos e a eles
relacionados como a parte do todordquo (EN V 2 1130b10)
60 The terms in Aristotles Greek standardly translated equity and equitable are epieikeia and
epiekis respectively He uses them frequently throughout the Nicomachean Ethics and often in the Rhetoric and Politics too As he himself notes he uses the terms in two senses By far the most common meaning is the general one-epieikeia means simply excellence or goodness The Nicomachean Ethics illustrates typically this sense In one passage Aristotle says that from the point of view of justice in rectification it is indifferent whether a good man has defrauded a bad man or vice versa the word for good is epieikeis contrasted with phaulos for bad In three passages however Aristotle uses the terms to refer to a specific virtue commonly said to be the virtue of equity a particular kind of excellence Aristotle pithily characterizes epieikeia in the specific sense as an epanorthoma nomou hei elleipei dia to katholou a correction of law where law falls short because of its universality The Rhetoric describes the equitable as to para to gegrammenon nomon dikaionII that justice which lies beyond the written law (SHINER 1994 p 1247 traduccedilatildeo nossa)
81
Justo eacute um adjetivo que se predica em uma determinada pessoa comportamento ou situaccedilatildeo atraveacutes da atribuiccedilatildeo a todas essas coisas da capacidade de justiccedila abstrata E assim o justo consiste em realizar o objeto principal da justiccedila a concretizaccedilatildeo da justiccedila ao niacutevel do caso concreto tem em primeiro plano de referecircncia o justo legal e na epikeia a concretizaccedilatildeo do justo em respeito a um comportamento que eacute completamente determinado que resulte excepcional frente ao primeiro plano de referecircncia E por justiccedila entendia o Estagirita Esti de dikaiosunh men areth di hv ta autwn ekastoi exousi kai wz o nomo z adikia de di hn ta allotpia oux wz o nomoz 61 58 en tanto los romanos la definiacutean como ldquoConstans er perpetua voluntas jus summ cuique tribuendi
62rdquo
o bien Est autem a iustitia appellantum nam ut eleganter Celsus definit ius est ars boni et aequi
63 (SCHIAVO 2013 p3)
64
Quanto agrave equidade e ao equitativo Aristoacuteteles retoma o assunto no capiacutetulo
10 do Livro V da Eacutetica a Nicocircmaco De acordo com ele a equidade e o equitativo se
relacionam com a justiccedila e com o justo respectivamente pois quando examinadas
afigura-se que justiccedila e equidade natildeo satildeo nem absolutamente idecircnticas nem
genericamente diferentes
Aqui uma nova referecircncia ao duplo sentido do termo equidade65 uma de
uso popular e outra de emprego teacutecnico Vejamos
Por vezes eacute verdade que louvamos a equidade e o homem equitativo a tal ponto que chegamos a empregar a palavra equitativo como um termo
61
Ret I 9 1367a 5-7 ldquoaquilo que fazemos por nossos benfeitores por forccedila da justiccedila disto e os serviccedilos prestados em geral pois o proveito que deles se extrai natildeo se dirige ao seu agenterdquo (ARISTOacuteTELES 2011 p 83 traduccedilatildeo Edson Bini) 62
Constante e perpeacutetua vontade de cumprir os deveres (traduccedilatildeo nossa) 63
E eacute chamada assim de justiccedila pela elegante definiccedilatildeo de Celso eacute a arte do bom e do equitativo (traduccedilatildeo nossa) 64
Justo es un adjetivo que se predica en concreto de una persona de una conducta o de una situacioacuten por el que se asigna a todas estas cosas la capacidad abstracta de justicia Y en tanto lo justo consiste en realizar el bien comuacuten como objeto principal de la justicia la concrecioacuten de la justicia a nivel del caso o del conflicto tiene un primer plano de referencia en la justicia legal y en la epiqueya la concrecioacuten de lo justo respecto de una conducta completamente determinada que resulta excepcional frente aquel primer plano de referencia Y por justicia el Estagirita entendiacutea Esti de dikaiosunh men areth di hv ta autwn ekastoi exousi kai wz o nomo z adikia de di hn ta allotpia oux wz o nomoz en tanto los romanos la definiacutean como ldquoConstans er perpetua voluntas jus summ cuique
tribuendi rdquo o bien Est autem a iustitia appellantum nam ut eleganter Celsus definit ius est ars boni et aequi (SCHIAVO 2013 p3) 65
Ao que tratamos no iniacutecio deste capiacutetulo
82
de aprovaccedilatildeo de outras coisas aleacutem do que eacute justo e a empregamos como equivalente de bom querendo dizer com mais equitativo meramente uma coisa eacute melhor Em outras oportunidades todavia quando submetemos a palavra efetivamente ao crivo da razatildeo nos parece estranho que o equitativo devesse ser louvaacutevel uma vez ser ele algo distinto do justo (ENV 10 1137b1)
Aristoacuteteles instala entatildeo certa dificuldade que nos parece proveniente da
loacutegica De acordo com ele ldquoSe satildeo diferentes [um deles] o justo ou o equitativo natildeo
eacute bom se ambos satildeo bons satildeo a mesma coisardquo (ENV 10 1137b1)
A soluccedilatildeo dada eacute que a equidade natildeo eacute diferente da justiccedila como um todo
mas diferente de uma parte dela a justiccedila legal Natildeo bastasse diferente Aristoacuteteles
ainda afirma ser a equidade superior uma vez que a equidade eacute a retificaccedilatildeo da
justiccedila legal
62 Justiccedila como equidade66
Talvez uma dificuldade na compreensatildeo da equidade aristoteacutelica esteja
associada a uma terceira concepccedilatildeo vigente em sua Eacutetica Tal concepccedilatildeo foi fruto
da investigaccedilatildeo tomista e permeia a ideia de equidade se sobrepondo por vezes agraves
duas primeiras concepccedilotildees apresentadas quais sejam a lato e a stricto
A questatildeo estaacute mais uma vez na proacutepria terminologia Sem precisar das
origens etimoloacutegicas da palavra justiccedila e da palavra equidade podemos estabelecer
um padratildeo como constante em ambos os conceitos
A palavra justiccedila nos remete agrave justeza agravequilo que estaacute conformado ou em
conformidade justificado assentado ajustado etc A palavra equidade por sua
vez nos remete agrave equalizado equiparado razoado etc
Numa primeira acepccedilatildeo a palavra equumlidade significa etimologicamente retidatildeo e justiccedila Numa segunda acepccedilatildeo poreacutem corresponde a
66
Aqui natildeo fazemos referecircncia a obra Justice as fairness do filoacutesofo John Rawls Sobre este assunto vide PINTO G A GONCcedilALVES A L GONCcedilALVEZ V D C O problema da traduccedilatildeo do termo fairness na obra de John Rawls Belo Horizonte Editora Puc Minas 2009
83
moderaccedilatildeo correccedilatildeo benignidade piedade coincidindo nesse sentido com a ideacuteia aristoteacutelica de epikeya que eacute o conveniente ou o que se ajusta ou melhor norma que se adapta a uma determinada relaccedilatildeo por corresponder agrave natureza essencial desta A equumlidade complementa a justiccedila corrigindo a lei pelas caracteriacutesticas concretas e muitas vezes imprevistas que as realizadas sociais apresentam e que natildeo satildeo passiacuteveis de enquadramento nos ditamentes da justiccedila geral A lei como natildeo pode deixar de ser regula as relaccedilotildees humanas de caraacuteter juriacutedico sob um acircngulo de todo geral e abstrato A equumlidade ao contraacuterio por sua proacutepria natureza visa a corrigir a lei quando esta como anota Aristoacuteteles se demonstra incompleta para abarcar o caso especial e concreto que foge agrave aplicaccedilatildeo geneacuterica (PAUPEacuteRIO 2003 p 67)
Parece que ambos os termos remetem a uma adaptaccedilatildeo que tem por fim
tornar igual ou ao menos fazer com que a medida estabelecida conheccedila seu objeto
Neste sentido instalador da ambiguidade eacute que muitos autores fazem
referecircncia agrave equidade como sendo a proacutepria justiccedila natural ou ao menos a parte
dela que nos toca
[] o termo ldquoequumlidaderdquo natildeo eacute uniacutevoco pois natildeo se aplica a uma soacute realidade nem tampouco equiacutevoco jaacute que natildeo designa duas ou mais realidades desconexas mas sim anaacutelogo pois se refere a realidades conexas ou relacionadas entre si
De maneira que a ldquoequumlidaderdquo tem sido de certa forma entendida como um direito natural em suas vaacuterias concepccedilotildees (DINIZ 242)
Palpeacuterio destaca que ldquoNo fundo como anotam alguns autores a equumlidade eacute
o proacuteprio direito natural natildeo propriamente em seus princiacutepios mas em sua
aplicaccedilatildeo e acomodaccedilatildeo aos casos concretosrdquo67 (PALPEacuteRIO p 69)
De acordoacute com Recasegraves Siches ldquola equidad es la expresioacuten de lo justo
natural en relacioacuten com el caso concreto Es decir la equidad es lo justo pero no lo
67
Na sequencia podemos encontrar o Autor dizendo que a justiccedila se difere da equidade contudo parece-nos que o conceito de justiccedila trabalhado neste ponto eacute o conceito de justo poliacutetico natildeo alcanccedilando a latitude aparente do texto que por referir apenas agrave justiccedila poderia nos sugerir seu sentido amplo vejamos ldquoNatildeo se confundindo com a clemecircncia que segundo Secircneca eacute a moderaccedilatildeo do acircnimo no poder de castigar a equumlidade distingue-se da proacutepria justiccedila porque enquanto esta corresponde agrave aspiraccedilatildeo do legislador aquela corresponde agrave do juizrdquo (p 69)
84
justo legal tal y como se desprenderiacutea de latildes palabras de la ley sino lo
auteacutenticamente justo respecto del caso particularrdquo (SICHES 2008 p 656)
Portanto tanto a justiccedila quanto a equidade parecem procurar acomodar a
medida constante das regras gerais e abstratas agraves realidades inconstantes em suas
singularidades e concretude Tal acomodaccedilatildeo procura estabelecer ou reestabelecer
certo paracircmetro de igualdade que nos parece aspiraccedilatildeo natural agrave justiccedila grega
621 Justiccedila e igualdade
A noccedilatildeo de justiccedila estaacute intimamente relacionada com a noccedilatildeo de
igualdade68 Da mesma forma em que a injusticcedila estaacute relacionada com a noccedilatildeo de
desigualdade Nuno Manoel M dos S Coelho em seu verbete Igualdade explica
que o desenvolvimento do ldquoconceito juriacutedico-filosoacutefico de igualdade no centro da
concepccedilatildeo de justiccedila como virtude diante do outro eu reconheccedilo como igual na
medida em que natildeo posso reivindicar tudo para mim mas devo dar a cada um o
seurdquo (COELHO 2011 p 215)
A igualdade eacute elemento essencial e baacutesico ldquoA justiccedila eacute uma igualdade e a injusticcedila uma desigualdaderdquo afirmou Aristoacuteteles ldquoA essecircncia da justiccedila eacute a igualdaderdquo acrescenta S Tomaacutes E mestre em tirar das palavras o que elas encerram mostra que a noccedilatildeo de igualdade estaacute contida no proacuteprio nome dessa virtude pois das coisas que estatildeo adequadas ou igualadas dizemos comumente que estatildeo ldquoajustadasrdquo (MONTORO 2009 p 170)
68
Podemos observar que a preocupaccedilatildeo com a igualdade e a tensatildeo existente entre igualdade material e igualdade formal aparece ateacute mesmo no contexto positivista como um problema a ser resolvido Tambeacutem daqui resulta que eacute errado considerar a regra que manda tratar os que satildeo iguais de forma igual como aplicaccedilatildeo do princiacutepio de justiccedila da igualdade A uacutenica norma que pode valer como princiacutepio de justiccedila da igualdade eacute a norma segundo a qual todos os homens devem ser igualmente tratados segundo a qual nenhuma das desigualdades que efetivamente existem entre eles deve ser tomada em consideraccedilatildeo (KELSEN 1998 p 55-56) Podemos ainda encontra tal preocupaccedilatildeo no liberalismo de pensadores como John Rawls vide Uma teoria da Justiccedila (2008)
85
A justiccedila em Aristoacuteteles faz necessaacuteria referecircncia agrave igualdade em seu
sentido material Tanto o eacute que a medida enquanto referecircncia da mediania eacute o
fundamento de sua eacutetica
Sobre a justiccedila enquanto igualdade Andreacute Franco Montoro desdobra acerca
da foacutermula tomista Ratio justitiae in hoc consistit quod alteri reddatur quod ei
debentur secundum aequalitatem69
[] em sentido estrito e proacuteprio a justiccedila designa uma virtude com objeto especial Nesse sentido ldquoa essecircncia da justiccedila consiste em dar a outrem o que lhe eacute devido sendo uma igualdaderdquo (simples ou proporcional) conforme a definiccedilatildeo de S Tomaacutes Soacute eacute justiccedila propriamente dita a relaccedilatildeo que tem por objeto - dar a outrem - o que lhe eacute devido - segundo uma igualdade A essas trecircs notas correspondem agraves caracteriacutesticas essenciais da justiccedila em sentido estrito - a alteridade ou pluralidade de pessoas (alteras de alter) - o devido (debitum) - a igualdade (aequalitas) (MONTORO 2009 p 165 - 166)
Ainda de acordo com Montoro a igualdade eacute estabelecida atraveacutes de
criteacuterios quantitativos
Duas realidades satildeo idecircnticas quando tecircm a mesma essecircncia Semelhantes quando tecircm as mesmas qualidades Iguais quando tecircm a mesma quantidade ldquoidem est unum in substancia siacutemile unum in qualitate aequale vero unum in quantitaterdquo Um homem eacute ldquoidecircnticordquo apenas a si mesmo De duas pessoas que tecircm os mesmos traccedilos dizemos que satildeo ldquosemelhantesrdquo Vinte eacute igual a 10 mais 10
A igualdade eacute pois uma equivalecircncia de quantidades Na justiccedila de forma analoacutegica e adaptada agrave natureza moral das relaccedilotildees humanas e essa tambeacutem a significaccedilatildeo de igualdade
Com razatildeo observou Recaseacutens Siches na justiccedila natildeo se trata de estabelecer ldquoidentidaderdquo como seria o caso de entregar um objeto e receber o mesmo objeto Isso natildeo teria sentido Natildeo se trata tambeacutem de receber um objeto ldquosemelhanterdquo ou parecido Mas de estabelecer uma equivalecircncia ou ldquoigualdaderdquo (MONTORO 2009 p171)
69
A justa razatildeo consiste em dar ao outro o que lhe eacute devido de acordo com a igualdade (traduccedilatildeo nossa)
86
Aristoacuteteles apresenta duas foacutermulas para que a igualdade seja alcanccedilada
uma ele denominou aritmeacutetica (conhecida como igualdade simples) e a outra
geomeacutetrica (conhecida como igualdade proporcional)
Desta forma a ldquoigualdade da justiccedila pode realizar-se de duas formas
distintasrdquo
a) igualdade simples ou absoluta eacute a equivalecircncia entre dois objetos que se verifica nas relaccedilotildees de troca o comprador de um objeto que vale 1000 dever efetuar um pagamento de igual valor (1000 = 1000) b) igualdade proporcional ou relativa eacute a que se realiza na distribuiccedilatildeo dos benefiacutecios e encargos entre os membros de uma comunidade se A que contribui com 50 recebe 5 B que contribui com 80 receberaacute 8 (550 = 880) Aristoacuteteles chamou a primeira igualdade ldquoaritmeacuteticardquo e a segunda ldquogeomeacutetricardquo Em qualquer caso a justiccedila procura realizar uma igualdade nas relaccedilotildees entre os homens Ou como diz Lachance na justiccedila devemos nos igualar ao proacuteximo por seu ato (MONTORO 2009 p 172)
A justiccedila portanto soacute pode ser compreendida a partir de seu princiacutepio de
igualdade Ainda sobre este ponto Aristoacuteteles apresenta dois importantes temas que
foram objeto de estudo dos itens 531 e 532 A justiccedila distributiva e a justiccedila
corretiva Natildeo obstante jaacute terem sido objeto de nosso estudo eacute necessaacuterio
revisitarmos tais conceitos em face da noccedilatildeo de igualdade
Assim pode-se dizer que haacute duas formas de justiccedila uma particular cujo
objeto eacute o bem particular e outra geral tambeacutem chamada legal ou social cujo objeto
eacute o bem comum A justiccedila particular realiza-se de duas formas justiccedila comutativa
quando um particular daacute a outro particular o bem que lhe eacute devido e justiccedila
distributiva quando a sociedade daacute a cada particular o bem que lhe eacute devido
Receber o devido e portanto natildeo tomar maior parcela dos bens desejados
e nem a menor parcela dos bens indesejados seja na relaccedilatildeo particular ou sobre
aquilo que eacute o bem comum parece-nos o criteacuterio da igualdade
63 Equidade melhor que um tipo de justiccedila
87
De acordo com Aristoacuteteles a equidade eacute melhor que um tipo de justiccedila Ele
estaacute se referindo agrave justiccedila legal pois
[] a equidade embora superior a uma espeacutecie de justiccedila eacute ela mesma justa natildeo eacute superior agrave justiccedila ao ser genericamente distinta dela Justiccedila e equidade satildeo portanto a mesma coisa sendo ambas boas ainda que a equidade seja melhor
A origem da dificuldade eacute que ldquoa equidade embora justa natildeo eacute justiccedila legal poreacutem retificaccedilatildeo desta (EN V 10 1137b10)
O que Aristoacuteteles parece querer dizer eacute que a justiccedila em todas as suas
acepccedilotildees compreende a equidade como seu princiacutepio No entanto a acepccedilatildeo de
justiccedila legal em sua rigidez e generalidade pode objetivamente ferir o justo razatildeo
pela qual a equidade enquanto princiacutepio da justiccedila eacute melhor Afinal eacute ela que natildeo
permite que uma das espeacutecies de justiccedila aquela que eacute convencionada pelo homem
seja aplicada de forma a causar injusticcedila
Eduardo Bittar explica como Aristoacuteteles desconstitui a aparente
ambiguidade da temaacutetica
o eacutequo sendo melhor que uma forma de justo ndash e aqui se percebe nitidamente qual a estrita relaccedilatildeo entre o eacutequo e uma forma especiacutefica de justo o justo legal ndash natildeo deixa de ser justo poreacutem natildeo simplesmente pelo fato de constituir um gecircnero diferente representa algo a mais que o justo Em verdade satildeo a mesma coisa o justo e o eacutequo (tautograven aacutera diacutekaion kaigrave epieikegraves) de maneira que assim sendo o eacutequo eacute melhor e mais desejaacutevel que o justo Se eacutequo e justo se equivalem nesta medida e da forma indicada segundo o gecircnero natildeo eacute verdade que o eacutequo seja o justo segundo a lei (ou tograve katagrave noacutemon deacute) de acordo com o que estaacute consignado no corpo legislativo e foi posto pela vontade humana como vinculativo da conduta social mas sim um corretivo do justo legal (epanothoma nomiacutemou diacutekaion) (BITTAR 2005 p163)
Portanto a equidade corresponde ao justo presente na concepccedilatildeo de justiccedila
para Aristoacuteteles poreacutem eacute melhor que o justo legal por ser o princiacutepio corretor do
mesmo
64 Natureza essencial do equitativo a retificaccedilatildeo do justo legal
88
O que encontramos no capiacutetulo 10 do Livro V da Eacutetica a Nicocircmaco satildeo duas
aplicaccedilotildees da equidade enquanto retificaccedilatildeo do justo legal A primeira que
examinaremos neste item 64 diz respeito ao rigor do justo legal e a segunda que
examinaremos no item 65 diz respeito agrave existecircncia de casos que o legislador natildeo
pode prever
Em verdade estas duas aplicaccedilotildees da equidade satildeo consequecircncia de uma
soacute coisa o caraacuteter geral da norma Se de um lado o rigor da norma que exige do
equacircnime a acomodaccedilatildeo do direito se daacute pela generalidade da norma de outro a
generalidade parece insuficiente para conhecer todos os casos o que oportuna o
surgimento das lacunas
641 A metaacutefora da reacutegua de chumbo
Aristoacuteteles para explicar melhor em que consiste a equidade ilustra sua
exposiccedilatildeo fazendo uma analogia das regras do direito com as reacuteguas empregadas
por pedreiros em lavras
Os construtores da ilha de Leacutesbos utilizavam em seus afazeres um
instrumento que chamou a atenccedilatildeo do Estagirita esse instrumento nada mais era do
que uma reacutegua feita de chumbo
A funccedilatildeo de tal reacutegua era manter a medida certa ainda que seu objeto
assumisse formas diversas Assim inobstante as irregularidades na forma das
pedras poderia graccedilas agrave maleabilidade da reacutegua ajustaacute-la ao objeto apurando
assim a medida certa
Com efeito essa eacute a razatildeo porque natildeo satildeo todas as coisas determinadas pela lei pelo fato de haver alguns casos [e situaccedilotildees] em relaccedilatildeo aos quais eacute impossiacutevel estabelecer uma lei eacute necessaacuteria a existecircncia de um decreto especial pois aquilo que eacute ele proacuteprio indefinido soacute pode ser medido por um padratildeo indefinido como a reacutegua pluacutembea usada pelos construtores de Lesbos tal como essa reacutegua natildeo eacute riacutegida podendo ser flexibilizada ao formato da pedra um decreto
89
especial eacute feito para se ajustar agraves circunstacircncias do caso (EN V 10 1137b30)
Desprende-se do texto que a medida que eacute ali buscada ldquo[] se assemelha
agraves diversas situaccedilotildees que se encadeiam na etapa de aplicaccedilatildeo da norma juriacutedica
mormente a interpretaccedilatildeo do fato e do comando legal que o atinge em foco de
incidecircncia Assim se veria a norma geral como medida e a situaccedilatildeo da vida erigida
em controveacutersia como a pedrardquo (LOPES 1993 p 46)
O conceito de equidade muito bem explicado pela metaacutefora da reacutegua de
chumbo na passagem 1137b30 da Eacutetica a Nicocircmaco segundo Javier Hervada
(2008) ldquoabranda o dever e acomoda o direitordquo (HERVADA 2008 p 171) ldquoO
equumlitativo soacute se daacute quando a reacutegua consegue captar todas as microscoacutepicas
reentracircncias do cenaacuterio multiforme que lhe cabe medirrdquo (LOPES 2007 p 77)
A lei eacute considerada aqui como um sumaacuterio de decisotildees saacutebias Eacute por conseguinte apropriado complementaacute-la com novas decisotildees saacutebias tomadas na situaccedilatildeo presente e eacute tambeacutem apropriado corrigi-la nos pontos em que natildeo resume corretamente o que um bom juiz faria O bom juiacutezo mais uma vez proporciona tanto uma concretude superior como uma superior sensibilidade ou flexibilidade
A exigecircncia de flexibilidade tatildeo importante para o nosso entendimento da concepccedilatildeo aristoteacutelica natildeo cientiacutefica de escolha eacute descrita pois em uma viacutevida metaacutefora Aristoacuteteles nos diz que uma pessoa que tenta tomar todas as decisotildees recorrendo a algum princiacutepio geral antecedente sustentando como firme e inflexiacutevel para a ocasiatildeo eacute como um arquiteto que procura usar uma reacutegua reta sobre as curvas intricadas de uma coluna canelada O bom arquiteto ao contraacuterio mediraacute como fazem os construtores de Lesbos com um tira flexiacutevel de metal que ldquose inclina arqueada para ajustar-se agrave forma da rocha que eacute natildeo eacute fixardquo (1137b30-2) A boa deliberaccedilatildeo tal como essa regra se acomoda ao que encontra de maneira sensiacutevel e com respeito pela complexidade Natildeo assume que a forma da regra governa as aparecircncias permite que as aparecircncias governem a si mesmas e sejam normativas para a correccedilatildeo da regra (NUSSBAUM 2009 p 263)
Portanto a metaacutefora revela uma equidade que eacute em si uma regra mas uma
regra cuja forma eacute capaz de moldar-se agraves nuanccedilas proacuteprias da mateacuteria
642 A retificaccedilatildeo do justo legal
90
Aristoacuteteles define equidade70 como sendo a retificaccedilatildeo do justo legal A lei
natildeo por um erro da parte do legislador mas pela sua proacutepria generalidade pode
criar se aplicada de modo inflexiacutevel agrave multiplicidade dos casos singulares
especiacuteficos o efeito oposto para o qual foi originalmente estabelecida Ou seja
sendo ldquoinfinita a mateacuteria sobre a qual se deve legislar e sendo necessaacuterio apesar
de tudo estabelecer leis eacute forccediloso falar em geralrdquo (Ret I 13 1374a30) A equidade
seraacute o mecanismo que coloca nas matildeos do aacuterbitro discricionariedade suficiente para
aplicar a norma de modo a natildeo causar uma injusticcedila por meio do proacuteprio justo legal
A necessidade da aplicaccedilatildeo da equumlidade decorre do fato de que as leis dizem genericamente e para todos sem diferenciar todas as nuanccedilas que possam existir na esfera dos fenocircmenos de modo que surgem casos para os quais se aplicada a lei (noacutemos) em sua generalidade (kathoacutelou) estar-se-aacute a causar uma injusticcedila por meio do proacuteprio justo legal Exatamente para superar os problemas decorrentes da impossibilidade de haver uma legislaccedilatildeo minimamente detalhista e futurista eacute que existe o eacutequo []
Se a lei eacute neste ponto e para estes fins falha isto natildeo se deve nem ao conteuacutedo da lei em si nem ao legislador natildeo se trata de um erro legislativo mas sim de um problema oriundo da proacutepria peculiar conformaccedilatildeo das coisas como satildeo praticamente Cada caso eacute um caso e demanda uma atenccedilatildeo especial e especiacutefica absolutamente focalizada sobre os seus traccedilos e as suas caracteriacutesticas de modo que nenhuma legislaccedilatildeo poder-se-ia aplicar a esta dimensatildeo dos fatos (BITTAR 2005 p164 - 165)
A equidade aristoteacutelica eacute portanto ldquoa correccedilatildeo dos rigores da leirdquo (BITTAR
2002 p 116)
[hellip] no tocante aos erros legislativos e demais hipoacuteteses de produccedilatildeo de injusticcedila decorrente da generalidade no preceito legal aplicado agrave realidade faacutetica Aristoacuteteles aponta a utilizaccedilatildeo do recurso da epieacuteikeia ou seja da equidade forma de modelagem dos princiacutepios legais para serem aplicados a sujeitos concretos frente agrave problemaacutetica fenomecircnica a ser resolvida pelo juiz (dikasteacutes) (BITTAR 2003 p 1056-
1057)
70
No original ἐπιείκεια (epieiacutekeia)
91
Aristoacuteteles percebe como o perceberia Hans Kelsen dois milecircnios depois71
que na passagem de uma norma mais geral ndash a lei por exemplo ndash para uma norma
mais concreta ndash como a sentenccedila judicial ndash sempre restaraacute uma margem de escolha
que caberaacute agrave prudecircncia72 do inteacuterprete-aplicador preencher
Na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles problematiza a relaccedilatildeo entre a norma e o
caso concreto explicando que ldquoA origem da dificuldade eacute que a equidade embora
justa natildeo eacute justiccedila legal poreacutem a retificaccedilatildeo desta A razatildeo para isso eacute que a lei eacute
sempre geral entretanto haacute casos que natildeo satildeo abrangidos pelo texto geral da leirdquo
(EN V 1137b12) Nesse sentido a equidade seria a virtude destinada a solucionar
os casos em que a lei natildeo alcanccedila a concretizaccedilatildeo da justiccedila
Aristoacuteteles eacute o primeiro doutrinador das ciecircncias juriacutedicas Ele diz muito antes de Larenz ldquoCada regulamento legal ou do direito estaacute para o caso isolado na mesma relaccedilatildeo que o geral estaacute para o indiviacuteduordquo (1135a)
O que aqui eacute descoberto e expressado com autoridade loacutegica natildeo eacute menos que o princiacutepio fundamental da subsunccedilatildeo juriacutedica a imputaccedilatildeo do fato agrave lei escrita (ldquoao conceito legal do direitordquo 1135a)
Aristoacuteteles nos fornece aqui muito antes de Esser e Wiacker uma teoria das claacuteusulas gerais sejam elas inseridas de fora na lei como o Princiacutepio da Relaccedilatildeo (uso de medidas adequadas em relaccedilatildeo ao desejado fim) no Art 12 GG (Constituiccedilatildeo Alematilde) ou estejam elas jaacute consolidadas na lei como o Princiacutepio da boa-feacuterdquo no sect 242 BGB (pois sua positivaccedilatildeo eacute supeacuterflua o conteuacutedo normativo de tal paraacutegrafo eacute tatildeo pequeno o quatildeo grande eacute seu caraacuteter de advertecircncia) O princiacutepio geral vaacutelido da equumlidade []
Se tiveacutessemos percebido em tempo esta vaacutelida opiniatildeo de Aristoacuteteles entatildeo natildeo teria surgido de forma alguma nos nossos anos 60 a ilusatildeo de que toda aplicaccedilatildeo da lei pode ser formalizada e com isso computadorizada pois o computador pode ateacute realizar algo nas futuras ldquogeraccedilotildees inteligentesrdquo ou muito inteligentes mas nunca epieikeia Um pensador loacutegico eacute soacute entatildeo loacutegico quando conhece e reconhece os limites da loacutegica (ADOMEIT 2000 p138 - 140)
A liccedilatildeo de Teacutercio Sampaio Ferraz Jr evidencia a equidade enquanto
princiacutepio que estabelece razoaacutevel elo entre a norma e agrave especificidade da situaccedilatildeo
71
Veja-se a esse respeito o capiacutetulo VIII da Teoria pura do direito kelseniana 72
E eacute neste ponto que os neoaristoteacutelicos divergem de Kelsen uma vez que para este natildeo eacute necessariamente a prudecircncia mas juiacutezos poliacuteticos de conveniecircncia ndash fundados no poder e natildeo na razatildeo ndash que orientaratildeo a escolha do julgador Para uma anaacutelise mais aprofundada e criacutetica desse ponto veja-se Ferraz Juacutenior 1994 p 260-346 (Capiacutetulos 5 e 6)
92
Por uacuteltimo no conjunto da razatildeo juriacutedica costuma-se mencionar a equumlidade Aristoacuteteles eacute responsaacutevel por sua definiccedilatildeo como a justiccedila do caso concreto A soluccedilatildeo de litiacutegios por equumlidade eacute a que se obteacutem pela consideraccedilatildeo harmocircnica das circunstacircncias concretas do que pode resultar um ajuste da norma agrave especificidade da situaccedilatildeo a fim de que a soluccedilatildeo seja justa Pois como diziam os romanos summum jus summa injuria
73 Natildeo se trata de um princiacutepio que se oponha agrave justiccedila mas que a
completa a torna plena
Da mesma forma que os princiacutepios gerais a equumlidade tem no sistema dinacircmico funccedilatildeo metalinguumliacutestica Ela responde pela estrutura de concretizaccedilatildeo do direito Natildeo eacute fonte pois no mesmo sentido das demais (FERRAZ JUNIOR 2011 p 213)
Ferraz Junior em seu capiacutetulo sobre a Dogmaacutetica Hermenecircutica destaca ao
menos quatro desdobramentos possiacuteveis na integraccedilatildeo por equidade Satildeo eles
expandir uma obrigaccedilatildeo limitar o exerciacutecio de direitos criar regras para situaccedilotildees
que se alteram ou que natildeo foram previstas vejamos
[] Fala-se aqui no sentimento do justo concreto em harmonia com as circunstacircncias e adequado ao caso O juiacutezo por equumlidade na falta de norma positiva eacute o recurso a uma espeacutecie de intuiccedilatildeo no concreto das exigecircncias da justiccedila enquanto igualdade proporcional O inteacuterprete deve poreacutem sempre buscar uma racionalizaccedilatildeo dessa intuiccedilatildeo mediante uma analise das consideraccedilotildees praacuteticas dos efeitos presumiacuteveis das soluccedilotildees encontradas o que exige juiacutezos empiacutericos e de valor os quais aparecem fundidos na expressatildeo juiacutezo por equumlidade A equumlidade pode integrar o direito de diferentes modos Por exemplo por seu intermeacutedio podemos expandir uma obrigaccedilatildeo criando deveres adicionais para aleacutem dos que constam de um contrato ou decorrem expressamente de lei podemos ainda limitar o exerciacutecio de direitos para prevenir abusos podemos tambeacutem criar regras para situaccedilotildees que se alteram desde seu regulamento ou que nele natildeo foram previstas Em todo caso o juiacutezo equumlitativo de um lado apesar das consideraccedilotildees dos efeitos presumiacuteveis eacute sempre um juiacutezo jungido ao particular sem preocupaccedilotildees generalizantes Natildeo gera assim uma compulsatildeo para que outros casos semelhantes sejam interpretados e decididos do mesmo modo Por isso natildeo eacute propriamente fonte do direito mas meio de integraccedilatildeo De outro lado poreacutem pela consideraccedilatildeo dos efeitos presumiacuteveis tambeacutem natildeo aparece como arbitraacuterio mas sim representando o sentido que seja juriacutedico no contexto social em que se aplica (FERRAZ JUNIOR 2011 p 281 negrito nosso)
Interessante notar que Ferraz Junior aponta que essa proximidade do juiacutezo
ao particular natildeo eacute uma arbitrariedade mas uma representaccedilatildeo juriacutedica no contexto
em que determinada norma incide
73
Brocardo de Ciacutecero que quer dizer Supremo direito suprema injusticcedila (De Officiis I 10 33)
93
Enquanto a justiccedila eacute de ordem geral e natildeo se preocupa senatildeo com princiacutepios a equumlidade contrariamente perquire as circunstacircncias peculiares ao caso e submete a regra abstrata agraves razotildees derivadas da espeacutecie Em certos casos impotildee-se abandonar a letra da lei para acompanhar os ditames da razatildeo e da justiccedila Nisso se cifra a equumlidade que tempera e abranda o rigor legal Natildeo foi agrave-toa que se referiu Ciacutecero baseado em Terecircncio ao brocardo summum jus summa injuria que daacute ecircnfase agrave ideacuteia de que o rigor da aplicaccedilatildeo inflexiacutevel da lei pode muitas vezes quando natildeo abrandado pela equumlidade acarretar dureza demasiada ou mesmo extrema injusticcedila (PAUPEacuteRIO 2003 p68)
Cabe agora examinarmos a equidade como recurso dado por Aristoacuteteles
para os casos natildeo abarcados pela legislaccedilatildeo
65 Equidade e lacuna
A compreensatildeo do sentido stricto de equidade ou seja enquanto correccedilatildeo
do justo legal tem por pressuposto a generalidade da norma Natildeo obstante tal
generalidade existem casos que natildeo satildeo abrangidos pela lei Surge assim a
dificuldade cuja equidade mais uma vez eacute a soluccedilatildeo dada pelo Estagirita De acordo
com ele
A razatildeo para isso eacute que a lei eacute sempre geral entretanto haacute casos que natildeo satildeo abrangidos pelo texto geral da lei [ou por esta ou aquela regra legal geral] Em mateacuterias portanto nas quais embora seja necessaacuterio discursar em termos gerais natildeo eacute possiacutevel fazecirc-lo corretamente a lei toma em consideraccedilatildeo a maioria dos casos embora natildeo esteja insciente do erro que tal coisa acarreta (EN V 10 1137b12)
74
Natildeo obstante o legislador ter a generalidade como instrumento de ampliaccedilatildeo
de incidecircncia da norma esta natildeo eacute geral suficientemente para abarcar em
completude as indeterminaacuteveis possibilidades proacuteprias ao acircmbito particular
74
Conforme jaacute citado
94
Sobre lacunas adverte Kelsen
Como poreacutem o Direito vigente eacute sempre aplicaacutevel pois natildeo haacute ldquolacunasrdquo neste sentido esta foacutermula quando se penetre o seu caraacuteter fictiacutecio natildeo opera a pretendida limitaccedilatildeo do poder atribuiacutedo ao tribunal mas a auto-anulaccedilatildeo da mesma Se poreacutem o tribunal tambeacutem aceita a ideacuteia de que haacute lacunas no Direito entatildeo esta ficccedilatildeo teoreticamente inaceitaacutevel realiza o efeito pretendido Com efeito o juiz - e especialmente o juiz de carreira que estaacute sob o controle de um tribunal superior - que natildeo se sente facilmente inclinado a tomar sobre si a responsabilidade de uma criaccedilatildeo do Direito ex novo soacute muito excepcionalmente aceitaraacute a existecircncia de uma lacuna no Direito e por isso soacute raramente faraacute uso do poder que lhe eacute conferido de assumir o lugar do legislador (KELSEN 1999 p 185)
Aristoacuteteles esclarece que as lacunas podem existir pela vontade do
legislador ou contra a vontade deste
O problema legislativo que com maior frequumlecircncia ocorre eacute causado pela abstraccedilatildeo e universalidade do preceito legal De fato a lei escrita eacute um imperativo que se formula impessoalmente abarcando sob sua tutela a pluralidade de cidadatildeos aos quais se dirige e a multiplicidade de casos que surgem na vida concreta da poacutelis Lacunas aparecem em todo sistema legislativo escrito e estas podem existir por vontade do legislador de que existam ou mesmo contra a vontade deste Assim contra a sua vontade existiratildeo ldquoquando o fato lhe passa despercebidordquo e por vontade do legislador ldquoquando natildeo podendo precisar tudo eles tecircm de estatuir princiacutepios gerais que natildeo satildeo aplicaacuteveis sempre mas soacute as mais das vezes (Ret I 1375b)
Assim quando a lacuna existe pela vontade do legislador eacute porque o
mesmo percebendo que natildeo pode precisar toda mateacuteria ele estabelece um princiacutepio
geral que natildeo pode sempre ser aplicado agrave mateacuteria Por outro lado quando a lacuna
existe contra a vontade do legislador eacute porque o fato passou-lhe despercebido
Neste sentido a equidade possibilita ao juiz julgar ainda que natildeo conheccedila no
direito norma objetivamente correspondente de acordo com Machado Paupeacuterio []
ao juiz caberia em tais circunstacircncias reconhecer por equumlidade a exceccedilatildeo agrave
norma legal jaacute que se tivesse sido dado ao legislador prever a tal hipoacutetese ele
95
mesmo teria admitido que em tais condiccedilotildees devessem ser abertos os portotildees75
(2003 p 69)
De acordo com Aristoacuteteles
Essa eacute a razatildeo porque quando ocorrem disputas os indiviacuteduos recorrem a um juiz Dirigir-se a um juiz eacute dirigir-se agrave justiccedila pois o juiz ideal eacute por assim dizer a justiccedila personificada E tambeacutem os homens necessitam de um juiz para que este seja um elemento mediano pelo que efetivamente em alguns lugares ele eacute chamado de mediador pois pensam que se ele atinge a mediania atinge o que eacute justo Assim o justo eacute uma espeacutecie de mediania na medida em que o juiz eacute um meio (intermediaacuterio) entre os litigantes (EN V 4 1132a20)
Eacute importante destacar a observaccedilatildeo feita por Maria Helena Diniz em sua
obra Lacunas no Direito ela propotildee a existecircncia de certa dificuldade no emprego da
equidade
A equumlidade eacute teoricamente uma virtude de que deve lanccedilar matildeo o aplicador para temperar os rigores de uma foacutermula demasiado geneacuterica fazendo com que essa natildeo contrarie os reclamos da justiccedila Considera portanto a equumlidade como uma virtude informada pela justiccedila
Todavia Aristoacuteteles na praacutetica preconizava a absoluta submissatildeo do magistrado agrave lei porque entendia ser perigoso decidir por equumlidade no ambiente de corrupccedilatildeo que reinava nos Estados-cidades helecircnicos e nos tribunais corroiacutedos ateacute agrave medula pelas paixotildees poliacuteticas e pelas facccedilotildees Recomenda o mestre Estagira o juiacutezo arbitral para decisotildees de equumlidade (DINIZ 2002 p 242-243)
Essa uacuteltima observaccedilatildeo a que se refere agrave abstenccedilatildeo do emprego de juiacutezos
por equidade aparece na Retoacuterica ao que natildeo poderiacuteamos deixar de fazer
referecircncia ldquo[] preferimos uma arbitragem a um litiacutegio jaacute que o aacuterbitro leva em
conta a equidade ao passo que o juiz leva em conta a lei A arbitragem foi criada
com o propoacutesito expresso de garantir espaccedilo total para a equidaderdquo (Ret I 13
1374b20)
75
Paupeacuterio estaacute se referindo ao exemplo de Santo Tomaacutes sobre um vilarejo onde uma regra
determinasse que os portotildees permanecessem fechados durante a noite sendo que em determinada noite parte da populaccedilatildeo fosse acossada por inimigos e recorressem aos portotildees para se protegerem a questatildeo eacute deveria os guardas desobedecer a regra abrindo os portotildees com o escopo de proteger os habitantes
96
Na anaacutelise das condiccedilotildees que permitem a aplicaccedilatildeo da epiqueacuteia (III 15 e ss em especial 20) explicamos que uma delas devia ser ldquoextraordinaacuteriardquo De caso que a previsatildeo normativa deve ao seu tempo considerar o curso ordinaacuterio das coisas Pois quando nos permitimos expor uma questatildeo (ou nova condiccedilatildeo) do procedimento ldquoem regra epiqueacuteia eacute de aplicaccedilatildeo exceccedilatildeo e restritiva para os juiacutezesrdquo (SHIAVO 2013 p 27
traduccedilatildeo nossa)76
De acordo com HOumlFF (2003 p 68) ldquoVisto as regras de um modo geral
prejudicarem a justiccedila do caso individual poderiacuteamos querer abrir matildeo delas e
confiar integralmente na faculdade de juiacutezo de pessoas Mas leis satildeo melhores agrave
medida que diferentemente de pessoas satildeo de todo isentas de paixotildeesrdquo
Natildeo aparece em qualquer outra parte do texto referecircncia ao natildeo emprego
da equidade O Filoacutesofo por certo natildeo eacute da posiccedilatildeo de que os juiacutezos devem ser
concretizados pela abstenccedilatildeo legal Muito pelo contraacuterio o que vemos eacute que o justo
de modo geral eacute o justo legal afinal como jaacute esclarecido a lei promulgada da forma
correta representa o bem da comunidade A questatildeo eacute que como criteacuterio do justo a
equidade permanece como condiccedilatildeo necessaacuteria para acomodaccedilatildeo do direito e
concretizaccedilatildeo da justiccedila uma vez que o bem geral natildeo pretende causar prejuiacutezos
aos particulares Destarte eacute certo que a pretensatildeo aristoteacutelica eacute que a equidade seja
paracircmetro de formulaccedilatildeo do ldquodecreto especialrdquo ao caso concreto para que este ao
aplicar a lei ou na ausecircncia desta natildeo se afaste do real fim a que se propotildeem os
legisladores
Portanto podemos dizer que a problemaacutetica acerca da natureza essencial
do equitativo eacute dupla Se de um lado o justo legal em sua generalidade pode causar
injusticcedila pela aplicaccedilatildeo insensiacutevel da norma ao caso concreto de outro a
generalidade natildeo eacute suficiente para compreender ainda que em sua insensibilidade
para com o particular uma totalidade normativa isenta de lacunas
76
En el anaacutelisis de las condiciones que permiten la aplicacioacuten de la epiqueya (ut supra III 15 y ss en especial 20) explicamos que una de aquellas debiacutea ser lo ldquoextraordinariordquo del caso frente a lo cual la previsioacuten normativa debioacute a su tiempo considerar el curso ordinario de las cosas Pues ahora nos permitimos exponer una cuestioacuten (o nueva condicioacuten) de procedimiento ldquola regla de la epiqueya es de aplicacioacuten excepcional y restrictiva para los juecesrdquo (SHIAVO 2013 p 27 traduccedilatildeo nossa)
97
66 O homem equitativo
Por certo o equacircnime eacute tambeacutem um homem de prudecircncia pois procura
dentro daquilo que lhe eacute permitido escolher o melhor possiacutevel Shiner ao referir agrave
metaacutefora da reacutegua pluacutembea define o artiacutefice de Lesbos ldquoNenhum artesatildeo eacute perfeito
mas isso eacute em parte porque os materiais contecircm imperfeiccedilotildees Alguns artesatildeos satildeo
o melhor que podem ser - ou seja o melhorrdquo (SHINER 1994 p 1257 traduccedilatildeo
nossa77)
Aristoacuteteles daacute a definiccedilatildeo do homem equitativo
[] ele eacute algueacutem que por escolha e haacutebito faz o que eacute equitativo e que natildeo eacute inflexiacutevel quanto aos seus direitos se contentando em receber uma porccedilatildeo menor mesmo que tenha a lei ao seu lado Eacute a disposiccedilatildeo correspondente eacute a equidade a qual eacute um tipo especial de justiccedila e de modo algum uma qualidade diferente (EN V 10 1138a)
Analisemos este conceito
ldquoEle eacute algueacutem que por escolha e haacutebito faz o que eacute equitatitivordquo
Escolha segundo o Estagirita eacute ldquoum desejo deliberado de coisas em nosso
poderrdquo (EN III 3 1113a10) Em Da Alma esclarece que o desejo eacute a fonte do
movimento78 ldquoO desejo [] eacute capaz de gerar movimento independentemente do
caacutelculo ou raciociacutenio porque o apetite eacute uma forma de desejo Eacute de se notar
entretanto que enquanto o intelecto eacute sempre correto o desejo e a imaginaccedilatildeo
podem ser tanto corretos quanto incorretosrdquo (DA III 10 433a20) Sobre a
deliberaccedilatildeo esclarece que ldquoA deliberaccedilatildeo portanto eacute empregada em mateacuterias que
embora sujeitas a regras que geralmente satildeo para o bem satildeo incertas quanto aos
seus resultados ou consequecircncias ou nas quais resultados ou consequecircncias satildeo
indeterminados [] Aleacutem disso natildeo deliberamos acerca de fins mas acerca de
meiosrdquo (EN III 3 1112b10) Ainda sobre a deliberaccedilatildeo Aristoacuteteles deixa uma
importante observaccedilatildeo Eacute a de que soacute podemos deliberar acerca daquilo que estaacute
77 No craftsman is perfect but that is in part because the materials contain imperfections Some
craftsmen are the best they can be-that is to say the best 78
Assunto tratado no item 22 O Movimento da potecircncia para o ato
98
em nosso poder ldquotem que ser um bem passiacutevel de vir a ser pela accedilatildeo e apenas o
que pode ser diferente de como eacute pode de tal modo vir a serrdquo (DA III 10 433a30)
Acerca do haacutebito esclarece Pierre Pelegrin A virtude eacutetica eacute com efeito um
ldquoestadordquo do sujeito que eacute de certo modo a cristalizaccedilatildeo de bons haacutebitos que se
implantam tanto melhor no indiviacuteduo quanto mais cedo ele os adquire na vida (2010
p28)
Sobre o equitativo Aristoacuteteles apresenta o conceito quando trata do justo e
injusto79 De acordo com esta concepccedilatildeo pode-se ser justo ou injusto de duas
formas a primeira com relaccedilatildeo a observacircncia ou transgressatildeo da lei e a segunda
relacionada ao criteacuterio de igualdade Esta uacuteltima com relaccedilatildeo agrave igualdade Aristoacuteteles
nomina ldquojusto equitativordquo
Pode-se ferir o equitativo por excesso ou deficiecircncia Por excesso quando
reteacutem maior parcela do bem desejaacutevel e por deficiecircncia quando toma para si menor
parcela daquilo que natildeo eacute desejaacutevel80 Assim como na relaccedilatildeo entre perda e ganho
obtenho ganho quando adquiro mais ldquobemrdquo e menos ldquomalrdquo e obtenho perda quando
adquiro menos ldquobemrdquo e mais ldquomalrdquo (EN V 4 1132a5-15)
ldquoe que natildeo eacute inflexiacutevel quanto aos seus direitos se contentando em receber
uma porccedilatildeo menor mesmo que tenha a lei ao seu ladordquo
Este aspecto do homem equitativo parece fazer referecircncia ao sentido lato de
equidade onde ldquoser equitativo eacute mostrar indulgecircnciardquo (Ret I 13 1374b10) O
equacircnime eacute justo e ainda melhor porque ateacute em receber o que lhe eacute devido
apresenta moderaccedilatildeo Natildeo ser inflexiacutevel quanto aos seus direitos demonstra que o
equacircnime estaacute fundido com seu princiacutepio de justiccedila a equidade Pois eacute ele mesmo a
ldquojusticcedila personificadardquo81 Eacute a virtude paradigmaticamente do juiz e dos outros por
extensatildeo (SHINER 1994 p 1251-1252 traduccedilatildeo nossa)82
79
EN V 2 1130b10 80
Aristoacuteteles define a deficiecircncia como a parcela menor recebida pela viacutetima Parece-nos que deixou de desenvolver o conceito nessas linhas Mas podemos visualizar esse desdobramento pouco mais adiante quando trata do ganho e da perda Vide (EN V 4 1132a5-15) 81 EN V 4 1132a20 82
It is a virtue paradigmatically of the judge and of others by extension (SHINER 1994 p 1251-1252)
99
ldquoEacute a disposiccedilatildeo correspondente a equidade a qual eacute um tipo especial de
justiccedila e de modo algum uma qualidade diferenterdquo
Nesta uacuteltima sentenccedila ele enquanto justo age pela equidade seja por natildeo
ser inflexiacutevel com o direito ao aplicaacute-lo a si ou a outrem ou seja pela capacidade de
conhecer o princiacutepio da justiccedila onde natildeo foi convencionada regra alguma ldquoEacute a
marca de um homem educado Aristoacuteteles no diz em uma famosa passagem olhar
com precisatildeo para cada classe de coisas apenas como o permite a natureza do
assuntordquo (SHINER 1994 p 1257 traduccedilatildeo nossa)
67 Equidade e Prudecircncia
Entendendo que o uso da equidade busca uma interpretaccedilatildeo razoaacutevel
(interpretarla razonablemente) da lei Recasens Siches (2008) nos ensina a
equidade eacute a expressatildeo do justo natural em relaccedilatildeo ao caso concreto Em outras
palavras a equidade eacute o justo mas natildeo o justo legal tal como se desprende das
palavras da lei mas autenticamente sobre o caso particular (SICHES 2008 p 656
traduccedilatildeo nossa)83 Portanto ldquopode-se dizer que tanto a reacutegua de Lesbos quanto a
pedra a que ela se amolda para medir manteacutem iacutentegra a sua natureza ndash reacutegua
como reacutegua pedra como pedra ambas submetidas ao criteacuterio apreciador daquele
que se incumbe de definiccedilatildeo da medidardquo (LOPES 1993 p 46)
Tomaacutes de Aquino (1225-1274) em sua Suma Teoloacutegica procura a
compreensatildeo do que seja a equidade observando a inexistecircncia de termo correlato
na liacutengua latina da palavra grega ἐπιείκεια (epieiacutekeia)84 acaba por deixar expliacutecita a
popularidade dessa virtude entre os medievais
Os atos humanos ndash sobre os quais incidem as leis ndash satildeo singulares e contingentes e portanto podem se dar com uma infinita variedade de modos
Daiacute que natildeo seja possiacutevel estabelecer uma lei que natildeo falhe em algum caso concreto[]
84
Et ad hoc ordinatur epicheia quae apud nos dicitur aequitas E isso eacute a epiqueacuteia que entre noacutes diz-se aequitas (traduccedilatildeo nossa)
100
Nesses casos e em casos semelhantes eacute mau seguir o que estaacute estabelecido pela lei e pelo contraacuterio eacute bom passar por cima da letra da lei e seguir o que pede pelo espiacuterito de justiccedila e utilidade comum E eacute isso que faz a epiqueacuteia que entre noacutes se chama equumlidade Fica assim evidente que a epiqueacuteia eacute virtude (Sum II-II 1201)
Nesse sentido a prudecircncia e a equidade apontam para questotildees relativas agrave
deliberaccedilatildeo mais especificamente sobre como agir de acordo com o bem Ambas
parecem obrar no espaccedilo existente entre o particular e o universal Destarte eacute
preciso perceber que
[] a existecircncia insuperaacutevel de um obstaacuteculo ontoloacutegico entre a regra e sua aplicaccedilatildeo entre o universal e o particular Taylor chama esse obstaacuteculo ontoloacutegico de ldquohiato froneacuteticordquo (phronetic gap) em referecircncia direta agrave sua matriz aristoteacutelica Aristoacuteteles como Aubenque (2003 p 75) observa natildeo tem a expectativa platocircnica de poder deduzir o particular do universal Aristoacuteteles natildeo culpa a ignoracircncia dos homens por essa incapacidade Natildeo se trata para Aristoacuteteles de uma fraqueza psicoloacutegica algo que portanto pudesse ser superado pelo Rei-Filoacutesofo de Platatildeo ou pelo Juiz Heacutercules de Dworkin A impossibilidade de deduzir o particular do universal decorre da proacutepria realidade e nesse sentido natildeo pode ser superada por uma ciecircncia A aplicaccedilatildeo das regras eacute antes de tudo uma questatildeo de prudecircncia (phronesis) (OLIVEIRA 2009 p 24 negrito nosso)
Essa limitaccedilatildeo da ciecircncia eacute objeto da exposiccedilatildeo acerca da prudecircncia (ENVI
5 1140a30) O fato eacute que o conhecimento cientiacutefico envolve demonstraccedilatildeo ou seja
diz respeito agraves coisas imutaacuteveis necessaacuterias Por outro lado a prudecircncia cuida de
assuntos relacionados agrave conduta admitindo assim a variaccedilatildeo ldquoPara que seja objeto
do conhecimento cientiacutefico uma verdade tem que ser demonstrada pelo processo
dedutivo a partir de outras verdades ao passo que a arte e a prudecircncia (sabedoria
praacutetica) se referem somente a coisas mutaacuteveisrdquo (EN VI 6 1141a1)
O caraacuteter praacutetico isto eacute concernente agrave accedilatildeo proacuteprio da phroacutenesis exige portanto que ela possua o conhecimento dos casos individuais pois a accedilatildeo se produz sempre em situaccedilotildees individuais por isso a phroacutenesis requer certa experiecircncia que eacute justamente o conhecimento dos particulares A phroacutenesis contudo inclui em alguma medida tambeacutem o conhecimento do universal no sentido de que deve saber aplicar ao caso individual uma caracteriacutestica geral como mostra o exemplo dado por Aristoacuteteles Natildeo basta para produzir sauacutede (accedilatildeo) saber que as carnes leves satildeo saudaacuteveis (caracteriacutestica universal) caso natildeo se saiba
101
que a carne de galinha eacute leve (caso individual ou particular) e portanto que a carne de galinha eacute saudaacutevel (aplicaccedilatildeo do universal ao particular)
Martha C Nussbaum explica que Aristoacuteteles aponta trecircs traccedilos da mateacuteria
praacutetica que demonstram porque as escolhas praacuteticas natildeo podem mesmo em
princiacutepio ser adequadas e completamente assimiladas em um sistema de regras
universais Satildeo esses traccedilos a mutabilidade a indeterminaccedilatildeo e a particularidade
(NUSSABAUM 2009 p 263)
Eacutemile Boutroux sustenta que pelo princiacutepio da irredutibilidade essa
especulaccedilatildeo abstrata ndash a do conhecimento cientiacutefico ndash ldquoseraacute impotente para nos
fazer conhecer a natureza aiacute seraacute necessaacuteria a experiecircncia E na ordem moral as
leis seratildeo insuficientes para fazer reinar a justiccedila seraacute preciso acrescentar-lhes o
magistrado encarregado de aplicar judiciosamente as regras gerais agrave diversidade
dos casos individuaisrdquo (2006 p 127)
No mesmo sentido Pierre Aubenque direciona a relaccedilatildeo entre a prudecircncia e
a equidade sintetizando os principais toacutepicos de nossa exposiccedilatildeo Tal siacutentese tem
por base o julgamento eacutetico proacuteprio agrave Eacutetica a Nicocircmaco onde o prudente natildeo teraacute
mais por analogia o saber do geocircmetra mas o engenho do carpinteiro
[] Enquanto Platatildeo natildeo parece ter posto em duacutevida que um saber suficientemente transcendente poderia abranger a totalidade dos casos particulares Aristoacuteteles nunca espera poder deduzir o particular do universal ldquoa falta nos diz ele natildeo estaacute na lei nem no legislador mas na natureza da coisa em th fnsei ton prgmatojrdquo Onde Platatildeo via uma
fraqueza psicoloacutegica devido a ignoracircncia dos homens Aristoacuteteles reconhece como faz habitualmente um obstaacuteculo ontoloacutegico um hiato que afeta a proacutepria realidade e que nenhuma ciecircncia poderaacute superar [] se a indeterminaccedilatildeo eacute ontoloacutegica a lei soacute pode depender de uma regra ela proacutepria indeterminada tou gar aoristou aoristin tal como a reacutegua
de chumbo de lesbos cuja a inexatidatildeo permite adaptar-se adequadamente aos contornos da pedra [] Para Aristoacuteteles ao contraacuterio de uma justiccedila abstrata cientiacutefica via sua sorte ligada a da lei eacute pois a justiccedila mesma que necessita ser corrigida pela virtude da equidade [] Percebe-se o paralelismo dessa problemaacutetica com a da prudecircncia ou antes o encavalamento de ambas se a prudecircncia eacute a virtude intelectual que permite a cada vez definir a norma o equacircnime deveraacute possuir no mais alto grau a virtude da prudecircncia para aplica-la em seu domiacutenio proacuteprio [] (AUBENQUE 2008 73-76 negrito nosso)
102
Portanto a prudecircncia e equidade produzem seus efeitos no acircmbito da razatildeo
praacutetica especificamente no que concerne a aplicaccedilatildeo da norma em sua
generalidade e abstraccedilatildeo ao caso concreto que transcorre num mundo
contingencial
O equacircnime eacute antes de qualquer coisa um prudente ou seja a virtude da
prudecircncia eacute um pressuposto para o exerciacutecio da equidade Isso fica evidenciado
pelo proacuteprio papel da prudecircncia qual seja guiar e orientar as escolhas para a
concretizaccedilatildeo das demais virtudes Ademais ambos possuem como faculdade
central a disposiccedilatildeo para o bem escolher de forma acomodar o bem absoluto85 ao
melhor possiacutevel86
85
Aspecto formal da regra enquanto forma e universalidade 86
Aspecto material da accedilatildeo enquanto mateacuteria e singularidade
103
7 CONCLUSAtildeO
Foi objeto do presente trabalho uma anaacutelise das formulaccedilotildees aristoteacutelicas
acerca do conceito de prudecircncia e equidade anaacutelise essa que deveria sustentar-se
sob a eacutegide de uma inter-relaccedilatildeo entre tais conceitos
Para alcanccedilar tal objetivo propomos no capiacutetulo 2 que a contingecircncia eacute algo
que se encontra em comum na atividade de ambos os conceitos como condiccedilatildeo
necessaacuteria agrave compreensatildeo dos mesmos Por isso o que a pouco chamamos de
hiato froneacutetico natildeo eacute outra coisa senatildeo a distacircncia entre o ldquoparticularrdquo e o
ldquouniversalrdquo entre a ldquopotecircnciardquo e o ldquoatordquo e entre o ldquomelhor que posso fazerrdquo e o ldquobem
absolutordquo
No capiacutetulo 3 intitulado Eacutetica das Virtudes procuramos clarear o liame entre
as virtudes e a necessidade de accedilatildeo caracteriacutestica inerente ao mundo contingencial
Nele introduzimos no que eacute pertinente agrave nossa proposta a teoria geral das virtudes
em Aristoacuteteles estabelecendo sua relaccedilatildeo com as partes da alma e diferenciado em
morais e intelectuais Neste sentido a relaccedilatildeo entre prudecircncia e equidade parece
distanciar-se devido a prudecircncia estar situada na faculdade cientiacutefica da alma
enquanto a equidade estaacute inserida na faculdade calculadora Tal problema eacute
solucionado pelo proacuteprio Aristoacuteteles afinal a prudecircncia como ordenadora das accedilotildees
virtuosas eacute o ponto de contato entre aquilo que estaacute e aquilo que natildeo estaacute ao
alcance do homem ou seja ela age como princiacutepio informativo entre a faculdade
calculadora e a faculdade cientiacutefica da parte racional da alma Por fim foi feita uma
exposiccedilatildeo acerca da mediania como paracircmetro da razatildeo praacutetica seguida de uma
exposiccedilatildeo sobre as accedilotildees voluntaacuterias e involuntaacuterias
A partir do capitulo 4 procuramos analisar a proposta aristoteacutelica do que
seja a prudecircncia Assim concluiacutemos ser a prudecircncia uma virtude intelectual situada
na parte racional da alma mais precisamente na parte que forma opiniotildees por ser
seu objeto a especulaccedilatildeo das coisas que admite variaccedilotildees e portanto satildeo
trabalhadas pela faculdade calculadora Nesse sentido eacute a qualidade racional de
consecuccedilatildeo da verdade capaz de bem deliberar em geral
104
No capiacutetulo 5 a justiccedila foi delineada como sendo uma virtude Tal virtude eacute
dita a mais perfeita pois segundo o Estagirita nela se encontra somada todas as
virtudes O que ele quer dizer com isso eacute que o fato de natildeo se observar qualquer
uma das virtudes eacute um ato de injusticcedila Neste sentido vimos a produccedilatildeo legislativa
como uma ramificaccedilatildeo da prudecircncia nomeada por Aristoacuteteles como ciecircncia
legislativa por desempenhar um duplo papel controlador e diretivo ndash no sentido de
educar para a virtude A outra ramificaccedilatildeo eacute a ciecircncia poliacutetica que diz respeito agrave
deliberaccedilatildeo a qual divide em processo deliberativo e processo judiciaacuterio Apoacutes
visualizarmos os conceitos proacuteprios agrave teoria da justiccedila de Aristoacuteteles concluiacutemos ser
ela uma virtude moral sendo ela mesma uma mediania que faz realizar agir e
desejar o que eacute o justo A justiccedila de modo geral ganha trecircs sentidos quais sejam
legal igual e equitativo
Por fim no capiacutetulo 6 procuramos analisar o conceito de equidade
Inicialmente apresentamos seu conceito lato e stricto Em seguida procuramos
compreender a ambiguidade apresentada por Aristoacuteteles acerca do tema
Apresentamos a justiccedila enquanto equidade compreendendo natildeo ser a equidade
diferente da justiccedila mas apenas melhor que uma de suas espeacutecies Procuramos
compreender a justiccedila enquanto estabelecimento da igualdade A natureza essencial
da equidade foi estudada enquanto retificaccedilatildeo do justo legal De acordo com isso
estaacute para noacutes a metaacutefora da reacutegua de chumbo que encontra a medida justa em sua
flexibilidade uma vez que em rigidez natildeo poderia conhecer as muacuteltiplas e possiacuteveis
formas na qual flutua a contingecircncia material Uma uacuteltima anaacutelise abordou a relaccedilatildeo
entre a prudecircncia e a equidade concluindo por uma relaccedilatildeo de gecircnero e espeacutecie
uma vez que a equidade eacute uma qualidade do prudente e que possuem como
principal ponto em comum a contingecircncia enquanto condiccedilatildeo para accedilatildeo
Eacute na pergunta que fizemos na introduccedilatildeo que concluiacutemos estar a chave para
a compreensatildeo dos conceitos formulados Qual a relaccedilatildeo entre a prudecircncia e a
equidade aristoteacutelica A reposta dada pelos comentadores no capiacutetulo 6 em
especial Pierre Aubenque aponta para noacutes uma relaccedilatildeo que comporta em sua
estrutura conceitual uma interdependecircncia Nesse sentido natildeo podemos
compreender o conceito de equidade sem compreender o conceito de prudecircncia
105
Essa relaccedilatildeo pode ser travada porque ambas lidam com situaccedilotildees em
comum Elas estatildeo para o homem como soluccedilatildeo naquilo em que a Providecircncia
falha Suas funccedilotildees trabalham para indicar a melhor decisatildeo quando se tem que
escolher entre dois males Elas procuram sanar a distacircncia entre os princiacutepios gerais
e a realidade em particular Elas satildeo as articulaccedilotildees que permitem ao homem fazer
a escolha pelo melhor possiacutevel uma vez que na fraacutegil condiccedilatildeo parece tatildeo distante
do bem absoluto quanto o homem de Deus
106
REFEREcircNCIAS
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Gilberto de Andrade Pinto Belo Horizonte 2013
110f
Orientador Juacutelio Aguiar de Oliveira
Coorientador Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno
Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Minas Gerais
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito
1 Aristoacuteteles 2 Equumlidade (Direito) 3 Prudecircncia I Oliveira Juacutelio Aguiar de
II Trivisonno Alexandre Travessoni Gomes III Pontifiacutecia Universidade
Catoacutelica de Minas Gerais Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito IV Tiacutetulo
CDU 34012
Gilberto de Andrade Pinto
JUSTICcedilA EM ARISTOacuteTELES uma anaacutelise dos conceitos de prudecircncia e equidade
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Minas Gerais como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de mestre em Direito
____________________________________________________________ Juacutelio Aguiar de Oliveira (Orientador) ndash PUC Minas
____________________________________________________________ Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno (Coorientador) ndash PUC Minas
____________________________________________________________ Fernando Joseacute Armando Ribeiro ndash PUC Minas
____________________________________________________________ Mocircnica Sette Lopes ndash UFMG
Belo Horizonte 03 de junho de 2013
Dedico este trabalho
Ao meu primogecircnito Davi na esperanccedila que ele se torne um homem feliz
mediante a praacutetica reiterada da virtude
Agrave minha esposa Camila testemunha e cuacutemplice de cada hora pelo amor e
compreensatildeo a mim dispensados
Aos meus pais que natildeo mediram esforccedilos e sacrifiacutecios pelo meu sonho
Aos meus irmatildeos Ramon e Giselle por compartilharem comigo a fraterna
amizade indispensaacutevel nos momentos difiacuteceis
AGRADECIMENTOS
A todos que contribuiacuteram direta ou indiretamente para a concretizaccedilatildeo deste
sonho Fica aqui registrada a minha gratidatildeo especialmente
Ao meu Orientador Professor Juacutelio Aguiar de Oliveira que acolheu e
acreditou em minhas ideias natildeo deixando que eu acreditasse que as contingecircncias
da vida fossem outra coisa que natildeo verdadeiras liccedilotildees e incentivos para o meu
aperfeiccediloamento pessoal e acadecircmico
Agradeccedilo tambeacutem ao meu Coorientador Alexandre Travessoni Gomes
Trivisonno pelos valorosos exemplos de retidatildeo e seriedade
Aos meus colegas de curso que comungaram comigo agrave elevada aspiraccedilatildeo
acadecircmica
Ao prof Virgiacutelio Diniz pela amizade e apoio de sempre
Agrave prof Leda Soares e prof Luciana Costa que sempre estiveram dispostas
a me ajudar da melhor forma possiacutevel jamais me esquecerei disso
Obrigado do fundo do meu coraccedilatildeo a todos vocecircs
Sou com efeito vosso servo e filho de vossa serva um
homem fraco cuja existecircncia eacute breve incapaz de compreender
vosso julgamento e vossas leis []
Que homem pois pode conhecer os desiacutegnios de Deus e
penetrar nas determinaccedilotildees do Senhor
Tiacutemidos satildeo os pensamentos dos mortais e incertas as nossas
providecircncias (SABEDORIA 10)
RESUMO
Esta dissertaccedilatildeo realizou um estudo acerca da concepccedilatildeo aristoteacutelica dos conceitos
de prudecircncia e equidade Seu objetivo foi analisar os conceitos de prudecircncia e
equidade e estabelecer as possiacuteveis relaccedilotildees inerentes a tais conceitos
Primeiramente procurou-se compreender a noccedilatildeo de contingecircncia verificando que
tal noccedilatildeo estaacute estritamente relacionada agrave possibilidade de accedilatildeo e portanto agrave
questotildees de razatildeo praacutetica Em seguida realizou-se uma abordagem acerca da eacutetica
das virtudes objetivando contextualizar os conceitos estudados Realizada uma
exposiccedilatildeo sobre a prudecircncia procurou-se estabelecer em linhas gerais a concepccedilatildeo
aristoteacutelica de justiccedila Por fim foi realizada uma tentativa de reconstruccedilatildeo dos
conceitos de prudecircncia e de equidade A conclusatildeo que se chegou foi a de que tanto
o conceito de prudecircncia quanto o de equidade estatildeo relacionados agrave questotildees de
razatildeo praacutetica A principal relaccedilatildeo estabelecida entre tais conceitos eacute a de que ambos
lidam com situaccedilotildees contingenciais o que evidencia a distacircncia entre o universal e o
particular que ao final chamamos de hiato-froneacutetico
Palavras-chave Aristoacuteteles Prudecircncia Equidade
ABSTRACT
This work conducted a study on the Aristotelian conception of the concepts of
prudence and equity His goal was to analyze the concepts of prudence and equity
and establish possible relationships inherent in such concepts First we sought to
understand the notion of contingency noting that such a notion is closely related to
the possibility of action and therefore the issues of practical reason Then took place
about an approach of virtue ethics aiming to contextualize the concepts studied An
exhibition about prudence sought to establish a broadly Aristotelian conception of
justice Finally an attempt was made to reconstruct concepts of prudence and equity
The conclusion reached was that both the concepts of prudence and equity are
related to issues of practical reason The main relationship between these concepts
is to both deal with contingency situations which shows the distance between the
universal and the particular which we call the phronetic gap
Key-words Aristotle Prudence Equity
LISTA DE ABREVIATURAS
AA ndash Analiacuteticos Anteriores
DA ndash Da Alma
DI ndash Da Interpretaccedilatildeo
EE ndash Eacutetica a Eudemo
EN ndash Eacutetica a Nicocircmaco
Fiacutes - Fiacutesica
Met ndash Metafiacutesica
MM ndash Magna Moralia
Pol ndash Poliacutetica
Ret - Retoacuterica
SUMAacuteRIO 1 INTRODUCcedilAtildeO12 2 A CONTINGEcircNCIA16 21 A Loacutegica16 22 O Movimento da potecircncia para o ato21 23 Indeterminismo e a eacutetica das virtudes26 231 Primeira concepccedilatildeo de acaso A boa fortuna26 232 Segunda concepccedilatildeo de acaso Acidente28 233 Terceira concepccedilatildeo de acaso contingecircncia30 2331 Trageacutedia32 3 EacuteTICA DAS VIRTUDES35 31 Eacutetica a Nicocircmaco36 32 Partes da Alma39 33 Virtudes Morais43 331 Doutrina da Mediana45 34 Accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria47 35 Virtudes Intelectuais51 4 PRUDEcircNCIA54 41 Conceito54 42 Prudecircncia e liberdade56 43 Arte e prudecircncia57 44 Deliberaccedilatildeo e Escolha58 45 O prudente61 5 JUSTICcedilA COMO VIRTUDE67 51 Justo e injusto68 52 Justo universal69 53 Justo particular71 531 Justiccedila distributiva71 532 Justiccedila corretiva72 54 Justo domeacutestico73 55 Justo poliacutetico74 551 Justo natural75 552 Justo legal (convencional)75 6 A EQUIDADE78 61 Justiccedila e equidade ambiguidade do tema79 62 Justiccedila como equidade82 621 Justiccedila e igualdade84 63 Equidade melhor que um tipo de justiccedila86 64 Natureza essencial do equitativo a retificaccedilatildeo do justo legal87 641 A metaacutefora da reacutegua de chumbo88 642 A retificaccedilatildeo do justo legal89 65 Equidade e lacuna93 66 O homem equitativo97
67 Equidade e Prudecircncia99 7 CONCLUSAtildeO103 REFEREcircNCIAS106
12
1 INTRODUCcedilAtildeO
Com o surgimento da modernidade originou-se uma ruptura nos
fundamentos da filosofia moral claacutessica Dessa forma conceitos basilares da
filosofia moral perderam os seus significados restando para o mundo
contemporacircneo apenas fragmentos de suas antigas concepccedilotildees Conforme propotildee
Alasdair MacIntyre (2001 p 15) em sua obra Depois da virtude o que possuiacutemos
satildeo apenas fragmentos de um esquema conceitual fragmentos hoje distantes de
seu contexto semacircntico o que quer dizer que utilizamos apenas os simulacros de
tais conceitos
Desse modo o significado claacutessico das virtudes da forma como
estabelecido por Aristoacuteteles foi alterado tornando-se inacessiacuteveis agrave nossa
compreensatildeo o sentido atribuiacutedo por Aristoacuteteles aos conceitos de prudecircncia e de
equidade
O conceito de prudecircncia1 apresenta significativas transformaccedilotildees
semacircnticas o que obscurece e compromete a compreensatildeo do seu significado
claacutessico Eacute o que Jean Lauand veio a perceber quando traduziu as questotildees 47-46
da Segunda Parte da Segunda Parte da Suma Teoloacutegica de Tomaacutes de Aquino
[] prudentia eacute uma daquelas tantas palavras fundamentais que sofreram desastrosas transformaccedilotildees semacircnticas com o passar do tempo
A proximidade entre nossa liacutengua e o latim de Tomaacutes natildeo nos deve enganar ocorre como diziacuteamos um conhecido fenocircmeno de alteraccedilatildeo do sentido das palavras que se manifesta muitas vezes quando lemos um autor de outra eacutepoca E natildeo soacute alteraccedilatildeo como mostra C S Lewis daacute-se frequumlentemente sobretudo no campo da eacutetica uma autecircntica inversatildeo de polaridade aquela palavra que originalmente designava uma qualidade positiva esvazia-se de seu sentido inicial ou passa a designar uma qualidade negativa
1 Optamos por escrever no termo utilizado usualmente pelos autores da liacutengua portuguesa Contudo
conforme consta desta introduccedilatildeo os conceitos proacuteprios agrave tradiccedilatildeo das virtudes perderam sua inteligibilidade restando para noacutes apenas simulacros do que um dia corresponderam De acordo com HERMANN (2007) ldquoO termo phronesis natildeo tem uma traduccedilatildeo que expresse de forma satisfatoacuteria o espectro semacircntico que possuiacutea para o mundo grego Habitualmente traduzido por prudecircncia o uso do termo descolou-se do contexto de origem e perdeu seu enraizamento eacuteticordquo O mesmo acontece com o termo Epeiqueia
13
Foi o que aconteceu entre outras com as palavras ldquoprudenterdquo e ldquoprudecircnciardquo []
Se hoje a palavra prudecircncia tornou-se aquela egoiacutesta cautela da indecisatildeo (em cima do muro) em Tomaacutes ao contraacuterio prudentia expressa exatamente o oposto eacute a arte de decidir corretamente [] virtude do liacutempido conhecimento do ser (LUAND 2005 p7-10)
O conceito de equidade igualmente nos parece de difiacutecil compreensatildeo O
dicionaacuterio grego-portuguecircs de Isidro Pereira registra as seguintes traduccedilotildees para
ἐπιείκεια conveniecircncia moderaccedilatildeo equidade epiqueia doccedilura bondade (cf
PEREIRA 1998 p 210 [verbete ἐπιείκεια]) Registrando a presenccedila de uma
traduccedilatildeo ainda mais proacutexima do termo grego epieiacutekeia menos usada contudo em
nosso vocabulaacuterio epiqueia2 Disso podemos constatar que embora a equidade
goze de grande popularidade no meio juriacutedico seu emprego por vezes varia ainda
que ligeiramente do conceito elaborado pelo Estagirita3
Portanto diante de tais dificuldades questionamos O que seria a prudecircncia
e a equidade na tradiccedilatildeo aristoteacutelica Tal questionamento nos levou a procurar nos
textos do proacuteprio Aristoacuteteles e seus comentadores os indiacutecios das formulaccedilotildees
originaacuterias Por ora o que podemos levantar eacute que ambos os conceitos satildeo
visualizados em situaccedilotildees muito aproximadas O que nos leva agrave possiblidade de
existir entre ambos uma relaccedilatildeo de interdependecircncia conceitual Talvez seja por isso
que quando Aristoacuteteles aborda as virtudes morais deixa a equidade como uacuteltimo
assunto antes de tratar da virtude intelectual da prudecircncia
Neste sentido o trabalho foi elaborado traccedilando um percurso entre as
condiccedilotildees necessaacuterias ao exerciacutecio das virtudes para em seguida procurarmos
contextualizar a teoria das virtudes como um todo e por fim conhecermos a virtude
da prudecircncia No momento subsequente realizamos uma exposiccedilatildeo da virtude da
justiccedila Apoacutes esses passos entendemos ser possiacutevel a formulaccedilatildeo das concepccedilotildees
aristoteacutelicas dos conceitos de prudecircncia e equidade
2 Abbagnano registra epiqueia como sendo sinocircnimo de equidade (1999 p 338 [verbete epiqueia])
Em seu verbete epiqueia Aureacutelio Buarque de Holanda embora natildeo a coloque como sinocircnimo de equidade registra ldquoepiqueia Sf 1 Interpretaccedilatildeo razoaacutevel de lei ou preceito 2 Fig Meio-termo moderaccedilatildeordquo Entendimento que nos parece mais proacuteximo agrave proposta Aristoteacutelica 3 Referecircncia agrave Aristoacuteteles por ser natural de Estagira uma antiga cidade da Macedocircnia situada hoje
na Greacutecia na regiatildeo de Calciacutedica
14
Dentro desse esquema o segundo capiacutetulo tem por objetivo analisar a
contingecircncia caracterizada pela indeterminaccedilatildeo objetiva na relaccedilatildeo entre o universal
e o particular como condiccedilatildeo para o exerciacutecio da razatildeo praacutetica4 Neste sentido
iremos buscar na loacutegica de Aristoacuteteles os elementos necessaacuterios para a sua
compreensatildeo
Uma concepccedilatildeo um tanto popular quando se trata de Aristoacuteteles eacute da
potecircncia e do ato A pretensatildeo eacute revisitar esse conceito com foco na relaccedilatildeo
contingencial que existe no movimento entre a potecircncia e o ato O objetivo do
capiacutetulo alcanccedila pouso numa concepccedilatildeo de contingecircncia proacutepria agrave eacutetica das
virtudes O que segue eacute a proposta de Pierre Aubenque (2008) em fazer uma
exposiccedilatildeo da contingecircncia nas concepccedilotildees de acaso Por fim eacute na trageacutedia grega
que Aubenque (2008) mostra as condiccedilotildees necessaacuterias ao exerciacutecio das virtudes
O terceiro capiacutetulo tem por objetivo trazer uma exposiccedilatildeo que contextualize
na tradiccedilatildeo aristoteacutelica das virtudes os conceitos que seratildeo estudados Neste
sentido eacute realizada inicialmente uma leitura acerca da teoria geral das virtudes na
Eacutetica a Nicocircmaco Observando as partes da alma e suas qualidades como racional e
irracional dividindo assim as virtudes em intelectuais e morais respectivamente
O quarto capiacutetulo procura reconstruir o conceito de prudecircncia relacionando-
o com a liberdade e a arte As temaacuteticas da deliberaccedilatildeo e da escolha satildeo neste
ponto inseridas como elementos indispensaacuteveis agrave anaacutelise do conceito de prudecircncia
O quinto capiacutetulo pretende oferecer uma visatildeo geral da teoria da justiccedila de
Aristoacuteteles como tambeacutem considerar o fato de Aristoacuteteles ter inserido sua exposiccedilatildeo
da equidade no livro V em relaccedilatildeo com o conceito de justiccedila objeto especiacutefico de
investigaccedilatildeo do livro mencionado
Por uacuteltimo procuramos o conceito de equidade Essa uacuteltima exposiccedilatildeo tem
por objetivo delinear a pretensatildeo de Aristoacuteteles com tal formulaccedilatildeo Nele natildeo
inserimos pretensotildees complexas acerca de teorias especiacuteficas e contemporacircneas
mas tatildeo somente a despretensiosa e sofisticada elaboraccedilatildeo aristoteacutelica do assunto
4 Sobre razatildeo praacutetica vide LACERDA Bruno Amaro O raciociacutenio juriacutedico uma visatildeo aristoteacutelica Belo
Horizonte Movimento Editorial da Faculdade de Direito da UFMG 2005
15
Eacute neste sentido que ao explicar o desdobramento da razatildeo praacutetica ele
abandona o modelo oferecido pela geometria buscando na carpintaria um novo
modelo (fiel no entanto agrave tradiccedilatildeo das virtudes) Por fim procuramos no conceito
de equidade traccedilos pertinentes agraves virtudes em geral e em especial agrave virtude da
prudecircncia
Para a conclusatildeo reservamos a tarefa de responder a seguinte questatildeo que
se impotildee apoacutes o estudo simultacircneo desses dois conceitos existe uma relaccedilatildeo
conceitual entre os conceitos de prudecircncia e equidade
16
2 A CONTINGEcircNCIA
A prudecircncia e a equidade estatildeo condicionadas ao campo da accedilatildeo Contudo
parece que ambas soacute podem se manifestar no acircmbito do contingente Sendo
portanto a contingecircncia nosso ponto de partida
Parece ser a contingecircncia um dos fenocircmenos mais intrigantes a se tratar por
uma dupla razatildeo A contingecircncia consegue ao mesmo tempo nos desmotivar por
nos ensinar a liccedilatildeo de que natildeo podemos tudo conter e que a nossa pretensiosa
construccedilatildeo cotidiana deve estar sempre alerta para as incontaacuteveis possibilidades a
qual o mundo nos submete Por outro lado e concomitantemente eacute ela quem nos
motiva que nos convida agrave accedilatildeo Pois assim como o vento escolhe seu caminho eacute
ela que tem o poder de inserir em nossas vidas as mudanccedilas pelas quais devemos
lutar para moldarmos nossos objetivos e possibilidades um ao outro
Eacute nesse sentido que nos parece liacutecita a crenccedila em uma possiacutevel
reintegraccedilatildeo do homem com a sua natureza divina pois estatildeo nas vicissitudes da
vida as liccedilotildees praacuteticas nas quais os homens podem dar o melhor de si em busca de
um aperfeiccediloamento moral
21 A Loacutegica5
Eacute no estudo da loacutegica que pretendemos encontrar nossa primeira referecircncia
sobre o que seja a contingecircncia Tradicionalmente entende-se por loacutegica o estudo
dos raciociacutenios que pretendem atraveacutes de regras proacuteprias concluiacuterem por
resultados verdadeiros Desnudando assim os raciociacutenios que se vestem com
aparente validade mas que ocultam viacutecios que os falseiam
Tais viacutecios satildeo comumente apontados como tendo duas fontes sendo uma
relacionada aos fundamentos do raciociacutenio e outra ao nexo que se estabelece entre
5 A loacutegica normalmente eacute classificada como pertencente agrave razatildeo especulativa Nosso estudo situa-se
no acircmbito da razatildeo praacutetica Natildeo obstante parece-nos que a compreensatildeo do pensamento de Aristoacuteteles daacute-se atraveacutes da compreensatildeo de seu meacutetodo que eacute abordado na loacutegica Por outro lado quando descreve o prudente Aristoacuteteles sempre faz menccedilatildeo de que ele natildeo versa apenas sobre questotildees da razatildeo especulativa mas tambeacutem questotildees de razatildeo praacutetica Portanto o conhecimento especulativo eacute pertinente ao agente da razatildeo praacutetica Vide EN VI 7 1141b15
17
eles e a conclusatildeo Nesse sentido a loacutegica aristoteacutelica eacute estudada em dois ramos
sendo eles conhecidos como Loacutegica Maior (ou material) e Loacutegica Menor (ou formal)
Comecemos pela Loacutegica Menor De acordo com o ensino tradicional de
loacutegica as proposiccedilotildees podem ser classificadas pela qualidade e pela quantidade ou
seja como afirmativas ou negativas e universais ou particulares respectivamente
Daacute-se agraves combinaccedilotildees possiacuteveis a seguinte notaccedilatildeo Se a proposiccedilatildeo for uma
universal afirmativa por exemplo Todo S eacute P6 (Todo homem eacute mortal) entatildeo temos
uma proposiccedilatildeo ldquoArdquo Se a proposiccedilatildeo for particular afirmativa por exemplo Alguns S
satildeo P (Alguns homens satildeo brancos) entatildeo temos uma proposiccedilatildeo ldquoIrdquo Se a
proposiccedilatildeo for uma universal negativa por exemplo Nenhum ldquoSrdquo eacute ldquoPrdquo (Nenhum
homem eacute mortal) entatildeo temos uma proposiccedilatildeo ldquoErdquo Se a proposiccedilatildeo for particular
negativa por exemplo Alguns S natildeo satildeo P (Alguns poliacuteticos natildeo satildeo corruptos)
entatildeo temos uma proposiccedilatildeo ldquoOrdquo
Eacute importante notar que nessa primeira classificaccedilatildeo o que se procura
evidenciar eacute a relaccedilatildeo entre o sujeito S e o predicado P sendo que pode estar-se
afirmando ou negando algo ao particular ou ao universal
Parece-nos que os termos empregados por perspicaacutecia ou feliz
coincidecircncia daacute-nos uma importante pista acerca do domiacutenio do contingente Pois eacute
justamente na tensatildeo existente entre o universal e o particular que noacutes podemos
extrair parte do conceito entatildeo estudado
Em sua liccedilatildeo sobre loacutegica Jacques Maritain (2001 p 106) explica essa
tensatildeo expondo brevemente sobre o modo como conhecemos as coisas De acordo
com ele as coisas se apresentam de duas maneiras por uma ideia ou por uma
representaccedilatildeo sensiacutevel As ideias estatildeo relacionadas como o que conhecemos por
universal ou seja lsquoaquilo que se encontra sempre idecircntico em uma multidatildeo de
indiviacuteduos um em muitos ldquounum in multisrdquorsquo
Precisando acerca do particular7 extrai-se da mesma liccedilatildeo
Aleacutem disso se examinarmos com cuidado as diversas ciecircncias isto eacute os diversos sistemas de ideacuteias pelos quais conhecemos o real constatamos que nenhuma delas tem por objeto o individual como tal [] Eacute preciso
6 ldquoSrdquo para sujeito e ldquoPrdquo para predicado
7 Maritain aborda o tema nominando o universal por ideia e o particular por representaccedilatildeo
18
que assim seja porque o individual como tal natildeo eacute explicativo (representando somente a si mesmo natildeo pode evidentemente dar a razatildeo de outra coisa) (MARITAIN 2001 p 105)
Ainda comparando os extremos da tensatildeo Jaques Maritain facilita a
compreensatildeo ldquoOra esta ideia e esta representaccedilatildeo satildeo bem diferentes a prova eacute
que posso fazer variar a segunda de muitas maneiras (o desenho que imagino pode
ser maior ou menor branco vermelho amarelo etc) sem que a primeira varie por
causa dissordquo (MARITAIN 2001 p 103)
Aiacute estaacute nossa primeira pista pois eacute no acircmbito do particular onde ldquopode-se
fazer variarrdquo ou seja onde existe uma dificuldade em predominar o certo o
determinado o evidente o necessaacuterio eacute que chamamos o domiacutenio do contingente
Aleacutem da classificaccedilatildeo pela qualidade e quantidade temos outra importante
classificaccedilatildeo que eacute pela modalidade Nesta podemos encontrar as proposiccedilotildees
como Verdadeiras Falsas8 Necessaacuterias Possiacuteveis Impossiacuteveis e Contingentes
Nas necessaacuterias9 o predicado decorre do sujeito sendo a compreensatildeo de um
indissociaacutevel da compreensatildeo do outro
Quanto agraves proposiccedilotildees possiacuteveis satildeo aquelas em que o predicado pode ser
ou natildeo ser atribuiacutedo ao sujeito Alguns filoacutesofos se restringem a essas duas
modalidades assim a compreensatildeo da contingecircncia fica embutida na modalidade
possiacutevel em outras palavras aquilo que pode ou natildeo pode ser Essa compreensatildeo
aparece na Eacutetica a Nicocircmaco (EN VI 5 1140b1 negrito nosso) ldquouma vez que natildeo
se pode deliberar sobre coisas que estatildeo no acircmbito da necessidade conclui-se que
8 Aristoacuteteles apresenta seis modalidades Os manuais de loacutegica em sua maioria apresentam apenas
quatro modalidades de proposiccedilotildees quais sejam as necessaacuterias possiacuteveis impossiacuteveis e contingentes As modalidades de proposiccedilotildees verdadeiras e falsas satildeo tratadas como valores por decorrerem do emprego das demais
9 Na Metafiacutesica Aristoacuteteles explica a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio e as demais modalidades As
foacutermulas satildeo e natildeo satildeo independentemente da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo pois foi mostrado que ningueacutem as gera ou cria Eacute por esta razatildeo tambeacutem que natildeo haacute definiccedilatildeo ou demonstraccedilatildeo de coisas individuais sensiacuteveis porque contecircm mateacuteria cuja a natureza eacute tal que pode tanto existir quanto natildeo existir Consequentemente todos os exemplos individuais delas satildeo pereciacuteveis E se entatildeo a demonstraccedilatildeo e a definiccedilatildeo de verdades necessaacuterias requerem conhecimento cientiacutefico e se tal como conhecimento natildeo poder ser agraves vez conhecimento e agraves vezes ignoracircncia (eacute a opiniatildeo que possui esta natureza) do mesmo modo tambeacutem demonstraccedilatildeo e a definiccedilatildeo natildeo satildeo passiacuteveis de variaccedilatildeo (eacute a opiniatildeo que se ocupa com aquilo que pode ser de outra maneira do que eacute) (Met 1039b25 - 1040a1)
19
a prudecircncia (sabedoria praacutetica) natildeo eacute o mesmo que conhecimento cientiacutefico porque
os assuntos relacionados agrave conduta admitem mutaccedilatildeordquo
Mais claramente Santo Tomaacutes discorre na segunda parte da Segunda
Parte Questatildeo 47 artigo 5 da Suma Teoloacutegica
Consequumlentemente se diraacute que a prudecircncia estando na razatildeo como jaacute foi dito distingue-se das outras virtudes intelectuais segundo a diversidade material de objetos Pois a sabedoria a ciecircncia e o intelecto tecircm como objetos coisas necessaacuterias a arte e a prudecircncia coisas contingentes [] (AQUINO 2004 p 593 negrito nosso)
Parece-nos importante o desdobramento nas quatro modalidades pois o
possiacutevel e contingente natildeo parecem sinocircnimos O principal argumento estaacute no fato
de que na noccedilatildeo de possiacutevel estaacute impliacutecito o seu contraacuterio ou seja o Impossiacutevel
hipoacutetese em que o predicado natildeo decorre do sujeito Por sua vez a noccedilatildeo de
contingecircncia natildeo compreende o incontingente
Em seu Dicionaacuterio de Filosofia Nicola Abbagnano expotildee no verbete
Contingente a diferenccedila entre contingecircncia e possiacutevel jaacute exposta por Boeacutecio
ldquopossibuumlerdquo e contingens significam a mesma coisa salvo talvez pelo fato de natildeo
existir o negativo de contingens que deveria ser incontingens assim como existe o
negativo de possibuumle que eacute iacutempossiacutebilerdquo (ABBAGNANO 2007 p 200)
Sendo portanto quatro as classificaccedilotildees das modalidades Necessaacuterio ou ldquoeacute
necessaacuterio que S seja Prdquo Possiacutevel ou ldquoeacute possiacutevel que S seja Prdquo Impossiacutevel ou ldquoeacute
impossiacutevel que S seja Prdquo e Contingente ou ldquoeacute contingente que S seja Prdquo
Assim as proposiccedilotildees sempre recebem o valor de verdadeiras quando
pertencem agrave modalidade Necessaacuterio recebem o valor de falsas quando pertencem agrave
modalidade Impossiacutevel recebem o valor de verdadeiras ou falsas quando pertencem
agrave modalidade Possiacutevel
Quando as proposiccedilotildees pertencem agrave modalidade Contingente natildeo podem
ser dotadas de valoraccedilatildeo uma vez que natildeo se pode decidir se satildeo verdadeiras ou
falsas Isso na loacutegica eacute conhecido como acidentes10 ou aquilo que estaacute presente e
ausente ainda que natildeo haja corrupccedilatildeo do sujeito Por isso quando se fala em
10
Retomaremos acerca dos acidentes quando estudarmos o acaso
20
contingecircncia soacute pode estar-se referindo ao momento presente ou futuro mas nunca
ao passado Satildeo nesses momentos em que impera o indeterminado que se
encontra a contingecircncia
Natildeo obstante a correta formulaccedilatildeo de um raciociacutenio eacute possiacutevel que
obtenhamos conclusotildees erradas hipoacutetese essa em que as premissas natildeo satildeo
verdadeiras Destarte diferente da loacutegica menor que se preocupa com a
conformidade das conclusotildees com as premissas a loacutegica maior preocupa-se com a
veracidade
Para que possamos compreender melhor o objeto da loacutegica maior eacute preciso
conceituar o que seja a verdade em mateacuteria de loacutegica assim valhamo-nos das
liccedilotildees de Manoel Correia de Barros (1945)
Jaacute vimos que pelo processo de abstracccedilatildeo a forma do objeto que conhecemos adquire na nossa inteligecircncia uma modalidade de existecircncia completamente diferente da que tem na realidade No objecto eacute concreta individual na inteligecircncia eacute universal abstracta A verdade do nosso conhecimento tem portanto outro significado Consiste simplesmente em natildeo atribuirmos ao objeto nenhuma nota que natildeo lhe pertenccedila na realidade Eacute o caso de analogia A relaccedilatildeo que o nosso espiacuterito estabelece entre dois conceitos deve ser idecircntica a uma relaccedilatildeo existente de facto entre os dois objetos que eles representam para que o nosso conhecimento seja verdadeiro Natildeo eacute necessaacuterio que conheccedilamos todas as relaccedilotildees entre os dois objectos e muito menos todas as relaccedilotildees de que um decircles pode ser termo para ser verdadeiro o conhecimento natildeo precisa ser exaustivo basta que a nota que afirmamos pertencer ao obejcto lhe pertenccedila realmente Assim falamos verdade quando dizemos que a neve eacute branca embora agravececircrca da neve haja muitas coisas mais a dizer e a saber
Natildeo haacute que saber duma ideia isolada se eacute verdadeira ou natildeo A questatildeo natildeo se potildee dado que a verdade eacute igualdade de relaccedilotildees que exigem claro estaacute dois termos []
Soacute pode ser verdadeiro ou falso o juiacutezo que se exprime pela proposiccedilatildeo e relaciona entre si um sujeito e um predicado Ecircsse sim se o predicado que atribuiacutemos ao sujeito lhe convecircm na realidade eacute verdadeiro se lhe natildeo conveacutem eacute falso (BARROS 1945 p 329-330)
Dessa forma para o estabelecimento da verdade eacute necessaacuterio que natildeo haja
nada de estranho ao objeto ou em outras palavras o predicado deve decorrer do
sujeito natildeo lhe dando qualquer nota que natildeo lhe pertenccedila Por isso afirma Maritain
(2001) que a verdade de nosso espiacuterito consiste em sua conformidade com a coisa
21
Nesse sentido eacute que podemos compreender o que afirmamos quando
falaacutevamos da loacutegica menor em que natildeo podemos atribuir o incerto ao passado
Pois por oacutebvio qualquer nota que natildeo lhe tenha ocorrido natildeo lhe pertence
[] os futuros contingentes natildeo existem no passado nem mesmo como verdades futuras Ontem por exemplo natildeo era uma verdade que ia hoje sair um determinado nuacutemero na lotaria porque natildeo existia ontem nenhum facto em que essa consequumlecircncia estivesse contida de modo necessaacuterio com o qual a proposiccedilatildeo em causa pudesse concordar (BARROS 1945 p 331)
Portanto como estaacute relacionado agrave coisa futura o contingente encontra-se
latente num estado de porvir Por isso eacute que estabelecemos nossa proacutexima
referecircncia acerca da contingecircncia no movimento
22 O Movimento11 da potecircncia para o ato
Eacute interessante notar que o momento propiacutecio agrave decisatildeo eacute um momento de
passagem ou em melhor termo um momento de movimento Natildeo eacute em vatildeo que
Pierre Aubenque (2008) em seu livro A Prudecircncia em Aristoacuteteles dedica boa parte
do capiacutetulo Cosmologia da Prudecircncia ndash o mesmo capiacutetulo no qual faz uma
abordagem sobre contingecircncia ndash ao tema O tempo oportuno (καιρος)
Nesse sentido estaacute [] a moral aristoteacutelica nos convidando a realizar nossa
excelecircncia neste mundo Natildeo podendo desconhecer que o mundo dura e muda no
tempo que eacute o ldquonuacutemerordquo de seu movimento (Aubenque 2008 p156)
Dessa forma eacute preciso compreender o movimento principalmente na tatildeo
conhecida passagem da Potecircncia para o Ato Como bem assinala Tomaacutes de Aquino
no artigo 5 da questatildeo 47 que estatildeo sob os auspiacutecios da contingencia tanto a
prudecircncia quanto a arte12 isso porque ambas ldquoestatildeo para serrdquo a prudecircncia para o
agir e arte para produzir13
11
Aristoacuteteles faz uma grande abordagem acerca do movimento de acordo com RUSSEL (2001) existem trecircs espeacutecies de movimento Movimento enquanto qualidade quantidade e mudanccedila de lugar REALE (1990) apresenta uma quarta divisatildeo enquanto substacircncia Dessa forma nomina o movimento entre a potecircncia e o ato como movimento enquanto qualidade proposta do presente item 12
Jaacute citado e referenciado no item 21 Esse assunto ainda seraacute tratado no item 43 Arte e prudecircncia 13
Sobre o movimento e a relaccedilatildeo entre a lei e o fato assina-la Carnelutti Assim aflora no discurso a conversatildeo do movimento na imobilidade E assim opotildee-se agrave lei ao direito O eterno contraste entre o
22
Ateacute Aristoacuteteles a concepccedilatildeo filosoacutefica acerca do movimento esteve
vinculada a duas teorias uma negava o movimento e outra o afirmava A corrente
que afirmava o movimento era liderada por Heraacuteclito de Eacutefeso (+- 540 aC)
Heraacuteclito afirmava que as coisas mudavam permanentemente em outras
palavras ele afirmava a inconstacircncia das coisas nesse sentido eacute atribuiacuteda a ele a
frase ldquoEntramos e natildeo entramos no mesmo rio Somos e natildeo somosrdquo Portanto o
movimento estaacute presente em todas as coisas agraves vezes afirmando que as coisas
ldquosatildeordquo e que ldquonatildeo satildeordquo ao mesmo tempo sendo como mais tarde diria Platatildeo ldquoO
nosso ser eacute um perpeacutetuo devirrdquo
Ao contraacuterio do que afirmava Heraacuteclito Parmecircnides de Eleia (+- 521 aC)
liderava a corrente que negava o movimento Assim Parmecircnides simplesmente
afirma que ldquoeacuterdquo Seu argumento eacute sustentado pela afirmaccedilatildeo de que aquilo que ldquonatildeo
eacuterdquo natildeo pode sequer ser imaginado pois natildeo se pode imaginar o nada Seu
pensamento culmina numa representaccedilatildeo do mundo como ldquouma esfera material
uniforme soacutelida e finita sem tempo movimento nem mudanccedilardquo (RUSSELL 2001 p
29-38)
De acordo com Parmecircnides os sentidos natildeo seriam instrumentos adequados
ao conhecimento verdadeiro sendo o conhecimento verdadeiro revelado pela razatildeo
Assim a verdade eacute apenas aquilo que eacute produzido pelo pensamento e portanto o
pensar eacute verdadeiramente ldquoserrdquo Eacute nesse sentido que afirma ser o movimento
impossiacutevel pois natildeo admite a passagem do ldquonatildeo serrdquo para o ldquoserrdquo uma vez que o
ldquonatildeo serrdquo eacute nada e natildeo pode ser inteligiacutevel
Ao contraacuterio de seus predecessores Aristoacuteteles inova conciliando ambas as
teorias Pois natildeo nega o que ldquoestaacute por virrdquo de Heraacuteclito e nem o ldquoserrdquo de
Parmecircnides
Aristoacuteteles natildeo nega o vir-a-ser de Heraacuteclito nem o ser de Parmecircnides mas une-os em uma siacutentese conclusiva jaacute iniciada pelos uacuteltimos preacute-socraacuteticos e grandemente aperfeiccediloada por Demoacutecrito e Platatildeo Segundo Aristoacuteteles a mudanccedila que eacute intuitiva pressupotildee uma realidade imutaacutevel que eacute de duas espeacutecies Um substrato comum elemento
ser e o mover-se apresenta-se tambeacutem ao jurista sub specie da oposiccedilatildeo do fato agrave lei A lei estaacute o fato move-se A lei eacute um estado o fato um desenvolvimento A lei eacute o presente o fato natildeo pode ser mais do que passado ou futuro A lei estaacute fora do tempo o fato estaacute dentro (CARNELUTTI 2003 p 40)
23
imutaacutevel da mudanccedila em que a mudanccedila se realiza e as determinaccedilotildees que se realizam nesse substrato a essecircncia a natureza que ele assume Essa contradiccedilatildeo Aristoacuteteles pretende evitar atraveacutes da interpretaccedilatildeo analoacutegica da noccedilatildeo de ser que lhe permite fazer uma distinccedilatildeo fundamental ser natildeo eacute apenas o que jaacute existe em ato ser eacute tambeacutem o que pode ser a virtualidade a potecircncia Assim sem contrariar qualquer princiacutepio loacutegico poder-se-ia compreender que uma substacircncia apresenta-se num dado momento certas caracteriacutesticas e noutra ocasiatildeo manifestasse caracteriacutesticas diferentes se uma folha verde torna-se amarela eacute porque verde e amarelo satildeo acidentes da folha (que eacute sempre folha independente de sua coloraccedilatildeo) A qualidade amarelo eacute uma virtualidade da folha que num certo momento se atualiza E essa passagem da potecircncia ao ato eacute que constitui segundo a teoria de Aristoacuteteles o movimento O termo movimento tem frequentemente a
mesma significaccedilatildeo que os vocaacutebulos mudanccedila e devir (ORIOLO
2009)
A compreensatildeo do ldquoserrdquo14 eacute explicada detalhadamente no Livro VII da
Metafiacutesica (Met VII 1 1028a10) Na passagem 1039b20 descreve a substacircncia
como sendo de dois tipos uma vez que o primeiro tipo seria uma combinaccedilatildeo de
foacutermula com a mateacuteria e o segundo tipo como sendo a forma em seu sentido pleno
Sendo a forma uma constante inadmitindo acidentes ao contraacuterio da foacutermula com a
mateacuteria que eacute passiacutevel de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo
Portanto a mudanccedila parece compreender como predicados ato e potecircncia
pois natildeo seria possiacutevel movimento enquanto ato uma vez que neste a causa final
jaacute fora atingida nem enquanto soacute potecircncia uma vez que algo pode permanecer
nesse estado sem que haja qualquer mudanccedila Nesse sentido o movimento eacute
potecircncia e ato
Para Aristoacuteteles o movimento eacute a a realizaccedilatildeo15 daquilo que estaacute em
potecircncia (Fiacutes III 1 201 a 10) Ou seja o movimento eacute a passagem da potecircncia
para o ato Um dos exemplos citados na Fiacutesica eacute o crescimento como sendo a
realizaccedilatildeo a passagem da potecircncia para o ato16 De acordo com Russell (2001)
14
Sobre o ser vide AUBENQUE (2012) 15
έντελέχεια (enteleacutekheia) 16
Y puesto que distinguimos en cada geacutenero lo actual y lo potencial el movimiento es la actualidad de lo potencial en cuanto a tal por ejemplo la actualidad de lo alterable en tanto que alterable es la alteracioacuten la de lo susceptible de aumento y la de su contrario lo susceptible de disminucioacuten mdash no hay nombre comuacuten para ambos mdash es el aumento y la disminucioacuten la de lo generable y lo destructible es la gene- racioacuten y la destruccioacuten la de lo desplazable es el desplazamiento en tanto que decimos que es tal estaacute en actualidad entonces estaacute siendo construido tal es el proceso de construccioacuten y lo mismo en el caso de la instruccioacuten la medicacioacuten la rotacioacuten el salto la maduracioacuten y el envejecimiento (Fiacutes III 1 201 a 16)
24
Se um frasco de oacuteleo comeccedila a queimar podemos dizer que eacute assim porque jaacute o era potencialmente mesmo antes Poreacutem evidentemente isto natildeo eacute uma explicaccedilatildeo Na verdade por motivos deste tipo algumas escolas filosoacuteficas negaram que se pudesse dizer qualquer coisa uacutetil sobre o assunto Antiacutestenes de Megara foi um deles como veremos adiante Segundo este ponto de vista uma coisa eacute de um determinado tipo ou natildeo e qualquer coisa aleacutem disto eacute tolice Mas eacute claro que fazemos afirmaccedilotildees como ldquoo oacuteleo eacute inflamaacutevelrdquo e elas fazem perfeito sentido A anaacutelise de Aristoacuteteles fornece a resposta correta Ao dizermos que uma coisa eacute potencialmente A queremos dizer que sob certas condiccedilotildees seraacute de fato assim [] As condiccedilotildees em questatildeo eacute claro devem ser tais que possam de fato ocorrer quer dizer ser atuais Neste sentido o atual eacute logicamente anterior ao potencial Agora pode-se dar uma explicaccedilatildeo da mudanccedila em virtude de uma substacircncia que eacute portadora potencial de uma seacuterie de qualidades que nela se tornam sucessivamente atuais (RUSSELL 2001 p 113)
Assim poderiacuteamos dizer que o hilemorfismo eacute o locus onde Aristoacuteteles
ensaia a teoria do movimento pois eacute da realidade sensiacutevel constituiacuteda de mateacuteria17 e
forma que podemos imaginar o salto e os possiacuteveis acidentes entre a potecircncia e o
ato ldquo[] parece que para a mesma coisa eacute possiacutevel tanto ser como natildeo ser Assim
por exemplo tudo aquilo que pode caminhar ou ser cortado pode natildeo caminhar ou
natildeo ser cortado E a razatildeo disso eacute que essas coisas que satildeo desta maneira em
potecircncia nem sempre satildeo em atordquo (Da Int 21b10) Essa postura apresentada em
Da Interpretaccedilatildeo pode ser contemplada tambeacutem na Metafiacutesica ldquo[] a mesma coisa
pois pode ser potencialmente ao mesmo tempo dois contraacuterios mas natildeo pode ser
atualmenterdquo (Met IV 5 1009b34-36)
No estudo das causas18 Aristoacuteteles as classifica em quatro quais sejam
causa formal causa material causa eficiente e causa final Considerar apenas a
forma e a mateacuteria natildeo eacute suficiente pois teriacuteamos uma teoria estaacutetica Como estamos
tratando de uma realidade dinacircmica eacute necessaacuterio portanto que consideremos a
existecircncia de um agente e seu objetivo
Assim a mateacuteria eacute potecircncia por estar apta a receber a forma e
consequentemente alcanccedilar o ato Tal como o bloco de granito estaacute apto a tornar-se
a Vecircnus de Milo
17
ύλη (hyle) 18
Sobre as quatro causas Giovanni Reale explica sua relaccedilatildeo com a Fiacutesica em especial no que
concerne ao movimento vide (REALE 2001 p 57)
25
Em De Anima (432a15 - 433b) Aristoacuteteles descreve o movimento como
pertencente agrave razatildeo praacutetica De acordo com o texto o intelecto ou a razatildeo
especulativa nada pensa na esfera do praacutetico nem delibera acerca dos objetos a
serem evitados ou buscados enquanto o movimento local diz respeito sempre ao
evitar ou ao buscar de algum objeto
Nesse importante trecho estatildeo inseridas as bases do silogismo praacutetico19
destarte a assertiva que segue o trecho eacute a seguinte ldquoe o ponto final do processo
de raciocinar constitui o ponto de partida da accedilatildeo Eacute por boa razatildeo que esses dois
nomeadamente o desejo e o intelecto praacutetico satildeo considerados fonte do
movimentordquo (DA 432a17)
Em sua Metafiacutesica (1046b5) afirma que toda potecircncia racional admite
resultados contraacuterios diferente das potecircncias irracionais onde o resultado eacute
necessaacuterio O exemplo utilizado eacute o do calor e o da medicina o calor soacute pode
produzir calor enquanto a medicina pode produzir sauacutede e doenccedila
Portanto o movimento pertencente agrave razatildeo praacutetica eacute para noacutes a passagem
da potecircncia para o ato Em tal passagem podemos constatar a presenccedila de
resultados contraacuterios ou seja aquilo que eacute em potecircncia natildeo o seraacute
19
Sobre ldquosilogismo praacuteticordquo vide Pierre Aubenque (2008 p 52) ldquologo entre a teoria e a praacutetica e
finalmente entre a ciecircncia e a prudecircncia esta uacuteltima relativa menos agrave ldquodeduccedilatildeordquo que desce do
princiacutepio agrave aplicaccedilatildeo do que a um ldquoempirismordquo que se esforccedila bem ou mal por se orientar no acircmago
mesmo do particularrdquo Neste trecho parece afastar-se da loacutegica Mais adiante na p 254 aborda
novamente o tema e conclui por uma perspectiva conciliadora ou seja apresenta duas foacutermulas para
a deliberaccedilatildeo uma a do silogismo praacutetico como aplicaccedilatildeo do universal ao particular e a outra que diz
respeito agrave escolha judiciosa dos meios Em sua Histoacuteria da Eacutetica Alasdair MacIntyre (1991 p 76 -
77) ldquoAristoacuteteles caracteriza la forma de deliberacioacuten implicada como un silogismo praacutectico La
premisa mayor de un silogismo semejante es un principio de accioacuten en el sentido de que cierta clase
de cosas es buena conviene o satisface a cierta clase de personas La premisa mayor es la
afirmacioacuten garantizada por la percepcioacuten de que hay un ejemplo de que aunque misterioso en su
contenido aclara la forma del silogismo praacutectico La premisa mayor indica que el alimento seco es
bueno para el hombre la premisa menor sentildeala la presencia de ese tipo de alimento y la conclusioacuten
es que el agente lo ingiere Que la conclusioacuten es una accioacuten pone de manifiesto que el silogismo
praacutectico es un modelo de razonamiento por parte del agente y no un modelo de razonamiento ajeno
sobre lo que el agente deberiacutea hacer (por eso una segunda premisa menor que indicara por ejemplo
la presencia de un en cuanto nos alejariacutea de la cuestioacuten) Ni tampoco es un modelo de confundirse
con aquellos silogismos muy comunes cuya conclusioacuten es una afirmacioacuten de este tipo Toda su
finalidad reside en indagar el sentido en que una accioacuten puede ser la resultante de un razonamientordquo
26
necessariamente em ato Da admissatildeo de tais resultados decorre a indeterminaccedilatildeo
Eacute justamente essa indeterminaccedilatildeo que justifica a deliberaccedilatildeo
23 Indeterminismo e a eacutetica das virtudes
Iniciamos o segundo capiacutetulo afirmando que tanto a prudecircncia quanto a
equidade pertencem ao campo da accedilatildeo e que ambas se manifestam nas situaccedilotildees
contingentes20 Revisitando os conceitos da loacutegica foi possiacutevel identificar a natureza
da contingecircncia como pertencente agraves modalidades Por fim identificamos que o
movimento entre a potecircncia e o ato eacute uma fonte contingencial uma vez que a
potecircncia admite atualizaccedilotildees contraacuterias evidenciando o que chamamos de
indeterminaccedilatildeo21
Neste item pretendemos compreender a natureza da indeterminaccedilatildeo como
um chamamento para accedilatildeo asseverando as diferentes concepccedilotildees da noccedilatildeo de
acaso nas obras de Aristoacuteteles
Pierre Aubenque (2008) em seu livro A prudecircncia em Aristoacuteteles faz uma
profunda leitura das obras do Estagirita evidenciando trecircs distintas concepccedilotildees de
acaso Na primeira delas uma leitura da Eacutetica Eudecircmia onde o acaso aparece sob a
forma de ldquofortunardquo Na segunda uma leitura da Fiacutesica esboccedilando o acaso como
inserto em sua teoria da causalidade E na terceira e uacuteltima uma leitura da Eacutetica a
Nicocircmaco o acaso enquanto indeterminaccedilatildeo objetiva isto eacute contingecircncia As trecircs
concepccedilotildees satildeo detalhadamente explicadas por Pierre Aubenque (2008 p 117-
130)
231 Primeira concepccedilatildeo de acaso A boa fortuna
20
Parece que a contingecircncia se manifesta de diversa forma em cada uma das virtudes situaccedilatildeo que seraacute analisada mais detidamente no estudo de cada uma delas 21
Aqui o emprego da expressatildeo ldquoindeterminaccedilatildeordquo refere-se a admissatildeo da existecircncia do acaso em verdade natildeo eacute nossa intenccedilatildeo trabalhar a dicotomia ldquodeterminismo-indeterminismordquo
27
Na Eacutetica Eudecircmica Aristoacuteteles procura mostrar que a boa fortuna22 natildeo se
deve ao exerciacutecio das virtudes morais ou intelectuais mas ao bom nascimento
desse modo a boa fortuna eacute algo irasciacutevel
O questionamento eacute formulado Se a boa fortuna natildeo eacute produto da razatildeo
entatildeo eacute um presente de deus ou uma causa natural
As objeccedilotildees seguem no sentido de que o bom nascimento natildeo se explica
pela proteccedilatildeo divina pois seria indigno dos deuses dispensarem favores aos maus
Da mesma forma natildeo seria pela natureza uma vez que ldquoa natureza eacute causa do que
eacute sempre uniforme ou do que acontece frequentemente e o acaso eacute o oposto dissordquo
(EE VII 14 1247a14-31)
Pierre Aubenque (2008) nos daacute a seguinte soluccedilatildeo
Tal objeccedilatildeo no entanto natildeo repousaria sobre uma concepccedilatildeo errocircnea do acaso Aristoacuteteles o pergunta para sugerir uma teoria segundo a qual ldquoeacute preciso rejeitar inteiramente o acaso e dizer que nada acontece por acaso pois quando dizemos que o acaso eacute uma causa haacute na realidade uma outra causa poreacutem ocultada para noacutes Eacute por isso que quando se define o acaso o tomamos como uma causa impenetraacutevel ao raciociacutenio humano (aitian alogon anqrwpinw logismw) como se se
tratasse de uma certa naturezardquo [] essa causa oculta ao entendimento humano que se chama impropriamente acaso eacute num certo sentido uma causa natural ndash e nesse sentido eacute verdadeiro dizer que os homens afortunados o satildeo por natureza Natureza poreacutem que natildeo deve ser entendida no sentido dos fiacutesicos eacute a boa ou maacute natureza o bom ou mau nascimento que eacute um dom dos deuses natildeo para recompensar nossos meacuteritos ou para complementaacute-los mas o dom inicial constitutivo de nosso quinhatildeo que natildeo eacute pois uma consequumlecircncia mas a fonte de nossos meacuteritos ou demeacuteritos (2008 p 119)
Portanto o acaso enquanto boa fortuna parece tanto um presente de Deus
por constituir o quinhatildeo inicial quanto uma causa natural pois os afortunados o satildeo
por natureza (EE VII 14 1247b28)23
Contudo Aubenque (2008) deixa em aberto uma seacuterie de questionamentos a
essas possiacuteveis soluccedilotildees o que nos parece liacutecito uma vez que para nosso objetivo
basta compreender as consequecircncias da boa fortuna no campo da razatildeo praacutetica
Vejamos a exposiccedilatildeo 22
eutuxia 23
Natildeo obstante a essa aparente soluccedilatildeo Pierre Aubenque (2008) natildeo a daacute por resolvida o que percebemos eacute uma questatildeo que tende agrave teologia provavelmente pretende uma soluccedilatildeo no acircmbito de outra obra
28
Mas a concepccedilatildeo de acaso sugerida pelo texto natildeo eacute nem tatildeo clara nem tatildeo isenta de dificuldades como poderia parecer agrave primeira vista Pois jaacute apresenta ao lado da noccedilatildeo religiosa de acaso ndash Forccedila oculta que a tudo dirige ndash uma outra concepccedilatildeo que liga o acaso natildeo mais a transcendecircncia insondaacutevel da divindade mas agraves falhas de sua accedilatildeo Vimos nesses textos que o acaso eacute oposto agrave natureza como excepcional ao uniforme Um pouco mais longe Aristoacuteteles esclarece que o acontecimento casual eacute aquele que certamente deriva das causas embora indefinidas e indeterminadas (apeirwn kai aoristwn) ou seja
do gecircnero de causas do qual natildeo pode haver ciecircncia Sem duacutevida o sentido geral do texto permite entender que Aristoacuteteles toma facilmente o partido da impossibilidade de uma ciecircncia do acaso visto haver algo superior agrave ciecircncia que eacute Deus (AUBENQUE 2008 p 126)
As conclusotildees que se seguem satildeo consequecircncia desta O sentido eacute o de
que o acaso eacute aparente pois seria Deus o primeiro motor Assim o sendo natildeo haacute
que se falar em deliberaccedilatildeo uma vez que a inteligecircncia Divina jaacute a teria previamente
realizado A denominaccedilatildeo ldquoacasordquo eacute funccedilatildeo de nossa ignoracircncia agrave Causa das
causas ou seja Deus
A consequecircncia que estrai Aristoacuteteles eacute que os homens afortunados natildeo devem sua fortuna agrave sua inteligecircncia nem mais particularmente agrave sua capacidade de deliberaccedilatildeo ldquopara qualquer lado que se lanccedilam triunfam sem reflexatildeo (alogoi ontej) deliberar natildeo lhes serve para nada pois
tem neles um princiacutepio que eacute melhor que o intelecto e a deliberaccedilatildeo enquanto os outros tecircm apenas raciociacutenio os afortunados natildeo o tem mas satildeo habitados pelo deusrdquo
24 (AUBENQUE 2008 p 121)
Assim para os afortunados o exerciacutecio das virtudes eacute inuacutetil uma vez que jaacute
possuem os bens necessaacuterios para alcanccedilarem a felicidade Ao contraacuterio dos
afortunados tal exerciacutecio eacute para os virtuosos o caminho alternativo para se
alcanccedilar aquilo que natildeo receberam da natureza ou da Providecircncia Divina
232 Segunda concepccedilatildeo de acaso Acidente
Na Fiacutesica eacute apresentada uma teoria da causalidade que atinge tanto os
seres dotados de escolha quanto os seres natildeo dotados Pierre Aubenque (2008)
24
EE VII 14 1248a29-33
29
explica que o acaso natildeo eacute o encontro de duas seacuteries causais mas o encontro de
uma seacuterie causal real dotada de uma certa finalidade com uma finalidade
imaginaacuteria de modo que tal encontro poderia ser retrospectivamente reconstruiacutedo a
partir do resultado
O exemplo extraiacutedo da Fiacutesica25 eacute de um homem que ao ir ao mercado
encontra-se por acaso com um algueacutem que o deve os fatos se desenrolam como
se o motivo de tal homem estar ali fosse cobrar a diacutevida quando de fato o motivo
era outro Essa interpretaccedilatildeo do acaso agora parece evidente vejamos
[] este motivo o uacutenico real eacute pois causa por acidente de um efeito que natildeo era visado como tal o ressarcimento da diacutevida Como se vecirc uma tal concepccedilatildeo do acaso natildeo introduz nenhuma falha no encadeamento causal o acaso apenas acrescenta uma intenccedilatildeo a qual sendo imaginaacuteria de fato natildeo acrescenta nem suprime nada agrave realidade do processo natural O acaso nesse sentido eacute uma ilusatildeo retrospectiva a projeccedilatildeo de uma finalidade humana sobre uma relaccedilatildeo causal que eacute por si mesma inteiramente estranha a esta finalidade (AUBENQUE 2008 p 126)
Essa noccedilatildeo que segundo AUBENQUE (2008) soa como determinista
recebe mais adiante um desenvolvimento mais apurado O acaso eacute concebido natildeo
como causa mas sim como efeito Desta forma o acaso enquanto encontro de uma
seacuterie causal e de um fim natildeo perseguido aparece como fato excepcional e sem
causas ao menos determinaacuteveis pois suas causas sendo causas acidentais satildeo
indeterminaacuteveis ldquoa causa por si mesma eacute determinada a causa por acidente eacute
indeterminada pois a pletora de acidentes possiacuteveis de uma coisa eacute infinitardquo (Fiacutes II
5 196b27-29)26 ldquoO acaso natildeo aparece senatildeo num mundo onde o acidente ndash ou
seja o que adveacutem sumbanei a uma coisa ndash natildeo se deixa reduzir agrave essecircncia um
mundo onde nada eacute dedutiacutevel onde a infinidade de acidentes possiacuteveis de uma
coisa tornam imprevisiacuteveis as combinaccedilotildees que daiacute podem resultarrdquo (AUBENQUE
2008 p 127)
Portanto a noccedilatildeo de acaso apresentada na Fiacutesica diferencia-se da boa
fortuna apresentada na Eacutetica a Eudemo pois enquanto a boa fortuna refere-se ao
25
Fiacutes II 5 196b 33-197a5 26
Fiacutes II 5 196b27-29
30
bom nascimento o acidente na Fiacutesica refere-se a incontaacuteveis possibilidades que nos
impedem de antever os possiacuteveis resultados
233 Terceira concepccedilatildeo de acaso contingecircncia
Diferente das duas concepccedilotildees anteriores a exposiccedilatildeo da Indeterminaccedilatildeo
objetiva ou contingecircncia passa a ter um cunho teoloacutegico-antropoloacutegico Parece que
a visatildeo da Eacutetica a Nicocircmaco sobre o acaso estaacute mais direcionada ao traacutegico
Pierre Aubenque (2008 p 127-28) inicia fazendo um interessante paralelo
entre o Saacutebio e o Prudente procurando entre esses aquele que poderaacute atingir a
felicidade A conclusatildeo como eacute de se esperar27 indica o prudente como aquele que
poderaacute um dia ser chamado feliz
Contudo o referido autor natildeo negligencia as aparentes objeccedilotildees ateacute mesmo
porque Aristoacuteteles natildeo as negligenciou Muito pelo contraacuterio ainda que de forma
bem tiacutemida Aristoacuteteles fez breve passagem expondo a grandeza da vida
contemplativa
A argumentaccedilatildeo apresentada por comentadores28 pode ser resumida da
seguinte forma Se o que o homem tem de mais proacuteximo a Deus eacute o intelecto entatildeo
Deus quer bem os saacutebios portanto os saacutebios satildeo felizes Nesse sentido a noccedilatildeo
temporal de felicidade inexiste pois basta o exerciacutecio das faculdades intelectivas
para alcanccedilar o estado de felicidade (AUBENQUE 2008)
A objeccedilatildeo apresentada por Pierre Aubenque (2008 p128) eacute clara De
acordo com ele eacute nesse ponto que Aristoacuteteles se afasta de toda a tradiccedilatildeo socraacutetica
pois no pensamento aristoteacutelico a virtude ainda que natildeo suficiente eacute condiccedilatildeo
necessaacuteria da felicidade
Ainda de acordo com essa objeccedilatildeo estaacute que a definiccedilatildeo de felicidade eacute
composta pela virtude e pelos bens exteriores e bens do corpo Por oacutebvio esses
dois uacuteltimos bens ldquonatildeo podem ser adquiridos pelo exerciacutecio ou meacuterito eles
dependem da boa fortunardquo (AUBENQUE 2008 p 129)
27
Afinal este eacute o tema desta dissertaccedilatildeo 28
Comentadores citados por AUBENQUE (2008) ZELLER Die Philosophie der Griechen II 2 1921 4ordf DIRLMEIER F Magna Moralia 1958
31
Destarte o primeiro desses bens a virtude natildeo pode ser compreendida sem
ter por referencial a contingecircncia Pois como jaacute exposto para ser feliz eacute preciso ser
virtuoso para ser virtuoso eacute preciso ter condiccedilotildees externas para exercitar as
virtudes
[] inicialmente porque a virtude necessita de uma mateacuteria para se exercer e como vimos de um ldquomundordquo ou seja necessita de condiccedilotildees que natildeo dependem de noacutes como amigos dinheiro um certo poder poliacutetico e tambeacutem de ocasiotildees as quais natildeo se oferecem a todos (Heacutercules teve a oportunidade de encontrar o leatildeo de Nemeacuteia e a hidra de Lerna Mas num segundo sentido natildeo pode haver felicidade completa sem a plenitude da vida (bioj teleioj) o que supotildee sem
duacutevida uma duraccedilatildeo optima mas tambeacutem a integridade do corpo e a prosperidade de nossos empreendimentos o que os gregos resumem em uma palavra eupraia (AUBENQUE 2008 p129)
Para encerrar a questatildeo entre o saacutebio e o prudente eacute exposta uma seacuterie de
argumentos que pretendem demonstrar a fragilidade dos argumentos socraacuteticos por
exemplo que enquanto Deus basta a si mesmo o homem precisa ter amigos ou
que o saacutebio necessita do oacutecio Enfim tantas satildeo as condiccedilotildees externas que natildeo
parece o saacutebio poder ser tatildeo autaacuterquico quanto pretende a visatildeo socraacutetica para ser
feliz
Mas a concepccedilatildeo perseguida em A Prudecircncia em Aristoacuteteles eacute a do fracasso
da Providecircncia Divina Isso quer dizer que a ldquovirtude depende do mundo tanto
quanto de suas condiccedilotildees de existecircncia e este mundo natildeo depende de noacutes Eis o
virtuoso de Aristoacuteteles e mesmo o contemplativo ndash os quais satildeo menos duas
personagens distintas do que a mesma personagem em niacuteveis diferentes de
excelecircnciardquo (AUBENQUE 2008 p 135) ambos condicionados agrave heteronomia e agrave
relaccedilatildeo de ldquoacasordquo Haacute algo de traacutegico na vida moral decorrente da uniatildeo entre a
felicidade e a virtude que natildeo eacute por assim dizer analiacutetica como acreditavam os
socraacuteticos mas sempre sinteacutetica porque depende numa proporccedilatildeo irredutiacutevel do
acasordquo (AUBENQUE 2008 p 135)
[] o ideal de Aristoacuteteles natildeo pode consistir numa assimilaccedilatildeo ao mundo em seu conjunto visto que este soacute eacute racional em suas partes superiores mas somente na imitaccedilatildeo da ordem que nelas reina O conhecimento dessa ordem que natildeo pode ser procurado na fiacutesica como para os estoacuteicos mas na teologia eacute o que Aristoacuteteles nomeia sabedoria Mas a
32
vida segundo a sabedoria natildeo eacute imediatamente acessiacutevel ao homem por uma ascese interior pois ela depende tambeacutem em suas condiccedilotildees de realizaccedilatildeo das circunstacircncias exteriores as quais natildeo satildeo nem na aparecircncia nem profundamente inteiramente racionais O reino da sabedoria exige pois um domiacutenio preacutevio das circunstacircncias domiacutenio que natildeo pode ser adquirido senatildeo por uma accedilatildeo teacutecnica sobre o mundo Se para os estoacuteicos a indiferenccedila em relaccedilatildeo agraves circunstacircncias se justificaraacute em uacuteltima anaacutelise pela crenccedila na Providecircncia e na convicccedilatildeo correlata de que todo real eacute racional o homem de Aristoacuteteles natildeo saberaacute fingir indiferenccedila a respeito de um mundo cuja indeterminaccedilatildeo eacute a forma propriamente aristoteacutelica do mal Poreacutem aqui se opera uma inversatildeo que forneceraacute o domiacutenio e no sentido mais forte do termo a ldquochancerdquo da accedilatildeo moral se a contingecircncia eacute a fonte do mal ela torna possiacutevel as iniciativas humanas em vista do bem a indeterminaccedilatildeo signo da impotecircncia da razatildeo universal eacute ao mesmo tempo abertura agrave accedilatildeo racional do homem [] O homem de Aristoacuteteles natildeo pode se tornar indiferente agraves circunstacircncias mas lhe eacute permitido na medida em que satildeo moldaacuteveis para moldaacute-las humanamente e se natildeo eacute convidado a mudar antes seus desejos do que a ordem do mundo eacute porque Aristoacuteteles conta com o desejo racional para terminar de ordenar o mundo tomando o lugar de uma Providecircncia faliacutevel (2008 p143-145 negrito nosso)
Dessa forma natildeo depende dos homens apenas moldar seus proacuteprios
desejos mas tambeacutem o mundo por ser somente ordenado de modo geral Dessa
forma a contingecircncia eacute o mal e o remeacutedio de acordo com o desejo29 do homem Eacute
nesse sentido que devemos abordar um tema que eacute corrente entre os
comentadores30 de Aristoacuteteles a trageacutedia
2331 Trageacutedia31
O elemento traacutegico heranccedila da mais alta literatura e ao mesmo tempo do
conhecimento popular do homem grego estaacute presente na obra do Estagirita Eacute
nesse sentido que os traccedilos mais marcantes de sua filosofia estatildeo inflados com a
nossa fraacutegil condiccedilatildeo humana
29
Sobre ldquodesejordquo eacute interessante notar que eacute a fonte do movimento e tambeacutem da escolha racional Para tanto consulte De Anima e a Eacutetica a Nicocircmaco 30
Sobre ldquotrageacutediardquo Vide AUBENQUE (2008) LOPES (2007) NUSSBAUM (2009) Martha Nussbaum (2009) faz uma detalhada exposiccedilatildeo acerca do elemento traacutegico Mocircnica Sette Lopes (2007 p 51) expotildee igualmente sobre o gecircnero literaacuterio ldquoA poesia traacutegica assemelha-se a uma escultura maleaacutevel e dinacircmica que visa agrave educaccedilatildeo da alma humana pelo exemplordquo Aqui optamos pelos aspectos expostos por Pierre Aubenque uma vez que esta em concordacircncia com sua exposiccedilatildeo sobre a contingecircncia 31
Vide item 44 Deliberaccedilatildeo e Escolha
33
O que parece ser o centro de toda sua eacutetica a felicidade estaacute mediada por
uma seacuterie de condiccedilotildees que natildeo depende de noacutes conforme jaacute citamos ldquoHaacute algo de
traacutegico na vida moral [] mas sempre sinteacutetica porque depende numa proporccedilatildeo
irredutiacutevel do acasordquo (AUBENQUE 2008 p 135)
O traacutegico eacute apresentado por Aristoacuteteles com um sentido mais humanizado
que divinizado ao contraacuterio de uma trageacutedia onde os heroacuteis satildeo imortalizados por
seus feitos o Estagirita apresenta um homem que faz o melhor que pode vejamos
Se esse traccedilo natildeo surpreendeu os comentadores eacute porque o traacutegico tem em Aristoacuteteles um aspecto residual de modo que se pocircde ver nele a sobrevivecircncia de uma prudecircncia popular ndash nada aleacutem do que natildeo ser preciso desafiar os deuses proclamando em alto e bom som a autarquia e a ldquoimortalidaderdquo do homem ndash da qual Aristoacuteteles natildeo teria inteiramente se libertado ou simplesmente uma concessatildeo puramente formal a esta mentalidade [] Em Aristoacuteteles o traacutegico eacute residual poreacutem em sentido ontoloacutegico no sentido de uma distacircncia sempre estreitaacutevel mas insuprimiacutevel que separa o homem da felicidade ou mesmo separa a felicidade do homem tout court e faz com que os homens possam ser felizes mas ldquocomo os homens podem secirc-lordquo (AUBENQUE 2008 p 136)
Dessa forma a accedilatildeo humana estaacute numa aacuterea entre o melhor possiacutevel e o
bem absoluto sendo o ponto final de nossa busca o modelo inacessiacutevel ou
superlativo absoluto
Eacute dentro dessa fronteira onde falha a Providecircncia e o traacutegico mostra um
homem que age e age o melhor possiacutevel dentro de suas possibilidades que
podemos compreender os contornos que liga a contingecircncia agrave eacutetica aristoteacutelica
Portanto Pierre Aubenque (2008 p 110-112) esclarece acerca da atuaccedilatildeo
da prudecircncia no campo da contingecircncia que agir e produzir satildeo de alguma forma
se inserir na ordem do mundo para modifica-lo eacute supor que este mundo que
oferece tal latitude comporta certo jogo certa indeterminaccedilatildeo certo inacabamento
Tanto o objeto da accedilatildeo (a prudecircncia) quanto o da produccedilatildeo (a arte) pertencem pois
ao domiacutenio daquilo que pode ser diferente Ora se a disposiccedilatildeo para produzir
acompanhada de regra chama-se arte a disposiccedilatildeo para agir acompanhada de
regra chama-se prudecircncia Por isso a accedilatildeo imanente agrave praacutexis tem menos por objeto
a natureza do que suas falhas ou inacabamentos Esta indeterminaccedilatildeo eacute
34
precisamente o que permite a Aristoacuteteles classificar os processos naturais no
domiacutenio da contingecircncia
Se for pois o homem prudente aquele que estaacute apto agrave accedilatildeo moral a
decisatildeo correta e portanto ao elo que pode ligar o conhecimento geral ao
particular32 tentaremos entendecirc-lo por sua virtude a Prudecircncia Antes poreacutem para
podermos compreender tal virtude bem como na sequecircncia seu conceito de justiccedila
e de equidade devemos fazer uma passagem pela teoria geral das virtudes
32
Essa distacircncia seraacute mais bem abordada em momento oportuno ndash quando tratarmos de prudecircncia e de equidade Aubenque reporta esse assunto em sua obra O problema do ser em Aristoacuteteles (2012 p 63)
35
3 EacuteTICA DAS VIRTUDES
No quarto capiacutetulo de seus Escritos de filosofia II Henrique C de Lima Vaz
faz uma interessante abordagem acerca da eacutetica A ilustraccedilatildeo eacute dada pelo proacuteprio
tiacutetulo Do ethos agrave sociedade Poliacutetica A gecircnese do direito
A proposta do referido capiacutetulo eacute demonstrar que o direito surge com a
relaccedilatildeo eacutetica que soacute pode ser vivenciada na poacutelis ldquoO aparecimento e
desenvolvimento da sociedade poliacutetica caminham em estreita inter-relaccedilatildeo com a
formaccedilatildeo da ciecircncia do ethosrdquo (VAZ 2000 p135) Assim podemos dizer que o
estudo da eacutetica surge e se desenvolve com o surgimento e desenvolvimento da
poacutelis
Neste sentido a lei aparece revelando ter como funccedilotildees educar o indiviacuteduo
agrave vida na cidade ao mesmo tempo em que repara os conflitos onde as virtudes natildeo
satildeo observadas33
A matriz conceptual eacute representada pela ideacuteia de lei (noacutemos) que deve permitir o estabelecimento de uma proporccedilatildeo ou correspondecircncia (analogiacutea) entre a lei ou medida (meacutetron) interior que rege a praxis do indiviacuteduo e a lei da cidade que eacute propriamente o noacutemos e deve assegurar a participaccedilatildeo equumlitativa (eunomiacutea) dos indiviacuteduos no bem que eacute comum a todos e que eacute primeiramente o proacuteprio viver-em-comum De um lado a explicitaccedilatildeo da racionalidade imanente do ethos se constitui como teoria da praxis individual e assume a forma de uma doutrina da virtude (areteacute) ou da Eacutetica no sentido estrito O ethos eacute entatildeo conceptualizado fundamentalmente como haacutebito (hexis) De outro a razatildeo do ethos iraacute exprimir-se na forma de uma teoria do existir e do agir em comum e se apresentaraacute como doutrina da lei justa (politeia) O ethos eacute entatildeo conceptualizado fundamentalmente como costume A ciecircncia da politeia ou a Poliacutetica eacute assim a outra face da Eacutetica (VAZ 2000
p135)
Portanto a eacutetica pretende orientar as relaccedilotildees humanas ordenando as
accedilotildees para o bem comum
33
Voltaremos a falar sobre o assunto quando tratarmos da Justiccedila como Virtude
36
[] as virtudes natildeo encontram seu lugar na vida do indiviacuteduo mas tambeacutem na vida da cidade e que o indiviacuteduo soacute eacute de fato inteligiacutevel como um politikon zocircon
Esse uacuteltimo comentaacuterio sugere que um modo de elucidar o relacionamento entre as virtudes e a moralidade das leis eacute pensar no que consistiria em qualquer eacutepoca fundar uma comunidade para realizar um projeto comum realizar algum bem reconhecido como bem comum por todos os participantes do projeto (MACINTYRE 2001 p 256-257)
Estabelecida a relaccedilatildeo entre a eacutetica e o direito devemos agora procurar os
fundamentos da eacutetica aristoteacutelica para entatildeo verificarmos o comportamento das
virtudes da Prudecircncia da Justiccedila e da Equidade no acircmbito da justiccedila aristoteacutelica
31 Eacutetica a Nicocircmaco
Na forma que comporta o tiacutetulo deste item passaremos a tratar algumas
questotildees pertinentes ao conteuacutedo da obra Eacutetica a Nicocircmaco a fim de contextualizar
o objeto deste trabalho
Os principais escritos de Aristoacuteteles sobre eacutetica que chegaram a noacutes satildeo
Eacutetica a Nicocircmaco Eacutetica a Eudemo e a Eacutetica Maior esta uacuteltima tambeacutem conhecida
como Magna Moraacutelia Os escritos sobre eacutetica em especial a Eacutetica a Nicocircmaco e a
Eacutetica a Eudemo comportam caracteriacutesticas de notas tomadas por disciacutepulos tendo
por base os ensinamentos passados pelo Estagirita (RUSSELL 2001 p 109)
Por ser uma obra mais amplamente aceita tomaremos a Eacutetica a Nicocircmaco
como principal referecircncia aristoteacutelica para a Eacutetica das Virtudes sem contudo
ignorar algum detalhe que possa elucidar aspectos pertinentes agrave nossa pretensatildeo e
presente nas outras duas obras citadas Nesse sentido comenta Eduardo Bittar
A Ethica Nicomachea recebeu amplo tratamento devido ao interesse que desperta dos modernos comentadores da obra o mesmo natildeo sucede com as duas outras obras dedicadas agrave temaacutetica Aliaacutes a trilogia natildeo parece gerar uniformidade no corpo dos eruditos pois a recepccedilatildeo de uma (EE ou MM) ou de ambas (EE e MM) natildeo tem sido paciacutefica questionando-se natildeo soacute acerca da pertinecircncia e da originalidade destas obras mas tambeacutem acerca da cumulaccedilatildeo tautoloacutegica de escritos para o tratamento de um mesmo problema o que seria assimeacutetrico na obra aristoteacutelica onde parece ser a regra a existecircncia de uma uacutenica obra para
37
a investigaccedilatildeo de uma problemaacutetica determinada (BITTAR 2003 p992)
A Eacutetica a Nicocircmaco inicia-se traccedilando questionamentos acerca do que seja
o bem Parte-se da ideia de que o indiviacuteduo suas accedilotildees e escolhas estatildeo voltadas
a um bem Este bem eacute aquilo a que todas as coisas possuem certa tendecircncia
Assim o fim de todas as accedilotildees humanas eacute o sumo bem (EN I 1 1094a) O
conhecimento deste fim conduz agrave determinaccedilatildeo da ciecircncia cujo bem supremo eacute o
objeto
Essa ciecircncia cujo estudo caberaacute agrave Eacutetica eacute a ciecircncia mestra isto eacute a
Poliacutetica As accedilotildees por si mesmas boas e justas podem admitir uma ampla variedade
de opiniotildees e neste sentido podem ter sua existecircncia devida agraves convenccedilotildees e natildeo
naturalmente Daiacute portanto constituem objeto da poliacutetica Assim visa-se a accedilatildeo do
bem mas o seu conhecimento natildeo eacute proveitoso a todos Agravequeles que desejam e
agem conforme um princiacutepio racional isso seraacute uacutetil por outro lado natildeo teraacute utilidade
para o jovem sem experiecircncias dos fatos da vida o qual segue tatildeo somente suas
paixotildees (ENI 3 1095a)
Essa interessante passagem revela ser o objeto das deliberaccedilotildees da poacutelis
temas como o ldquobomrdquo e o ldquojustordquo Aristoacuteteles natildeo ignora o fato de que o bom e o justo
admitem uma gama de opiniotildees por isso tais temas estatildeo na pauta das
convenccedilotildees
Aristoacuteteles argumenta que o sumo bem o bem perseguido por todos natildeo
pode ser o prazer a honra ou a riqueza Sobre o prazer argumenta que natildeo pode
se identificar com o sumo bem pois o prazer e o gozo satildeo proacuteprios agrave vida levada
pelos animais inferiores34
34
Interessante nota do tradutor quando Aristoacuteteles justifica a conduta de tais pessoas por se
espelhares em pessoas de alta posiccedilatildeo como Sardanaacutepalo De acordo com a nota de nuacutemero 08 ldquoSardanaacutepalo monarca assiacuterio sem consistecircncia histoacuterica de caraacuteter miacutetico O sofista tardio Ateneu de Naucraacutetis (circa 215 AD) atriui uma espeacutecie de maacutexima a Sardanaacutepalo que eacute esthie pine paize os talla touumltouuml ouumlk axia touuml apokrotematos (esthie pine paize os talla touumltouuml ouumlk axia touuml
apokrotematos) ou seja ldquoCome bebe diverte-te visto que tudo o mais natildeo vale um estalo dos dedosrdquo lhe atribui tambeacutem um trecho de um desabafo que assim finaliza kein ekho oss efagon kai efuumlbrisa kai met eroacutetos terpn epathon ta de polla kai olbia panta leluumltaiefagon kai efuumlbrisa kai met eroacutetos terpn epathon ta de polla kai olbia panta leluumltai) quer dizer ldquoeu tenho o que comi e ainda os voluptuosos atos de ultraje e amor carnal que realizei e experimentei ao passo que minha riqueza se foirdquo (BINI 2009 p 42)
38
Ora se todo o conhecimento e todo o trabalho visam a algum bem pode-se
afirmar que o fim seraacute a felicidade (RUSSELL 2001 p127) ndash objeto final da vida
fruto de atividade conforme a mais alta de todas as formas de excelecircncia (EN X 7
1177a)
Destarte faz-se necessaacuterio buscar o bem e conhecer o que ele eacute pois a
finalidade para tudo que se faz eacute o bem A vida ativa que possui um princiacutepio
racional eacute a melhor funccedilatildeo do homem Os bens satildeo as atividades da alma e
portanto parece que a felicidade se identifica com a virtude Por conseguinte agrave
virtude cabe a atividade virtuosa Entretanto o sumo bem estaacute em ato uma vez que
pode haver um estado de acircnimo sem gerar resultado positivo
[] pois pode existir o estado de espiacuterito sem que ele produza qualquer
resultado bom como no caso de uma pessoa adormecida ou inativa por
outra razatildeo mas natildeo pode ocorrer o mesmo com a atividade conforme agrave
excelecircncia de qualquer maneira ela se manifestaraacute e bem Da mesma
forma que nos jogos oliacutempicos os coroados natildeo satildeo os homens mais
fortes e belos e sim os que competem (alguns destes seratildeo os
vitoriosos) quem age conquista e justamente as coisas boas da vida
(EN I 8 1099a)
De acordo com Aristoacuteteles a mais apraziacutevel melhor e mais nobre coisa do
mundo eacute a felicidade pois a felicidade eacute uma atividade da alma de acordo com a
virtude e natildeo sendo necessariamente esta mesma felicidade a riqueza prazer ou
honra e outros mais Constata-se assim que estes bens exteriores satildeo necessaacuterios
agrave felicidade uma vez que natildeo se podem realizar atos nobres sem os meios (EN I
8 1099b)
Questiona-se se a felicidade eacute adquirida atraveacutes da aprendizagem do
haacutebito ou se eacute uma daacutediva da Providecircncia Divina ou eacute simples produto do acaso35
Sendo a felicidade a melhor coisa do mundo entatildeo seguramente seraacute uma daacutediva
divina ainda que resulte da virtude pela aprendizagem ou adestramento Portanto
natildeo se deve confiar ao simples acaso aquilo que eacute o melhor (EN I 9 1099b)
Esse ponto sem duacutevida eacute o convite agrave accedilatildeo humana e a admissatildeo do que
denominamos fracasso da Providecircncia Uma vez que ao homem em sua condiccedilatildeo
35
Voltaremos a este ponto quando tratarmos das virtudes morais e intelectuais
39
de mortal e natildeo-Deus natildeo eacute permitido se dar ao luxo de esperar uma soluccedilatildeo vinda
dos ceacuteus Pelo contraacuterio o melhor emprego que ele pode fazer eacute agir modificando e
adaptando seus desejos e possibilidades
Sobre as virtudes afirma o Filoacutesofo que existem as virtudes intelectuais as
que resultam do ensino e necessitam de experiecircncia e tempo e as virtudes morais
as quais satildeo adquiridas atraveacutes do haacutebito e pelo exerciacutecio como neste exemplo
[] os homens se tornam construtores construindo e se tornam citaristas tocando ciacutetara da mesma forma tornamo-os justos praticando atos justos moderados agindo moderadamente e corajosos agindo corajosamente (EN II 1103b1)
Portanto eacute atraveacutes da praacutetica reiterada que pode o homem moldar seu
caraacuteter sendo o homem virtuoso resultado de uma vida guiada pela reta razatildeo
32 Partes da Alma
Como exposto eacute ldquoo bem a finalidade de todas as coisasrdquo (EN I 1 1094a1)
sendo a felicidade o bem maior a ser alcanccedilado Nesse sentido podemos afirmar
que a accedilatildeo eacute uma ldquocerta atividade da alma em conformidade com a virtude perfeitardquo
(EN I 13 1102a5)
Aristoacuteteles divide a alma em partes de acordo com as atividades inerentes a
cada uma A primeira divisatildeo comporta duas partes sendo uma irracional e outra
dotada de razatildeo
No que se refere agrave psicologia algum ensino corrente em discursos externos eacute satisfatoacuterio e pode ser aqui adotado a saber que a alma eacute bipartida uma parte sendo irracional e a outra capacitada de razatildeo (Se essas duas partes satildeo realmente distintas no sentido que o satildeo as partes do corpo ou de qualquer outro conjunto divisiacutevel ou se embora distinguiacuteveis no pensamento como duas satildeo na realidade inseparaacuteveis como os lados convexo e cocircncavo de uma curva eacute uma questatildeo que carece de importacircncia para o assunto em pauta) (EN I 13 1102a27)
40
A segunda divisatildeo refere-se agrave parte irracional da alma Tal parte comporta a
funccedilatildeo vegetativa comum a todas as coisas vivas que diz respeito agrave nutriccedilatildeo e ao
crescimento e agrave funccedilatildeo sensitiva Sobre a parte vegetativa eacute interessante notar que
natildeo obstante ser comum a todos os seres vivos sua virtude natildeo eacute caracteriacutestica
dos seres humanos Vejamos
Considera-se ademais que na parte irracional da alma haacute uma divisatildeo que parece ser comum a todas as coisas vivas possuindo natureza vegetativa Refiro-me agrave divisatildeo que produz nutriccedilatildeo e crescimento pois eacute forccediloso supormos que uma faculdade vital dessa natureza existe em todas as coisas que assimilam alimento inclusive os embriotildees sendo que a mesma faculdade estaacute presente tambeacutem no organismo totalmente desenvolvido (o que eacute mais razoaacutevel do que supor uma faculdade nutritiva distinta no uacuteltimo) A virtude dessa faculdade parece portanto ser comum a todas as coisas animadas e natildeo caracteriacutestica do ser humano pois acredita-se que essa faculdade ou parte da alma eacute mais atuante durante o sono [enquanto a bondade e a maldade se manifestam minimamente durante o sono] natildeo podendo se distinguir um homem bom de um mau (e daiacute o adaacutegio segundo o qual durante metade de suas vidas natildeo haacute diferenccedila entre o feliz e o infeliz) Isso constitui um efeito natural do fato de o sono ser uma cessaccedilatildeo das atividades da alma das quais depende sua bondade ou maldade ndash exceto pelo fato de ser possiacutevel em algum modesto grau certas impressotildees sensoriais atingirem a alma durante o sono fazendo com que os sonhos dos bons sejam melhores do que aqueles dos homens comuns (EN I 13 1102b11)
Aristoacuteteles afirma que a parte relacionada aos apetites e desejos em geral ndash
a alma sensitiva ndash comum aos animais participa de algum modo do princiacutepio
racional Portanto ainda que tal parte esteja alojada na parte irracional ela manteacutem
em certa medida relaccedilotildees com o princiacutepio racional ldquoPois aprovamos a razatildeo do
indiviacuteduo continente tanto quanto o incontinente e a parte de suas almas que eacute
racional porque os induz na senda correta e os exorta para o curso mais excelenterdquo
(EN I 13 1102b15)
Sobre essa relaccedilatildeo da parte irracional da alma com o princiacutepio racional
Aristoacuteteles afirma que ldquonatildeo se pode duvidar de que tambeacutem na alma existe um
elemento distinto do princiacutepio [racional] que a ele se opotildee e lhe resisterdquo (EN I 13
1102b20-25) Para resolver essa aparente contradiccedilatildeo Aristoacuteteles mantecircm sua
teacutecnica de citar exemplos invocando aqui o exemplo do homem continente
argumentando no sentido do paraacutegrafo supra que ldquoesse segundo elemento como
mencionamos participa do princiacutepio racional Ao menos no homem continente ele
41
acata o comando do princiacutepio e eacute incontestaacutevel que no homem moderado e
corajoso ele eacute ainda mais submisso considerando-se que todas as artes da
natureza desse [tipo de] homem se harmonizam com o princiacutepiordquo (EN I 13
1102b25-30)
Destarte parece ser o princiacutepio racional capaz em alguma medida de
acessar essa parte irracional ldquo[] esse princiacutepio racional eacute capaz de algum modo
de recorrer agrave parte irracional eacute indicado por nossa praacutetica de advertir pelo emprego
que fazemos da censura e da exortaccedilatildeo em geralrdquo (EN I 13 1102b30)
Tal parte eacute responsaacutevel pelo movimento36 essa conclusatildeo eacute desdobrada no
De Anima
Ao menos o seguinte estaacute claro desde de que tenhamos a imaginaccedilatildeo na conta de uma espeacutecie de intelecccedilatildeo haacute duas fontes do movimento local nomeadamente o desejo e o intelecto [] A conclusatildeo eacute que estes dois satildeo fontes do movimento local o intelecto e o desejo entendendo eu aqui o intelecto que calcula ou raciocina em vista de um objetivo isto eacute o intelecto praacutetico o qual difere do intelecto teoacuterico (especulativo) em funccedilatildeo do caraacuteter de seu fim Por sua vez o desejo constantemente persegue um objetivo sendo que o proacuteprio objeto do desejo torna-se princiacutepio do intelecto praacutetico e o ponto final do processo de raciocinar constitui o ponto de partida da accedilatildeo (DA III 10 433a10-20)
Dessa forma tanto a parte irracional quanto a alma como um todo eacute dupla
Sendo que sua parte vegetativa natildeo toma parte do princiacutepio racional a outra
poreacutem que compreende os apetites e o desejo em geral participa de certo modo
do princiacutepio racional sendo obediente e submissa a ele que eacute o sentido que
emprestamos ao acatamento do ldquoracionalrdquo quando falamos em dar atenccedilatildeo ao
proacuteprio pai ou aos proacuteprios amigos e natildeo aquele que atribuiacutemos ao ldquoracionalrdquo nas
matemaacuteticas (EN I 13 1102b30)
Ora a virtude tambeacutem eacute diferenciada em consonacircncia com essa divisatildeo da alma Algumas formas de virtude satildeo chamadas de virtudes intelectuais e outras de virtudes morais A sabedoria e o entendimento e a prudecircncia satildeo virtudes intelectuais a generosidade e a temperanccedila satildeo virtudes morais Ao descrevermos o caraacuteter moral de algueacutem natildeo
36
Vide o item 22 Movimento da potecircncia para o ato
42
dizemos que se trata de algueacutem saacutebio ou capaz de entendimento mas que eacute uma pessoa moderada ou soacutebria Mas um homem saacutebio tambeacutem eacute louvado por sua disposiccedilatildeo e chamamos de virtudes as disposiccedilotildees dignas de louvor (EN I 13 1103a5)
Aristoacuteteles apresenta a parte racional da alma como dotada de duas
faculdades a faculdade cientiacutefica e a faculdade calculadora (EN VI 1 1139a15)
A primeira parte eacute dita ldquocientiacuteficardquo (epistemonikoacuten) enquanto a segunda ldquocalculadorardquo (logistikoacuten) Eacute evidente que na primeira entram todas as ciecircncias teoreacuteticas seja a matemaacutetica cujos objetos satildeo necessaacuterios seja a fiacutesica e a metafiacutesica cujos objetos tecircm ao menos princiacutepios necessaacuterios mas nela entram tambeacutem as ciecircncias praacuteticas ndash cujos objetos isto eacute os bens tecircm princiacutepios como vimos ao menos ldquogeralmenterdquo necessaacuterios ndash que portanto do ponto de vista epistemoloacutegico satildeo equiparaacuteveis agravequelas que tecircm princiacutepios necessaacuterios Na segunda entram ao contraacuterio todas as atividades que tecircm por objeto realidades independentes da ldquodeliberaccedilatildeordquo humana porque ndash diz Aristoacuteteles ndash deliberar e calcular satildeo a mesma coisa e ningueacutem delibera sobre as coisas que natildeo podem ser diferentemente (BERTI 1998 p 144)
Sobre essa divisatildeo explica Giovanni Reale
E posto que sejam duas as partes ou funccedilotildees da alma racional uma a que conhece as coisas contingentes e variaacuteveis e outra que conhece as coisas necessaacuterias e imutaacuteveis eacute natural que haja uma perfeiccedilatildeo ou virtude da primeira funccedilatildeo e uma perfeiccedilatildeo ou virtude da segunda funccedilatildeo da alma racional Estas duas partes da alma racional satildeo basicamente a razatildeo praacutetica e a razatildeo teoreacutetica e as respectivas virtudes satildeo as formas perfeitas com as quais se apreende a verdade praacutetica e a teoreacutetica (REALE 1985 p 106 traduccedilatildeo nossa)
37
Conforme vimos existe uma relaccedilatildeo entre a parte racional e a parte
irracional A parte apetitiva da alma irracional tem certa subordinaccedilatildeo agrave parte
37
Y puesto que son dos las partes o funciones del alma racional una la que conoce las cosas contingentes y variables la otra la que conoce las cosas necesarias e inmutables es natural que haya una perfeccioacuten o virtud de la primera funcioacuten y una perfeccioacuten o virtud de la segunda funcioacuten del alma racional Estas dos partes del alma racional son baacutesicamente la razoacuten praacutectica y la razoacuten teoreacutetica y las respectivas ldquovirtudesrdquo son las formas perfectas con las que se aprehende la verdad praacutectica y la teoreacutetica (REALE 1985 p 106 traduccedilatildeo nossa)
43
racional De acordo com o Estagirita eacute a faculdade calculadora que controla os
desejos proacuteprios da parte apetitiva vejamos
A virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo que diz respeito agrave escolha e escolha eacute desejo deliberado conclui-se que se a escolha deve ser boa tanto a razatildeo precisa ser verdadeira quanto o desejo correto e que o desejo tem que buscar as mesmas coisas afirmadas pela razatildeo Estamos nos referindo aqui ao raciociacutenio praacutetico e ao atingimento da verdade relativamente agrave accedilatildeo no que tange ao pensamento especulativo que natildeo concerne agrave accedilatildeo ou produccedilatildeo a funccedilatildeo certa e errada consiste na consecuccedilatildeo da verdade e falsidade respectivamente O atingir da verdade eacute efetivamente a funccedilatildeo de toda parte do intelecto mas a da inteligecircncia praacutetica eacute o atingimento da verdade correspondente ao correto desejo (EN VI 2 1139a25 negrito nosso)
Compreendidas as partes da alma na forma pertinente agrave eacutetica aristoteacutelica
torna-se necessaacuterio o estudo das virtudes em conformidade com tais partes
33 Virtudes Morais
O livro II da Eacutetica a Nicocircmaco faz uma exposiccedilatildeo geral acerca das virtudes
morais Essas virtudes pertencem ao acircmbito da parte irracional da alma mais
especificamente na parte dos desejos e apetites
De acordo com o Estagirita ldquoa virtude moral ou eacutetica eacute o produto do haacutebito
[] E portanto fica evidente que nenhuma das virtudes morais eacute em noacutes
engendrada pela natureza uma vez que nenhuma propriedade natural eacute passiacutevel de
ser alterada pelo haacutebitordquo (EN II 1 1103a15)
Em seu Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Tomaacutes de Aquino esclarece que
Em contraste a virtude eacute gerada pelo costume moral A Virtude moral estaacute na parte apetitiva portanto eacute uma inclinaccedilatildeo para algo apetitivo Esta inclinaccedilatildeo ou eacute por natureza que volta para o que estaacute em conformidade ou eacute pelo haacutebito que se volta para a natureza Assim o nome Virtude moral eacute retirado do haacutebitual com poucas alteraccedilotildees Porque escrever em grego ethos com uma letra e breve designa o caraacuteter ou virtude moral Mas ythos escrito com a letra g que eacute como
44
uma larga h que significa costume Como tambeacutem entre noacutes a palavra moral as vezes significa costumes e as vezes designa o que pertence ao viacutecio ou a virtude (AQUINO 2010 p130 traduccedilatildeo nossa)
38
Aristoacuteteles compara por analogia as virtudes morais com as artes por
ambas serem adquiridas pela reiteraccedilatildeo dos atos que lhes satildeo proacuteprios Admite a
impossibilidade de prescrever com exatidatildeo tais atos contudo descreve uma
foacutermula que pretende direcionar os atos no acircmbito das virtudes Tal foacutermula consiste
em agir de acordo com a justa razatildeo39
Dessa forma o muacutesico se torna bom muacutesico executando reiteradamente
sua(s) especialidade(s) musical (ais) assim como os homens se tornam justos
praticando atos de justos e corajosos realizando atos corajosos
Nessa altura do livro II Aristoacuteteles revela uma das funccedilotildees da lei educar
Vejamos suas palavras ldquo[] legisladores tornam os cidadatildeos bons treinando-os em
haacutebitos de accedilatildeo correta o que eacute a meta de toda a legislaccedilatildeo que se falhar no seu
atingimento seraacute um fracasso [tarefa] no que se distingue a boa constituiccedilatildeo da
maacuterdquo (EN II 1 1103b1-5)
Mas no que consistiria essa boa educaccedilatildeo A resposta dada eacute gostar e natildeo
gostar das coisas apropriadas Assim eacute desenvolvida a teoria geral das virtudes ou
doutrina da mediania pois assim como acontece no que diz respeito agrave sauacutede
acontece com as virtudes ambas satildeo afetadas pelo excesso e pela deficiecircncia
Uma indicaccedilatildeo de nossas disposiccedilotildees eacute fornecida pelo prazer ou pela dor que acompanha nossas accedilotildees []
Na verdade a virtude moral concerne a prazeres e dores pois o prazer nos leva a realizar as accedilotildees vis e a dor nos leva a deixar de realizar accedilotildees nobres []
Ademais se as virtudes tecircm a ver com accedilotildees e paixotildees e toda paixatildeo e toda accedilatildeo satildeo acompanhadas por prazer e dor isso constitui uma demonstraccedilatildeo adicional de que a virtude diz respeito ao prazer e agrave dor[]
38
En cambio la virtude se genera por la costumbre moral La virtud moral estaacute en la parte apetitiva por eso supone cierta inclinacioacuten a algo apetecible Esta inclinacioacuten o es por naturaleza la cual inclina a lo que le es conforme o es por la costumbre que se vuelca hacia la naturaleza Por eso el nombre de la virtude moral estaacute tomado de la costumbre con poco cambio Porque em grego ethos escrito com a letra e breve designa el caraacutecter o virtude moral Pero ythos escrito com la g que es
como uma N larga significa costumbre como tambieacuten entre nosotros la palabra moral a veces significa costumbre y a veces designa lo que pertenece al vicio o a la virtud (AQUINO 2010 p130) 39
Conforme formulaccedilatildeo tomista recta ratio agibilium
45
Mas os seres humanos se corrompem atraveacutes de prazeres e dores a saber quer perseguindo e evitando os prazeres e dores equiacutevocos quer os perseguindo e evitando no momento equiacutevoco ou da maneira equiacutevoca ou em um dos meios equiacutevocos [] (EN II 3 1104b)
Destarte a virtude moral eacute a qualidade segundo a qual se age da ldquomelhor
formardquo40 em relaccedilatildeo aos prazeres e dores sendo o viacutecio o oposto As virtudes satildeo
definidas por Aristoacuteteles como ldquoa disposiccedilatildeo que o torna um bom ser humano e
tambeacutem o que o faraacute desempenhar sua funccedilatildeo bemrdquo (EN II 6 1106a22)
Nesse sentindo a virtude natildeo eacute nem uma paixatildeo nem uma faculdade mas
um estado de caraacuteter O que a torna distinta eacute o fato de consistir na disposiccedilatildeo de
escolher o meio-termo
331 Doutrina da Mediania
Os atos praticados pelos homens em suas muacuteltiplas relaccedilotildees eacute que os
tornam justos ou injustos Explica o Filoacutesofo41 que eacute necessaacuterio cultivar o haacutebito de
praticar atos virtuosos desde a juventude Nesse sentido
[] a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia e pelo excesso tal como vemos acontecer com o vigor e a sauacutede (temos de explicar o invisiacutevel recorrendo a evidencia do visiacutevel) os exerciacutecios excessivos ou deficientes destroem igualmente o vigor e de maneira idecircntica as bebidas e os alimentos de mais ou menos destroem a sauacutede ao passo que seu uso em proporccedilotildees adequadas produz aumenta e conserva aquele e esta (EN II 2 1104a)
Sendo a virtude mais exata do que toda e qualquer arte e por possuir como
atributo o meio-termo o excesso ou a falta podem ser-lhe destrutivos Tanto o
excesso quanto a carecircncia satildeo graves formas de erro Entretanto o meio-termo
mostra-se como uma forma digna de louvor fazendo da virtude uma mediania Mas
ressalte-se que se trata de meio termo entre dois viacutecios Contudo nem toda accedilatildeo e
40
Vide o item 2331 Trageacutedia 41
Como Aristoacuteteles era referenciado por Tomaacutes de Aquino
46
nem toda paixatildeo admitem meio termo eacute o que observa ROSS (1957 p 231)42
ldquoPorque a mediania eacute num certo sentido um extremo []rdquo (EN II 6 1107a25)
Portanto do excesso ou da falta natildeo existe meio termo
[] se a virtude como a natureza eacute mais exata e melhor do que qualquer forma de arte se concluiraacute que a virtude deteacutem a qualidade de visar a mediania Eu me refiro agrave virtude moral
43 pois esta concerne agraves
paixotildees e accedilotildees nas quais se pode dispor de excesso ou deficiecircncia ou da devida mediania Por exemplo algueacutem pode estar receoso ou confiante sentir desejo ira ou compaixatildeo e experimentar prazer e dor em geral seja em excesso ou deficientemente e em ambos os casos indevidamente ao passo que experimentar esses sentimentos na ocasiatildeo certa oportunamente em relaccedilatildeo agraves pessoas certas para o propoacutesito certo e da maneira certa corresponde a sentir a medida melhor deles a qual eacute a quantidade meacutedia sendo que a melhor medida ou quantidade eacute evidentemente a marca da virtude Analogamente pode haver excesso deficiecircncia e a devida mediania nas accedilotildees (EN II 6 1106b20)
A virtude eacute entatildeo uma disposiccedilatildeo estabelecida que leva agrave escolha de accedilotildees
e paixotildees e que consiste essencialmente na observacircncia da mediania relativa a noacutes
sendo isso determinado pela razatildeo isto eacute como o homem prudente o determina
(EN II 6 1107a) As conclusotildees do Livro II apontam o quatildeo eacute difiacutecil atingir o meio-
termo uma vez que o mesmo natildeo eacute apreendido pelo raciociacutenio e sim pela
percepccedilatildeo Ele aponta trecircs regras como orientaccedilatildeo
A primeira regra eacute evitar o extremo que mais se opotildee agrave mediania Para natildeo
abandonar o estilo o Estagirita cita o conselho de Calipso personagem de a
Odisseacuteia ldquoPilota o navio o mantendo longe do borrifo e das vagasrdquo E continua
explicando ldquoPois dos dois extremos um deles constitui erro mais grave do que o
outro Por conseguinte porquanto atingir a mediania eacute extremamente difiacutecil a
42 Aristoteles luego nos previene contra un equivoco posible senalando queentre los sentimientos y
las acciones que se pueden nombrar no todos admiten un justo medio los nombres mismos de algunos de ellos tales como la desverguenza la envidia el adulterio el robo el asesinato implican su maldad Es decir que estos nombres no se aplican a los sentimientos moralmente indiferentes que son asunto de la virtud sino a un exceso vituperable de estos sentimientos no a las acciones que se relacionan con cierta clase de objeto sino a las acciones inicuas que se relacionan con este objeto La desverguenza es una incorrecta falta de verguenza el robo es un incorrecto exceso en la adquisicion de la riqueza El justo medio se opone al exceso y al defecto y por consecuencia no hay justo medio del exceso o del defecto como no existe exceso o defecto del justo medio (ROSS 1957 p 231)
43
Nota do tradutor de nuacutemero 48 Ou seja a teoria da mediania natildeo eacute aplicaacutevel agraves virtudes intelectuais (BINI 2009 p 77)
47
segunda melhor forma de navegar como indica o proveacuterbio eacute assumir o menor dos
males e a melhor maneira de fazecirc-lo seraacute a maneira que descrevemosrdquo (EN II 9
1109a30)
A segunda regra valendo-se do exemplo do carpinteiro em seu meacutetodo para
endireitar a madeira empenada consiste em observar os erros a que estamos mais
propensos de acordo com quais prazeres e dores experimentamos De posse de tal
observaccedilatildeo devemo-nos afastar do erro costumeiro estabelecendo assim um curso
mediano (EN II 9 1109b1)
Por fim o terceiro exemplo invocando Helena personagem de a Iliacuteada de
Homero
ldquo[] temos que em tudo que estar mais do que qualquer outra coisa de guarda contra o que eacute prazeroso e contra o prazer porque quando este estaacute em julgamento natildeo somos juiacutezes imparciais O procedimento correto eacute portanto encarar o prazer como os anciotildees do povo encaravam Helena e empregar (ou repetir) o discurso que dirigiram a ela em todas as ocasiotildees pois se assim o descartarmos teremos menos probabilidade de nos extraviar (EN II 9 1109b1)
Portanto podemos chamar de accedilatildeo virtuosa aquela que eacute direcionada pela
mediania que se projeta na melhor quantidade medida ocasiatildeo oportunidade e em
relaccedilatildeo agraves pessoas certas O acircmbito da accedilatildeo comporta uma biparticcedilatildeo que deve ser
considerada em se tratando de virtude a saber accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria
34 Accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria
Embora a virtude esteja relacionada com paixotildees e accedilotildees um sentimento ou
uma accedilatildeo pode ser algo voluntaacuterio ou involuntaacuterio Louvor e censura agraves paixotildees e
accedilotildees voluntaacuterias e perdatildeo e piedade agraves involuntaacuterias (EN III 1 1109b30)
Para Aristoacuteteles voluntaacuterio eacute o ato de escolher Mas eacute preciso fazer certas
ressalvas neste sentido Ora o que se pratica sob o impulso do momento pode ser
voluntaacuterio mas natildeo escolhido pois a escolha natildeo eacute comum aos seres irracionais
Escolher envolve um princiacutepio racional bem como o pensamento O objeto da
48
escolha apresenta-se ao alcance e o mesmo eacute desejado apoacutes uma deliberaccedilatildeo
Assim escolha eacute um desejo deliberado (EN III 1112a - 1113a) O fim eacute aquilo que
se deseja jaacute o meio eacute aquilo que eacute deliberado e escolhido e assim as accedilotildees devem
concordar com as escolhas e estas devem ser voluntaacuterias Com isso afirma o
Estagirita que a virtude estaacute ao poder de escolha do homem porque o exerciacutecio da
virtude diz respeito aos meios Aquilo cujo motor estaacute no agente que possui
conhecimento das circunstacircncias particulares do ato parece ser o que eacute voluntaacuterio
Involuntaacuterio segundo Aristoacuteteles eacute o que acontece sob compulsatildeo e
ignoracircncia em que o princiacutepio motor encontra-se externo ao indiviacuteduo e para o que
em nada contribui ou influi o indiviacuteduo que age ou sente a paixatildeo (EN III 1111b)
Assim atos encontram-se no homem e devem estar em seu poder e serem
voluntaacuterios Atraveacutes do exerciacutecio de atividades sobre os objetos particulares formam-
se as disposiccedilotildees de caraacuteter
[] um homem doente natildeo ficaraacute bom desta maneira embora possa acontecer que sua doenccedila seja voluntaacuteria no sentido de ser o resultado de sua vida de dissipaccedilatildeo e de sua desobediecircncia aos meacutedicos Neste caso de iniacutecio teria dependido dele natildeo ficar doente mas natildeo agora que ele desperdiccedilou sua oportunidade da mesma forma que depois de atirar uma pedra natildeo eacute possiacutevel fazecirc-la voltar atraacutes natildeo obstante a pessoa que atirou a pedra eacute responsaacutevel por havecirc-la apanhado e lanccedilado pois a origem do ato estava nesta pessoa (EN III 5 1114a)
Constata-se vaacuterias vezes a afirmaccedilatildeo da responsabilidade do homem diante
de suas accedilotildees Eacute importante observarmos assim como Pierre Aubenque (2008) o
fez que o homem natildeo eacute responsaacutevel por sua vontade mas por suas escolhas de
acordo com Aubenque (2008 p 222) ldquoNa perspectiva de Aristoacuteteles e dos gregos
a vontade natildeo eacute responsaacutevel pelo mal Ao contraacuterio o mal eacute o responsaacutevel pela maacute
qualidade da vontade [] Pois um homem nunca quer o mal enquanto tal pode
querer mal o bem e querendo o bem em geral escolher cada vez mais o menor
bemrdquo
49
Duas pressuposiccedilotildees fundamentam como princiacutepio da responsabilidade A
realidade eacute contingente44 e depende do indiviacuteduo que age Para que uma accedilatildeo seja
considerada virtuosa devem estar presentes estas duas exigecircncias uma vez que
[] onde estaacute ao nosso alcance agir tambeacutem estaacute ano nosso alcance
natildeo agir e onde somos capazes de dizer ldquonatildeordquo tambeacutem somos capazes
de dizer ldquosimrdquo consequumlentemente se agir quando agir eacute nobilitante
estaacute ao nosso alcance natildeo agir que seraacute ignoacutebil tambeacutem estaraacute ao
nosso alcance Se estaacute ao nosso alcance entatildeo praticar atos
nobilitantes ou ignoacutebeis e se isto era o que significava ser bom ou mau
estaacute igualmente ao nosso alcance ser moralmente excelentes ou
deficientes (EN III 5 1113b)
Para Aristoacuteteles o caraacuteter eacute resultado dos atos humanos conforme
argumenta a Eacutetica a Nicocircmaco Assim agindo desta ou daquela maneira adquire-se
uma ou outra disposiccedilatildeo eacutetica A realizaccedilatildeo de coisas justas resultaraacute em bons
haacutebitos e tornaraacute o caraacuteter justo (EN II 4 1105b) Ao agir de modo intemperante
adquire o haacutebito de ceder tatildeo somente aos desejos que conduz agrave intemperanccedila O
caraacuteter eacute assim o produto dos atos de seu autor e natildeo algo advindo da educaccedilatildeo
da condiccedilatildeo social ou da natureza
Assim os viacutecios e as virtudes possuem significado moral e natildeo satildeo somente
traccedilos psicoloacutegicos adquiridos Isto se daacute uma vez que pertencem ao campo daquilo
que depende do homem Ao agir o ser humano natildeo faz algo ao qual teraacute que
responder mais tarde como tambeacutem estaacute escolhendo o que seraacute Por isso ao agir
contra a regra que conhece estaacute consentindo em se tornar cego agrave lei e em natildeo
saber mais onde estaacute o bem Neste sentido a lei pune com maior severidade o
intemperante por ele deliberar em vista de um fim mau mesmo que possua a
capacidade de deliberar para o fim beniacutefico A ignoracircncia da regra pelo adulto
acresce a culpabilidade quando eacute produto de uma vida intemperante (EN III 5
1114a)
[] somente uma pessoa totalmente insensata poderia deixar de perceber que as disposiccedilotildees de nosso caraacuteter satildeo o resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injusto ou um homem que age
44
Veja o segundo capiacutetulo Contingecircncia
50
concupiscentimente natildeo deseje ser concupiscente Mas se uma pessoa pratica accedilotildees que a torna injusta sem ser ignorante ela seraacute injusta voluntariamente Disto natildeo resulta poreacutem que se ela quiser deixaraacute de
ser injusta e passaraacute a ser justa da mesma forma (EN III 5 1114a)
Ao abordar a responsabilidade humana Aristoacuteteles destaca que as
disposiccedilotildees satildeo voluntaacuterias de modos distintos
[] as accedilotildees e disposiccedilotildees natildeo satildeo voluntaacuterias de maneira idecircntica pois somos senhores de nossas accedilotildees do principio ao fim se conhecemos os fatos particulares mas embora tenhamos o controle da fase inicial de nossas disposiccedilotildees a evoluccedilatildeo de cada estaacutegio das mesmas natildeo eacute perceptiacutevel tal como acontece nas doenccedilas mas jaacute que a maneira de agir dependia de noacutes as disposiccedilotildees morais satildeo voluntaacuterias (EN III 5 1114a30)
O ato depende do ser humano em sua inteligibilidade porque o ser humano
possui um domiacutenio sobre as consequecircncias diretas do mesmo Por outro lado o ser
humano natildeo pode antecipar todas as consequecircncias advindas indiretamente dos
haacutebitos que ele assume O caraacuteter eacute imputaacutevel ao ser humano uma vez que agindo
ele tambeacutem estaacute forjando os seus haacutebitos
Embora o ser humano seja senhor de seus atos a cada instante ele natildeo
pode modificar o seu caraacuteter quando bem quer sendo que isso equivaleria a dizer
que o ser humano natildeo tem caraacuteter Assim apoacutes certo tempo o caraacuteter parece que
ficou tatildeo marcado que se torna impossiacutevel transformaacute-lo Resulta entatildeo o problema
da perfectibilidade do caraacuteter (EN III 5 1114a)
Ora cada ser humano eacute autor de seus atos enquanto eacute agente o que se
determina a um fim Sendo a escolha intencional dirigida pelo caraacuteter pode-se
afirmar que o ser o homem eacute causa de seus atos enquanto agente que consente
Assim de fato natildeo eacute o seu caraacuteter o determinante de sua decisatildeo (EN III 4 1113a)
Para Aristoacuteteles o caraacuteter comeccedila sua formaccedilatildeo durante a infacircncia Segundo
ele o jovem age para formar o seu caraacuteter enquanto que o adulto age a partir de seu
caraacuteter tendo a intenccedilatildeo de ser feliz Entretanto como os fins visados dependem do
caraacuteter as decisotildees do adulto apresentam-se como determinadas pelo seu
condicionamento educativo o qual ocorreu na infacircncia
51
O Estagirita afirma que o caraacuteter do jovem o qual eacute formado a partir dos
haacutebitos e da educaccedilatildeo que recebe ainda natildeo eacute nem vicioso e nem virtuoso Pode-
se prefigurar a virtude futura pelo amor ao belo pela justiccedila do gosto ou a nobreza
das paixotildees Tanto a virtude quanto o viacutecio somente se desenvolvem atraveacutes dos
atos dos quais somente o adulto eacute capaz uma vez que se realizam notadamente no
acircmbito da vida ciacutevica e militar A entrada na vida adulta quando satildeo tomadas as
primeiras decisotildees eacute quando se realizam os primeiros atos verdadeiros Natildeo se
pode negar entatildeo a influecircncia do caraacuteter adquirido pela educaccedilatildeo Assim o homem
comeccedila ao entrar na vida adulta a realizar alguma coisa que propotildee e visa fins ou
seja ele se torna o verdadeiro autor de seus atos e eacute responsaacutevel por aquilo que faz
e por aquilo que eacute Nesse momento eacute pela docilidade ou pela rebeliatildeo que o jovem
adquire boas ou maacutes disposiccedilotildees diante das paixotildees Por outro lado o adulto
adquire viacutecio ou virtude ou seja um caraacuteter moral atraveacutes de suas decisotildees
Assim com o passar do tempo um haacutebito tende a se repetir isto eacute ele
amplifica o que se comeccedilou melhorando sempre mais ou dirigindo-se cada vez mais
agrave decadecircncia Para o homem se tornar bom a exigecircncia eacutetica estaria reservada
agravequeles que tivessem comeccedilado bem aos demais soacute seria possiacutevel constatar seus
viacutecios e incoerecircncias Desta forma pode-se concluir que a eacutetica aristoteacutelica estaria
reservada somente a uns eleitos bem educados e aos outros ela condenaria a um
encadeamento fatiacutedico resultado de uma maacute educaccedilatildeo e consequente praacutetica
reiterada de viacutecios
Tendo revisitado as virtudes pertinentes agrave parte irracional da alma
passaremos a estudar as virtudes pertinentes agrave parte racional da alma que satildeo as
virtudes intelectuais
35 Virtudes Intelectuais
As virtudes como vimos satildeo de dois tipos a intelectual e a moral As
virtudes intelectuais satildeo majoritariamente tanto produzidas quanto ampliadas pela
instruccedilatildeo o que por certo exige experiecircncia e tempo (EN II 1 1103a15) As
virtudes intelectuais satildeo o objeto do livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco
52
Ao abordar tais virtudes Aristoacuteteles reapresenta a foacutermula da reta razatildeo ldquoJaacute
vimos que eacute certo escolher a mediania e evitar o excesso e a deficiecircncia e que a
mediania eacute fixada pela justa razatildeordquo (EN 1138b20)
Toda via estando algueacutem de posse dessa verdade isso natildeo o tornaraacute mais saacutebio do que antes queremos dizer por exemplo que tal pessoa natildeo saberaacute que medicamentos tomar pelo mero fato de lhe terem dito para tomar tudo que a arte a medicina ou um doutor em medicina lhe indicar Consequentemente no que toca agraves qualidades da alma igualmente natildeo bastaraacute meramente estabelecer a verdade da foacutermula acima Teremos aleacutem disso que definir com exatidatildeo qual eacute a justa razatildeo e qual eacute o padratildeo que a determina (EN 1138b20)
Aristoacuteteles define as partes da alma atribuindo agrave parte racional duas
faculdades a saber a faculdade cientiacutefica e a faculdade calculadora Enquanto o
objeto da faculdade cientiacutefica eacute aquele que se ocupa em especular as coisas cujos
primeiros princiacutepios satildeo invariaacuteveis a faculdade calculadora tem por objeto as
coisas que admitem variaccedilatildeo A definiccedilatildeo de caacutelculo eacute dada por Aristoacuteteles ldquoeacute o
mesmo que deliberaccedilatildeo e esta jamais eacute exercida sobre coisas invariaacuteveis
[entendemos] que a parte calculadora constitui uma parte independente da metade
irracional da alma (EN VI 1 1139a15)
Destaca trecircs elementos existentes na alma que controlam a accedilatildeo e o
atingimento da verdade a sensaccedilatildeo o intelecto e o desejo A sensaccedilatildeo natildeo gera
accedilatildeo pois a accedilatildeo eacute proacutepria ao homem enquanto a sensaccedilatildeo estaacute presente tanto na
alma do homem quanto na alma do animal Assim os movimentos dos animais satildeo
gerados pelos estiacutemulos sensoriais enquanto os movimentos proacuteprios ao homem a
praacutexis satildeo uma accedilatildeo guiada pelo intelecto e pelo desejo45
O pensamento especulativo desenvolvido pela faculdade cientiacutefica natildeo diz
respeito agrave accedilatildeo e ou agrave produccedilatildeo Ele se ocupa em elaborar juiacutezos de verdadeiro ou
falso
45
Conforme jaacute salientamos no capiacutetulo 2 O Movimento
53
Por outro lado o raciociacutenio praacutetico46 diz respeito ao que devemos buscar e
evitar no sentido de orientar as virtudes morais Eacute a partir dele que realizamos as
escolas entendendo por escolha o desejo deliberado (BERTI 1998 p 117)
Por conseguinte a escolha pode ser qualificada como o pensamento
relacionado ao desejo ou o desejo relacionado ao pensamento e o ser humano
como gerador da accedilatildeo eacute uma uniatildeo de desejo e intelecto (EN 1139b5)
46
Sobre razatildeo praacutetica vide LACERDA (2005)
54
4 PRUDEcircNCIA
41 Conceito
Aristoacuteteles na passagem 1140b do Livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco define a
prudecircncia como uma capacidade verdadeira e racional de agir sobre as coisas que
satildeo boas ou maacutes para o homem
De acordo com Enrico Berti a phroacutenesis ldquopara Aristoacuteteles eacute uma virtude ou
melhor a mais elevada virtude da parte calculadora da alma racional isto eacute a razatildeo
praacutetica Ela com efeito eacute por ele concebida como a capacidade de deliberar bem
ou seja de calcular os meios necessaacuterios para alcanccedilar um fim bomrdquo (BERTI 1998
p 146)
Por sua vez Tomaacutes de Aquino discorre sobre a prudecircncia na parte II-II
questotildees 47 a 56 em sua obra de referecircncia a Suma Teoloacutegica Tomaacutes eacute haacutebil na
leitura aristoteacutelica da prudecircncia e pode-se encontrar em sua obra uma foacutermula
sinteacutetica do que ele entende por prudecircncia reta razatildeo aplicada ao agir47 Portanto eacute
com fundamento em questotildees de razatildeo praacutetica que Tomaacutes define a prudecircncia ldquoE
este eacute o papel da prudecircncia aplicar os princiacutepios universais agraves conclusotildees
particulares do acircmbito do agir E assim natildeo compete agrave prudecircncia indicar o fim das
virtudes morais mas somente lidar com os meios para atingir o fimrdquo (II-II 476
negrito nosso)
Pierre Aubenque (2008) sonda pormenorizadamente os vaacuterios aspectos
apresentados pelo Estagirita do que seria a prudecircncia e de sua leitura agraves obras de
Aristoacuteteles extraiacutemos
[] a definiccedilatildeo dada por Aristoacuteteles no livro VI da Eacutetica Nicomaqueacuteia apresenta um caraacuteter demasiado elaborado ou se se prefere demasiado teacutecnico para poder conhecer a mesma fortuna Ali a prudecircncia eacute definida como uma ldquodisposiccedilatildeo praacutetica acompanhada de regra verdadeira concernente ao que eacute bom ou mau para o homemrdquo Conforme ao meacutetodo familiar a Aristoacuteteles essa definiccedilatildeo eacute apresentada como resultado de um processo ao mesmo tempo indutivo e regressivo Parte-se do uso comum constata-se que eacute chamado phronimos o
homem capaz de deliberaccedilatildeo (AUBENQUE 2008 p 60-61)
47 recta ratio agibilium
55
Ainda nessa direccedilatildeo Aubenque (2008) a distingue das outras virtudes em
particular das virtudes morais
[] enquanto a virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo (praacutetica) que concerne agrave
escolha ) a prudecircncia eacute uma disposiccedilatildeo praacutetica que
concerne agrave regra da escolha Natildeo se trata da retidatildeo da accedilatildeo mas da correccedilatildeo do criteacuterio razatildeo pela qual a prudecircncia eacute uma disposiccedilatildeo praacutetica acompanhada de uma regra verdadeira (AUBENQUE 2008 p61)
Alasdair Macintyre (2001) discorre sobre a prudecircncia como sendo a virtude
intelectual sem a qual natildeo se pode exercer nenhuma virtude de caraacuteter48
A virtude principal eacute portanto phronecircsis Phronecircsis assim como socircphrosunecirc eacute originariamente um termo aristocraacutetico de louvor Caracteriza algueacutem que sabe o que lhe eacute devido que se orgulha de reivindicar seus direitos Significa de maneira mais geneacuterica algueacutem que sabe como julgar em casos especiacuteficos Phronecircsis eacute a virtude intelectual mas eacute a virtude intelectual sem a qual natildeo se pode exercer nenhuma das virtudes de caraacuteter (MACINTYRE 2001 p15)
Javier Hervada (2008) em sua obra Liccedilotildees propedecircuticas de filosofia do
direito destaca o caraacuteter praacutetico e a inclinaccedilatildeo que a prudecircncia tem para com o
direito salientando suas caracteriacutesticas claacutessicas
A prudecircncia eacute de fato uma virtude intelectual ou dianoeacutetica a virtude do correto agir moral o que estaacute relacionado com a justiccedila que tambeacutem eacute virtude moral Isso salienta que a atividade juriacutedica depende de duas virtudes que satildeo a base do ofiacutecio de jurista a justiccedila e a prudecircncia (HERVADA 2008 p 58)
48
A interpretaccedilatildeo de MacIntyre sobre a singularidade da prudecircncia parece-nos extraiacuteda tanto de Tomaacutes quando se refere a ela como matildee das virtudes (III Sent d 33 q 2 a 5 c) quanto de Aristoacuteteles que nos ensina em sua Eacutetica a Nicocircmaco ldquoA prudecircncia proporciona todas as virtudes Ela fornece os meios de produzi-lasrdquo (VI 1145a)
56
Pierre Aubenque (2008) parece desembaraccedilar de forma haacutebil o que seria a
prudecircncia despindo dos textos de Aristoacuteteles a compreensatildeo de uma das questotildees
mais iacutentimas da filosofia grega e eacute nesse sentido que ele desenvolve sua conclusatildeo
O Estagirita encontraria aiacute a velha inquietude grega diante da imprevisibilidade do futuro e a precariedade das coisas humanas Se ele foi moderno isso se deve ao fato de natildeo ter querido dominar o acaso com preces Se a accedilatildeo sobre o acaso natildeo podia ser cientificamente determinada ndash visto que ldquodo acaso natildeo haacute ciecircnciardquo ndash natildeo seria tampouco improvisada e sem princiacutepios Natildeo retornaremos agrave soluccedilatildeo que ele deu a este problema e nomeou prudecircncia (AUBENQUE 2008 p 278)
A adoccedilatildeo do traacutegico em face ao fracasso da Providecircncia ou em outras
palavras uma vez que o futuro eacute indeterminado a escolha entre dois males faz-se
procurando o menor entre eles A accedilatildeo nesse sentido compreendendo natildeo poder
alcanccedilar o bem em absoluto o faz da melhor maneira que pode
42 Prudecircncia e liberdade
De acordo com Aubenque (2008 p 149) a liberdade do homem natildeo estaacute
ligada agrave contingecircncia muito pelo contraacuterio se opotildee a ela A metaacutefora da casa
trazida no livro da Metafiacutesica retrata uma situaccedilatildeo onde o universo eacute comparado a
uma casa onde os homens livres representam os astros porque ldquolhes eacute menos liacutecito
agir ao acasordquo tendo suas accedilotildees orientadas por regras enquanto ldquoos escravos e os
animaisrdquo cujas ldquoaccedilotildees satildeo raramente ordenadas ao bem comum mas ao contraacuterio
satildeo frequentemente abandonadas ao acasordquo representam o mundo sublunar Nessa
acepccedilatildeo os escravos eacute que satildeo ldquolivresrdquo no sentido moderno do termo porque natildeo
sabem o que fazem ldquoenquanto a liberdade do homem grego e sua perfeiccedilatildeo se
medem pela maior ou menor determinaccedilatildeo de suas accedilotildeesrdquo
A prudecircncia eacute o substituto propriamente humano de uma Providecircncia que falha [] A prudecircncia eacute tambeacutem a previdecircncia que preserva os indiviacuteduos dos perigos [] ela eacute tambeacutem virtude na medida em que realiza no mundo sublunar um pouco do Bem que a divindade foi impotente para introduzir aqui [] Mas se o mundo fosse inteiramente
57
perfeito natildeo restaria nada a fazer ora eacute no fazer ou agir e natildeo na imobilidade estranhamente comum agraves plantas e a Deus que o homem
realiza sua sua excelecircncia propriamente humana Saber nos desviaria do fazer dispensando-nos de escolher (AUBENQUE 2008 p 155)
A prudecircncia seraacute a virtude dos homens voltados agrave deliberaccedilatildeo num mundo
obscuro e difiacutecil cujo inacabamento eacute um convite ao que decerto eacute preciso nomear
como sua liberdade A prudecircncia diraacute a Magna Moralia eacute uma ldquodisposiccedilatildeo para
escolher e agir concernindo ao que estaacute em nosso poder fazer e natildeo fazerrdquo
(AUBENQUE 2008 p 155)
Por isso homens como Peacutericles satildeo julgados prudentes porque possuem uma faculdade de discernir que coisas satildeo boas para mesmos e para os seres humanos E eacute isso que coincide com nosso entendimento do que seja algueacutem conhecedor da administraccedilatildeo domeacutestica ou
49 administraccedilatildeo
poliacuteticardquo (EN VI 5 1140B10)
Santo Tomaacutes em seus Comentaacuterios agrave Eacutetica a Nicocircmaco conclui acerca da
prudecircncia ldquoDe que la prudecircncia no sea ciencia haacutebito demonstrativo acerca de lo
necesario y no sea arte haacutebito productivo con razoacuten se segue que la prudencia es
un haacutebito activo con razoacuten verdadera que no versa sobre lo producio que estaacute fuera
del hombre sino sobre el bien y el mal del hombre mesmordquo (AQUINO 2010 p 363-
364)50
43 Arte e Prudecircncia
Conforme explicado na definiccedilatildeo tomista enquanto a atividade proacutepria agrave arte
eacute a produccedilatildeo a atividade proacutepria agrave prudecircncia eacute a accedilatildeo
49
εἶναι δὲ τοιούτους ἡγούμεθα τοὺς οἰκονομικοὺς καὶ τοὺς πολιτικούς Algueacutem conhecedor da
administraccedilatildeo domeacutestica e poliacutetica [(EN VI 5 1140B10) texto original disponiacutevel no site PERSEUS DIGITAL LIBRARY traduccedilatildeo nossa] 50
De que a prudecircncia natildeo eacute ciecircncia que procura mostrar o que eacute necessaacuterio e tambeacutem natildeo eacute arte o haacutebito produtivo com o emprego da razatildeo segue que a prudecircncia eacute um habito segundo o qual se age com a razatildeo verdadeira que natildeo versa sobre o produto que estaacute fora de homem mas sobre o bem e o mal do proacuteprio homem (AQUINO 2010 p 363-364)
58
Destarte para o Estagirita a arte eacute o conhecimento teacutecnico de como fazer
as coisas Enquanto a prudecircncia eacute o conhecimento de como agir para assegurar os
fins da vida do ser humano Vejamos o texto de Aristoacuteteles
Toda arte se ocupa em trazer alguma coisa agrave existecircncia e dedicar-se a uma arte significa estudar como trazer ao existir uma coisa que eacute possiacutevel existir ou natildeo a causa eficiente da qual estando no criador e natildeo na coisa criada pois a arte natildeo se ocupa com coisas que existem ou passam a existir (vecircm a ser) necessariamente ou pela natureza uma vez que essas coisas possuem suas causas eficientes em si mesmas Mas como o criar e o fazer satildeo distintos infere-se que a arte sendo concernente ao criar natildeo concerne ao fazer E num certo sentido a arte se ocupa dos mesmos objetivos da sorte como diz Agaton A sorte eacute aficionada da arte e a arte da sorte (EN VI 4 1140a10-20)
Para Enrico Berti a arte
[] concerne a objetos que podem ser diferentemente do que satildeo ou seja contingentes por isso estaacute entre as virtudes da parte ldquocalculadorardquo da razatildeo a mesma que compreende a phroacutenesis A diferenccedila entre arte e phroacutenesis repousa no fato de que esta uacuteltima ocupa-se como vimos do que pode ser ldquopraticadordquo (to praktoacuten) das accedilotildees enquanto a arte se ocupa da produccedilatildeo de objetos A distinccedilatildeo entre ldquoaccedilatildeordquo (praacutexis) e ldquoproduccedilatildeordquo (poiacuteesis) eacute dada por Aristoacuteteles quase sempre por evidente e consiste no fato de que a accedilatildeo natildeo produz nenhum objeto diferente dela mesma isto eacute termina em si que eacute o produto (BERTI 1998 p 157)
Portanto a arte eacute como dissemos uma qualidade racional concernente ao
criar de acordo com um processo verdadeiro de raciociacutenio Em oposiccedilatildeo a lacuna
da arte eacute uma qualidade racional concernente ao criar que envolve um processo
falso de raciociacutenio Ambas lidam com aquilo que admite variaccedilatildeo (EN VI 4
1140a10-20)
44 Deliberaccedilatildeo e Escolha
Ao definir a accedilatildeo voluntaacuteria Aristoacuteteles diz que a escolha pertence ao seu
gecircnero mas que no entanto nem todo ato voluntaacuterio eacute escolhido O que ele
pretende com essa argumentaccedilatildeo e evidenciar a diferenccedila entre a escolha e a
deliberaccedilatildeo
59
Nesse sentido esclarece que a deliberaccedilatildeo eacute ldquo[] empregada em mateacuterias
que embora sujeitas a regras que geralmente satildeo para o bem satildeo incertas quanto
aos seus resultados e consequecircncias ou nas quais resultados e consequecircncias satildeo
indeterminados []rdquo (EN III 3 1112b10)
Aristoacuteteles em vaacuterias passagens insiste em indicar um ponto especiacutefico
acerca da deliberaccedilatildeo Segundo ele natildeo deliberamos a respeito dos fins mas a
respeito dos meios Daiacute a analogia ldquo[No exerciacutecio de uma arte] a questatildeo num
momento eacute saber quais ferramentas usar e num outro como usaacute-las similarmente
em outras esferas temos que considerar por vezes que meios empregar e outras
vezes como exatamente determinarmos os meios que devem ser empregadordquo (EN
III 3 1112b30) Dessa forma Aristoacuteteles afirma que o ser humano eacute princiacutepio-
fundamento de suas proacuteprias accedilotildees e que eacute proacutepria agrave deliberaccedilatildeo apontar as accedilotildees
possiacuteveis de serem realizadas pelo agente sendo que todas as accedilotildees tecircm em vista
algum fim que natildeo elas mesmas
Portanto natildeo se delibera sobre o que natildeo estaacute em nosso poder A
deliberaccedilatildeo estaacute condicionada ao que podemos Por isso mais uma vez afirmamos
que a accedilatildeo virtuosa dirige-se para o melhor possiacutevel Isso eacute esclarecido por Pierre
Aubenque (2008) quando aborda a trageacutedia grega
ldquoA trageacutedia grega natildeo dizia outra coisa e antes dela a poesia de Hesiacuteodo ou Teoacutenis Por mais que Aristoacuteteles tenha restringido o traacutegico natildeo o eliminou inteiramente eacute a distacircncia que separa oi polloi de
pantej o wj epi to polu de aei o melhor possiacutevel do bem absoluto[]rdquo
(2008 p 138)
Destarte de posse da deliberaccedilatildeo cujo objeto estaacute sob nosso poder poder-
se-aacute escolher Pois a escolha eacute o desejo deliberado de coisas em nosso poder
Aristoacuteteles (1113a13) estabelece a seguinte ordem ldquoprimeiramente deliberamos em
seguida selecionamos e finalmente fixamos nosso desejo de acordo com o
resultado de nossa deliberaccedilatildeordquo
Sobre a escolha Aristoacuteteles esclarece que ela natildeo eacute o mesmo que a
vontade pois enquanto a vontade visa o fim a escolha concerne aos meios Neste
60
sentido a escolha se opotildee agrave vontade afinal ao homem eacute permitido querer o bem
mas escolher o melhor possiacutevel51
Aristoacuteteles apresenta pela primeira vez o problema da dissonacircncia possiacutevel entre o fim e os meios e enfatiza ao mesmo tempo que a qualidade da accedilatildeo eacute medida natildeo somente pela retidatildeo da intenccedilatildeo (como acreditava Platatildeo) mas tambeacutem pela conveniecircncia dos meios (AUBENQUE 2008 p 218)
Uma outra importante observaccedilatildeo eacute feita por Aubenque (2008 p 227) Ele
encontra no texto de Aristoacuteteles duas foacutermulas comuns agrave prudecircncia A primeira eacute
esta que acabamos de descrever qual seja a capacidade de escolha judiciosa dos
meios
A segunda foacutermula eacute pertinente agrave capacidade de aplicar o universal ao
particular O que vemos eacute que o prudente deve ser capaz de operar com uma com
duas ou com ambas se eacute que eacute possiacutevel estabelecer fundada diferenccedila entre elas
que natildeo seja meramente teoacuterica
Natildeo haacute portanto nenhuma ldquocontradiccedilatildeordquo entre as duas descriccedilotildees da accedilatildeo dadas por Aristoacuteteles Pois uma vez reconhecido o particular se o universal a ele se aplica necessariamente eacute preciso inicialmente reconhecer o particular o que se deduz silogisticamente eacute a propriedade do particular de ser desejaacutevel mas natildeo a existecircncia do particular Natildeo eacute difiacutecil saber que eacute preciso ser corajoso nem decidir que o que foi reconhecido como corajoso dever ser cumprido Mas onde estaacute a coragem hic et nunc Eacute na bravata ou no sangue frio Na aventura ou na abstenccedilatildeo No combate sem esperanccedila ou na fuga que garante o futuro Eacute na infinita distacircncia entre os princiacutepios demasiado gerais e a variedade inacessiacutevel ao pensamento racional A distacircncia eacute igualmente infinita entre a eficaacutecia real do meio e a realizaccedilatildeo esperada do fim Eacute este infinito que Aristoacuteteles pede que a prudecircncia preencha por mediaccedilotildees laboriosas e incertas Mas esse infinito este aoristou que
afeta uma mateacuteria sempre mais ou menos reativa agrave determinaccedilatildeo e em geral um mundo que nunca acolhe inteiramente a ordem noacutes jaacute conhecemos o seu nome a contingecircncia (AUBENQUE 2008 p 228)
Antes de encerrar este assunto parece oportuno levantarmos uma questatildeo
que segue o acima exposto Pierre Aubenque (2008) na introduccedilatildeo ao capiacutetulo
intitulado Antropologia da prudecircncia nos fornece uma importante justificativa acerca
51
Sobre a responsabilidade pela accedilatildeo vide o item 35 Accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria
61
da ordem temaacutetica proposta no presente trabalho A questatildeo que pretendemos
levantar eacute por que tomamos como ponto de partida a contingecircncia
Mostramos ateacute aqui que a prudecircncia soacute teria razatildeo de ser num mundo contingente Ora se a encaramos natildeo mais de um ponto de vista coacutesmico mas humano a contingecircncia nos aparece como abertura agrave atividade dos homens ao mesmo tempo arriscada e eficaz Sem a contingecircncia a accedilatildeo dos homens natildeo seria apenas impossiacutevel seria tambeacutem inuacutetil Eacute tal accedilatildeo ao mesmo tempo permitida e requerida pela contingecircncia em suas relaccedilotildees com a prudecircncia que guia que se trata de analisar agora
Natildeo surpreenderaacute que encontremos aqui em termos ldquosubjetivosrdquo o que tentamos extrair acima em termos ldquoobjetivosrdquo A teoria da contingecircncia e a da accedilatildeo reta satildeo apenas o direito e o avesso de uma mesma doutrina eacute a indeterminaccedilatildeo dos futuros que faz do homem princiacutepio o inacabamento do mundo eacute o nascimento do homem (AUBENQUE 2008 p 173 negrito nosso)
Assim a deliberaccedilatildeo eacute pertinente agravequilo que podemos modificar Seja qual
for o meacutetodo adotado o problema a ser enfrentado eacute o mesmo as incontaacuteveis
possibilidades a que estamos submetidos sendo a escolha o ato intriacutenseco agrave
deliberaccedilatildeo o momento oportuno para escolher o melhor possiacutevel
De acordo com Hermann (2007) a prudecircncia proposta por Aristoacuteteles na
Eacutetica a Nicocircmaco eacute mais precisamente
[] a possibilidade de articular a relaccedilatildeo entre o universal e o particular ou ainda a aplicaccedilatildeo de princiacutepios gerais em casos particulares Inserindo no mundo o comportamento eacutetico interpotildee a individualidade de um eu entretecido em formas histoacutericas de vida com um ethos comum Assim o agir moral natildeo estaacute voltado para um bem transcendente mas realizado em accedilotildees concretas (HERMANN 2007 p 366)
Assim com o escopo de compreendermos melhor passaremos a analisar a
figura do prudente
45 O prudente
A virtude da prudecircncia eacute tratada no capiacutetulo 5 do livro VI da Eacutetica a
Nicocircmaco Aristoacuteteles para explicaacute-la toma emprestado exemplo de pessoas
62
consideradas prudentes De acordo com ele eacute caracteriacutestico do homem prudente
ser capaz de bem deliberar sobre o que eacute bom e proveitoso para si mesmo natildeo de
maneira particular mas sobre o que eacute bom e vantajoso para o bem-estar em geral
Assim o homem prudente em geral eacute aquele capaz de bem deliberar de modo
geral
Poderiacuteamos afirmar que o sistema moral de Aristoacuteteles estaacute centrado em
sua maior parte no indiviacuteduo Aleacutem dos dois livros VIII e IX que satildeo dedicados agrave
amizade pouco se diz sobre ela na totalidade da eacutetica Pouco se sugere que o ser
humano deve ter um interesse caloroso e pessoal pelas outras pessoas e o
altruiacutesmo parece-nos ausente Mesmo sobre a amizade encontram-se traccedilos de um
ponto de vista deveras egoiacutesta jaacute que a mesma natildeo constitui uma benevolecircncia
mas exige certa reciprocidade
Mas tais afirmaccedilotildees natildeo parecem prosperar Sua eacutetica esta pautada no
conceito de felicidade Tal conceito soacute pode ser compreendido no acircmbito da poacutelis e
em relaccedilatildeo ao outro Ou seja para sermos felizes devemos optar por uma vida
virtuosa e para uma vida virtuosa devemos praticar as virtudes torna-se evidente
que sua teoria natildeo soacute considera mas tem como fundamento a relaccedilatildeo muacutetua entre
os homens ou melhor entre os animais poliacuteticos Vejamos a explicaccedilatildeo de Tomaacutes
de Aquino [] compete agrave razatildeo deliberar acertadamente julgar e preceituar naquilo
que se chega ao fim devido Estaacute claro que a prudecircncia visa natildeo somente o bem
particular de um soacute mas tambeacutem o bem comum da multidatildeo (AQUINO 2004 p
602) Estabelecendo uma relaccedilatildeo com a virtude moral expotildee
[] como toda virtude moral que se refere ao bem comum se chama justiccedila legal assim a prudecircncia referida ao bem comum se chama ldquopoliacuteticardquo de modo que a poliacutetica se relaciona com a justiccedila legal da mesma forma que a prudecircncia simplesmente dita agrave virtude moral (AQUINO 2004 p 602)
Portanto podemos concluir que o prudente eacute aquele que sabe o que eacute bom
para si de um modo geral e tambeacutem para sua comunidade Tambeacutem podemos
afirmar que ele bem delibera Assim na linguagem atual prudente tem um certo
sabor daquele que calcula com vistas no interesse proacuteprio (MACINTYRE 1991 p
63
80) e consequentemente da comunidade Resta-nos entatildeo examinar sobre o que o
prudente delibera
Vimos que natildeo eacute objeto de deliberaccedilatildeo as coisas das quais natildeo podemos
deliberar ou seja as coisas que estatildeo no acircmbito do necessaacuterio Conclui-se disto
que
[] a prudecircncia (sabedoria praacutetica) natildeo eacute o mesmo que conhecimento cientiacutefico como tatildeo pouco pode ser o mesmo que a arte Natildeo eacute conhecimento cientiacutefico porque assuntos relacionados agrave conduta admitem mutaccedilatildeo e natildeo pode ser arte porque o criar e o fazer satildeo genericamente diferentes posto que o criar visa um fim que eacute distinto do ato de criar enquanto no fazer o fim natildeo pode ser outro senatildeo o proacuteprio ato ou seja fazer bem eacute em si mesmo um fim Insiste-se portanto que a prudecircncia eacute uma qualidade racional de consecuccedilatildeo da verdade que concerne agrave accedilatildeo relativamente a coisas que satildeo boas e maacutes aos seres humanos (EN VI 5 1140b1-5)
Na sequecircncia Aristoacuteteles cita Peacutericles como sendo um exemplo de homem
prudente Em suas palavras ldquoPor ter a capacidade de discernir que coisas satildeo boas
para si mesmo e para os seres humanos E eacute isso que coincide com nosso
entendimento do que seja algueacutem conhecedor da administraccedilatildeo domeacutestica ou
administraccedilatildeo poliacuteticardquo (EN VI 5 1140b1-5)
Como modelo de phroacutenimos (quem possui a phroacutenesis) isto eacute de ldquosaacutebiordquo ou ldquoprudenterdquo Aristoacuteteles indica Peacutericles (1140 b 8) o grande liacuteder poliacutetico que governa Atenas certamente natildeo um filoacutesofo de profissatildeo com o qual discutir de igual para igual talvez para dissentir Aristoacuteteles indica Soacutecrates (13 1144 b 18 28) certamente natildeo um liacuteder poliacutetico nem nunca um governador de sua cidade tambeacutem daiacute resulta a diferenccedila por ele estabelecida entre a phroacutenesis e a filosofia praacutetica
Com mais forte razatildeo a phroacutenesis difere da sabedoria a primeira efetivamente ocupa-se o homem isto eacute das realidades humanas enquanto a segunda como vimos ocupa-se das realidades mais elevadas que o homem das realidades divinas Se o modelo da phroacutenesis como vimos eacute Peacutericles os modelos de sabedoria indicados por Aristoacuteteles satildeo Tales e Anaxaacutegoras alhures considerados fiacutesicos mas aqui apresentados como investigadores de realidades divinas (os princiacutepios supremos) (BERTI 1998 p 146-147)
Em contraste agrave filosofia platocircnica o Estagirita aborda a temaacutetica acerca da
sabedoria teoacuteretica e da sabedoria praacutetica A sabedoria teoreacutetica estaacute em grau de
64
superioridade em relaccedilatildeo agrave praacutetica sendo que ao menos uma parte do valor desta
uacuteltima consiste na ajuda que daacute a produccedilatildeo da primeira
Entatildeo a felicidade chega apenas ateacute onde haacute contemplaccedilatildeo e as pessoas mais capazes de exercerem a atividade contemplativa fruem mais intensamente a felicidade natildeo como um acessoacuterio da contemplaccedilatildeo mas como algo inerente a ela pois a contemplaccedilatildeo eacute preciosa por si mesma A felicidade portanto deve ser alguma forma de contemplaccedilatildeo
Mas sendo criaturas humanas necessitamos tambeacutem de bem estar exterior pois nossa natureza natildeo eacute suficiente por si mesma para o exerciacutecio da atividade contemplativa Nosso corpo deve ser tambeacutem saudaacutevel e deve receber boa alimentaccedilatildeo e outros cuidados Nem por isso poreacutem devemos pensar que as nossas pessoas necessitam de muitas e grandes coisas para ser felizes simplesmente porque natildeo podem ser sumamente felizes sem bens exteriores com efeito a auto-suficiecircncia e a accedilatildeo natildeo pressupotildeem excessos e podemos praticar accedilotildees nobilitantes sem dominar a terra e o mar porquanto mesmo com recursos moderados eacute possiacutevel agir de conformidade com excelecircncia (isto eacute bastante evidente pois se pensa que os simples cidadatildeos praticam atos meritoacuterios natildeo menos que os detentores do poder ndash na verdade os praticam ainda mais) basta dispormos de recursos moderados pois a vida das pessoas que agem de conformidade com a excelecircncia seraacute feliz (EN X 9 1179a1)
Destarte a contemplaccedilatildeo constitui o ingrediente fundamental da felicidade
para Aristoacuteteles Eacute esta a melhor atividade de que o homem eacute capaz haja vista que
eacute o exerciacutecio do melhor do indiviacuteduo sobre o melhor de todos os objetos os quais
satildeo eternos e imutaacuteveis Por consistir naquilo que o homem pode fazer com maior
continuidade acarretar prazer puro e estaacutevel ser menos dependente dos outros
homens Em suma consiste no gecircnero de vida que se deve atribuir aos deuses jaacute
que seria absurdo atribuir-lhes vida moral
Entretanto a vida contemplativa eacute extremamente elevada para o homem
Enquanto seres humanos compostos de corpo de alma irracional e de razatildeo
homem natildeo a podem vivecirc-la Hipoteticamente poderaacute vivecirc-la somente em virtude do
elemento divino presente nele Todavia o homem natildeo deve seguir aqueles que
afirmam que pelo homem ser homem deve limitar o seu pensamento agraves coisas
humanas Ora ldquona medida do possiacutevelrdquo o homem deve apoderar-se da vida eterna
vivendo a vida desta parte de si mesmo pois eacute esta que constitui a melhor e mais
verdadeira parte de si mesmo O homem que vive assim eacute feliz
65
Entatildeo a phroacutenesis no sentido jaacute plenamente definido de sabedoria praacutetica iraacute constituir-se como virtude dianoeacutetica entre as virtudes eacuteticas de um lado e a filosofia (ou sophiacutea) como haacutebito contemplativo de outro A phroacutenesis aristoteacutelica encontra assim o seu lugar no centro dessa estrutura de uma teoria da praxis como teoria praacutetica que seraacute finalmente a alternativa aristoteacutelica agrave ontologia platocircnica do Bem (VAZ 2000 p 102)
Ainda sobre o prudente podemos extrair dos valiosos ensinamentos de
Henrique C de Lima Vaz
A phroacutenesis como virtude da razatildeo reta (orthoacutes loacutegos) ou da razatildeo que iraacute estabelecer a meacutedia razoaacutevel entre os extremos para as virtudes eacuteticas eacute a primeira das virtudes dianoeacuteticas e assinala justamente a presenccedila do logos regulador e ordenador no fluxo contingente das accedilotildees singulares Ao apontar no homem saacutebio (phroacutenimos) a norma existencial e concreta da phroacutenesis Aristoacuteteles torna patente na realidade viva as ldquocoisas humanasrdquo a dialeacutetica que se estabelece entre o impliacutecito vivido do ethos e o expliacutecito vivido pensado da Eacutetica ou ciecircncia praacutetica Essa dialeacutetica vem romper exatamente com o ciacuterculo vicioso que parece opor logo nos primeiros passos do pensamento eacutetico a praacutetica e a definiccedilatildeo das virtudes e do qual nasce a aporia inicial dos chamados diaacutelogos ldquosocraacuteticosrdquo de Platatildeo a praacutetica da virtude verdadeira conteacutem o saber da sua definiccedilatildeo e a definiccedilatildeo da virtude natildeo eacute senatildeo a abstraccedilatildeo da sua praacutetica Eacute necessaacuterio praticar a virtude para poder defini-la e eacute necessaacuterio defini-la para bem pratica-la A Eacutetica como ciecircncia se propotildee justamente instaurar um tipo de reflexatildeo que permita a ruptura deste ciacuterculo entre o abstrato e o concreto estabelecendo um fundamento racional e uma medida para o agir (VAZ 2000 p 103-104 negrito nosso)
De acordo com Werner Jaeger a prudecircncia eacute a virtude que relaciona o
conhecimento mais elevado com as coisas da vida praacutetica
A phroacutenesis eacute o transformador que converte o conhecimento eterno de Deus no movimento eacutetico da vontade e o aplica agraves particularidades da praacutetica Na Eacutetica a Nicocircmaco eacute o ldquoestado de capacidade de trabalharrdquo e nenhum homem jamais atua sem ela O conhecimento filosoacutefico de Deus natildeo eacute sua condiccedilatildeo essencial
52 (JAEGER 1963 p 265 traduccedilatildeo
nossa)
52
La phroacutenesis es el transformador que convierte el conoci-miento del Dios eterno en el movimiento
eacutetico de la voluntad y lo aplica a los detalles de la praacutecticaEn la Etica Nicomaquea es el estado de capacidad de obrar y ninguacuten hombre actuacutea jamaacutes sin ella El conocimiento filosoacutefico de Dios ya no es su condicioacuten esencial (JAEGER 1963 p 275 traduccedilatildeo nossa)
66
Eacute desse hiato entre o universal e o particular que cuida o prudente Eacute ele
quem delibera sobre o momento as circunstacircncias e a maneira como a accedilatildeo deve
ser deflagrada para que possa ser considera virtuosa
Feita essa exposiccedilatildeo geral da eacutetica contingecircncia eacutetica das virtudes e
prudecircncia noacutes acreditamos ao menos em parte estar aptos a abordar um assunto
que assume papel central na filosofia grega a justiccedila
67
5 JUSTICcedilA COMO VIRTUDE
Abordar a justiccedila ndash ou qualquer outra virtude ndash no pensamento aristoteacutelico eacute
uma tarefa aacuterdua e sinuosa A coerecircncia do pensamento de Aristoacuteteles como um
todo e ao mesmo tempo a especificaccedilatildeo das particularidades de cada mateacuteria a ser
estudada daacute agrave abordagem uma dupla sensaccedilatildeo De um lado certa seguranccedila
relacionada ao fato de sua coerecircncia nos impulsionar ainda que de forma intuitiva
agraves significacircncias de seus dizeres Por outro lado a preocupaccedilatildeo com a seguranccedila
da informaccedilatildeo a ser tratada bem como com as alteraccedilotildees semacircnticas que tornam-
se significativas principalmente com a transiccedilatildeo para modernidade53
Eacute importante observarmos que o tratamento dado agrave justiccedila por Aristoacuteteles
emprega instrumentos pouco convencionais ateacute mesmo para a eacutepoca De acordo
com Eduardo C B Bittar (2005)
A siacutentese operada pelo pensador permitiu por meio de seus textos que se congregassem inuacutemeros elementos doutrinaacuterios reunidos ao longo dos seacuteculos pelos quais se espalharam os conhecimentos gregos anteriores a ele (preacute-socraacuteticos socratismo sofistas platonismo) Eacute da reuniatildeo das opiniotildees dos saacutebios da opiniatildeo do povo da experiecircncia praacutetica analisados e avaliados criticamente dentro da visatildeo de todo o problema (justiccedila da cidade justiccedila domeacutestica justiccedila senhorial) que surgiu uma concepccedilatildeo propriamente aristoteacutelica (BITTAR 2005 p 90-91)
Tal concepccedilatildeo daacute a justiccedila um caraacuteter eacutetico pois insere a mesma entre as
virtudes Dessa forma as regras gerais aplicadas agraves virtudes em particular satildeo
igualmente aplicadas agrave justiccedila Sendo a prudecircncia como mais tarde diria Tomaacutes de
Aquino genitrix virtut e auriga virtut54 parece-nos ser conceito aristoteacutelico de justiccedila
vitalmente ligado ao conceito de prudecircncia ao passo que a prudecircncia realiza suas
accedilotildees assim como a justiccedila no espaccedilo pertinente agrave accedilatildeo racional qual seja o
domiacutenio do contingente Assim esclarece Juacutelio Aguiar de Oliveira (2011)
53
Tema amplamente abordado em por MACINTYRE (2001) 54
Matildee da virtude (III Sent d 33 q 2 a 5 c) e guia da virtude (IV Sent d 17 q 2 a 2 dco) Traduccedilatildeo nossa
68
Na medida em que se trata de uma questatildeo referente agrave accedilatildeo humana sua atuaccedilatildeo se daacute no domiacutenio do contingente Eacute por isso que a virtude da justiccedila (como todas as outras virtudes eacuteticas) depende da virtude da prudecircncia Se a accedilatildeo humana se desenrolasse no domiacutenio do necessaacuterio os preceitos da lei natural poderiam ser deduzidos do primeiro princiacutepio por meio da ciecircncia (deduccedilatildeo matemaacutetica) No entanto uma vez que a accedilatildeo humana se aacute no domiacutenio do contingente a virtude necessaacuteria para a boa deliberaccedilatildeo eacute a virtude da prudecircncia (OLIVEIRA 2011 p121)
Portanto a justiccedila em sentido amplo eacute uma virtude que ldquo[] natildeo comporta
uma compreensatildeo geneacuterica e indiferente agraves qualidade especiacuteficas dos indiviacuteduos eacute
pelo contraacuterio sensiacutevel dentro das ambiccedilotildees teoacutericas de Aristoacuteteles agrave dimensatildeo
individualrdquo (BITTAR 2005 p 93) O conceito dado eacute o seguinte [] a justiccedila eacute a
virtude perfeita por ser ela a praacutetica da virtude perfeita aleacutem do que eacute perfeita num
grau especial porque seu possuidor pode praticar sua virtude dirigindo-a aos outros
e natildeo apenas sozinho [] (ENV 1 1129b30)
Nesse sentido Alexandre Travessoni Gomes em sua obra O fundamento da
validade do direito Kant e Kelsen conclui
A justiccedila soacute eacute possiacutevel numa relaccedilatildeo com o outro Aristoacuteteles chega mesmo a afirmar que dentre as virtudes somente a justiccedila eacute o bem do outro Tanto no sentido universal quanto no particular natildeo haacute justiccedila de um indiviacuteduo consigo mesmo visto que a justiccedila e a virtude que se relaciona com o nosso proacuteximo seja ele governante ou associado[]
Soacute haacute ato justo ou injusto uma vez que algueacutem o queira O que eacute justo ou injusto eacute caracterizado pela lei mas o ato justo ou injusto pressupotildee a vontade O ato injusto eacute portanto o ato voluntaacuterio em que se conhece tanto a pessoa a quem atine quanto o ato como instrumento de justiccedila ou injusticcedila (GOMES 2004 p 61)
Destarte eacute ato justo ou injusto eacute o ato possiacutevel voluntaacuterio e direcionado ao
semelhante
51 Justo e injusto
69
O livro V da Eacutetica a Nicocircmaco trata sobre a justiccedila De acordo com o estilo
de oposiccedilatildeo frequentemente empregado pelo Estagirita a noccedilatildeo de Justo eacute
contraposta agrave noccedilatildeo do injusto
Podemos sintetizar a anaacutelise inserta na passagem 1129b1-10 nos seguintes
termos O injusto eacute de duas espeacutecies injusto legal e injusto desigual
O injusto legal eacute aquele que transgride a lei em outras palavras aquele que
age orientado pela ilegalidade
O injusto desigual por sua vez eacute aquele que toma mais do que lhe eacute devido
Aristoacuteteles eacute muito preciso nesse trecho ao indicar que o injusto desigual eacute tambeacutem
aquele que toma a menor parte das coisas indesejadas Ou seja tomar tanto
demasiado as coisas boas quanto menos as coisas maacutes55
A noccedilatildeo de justo toma parte na argumentaccedilatildeo expondo por oacutebvio que o
justo igual (ou equitativo) eacute aquele que toma a parte que lhe eacute devida
O justo legal por seu turno eacute aquele que age de acordo com as leis Nesse
sentido eacute importante destacar o caraacuteter das leis no pensamento de Aristoacuteteles As
leis satildeo produzidas pelos legisladores de acordo com as virtudes portanto elas
orientam as accedilotildees reiterando o haacutebito e consequentemente educando para a
virtude Esse eacute o fim da atividade poliacutetica A felicidade de cada um em particular e da
poacutelis como um todo
Nesse sentido o termo justo eacute aplicado agrave qualquer coisa que possa produzir
e preservar a felicidade ou as partes componentes da felicidade da comunidade
poliacutetica
Aristoacuteteles destaca que existe uma relaccedilatildeo de gecircnero e espeacutecie entre o justo
legal e o justo igual sendo o justo legal o gecircnero da qual o justo igual eacute espeacutecie A
conclusatildeo eacute a seguinte Eacute possiacutevel ser injusto legal sem ser injusto igual mas natildeo eacute
possiacutevel ser injusto igual sem ser injusto legal
52 Justo universal
55
Parte-se do pressuposto de que as pessoas desejam as coisas boas
70
O justo universal eacute o gecircnero o sentido mais amplo que se pode atribuir ao
termo justo Pode-se dizer que a justiccedila universal consiste na observacircncia da lei no
que diz respeito agravequilo que eacute legiacutetimo e que vige para o bem da comunidade
Assim a define HOumlFF (2003)
A justiccedila como virtude completa denominada justiccedila universal (iustitia universalis) por Santo Tomaacutes de Aquino significa para Aristoacuteteles com vistas ao outro a virtude perfeita ainda mais reluzente do que a estrela vespertina e matutina Consiste na atitude de cumprir voluntariamente tudo o que a lei e os costumes exigem A justiccedila universal denota uma integridade abrangente Dela fazem parte eg tambeacutem as obras da coragem e da prudecircncia a que Aristoacuteteles no entanto alude modestamente apenas com interdiccedilotildees a coragem proiacutebe cometer adulteacuterio e tornar-se violento (HOumlFF 2003 p 24 e 25)
Eduardo Bittar (2005) observa que
A accedilatildeo que se vincula agrave legalidade obedece a uma norma que a todos e para o bem de todos eacute dirigida como tal essa accedilatildeo deve corresponder a um justo legal e a forma de justiccedila que lhe eacute por consequumlecircncia eacute aqui chamada justiccedila legal Aquele que observa os conteuacutedos legais pode ser chamado de justo nesse sentido O mesmo a contrariu sensu a respeito do injusto que lhe corresponde (BITTAR 2005 p 96)
Outro ponto que parece importante nas observaccedilotildees de Eduardo C Bittar eacute
acerca da funccedilatildeo do legislador de acordo com ele a produccedilatildeo normativa da poacutelis eacute
um exerciacutecio da prudecircncia Eacute o mesmo que encontramos na passagem 1141b25
Nessa passagem Aristoacuteteles divide a prudecircncia em duas espeacutecies uma relativa agraves
coisas particulares que recebe o nome de ciecircncia poliacutetica e outra relativa agraves coisas
concernentes ao Estado que nomina ciecircncia legislativa
[] pois as accedilotildees que nascem da virtude em geral satildeo fundamentalmente idecircnticas agraves accedilotildees que estatildeo de acordo com a lei uma vez que a lei prescreve a conduta que exibe as vaacuterias virtudes particulares e proiacutebe a conduta que exibe os vaacuterios viacutecios particulares
71
Igualmente as regras estabelecidas para a educaccedilatildeo particulares (EN V 2 1130b20-25)
A conclusatildeo eacute que a injusticcedila no sentido universal tange todas as coisas que
constituem a esfera da virtude ou seja que as leis prescrevem os comportamentos
virtuosos Mas eacute possiacutevel afirmar que existe algum ato que seja injusto e que natildeo
obstante esteja em conformidade com a virtude Por certo que natildeo Apenas o fato
de um ato ser injusto por si mesmo constitui uma violaccedilatildeo agrave virtude Pois ldquoNa
Justiccedila se encontra toda a Virtude somadardquo (1129b30)56 e por isso a Justiccedila eacute a
virtude perfeita
53 Justo particular
Natildeo obstante a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos ser injustos sem nos afastar
da esfera da virtude Aristoacuteteles nos apresenta uma particcedilatildeo particularizada quanto
em relaccedilatildeo ao injusto no sentido universal
Enquanto uma parte a mais abrangente (injusticcedila universal) versa sobre a
transgressatildeo das normas a outra diz respeito particularmente agrave injusticcedila que visa o
lucro e a injusticcedila movida pelo desejo A essas duas uacuteltimas injusticcedilas ele daacute o
sentido de particular
A que visa o lucro estaacute claro que diz respeito a accedilatildeo de tomar mais do que
lhe eacute devido ela se comporta de um modo bem peculiar por que natildeo viola outra
virtude que natildeo seja a proacutepria Justiccedila A que eacute movida pelo desejo eacute descrita pelo
comportamento desregrado e natildeo por tomar mais do que lhe eacute devido
Tais manifestaccedilotildees particulares satildeo divididas em duas importantes classes
para a teoria da justiccedila aristoteacutelica a saber a justiccedila distributiva e a justiccedila corretiva
531 Justiccedila distributiva
56
De acordo com nota de nuacutemero 123 do tradutor essa maacutexima eacute atribuiacuteda a Teoacutegnis
72
A justiccedila distributiva diz respeito agrave distribuiccedilatildeo proporcional ao meacuterito de
cada pessoa de bens honra riqueza e demais ativos divisiacuteveis da comunidade
Desta forma considera o justo como o igual e o injusto como o desigual admitindo a
igualdade como uma mediania o que pressupotildee ao menos dois termos
Dado o acima podemos admitir que a justiccedila pressupotildee pelo menos quatro
termos sendo que dois deles referem-se agraves medidas e ou outros dois aos indiviacuteduos
a que agraves medidas predicam
A formulaccedilatildeo de Aristoacuteteles acerca da justiccedila distributiva eacute a conjunccedilatildeo do
primeiro termo de uma proporccedilatildeo com o terceiro e do segundo com o quarto e o
justo nesse sentido eacute uma mediania entre os extremos que satildeo desproporcionais
uma vez que a proporccedilatildeo eacute uma mediania e o justo eacute o proporcional (EN V 3
1131b10)
Eacute isso que os matemaacuteticos chamam de proporccedilatildeo geomeacutetrica aquela na
qual soma do primeiro e terceiro termos apresentaraacute a mesma relaccedilatildeo com a soma
do segundo e quarto A observaccedilatildeo que segue eacute a seguinte A justiccedila distributiva
natildeo eacute uma proporccedilatildeo contiacutenua pois seus segundo e terceiro termos um indiviacuteduo e
uma porccedilatildeo natildeo constituem um termo singular (EN V 3 1131a15)
Assim o justo eacute o proporcional e o injusto o que transgride a proporccedilatildeo O
injusto pode assim incorrer no excesso ou na deficiecircncia Isso [] porque um mal
menor comparado a um maior eacute tido como um bem porquanto o menor de dois
males eacute desejaacutevel do que o maior entretanto o que eacute [efetivamente] desejaacutevel eacute
bom e quanto mais desejaacutevel for maior o bem seraacute (EN V 3 1131a20)
532 Justiccedila corretiva
A justiccedila corretiva estaacute direcionada com as relaccedilotildees de acircmbito privado Esta
ao contraacuterio da distributiva natildeo eacute guiada pela proporccedilatildeo geomeacutetrica e sim pela
aritmeacutetica Aqui a lei leva em conta apenas a natureza do dano pois considera as
73
partes iguais seu objeto eacute identificar o sujeito que causou o dano e a quem o dano
fora causado
Elas satildeo distribuiacutedas em duas categorias voluntaacuterias e involuntaacuterias As
voluntaacuterias satildeo aquelas decorrentes da accedilatildeo volitiva entre os sujeitos O exemplo
mais utilizado para ilustrar eacute o de uma relaccedilatildeo de compra e venda
Aristoacuteteles traz para a relaccedilatildeo entre os particulares o problema que contorna
a teoria da justiccedila que eacute dar a cada um o que lhe cabe Dessa forma utiliza dos
termos ldquoperdardquo e ldquoganhordquo para as operaccedilotildees de permuta voluntaacuteria ldquoNesse contexto
ter mais do que lhe cabe eacute chamado de ganho e ter menos do que se tinha no iniacutecio
eacute chamado de perda como por exemplo comprar e vender e todas as transaccedilotildees
que recebem a imunidade da leirdquo (EN V 3 1132a15)
A justiccedila corretiva no sentido involuntaacuterio diz respeito a accedilatildeo decorrente da
vontade de apenas um dos sujeitos O Estagirita divide as do tipo involuntaacuterio em
duas espeacutecies sendo elas furtivas e violentas Ele as explica dando os seguintes
exemplos As furtivas deteacutem o furto o adulteacuterio o envenenamento a prostituiccedilatildeo a
seduccedilatildeo ou incitaccedilatildeo de escravos o assassinato agrave traiccedilatildeo o falso testemunho
Quanto agraves violentas deteacutem o assalto o aprisionamento o crime de morte o roubo
mediante violecircncia a mutilaccedilatildeo a linguagem abusiva o insulto
54 Justo domeacutestico
No trecho 1134 da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles apresenta mais duas
acepccedilotildees de justiccedila A justiccedila poliacutetica e a justiccedila domeacutestica Se avanccedilarmos mais
uma vez no texto e adentrarmos na temaacutetica prudecircncia vamos encontrar duas
figuras ou uma figura com duas caracteriacutesticas semelhantes agrave essas formas de
justiccedila Estamos referindo agrave figura do prudente como bom administrador domeacutestico
e ou bom administrador poliacutetico Proacutexima a essa mesma passagem do livro VI
encontramos uma nova referecircncia que diz respeito agrave duas manifestaccedilotildees
especiacuteficas da prudecircncia uma relativa ao Estado e outra relativa aos particulares Agrave
prudecircncia que concerne agraves coisas proacuteprias ao Estado Aristoacuteteles chama de Ciecircncia
74
Legislativa Agrave prudecircncia que concerne agraves coisas proacuteprias aos particulares ele chama
de Ciecircncia Poliacutetica
A justiccedila domeacutestica eacute aquela compreendida pelas relaccedilotildees que se
estabelecem entre marido e mulher pai e filho e senhor e escravo A mulher o filho
menor e o escravo natildeo participam ativamente das decisotildees da poacutelis o que os
isentam do conceito de justo poliacutetico Apesar da mulher natildeo participar das decisotildees
da poacutelis ela participa das decisotildees do lar o que a diferencia do escravo e do filho
Contra estes uacuteltimos natildeo se pode dizer que o senhorpai possa cometer injusticcedila
uma vez que satildeo considerados como parte do senhorpai sendo que ningueacutem pode
cometer injusticcedila contra si mesmo (BITTAR 2005 p 107)
55 Justo poliacutetico
Como jaacute referimos a compreensatildeo de justiccedila necessariamente
compreende dois termos-sujeito Essa implicaccedilatildeo natildeo eacute meramente loacutegica ela eacute
consequecircncia da teleologia que permeia toda a eacutetica aristoteacutelica Entretanto o justo
poliacutetico em especial refere-se a um grupo de pessoas que possuem a qualidade de
cidadatildeo Isso se deve principalmente por ser um pressuposto da justiccedila poliacutetica a
qualidade de participante ativo dos processos deliberativos proacuteprios agrave poacutelis
Feitas essas observaccedilotildees preliminares podemos agora procurar conceituar
o que seja a justiccedila poliacutetica De acordo com Eduardo C B Bittar
O justo poliacutetico consiste na aplicaccedilatildeo da justiccedila na cidade na poacutelis ou seja trata-se de algo que pertine ao corpo ciacutevico Assim existente no meio social eacute a justiccedila eu organiza um modo de vida que tende agrave auto-suficiecircncia da vida comunitaacuteria (autaacuterkeian) vigente entre os homens que partilham de um espaccedilo comum dividindo atividades segundo a multiplicidade de aptidotildees e necessidades de cada qual formando uma comunidade que tem por fim a eudaimoniacutea e a plena realizaccedilatildeo das
potencialidades humanas (BITTAR 2005 p 106)
75
A definiccedilatildeo dada pelo Estagirita eacute a seguinte ldquoJusticcedila poliacutetica quer dizer
justiccedila entre as pessoas livres e (real ou proporcionalmente) iguais que vivem uma
vida comum com a finalidade de satisfazer suas necessidadesrdquo (1134a25) O que
parece dizer que soacute podem agir justa ou injustamente aqueles que satildeo considerados
cidadatildeos
Aristoacuteteles divide a justiccedila poliacutetica em duas partes sendo uma a justiccedila
natural e outra a justiccedila convencional Comecemos pela natural
551 Justiccedila natural
O Estagirita explica que a justiccedila natural eacute aquela que possui idecircntica
validade em todos os lugares e natildeo depende de nossa aceitaccedilatildeo ou natildeo aceitaccedilatildeo
ldquoO justo natural (diacutekaion phyacutesikon) eacute aquele eu por si proacuteprio por todas as
partes possui a mesma potecircncia (dyacutenamis) e que natildeo depende para sua existecircncia
de qualquer decisatildeo de qualquer ato de positividade de qualquer opiniatildeo ou
conceito O que eacute por natureza eacute tal qual eacute []rdquo (BITTAR 2005) Continua definindo
A justiccedila natural eacute parte da justiccedila poliacutetica que visa permitir a realizaccedilatildeo plena do ser humano inserido na estrutura social do conviacutevio Sendo naturalmente um ser poliacutetico (zwon politikoacuten) a plena realizaccedilatildeo do animal racional estaacute condicionada agrave proacutepria natureza que o engendra o eu equivale a dizer que agrave sociabilidade agrave politicidade agrave autoridade ao relacionamento agrave reciprocidade estaacute o homem intestinamente ligado Reger-se sob o signo de sua natureza para o homem significa estar sob o governo da razatildeo o que se traduz no acircmbito social como estar sob o governo das leis que satildeo ldquoa razatildeo sem paixatildeordquo (BITTAR 2005 p 109)
552 Justo legal (convencional)
Aristoacuteteles define a justiccedila legal como aquela que em primeira instacircncia
pode ser estabelecida de um modo ou outro Isso quer dizer que a justiccedila legal eacute
76
composta pelas disposiccedilotildees definidas de um ou outro modo pela vontade do
legislador
A lei possui forccedila natildeo natural mas fundada na convenccedilatildeo Tendo vaacuterias formas de se estabelecer determinado princiacutepio como conteuacutedo da lei a opccedilatildeo eacute feita pelo legislador passando assim aquilo que a priori era indiferente que fosse de tal ou de qual maneira a ser vinculado a todos os cidadatildeos que a ela se subordinam
Tambeacutem eacute a esse tipo de justiccedila que se agregam as medias legais de caraacuteter particular os decretos e as sentenccedilas As leis em sua maior
parte dirigem-se genericamente a um grupo de cidadatildeos [] Os
decretos as decisotildees emanadas do poder administrativo do governante assim como as sentenccedilas judiciais a aplicaccedilatildeo concreta da generalidade abstrata das disposiccedilotildees legais
57 estatildeo tambeacutem atreladas ao justo
legal como parte da justiccedila poliacutetica que se realiza na vida ciacutevica (BITTAR 2005 p 110)
Dessa forma e imediatamente o fundamento de validade da disposiccedilatildeo natildeo
estaacute na justiccedila natural e sim na convenccedilatildeo orientada pela vontade do legislador
Porque ldquo[] enquanto uma lei da natureza eacute imutaacutevel e tem a mesma validade em
todos os lugares como o fogo que queima na Peacutersia observa-se que as regras da
justiccedila variam (EN V 6 1134a30)
Werner Jaeger em sua Paideia exprime a importacircncia do justo legal para o
povo grego
Acontece o mesmo na Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Anota um nuacutemero muito maior de Aretai que Platatildeo mas ao falar da justiccedila distingue um duplo conceito desta virtude existe uma justiccedila em sentido estrito juriacutedico e outra num sentido mais geral que engloba a totalidade das normas morais e poliacuteticas Reconhecemos nesta uacuteltima sem dificuldade o conceito de justiccedila do antigo Estado constitucional helecircnico Aristoacuteteles invoca expressamente o verso acima referido que inclui na justiccedila todas as virtudes A lei regula pelos seus preceitos as relaccedilotildees dos cidadatildeos com os deuses do Estado com os outros concidadatildeos e com os inimigos da Paacutetria[]
Como suma da comunidade citadina a poacutelis oferece muito Em contrapartida pode exigir ao maacuteximo Impotildee-se aos indiviacuteduos de modo vigoroso e implacaacutevel e neles imprime seu caraacuteter Eacute fonte de todas normas de vida vaacutelidas para os indiviacuteduos O valor do homem e de sua conduta mede-se exclusivamente pelo bem ou pelo mal que acarretam agrave cidade (JAEGER 1995 139-142 negrito nosso)
57
Sobre a aplicaccedilatildeo da lei geral ao caso concreto vide o capiacutetulo 5 A equidade
77
Em sua Retoacuterica Aristoacuteteles define e diferencia invocando a trageacutedia
Antiacutegona
Quando falo de dois tipos de direito ou lei refiro-me agrave lei particular e agrave lei comum A primeira varia segundo cada povo sendo parcialmente escrita a lei comum eacute a lei natural visto que haacute de fato uma justiccedila e uma injusticcedila das quais todos tecircm de alguma maneira a intuiccedilatildeo e que satildeo naturalmente comuns a todos independentemente de todo Estado e de toda convenccedilatildeo reciacuteproca Eacute isso que Antiacutegona de Soacutefocles expressa com clareza ao declarar que o sepultamento de Polinices fora um ato justo a despeito da proibiccedilatildeo ela quer dizer que fora um ato justo por ser o direito natural
Natildeo eacute de hoje ou de ontem
Mas vive eternamente ningueacutem podendo indicar sua origem (Ret I 13
1373b1-15)
Vimos o justo natural como algo imutaacutevel e com regras aplicaacuteveis agraves
diversas localidades Tambeacutem revisitamos o conceito de justo legal estabelecendo
que seu criteacuterio de validade esteja na vontade uma vez que eacute fruto de convenccedilatildeo
Agora restam-nos compreender como aproximar os princiacutepios gerais as leis
abstratas das contingecircncias que imprime em noacutes a incerta condiccedilatildeo humana
78
6 A EQUIDADE
Tanto em sua Eacutetica a Nicocircmaco quanto em sua Retoacuterica Aristoacuteteles utiliza o
termo equidade58 epieikeia em dois sentidos Num sentido lato significa benignidade
e indulgecircncia No sentido stricto eacute a correccedilatildeo da lei
ldquoSer equitativo eacute mostrar indulgecircncia ante as fraquezas humanas eacute tambeacutem
levar em conta menos a lei do que o legislador considerar natildeo a letra da lei mas a
intenccedilatildeo do legisladorrdquo (Ret I 13 1374b10)
ldquoE [tambeacutem] daqui se pode concluir claramente quem eacute o homem equitativo
ele eacute algueacutem que por escolha e haacutebito faz o que eacute equitativo e que natildeo eacute inflexiacutevel
quanto aos seus direitos se contentando em receber uma porccedilatildeo menor mesmo que
tenha a lei do seu ladordquo (EN V 10 1138a)
Sobre o sentido lato Carlos Alberto Schiavo
Por outro lado alguns autores entendem que o uso que os gregos ndash Platatildeo inclusive ndash davam para a palavra epieikeia era em um sentido vulgar de benignidade e indulgecircncia ateacute mesmo porque quando querem atribuir agrave Platatildeo um espiacuterito de rigidez na aplicaccedilatildeo da lei em atenccedilatildeo agrave supremacia que o filoacutesofo assinalava do Estado sobre o indiviacuteduo em seus ensinamentos acerca do justo (SCHIAVO 2013 p 6-7 traduccedilatildeo nossa)
59
Assim o conceito de equidade pode ser compreendido como o exerciacutecio do
justo e do bem atraveacutes da benignidade e da indulgecircncia Aqui a comunidade se
beneficia uma vez que o equacircnime alcanccedile seu bem atraveacutes de deliberaccedilotildees que
natildeo pretendem prover apenas o acircmbito individual
58
Equidade eacute a traduccedilatildeo romacircnica de aequitas e natildeo do grego epieiacutekeia Para uma traduccedilatildeo direta do grego a correspondente em liacutengua portuguesa eacute epiqueia que de acordo com Aureacutelio Buarque de Holanda ldquoepiqueia SF 1 Interpretaccedilatildeo razoaacutevel de lei ou preceito 2 Fig Meio-termo moderaccedilatildeordquo Vide PINTO G A GONCcedilALVES A L GONCcedilALVEZ V D C O problema da traduccedilatildeo do termo fairness na obra de John Rawls Belo Horizonte Editora Puc Minas 2009 59
Por otra parte algunos autores entienden que el uso que los griegos -Platon inclusive- daban a la palabra epieikeia era en un sentido vulgar de benignidad e indulgencia aun cuando hay quienes atribuyen a Platon un espiacuteritu de rigidez en la aplicacioacuten de la ley en atencioacuten a la supremaciacutea que el filosofo le asignaba al Estado sobre el individuo y a su idea respecto de persuadir de como es por naturaleza lo justo (SCHIAVO p6-7 traduccedilatildeo nossa)
59
79
Sobre o sentido stricto Aristoacuteteles afirma que a natureza essencial do
equitativo eacute uma retificaccedilatildeo da lei onde a lei eacute lacunar em funccedilatildeo de sua
generalidade
Este sentido pretende conhecer o ponto de colisatildeo entre a norma em sua
generalidade e a fraacutegil condiccedilatildeo humana em sua singularidade Em outras palavras
neste sentido Aristoacuteteles nos diz que por ser a lei geral e abstrata instala-se uma
distacircncia entre ela e seu objeto uma vez que as relaccedilotildees humanas satildeo contingentes
e portanto de difiacutecil determinaccedilatildeo
Esta distacircncia dificulta a aplicaccedilatildeo da norma podendo por vezes causar
injusticcedila Para evitar a injusticcedila proveniente da aplicaccedilatildeo do justo legal eacute necessaacuterio
acomodar este uacuteltimo agrave realidade do mundo fatiacutedico essa acomodaccedilatildeo eacute a equidade
em seu sentido stricto
61 Justiccedila e equidade ambiguidade do tema
Aristoacuteteles ao tratar da equidade comeccedila fazendo uma exposiccedilatildeo sobre a
ambiguidade terminoloacutegica entre justiccedila e equidade e o justo e o equitativo De
acordo com Eduardo Bittar
[] o uso dos termos se aproxima tamanhamente que ora chamamos de eacutequa uma situaccedilatildeo de justiccedila ora de justa uma situaccedilatildeo eacutequa De fato todos reconhecem que os termos natildeo se equivalem perfeitamente e neste caso o uso de um pelo outro conduz a equiacutevocos notoacuterios de modo que sendo semelhantes poreacutem natildeo idecircnticos devem ser distinguidos naquilo que lhes peculiariza Eacute no gecircnero (eacuteteron tocirc geacutenei) que se dizem aproximados os conceitos de ambos os termos O uso ainda mais esta a indicar a relativa e frequumlente coincidecircncia dos campos semacircmticos de ambos os significantes pois verdadeiramente se satildeo diversos ou o justo natildeo eacute bom ou o eacutequo natildeo o eacute (BITTAR 2005 p163)
Os termos no Grego de Aristoacuteteles satildeo canonicamente traduzidos por equidade e equitativo satildeo epieikeia e epiekis respectivamente Ele usa-os com muita frequecircncia na Eacutetica a Nicocircmaco e muita vezes em sua Retoacuterica e sua Poliacutetica Como ele mesmo nota que usa os termos em dois sentidos De longe o significado mais comum e geral eacute de epieikeia como simplesmente excelecircncia ou bondade A Eacutetica a Nicocircmaco
80
aplica mais tipicamente neste sentido Em uma passagem Aristoacuteteles diz que do ponto de vista da Justiccedila na rectificaccedilatildeo eacute indiferente se um homem bom tem defraudado um mau homem ou vice-versa a palavra para bom eacute epieikeis contrastava com phaulos para o mal Em trecircs passagens no entanto Aristoacuteteles usa os termos para se referir a uma virtude especiacutefica comumente dito ser a virtude da equidade um tipo particular de excelecircncia Aristoacuteteles caracteriza em verdade epieikeia no sentido especiacutefico como um epanorthoma nomou hei elleipei dia de katholou uma correccedilatildeo da lei onde a lei estaacute aqueacutem por causa de sua universalidade Na Retoacuterica descreve a justa quanto ao Paraacute para gegrammenon nomon δικαιον II que a justiccedila que se encontra aleacutem a lei escrita (SHINER 1994 p 1247 traduccedilatildeo nossa)
60
Ao tratar do assunto o Estagirita distingue a justiccedila e o justo pelas
quantificadoras universal e particular Quando aponta o sentido universal estaacute
referido agrave accedilatildeo como virtuosa ou natildeo Quando aponta o sentido particular diz que
estaacute relacionada ao prazer do ganho Eis a distinccedilatildeo ldquoEntretanto enquanto a
injusticcedila no sentido particular tange agrave honra ao dinheiro ou agrave seguranccedila ou seja laacute
qual for o termo que pudeacutessemos utilizar para englobar todas essas coisas seu
motivo sendo o prazer do ganho a injusticcedila no sentido universal tange a todas as
coisas que constituem a esfera da virtuderdquo (EN V 2 1130b1) Conclui na sequecircncia
que em sentido universal o justo eacute legal e em sentido particular o justo eacute igual ou
equitativo
O exame da natureza da equidade e do equitativo se daacute em sentido anaacutelogo
pois ldquo[] (nem tudo que eacute ilegal eacute natildeo equitativo ao passo que tudo que eacute natildeo
equitativo eacute ilegal) assim tambeacutem o injusto e a injusticcedila no sentido particular satildeo o
mesmo que o injusto e a injusticcedila no sentido universal mas destes distintos e a eles
relacionados como a parte do todordquo (EN V 2 1130b10)
60 The terms in Aristotles Greek standardly translated equity and equitable are epieikeia and
epiekis respectively He uses them frequently throughout the Nicomachean Ethics and often in the Rhetoric and Politics too As he himself notes he uses the terms in two senses By far the most common meaning is the general one-epieikeia means simply excellence or goodness The Nicomachean Ethics illustrates typically this sense In one passage Aristotle says that from the point of view of justice in rectification it is indifferent whether a good man has defrauded a bad man or vice versa the word for good is epieikeis contrasted with phaulos for bad In three passages however Aristotle uses the terms to refer to a specific virtue commonly said to be the virtue of equity a particular kind of excellence Aristotle pithily characterizes epieikeia in the specific sense as an epanorthoma nomou hei elleipei dia to katholou a correction of law where law falls short because of its universality The Rhetoric describes the equitable as to para to gegrammenon nomon dikaionII that justice which lies beyond the written law (SHINER 1994 p 1247 traduccedilatildeo nossa)
81
Justo eacute um adjetivo que se predica em uma determinada pessoa comportamento ou situaccedilatildeo atraveacutes da atribuiccedilatildeo a todas essas coisas da capacidade de justiccedila abstrata E assim o justo consiste em realizar o objeto principal da justiccedila a concretizaccedilatildeo da justiccedila ao niacutevel do caso concreto tem em primeiro plano de referecircncia o justo legal e na epikeia a concretizaccedilatildeo do justo em respeito a um comportamento que eacute completamente determinado que resulte excepcional frente ao primeiro plano de referecircncia E por justiccedila entendia o Estagirita Esti de dikaiosunh men areth di hv ta autwn ekastoi exousi kai wz o nomo z adikia de di hn ta allotpia oux wz o nomoz 61 58 en tanto los romanos la definiacutean como ldquoConstans er perpetua voluntas jus summ cuique tribuendi
62rdquo
o bien Est autem a iustitia appellantum nam ut eleganter Celsus definit ius est ars boni et aequi
63 (SCHIAVO 2013 p3)
64
Quanto agrave equidade e ao equitativo Aristoacuteteles retoma o assunto no capiacutetulo
10 do Livro V da Eacutetica a Nicocircmaco De acordo com ele a equidade e o equitativo se
relacionam com a justiccedila e com o justo respectivamente pois quando examinadas
afigura-se que justiccedila e equidade natildeo satildeo nem absolutamente idecircnticas nem
genericamente diferentes
Aqui uma nova referecircncia ao duplo sentido do termo equidade65 uma de
uso popular e outra de emprego teacutecnico Vejamos
Por vezes eacute verdade que louvamos a equidade e o homem equitativo a tal ponto que chegamos a empregar a palavra equitativo como um termo
61
Ret I 9 1367a 5-7 ldquoaquilo que fazemos por nossos benfeitores por forccedila da justiccedila disto e os serviccedilos prestados em geral pois o proveito que deles se extrai natildeo se dirige ao seu agenterdquo (ARISTOacuteTELES 2011 p 83 traduccedilatildeo Edson Bini) 62
Constante e perpeacutetua vontade de cumprir os deveres (traduccedilatildeo nossa) 63
E eacute chamada assim de justiccedila pela elegante definiccedilatildeo de Celso eacute a arte do bom e do equitativo (traduccedilatildeo nossa) 64
Justo es un adjetivo que se predica en concreto de una persona de una conducta o de una situacioacuten por el que se asigna a todas estas cosas la capacidad abstracta de justicia Y en tanto lo justo consiste en realizar el bien comuacuten como objeto principal de la justicia la concrecioacuten de la justicia a nivel del caso o del conflicto tiene un primer plano de referencia en la justicia legal y en la epiqueya la concrecioacuten de lo justo respecto de una conducta completamente determinada que resulta excepcional frente aquel primer plano de referencia Y por justicia el Estagirita entendiacutea Esti de dikaiosunh men areth di hv ta autwn ekastoi exousi kai wz o nomo z adikia de di hn ta allotpia oux wz o nomoz en tanto los romanos la definiacutean como ldquoConstans er perpetua voluntas jus summ cuique
tribuendi rdquo o bien Est autem a iustitia appellantum nam ut eleganter Celsus definit ius est ars boni et aequi (SCHIAVO 2013 p3) 65
Ao que tratamos no iniacutecio deste capiacutetulo
82
de aprovaccedilatildeo de outras coisas aleacutem do que eacute justo e a empregamos como equivalente de bom querendo dizer com mais equitativo meramente uma coisa eacute melhor Em outras oportunidades todavia quando submetemos a palavra efetivamente ao crivo da razatildeo nos parece estranho que o equitativo devesse ser louvaacutevel uma vez ser ele algo distinto do justo (ENV 10 1137b1)
Aristoacuteteles instala entatildeo certa dificuldade que nos parece proveniente da
loacutegica De acordo com ele ldquoSe satildeo diferentes [um deles] o justo ou o equitativo natildeo
eacute bom se ambos satildeo bons satildeo a mesma coisardquo (ENV 10 1137b1)
A soluccedilatildeo dada eacute que a equidade natildeo eacute diferente da justiccedila como um todo
mas diferente de uma parte dela a justiccedila legal Natildeo bastasse diferente Aristoacuteteles
ainda afirma ser a equidade superior uma vez que a equidade eacute a retificaccedilatildeo da
justiccedila legal
62 Justiccedila como equidade66
Talvez uma dificuldade na compreensatildeo da equidade aristoteacutelica esteja
associada a uma terceira concepccedilatildeo vigente em sua Eacutetica Tal concepccedilatildeo foi fruto
da investigaccedilatildeo tomista e permeia a ideia de equidade se sobrepondo por vezes agraves
duas primeiras concepccedilotildees apresentadas quais sejam a lato e a stricto
A questatildeo estaacute mais uma vez na proacutepria terminologia Sem precisar das
origens etimoloacutegicas da palavra justiccedila e da palavra equidade podemos estabelecer
um padratildeo como constante em ambos os conceitos
A palavra justiccedila nos remete agrave justeza agravequilo que estaacute conformado ou em
conformidade justificado assentado ajustado etc A palavra equidade por sua
vez nos remete agrave equalizado equiparado razoado etc
Numa primeira acepccedilatildeo a palavra equumlidade significa etimologicamente retidatildeo e justiccedila Numa segunda acepccedilatildeo poreacutem corresponde a
66
Aqui natildeo fazemos referecircncia a obra Justice as fairness do filoacutesofo John Rawls Sobre este assunto vide PINTO G A GONCcedilALVES A L GONCcedilALVEZ V D C O problema da traduccedilatildeo do termo fairness na obra de John Rawls Belo Horizonte Editora Puc Minas 2009
83
moderaccedilatildeo correccedilatildeo benignidade piedade coincidindo nesse sentido com a ideacuteia aristoteacutelica de epikeya que eacute o conveniente ou o que se ajusta ou melhor norma que se adapta a uma determinada relaccedilatildeo por corresponder agrave natureza essencial desta A equumlidade complementa a justiccedila corrigindo a lei pelas caracteriacutesticas concretas e muitas vezes imprevistas que as realizadas sociais apresentam e que natildeo satildeo passiacuteveis de enquadramento nos ditamentes da justiccedila geral A lei como natildeo pode deixar de ser regula as relaccedilotildees humanas de caraacuteter juriacutedico sob um acircngulo de todo geral e abstrato A equumlidade ao contraacuterio por sua proacutepria natureza visa a corrigir a lei quando esta como anota Aristoacuteteles se demonstra incompleta para abarcar o caso especial e concreto que foge agrave aplicaccedilatildeo geneacuterica (PAUPEacuteRIO 2003 p 67)
Parece que ambos os termos remetem a uma adaptaccedilatildeo que tem por fim
tornar igual ou ao menos fazer com que a medida estabelecida conheccedila seu objeto
Neste sentido instalador da ambiguidade eacute que muitos autores fazem
referecircncia agrave equidade como sendo a proacutepria justiccedila natural ou ao menos a parte
dela que nos toca
[] o termo ldquoequumlidaderdquo natildeo eacute uniacutevoco pois natildeo se aplica a uma soacute realidade nem tampouco equiacutevoco jaacute que natildeo designa duas ou mais realidades desconexas mas sim anaacutelogo pois se refere a realidades conexas ou relacionadas entre si
De maneira que a ldquoequumlidaderdquo tem sido de certa forma entendida como um direito natural em suas vaacuterias concepccedilotildees (DINIZ 242)
Palpeacuterio destaca que ldquoNo fundo como anotam alguns autores a equumlidade eacute
o proacuteprio direito natural natildeo propriamente em seus princiacutepios mas em sua
aplicaccedilatildeo e acomodaccedilatildeo aos casos concretosrdquo67 (PALPEacuteRIO p 69)
De acordoacute com Recasegraves Siches ldquola equidad es la expresioacuten de lo justo
natural en relacioacuten com el caso concreto Es decir la equidad es lo justo pero no lo
67
Na sequencia podemos encontrar o Autor dizendo que a justiccedila se difere da equidade contudo parece-nos que o conceito de justiccedila trabalhado neste ponto eacute o conceito de justo poliacutetico natildeo alcanccedilando a latitude aparente do texto que por referir apenas agrave justiccedila poderia nos sugerir seu sentido amplo vejamos ldquoNatildeo se confundindo com a clemecircncia que segundo Secircneca eacute a moderaccedilatildeo do acircnimo no poder de castigar a equumlidade distingue-se da proacutepria justiccedila porque enquanto esta corresponde agrave aspiraccedilatildeo do legislador aquela corresponde agrave do juizrdquo (p 69)
84
justo legal tal y como se desprenderiacutea de latildes palabras de la ley sino lo
auteacutenticamente justo respecto del caso particularrdquo (SICHES 2008 p 656)
Portanto tanto a justiccedila quanto a equidade parecem procurar acomodar a
medida constante das regras gerais e abstratas agraves realidades inconstantes em suas
singularidades e concretude Tal acomodaccedilatildeo procura estabelecer ou reestabelecer
certo paracircmetro de igualdade que nos parece aspiraccedilatildeo natural agrave justiccedila grega
621 Justiccedila e igualdade
A noccedilatildeo de justiccedila estaacute intimamente relacionada com a noccedilatildeo de
igualdade68 Da mesma forma em que a injusticcedila estaacute relacionada com a noccedilatildeo de
desigualdade Nuno Manoel M dos S Coelho em seu verbete Igualdade explica
que o desenvolvimento do ldquoconceito juriacutedico-filosoacutefico de igualdade no centro da
concepccedilatildeo de justiccedila como virtude diante do outro eu reconheccedilo como igual na
medida em que natildeo posso reivindicar tudo para mim mas devo dar a cada um o
seurdquo (COELHO 2011 p 215)
A igualdade eacute elemento essencial e baacutesico ldquoA justiccedila eacute uma igualdade e a injusticcedila uma desigualdaderdquo afirmou Aristoacuteteles ldquoA essecircncia da justiccedila eacute a igualdaderdquo acrescenta S Tomaacutes E mestre em tirar das palavras o que elas encerram mostra que a noccedilatildeo de igualdade estaacute contida no proacuteprio nome dessa virtude pois das coisas que estatildeo adequadas ou igualadas dizemos comumente que estatildeo ldquoajustadasrdquo (MONTORO 2009 p 170)
68
Podemos observar que a preocupaccedilatildeo com a igualdade e a tensatildeo existente entre igualdade material e igualdade formal aparece ateacute mesmo no contexto positivista como um problema a ser resolvido Tambeacutem daqui resulta que eacute errado considerar a regra que manda tratar os que satildeo iguais de forma igual como aplicaccedilatildeo do princiacutepio de justiccedila da igualdade A uacutenica norma que pode valer como princiacutepio de justiccedila da igualdade eacute a norma segundo a qual todos os homens devem ser igualmente tratados segundo a qual nenhuma das desigualdades que efetivamente existem entre eles deve ser tomada em consideraccedilatildeo (KELSEN 1998 p 55-56) Podemos ainda encontra tal preocupaccedilatildeo no liberalismo de pensadores como John Rawls vide Uma teoria da Justiccedila (2008)
85
A justiccedila em Aristoacuteteles faz necessaacuteria referecircncia agrave igualdade em seu
sentido material Tanto o eacute que a medida enquanto referecircncia da mediania eacute o
fundamento de sua eacutetica
Sobre a justiccedila enquanto igualdade Andreacute Franco Montoro desdobra acerca
da foacutermula tomista Ratio justitiae in hoc consistit quod alteri reddatur quod ei
debentur secundum aequalitatem69
[] em sentido estrito e proacuteprio a justiccedila designa uma virtude com objeto especial Nesse sentido ldquoa essecircncia da justiccedila consiste em dar a outrem o que lhe eacute devido sendo uma igualdaderdquo (simples ou proporcional) conforme a definiccedilatildeo de S Tomaacutes Soacute eacute justiccedila propriamente dita a relaccedilatildeo que tem por objeto - dar a outrem - o que lhe eacute devido - segundo uma igualdade A essas trecircs notas correspondem agraves caracteriacutesticas essenciais da justiccedila em sentido estrito - a alteridade ou pluralidade de pessoas (alteras de alter) - o devido (debitum) - a igualdade (aequalitas) (MONTORO 2009 p 165 - 166)
Ainda de acordo com Montoro a igualdade eacute estabelecida atraveacutes de
criteacuterios quantitativos
Duas realidades satildeo idecircnticas quando tecircm a mesma essecircncia Semelhantes quando tecircm as mesmas qualidades Iguais quando tecircm a mesma quantidade ldquoidem est unum in substancia siacutemile unum in qualitate aequale vero unum in quantitaterdquo Um homem eacute ldquoidecircnticordquo apenas a si mesmo De duas pessoas que tecircm os mesmos traccedilos dizemos que satildeo ldquosemelhantesrdquo Vinte eacute igual a 10 mais 10
A igualdade eacute pois uma equivalecircncia de quantidades Na justiccedila de forma analoacutegica e adaptada agrave natureza moral das relaccedilotildees humanas e essa tambeacutem a significaccedilatildeo de igualdade
Com razatildeo observou Recaseacutens Siches na justiccedila natildeo se trata de estabelecer ldquoidentidaderdquo como seria o caso de entregar um objeto e receber o mesmo objeto Isso natildeo teria sentido Natildeo se trata tambeacutem de receber um objeto ldquosemelhanterdquo ou parecido Mas de estabelecer uma equivalecircncia ou ldquoigualdaderdquo (MONTORO 2009 p171)
69
A justa razatildeo consiste em dar ao outro o que lhe eacute devido de acordo com a igualdade (traduccedilatildeo nossa)
86
Aristoacuteteles apresenta duas foacutermulas para que a igualdade seja alcanccedilada
uma ele denominou aritmeacutetica (conhecida como igualdade simples) e a outra
geomeacutetrica (conhecida como igualdade proporcional)
Desta forma a ldquoigualdade da justiccedila pode realizar-se de duas formas
distintasrdquo
a) igualdade simples ou absoluta eacute a equivalecircncia entre dois objetos que se verifica nas relaccedilotildees de troca o comprador de um objeto que vale 1000 dever efetuar um pagamento de igual valor (1000 = 1000) b) igualdade proporcional ou relativa eacute a que se realiza na distribuiccedilatildeo dos benefiacutecios e encargos entre os membros de uma comunidade se A que contribui com 50 recebe 5 B que contribui com 80 receberaacute 8 (550 = 880) Aristoacuteteles chamou a primeira igualdade ldquoaritmeacuteticardquo e a segunda ldquogeomeacutetricardquo Em qualquer caso a justiccedila procura realizar uma igualdade nas relaccedilotildees entre os homens Ou como diz Lachance na justiccedila devemos nos igualar ao proacuteximo por seu ato (MONTORO 2009 p 172)
A justiccedila portanto soacute pode ser compreendida a partir de seu princiacutepio de
igualdade Ainda sobre este ponto Aristoacuteteles apresenta dois importantes temas que
foram objeto de estudo dos itens 531 e 532 A justiccedila distributiva e a justiccedila
corretiva Natildeo obstante jaacute terem sido objeto de nosso estudo eacute necessaacuterio
revisitarmos tais conceitos em face da noccedilatildeo de igualdade
Assim pode-se dizer que haacute duas formas de justiccedila uma particular cujo
objeto eacute o bem particular e outra geral tambeacutem chamada legal ou social cujo objeto
eacute o bem comum A justiccedila particular realiza-se de duas formas justiccedila comutativa
quando um particular daacute a outro particular o bem que lhe eacute devido e justiccedila
distributiva quando a sociedade daacute a cada particular o bem que lhe eacute devido
Receber o devido e portanto natildeo tomar maior parcela dos bens desejados
e nem a menor parcela dos bens indesejados seja na relaccedilatildeo particular ou sobre
aquilo que eacute o bem comum parece-nos o criteacuterio da igualdade
63 Equidade melhor que um tipo de justiccedila
87
De acordo com Aristoacuteteles a equidade eacute melhor que um tipo de justiccedila Ele
estaacute se referindo agrave justiccedila legal pois
[] a equidade embora superior a uma espeacutecie de justiccedila eacute ela mesma justa natildeo eacute superior agrave justiccedila ao ser genericamente distinta dela Justiccedila e equidade satildeo portanto a mesma coisa sendo ambas boas ainda que a equidade seja melhor
A origem da dificuldade eacute que ldquoa equidade embora justa natildeo eacute justiccedila legal poreacutem retificaccedilatildeo desta (EN V 10 1137b10)
O que Aristoacuteteles parece querer dizer eacute que a justiccedila em todas as suas
acepccedilotildees compreende a equidade como seu princiacutepio No entanto a acepccedilatildeo de
justiccedila legal em sua rigidez e generalidade pode objetivamente ferir o justo razatildeo
pela qual a equidade enquanto princiacutepio da justiccedila eacute melhor Afinal eacute ela que natildeo
permite que uma das espeacutecies de justiccedila aquela que eacute convencionada pelo homem
seja aplicada de forma a causar injusticcedila
Eduardo Bittar explica como Aristoacuteteles desconstitui a aparente
ambiguidade da temaacutetica
o eacutequo sendo melhor que uma forma de justo ndash e aqui se percebe nitidamente qual a estrita relaccedilatildeo entre o eacutequo e uma forma especiacutefica de justo o justo legal ndash natildeo deixa de ser justo poreacutem natildeo simplesmente pelo fato de constituir um gecircnero diferente representa algo a mais que o justo Em verdade satildeo a mesma coisa o justo e o eacutequo (tautograven aacutera diacutekaion kaigrave epieikegraves) de maneira que assim sendo o eacutequo eacute melhor e mais desejaacutevel que o justo Se eacutequo e justo se equivalem nesta medida e da forma indicada segundo o gecircnero natildeo eacute verdade que o eacutequo seja o justo segundo a lei (ou tograve katagrave noacutemon deacute) de acordo com o que estaacute consignado no corpo legislativo e foi posto pela vontade humana como vinculativo da conduta social mas sim um corretivo do justo legal (epanothoma nomiacutemou diacutekaion) (BITTAR 2005 p163)
Portanto a equidade corresponde ao justo presente na concepccedilatildeo de justiccedila
para Aristoacuteteles poreacutem eacute melhor que o justo legal por ser o princiacutepio corretor do
mesmo
64 Natureza essencial do equitativo a retificaccedilatildeo do justo legal
88
O que encontramos no capiacutetulo 10 do Livro V da Eacutetica a Nicocircmaco satildeo duas
aplicaccedilotildees da equidade enquanto retificaccedilatildeo do justo legal A primeira que
examinaremos neste item 64 diz respeito ao rigor do justo legal e a segunda que
examinaremos no item 65 diz respeito agrave existecircncia de casos que o legislador natildeo
pode prever
Em verdade estas duas aplicaccedilotildees da equidade satildeo consequecircncia de uma
soacute coisa o caraacuteter geral da norma Se de um lado o rigor da norma que exige do
equacircnime a acomodaccedilatildeo do direito se daacute pela generalidade da norma de outro a
generalidade parece insuficiente para conhecer todos os casos o que oportuna o
surgimento das lacunas
641 A metaacutefora da reacutegua de chumbo
Aristoacuteteles para explicar melhor em que consiste a equidade ilustra sua
exposiccedilatildeo fazendo uma analogia das regras do direito com as reacuteguas empregadas
por pedreiros em lavras
Os construtores da ilha de Leacutesbos utilizavam em seus afazeres um
instrumento que chamou a atenccedilatildeo do Estagirita esse instrumento nada mais era do
que uma reacutegua feita de chumbo
A funccedilatildeo de tal reacutegua era manter a medida certa ainda que seu objeto
assumisse formas diversas Assim inobstante as irregularidades na forma das
pedras poderia graccedilas agrave maleabilidade da reacutegua ajustaacute-la ao objeto apurando
assim a medida certa
Com efeito essa eacute a razatildeo porque natildeo satildeo todas as coisas determinadas pela lei pelo fato de haver alguns casos [e situaccedilotildees] em relaccedilatildeo aos quais eacute impossiacutevel estabelecer uma lei eacute necessaacuteria a existecircncia de um decreto especial pois aquilo que eacute ele proacuteprio indefinido soacute pode ser medido por um padratildeo indefinido como a reacutegua pluacutembea usada pelos construtores de Lesbos tal como essa reacutegua natildeo eacute riacutegida podendo ser flexibilizada ao formato da pedra um decreto
89
especial eacute feito para se ajustar agraves circunstacircncias do caso (EN V 10 1137b30)
Desprende-se do texto que a medida que eacute ali buscada ldquo[] se assemelha
agraves diversas situaccedilotildees que se encadeiam na etapa de aplicaccedilatildeo da norma juriacutedica
mormente a interpretaccedilatildeo do fato e do comando legal que o atinge em foco de
incidecircncia Assim se veria a norma geral como medida e a situaccedilatildeo da vida erigida
em controveacutersia como a pedrardquo (LOPES 1993 p 46)
O conceito de equidade muito bem explicado pela metaacutefora da reacutegua de
chumbo na passagem 1137b30 da Eacutetica a Nicocircmaco segundo Javier Hervada
(2008) ldquoabranda o dever e acomoda o direitordquo (HERVADA 2008 p 171) ldquoO
equumlitativo soacute se daacute quando a reacutegua consegue captar todas as microscoacutepicas
reentracircncias do cenaacuterio multiforme que lhe cabe medirrdquo (LOPES 2007 p 77)
A lei eacute considerada aqui como um sumaacuterio de decisotildees saacutebias Eacute por conseguinte apropriado complementaacute-la com novas decisotildees saacutebias tomadas na situaccedilatildeo presente e eacute tambeacutem apropriado corrigi-la nos pontos em que natildeo resume corretamente o que um bom juiz faria O bom juiacutezo mais uma vez proporciona tanto uma concretude superior como uma superior sensibilidade ou flexibilidade
A exigecircncia de flexibilidade tatildeo importante para o nosso entendimento da concepccedilatildeo aristoteacutelica natildeo cientiacutefica de escolha eacute descrita pois em uma viacutevida metaacutefora Aristoacuteteles nos diz que uma pessoa que tenta tomar todas as decisotildees recorrendo a algum princiacutepio geral antecedente sustentando como firme e inflexiacutevel para a ocasiatildeo eacute como um arquiteto que procura usar uma reacutegua reta sobre as curvas intricadas de uma coluna canelada O bom arquiteto ao contraacuterio mediraacute como fazem os construtores de Lesbos com um tira flexiacutevel de metal que ldquose inclina arqueada para ajustar-se agrave forma da rocha que eacute natildeo eacute fixardquo (1137b30-2) A boa deliberaccedilatildeo tal como essa regra se acomoda ao que encontra de maneira sensiacutevel e com respeito pela complexidade Natildeo assume que a forma da regra governa as aparecircncias permite que as aparecircncias governem a si mesmas e sejam normativas para a correccedilatildeo da regra (NUSSBAUM 2009 p 263)
Portanto a metaacutefora revela uma equidade que eacute em si uma regra mas uma
regra cuja forma eacute capaz de moldar-se agraves nuanccedilas proacuteprias da mateacuteria
642 A retificaccedilatildeo do justo legal
90
Aristoacuteteles define equidade70 como sendo a retificaccedilatildeo do justo legal A lei
natildeo por um erro da parte do legislador mas pela sua proacutepria generalidade pode
criar se aplicada de modo inflexiacutevel agrave multiplicidade dos casos singulares
especiacuteficos o efeito oposto para o qual foi originalmente estabelecida Ou seja
sendo ldquoinfinita a mateacuteria sobre a qual se deve legislar e sendo necessaacuterio apesar
de tudo estabelecer leis eacute forccediloso falar em geralrdquo (Ret I 13 1374a30) A equidade
seraacute o mecanismo que coloca nas matildeos do aacuterbitro discricionariedade suficiente para
aplicar a norma de modo a natildeo causar uma injusticcedila por meio do proacuteprio justo legal
A necessidade da aplicaccedilatildeo da equumlidade decorre do fato de que as leis dizem genericamente e para todos sem diferenciar todas as nuanccedilas que possam existir na esfera dos fenocircmenos de modo que surgem casos para os quais se aplicada a lei (noacutemos) em sua generalidade (kathoacutelou) estar-se-aacute a causar uma injusticcedila por meio do proacuteprio justo legal Exatamente para superar os problemas decorrentes da impossibilidade de haver uma legislaccedilatildeo minimamente detalhista e futurista eacute que existe o eacutequo []
Se a lei eacute neste ponto e para estes fins falha isto natildeo se deve nem ao conteuacutedo da lei em si nem ao legislador natildeo se trata de um erro legislativo mas sim de um problema oriundo da proacutepria peculiar conformaccedilatildeo das coisas como satildeo praticamente Cada caso eacute um caso e demanda uma atenccedilatildeo especial e especiacutefica absolutamente focalizada sobre os seus traccedilos e as suas caracteriacutesticas de modo que nenhuma legislaccedilatildeo poder-se-ia aplicar a esta dimensatildeo dos fatos (BITTAR 2005 p164 - 165)
A equidade aristoteacutelica eacute portanto ldquoa correccedilatildeo dos rigores da leirdquo (BITTAR
2002 p 116)
[hellip] no tocante aos erros legislativos e demais hipoacuteteses de produccedilatildeo de injusticcedila decorrente da generalidade no preceito legal aplicado agrave realidade faacutetica Aristoacuteteles aponta a utilizaccedilatildeo do recurso da epieacuteikeia ou seja da equidade forma de modelagem dos princiacutepios legais para serem aplicados a sujeitos concretos frente agrave problemaacutetica fenomecircnica a ser resolvida pelo juiz (dikasteacutes) (BITTAR 2003 p 1056-
1057)
70
No original ἐπιείκεια (epieiacutekeia)
91
Aristoacuteteles percebe como o perceberia Hans Kelsen dois milecircnios depois71
que na passagem de uma norma mais geral ndash a lei por exemplo ndash para uma norma
mais concreta ndash como a sentenccedila judicial ndash sempre restaraacute uma margem de escolha
que caberaacute agrave prudecircncia72 do inteacuterprete-aplicador preencher
Na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles problematiza a relaccedilatildeo entre a norma e o
caso concreto explicando que ldquoA origem da dificuldade eacute que a equidade embora
justa natildeo eacute justiccedila legal poreacutem a retificaccedilatildeo desta A razatildeo para isso eacute que a lei eacute
sempre geral entretanto haacute casos que natildeo satildeo abrangidos pelo texto geral da leirdquo
(EN V 1137b12) Nesse sentido a equidade seria a virtude destinada a solucionar
os casos em que a lei natildeo alcanccedila a concretizaccedilatildeo da justiccedila
Aristoacuteteles eacute o primeiro doutrinador das ciecircncias juriacutedicas Ele diz muito antes de Larenz ldquoCada regulamento legal ou do direito estaacute para o caso isolado na mesma relaccedilatildeo que o geral estaacute para o indiviacuteduordquo (1135a)
O que aqui eacute descoberto e expressado com autoridade loacutegica natildeo eacute menos que o princiacutepio fundamental da subsunccedilatildeo juriacutedica a imputaccedilatildeo do fato agrave lei escrita (ldquoao conceito legal do direitordquo 1135a)
Aristoacuteteles nos fornece aqui muito antes de Esser e Wiacker uma teoria das claacuteusulas gerais sejam elas inseridas de fora na lei como o Princiacutepio da Relaccedilatildeo (uso de medidas adequadas em relaccedilatildeo ao desejado fim) no Art 12 GG (Constituiccedilatildeo Alematilde) ou estejam elas jaacute consolidadas na lei como o Princiacutepio da boa-feacuterdquo no sect 242 BGB (pois sua positivaccedilatildeo eacute supeacuterflua o conteuacutedo normativo de tal paraacutegrafo eacute tatildeo pequeno o quatildeo grande eacute seu caraacuteter de advertecircncia) O princiacutepio geral vaacutelido da equumlidade []
Se tiveacutessemos percebido em tempo esta vaacutelida opiniatildeo de Aristoacuteteles entatildeo natildeo teria surgido de forma alguma nos nossos anos 60 a ilusatildeo de que toda aplicaccedilatildeo da lei pode ser formalizada e com isso computadorizada pois o computador pode ateacute realizar algo nas futuras ldquogeraccedilotildees inteligentesrdquo ou muito inteligentes mas nunca epieikeia Um pensador loacutegico eacute soacute entatildeo loacutegico quando conhece e reconhece os limites da loacutegica (ADOMEIT 2000 p138 - 140)
A liccedilatildeo de Teacutercio Sampaio Ferraz Jr evidencia a equidade enquanto
princiacutepio que estabelece razoaacutevel elo entre a norma e agrave especificidade da situaccedilatildeo
71
Veja-se a esse respeito o capiacutetulo VIII da Teoria pura do direito kelseniana 72
E eacute neste ponto que os neoaristoteacutelicos divergem de Kelsen uma vez que para este natildeo eacute necessariamente a prudecircncia mas juiacutezos poliacuteticos de conveniecircncia ndash fundados no poder e natildeo na razatildeo ndash que orientaratildeo a escolha do julgador Para uma anaacutelise mais aprofundada e criacutetica desse ponto veja-se Ferraz Juacutenior 1994 p 260-346 (Capiacutetulos 5 e 6)
92
Por uacuteltimo no conjunto da razatildeo juriacutedica costuma-se mencionar a equumlidade Aristoacuteteles eacute responsaacutevel por sua definiccedilatildeo como a justiccedila do caso concreto A soluccedilatildeo de litiacutegios por equumlidade eacute a que se obteacutem pela consideraccedilatildeo harmocircnica das circunstacircncias concretas do que pode resultar um ajuste da norma agrave especificidade da situaccedilatildeo a fim de que a soluccedilatildeo seja justa Pois como diziam os romanos summum jus summa injuria
73 Natildeo se trata de um princiacutepio que se oponha agrave justiccedila mas que a
completa a torna plena
Da mesma forma que os princiacutepios gerais a equumlidade tem no sistema dinacircmico funccedilatildeo metalinguumliacutestica Ela responde pela estrutura de concretizaccedilatildeo do direito Natildeo eacute fonte pois no mesmo sentido das demais (FERRAZ JUNIOR 2011 p 213)
Ferraz Junior em seu capiacutetulo sobre a Dogmaacutetica Hermenecircutica destaca ao
menos quatro desdobramentos possiacuteveis na integraccedilatildeo por equidade Satildeo eles
expandir uma obrigaccedilatildeo limitar o exerciacutecio de direitos criar regras para situaccedilotildees
que se alteram ou que natildeo foram previstas vejamos
[] Fala-se aqui no sentimento do justo concreto em harmonia com as circunstacircncias e adequado ao caso O juiacutezo por equumlidade na falta de norma positiva eacute o recurso a uma espeacutecie de intuiccedilatildeo no concreto das exigecircncias da justiccedila enquanto igualdade proporcional O inteacuterprete deve poreacutem sempre buscar uma racionalizaccedilatildeo dessa intuiccedilatildeo mediante uma analise das consideraccedilotildees praacuteticas dos efeitos presumiacuteveis das soluccedilotildees encontradas o que exige juiacutezos empiacutericos e de valor os quais aparecem fundidos na expressatildeo juiacutezo por equumlidade A equumlidade pode integrar o direito de diferentes modos Por exemplo por seu intermeacutedio podemos expandir uma obrigaccedilatildeo criando deveres adicionais para aleacutem dos que constam de um contrato ou decorrem expressamente de lei podemos ainda limitar o exerciacutecio de direitos para prevenir abusos podemos tambeacutem criar regras para situaccedilotildees que se alteram desde seu regulamento ou que nele natildeo foram previstas Em todo caso o juiacutezo equumlitativo de um lado apesar das consideraccedilotildees dos efeitos presumiacuteveis eacute sempre um juiacutezo jungido ao particular sem preocupaccedilotildees generalizantes Natildeo gera assim uma compulsatildeo para que outros casos semelhantes sejam interpretados e decididos do mesmo modo Por isso natildeo eacute propriamente fonte do direito mas meio de integraccedilatildeo De outro lado poreacutem pela consideraccedilatildeo dos efeitos presumiacuteveis tambeacutem natildeo aparece como arbitraacuterio mas sim representando o sentido que seja juriacutedico no contexto social em que se aplica (FERRAZ JUNIOR 2011 p 281 negrito nosso)
Interessante notar que Ferraz Junior aponta que essa proximidade do juiacutezo
ao particular natildeo eacute uma arbitrariedade mas uma representaccedilatildeo juriacutedica no contexto
em que determinada norma incide
73
Brocardo de Ciacutecero que quer dizer Supremo direito suprema injusticcedila (De Officiis I 10 33)
93
Enquanto a justiccedila eacute de ordem geral e natildeo se preocupa senatildeo com princiacutepios a equumlidade contrariamente perquire as circunstacircncias peculiares ao caso e submete a regra abstrata agraves razotildees derivadas da espeacutecie Em certos casos impotildee-se abandonar a letra da lei para acompanhar os ditames da razatildeo e da justiccedila Nisso se cifra a equumlidade que tempera e abranda o rigor legal Natildeo foi agrave-toa que se referiu Ciacutecero baseado em Terecircncio ao brocardo summum jus summa injuria que daacute ecircnfase agrave ideacuteia de que o rigor da aplicaccedilatildeo inflexiacutevel da lei pode muitas vezes quando natildeo abrandado pela equumlidade acarretar dureza demasiada ou mesmo extrema injusticcedila (PAUPEacuteRIO 2003 p68)
Cabe agora examinarmos a equidade como recurso dado por Aristoacuteteles
para os casos natildeo abarcados pela legislaccedilatildeo
65 Equidade e lacuna
A compreensatildeo do sentido stricto de equidade ou seja enquanto correccedilatildeo
do justo legal tem por pressuposto a generalidade da norma Natildeo obstante tal
generalidade existem casos que natildeo satildeo abrangidos pela lei Surge assim a
dificuldade cuja equidade mais uma vez eacute a soluccedilatildeo dada pelo Estagirita De acordo
com ele
A razatildeo para isso eacute que a lei eacute sempre geral entretanto haacute casos que natildeo satildeo abrangidos pelo texto geral da lei [ou por esta ou aquela regra legal geral] Em mateacuterias portanto nas quais embora seja necessaacuterio discursar em termos gerais natildeo eacute possiacutevel fazecirc-lo corretamente a lei toma em consideraccedilatildeo a maioria dos casos embora natildeo esteja insciente do erro que tal coisa acarreta (EN V 10 1137b12)
74
Natildeo obstante o legislador ter a generalidade como instrumento de ampliaccedilatildeo
de incidecircncia da norma esta natildeo eacute geral suficientemente para abarcar em
completude as indeterminaacuteveis possibilidades proacuteprias ao acircmbito particular
74
Conforme jaacute citado
94
Sobre lacunas adverte Kelsen
Como poreacutem o Direito vigente eacute sempre aplicaacutevel pois natildeo haacute ldquolacunasrdquo neste sentido esta foacutermula quando se penetre o seu caraacuteter fictiacutecio natildeo opera a pretendida limitaccedilatildeo do poder atribuiacutedo ao tribunal mas a auto-anulaccedilatildeo da mesma Se poreacutem o tribunal tambeacutem aceita a ideacuteia de que haacute lacunas no Direito entatildeo esta ficccedilatildeo teoreticamente inaceitaacutevel realiza o efeito pretendido Com efeito o juiz - e especialmente o juiz de carreira que estaacute sob o controle de um tribunal superior - que natildeo se sente facilmente inclinado a tomar sobre si a responsabilidade de uma criaccedilatildeo do Direito ex novo soacute muito excepcionalmente aceitaraacute a existecircncia de uma lacuna no Direito e por isso soacute raramente faraacute uso do poder que lhe eacute conferido de assumir o lugar do legislador (KELSEN 1999 p 185)
Aristoacuteteles esclarece que as lacunas podem existir pela vontade do
legislador ou contra a vontade deste
O problema legislativo que com maior frequumlecircncia ocorre eacute causado pela abstraccedilatildeo e universalidade do preceito legal De fato a lei escrita eacute um imperativo que se formula impessoalmente abarcando sob sua tutela a pluralidade de cidadatildeos aos quais se dirige e a multiplicidade de casos que surgem na vida concreta da poacutelis Lacunas aparecem em todo sistema legislativo escrito e estas podem existir por vontade do legislador de que existam ou mesmo contra a vontade deste Assim contra a sua vontade existiratildeo ldquoquando o fato lhe passa despercebidordquo e por vontade do legislador ldquoquando natildeo podendo precisar tudo eles tecircm de estatuir princiacutepios gerais que natildeo satildeo aplicaacuteveis sempre mas soacute as mais das vezes (Ret I 1375b)
Assim quando a lacuna existe pela vontade do legislador eacute porque o
mesmo percebendo que natildeo pode precisar toda mateacuteria ele estabelece um princiacutepio
geral que natildeo pode sempre ser aplicado agrave mateacuteria Por outro lado quando a lacuna
existe contra a vontade do legislador eacute porque o fato passou-lhe despercebido
Neste sentido a equidade possibilita ao juiz julgar ainda que natildeo conheccedila no
direito norma objetivamente correspondente de acordo com Machado Paupeacuterio []
ao juiz caberia em tais circunstacircncias reconhecer por equumlidade a exceccedilatildeo agrave
norma legal jaacute que se tivesse sido dado ao legislador prever a tal hipoacutetese ele
95
mesmo teria admitido que em tais condiccedilotildees devessem ser abertos os portotildees75
(2003 p 69)
De acordo com Aristoacuteteles
Essa eacute a razatildeo porque quando ocorrem disputas os indiviacuteduos recorrem a um juiz Dirigir-se a um juiz eacute dirigir-se agrave justiccedila pois o juiz ideal eacute por assim dizer a justiccedila personificada E tambeacutem os homens necessitam de um juiz para que este seja um elemento mediano pelo que efetivamente em alguns lugares ele eacute chamado de mediador pois pensam que se ele atinge a mediania atinge o que eacute justo Assim o justo eacute uma espeacutecie de mediania na medida em que o juiz eacute um meio (intermediaacuterio) entre os litigantes (EN V 4 1132a20)
Eacute importante destacar a observaccedilatildeo feita por Maria Helena Diniz em sua
obra Lacunas no Direito ela propotildee a existecircncia de certa dificuldade no emprego da
equidade
A equumlidade eacute teoricamente uma virtude de que deve lanccedilar matildeo o aplicador para temperar os rigores de uma foacutermula demasiado geneacuterica fazendo com que essa natildeo contrarie os reclamos da justiccedila Considera portanto a equumlidade como uma virtude informada pela justiccedila
Todavia Aristoacuteteles na praacutetica preconizava a absoluta submissatildeo do magistrado agrave lei porque entendia ser perigoso decidir por equumlidade no ambiente de corrupccedilatildeo que reinava nos Estados-cidades helecircnicos e nos tribunais corroiacutedos ateacute agrave medula pelas paixotildees poliacuteticas e pelas facccedilotildees Recomenda o mestre Estagira o juiacutezo arbitral para decisotildees de equumlidade (DINIZ 2002 p 242-243)
Essa uacuteltima observaccedilatildeo a que se refere agrave abstenccedilatildeo do emprego de juiacutezos
por equidade aparece na Retoacuterica ao que natildeo poderiacuteamos deixar de fazer
referecircncia ldquo[] preferimos uma arbitragem a um litiacutegio jaacute que o aacuterbitro leva em
conta a equidade ao passo que o juiz leva em conta a lei A arbitragem foi criada
com o propoacutesito expresso de garantir espaccedilo total para a equidaderdquo (Ret I 13
1374b20)
75
Paupeacuterio estaacute se referindo ao exemplo de Santo Tomaacutes sobre um vilarejo onde uma regra
determinasse que os portotildees permanecessem fechados durante a noite sendo que em determinada noite parte da populaccedilatildeo fosse acossada por inimigos e recorressem aos portotildees para se protegerem a questatildeo eacute deveria os guardas desobedecer a regra abrindo os portotildees com o escopo de proteger os habitantes
96
Na anaacutelise das condiccedilotildees que permitem a aplicaccedilatildeo da epiqueacuteia (III 15 e ss em especial 20) explicamos que uma delas devia ser ldquoextraordinaacuteriardquo De caso que a previsatildeo normativa deve ao seu tempo considerar o curso ordinaacuterio das coisas Pois quando nos permitimos expor uma questatildeo (ou nova condiccedilatildeo) do procedimento ldquoem regra epiqueacuteia eacute de aplicaccedilatildeo exceccedilatildeo e restritiva para os juiacutezesrdquo (SHIAVO 2013 p 27
traduccedilatildeo nossa)76
De acordo com HOumlFF (2003 p 68) ldquoVisto as regras de um modo geral
prejudicarem a justiccedila do caso individual poderiacuteamos querer abrir matildeo delas e
confiar integralmente na faculdade de juiacutezo de pessoas Mas leis satildeo melhores agrave
medida que diferentemente de pessoas satildeo de todo isentas de paixotildeesrdquo
Natildeo aparece em qualquer outra parte do texto referecircncia ao natildeo emprego
da equidade O Filoacutesofo por certo natildeo eacute da posiccedilatildeo de que os juiacutezos devem ser
concretizados pela abstenccedilatildeo legal Muito pelo contraacuterio o que vemos eacute que o justo
de modo geral eacute o justo legal afinal como jaacute esclarecido a lei promulgada da forma
correta representa o bem da comunidade A questatildeo eacute que como criteacuterio do justo a
equidade permanece como condiccedilatildeo necessaacuteria para acomodaccedilatildeo do direito e
concretizaccedilatildeo da justiccedila uma vez que o bem geral natildeo pretende causar prejuiacutezos
aos particulares Destarte eacute certo que a pretensatildeo aristoteacutelica eacute que a equidade seja
paracircmetro de formulaccedilatildeo do ldquodecreto especialrdquo ao caso concreto para que este ao
aplicar a lei ou na ausecircncia desta natildeo se afaste do real fim a que se propotildeem os
legisladores
Portanto podemos dizer que a problemaacutetica acerca da natureza essencial
do equitativo eacute dupla Se de um lado o justo legal em sua generalidade pode causar
injusticcedila pela aplicaccedilatildeo insensiacutevel da norma ao caso concreto de outro a
generalidade natildeo eacute suficiente para compreender ainda que em sua insensibilidade
para com o particular uma totalidade normativa isenta de lacunas
76
En el anaacutelisis de las condiciones que permiten la aplicacioacuten de la epiqueya (ut supra III 15 y ss en especial 20) explicamos que una de aquellas debiacutea ser lo ldquoextraordinariordquo del caso frente a lo cual la previsioacuten normativa debioacute a su tiempo considerar el curso ordinario de las cosas Pues ahora nos permitimos exponer una cuestioacuten (o nueva condicioacuten) de procedimiento ldquola regla de la epiqueya es de aplicacioacuten excepcional y restrictiva para los juecesrdquo (SHIAVO 2013 p 27 traduccedilatildeo nossa)
97
66 O homem equitativo
Por certo o equacircnime eacute tambeacutem um homem de prudecircncia pois procura
dentro daquilo que lhe eacute permitido escolher o melhor possiacutevel Shiner ao referir agrave
metaacutefora da reacutegua pluacutembea define o artiacutefice de Lesbos ldquoNenhum artesatildeo eacute perfeito
mas isso eacute em parte porque os materiais contecircm imperfeiccedilotildees Alguns artesatildeos satildeo
o melhor que podem ser - ou seja o melhorrdquo (SHINER 1994 p 1257 traduccedilatildeo
nossa77)
Aristoacuteteles daacute a definiccedilatildeo do homem equitativo
[] ele eacute algueacutem que por escolha e haacutebito faz o que eacute equitativo e que natildeo eacute inflexiacutevel quanto aos seus direitos se contentando em receber uma porccedilatildeo menor mesmo que tenha a lei ao seu lado Eacute a disposiccedilatildeo correspondente eacute a equidade a qual eacute um tipo especial de justiccedila e de modo algum uma qualidade diferente (EN V 10 1138a)
Analisemos este conceito
ldquoEle eacute algueacutem que por escolha e haacutebito faz o que eacute equitatitivordquo
Escolha segundo o Estagirita eacute ldquoum desejo deliberado de coisas em nosso
poderrdquo (EN III 3 1113a10) Em Da Alma esclarece que o desejo eacute a fonte do
movimento78 ldquoO desejo [] eacute capaz de gerar movimento independentemente do
caacutelculo ou raciociacutenio porque o apetite eacute uma forma de desejo Eacute de se notar
entretanto que enquanto o intelecto eacute sempre correto o desejo e a imaginaccedilatildeo
podem ser tanto corretos quanto incorretosrdquo (DA III 10 433a20) Sobre a
deliberaccedilatildeo esclarece que ldquoA deliberaccedilatildeo portanto eacute empregada em mateacuterias que
embora sujeitas a regras que geralmente satildeo para o bem satildeo incertas quanto aos
seus resultados ou consequecircncias ou nas quais resultados ou consequecircncias satildeo
indeterminados [] Aleacutem disso natildeo deliberamos acerca de fins mas acerca de
meiosrdquo (EN III 3 1112b10) Ainda sobre a deliberaccedilatildeo Aristoacuteteles deixa uma
importante observaccedilatildeo Eacute a de que soacute podemos deliberar acerca daquilo que estaacute
77 No craftsman is perfect but that is in part because the materials contain imperfections Some
craftsmen are the best they can be-that is to say the best 78
Assunto tratado no item 22 O Movimento da potecircncia para o ato
98
em nosso poder ldquotem que ser um bem passiacutevel de vir a ser pela accedilatildeo e apenas o
que pode ser diferente de como eacute pode de tal modo vir a serrdquo (DA III 10 433a30)
Acerca do haacutebito esclarece Pierre Pelegrin A virtude eacutetica eacute com efeito um
ldquoestadordquo do sujeito que eacute de certo modo a cristalizaccedilatildeo de bons haacutebitos que se
implantam tanto melhor no indiviacuteduo quanto mais cedo ele os adquire na vida (2010
p28)
Sobre o equitativo Aristoacuteteles apresenta o conceito quando trata do justo e
injusto79 De acordo com esta concepccedilatildeo pode-se ser justo ou injusto de duas
formas a primeira com relaccedilatildeo a observacircncia ou transgressatildeo da lei e a segunda
relacionada ao criteacuterio de igualdade Esta uacuteltima com relaccedilatildeo agrave igualdade Aristoacuteteles
nomina ldquojusto equitativordquo
Pode-se ferir o equitativo por excesso ou deficiecircncia Por excesso quando
reteacutem maior parcela do bem desejaacutevel e por deficiecircncia quando toma para si menor
parcela daquilo que natildeo eacute desejaacutevel80 Assim como na relaccedilatildeo entre perda e ganho
obtenho ganho quando adquiro mais ldquobemrdquo e menos ldquomalrdquo e obtenho perda quando
adquiro menos ldquobemrdquo e mais ldquomalrdquo (EN V 4 1132a5-15)
ldquoe que natildeo eacute inflexiacutevel quanto aos seus direitos se contentando em receber
uma porccedilatildeo menor mesmo que tenha a lei ao seu ladordquo
Este aspecto do homem equitativo parece fazer referecircncia ao sentido lato de
equidade onde ldquoser equitativo eacute mostrar indulgecircnciardquo (Ret I 13 1374b10) O
equacircnime eacute justo e ainda melhor porque ateacute em receber o que lhe eacute devido
apresenta moderaccedilatildeo Natildeo ser inflexiacutevel quanto aos seus direitos demonstra que o
equacircnime estaacute fundido com seu princiacutepio de justiccedila a equidade Pois eacute ele mesmo a
ldquojusticcedila personificadardquo81 Eacute a virtude paradigmaticamente do juiz e dos outros por
extensatildeo (SHINER 1994 p 1251-1252 traduccedilatildeo nossa)82
79
EN V 2 1130b10 80
Aristoacuteteles define a deficiecircncia como a parcela menor recebida pela viacutetima Parece-nos que deixou de desenvolver o conceito nessas linhas Mas podemos visualizar esse desdobramento pouco mais adiante quando trata do ganho e da perda Vide (EN V 4 1132a5-15) 81 EN V 4 1132a20 82
It is a virtue paradigmatically of the judge and of others by extension (SHINER 1994 p 1251-1252)
99
ldquoEacute a disposiccedilatildeo correspondente a equidade a qual eacute um tipo especial de
justiccedila e de modo algum uma qualidade diferenterdquo
Nesta uacuteltima sentenccedila ele enquanto justo age pela equidade seja por natildeo
ser inflexiacutevel com o direito ao aplicaacute-lo a si ou a outrem ou seja pela capacidade de
conhecer o princiacutepio da justiccedila onde natildeo foi convencionada regra alguma ldquoEacute a
marca de um homem educado Aristoacuteteles no diz em uma famosa passagem olhar
com precisatildeo para cada classe de coisas apenas como o permite a natureza do
assuntordquo (SHINER 1994 p 1257 traduccedilatildeo nossa)
67 Equidade e Prudecircncia
Entendendo que o uso da equidade busca uma interpretaccedilatildeo razoaacutevel
(interpretarla razonablemente) da lei Recasens Siches (2008) nos ensina a
equidade eacute a expressatildeo do justo natural em relaccedilatildeo ao caso concreto Em outras
palavras a equidade eacute o justo mas natildeo o justo legal tal como se desprende das
palavras da lei mas autenticamente sobre o caso particular (SICHES 2008 p 656
traduccedilatildeo nossa)83 Portanto ldquopode-se dizer que tanto a reacutegua de Lesbos quanto a
pedra a que ela se amolda para medir manteacutem iacutentegra a sua natureza ndash reacutegua
como reacutegua pedra como pedra ambas submetidas ao criteacuterio apreciador daquele
que se incumbe de definiccedilatildeo da medidardquo (LOPES 1993 p 46)
Tomaacutes de Aquino (1225-1274) em sua Suma Teoloacutegica procura a
compreensatildeo do que seja a equidade observando a inexistecircncia de termo correlato
na liacutengua latina da palavra grega ἐπιείκεια (epieiacutekeia)84 acaba por deixar expliacutecita a
popularidade dessa virtude entre os medievais
Os atos humanos ndash sobre os quais incidem as leis ndash satildeo singulares e contingentes e portanto podem se dar com uma infinita variedade de modos
Daiacute que natildeo seja possiacutevel estabelecer uma lei que natildeo falhe em algum caso concreto[]
84
Et ad hoc ordinatur epicheia quae apud nos dicitur aequitas E isso eacute a epiqueacuteia que entre noacutes diz-se aequitas (traduccedilatildeo nossa)
100
Nesses casos e em casos semelhantes eacute mau seguir o que estaacute estabelecido pela lei e pelo contraacuterio eacute bom passar por cima da letra da lei e seguir o que pede pelo espiacuterito de justiccedila e utilidade comum E eacute isso que faz a epiqueacuteia que entre noacutes se chama equumlidade Fica assim evidente que a epiqueacuteia eacute virtude (Sum II-II 1201)
Nesse sentido a prudecircncia e a equidade apontam para questotildees relativas agrave
deliberaccedilatildeo mais especificamente sobre como agir de acordo com o bem Ambas
parecem obrar no espaccedilo existente entre o particular e o universal Destarte eacute
preciso perceber que
[] a existecircncia insuperaacutevel de um obstaacuteculo ontoloacutegico entre a regra e sua aplicaccedilatildeo entre o universal e o particular Taylor chama esse obstaacuteculo ontoloacutegico de ldquohiato froneacuteticordquo (phronetic gap) em referecircncia direta agrave sua matriz aristoteacutelica Aristoacuteteles como Aubenque (2003 p 75) observa natildeo tem a expectativa platocircnica de poder deduzir o particular do universal Aristoacuteteles natildeo culpa a ignoracircncia dos homens por essa incapacidade Natildeo se trata para Aristoacuteteles de uma fraqueza psicoloacutegica algo que portanto pudesse ser superado pelo Rei-Filoacutesofo de Platatildeo ou pelo Juiz Heacutercules de Dworkin A impossibilidade de deduzir o particular do universal decorre da proacutepria realidade e nesse sentido natildeo pode ser superada por uma ciecircncia A aplicaccedilatildeo das regras eacute antes de tudo uma questatildeo de prudecircncia (phronesis) (OLIVEIRA 2009 p 24 negrito nosso)
Essa limitaccedilatildeo da ciecircncia eacute objeto da exposiccedilatildeo acerca da prudecircncia (ENVI
5 1140a30) O fato eacute que o conhecimento cientiacutefico envolve demonstraccedilatildeo ou seja
diz respeito agraves coisas imutaacuteveis necessaacuterias Por outro lado a prudecircncia cuida de
assuntos relacionados agrave conduta admitindo assim a variaccedilatildeo ldquoPara que seja objeto
do conhecimento cientiacutefico uma verdade tem que ser demonstrada pelo processo
dedutivo a partir de outras verdades ao passo que a arte e a prudecircncia (sabedoria
praacutetica) se referem somente a coisas mutaacuteveisrdquo (EN VI 6 1141a1)
O caraacuteter praacutetico isto eacute concernente agrave accedilatildeo proacuteprio da phroacutenesis exige portanto que ela possua o conhecimento dos casos individuais pois a accedilatildeo se produz sempre em situaccedilotildees individuais por isso a phroacutenesis requer certa experiecircncia que eacute justamente o conhecimento dos particulares A phroacutenesis contudo inclui em alguma medida tambeacutem o conhecimento do universal no sentido de que deve saber aplicar ao caso individual uma caracteriacutestica geral como mostra o exemplo dado por Aristoacuteteles Natildeo basta para produzir sauacutede (accedilatildeo) saber que as carnes leves satildeo saudaacuteveis (caracteriacutestica universal) caso natildeo se saiba
101
que a carne de galinha eacute leve (caso individual ou particular) e portanto que a carne de galinha eacute saudaacutevel (aplicaccedilatildeo do universal ao particular)
Martha C Nussbaum explica que Aristoacuteteles aponta trecircs traccedilos da mateacuteria
praacutetica que demonstram porque as escolhas praacuteticas natildeo podem mesmo em
princiacutepio ser adequadas e completamente assimiladas em um sistema de regras
universais Satildeo esses traccedilos a mutabilidade a indeterminaccedilatildeo e a particularidade
(NUSSABAUM 2009 p 263)
Eacutemile Boutroux sustenta que pelo princiacutepio da irredutibilidade essa
especulaccedilatildeo abstrata ndash a do conhecimento cientiacutefico ndash ldquoseraacute impotente para nos
fazer conhecer a natureza aiacute seraacute necessaacuteria a experiecircncia E na ordem moral as
leis seratildeo insuficientes para fazer reinar a justiccedila seraacute preciso acrescentar-lhes o
magistrado encarregado de aplicar judiciosamente as regras gerais agrave diversidade
dos casos individuaisrdquo (2006 p 127)
No mesmo sentido Pierre Aubenque direciona a relaccedilatildeo entre a prudecircncia e
a equidade sintetizando os principais toacutepicos de nossa exposiccedilatildeo Tal siacutentese tem
por base o julgamento eacutetico proacuteprio agrave Eacutetica a Nicocircmaco onde o prudente natildeo teraacute
mais por analogia o saber do geocircmetra mas o engenho do carpinteiro
[] Enquanto Platatildeo natildeo parece ter posto em duacutevida que um saber suficientemente transcendente poderia abranger a totalidade dos casos particulares Aristoacuteteles nunca espera poder deduzir o particular do universal ldquoa falta nos diz ele natildeo estaacute na lei nem no legislador mas na natureza da coisa em th fnsei ton prgmatojrdquo Onde Platatildeo via uma
fraqueza psicoloacutegica devido a ignoracircncia dos homens Aristoacuteteles reconhece como faz habitualmente um obstaacuteculo ontoloacutegico um hiato que afeta a proacutepria realidade e que nenhuma ciecircncia poderaacute superar [] se a indeterminaccedilatildeo eacute ontoloacutegica a lei soacute pode depender de uma regra ela proacutepria indeterminada tou gar aoristou aoristin tal como a reacutegua
de chumbo de lesbos cuja a inexatidatildeo permite adaptar-se adequadamente aos contornos da pedra [] Para Aristoacuteteles ao contraacuterio de uma justiccedila abstrata cientiacutefica via sua sorte ligada a da lei eacute pois a justiccedila mesma que necessita ser corrigida pela virtude da equidade [] Percebe-se o paralelismo dessa problemaacutetica com a da prudecircncia ou antes o encavalamento de ambas se a prudecircncia eacute a virtude intelectual que permite a cada vez definir a norma o equacircnime deveraacute possuir no mais alto grau a virtude da prudecircncia para aplica-la em seu domiacutenio proacuteprio [] (AUBENQUE 2008 73-76 negrito nosso)
102
Portanto a prudecircncia e equidade produzem seus efeitos no acircmbito da razatildeo
praacutetica especificamente no que concerne a aplicaccedilatildeo da norma em sua
generalidade e abstraccedilatildeo ao caso concreto que transcorre num mundo
contingencial
O equacircnime eacute antes de qualquer coisa um prudente ou seja a virtude da
prudecircncia eacute um pressuposto para o exerciacutecio da equidade Isso fica evidenciado
pelo proacuteprio papel da prudecircncia qual seja guiar e orientar as escolhas para a
concretizaccedilatildeo das demais virtudes Ademais ambos possuem como faculdade
central a disposiccedilatildeo para o bem escolher de forma acomodar o bem absoluto85 ao
melhor possiacutevel86
85
Aspecto formal da regra enquanto forma e universalidade 86
Aspecto material da accedilatildeo enquanto mateacuteria e singularidade
103
7 CONCLUSAtildeO
Foi objeto do presente trabalho uma anaacutelise das formulaccedilotildees aristoteacutelicas
acerca do conceito de prudecircncia e equidade anaacutelise essa que deveria sustentar-se
sob a eacutegide de uma inter-relaccedilatildeo entre tais conceitos
Para alcanccedilar tal objetivo propomos no capiacutetulo 2 que a contingecircncia eacute algo
que se encontra em comum na atividade de ambos os conceitos como condiccedilatildeo
necessaacuteria agrave compreensatildeo dos mesmos Por isso o que a pouco chamamos de
hiato froneacutetico natildeo eacute outra coisa senatildeo a distacircncia entre o ldquoparticularrdquo e o
ldquouniversalrdquo entre a ldquopotecircnciardquo e o ldquoatordquo e entre o ldquomelhor que posso fazerrdquo e o ldquobem
absolutordquo
No capiacutetulo 3 intitulado Eacutetica das Virtudes procuramos clarear o liame entre
as virtudes e a necessidade de accedilatildeo caracteriacutestica inerente ao mundo contingencial
Nele introduzimos no que eacute pertinente agrave nossa proposta a teoria geral das virtudes
em Aristoacuteteles estabelecendo sua relaccedilatildeo com as partes da alma e diferenciado em
morais e intelectuais Neste sentido a relaccedilatildeo entre prudecircncia e equidade parece
distanciar-se devido a prudecircncia estar situada na faculdade cientiacutefica da alma
enquanto a equidade estaacute inserida na faculdade calculadora Tal problema eacute
solucionado pelo proacuteprio Aristoacuteteles afinal a prudecircncia como ordenadora das accedilotildees
virtuosas eacute o ponto de contato entre aquilo que estaacute e aquilo que natildeo estaacute ao
alcance do homem ou seja ela age como princiacutepio informativo entre a faculdade
calculadora e a faculdade cientiacutefica da parte racional da alma Por fim foi feita uma
exposiccedilatildeo acerca da mediania como paracircmetro da razatildeo praacutetica seguida de uma
exposiccedilatildeo sobre as accedilotildees voluntaacuterias e involuntaacuterias
A partir do capitulo 4 procuramos analisar a proposta aristoteacutelica do que
seja a prudecircncia Assim concluiacutemos ser a prudecircncia uma virtude intelectual situada
na parte racional da alma mais precisamente na parte que forma opiniotildees por ser
seu objeto a especulaccedilatildeo das coisas que admite variaccedilotildees e portanto satildeo
trabalhadas pela faculdade calculadora Nesse sentido eacute a qualidade racional de
consecuccedilatildeo da verdade capaz de bem deliberar em geral
104
No capiacutetulo 5 a justiccedila foi delineada como sendo uma virtude Tal virtude eacute
dita a mais perfeita pois segundo o Estagirita nela se encontra somada todas as
virtudes O que ele quer dizer com isso eacute que o fato de natildeo se observar qualquer
uma das virtudes eacute um ato de injusticcedila Neste sentido vimos a produccedilatildeo legislativa
como uma ramificaccedilatildeo da prudecircncia nomeada por Aristoacuteteles como ciecircncia
legislativa por desempenhar um duplo papel controlador e diretivo ndash no sentido de
educar para a virtude A outra ramificaccedilatildeo eacute a ciecircncia poliacutetica que diz respeito agrave
deliberaccedilatildeo a qual divide em processo deliberativo e processo judiciaacuterio Apoacutes
visualizarmos os conceitos proacuteprios agrave teoria da justiccedila de Aristoacuteteles concluiacutemos ser
ela uma virtude moral sendo ela mesma uma mediania que faz realizar agir e
desejar o que eacute o justo A justiccedila de modo geral ganha trecircs sentidos quais sejam
legal igual e equitativo
Por fim no capiacutetulo 6 procuramos analisar o conceito de equidade
Inicialmente apresentamos seu conceito lato e stricto Em seguida procuramos
compreender a ambiguidade apresentada por Aristoacuteteles acerca do tema
Apresentamos a justiccedila enquanto equidade compreendendo natildeo ser a equidade
diferente da justiccedila mas apenas melhor que uma de suas espeacutecies Procuramos
compreender a justiccedila enquanto estabelecimento da igualdade A natureza essencial
da equidade foi estudada enquanto retificaccedilatildeo do justo legal De acordo com isso
estaacute para noacutes a metaacutefora da reacutegua de chumbo que encontra a medida justa em sua
flexibilidade uma vez que em rigidez natildeo poderia conhecer as muacuteltiplas e possiacuteveis
formas na qual flutua a contingecircncia material Uma uacuteltima anaacutelise abordou a relaccedilatildeo
entre a prudecircncia e a equidade concluindo por uma relaccedilatildeo de gecircnero e espeacutecie
uma vez que a equidade eacute uma qualidade do prudente e que possuem como
principal ponto em comum a contingecircncia enquanto condiccedilatildeo para accedilatildeo
Eacute na pergunta que fizemos na introduccedilatildeo que concluiacutemos estar a chave para
a compreensatildeo dos conceitos formulados Qual a relaccedilatildeo entre a prudecircncia e a
equidade aristoteacutelica A reposta dada pelos comentadores no capiacutetulo 6 em
especial Pierre Aubenque aponta para noacutes uma relaccedilatildeo que comporta em sua
estrutura conceitual uma interdependecircncia Nesse sentido natildeo podemos
compreender o conceito de equidade sem compreender o conceito de prudecircncia
105
Essa relaccedilatildeo pode ser travada porque ambas lidam com situaccedilotildees em
comum Elas estatildeo para o homem como soluccedilatildeo naquilo em que a Providecircncia
falha Suas funccedilotildees trabalham para indicar a melhor decisatildeo quando se tem que
escolher entre dois males Elas procuram sanar a distacircncia entre os princiacutepios gerais
e a realidade em particular Elas satildeo as articulaccedilotildees que permitem ao homem fazer
a escolha pelo melhor possiacutevel uma vez que na fraacutegil condiccedilatildeo parece tatildeo distante
do bem absoluto quanto o homem de Deus
106
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Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Minas Gerais como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de mestre em Direito
____________________________________________________________ Juacutelio Aguiar de Oliveira (Orientador) ndash PUC Minas
____________________________________________________________ Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno (Coorientador) ndash PUC Minas
____________________________________________________________ Fernando Joseacute Armando Ribeiro ndash PUC Minas
____________________________________________________________ Mocircnica Sette Lopes ndash UFMG
Belo Horizonte 03 de junho de 2013
Dedico este trabalho
Ao meu primogecircnito Davi na esperanccedila que ele se torne um homem feliz
mediante a praacutetica reiterada da virtude
Agrave minha esposa Camila testemunha e cuacutemplice de cada hora pelo amor e
compreensatildeo a mim dispensados
Aos meus pais que natildeo mediram esforccedilos e sacrifiacutecios pelo meu sonho
Aos meus irmatildeos Ramon e Giselle por compartilharem comigo a fraterna
amizade indispensaacutevel nos momentos difiacuteceis
AGRADECIMENTOS
A todos que contribuiacuteram direta ou indiretamente para a concretizaccedilatildeo deste
sonho Fica aqui registrada a minha gratidatildeo especialmente
Ao meu Orientador Professor Juacutelio Aguiar de Oliveira que acolheu e
acreditou em minhas ideias natildeo deixando que eu acreditasse que as contingecircncias
da vida fossem outra coisa que natildeo verdadeiras liccedilotildees e incentivos para o meu
aperfeiccediloamento pessoal e acadecircmico
Agradeccedilo tambeacutem ao meu Coorientador Alexandre Travessoni Gomes
Trivisonno pelos valorosos exemplos de retidatildeo e seriedade
Aos meus colegas de curso que comungaram comigo agrave elevada aspiraccedilatildeo
acadecircmica
Ao prof Virgiacutelio Diniz pela amizade e apoio de sempre
Agrave prof Leda Soares e prof Luciana Costa que sempre estiveram dispostas
a me ajudar da melhor forma possiacutevel jamais me esquecerei disso
Obrigado do fundo do meu coraccedilatildeo a todos vocecircs
Sou com efeito vosso servo e filho de vossa serva um
homem fraco cuja existecircncia eacute breve incapaz de compreender
vosso julgamento e vossas leis []
Que homem pois pode conhecer os desiacutegnios de Deus e
penetrar nas determinaccedilotildees do Senhor
Tiacutemidos satildeo os pensamentos dos mortais e incertas as nossas
providecircncias (SABEDORIA 10)
RESUMO
Esta dissertaccedilatildeo realizou um estudo acerca da concepccedilatildeo aristoteacutelica dos conceitos
de prudecircncia e equidade Seu objetivo foi analisar os conceitos de prudecircncia e
equidade e estabelecer as possiacuteveis relaccedilotildees inerentes a tais conceitos
Primeiramente procurou-se compreender a noccedilatildeo de contingecircncia verificando que
tal noccedilatildeo estaacute estritamente relacionada agrave possibilidade de accedilatildeo e portanto agrave
questotildees de razatildeo praacutetica Em seguida realizou-se uma abordagem acerca da eacutetica
das virtudes objetivando contextualizar os conceitos estudados Realizada uma
exposiccedilatildeo sobre a prudecircncia procurou-se estabelecer em linhas gerais a concepccedilatildeo
aristoteacutelica de justiccedila Por fim foi realizada uma tentativa de reconstruccedilatildeo dos
conceitos de prudecircncia e de equidade A conclusatildeo que se chegou foi a de que tanto
o conceito de prudecircncia quanto o de equidade estatildeo relacionados agrave questotildees de
razatildeo praacutetica A principal relaccedilatildeo estabelecida entre tais conceitos eacute a de que ambos
lidam com situaccedilotildees contingenciais o que evidencia a distacircncia entre o universal e o
particular que ao final chamamos de hiato-froneacutetico
Palavras-chave Aristoacuteteles Prudecircncia Equidade
ABSTRACT
This work conducted a study on the Aristotelian conception of the concepts of
prudence and equity His goal was to analyze the concepts of prudence and equity
and establish possible relationships inherent in such concepts First we sought to
understand the notion of contingency noting that such a notion is closely related to
the possibility of action and therefore the issues of practical reason Then took place
about an approach of virtue ethics aiming to contextualize the concepts studied An
exhibition about prudence sought to establish a broadly Aristotelian conception of
justice Finally an attempt was made to reconstruct concepts of prudence and equity
The conclusion reached was that both the concepts of prudence and equity are
related to issues of practical reason The main relationship between these concepts
is to both deal with contingency situations which shows the distance between the
universal and the particular which we call the phronetic gap
Key-words Aristotle Prudence Equity
LISTA DE ABREVIATURAS
AA ndash Analiacuteticos Anteriores
DA ndash Da Alma
DI ndash Da Interpretaccedilatildeo
EE ndash Eacutetica a Eudemo
EN ndash Eacutetica a Nicocircmaco
Fiacutes - Fiacutesica
Met ndash Metafiacutesica
MM ndash Magna Moralia
Pol ndash Poliacutetica
Ret - Retoacuterica
SUMAacuteRIO 1 INTRODUCcedilAtildeO12 2 A CONTINGEcircNCIA16 21 A Loacutegica16 22 O Movimento da potecircncia para o ato21 23 Indeterminismo e a eacutetica das virtudes26 231 Primeira concepccedilatildeo de acaso A boa fortuna26 232 Segunda concepccedilatildeo de acaso Acidente28 233 Terceira concepccedilatildeo de acaso contingecircncia30 2331 Trageacutedia32 3 EacuteTICA DAS VIRTUDES35 31 Eacutetica a Nicocircmaco36 32 Partes da Alma39 33 Virtudes Morais43 331 Doutrina da Mediana45 34 Accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria47 35 Virtudes Intelectuais51 4 PRUDEcircNCIA54 41 Conceito54 42 Prudecircncia e liberdade56 43 Arte e prudecircncia57 44 Deliberaccedilatildeo e Escolha58 45 O prudente61 5 JUSTICcedilA COMO VIRTUDE67 51 Justo e injusto68 52 Justo universal69 53 Justo particular71 531 Justiccedila distributiva71 532 Justiccedila corretiva72 54 Justo domeacutestico73 55 Justo poliacutetico74 551 Justo natural75 552 Justo legal (convencional)75 6 A EQUIDADE78 61 Justiccedila e equidade ambiguidade do tema79 62 Justiccedila como equidade82 621 Justiccedila e igualdade84 63 Equidade melhor que um tipo de justiccedila86 64 Natureza essencial do equitativo a retificaccedilatildeo do justo legal87 641 A metaacutefora da reacutegua de chumbo88 642 A retificaccedilatildeo do justo legal89 65 Equidade e lacuna93 66 O homem equitativo97
67 Equidade e Prudecircncia99 7 CONCLUSAtildeO103 REFEREcircNCIAS106
12
1 INTRODUCcedilAtildeO
Com o surgimento da modernidade originou-se uma ruptura nos
fundamentos da filosofia moral claacutessica Dessa forma conceitos basilares da
filosofia moral perderam os seus significados restando para o mundo
contemporacircneo apenas fragmentos de suas antigas concepccedilotildees Conforme propotildee
Alasdair MacIntyre (2001 p 15) em sua obra Depois da virtude o que possuiacutemos
satildeo apenas fragmentos de um esquema conceitual fragmentos hoje distantes de
seu contexto semacircntico o que quer dizer que utilizamos apenas os simulacros de
tais conceitos
Desse modo o significado claacutessico das virtudes da forma como
estabelecido por Aristoacuteteles foi alterado tornando-se inacessiacuteveis agrave nossa
compreensatildeo o sentido atribuiacutedo por Aristoacuteteles aos conceitos de prudecircncia e de
equidade
O conceito de prudecircncia1 apresenta significativas transformaccedilotildees
semacircnticas o que obscurece e compromete a compreensatildeo do seu significado
claacutessico Eacute o que Jean Lauand veio a perceber quando traduziu as questotildees 47-46
da Segunda Parte da Segunda Parte da Suma Teoloacutegica de Tomaacutes de Aquino
[] prudentia eacute uma daquelas tantas palavras fundamentais que sofreram desastrosas transformaccedilotildees semacircnticas com o passar do tempo
A proximidade entre nossa liacutengua e o latim de Tomaacutes natildeo nos deve enganar ocorre como diziacuteamos um conhecido fenocircmeno de alteraccedilatildeo do sentido das palavras que se manifesta muitas vezes quando lemos um autor de outra eacutepoca E natildeo soacute alteraccedilatildeo como mostra C S Lewis daacute-se frequumlentemente sobretudo no campo da eacutetica uma autecircntica inversatildeo de polaridade aquela palavra que originalmente designava uma qualidade positiva esvazia-se de seu sentido inicial ou passa a designar uma qualidade negativa
1 Optamos por escrever no termo utilizado usualmente pelos autores da liacutengua portuguesa Contudo
conforme consta desta introduccedilatildeo os conceitos proacuteprios agrave tradiccedilatildeo das virtudes perderam sua inteligibilidade restando para noacutes apenas simulacros do que um dia corresponderam De acordo com HERMANN (2007) ldquoO termo phronesis natildeo tem uma traduccedilatildeo que expresse de forma satisfatoacuteria o espectro semacircntico que possuiacutea para o mundo grego Habitualmente traduzido por prudecircncia o uso do termo descolou-se do contexto de origem e perdeu seu enraizamento eacuteticordquo O mesmo acontece com o termo Epeiqueia
13
Foi o que aconteceu entre outras com as palavras ldquoprudenterdquo e ldquoprudecircnciardquo []
Se hoje a palavra prudecircncia tornou-se aquela egoiacutesta cautela da indecisatildeo (em cima do muro) em Tomaacutes ao contraacuterio prudentia expressa exatamente o oposto eacute a arte de decidir corretamente [] virtude do liacutempido conhecimento do ser (LUAND 2005 p7-10)
O conceito de equidade igualmente nos parece de difiacutecil compreensatildeo O
dicionaacuterio grego-portuguecircs de Isidro Pereira registra as seguintes traduccedilotildees para
ἐπιείκεια conveniecircncia moderaccedilatildeo equidade epiqueia doccedilura bondade (cf
PEREIRA 1998 p 210 [verbete ἐπιείκεια]) Registrando a presenccedila de uma
traduccedilatildeo ainda mais proacutexima do termo grego epieiacutekeia menos usada contudo em
nosso vocabulaacuterio epiqueia2 Disso podemos constatar que embora a equidade
goze de grande popularidade no meio juriacutedico seu emprego por vezes varia ainda
que ligeiramente do conceito elaborado pelo Estagirita3
Portanto diante de tais dificuldades questionamos O que seria a prudecircncia
e a equidade na tradiccedilatildeo aristoteacutelica Tal questionamento nos levou a procurar nos
textos do proacuteprio Aristoacuteteles e seus comentadores os indiacutecios das formulaccedilotildees
originaacuterias Por ora o que podemos levantar eacute que ambos os conceitos satildeo
visualizados em situaccedilotildees muito aproximadas O que nos leva agrave possiblidade de
existir entre ambos uma relaccedilatildeo de interdependecircncia conceitual Talvez seja por isso
que quando Aristoacuteteles aborda as virtudes morais deixa a equidade como uacuteltimo
assunto antes de tratar da virtude intelectual da prudecircncia
Neste sentido o trabalho foi elaborado traccedilando um percurso entre as
condiccedilotildees necessaacuterias ao exerciacutecio das virtudes para em seguida procurarmos
contextualizar a teoria das virtudes como um todo e por fim conhecermos a virtude
da prudecircncia No momento subsequente realizamos uma exposiccedilatildeo da virtude da
justiccedila Apoacutes esses passos entendemos ser possiacutevel a formulaccedilatildeo das concepccedilotildees
aristoteacutelicas dos conceitos de prudecircncia e equidade
2 Abbagnano registra epiqueia como sendo sinocircnimo de equidade (1999 p 338 [verbete epiqueia])
Em seu verbete epiqueia Aureacutelio Buarque de Holanda embora natildeo a coloque como sinocircnimo de equidade registra ldquoepiqueia Sf 1 Interpretaccedilatildeo razoaacutevel de lei ou preceito 2 Fig Meio-termo moderaccedilatildeordquo Entendimento que nos parece mais proacuteximo agrave proposta Aristoteacutelica 3 Referecircncia agrave Aristoacuteteles por ser natural de Estagira uma antiga cidade da Macedocircnia situada hoje
na Greacutecia na regiatildeo de Calciacutedica
14
Dentro desse esquema o segundo capiacutetulo tem por objetivo analisar a
contingecircncia caracterizada pela indeterminaccedilatildeo objetiva na relaccedilatildeo entre o universal
e o particular como condiccedilatildeo para o exerciacutecio da razatildeo praacutetica4 Neste sentido
iremos buscar na loacutegica de Aristoacuteteles os elementos necessaacuterios para a sua
compreensatildeo
Uma concepccedilatildeo um tanto popular quando se trata de Aristoacuteteles eacute da
potecircncia e do ato A pretensatildeo eacute revisitar esse conceito com foco na relaccedilatildeo
contingencial que existe no movimento entre a potecircncia e o ato O objetivo do
capiacutetulo alcanccedila pouso numa concepccedilatildeo de contingecircncia proacutepria agrave eacutetica das
virtudes O que segue eacute a proposta de Pierre Aubenque (2008) em fazer uma
exposiccedilatildeo da contingecircncia nas concepccedilotildees de acaso Por fim eacute na trageacutedia grega
que Aubenque (2008) mostra as condiccedilotildees necessaacuterias ao exerciacutecio das virtudes
O terceiro capiacutetulo tem por objetivo trazer uma exposiccedilatildeo que contextualize
na tradiccedilatildeo aristoteacutelica das virtudes os conceitos que seratildeo estudados Neste
sentido eacute realizada inicialmente uma leitura acerca da teoria geral das virtudes na
Eacutetica a Nicocircmaco Observando as partes da alma e suas qualidades como racional e
irracional dividindo assim as virtudes em intelectuais e morais respectivamente
O quarto capiacutetulo procura reconstruir o conceito de prudecircncia relacionando-
o com a liberdade e a arte As temaacuteticas da deliberaccedilatildeo e da escolha satildeo neste
ponto inseridas como elementos indispensaacuteveis agrave anaacutelise do conceito de prudecircncia
O quinto capiacutetulo pretende oferecer uma visatildeo geral da teoria da justiccedila de
Aristoacuteteles como tambeacutem considerar o fato de Aristoacuteteles ter inserido sua exposiccedilatildeo
da equidade no livro V em relaccedilatildeo com o conceito de justiccedila objeto especiacutefico de
investigaccedilatildeo do livro mencionado
Por uacuteltimo procuramos o conceito de equidade Essa uacuteltima exposiccedilatildeo tem
por objetivo delinear a pretensatildeo de Aristoacuteteles com tal formulaccedilatildeo Nele natildeo
inserimos pretensotildees complexas acerca de teorias especiacuteficas e contemporacircneas
mas tatildeo somente a despretensiosa e sofisticada elaboraccedilatildeo aristoteacutelica do assunto
4 Sobre razatildeo praacutetica vide LACERDA Bruno Amaro O raciociacutenio juriacutedico uma visatildeo aristoteacutelica Belo
Horizonte Movimento Editorial da Faculdade de Direito da UFMG 2005
15
Eacute neste sentido que ao explicar o desdobramento da razatildeo praacutetica ele
abandona o modelo oferecido pela geometria buscando na carpintaria um novo
modelo (fiel no entanto agrave tradiccedilatildeo das virtudes) Por fim procuramos no conceito
de equidade traccedilos pertinentes agraves virtudes em geral e em especial agrave virtude da
prudecircncia
Para a conclusatildeo reservamos a tarefa de responder a seguinte questatildeo que
se impotildee apoacutes o estudo simultacircneo desses dois conceitos existe uma relaccedilatildeo
conceitual entre os conceitos de prudecircncia e equidade
16
2 A CONTINGEcircNCIA
A prudecircncia e a equidade estatildeo condicionadas ao campo da accedilatildeo Contudo
parece que ambas soacute podem se manifestar no acircmbito do contingente Sendo
portanto a contingecircncia nosso ponto de partida
Parece ser a contingecircncia um dos fenocircmenos mais intrigantes a se tratar por
uma dupla razatildeo A contingecircncia consegue ao mesmo tempo nos desmotivar por
nos ensinar a liccedilatildeo de que natildeo podemos tudo conter e que a nossa pretensiosa
construccedilatildeo cotidiana deve estar sempre alerta para as incontaacuteveis possibilidades a
qual o mundo nos submete Por outro lado e concomitantemente eacute ela quem nos
motiva que nos convida agrave accedilatildeo Pois assim como o vento escolhe seu caminho eacute
ela que tem o poder de inserir em nossas vidas as mudanccedilas pelas quais devemos
lutar para moldarmos nossos objetivos e possibilidades um ao outro
Eacute nesse sentido que nos parece liacutecita a crenccedila em uma possiacutevel
reintegraccedilatildeo do homem com a sua natureza divina pois estatildeo nas vicissitudes da
vida as liccedilotildees praacuteticas nas quais os homens podem dar o melhor de si em busca de
um aperfeiccediloamento moral
21 A Loacutegica5
Eacute no estudo da loacutegica que pretendemos encontrar nossa primeira referecircncia
sobre o que seja a contingecircncia Tradicionalmente entende-se por loacutegica o estudo
dos raciociacutenios que pretendem atraveacutes de regras proacuteprias concluiacuterem por
resultados verdadeiros Desnudando assim os raciociacutenios que se vestem com
aparente validade mas que ocultam viacutecios que os falseiam
Tais viacutecios satildeo comumente apontados como tendo duas fontes sendo uma
relacionada aos fundamentos do raciociacutenio e outra ao nexo que se estabelece entre
5 A loacutegica normalmente eacute classificada como pertencente agrave razatildeo especulativa Nosso estudo situa-se
no acircmbito da razatildeo praacutetica Natildeo obstante parece-nos que a compreensatildeo do pensamento de Aristoacuteteles daacute-se atraveacutes da compreensatildeo de seu meacutetodo que eacute abordado na loacutegica Por outro lado quando descreve o prudente Aristoacuteteles sempre faz menccedilatildeo de que ele natildeo versa apenas sobre questotildees da razatildeo especulativa mas tambeacutem questotildees de razatildeo praacutetica Portanto o conhecimento especulativo eacute pertinente ao agente da razatildeo praacutetica Vide EN VI 7 1141b15
17
eles e a conclusatildeo Nesse sentido a loacutegica aristoteacutelica eacute estudada em dois ramos
sendo eles conhecidos como Loacutegica Maior (ou material) e Loacutegica Menor (ou formal)
Comecemos pela Loacutegica Menor De acordo com o ensino tradicional de
loacutegica as proposiccedilotildees podem ser classificadas pela qualidade e pela quantidade ou
seja como afirmativas ou negativas e universais ou particulares respectivamente
Daacute-se agraves combinaccedilotildees possiacuteveis a seguinte notaccedilatildeo Se a proposiccedilatildeo for uma
universal afirmativa por exemplo Todo S eacute P6 (Todo homem eacute mortal) entatildeo temos
uma proposiccedilatildeo ldquoArdquo Se a proposiccedilatildeo for particular afirmativa por exemplo Alguns S
satildeo P (Alguns homens satildeo brancos) entatildeo temos uma proposiccedilatildeo ldquoIrdquo Se a
proposiccedilatildeo for uma universal negativa por exemplo Nenhum ldquoSrdquo eacute ldquoPrdquo (Nenhum
homem eacute mortal) entatildeo temos uma proposiccedilatildeo ldquoErdquo Se a proposiccedilatildeo for particular
negativa por exemplo Alguns S natildeo satildeo P (Alguns poliacuteticos natildeo satildeo corruptos)
entatildeo temos uma proposiccedilatildeo ldquoOrdquo
Eacute importante notar que nessa primeira classificaccedilatildeo o que se procura
evidenciar eacute a relaccedilatildeo entre o sujeito S e o predicado P sendo que pode estar-se
afirmando ou negando algo ao particular ou ao universal
Parece-nos que os termos empregados por perspicaacutecia ou feliz
coincidecircncia daacute-nos uma importante pista acerca do domiacutenio do contingente Pois eacute
justamente na tensatildeo existente entre o universal e o particular que noacutes podemos
extrair parte do conceito entatildeo estudado
Em sua liccedilatildeo sobre loacutegica Jacques Maritain (2001 p 106) explica essa
tensatildeo expondo brevemente sobre o modo como conhecemos as coisas De acordo
com ele as coisas se apresentam de duas maneiras por uma ideia ou por uma
representaccedilatildeo sensiacutevel As ideias estatildeo relacionadas como o que conhecemos por
universal ou seja lsquoaquilo que se encontra sempre idecircntico em uma multidatildeo de
indiviacuteduos um em muitos ldquounum in multisrdquorsquo
Precisando acerca do particular7 extrai-se da mesma liccedilatildeo
Aleacutem disso se examinarmos com cuidado as diversas ciecircncias isto eacute os diversos sistemas de ideacuteias pelos quais conhecemos o real constatamos que nenhuma delas tem por objeto o individual como tal [] Eacute preciso
6 ldquoSrdquo para sujeito e ldquoPrdquo para predicado
7 Maritain aborda o tema nominando o universal por ideia e o particular por representaccedilatildeo
18
que assim seja porque o individual como tal natildeo eacute explicativo (representando somente a si mesmo natildeo pode evidentemente dar a razatildeo de outra coisa) (MARITAIN 2001 p 105)
Ainda comparando os extremos da tensatildeo Jaques Maritain facilita a
compreensatildeo ldquoOra esta ideia e esta representaccedilatildeo satildeo bem diferentes a prova eacute
que posso fazer variar a segunda de muitas maneiras (o desenho que imagino pode
ser maior ou menor branco vermelho amarelo etc) sem que a primeira varie por
causa dissordquo (MARITAIN 2001 p 103)
Aiacute estaacute nossa primeira pista pois eacute no acircmbito do particular onde ldquopode-se
fazer variarrdquo ou seja onde existe uma dificuldade em predominar o certo o
determinado o evidente o necessaacuterio eacute que chamamos o domiacutenio do contingente
Aleacutem da classificaccedilatildeo pela qualidade e quantidade temos outra importante
classificaccedilatildeo que eacute pela modalidade Nesta podemos encontrar as proposiccedilotildees
como Verdadeiras Falsas8 Necessaacuterias Possiacuteveis Impossiacuteveis e Contingentes
Nas necessaacuterias9 o predicado decorre do sujeito sendo a compreensatildeo de um
indissociaacutevel da compreensatildeo do outro
Quanto agraves proposiccedilotildees possiacuteveis satildeo aquelas em que o predicado pode ser
ou natildeo ser atribuiacutedo ao sujeito Alguns filoacutesofos se restringem a essas duas
modalidades assim a compreensatildeo da contingecircncia fica embutida na modalidade
possiacutevel em outras palavras aquilo que pode ou natildeo pode ser Essa compreensatildeo
aparece na Eacutetica a Nicocircmaco (EN VI 5 1140b1 negrito nosso) ldquouma vez que natildeo
se pode deliberar sobre coisas que estatildeo no acircmbito da necessidade conclui-se que
8 Aristoacuteteles apresenta seis modalidades Os manuais de loacutegica em sua maioria apresentam apenas
quatro modalidades de proposiccedilotildees quais sejam as necessaacuterias possiacuteveis impossiacuteveis e contingentes As modalidades de proposiccedilotildees verdadeiras e falsas satildeo tratadas como valores por decorrerem do emprego das demais
9 Na Metafiacutesica Aristoacuteteles explica a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio e as demais modalidades As
foacutermulas satildeo e natildeo satildeo independentemente da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo pois foi mostrado que ningueacutem as gera ou cria Eacute por esta razatildeo tambeacutem que natildeo haacute definiccedilatildeo ou demonstraccedilatildeo de coisas individuais sensiacuteveis porque contecircm mateacuteria cuja a natureza eacute tal que pode tanto existir quanto natildeo existir Consequentemente todos os exemplos individuais delas satildeo pereciacuteveis E se entatildeo a demonstraccedilatildeo e a definiccedilatildeo de verdades necessaacuterias requerem conhecimento cientiacutefico e se tal como conhecimento natildeo poder ser agraves vez conhecimento e agraves vezes ignoracircncia (eacute a opiniatildeo que possui esta natureza) do mesmo modo tambeacutem demonstraccedilatildeo e a definiccedilatildeo natildeo satildeo passiacuteveis de variaccedilatildeo (eacute a opiniatildeo que se ocupa com aquilo que pode ser de outra maneira do que eacute) (Met 1039b25 - 1040a1)
19
a prudecircncia (sabedoria praacutetica) natildeo eacute o mesmo que conhecimento cientiacutefico porque
os assuntos relacionados agrave conduta admitem mutaccedilatildeordquo
Mais claramente Santo Tomaacutes discorre na segunda parte da Segunda
Parte Questatildeo 47 artigo 5 da Suma Teoloacutegica
Consequumlentemente se diraacute que a prudecircncia estando na razatildeo como jaacute foi dito distingue-se das outras virtudes intelectuais segundo a diversidade material de objetos Pois a sabedoria a ciecircncia e o intelecto tecircm como objetos coisas necessaacuterias a arte e a prudecircncia coisas contingentes [] (AQUINO 2004 p 593 negrito nosso)
Parece-nos importante o desdobramento nas quatro modalidades pois o
possiacutevel e contingente natildeo parecem sinocircnimos O principal argumento estaacute no fato
de que na noccedilatildeo de possiacutevel estaacute impliacutecito o seu contraacuterio ou seja o Impossiacutevel
hipoacutetese em que o predicado natildeo decorre do sujeito Por sua vez a noccedilatildeo de
contingecircncia natildeo compreende o incontingente
Em seu Dicionaacuterio de Filosofia Nicola Abbagnano expotildee no verbete
Contingente a diferenccedila entre contingecircncia e possiacutevel jaacute exposta por Boeacutecio
ldquopossibuumlerdquo e contingens significam a mesma coisa salvo talvez pelo fato de natildeo
existir o negativo de contingens que deveria ser incontingens assim como existe o
negativo de possibuumle que eacute iacutempossiacutebilerdquo (ABBAGNANO 2007 p 200)
Sendo portanto quatro as classificaccedilotildees das modalidades Necessaacuterio ou ldquoeacute
necessaacuterio que S seja Prdquo Possiacutevel ou ldquoeacute possiacutevel que S seja Prdquo Impossiacutevel ou ldquoeacute
impossiacutevel que S seja Prdquo e Contingente ou ldquoeacute contingente que S seja Prdquo
Assim as proposiccedilotildees sempre recebem o valor de verdadeiras quando
pertencem agrave modalidade Necessaacuterio recebem o valor de falsas quando pertencem agrave
modalidade Impossiacutevel recebem o valor de verdadeiras ou falsas quando pertencem
agrave modalidade Possiacutevel
Quando as proposiccedilotildees pertencem agrave modalidade Contingente natildeo podem
ser dotadas de valoraccedilatildeo uma vez que natildeo se pode decidir se satildeo verdadeiras ou
falsas Isso na loacutegica eacute conhecido como acidentes10 ou aquilo que estaacute presente e
ausente ainda que natildeo haja corrupccedilatildeo do sujeito Por isso quando se fala em
10
Retomaremos acerca dos acidentes quando estudarmos o acaso
20
contingecircncia soacute pode estar-se referindo ao momento presente ou futuro mas nunca
ao passado Satildeo nesses momentos em que impera o indeterminado que se
encontra a contingecircncia
Natildeo obstante a correta formulaccedilatildeo de um raciociacutenio eacute possiacutevel que
obtenhamos conclusotildees erradas hipoacutetese essa em que as premissas natildeo satildeo
verdadeiras Destarte diferente da loacutegica menor que se preocupa com a
conformidade das conclusotildees com as premissas a loacutegica maior preocupa-se com a
veracidade
Para que possamos compreender melhor o objeto da loacutegica maior eacute preciso
conceituar o que seja a verdade em mateacuteria de loacutegica assim valhamo-nos das
liccedilotildees de Manoel Correia de Barros (1945)
Jaacute vimos que pelo processo de abstracccedilatildeo a forma do objeto que conhecemos adquire na nossa inteligecircncia uma modalidade de existecircncia completamente diferente da que tem na realidade No objecto eacute concreta individual na inteligecircncia eacute universal abstracta A verdade do nosso conhecimento tem portanto outro significado Consiste simplesmente em natildeo atribuirmos ao objeto nenhuma nota que natildeo lhe pertenccedila na realidade Eacute o caso de analogia A relaccedilatildeo que o nosso espiacuterito estabelece entre dois conceitos deve ser idecircntica a uma relaccedilatildeo existente de facto entre os dois objetos que eles representam para que o nosso conhecimento seja verdadeiro Natildeo eacute necessaacuterio que conheccedilamos todas as relaccedilotildees entre os dois objectos e muito menos todas as relaccedilotildees de que um decircles pode ser termo para ser verdadeiro o conhecimento natildeo precisa ser exaustivo basta que a nota que afirmamos pertencer ao obejcto lhe pertenccedila realmente Assim falamos verdade quando dizemos que a neve eacute branca embora agravececircrca da neve haja muitas coisas mais a dizer e a saber
Natildeo haacute que saber duma ideia isolada se eacute verdadeira ou natildeo A questatildeo natildeo se potildee dado que a verdade eacute igualdade de relaccedilotildees que exigem claro estaacute dois termos []
Soacute pode ser verdadeiro ou falso o juiacutezo que se exprime pela proposiccedilatildeo e relaciona entre si um sujeito e um predicado Ecircsse sim se o predicado que atribuiacutemos ao sujeito lhe convecircm na realidade eacute verdadeiro se lhe natildeo conveacutem eacute falso (BARROS 1945 p 329-330)
Dessa forma para o estabelecimento da verdade eacute necessaacuterio que natildeo haja
nada de estranho ao objeto ou em outras palavras o predicado deve decorrer do
sujeito natildeo lhe dando qualquer nota que natildeo lhe pertenccedila Por isso afirma Maritain
(2001) que a verdade de nosso espiacuterito consiste em sua conformidade com a coisa
21
Nesse sentido eacute que podemos compreender o que afirmamos quando
falaacutevamos da loacutegica menor em que natildeo podemos atribuir o incerto ao passado
Pois por oacutebvio qualquer nota que natildeo lhe tenha ocorrido natildeo lhe pertence
[] os futuros contingentes natildeo existem no passado nem mesmo como verdades futuras Ontem por exemplo natildeo era uma verdade que ia hoje sair um determinado nuacutemero na lotaria porque natildeo existia ontem nenhum facto em que essa consequumlecircncia estivesse contida de modo necessaacuterio com o qual a proposiccedilatildeo em causa pudesse concordar (BARROS 1945 p 331)
Portanto como estaacute relacionado agrave coisa futura o contingente encontra-se
latente num estado de porvir Por isso eacute que estabelecemos nossa proacutexima
referecircncia acerca da contingecircncia no movimento
22 O Movimento11 da potecircncia para o ato
Eacute interessante notar que o momento propiacutecio agrave decisatildeo eacute um momento de
passagem ou em melhor termo um momento de movimento Natildeo eacute em vatildeo que
Pierre Aubenque (2008) em seu livro A Prudecircncia em Aristoacuteteles dedica boa parte
do capiacutetulo Cosmologia da Prudecircncia ndash o mesmo capiacutetulo no qual faz uma
abordagem sobre contingecircncia ndash ao tema O tempo oportuno (καιρος)
Nesse sentido estaacute [] a moral aristoteacutelica nos convidando a realizar nossa
excelecircncia neste mundo Natildeo podendo desconhecer que o mundo dura e muda no
tempo que eacute o ldquonuacutemerordquo de seu movimento (Aubenque 2008 p156)
Dessa forma eacute preciso compreender o movimento principalmente na tatildeo
conhecida passagem da Potecircncia para o Ato Como bem assinala Tomaacutes de Aquino
no artigo 5 da questatildeo 47 que estatildeo sob os auspiacutecios da contingencia tanto a
prudecircncia quanto a arte12 isso porque ambas ldquoestatildeo para serrdquo a prudecircncia para o
agir e arte para produzir13
11
Aristoacuteteles faz uma grande abordagem acerca do movimento de acordo com RUSSEL (2001) existem trecircs espeacutecies de movimento Movimento enquanto qualidade quantidade e mudanccedila de lugar REALE (1990) apresenta uma quarta divisatildeo enquanto substacircncia Dessa forma nomina o movimento entre a potecircncia e o ato como movimento enquanto qualidade proposta do presente item 12
Jaacute citado e referenciado no item 21 Esse assunto ainda seraacute tratado no item 43 Arte e prudecircncia 13
Sobre o movimento e a relaccedilatildeo entre a lei e o fato assina-la Carnelutti Assim aflora no discurso a conversatildeo do movimento na imobilidade E assim opotildee-se agrave lei ao direito O eterno contraste entre o
22
Ateacute Aristoacuteteles a concepccedilatildeo filosoacutefica acerca do movimento esteve
vinculada a duas teorias uma negava o movimento e outra o afirmava A corrente
que afirmava o movimento era liderada por Heraacuteclito de Eacutefeso (+- 540 aC)
Heraacuteclito afirmava que as coisas mudavam permanentemente em outras
palavras ele afirmava a inconstacircncia das coisas nesse sentido eacute atribuiacuteda a ele a
frase ldquoEntramos e natildeo entramos no mesmo rio Somos e natildeo somosrdquo Portanto o
movimento estaacute presente em todas as coisas agraves vezes afirmando que as coisas
ldquosatildeordquo e que ldquonatildeo satildeordquo ao mesmo tempo sendo como mais tarde diria Platatildeo ldquoO
nosso ser eacute um perpeacutetuo devirrdquo
Ao contraacuterio do que afirmava Heraacuteclito Parmecircnides de Eleia (+- 521 aC)
liderava a corrente que negava o movimento Assim Parmecircnides simplesmente
afirma que ldquoeacuterdquo Seu argumento eacute sustentado pela afirmaccedilatildeo de que aquilo que ldquonatildeo
eacuterdquo natildeo pode sequer ser imaginado pois natildeo se pode imaginar o nada Seu
pensamento culmina numa representaccedilatildeo do mundo como ldquouma esfera material
uniforme soacutelida e finita sem tempo movimento nem mudanccedilardquo (RUSSELL 2001 p
29-38)
De acordo com Parmecircnides os sentidos natildeo seriam instrumentos adequados
ao conhecimento verdadeiro sendo o conhecimento verdadeiro revelado pela razatildeo
Assim a verdade eacute apenas aquilo que eacute produzido pelo pensamento e portanto o
pensar eacute verdadeiramente ldquoserrdquo Eacute nesse sentido que afirma ser o movimento
impossiacutevel pois natildeo admite a passagem do ldquonatildeo serrdquo para o ldquoserrdquo uma vez que o
ldquonatildeo serrdquo eacute nada e natildeo pode ser inteligiacutevel
Ao contraacuterio de seus predecessores Aristoacuteteles inova conciliando ambas as
teorias Pois natildeo nega o que ldquoestaacute por virrdquo de Heraacuteclito e nem o ldquoserrdquo de
Parmecircnides
Aristoacuteteles natildeo nega o vir-a-ser de Heraacuteclito nem o ser de Parmecircnides mas une-os em uma siacutentese conclusiva jaacute iniciada pelos uacuteltimos preacute-socraacuteticos e grandemente aperfeiccediloada por Demoacutecrito e Platatildeo Segundo Aristoacuteteles a mudanccedila que eacute intuitiva pressupotildee uma realidade imutaacutevel que eacute de duas espeacutecies Um substrato comum elemento
ser e o mover-se apresenta-se tambeacutem ao jurista sub specie da oposiccedilatildeo do fato agrave lei A lei estaacute o fato move-se A lei eacute um estado o fato um desenvolvimento A lei eacute o presente o fato natildeo pode ser mais do que passado ou futuro A lei estaacute fora do tempo o fato estaacute dentro (CARNELUTTI 2003 p 40)
23
imutaacutevel da mudanccedila em que a mudanccedila se realiza e as determinaccedilotildees que se realizam nesse substrato a essecircncia a natureza que ele assume Essa contradiccedilatildeo Aristoacuteteles pretende evitar atraveacutes da interpretaccedilatildeo analoacutegica da noccedilatildeo de ser que lhe permite fazer uma distinccedilatildeo fundamental ser natildeo eacute apenas o que jaacute existe em ato ser eacute tambeacutem o que pode ser a virtualidade a potecircncia Assim sem contrariar qualquer princiacutepio loacutegico poder-se-ia compreender que uma substacircncia apresenta-se num dado momento certas caracteriacutesticas e noutra ocasiatildeo manifestasse caracteriacutesticas diferentes se uma folha verde torna-se amarela eacute porque verde e amarelo satildeo acidentes da folha (que eacute sempre folha independente de sua coloraccedilatildeo) A qualidade amarelo eacute uma virtualidade da folha que num certo momento se atualiza E essa passagem da potecircncia ao ato eacute que constitui segundo a teoria de Aristoacuteteles o movimento O termo movimento tem frequentemente a
mesma significaccedilatildeo que os vocaacutebulos mudanccedila e devir (ORIOLO
2009)
A compreensatildeo do ldquoserrdquo14 eacute explicada detalhadamente no Livro VII da
Metafiacutesica (Met VII 1 1028a10) Na passagem 1039b20 descreve a substacircncia
como sendo de dois tipos uma vez que o primeiro tipo seria uma combinaccedilatildeo de
foacutermula com a mateacuteria e o segundo tipo como sendo a forma em seu sentido pleno
Sendo a forma uma constante inadmitindo acidentes ao contraacuterio da foacutermula com a
mateacuteria que eacute passiacutevel de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo
Portanto a mudanccedila parece compreender como predicados ato e potecircncia
pois natildeo seria possiacutevel movimento enquanto ato uma vez que neste a causa final
jaacute fora atingida nem enquanto soacute potecircncia uma vez que algo pode permanecer
nesse estado sem que haja qualquer mudanccedila Nesse sentido o movimento eacute
potecircncia e ato
Para Aristoacuteteles o movimento eacute a a realizaccedilatildeo15 daquilo que estaacute em
potecircncia (Fiacutes III 1 201 a 10) Ou seja o movimento eacute a passagem da potecircncia
para o ato Um dos exemplos citados na Fiacutesica eacute o crescimento como sendo a
realizaccedilatildeo a passagem da potecircncia para o ato16 De acordo com Russell (2001)
14
Sobre o ser vide AUBENQUE (2012) 15
έντελέχεια (enteleacutekheia) 16
Y puesto que distinguimos en cada geacutenero lo actual y lo potencial el movimiento es la actualidad de lo potencial en cuanto a tal por ejemplo la actualidad de lo alterable en tanto que alterable es la alteracioacuten la de lo susceptible de aumento y la de su contrario lo susceptible de disminucioacuten mdash no hay nombre comuacuten para ambos mdash es el aumento y la disminucioacuten la de lo generable y lo destructible es la gene- racioacuten y la destruccioacuten la de lo desplazable es el desplazamiento en tanto que decimos que es tal estaacute en actualidad entonces estaacute siendo construido tal es el proceso de construccioacuten y lo mismo en el caso de la instruccioacuten la medicacioacuten la rotacioacuten el salto la maduracioacuten y el envejecimiento (Fiacutes III 1 201 a 16)
24
Se um frasco de oacuteleo comeccedila a queimar podemos dizer que eacute assim porque jaacute o era potencialmente mesmo antes Poreacutem evidentemente isto natildeo eacute uma explicaccedilatildeo Na verdade por motivos deste tipo algumas escolas filosoacuteficas negaram que se pudesse dizer qualquer coisa uacutetil sobre o assunto Antiacutestenes de Megara foi um deles como veremos adiante Segundo este ponto de vista uma coisa eacute de um determinado tipo ou natildeo e qualquer coisa aleacutem disto eacute tolice Mas eacute claro que fazemos afirmaccedilotildees como ldquoo oacuteleo eacute inflamaacutevelrdquo e elas fazem perfeito sentido A anaacutelise de Aristoacuteteles fornece a resposta correta Ao dizermos que uma coisa eacute potencialmente A queremos dizer que sob certas condiccedilotildees seraacute de fato assim [] As condiccedilotildees em questatildeo eacute claro devem ser tais que possam de fato ocorrer quer dizer ser atuais Neste sentido o atual eacute logicamente anterior ao potencial Agora pode-se dar uma explicaccedilatildeo da mudanccedila em virtude de uma substacircncia que eacute portadora potencial de uma seacuterie de qualidades que nela se tornam sucessivamente atuais (RUSSELL 2001 p 113)
Assim poderiacuteamos dizer que o hilemorfismo eacute o locus onde Aristoacuteteles
ensaia a teoria do movimento pois eacute da realidade sensiacutevel constituiacuteda de mateacuteria17 e
forma que podemos imaginar o salto e os possiacuteveis acidentes entre a potecircncia e o
ato ldquo[] parece que para a mesma coisa eacute possiacutevel tanto ser como natildeo ser Assim
por exemplo tudo aquilo que pode caminhar ou ser cortado pode natildeo caminhar ou
natildeo ser cortado E a razatildeo disso eacute que essas coisas que satildeo desta maneira em
potecircncia nem sempre satildeo em atordquo (Da Int 21b10) Essa postura apresentada em
Da Interpretaccedilatildeo pode ser contemplada tambeacutem na Metafiacutesica ldquo[] a mesma coisa
pois pode ser potencialmente ao mesmo tempo dois contraacuterios mas natildeo pode ser
atualmenterdquo (Met IV 5 1009b34-36)
No estudo das causas18 Aristoacuteteles as classifica em quatro quais sejam
causa formal causa material causa eficiente e causa final Considerar apenas a
forma e a mateacuteria natildeo eacute suficiente pois teriacuteamos uma teoria estaacutetica Como estamos
tratando de uma realidade dinacircmica eacute necessaacuterio portanto que consideremos a
existecircncia de um agente e seu objetivo
Assim a mateacuteria eacute potecircncia por estar apta a receber a forma e
consequentemente alcanccedilar o ato Tal como o bloco de granito estaacute apto a tornar-se
a Vecircnus de Milo
17
ύλη (hyle) 18
Sobre as quatro causas Giovanni Reale explica sua relaccedilatildeo com a Fiacutesica em especial no que
concerne ao movimento vide (REALE 2001 p 57)
25
Em De Anima (432a15 - 433b) Aristoacuteteles descreve o movimento como
pertencente agrave razatildeo praacutetica De acordo com o texto o intelecto ou a razatildeo
especulativa nada pensa na esfera do praacutetico nem delibera acerca dos objetos a
serem evitados ou buscados enquanto o movimento local diz respeito sempre ao
evitar ou ao buscar de algum objeto
Nesse importante trecho estatildeo inseridas as bases do silogismo praacutetico19
destarte a assertiva que segue o trecho eacute a seguinte ldquoe o ponto final do processo
de raciocinar constitui o ponto de partida da accedilatildeo Eacute por boa razatildeo que esses dois
nomeadamente o desejo e o intelecto praacutetico satildeo considerados fonte do
movimentordquo (DA 432a17)
Em sua Metafiacutesica (1046b5) afirma que toda potecircncia racional admite
resultados contraacuterios diferente das potecircncias irracionais onde o resultado eacute
necessaacuterio O exemplo utilizado eacute o do calor e o da medicina o calor soacute pode
produzir calor enquanto a medicina pode produzir sauacutede e doenccedila
Portanto o movimento pertencente agrave razatildeo praacutetica eacute para noacutes a passagem
da potecircncia para o ato Em tal passagem podemos constatar a presenccedila de
resultados contraacuterios ou seja aquilo que eacute em potecircncia natildeo o seraacute
19
Sobre ldquosilogismo praacuteticordquo vide Pierre Aubenque (2008 p 52) ldquologo entre a teoria e a praacutetica e
finalmente entre a ciecircncia e a prudecircncia esta uacuteltima relativa menos agrave ldquodeduccedilatildeordquo que desce do
princiacutepio agrave aplicaccedilatildeo do que a um ldquoempirismordquo que se esforccedila bem ou mal por se orientar no acircmago
mesmo do particularrdquo Neste trecho parece afastar-se da loacutegica Mais adiante na p 254 aborda
novamente o tema e conclui por uma perspectiva conciliadora ou seja apresenta duas foacutermulas para
a deliberaccedilatildeo uma a do silogismo praacutetico como aplicaccedilatildeo do universal ao particular e a outra que diz
respeito agrave escolha judiciosa dos meios Em sua Histoacuteria da Eacutetica Alasdair MacIntyre (1991 p 76 -
77) ldquoAristoacuteteles caracteriza la forma de deliberacioacuten implicada como un silogismo praacutectico La
premisa mayor de un silogismo semejante es un principio de accioacuten en el sentido de que cierta clase
de cosas es buena conviene o satisface a cierta clase de personas La premisa mayor es la
afirmacioacuten garantizada por la percepcioacuten de que hay un ejemplo de que aunque misterioso en su
contenido aclara la forma del silogismo praacutectico La premisa mayor indica que el alimento seco es
bueno para el hombre la premisa menor sentildeala la presencia de ese tipo de alimento y la conclusioacuten
es que el agente lo ingiere Que la conclusioacuten es una accioacuten pone de manifiesto que el silogismo
praacutectico es un modelo de razonamiento por parte del agente y no un modelo de razonamiento ajeno
sobre lo que el agente deberiacutea hacer (por eso una segunda premisa menor que indicara por ejemplo
la presencia de un en cuanto nos alejariacutea de la cuestioacuten) Ni tampoco es un modelo de confundirse
con aquellos silogismos muy comunes cuya conclusioacuten es una afirmacioacuten de este tipo Toda su
finalidad reside en indagar el sentido en que una accioacuten puede ser la resultante de un razonamientordquo
26
necessariamente em ato Da admissatildeo de tais resultados decorre a indeterminaccedilatildeo
Eacute justamente essa indeterminaccedilatildeo que justifica a deliberaccedilatildeo
23 Indeterminismo e a eacutetica das virtudes
Iniciamos o segundo capiacutetulo afirmando que tanto a prudecircncia quanto a
equidade pertencem ao campo da accedilatildeo e que ambas se manifestam nas situaccedilotildees
contingentes20 Revisitando os conceitos da loacutegica foi possiacutevel identificar a natureza
da contingecircncia como pertencente agraves modalidades Por fim identificamos que o
movimento entre a potecircncia e o ato eacute uma fonte contingencial uma vez que a
potecircncia admite atualizaccedilotildees contraacuterias evidenciando o que chamamos de
indeterminaccedilatildeo21
Neste item pretendemos compreender a natureza da indeterminaccedilatildeo como
um chamamento para accedilatildeo asseverando as diferentes concepccedilotildees da noccedilatildeo de
acaso nas obras de Aristoacuteteles
Pierre Aubenque (2008) em seu livro A prudecircncia em Aristoacuteteles faz uma
profunda leitura das obras do Estagirita evidenciando trecircs distintas concepccedilotildees de
acaso Na primeira delas uma leitura da Eacutetica Eudecircmia onde o acaso aparece sob a
forma de ldquofortunardquo Na segunda uma leitura da Fiacutesica esboccedilando o acaso como
inserto em sua teoria da causalidade E na terceira e uacuteltima uma leitura da Eacutetica a
Nicocircmaco o acaso enquanto indeterminaccedilatildeo objetiva isto eacute contingecircncia As trecircs
concepccedilotildees satildeo detalhadamente explicadas por Pierre Aubenque (2008 p 117-
130)
231 Primeira concepccedilatildeo de acaso A boa fortuna
20
Parece que a contingecircncia se manifesta de diversa forma em cada uma das virtudes situaccedilatildeo que seraacute analisada mais detidamente no estudo de cada uma delas 21
Aqui o emprego da expressatildeo ldquoindeterminaccedilatildeordquo refere-se a admissatildeo da existecircncia do acaso em verdade natildeo eacute nossa intenccedilatildeo trabalhar a dicotomia ldquodeterminismo-indeterminismordquo
27
Na Eacutetica Eudecircmica Aristoacuteteles procura mostrar que a boa fortuna22 natildeo se
deve ao exerciacutecio das virtudes morais ou intelectuais mas ao bom nascimento
desse modo a boa fortuna eacute algo irasciacutevel
O questionamento eacute formulado Se a boa fortuna natildeo eacute produto da razatildeo
entatildeo eacute um presente de deus ou uma causa natural
As objeccedilotildees seguem no sentido de que o bom nascimento natildeo se explica
pela proteccedilatildeo divina pois seria indigno dos deuses dispensarem favores aos maus
Da mesma forma natildeo seria pela natureza uma vez que ldquoa natureza eacute causa do que
eacute sempre uniforme ou do que acontece frequentemente e o acaso eacute o oposto dissordquo
(EE VII 14 1247a14-31)
Pierre Aubenque (2008) nos daacute a seguinte soluccedilatildeo
Tal objeccedilatildeo no entanto natildeo repousaria sobre uma concepccedilatildeo errocircnea do acaso Aristoacuteteles o pergunta para sugerir uma teoria segundo a qual ldquoeacute preciso rejeitar inteiramente o acaso e dizer que nada acontece por acaso pois quando dizemos que o acaso eacute uma causa haacute na realidade uma outra causa poreacutem ocultada para noacutes Eacute por isso que quando se define o acaso o tomamos como uma causa impenetraacutevel ao raciociacutenio humano (aitian alogon anqrwpinw logismw) como se se
tratasse de uma certa naturezardquo [] essa causa oculta ao entendimento humano que se chama impropriamente acaso eacute num certo sentido uma causa natural ndash e nesse sentido eacute verdadeiro dizer que os homens afortunados o satildeo por natureza Natureza poreacutem que natildeo deve ser entendida no sentido dos fiacutesicos eacute a boa ou maacute natureza o bom ou mau nascimento que eacute um dom dos deuses natildeo para recompensar nossos meacuteritos ou para complementaacute-los mas o dom inicial constitutivo de nosso quinhatildeo que natildeo eacute pois uma consequumlecircncia mas a fonte de nossos meacuteritos ou demeacuteritos (2008 p 119)
Portanto o acaso enquanto boa fortuna parece tanto um presente de Deus
por constituir o quinhatildeo inicial quanto uma causa natural pois os afortunados o satildeo
por natureza (EE VII 14 1247b28)23
Contudo Aubenque (2008) deixa em aberto uma seacuterie de questionamentos a
essas possiacuteveis soluccedilotildees o que nos parece liacutecito uma vez que para nosso objetivo
basta compreender as consequecircncias da boa fortuna no campo da razatildeo praacutetica
Vejamos a exposiccedilatildeo 22
eutuxia 23
Natildeo obstante a essa aparente soluccedilatildeo Pierre Aubenque (2008) natildeo a daacute por resolvida o que percebemos eacute uma questatildeo que tende agrave teologia provavelmente pretende uma soluccedilatildeo no acircmbito de outra obra
28
Mas a concepccedilatildeo de acaso sugerida pelo texto natildeo eacute nem tatildeo clara nem tatildeo isenta de dificuldades como poderia parecer agrave primeira vista Pois jaacute apresenta ao lado da noccedilatildeo religiosa de acaso ndash Forccedila oculta que a tudo dirige ndash uma outra concepccedilatildeo que liga o acaso natildeo mais a transcendecircncia insondaacutevel da divindade mas agraves falhas de sua accedilatildeo Vimos nesses textos que o acaso eacute oposto agrave natureza como excepcional ao uniforme Um pouco mais longe Aristoacuteteles esclarece que o acontecimento casual eacute aquele que certamente deriva das causas embora indefinidas e indeterminadas (apeirwn kai aoristwn) ou seja
do gecircnero de causas do qual natildeo pode haver ciecircncia Sem duacutevida o sentido geral do texto permite entender que Aristoacuteteles toma facilmente o partido da impossibilidade de uma ciecircncia do acaso visto haver algo superior agrave ciecircncia que eacute Deus (AUBENQUE 2008 p 126)
As conclusotildees que se seguem satildeo consequecircncia desta O sentido eacute o de
que o acaso eacute aparente pois seria Deus o primeiro motor Assim o sendo natildeo haacute
que se falar em deliberaccedilatildeo uma vez que a inteligecircncia Divina jaacute a teria previamente
realizado A denominaccedilatildeo ldquoacasordquo eacute funccedilatildeo de nossa ignoracircncia agrave Causa das
causas ou seja Deus
A consequecircncia que estrai Aristoacuteteles eacute que os homens afortunados natildeo devem sua fortuna agrave sua inteligecircncia nem mais particularmente agrave sua capacidade de deliberaccedilatildeo ldquopara qualquer lado que se lanccedilam triunfam sem reflexatildeo (alogoi ontej) deliberar natildeo lhes serve para nada pois
tem neles um princiacutepio que eacute melhor que o intelecto e a deliberaccedilatildeo enquanto os outros tecircm apenas raciociacutenio os afortunados natildeo o tem mas satildeo habitados pelo deusrdquo
24 (AUBENQUE 2008 p 121)
Assim para os afortunados o exerciacutecio das virtudes eacute inuacutetil uma vez que jaacute
possuem os bens necessaacuterios para alcanccedilarem a felicidade Ao contraacuterio dos
afortunados tal exerciacutecio eacute para os virtuosos o caminho alternativo para se
alcanccedilar aquilo que natildeo receberam da natureza ou da Providecircncia Divina
232 Segunda concepccedilatildeo de acaso Acidente
Na Fiacutesica eacute apresentada uma teoria da causalidade que atinge tanto os
seres dotados de escolha quanto os seres natildeo dotados Pierre Aubenque (2008)
24
EE VII 14 1248a29-33
29
explica que o acaso natildeo eacute o encontro de duas seacuteries causais mas o encontro de
uma seacuterie causal real dotada de uma certa finalidade com uma finalidade
imaginaacuteria de modo que tal encontro poderia ser retrospectivamente reconstruiacutedo a
partir do resultado
O exemplo extraiacutedo da Fiacutesica25 eacute de um homem que ao ir ao mercado
encontra-se por acaso com um algueacutem que o deve os fatos se desenrolam como
se o motivo de tal homem estar ali fosse cobrar a diacutevida quando de fato o motivo
era outro Essa interpretaccedilatildeo do acaso agora parece evidente vejamos
[] este motivo o uacutenico real eacute pois causa por acidente de um efeito que natildeo era visado como tal o ressarcimento da diacutevida Como se vecirc uma tal concepccedilatildeo do acaso natildeo introduz nenhuma falha no encadeamento causal o acaso apenas acrescenta uma intenccedilatildeo a qual sendo imaginaacuteria de fato natildeo acrescenta nem suprime nada agrave realidade do processo natural O acaso nesse sentido eacute uma ilusatildeo retrospectiva a projeccedilatildeo de uma finalidade humana sobre uma relaccedilatildeo causal que eacute por si mesma inteiramente estranha a esta finalidade (AUBENQUE 2008 p 126)
Essa noccedilatildeo que segundo AUBENQUE (2008) soa como determinista
recebe mais adiante um desenvolvimento mais apurado O acaso eacute concebido natildeo
como causa mas sim como efeito Desta forma o acaso enquanto encontro de uma
seacuterie causal e de um fim natildeo perseguido aparece como fato excepcional e sem
causas ao menos determinaacuteveis pois suas causas sendo causas acidentais satildeo
indeterminaacuteveis ldquoa causa por si mesma eacute determinada a causa por acidente eacute
indeterminada pois a pletora de acidentes possiacuteveis de uma coisa eacute infinitardquo (Fiacutes II
5 196b27-29)26 ldquoO acaso natildeo aparece senatildeo num mundo onde o acidente ndash ou
seja o que adveacutem sumbanei a uma coisa ndash natildeo se deixa reduzir agrave essecircncia um
mundo onde nada eacute dedutiacutevel onde a infinidade de acidentes possiacuteveis de uma
coisa tornam imprevisiacuteveis as combinaccedilotildees que daiacute podem resultarrdquo (AUBENQUE
2008 p 127)
Portanto a noccedilatildeo de acaso apresentada na Fiacutesica diferencia-se da boa
fortuna apresentada na Eacutetica a Eudemo pois enquanto a boa fortuna refere-se ao
25
Fiacutes II 5 196b 33-197a5 26
Fiacutes II 5 196b27-29
30
bom nascimento o acidente na Fiacutesica refere-se a incontaacuteveis possibilidades que nos
impedem de antever os possiacuteveis resultados
233 Terceira concepccedilatildeo de acaso contingecircncia
Diferente das duas concepccedilotildees anteriores a exposiccedilatildeo da Indeterminaccedilatildeo
objetiva ou contingecircncia passa a ter um cunho teoloacutegico-antropoloacutegico Parece que
a visatildeo da Eacutetica a Nicocircmaco sobre o acaso estaacute mais direcionada ao traacutegico
Pierre Aubenque (2008 p 127-28) inicia fazendo um interessante paralelo
entre o Saacutebio e o Prudente procurando entre esses aquele que poderaacute atingir a
felicidade A conclusatildeo como eacute de se esperar27 indica o prudente como aquele que
poderaacute um dia ser chamado feliz
Contudo o referido autor natildeo negligencia as aparentes objeccedilotildees ateacute mesmo
porque Aristoacuteteles natildeo as negligenciou Muito pelo contraacuterio ainda que de forma
bem tiacutemida Aristoacuteteles fez breve passagem expondo a grandeza da vida
contemplativa
A argumentaccedilatildeo apresentada por comentadores28 pode ser resumida da
seguinte forma Se o que o homem tem de mais proacuteximo a Deus eacute o intelecto entatildeo
Deus quer bem os saacutebios portanto os saacutebios satildeo felizes Nesse sentido a noccedilatildeo
temporal de felicidade inexiste pois basta o exerciacutecio das faculdades intelectivas
para alcanccedilar o estado de felicidade (AUBENQUE 2008)
A objeccedilatildeo apresentada por Pierre Aubenque (2008 p128) eacute clara De
acordo com ele eacute nesse ponto que Aristoacuteteles se afasta de toda a tradiccedilatildeo socraacutetica
pois no pensamento aristoteacutelico a virtude ainda que natildeo suficiente eacute condiccedilatildeo
necessaacuteria da felicidade
Ainda de acordo com essa objeccedilatildeo estaacute que a definiccedilatildeo de felicidade eacute
composta pela virtude e pelos bens exteriores e bens do corpo Por oacutebvio esses
dois uacuteltimos bens ldquonatildeo podem ser adquiridos pelo exerciacutecio ou meacuterito eles
dependem da boa fortunardquo (AUBENQUE 2008 p 129)
27
Afinal este eacute o tema desta dissertaccedilatildeo 28
Comentadores citados por AUBENQUE (2008) ZELLER Die Philosophie der Griechen II 2 1921 4ordf DIRLMEIER F Magna Moralia 1958
31
Destarte o primeiro desses bens a virtude natildeo pode ser compreendida sem
ter por referencial a contingecircncia Pois como jaacute exposto para ser feliz eacute preciso ser
virtuoso para ser virtuoso eacute preciso ter condiccedilotildees externas para exercitar as
virtudes
[] inicialmente porque a virtude necessita de uma mateacuteria para se exercer e como vimos de um ldquomundordquo ou seja necessita de condiccedilotildees que natildeo dependem de noacutes como amigos dinheiro um certo poder poliacutetico e tambeacutem de ocasiotildees as quais natildeo se oferecem a todos (Heacutercules teve a oportunidade de encontrar o leatildeo de Nemeacuteia e a hidra de Lerna Mas num segundo sentido natildeo pode haver felicidade completa sem a plenitude da vida (bioj teleioj) o que supotildee sem
duacutevida uma duraccedilatildeo optima mas tambeacutem a integridade do corpo e a prosperidade de nossos empreendimentos o que os gregos resumem em uma palavra eupraia (AUBENQUE 2008 p129)
Para encerrar a questatildeo entre o saacutebio e o prudente eacute exposta uma seacuterie de
argumentos que pretendem demonstrar a fragilidade dos argumentos socraacuteticos por
exemplo que enquanto Deus basta a si mesmo o homem precisa ter amigos ou
que o saacutebio necessita do oacutecio Enfim tantas satildeo as condiccedilotildees externas que natildeo
parece o saacutebio poder ser tatildeo autaacuterquico quanto pretende a visatildeo socraacutetica para ser
feliz
Mas a concepccedilatildeo perseguida em A Prudecircncia em Aristoacuteteles eacute a do fracasso
da Providecircncia Divina Isso quer dizer que a ldquovirtude depende do mundo tanto
quanto de suas condiccedilotildees de existecircncia e este mundo natildeo depende de noacutes Eis o
virtuoso de Aristoacuteteles e mesmo o contemplativo ndash os quais satildeo menos duas
personagens distintas do que a mesma personagem em niacuteveis diferentes de
excelecircnciardquo (AUBENQUE 2008 p 135) ambos condicionados agrave heteronomia e agrave
relaccedilatildeo de ldquoacasordquo Haacute algo de traacutegico na vida moral decorrente da uniatildeo entre a
felicidade e a virtude que natildeo eacute por assim dizer analiacutetica como acreditavam os
socraacuteticos mas sempre sinteacutetica porque depende numa proporccedilatildeo irredutiacutevel do
acasordquo (AUBENQUE 2008 p 135)
[] o ideal de Aristoacuteteles natildeo pode consistir numa assimilaccedilatildeo ao mundo em seu conjunto visto que este soacute eacute racional em suas partes superiores mas somente na imitaccedilatildeo da ordem que nelas reina O conhecimento dessa ordem que natildeo pode ser procurado na fiacutesica como para os estoacuteicos mas na teologia eacute o que Aristoacuteteles nomeia sabedoria Mas a
32
vida segundo a sabedoria natildeo eacute imediatamente acessiacutevel ao homem por uma ascese interior pois ela depende tambeacutem em suas condiccedilotildees de realizaccedilatildeo das circunstacircncias exteriores as quais natildeo satildeo nem na aparecircncia nem profundamente inteiramente racionais O reino da sabedoria exige pois um domiacutenio preacutevio das circunstacircncias domiacutenio que natildeo pode ser adquirido senatildeo por uma accedilatildeo teacutecnica sobre o mundo Se para os estoacuteicos a indiferenccedila em relaccedilatildeo agraves circunstacircncias se justificaraacute em uacuteltima anaacutelise pela crenccedila na Providecircncia e na convicccedilatildeo correlata de que todo real eacute racional o homem de Aristoacuteteles natildeo saberaacute fingir indiferenccedila a respeito de um mundo cuja indeterminaccedilatildeo eacute a forma propriamente aristoteacutelica do mal Poreacutem aqui se opera uma inversatildeo que forneceraacute o domiacutenio e no sentido mais forte do termo a ldquochancerdquo da accedilatildeo moral se a contingecircncia eacute a fonte do mal ela torna possiacutevel as iniciativas humanas em vista do bem a indeterminaccedilatildeo signo da impotecircncia da razatildeo universal eacute ao mesmo tempo abertura agrave accedilatildeo racional do homem [] O homem de Aristoacuteteles natildeo pode se tornar indiferente agraves circunstacircncias mas lhe eacute permitido na medida em que satildeo moldaacuteveis para moldaacute-las humanamente e se natildeo eacute convidado a mudar antes seus desejos do que a ordem do mundo eacute porque Aristoacuteteles conta com o desejo racional para terminar de ordenar o mundo tomando o lugar de uma Providecircncia faliacutevel (2008 p143-145 negrito nosso)
Dessa forma natildeo depende dos homens apenas moldar seus proacuteprios
desejos mas tambeacutem o mundo por ser somente ordenado de modo geral Dessa
forma a contingecircncia eacute o mal e o remeacutedio de acordo com o desejo29 do homem Eacute
nesse sentido que devemos abordar um tema que eacute corrente entre os
comentadores30 de Aristoacuteteles a trageacutedia
2331 Trageacutedia31
O elemento traacutegico heranccedila da mais alta literatura e ao mesmo tempo do
conhecimento popular do homem grego estaacute presente na obra do Estagirita Eacute
nesse sentido que os traccedilos mais marcantes de sua filosofia estatildeo inflados com a
nossa fraacutegil condiccedilatildeo humana
29
Sobre ldquodesejordquo eacute interessante notar que eacute a fonte do movimento e tambeacutem da escolha racional Para tanto consulte De Anima e a Eacutetica a Nicocircmaco 30
Sobre ldquotrageacutediardquo Vide AUBENQUE (2008) LOPES (2007) NUSSBAUM (2009) Martha Nussbaum (2009) faz uma detalhada exposiccedilatildeo acerca do elemento traacutegico Mocircnica Sette Lopes (2007 p 51) expotildee igualmente sobre o gecircnero literaacuterio ldquoA poesia traacutegica assemelha-se a uma escultura maleaacutevel e dinacircmica que visa agrave educaccedilatildeo da alma humana pelo exemplordquo Aqui optamos pelos aspectos expostos por Pierre Aubenque uma vez que esta em concordacircncia com sua exposiccedilatildeo sobre a contingecircncia 31
Vide item 44 Deliberaccedilatildeo e Escolha
33
O que parece ser o centro de toda sua eacutetica a felicidade estaacute mediada por
uma seacuterie de condiccedilotildees que natildeo depende de noacutes conforme jaacute citamos ldquoHaacute algo de
traacutegico na vida moral [] mas sempre sinteacutetica porque depende numa proporccedilatildeo
irredutiacutevel do acasordquo (AUBENQUE 2008 p 135)
O traacutegico eacute apresentado por Aristoacuteteles com um sentido mais humanizado
que divinizado ao contraacuterio de uma trageacutedia onde os heroacuteis satildeo imortalizados por
seus feitos o Estagirita apresenta um homem que faz o melhor que pode vejamos
Se esse traccedilo natildeo surpreendeu os comentadores eacute porque o traacutegico tem em Aristoacuteteles um aspecto residual de modo que se pocircde ver nele a sobrevivecircncia de uma prudecircncia popular ndash nada aleacutem do que natildeo ser preciso desafiar os deuses proclamando em alto e bom som a autarquia e a ldquoimortalidaderdquo do homem ndash da qual Aristoacuteteles natildeo teria inteiramente se libertado ou simplesmente uma concessatildeo puramente formal a esta mentalidade [] Em Aristoacuteteles o traacutegico eacute residual poreacutem em sentido ontoloacutegico no sentido de uma distacircncia sempre estreitaacutevel mas insuprimiacutevel que separa o homem da felicidade ou mesmo separa a felicidade do homem tout court e faz com que os homens possam ser felizes mas ldquocomo os homens podem secirc-lordquo (AUBENQUE 2008 p 136)
Dessa forma a accedilatildeo humana estaacute numa aacuterea entre o melhor possiacutevel e o
bem absoluto sendo o ponto final de nossa busca o modelo inacessiacutevel ou
superlativo absoluto
Eacute dentro dessa fronteira onde falha a Providecircncia e o traacutegico mostra um
homem que age e age o melhor possiacutevel dentro de suas possibilidades que
podemos compreender os contornos que liga a contingecircncia agrave eacutetica aristoteacutelica
Portanto Pierre Aubenque (2008 p 110-112) esclarece acerca da atuaccedilatildeo
da prudecircncia no campo da contingecircncia que agir e produzir satildeo de alguma forma
se inserir na ordem do mundo para modifica-lo eacute supor que este mundo que
oferece tal latitude comporta certo jogo certa indeterminaccedilatildeo certo inacabamento
Tanto o objeto da accedilatildeo (a prudecircncia) quanto o da produccedilatildeo (a arte) pertencem pois
ao domiacutenio daquilo que pode ser diferente Ora se a disposiccedilatildeo para produzir
acompanhada de regra chama-se arte a disposiccedilatildeo para agir acompanhada de
regra chama-se prudecircncia Por isso a accedilatildeo imanente agrave praacutexis tem menos por objeto
a natureza do que suas falhas ou inacabamentos Esta indeterminaccedilatildeo eacute
34
precisamente o que permite a Aristoacuteteles classificar os processos naturais no
domiacutenio da contingecircncia
Se for pois o homem prudente aquele que estaacute apto agrave accedilatildeo moral a
decisatildeo correta e portanto ao elo que pode ligar o conhecimento geral ao
particular32 tentaremos entendecirc-lo por sua virtude a Prudecircncia Antes poreacutem para
podermos compreender tal virtude bem como na sequecircncia seu conceito de justiccedila
e de equidade devemos fazer uma passagem pela teoria geral das virtudes
32
Essa distacircncia seraacute mais bem abordada em momento oportuno ndash quando tratarmos de prudecircncia e de equidade Aubenque reporta esse assunto em sua obra O problema do ser em Aristoacuteteles (2012 p 63)
35
3 EacuteTICA DAS VIRTUDES
No quarto capiacutetulo de seus Escritos de filosofia II Henrique C de Lima Vaz
faz uma interessante abordagem acerca da eacutetica A ilustraccedilatildeo eacute dada pelo proacuteprio
tiacutetulo Do ethos agrave sociedade Poliacutetica A gecircnese do direito
A proposta do referido capiacutetulo eacute demonstrar que o direito surge com a
relaccedilatildeo eacutetica que soacute pode ser vivenciada na poacutelis ldquoO aparecimento e
desenvolvimento da sociedade poliacutetica caminham em estreita inter-relaccedilatildeo com a
formaccedilatildeo da ciecircncia do ethosrdquo (VAZ 2000 p135) Assim podemos dizer que o
estudo da eacutetica surge e se desenvolve com o surgimento e desenvolvimento da
poacutelis
Neste sentido a lei aparece revelando ter como funccedilotildees educar o indiviacuteduo
agrave vida na cidade ao mesmo tempo em que repara os conflitos onde as virtudes natildeo
satildeo observadas33
A matriz conceptual eacute representada pela ideacuteia de lei (noacutemos) que deve permitir o estabelecimento de uma proporccedilatildeo ou correspondecircncia (analogiacutea) entre a lei ou medida (meacutetron) interior que rege a praxis do indiviacuteduo e a lei da cidade que eacute propriamente o noacutemos e deve assegurar a participaccedilatildeo equumlitativa (eunomiacutea) dos indiviacuteduos no bem que eacute comum a todos e que eacute primeiramente o proacuteprio viver-em-comum De um lado a explicitaccedilatildeo da racionalidade imanente do ethos se constitui como teoria da praxis individual e assume a forma de uma doutrina da virtude (areteacute) ou da Eacutetica no sentido estrito O ethos eacute entatildeo conceptualizado fundamentalmente como haacutebito (hexis) De outro a razatildeo do ethos iraacute exprimir-se na forma de uma teoria do existir e do agir em comum e se apresentaraacute como doutrina da lei justa (politeia) O ethos eacute entatildeo conceptualizado fundamentalmente como costume A ciecircncia da politeia ou a Poliacutetica eacute assim a outra face da Eacutetica (VAZ 2000
p135)
Portanto a eacutetica pretende orientar as relaccedilotildees humanas ordenando as
accedilotildees para o bem comum
33
Voltaremos a falar sobre o assunto quando tratarmos da Justiccedila como Virtude
36
[] as virtudes natildeo encontram seu lugar na vida do indiviacuteduo mas tambeacutem na vida da cidade e que o indiviacuteduo soacute eacute de fato inteligiacutevel como um politikon zocircon
Esse uacuteltimo comentaacuterio sugere que um modo de elucidar o relacionamento entre as virtudes e a moralidade das leis eacute pensar no que consistiria em qualquer eacutepoca fundar uma comunidade para realizar um projeto comum realizar algum bem reconhecido como bem comum por todos os participantes do projeto (MACINTYRE 2001 p 256-257)
Estabelecida a relaccedilatildeo entre a eacutetica e o direito devemos agora procurar os
fundamentos da eacutetica aristoteacutelica para entatildeo verificarmos o comportamento das
virtudes da Prudecircncia da Justiccedila e da Equidade no acircmbito da justiccedila aristoteacutelica
31 Eacutetica a Nicocircmaco
Na forma que comporta o tiacutetulo deste item passaremos a tratar algumas
questotildees pertinentes ao conteuacutedo da obra Eacutetica a Nicocircmaco a fim de contextualizar
o objeto deste trabalho
Os principais escritos de Aristoacuteteles sobre eacutetica que chegaram a noacutes satildeo
Eacutetica a Nicocircmaco Eacutetica a Eudemo e a Eacutetica Maior esta uacuteltima tambeacutem conhecida
como Magna Moraacutelia Os escritos sobre eacutetica em especial a Eacutetica a Nicocircmaco e a
Eacutetica a Eudemo comportam caracteriacutesticas de notas tomadas por disciacutepulos tendo
por base os ensinamentos passados pelo Estagirita (RUSSELL 2001 p 109)
Por ser uma obra mais amplamente aceita tomaremos a Eacutetica a Nicocircmaco
como principal referecircncia aristoteacutelica para a Eacutetica das Virtudes sem contudo
ignorar algum detalhe que possa elucidar aspectos pertinentes agrave nossa pretensatildeo e
presente nas outras duas obras citadas Nesse sentido comenta Eduardo Bittar
A Ethica Nicomachea recebeu amplo tratamento devido ao interesse que desperta dos modernos comentadores da obra o mesmo natildeo sucede com as duas outras obras dedicadas agrave temaacutetica Aliaacutes a trilogia natildeo parece gerar uniformidade no corpo dos eruditos pois a recepccedilatildeo de uma (EE ou MM) ou de ambas (EE e MM) natildeo tem sido paciacutefica questionando-se natildeo soacute acerca da pertinecircncia e da originalidade destas obras mas tambeacutem acerca da cumulaccedilatildeo tautoloacutegica de escritos para o tratamento de um mesmo problema o que seria assimeacutetrico na obra aristoteacutelica onde parece ser a regra a existecircncia de uma uacutenica obra para
37
a investigaccedilatildeo de uma problemaacutetica determinada (BITTAR 2003 p992)
A Eacutetica a Nicocircmaco inicia-se traccedilando questionamentos acerca do que seja
o bem Parte-se da ideia de que o indiviacuteduo suas accedilotildees e escolhas estatildeo voltadas
a um bem Este bem eacute aquilo a que todas as coisas possuem certa tendecircncia
Assim o fim de todas as accedilotildees humanas eacute o sumo bem (EN I 1 1094a) O
conhecimento deste fim conduz agrave determinaccedilatildeo da ciecircncia cujo bem supremo eacute o
objeto
Essa ciecircncia cujo estudo caberaacute agrave Eacutetica eacute a ciecircncia mestra isto eacute a
Poliacutetica As accedilotildees por si mesmas boas e justas podem admitir uma ampla variedade
de opiniotildees e neste sentido podem ter sua existecircncia devida agraves convenccedilotildees e natildeo
naturalmente Daiacute portanto constituem objeto da poliacutetica Assim visa-se a accedilatildeo do
bem mas o seu conhecimento natildeo eacute proveitoso a todos Agravequeles que desejam e
agem conforme um princiacutepio racional isso seraacute uacutetil por outro lado natildeo teraacute utilidade
para o jovem sem experiecircncias dos fatos da vida o qual segue tatildeo somente suas
paixotildees (ENI 3 1095a)
Essa interessante passagem revela ser o objeto das deliberaccedilotildees da poacutelis
temas como o ldquobomrdquo e o ldquojustordquo Aristoacuteteles natildeo ignora o fato de que o bom e o justo
admitem uma gama de opiniotildees por isso tais temas estatildeo na pauta das
convenccedilotildees
Aristoacuteteles argumenta que o sumo bem o bem perseguido por todos natildeo
pode ser o prazer a honra ou a riqueza Sobre o prazer argumenta que natildeo pode
se identificar com o sumo bem pois o prazer e o gozo satildeo proacuteprios agrave vida levada
pelos animais inferiores34
34
Interessante nota do tradutor quando Aristoacuteteles justifica a conduta de tais pessoas por se
espelhares em pessoas de alta posiccedilatildeo como Sardanaacutepalo De acordo com a nota de nuacutemero 08 ldquoSardanaacutepalo monarca assiacuterio sem consistecircncia histoacuterica de caraacuteter miacutetico O sofista tardio Ateneu de Naucraacutetis (circa 215 AD) atriui uma espeacutecie de maacutexima a Sardanaacutepalo que eacute esthie pine paize os talla touumltouuml ouumlk axia touuml apokrotematos (esthie pine paize os talla touumltouuml ouumlk axia touuml
apokrotematos) ou seja ldquoCome bebe diverte-te visto que tudo o mais natildeo vale um estalo dos dedosrdquo lhe atribui tambeacutem um trecho de um desabafo que assim finaliza kein ekho oss efagon kai efuumlbrisa kai met eroacutetos terpn epathon ta de polla kai olbia panta leluumltaiefagon kai efuumlbrisa kai met eroacutetos terpn epathon ta de polla kai olbia panta leluumltai) quer dizer ldquoeu tenho o que comi e ainda os voluptuosos atos de ultraje e amor carnal que realizei e experimentei ao passo que minha riqueza se foirdquo (BINI 2009 p 42)
38
Ora se todo o conhecimento e todo o trabalho visam a algum bem pode-se
afirmar que o fim seraacute a felicidade (RUSSELL 2001 p127) ndash objeto final da vida
fruto de atividade conforme a mais alta de todas as formas de excelecircncia (EN X 7
1177a)
Destarte faz-se necessaacuterio buscar o bem e conhecer o que ele eacute pois a
finalidade para tudo que se faz eacute o bem A vida ativa que possui um princiacutepio
racional eacute a melhor funccedilatildeo do homem Os bens satildeo as atividades da alma e
portanto parece que a felicidade se identifica com a virtude Por conseguinte agrave
virtude cabe a atividade virtuosa Entretanto o sumo bem estaacute em ato uma vez que
pode haver um estado de acircnimo sem gerar resultado positivo
[] pois pode existir o estado de espiacuterito sem que ele produza qualquer
resultado bom como no caso de uma pessoa adormecida ou inativa por
outra razatildeo mas natildeo pode ocorrer o mesmo com a atividade conforme agrave
excelecircncia de qualquer maneira ela se manifestaraacute e bem Da mesma
forma que nos jogos oliacutempicos os coroados natildeo satildeo os homens mais
fortes e belos e sim os que competem (alguns destes seratildeo os
vitoriosos) quem age conquista e justamente as coisas boas da vida
(EN I 8 1099a)
De acordo com Aristoacuteteles a mais apraziacutevel melhor e mais nobre coisa do
mundo eacute a felicidade pois a felicidade eacute uma atividade da alma de acordo com a
virtude e natildeo sendo necessariamente esta mesma felicidade a riqueza prazer ou
honra e outros mais Constata-se assim que estes bens exteriores satildeo necessaacuterios
agrave felicidade uma vez que natildeo se podem realizar atos nobres sem os meios (EN I
8 1099b)
Questiona-se se a felicidade eacute adquirida atraveacutes da aprendizagem do
haacutebito ou se eacute uma daacutediva da Providecircncia Divina ou eacute simples produto do acaso35
Sendo a felicidade a melhor coisa do mundo entatildeo seguramente seraacute uma daacutediva
divina ainda que resulte da virtude pela aprendizagem ou adestramento Portanto
natildeo se deve confiar ao simples acaso aquilo que eacute o melhor (EN I 9 1099b)
Esse ponto sem duacutevida eacute o convite agrave accedilatildeo humana e a admissatildeo do que
denominamos fracasso da Providecircncia Uma vez que ao homem em sua condiccedilatildeo
35
Voltaremos a este ponto quando tratarmos das virtudes morais e intelectuais
39
de mortal e natildeo-Deus natildeo eacute permitido se dar ao luxo de esperar uma soluccedilatildeo vinda
dos ceacuteus Pelo contraacuterio o melhor emprego que ele pode fazer eacute agir modificando e
adaptando seus desejos e possibilidades
Sobre as virtudes afirma o Filoacutesofo que existem as virtudes intelectuais as
que resultam do ensino e necessitam de experiecircncia e tempo e as virtudes morais
as quais satildeo adquiridas atraveacutes do haacutebito e pelo exerciacutecio como neste exemplo
[] os homens se tornam construtores construindo e se tornam citaristas tocando ciacutetara da mesma forma tornamo-os justos praticando atos justos moderados agindo moderadamente e corajosos agindo corajosamente (EN II 1103b1)
Portanto eacute atraveacutes da praacutetica reiterada que pode o homem moldar seu
caraacuteter sendo o homem virtuoso resultado de uma vida guiada pela reta razatildeo
32 Partes da Alma
Como exposto eacute ldquoo bem a finalidade de todas as coisasrdquo (EN I 1 1094a1)
sendo a felicidade o bem maior a ser alcanccedilado Nesse sentido podemos afirmar
que a accedilatildeo eacute uma ldquocerta atividade da alma em conformidade com a virtude perfeitardquo
(EN I 13 1102a5)
Aristoacuteteles divide a alma em partes de acordo com as atividades inerentes a
cada uma A primeira divisatildeo comporta duas partes sendo uma irracional e outra
dotada de razatildeo
No que se refere agrave psicologia algum ensino corrente em discursos externos eacute satisfatoacuterio e pode ser aqui adotado a saber que a alma eacute bipartida uma parte sendo irracional e a outra capacitada de razatildeo (Se essas duas partes satildeo realmente distintas no sentido que o satildeo as partes do corpo ou de qualquer outro conjunto divisiacutevel ou se embora distinguiacuteveis no pensamento como duas satildeo na realidade inseparaacuteveis como os lados convexo e cocircncavo de uma curva eacute uma questatildeo que carece de importacircncia para o assunto em pauta) (EN I 13 1102a27)
40
A segunda divisatildeo refere-se agrave parte irracional da alma Tal parte comporta a
funccedilatildeo vegetativa comum a todas as coisas vivas que diz respeito agrave nutriccedilatildeo e ao
crescimento e agrave funccedilatildeo sensitiva Sobre a parte vegetativa eacute interessante notar que
natildeo obstante ser comum a todos os seres vivos sua virtude natildeo eacute caracteriacutestica
dos seres humanos Vejamos
Considera-se ademais que na parte irracional da alma haacute uma divisatildeo que parece ser comum a todas as coisas vivas possuindo natureza vegetativa Refiro-me agrave divisatildeo que produz nutriccedilatildeo e crescimento pois eacute forccediloso supormos que uma faculdade vital dessa natureza existe em todas as coisas que assimilam alimento inclusive os embriotildees sendo que a mesma faculdade estaacute presente tambeacutem no organismo totalmente desenvolvido (o que eacute mais razoaacutevel do que supor uma faculdade nutritiva distinta no uacuteltimo) A virtude dessa faculdade parece portanto ser comum a todas as coisas animadas e natildeo caracteriacutestica do ser humano pois acredita-se que essa faculdade ou parte da alma eacute mais atuante durante o sono [enquanto a bondade e a maldade se manifestam minimamente durante o sono] natildeo podendo se distinguir um homem bom de um mau (e daiacute o adaacutegio segundo o qual durante metade de suas vidas natildeo haacute diferenccedila entre o feliz e o infeliz) Isso constitui um efeito natural do fato de o sono ser uma cessaccedilatildeo das atividades da alma das quais depende sua bondade ou maldade ndash exceto pelo fato de ser possiacutevel em algum modesto grau certas impressotildees sensoriais atingirem a alma durante o sono fazendo com que os sonhos dos bons sejam melhores do que aqueles dos homens comuns (EN I 13 1102b11)
Aristoacuteteles afirma que a parte relacionada aos apetites e desejos em geral ndash
a alma sensitiva ndash comum aos animais participa de algum modo do princiacutepio
racional Portanto ainda que tal parte esteja alojada na parte irracional ela manteacutem
em certa medida relaccedilotildees com o princiacutepio racional ldquoPois aprovamos a razatildeo do
indiviacuteduo continente tanto quanto o incontinente e a parte de suas almas que eacute
racional porque os induz na senda correta e os exorta para o curso mais excelenterdquo
(EN I 13 1102b15)
Sobre essa relaccedilatildeo da parte irracional da alma com o princiacutepio racional
Aristoacuteteles afirma que ldquonatildeo se pode duvidar de que tambeacutem na alma existe um
elemento distinto do princiacutepio [racional] que a ele se opotildee e lhe resisterdquo (EN I 13
1102b20-25) Para resolver essa aparente contradiccedilatildeo Aristoacuteteles mantecircm sua
teacutecnica de citar exemplos invocando aqui o exemplo do homem continente
argumentando no sentido do paraacutegrafo supra que ldquoesse segundo elemento como
mencionamos participa do princiacutepio racional Ao menos no homem continente ele
41
acata o comando do princiacutepio e eacute incontestaacutevel que no homem moderado e
corajoso ele eacute ainda mais submisso considerando-se que todas as artes da
natureza desse [tipo de] homem se harmonizam com o princiacutepiordquo (EN I 13
1102b25-30)
Destarte parece ser o princiacutepio racional capaz em alguma medida de
acessar essa parte irracional ldquo[] esse princiacutepio racional eacute capaz de algum modo
de recorrer agrave parte irracional eacute indicado por nossa praacutetica de advertir pelo emprego
que fazemos da censura e da exortaccedilatildeo em geralrdquo (EN I 13 1102b30)
Tal parte eacute responsaacutevel pelo movimento36 essa conclusatildeo eacute desdobrada no
De Anima
Ao menos o seguinte estaacute claro desde de que tenhamos a imaginaccedilatildeo na conta de uma espeacutecie de intelecccedilatildeo haacute duas fontes do movimento local nomeadamente o desejo e o intelecto [] A conclusatildeo eacute que estes dois satildeo fontes do movimento local o intelecto e o desejo entendendo eu aqui o intelecto que calcula ou raciocina em vista de um objetivo isto eacute o intelecto praacutetico o qual difere do intelecto teoacuterico (especulativo) em funccedilatildeo do caraacuteter de seu fim Por sua vez o desejo constantemente persegue um objetivo sendo que o proacuteprio objeto do desejo torna-se princiacutepio do intelecto praacutetico e o ponto final do processo de raciocinar constitui o ponto de partida da accedilatildeo (DA III 10 433a10-20)
Dessa forma tanto a parte irracional quanto a alma como um todo eacute dupla
Sendo que sua parte vegetativa natildeo toma parte do princiacutepio racional a outra
poreacutem que compreende os apetites e o desejo em geral participa de certo modo
do princiacutepio racional sendo obediente e submissa a ele que eacute o sentido que
emprestamos ao acatamento do ldquoracionalrdquo quando falamos em dar atenccedilatildeo ao
proacuteprio pai ou aos proacuteprios amigos e natildeo aquele que atribuiacutemos ao ldquoracionalrdquo nas
matemaacuteticas (EN I 13 1102b30)
Ora a virtude tambeacutem eacute diferenciada em consonacircncia com essa divisatildeo da alma Algumas formas de virtude satildeo chamadas de virtudes intelectuais e outras de virtudes morais A sabedoria e o entendimento e a prudecircncia satildeo virtudes intelectuais a generosidade e a temperanccedila satildeo virtudes morais Ao descrevermos o caraacuteter moral de algueacutem natildeo
36
Vide o item 22 Movimento da potecircncia para o ato
42
dizemos que se trata de algueacutem saacutebio ou capaz de entendimento mas que eacute uma pessoa moderada ou soacutebria Mas um homem saacutebio tambeacutem eacute louvado por sua disposiccedilatildeo e chamamos de virtudes as disposiccedilotildees dignas de louvor (EN I 13 1103a5)
Aristoacuteteles apresenta a parte racional da alma como dotada de duas
faculdades a faculdade cientiacutefica e a faculdade calculadora (EN VI 1 1139a15)
A primeira parte eacute dita ldquocientiacuteficardquo (epistemonikoacuten) enquanto a segunda ldquocalculadorardquo (logistikoacuten) Eacute evidente que na primeira entram todas as ciecircncias teoreacuteticas seja a matemaacutetica cujos objetos satildeo necessaacuterios seja a fiacutesica e a metafiacutesica cujos objetos tecircm ao menos princiacutepios necessaacuterios mas nela entram tambeacutem as ciecircncias praacuteticas ndash cujos objetos isto eacute os bens tecircm princiacutepios como vimos ao menos ldquogeralmenterdquo necessaacuterios ndash que portanto do ponto de vista epistemoloacutegico satildeo equiparaacuteveis agravequelas que tecircm princiacutepios necessaacuterios Na segunda entram ao contraacuterio todas as atividades que tecircm por objeto realidades independentes da ldquodeliberaccedilatildeordquo humana porque ndash diz Aristoacuteteles ndash deliberar e calcular satildeo a mesma coisa e ningueacutem delibera sobre as coisas que natildeo podem ser diferentemente (BERTI 1998 p 144)
Sobre essa divisatildeo explica Giovanni Reale
E posto que sejam duas as partes ou funccedilotildees da alma racional uma a que conhece as coisas contingentes e variaacuteveis e outra que conhece as coisas necessaacuterias e imutaacuteveis eacute natural que haja uma perfeiccedilatildeo ou virtude da primeira funccedilatildeo e uma perfeiccedilatildeo ou virtude da segunda funccedilatildeo da alma racional Estas duas partes da alma racional satildeo basicamente a razatildeo praacutetica e a razatildeo teoreacutetica e as respectivas virtudes satildeo as formas perfeitas com as quais se apreende a verdade praacutetica e a teoreacutetica (REALE 1985 p 106 traduccedilatildeo nossa)
37
Conforme vimos existe uma relaccedilatildeo entre a parte racional e a parte
irracional A parte apetitiva da alma irracional tem certa subordinaccedilatildeo agrave parte
37
Y puesto que son dos las partes o funciones del alma racional una la que conoce las cosas contingentes y variables la otra la que conoce las cosas necesarias e inmutables es natural que haya una perfeccioacuten o virtud de la primera funcioacuten y una perfeccioacuten o virtud de la segunda funcioacuten del alma racional Estas dos partes del alma racional son baacutesicamente la razoacuten praacutectica y la razoacuten teoreacutetica y las respectivas ldquovirtudesrdquo son las formas perfectas con las que se aprehende la verdad praacutectica y la teoreacutetica (REALE 1985 p 106 traduccedilatildeo nossa)
43
racional De acordo com o Estagirita eacute a faculdade calculadora que controla os
desejos proacuteprios da parte apetitiva vejamos
A virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo que diz respeito agrave escolha e escolha eacute desejo deliberado conclui-se que se a escolha deve ser boa tanto a razatildeo precisa ser verdadeira quanto o desejo correto e que o desejo tem que buscar as mesmas coisas afirmadas pela razatildeo Estamos nos referindo aqui ao raciociacutenio praacutetico e ao atingimento da verdade relativamente agrave accedilatildeo no que tange ao pensamento especulativo que natildeo concerne agrave accedilatildeo ou produccedilatildeo a funccedilatildeo certa e errada consiste na consecuccedilatildeo da verdade e falsidade respectivamente O atingir da verdade eacute efetivamente a funccedilatildeo de toda parte do intelecto mas a da inteligecircncia praacutetica eacute o atingimento da verdade correspondente ao correto desejo (EN VI 2 1139a25 negrito nosso)
Compreendidas as partes da alma na forma pertinente agrave eacutetica aristoteacutelica
torna-se necessaacuterio o estudo das virtudes em conformidade com tais partes
33 Virtudes Morais
O livro II da Eacutetica a Nicocircmaco faz uma exposiccedilatildeo geral acerca das virtudes
morais Essas virtudes pertencem ao acircmbito da parte irracional da alma mais
especificamente na parte dos desejos e apetites
De acordo com o Estagirita ldquoa virtude moral ou eacutetica eacute o produto do haacutebito
[] E portanto fica evidente que nenhuma das virtudes morais eacute em noacutes
engendrada pela natureza uma vez que nenhuma propriedade natural eacute passiacutevel de
ser alterada pelo haacutebitordquo (EN II 1 1103a15)
Em seu Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Tomaacutes de Aquino esclarece que
Em contraste a virtude eacute gerada pelo costume moral A Virtude moral estaacute na parte apetitiva portanto eacute uma inclinaccedilatildeo para algo apetitivo Esta inclinaccedilatildeo ou eacute por natureza que volta para o que estaacute em conformidade ou eacute pelo haacutebito que se volta para a natureza Assim o nome Virtude moral eacute retirado do haacutebitual com poucas alteraccedilotildees Porque escrever em grego ethos com uma letra e breve designa o caraacuteter ou virtude moral Mas ythos escrito com a letra g que eacute como
44
uma larga h que significa costume Como tambeacutem entre noacutes a palavra moral as vezes significa costumes e as vezes designa o que pertence ao viacutecio ou a virtude (AQUINO 2010 p130 traduccedilatildeo nossa)
38
Aristoacuteteles compara por analogia as virtudes morais com as artes por
ambas serem adquiridas pela reiteraccedilatildeo dos atos que lhes satildeo proacuteprios Admite a
impossibilidade de prescrever com exatidatildeo tais atos contudo descreve uma
foacutermula que pretende direcionar os atos no acircmbito das virtudes Tal foacutermula consiste
em agir de acordo com a justa razatildeo39
Dessa forma o muacutesico se torna bom muacutesico executando reiteradamente
sua(s) especialidade(s) musical (ais) assim como os homens se tornam justos
praticando atos de justos e corajosos realizando atos corajosos
Nessa altura do livro II Aristoacuteteles revela uma das funccedilotildees da lei educar
Vejamos suas palavras ldquo[] legisladores tornam os cidadatildeos bons treinando-os em
haacutebitos de accedilatildeo correta o que eacute a meta de toda a legislaccedilatildeo que se falhar no seu
atingimento seraacute um fracasso [tarefa] no que se distingue a boa constituiccedilatildeo da
maacuterdquo (EN II 1 1103b1-5)
Mas no que consistiria essa boa educaccedilatildeo A resposta dada eacute gostar e natildeo
gostar das coisas apropriadas Assim eacute desenvolvida a teoria geral das virtudes ou
doutrina da mediania pois assim como acontece no que diz respeito agrave sauacutede
acontece com as virtudes ambas satildeo afetadas pelo excesso e pela deficiecircncia
Uma indicaccedilatildeo de nossas disposiccedilotildees eacute fornecida pelo prazer ou pela dor que acompanha nossas accedilotildees []
Na verdade a virtude moral concerne a prazeres e dores pois o prazer nos leva a realizar as accedilotildees vis e a dor nos leva a deixar de realizar accedilotildees nobres []
Ademais se as virtudes tecircm a ver com accedilotildees e paixotildees e toda paixatildeo e toda accedilatildeo satildeo acompanhadas por prazer e dor isso constitui uma demonstraccedilatildeo adicional de que a virtude diz respeito ao prazer e agrave dor[]
38
En cambio la virtude se genera por la costumbre moral La virtud moral estaacute en la parte apetitiva por eso supone cierta inclinacioacuten a algo apetecible Esta inclinacioacuten o es por naturaleza la cual inclina a lo que le es conforme o es por la costumbre que se vuelca hacia la naturaleza Por eso el nombre de la virtude moral estaacute tomado de la costumbre con poco cambio Porque em grego ethos escrito com a letra e breve designa el caraacutecter o virtude moral Pero ythos escrito com la g que es
como uma N larga significa costumbre como tambieacuten entre nosotros la palabra moral a veces significa costumbre y a veces designa lo que pertenece al vicio o a la virtud (AQUINO 2010 p130) 39
Conforme formulaccedilatildeo tomista recta ratio agibilium
45
Mas os seres humanos se corrompem atraveacutes de prazeres e dores a saber quer perseguindo e evitando os prazeres e dores equiacutevocos quer os perseguindo e evitando no momento equiacutevoco ou da maneira equiacutevoca ou em um dos meios equiacutevocos [] (EN II 3 1104b)
Destarte a virtude moral eacute a qualidade segundo a qual se age da ldquomelhor
formardquo40 em relaccedilatildeo aos prazeres e dores sendo o viacutecio o oposto As virtudes satildeo
definidas por Aristoacuteteles como ldquoa disposiccedilatildeo que o torna um bom ser humano e
tambeacutem o que o faraacute desempenhar sua funccedilatildeo bemrdquo (EN II 6 1106a22)
Nesse sentindo a virtude natildeo eacute nem uma paixatildeo nem uma faculdade mas
um estado de caraacuteter O que a torna distinta eacute o fato de consistir na disposiccedilatildeo de
escolher o meio-termo
331 Doutrina da Mediania
Os atos praticados pelos homens em suas muacuteltiplas relaccedilotildees eacute que os
tornam justos ou injustos Explica o Filoacutesofo41 que eacute necessaacuterio cultivar o haacutebito de
praticar atos virtuosos desde a juventude Nesse sentido
[] a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia e pelo excesso tal como vemos acontecer com o vigor e a sauacutede (temos de explicar o invisiacutevel recorrendo a evidencia do visiacutevel) os exerciacutecios excessivos ou deficientes destroem igualmente o vigor e de maneira idecircntica as bebidas e os alimentos de mais ou menos destroem a sauacutede ao passo que seu uso em proporccedilotildees adequadas produz aumenta e conserva aquele e esta (EN II 2 1104a)
Sendo a virtude mais exata do que toda e qualquer arte e por possuir como
atributo o meio-termo o excesso ou a falta podem ser-lhe destrutivos Tanto o
excesso quanto a carecircncia satildeo graves formas de erro Entretanto o meio-termo
mostra-se como uma forma digna de louvor fazendo da virtude uma mediania Mas
ressalte-se que se trata de meio termo entre dois viacutecios Contudo nem toda accedilatildeo e
40
Vide o item 2331 Trageacutedia 41
Como Aristoacuteteles era referenciado por Tomaacutes de Aquino
46
nem toda paixatildeo admitem meio termo eacute o que observa ROSS (1957 p 231)42
ldquoPorque a mediania eacute num certo sentido um extremo []rdquo (EN II 6 1107a25)
Portanto do excesso ou da falta natildeo existe meio termo
[] se a virtude como a natureza eacute mais exata e melhor do que qualquer forma de arte se concluiraacute que a virtude deteacutem a qualidade de visar a mediania Eu me refiro agrave virtude moral
43 pois esta concerne agraves
paixotildees e accedilotildees nas quais se pode dispor de excesso ou deficiecircncia ou da devida mediania Por exemplo algueacutem pode estar receoso ou confiante sentir desejo ira ou compaixatildeo e experimentar prazer e dor em geral seja em excesso ou deficientemente e em ambos os casos indevidamente ao passo que experimentar esses sentimentos na ocasiatildeo certa oportunamente em relaccedilatildeo agraves pessoas certas para o propoacutesito certo e da maneira certa corresponde a sentir a medida melhor deles a qual eacute a quantidade meacutedia sendo que a melhor medida ou quantidade eacute evidentemente a marca da virtude Analogamente pode haver excesso deficiecircncia e a devida mediania nas accedilotildees (EN II 6 1106b20)
A virtude eacute entatildeo uma disposiccedilatildeo estabelecida que leva agrave escolha de accedilotildees
e paixotildees e que consiste essencialmente na observacircncia da mediania relativa a noacutes
sendo isso determinado pela razatildeo isto eacute como o homem prudente o determina
(EN II 6 1107a) As conclusotildees do Livro II apontam o quatildeo eacute difiacutecil atingir o meio-
termo uma vez que o mesmo natildeo eacute apreendido pelo raciociacutenio e sim pela
percepccedilatildeo Ele aponta trecircs regras como orientaccedilatildeo
A primeira regra eacute evitar o extremo que mais se opotildee agrave mediania Para natildeo
abandonar o estilo o Estagirita cita o conselho de Calipso personagem de a
Odisseacuteia ldquoPilota o navio o mantendo longe do borrifo e das vagasrdquo E continua
explicando ldquoPois dos dois extremos um deles constitui erro mais grave do que o
outro Por conseguinte porquanto atingir a mediania eacute extremamente difiacutecil a
42 Aristoteles luego nos previene contra un equivoco posible senalando queentre los sentimientos y
las acciones que se pueden nombrar no todos admiten un justo medio los nombres mismos de algunos de ellos tales como la desverguenza la envidia el adulterio el robo el asesinato implican su maldad Es decir que estos nombres no se aplican a los sentimientos moralmente indiferentes que son asunto de la virtud sino a un exceso vituperable de estos sentimientos no a las acciones que se relacionan con cierta clase de objeto sino a las acciones inicuas que se relacionan con este objeto La desverguenza es una incorrecta falta de verguenza el robo es un incorrecto exceso en la adquisicion de la riqueza El justo medio se opone al exceso y al defecto y por consecuencia no hay justo medio del exceso o del defecto como no existe exceso o defecto del justo medio (ROSS 1957 p 231)
43
Nota do tradutor de nuacutemero 48 Ou seja a teoria da mediania natildeo eacute aplicaacutevel agraves virtudes intelectuais (BINI 2009 p 77)
47
segunda melhor forma de navegar como indica o proveacuterbio eacute assumir o menor dos
males e a melhor maneira de fazecirc-lo seraacute a maneira que descrevemosrdquo (EN II 9
1109a30)
A segunda regra valendo-se do exemplo do carpinteiro em seu meacutetodo para
endireitar a madeira empenada consiste em observar os erros a que estamos mais
propensos de acordo com quais prazeres e dores experimentamos De posse de tal
observaccedilatildeo devemo-nos afastar do erro costumeiro estabelecendo assim um curso
mediano (EN II 9 1109b1)
Por fim o terceiro exemplo invocando Helena personagem de a Iliacuteada de
Homero
ldquo[] temos que em tudo que estar mais do que qualquer outra coisa de guarda contra o que eacute prazeroso e contra o prazer porque quando este estaacute em julgamento natildeo somos juiacutezes imparciais O procedimento correto eacute portanto encarar o prazer como os anciotildees do povo encaravam Helena e empregar (ou repetir) o discurso que dirigiram a ela em todas as ocasiotildees pois se assim o descartarmos teremos menos probabilidade de nos extraviar (EN II 9 1109b1)
Portanto podemos chamar de accedilatildeo virtuosa aquela que eacute direcionada pela
mediania que se projeta na melhor quantidade medida ocasiatildeo oportunidade e em
relaccedilatildeo agraves pessoas certas O acircmbito da accedilatildeo comporta uma biparticcedilatildeo que deve ser
considerada em se tratando de virtude a saber accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria
34 Accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria
Embora a virtude esteja relacionada com paixotildees e accedilotildees um sentimento ou
uma accedilatildeo pode ser algo voluntaacuterio ou involuntaacuterio Louvor e censura agraves paixotildees e
accedilotildees voluntaacuterias e perdatildeo e piedade agraves involuntaacuterias (EN III 1 1109b30)
Para Aristoacuteteles voluntaacuterio eacute o ato de escolher Mas eacute preciso fazer certas
ressalvas neste sentido Ora o que se pratica sob o impulso do momento pode ser
voluntaacuterio mas natildeo escolhido pois a escolha natildeo eacute comum aos seres irracionais
Escolher envolve um princiacutepio racional bem como o pensamento O objeto da
48
escolha apresenta-se ao alcance e o mesmo eacute desejado apoacutes uma deliberaccedilatildeo
Assim escolha eacute um desejo deliberado (EN III 1112a - 1113a) O fim eacute aquilo que
se deseja jaacute o meio eacute aquilo que eacute deliberado e escolhido e assim as accedilotildees devem
concordar com as escolhas e estas devem ser voluntaacuterias Com isso afirma o
Estagirita que a virtude estaacute ao poder de escolha do homem porque o exerciacutecio da
virtude diz respeito aos meios Aquilo cujo motor estaacute no agente que possui
conhecimento das circunstacircncias particulares do ato parece ser o que eacute voluntaacuterio
Involuntaacuterio segundo Aristoacuteteles eacute o que acontece sob compulsatildeo e
ignoracircncia em que o princiacutepio motor encontra-se externo ao indiviacuteduo e para o que
em nada contribui ou influi o indiviacuteduo que age ou sente a paixatildeo (EN III 1111b)
Assim atos encontram-se no homem e devem estar em seu poder e serem
voluntaacuterios Atraveacutes do exerciacutecio de atividades sobre os objetos particulares formam-
se as disposiccedilotildees de caraacuteter
[] um homem doente natildeo ficaraacute bom desta maneira embora possa acontecer que sua doenccedila seja voluntaacuteria no sentido de ser o resultado de sua vida de dissipaccedilatildeo e de sua desobediecircncia aos meacutedicos Neste caso de iniacutecio teria dependido dele natildeo ficar doente mas natildeo agora que ele desperdiccedilou sua oportunidade da mesma forma que depois de atirar uma pedra natildeo eacute possiacutevel fazecirc-la voltar atraacutes natildeo obstante a pessoa que atirou a pedra eacute responsaacutevel por havecirc-la apanhado e lanccedilado pois a origem do ato estava nesta pessoa (EN III 5 1114a)
Constata-se vaacuterias vezes a afirmaccedilatildeo da responsabilidade do homem diante
de suas accedilotildees Eacute importante observarmos assim como Pierre Aubenque (2008) o
fez que o homem natildeo eacute responsaacutevel por sua vontade mas por suas escolhas de
acordo com Aubenque (2008 p 222) ldquoNa perspectiva de Aristoacuteteles e dos gregos
a vontade natildeo eacute responsaacutevel pelo mal Ao contraacuterio o mal eacute o responsaacutevel pela maacute
qualidade da vontade [] Pois um homem nunca quer o mal enquanto tal pode
querer mal o bem e querendo o bem em geral escolher cada vez mais o menor
bemrdquo
49
Duas pressuposiccedilotildees fundamentam como princiacutepio da responsabilidade A
realidade eacute contingente44 e depende do indiviacuteduo que age Para que uma accedilatildeo seja
considerada virtuosa devem estar presentes estas duas exigecircncias uma vez que
[] onde estaacute ao nosso alcance agir tambeacutem estaacute ano nosso alcance
natildeo agir e onde somos capazes de dizer ldquonatildeordquo tambeacutem somos capazes
de dizer ldquosimrdquo consequumlentemente se agir quando agir eacute nobilitante
estaacute ao nosso alcance natildeo agir que seraacute ignoacutebil tambeacutem estaraacute ao
nosso alcance Se estaacute ao nosso alcance entatildeo praticar atos
nobilitantes ou ignoacutebeis e se isto era o que significava ser bom ou mau
estaacute igualmente ao nosso alcance ser moralmente excelentes ou
deficientes (EN III 5 1113b)
Para Aristoacuteteles o caraacuteter eacute resultado dos atos humanos conforme
argumenta a Eacutetica a Nicocircmaco Assim agindo desta ou daquela maneira adquire-se
uma ou outra disposiccedilatildeo eacutetica A realizaccedilatildeo de coisas justas resultaraacute em bons
haacutebitos e tornaraacute o caraacuteter justo (EN II 4 1105b) Ao agir de modo intemperante
adquire o haacutebito de ceder tatildeo somente aos desejos que conduz agrave intemperanccedila O
caraacuteter eacute assim o produto dos atos de seu autor e natildeo algo advindo da educaccedilatildeo
da condiccedilatildeo social ou da natureza
Assim os viacutecios e as virtudes possuem significado moral e natildeo satildeo somente
traccedilos psicoloacutegicos adquiridos Isto se daacute uma vez que pertencem ao campo daquilo
que depende do homem Ao agir o ser humano natildeo faz algo ao qual teraacute que
responder mais tarde como tambeacutem estaacute escolhendo o que seraacute Por isso ao agir
contra a regra que conhece estaacute consentindo em se tornar cego agrave lei e em natildeo
saber mais onde estaacute o bem Neste sentido a lei pune com maior severidade o
intemperante por ele deliberar em vista de um fim mau mesmo que possua a
capacidade de deliberar para o fim beniacutefico A ignoracircncia da regra pelo adulto
acresce a culpabilidade quando eacute produto de uma vida intemperante (EN III 5
1114a)
[] somente uma pessoa totalmente insensata poderia deixar de perceber que as disposiccedilotildees de nosso caraacuteter satildeo o resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injusto ou um homem que age
44
Veja o segundo capiacutetulo Contingecircncia
50
concupiscentimente natildeo deseje ser concupiscente Mas se uma pessoa pratica accedilotildees que a torna injusta sem ser ignorante ela seraacute injusta voluntariamente Disto natildeo resulta poreacutem que se ela quiser deixaraacute de
ser injusta e passaraacute a ser justa da mesma forma (EN III 5 1114a)
Ao abordar a responsabilidade humana Aristoacuteteles destaca que as
disposiccedilotildees satildeo voluntaacuterias de modos distintos
[] as accedilotildees e disposiccedilotildees natildeo satildeo voluntaacuterias de maneira idecircntica pois somos senhores de nossas accedilotildees do principio ao fim se conhecemos os fatos particulares mas embora tenhamos o controle da fase inicial de nossas disposiccedilotildees a evoluccedilatildeo de cada estaacutegio das mesmas natildeo eacute perceptiacutevel tal como acontece nas doenccedilas mas jaacute que a maneira de agir dependia de noacutes as disposiccedilotildees morais satildeo voluntaacuterias (EN III 5 1114a30)
O ato depende do ser humano em sua inteligibilidade porque o ser humano
possui um domiacutenio sobre as consequecircncias diretas do mesmo Por outro lado o ser
humano natildeo pode antecipar todas as consequecircncias advindas indiretamente dos
haacutebitos que ele assume O caraacuteter eacute imputaacutevel ao ser humano uma vez que agindo
ele tambeacutem estaacute forjando os seus haacutebitos
Embora o ser humano seja senhor de seus atos a cada instante ele natildeo
pode modificar o seu caraacuteter quando bem quer sendo que isso equivaleria a dizer
que o ser humano natildeo tem caraacuteter Assim apoacutes certo tempo o caraacuteter parece que
ficou tatildeo marcado que se torna impossiacutevel transformaacute-lo Resulta entatildeo o problema
da perfectibilidade do caraacuteter (EN III 5 1114a)
Ora cada ser humano eacute autor de seus atos enquanto eacute agente o que se
determina a um fim Sendo a escolha intencional dirigida pelo caraacuteter pode-se
afirmar que o ser o homem eacute causa de seus atos enquanto agente que consente
Assim de fato natildeo eacute o seu caraacuteter o determinante de sua decisatildeo (EN III 4 1113a)
Para Aristoacuteteles o caraacuteter comeccedila sua formaccedilatildeo durante a infacircncia Segundo
ele o jovem age para formar o seu caraacuteter enquanto que o adulto age a partir de seu
caraacuteter tendo a intenccedilatildeo de ser feliz Entretanto como os fins visados dependem do
caraacuteter as decisotildees do adulto apresentam-se como determinadas pelo seu
condicionamento educativo o qual ocorreu na infacircncia
51
O Estagirita afirma que o caraacuteter do jovem o qual eacute formado a partir dos
haacutebitos e da educaccedilatildeo que recebe ainda natildeo eacute nem vicioso e nem virtuoso Pode-
se prefigurar a virtude futura pelo amor ao belo pela justiccedila do gosto ou a nobreza
das paixotildees Tanto a virtude quanto o viacutecio somente se desenvolvem atraveacutes dos
atos dos quais somente o adulto eacute capaz uma vez que se realizam notadamente no
acircmbito da vida ciacutevica e militar A entrada na vida adulta quando satildeo tomadas as
primeiras decisotildees eacute quando se realizam os primeiros atos verdadeiros Natildeo se
pode negar entatildeo a influecircncia do caraacuteter adquirido pela educaccedilatildeo Assim o homem
comeccedila ao entrar na vida adulta a realizar alguma coisa que propotildee e visa fins ou
seja ele se torna o verdadeiro autor de seus atos e eacute responsaacutevel por aquilo que faz
e por aquilo que eacute Nesse momento eacute pela docilidade ou pela rebeliatildeo que o jovem
adquire boas ou maacutes disposiccedilotildees diante das paixotildees Por outro lado o adulto
adquire viacutecio ou virtude ou seja um caraacuteter moral atraveacutes de suas decisotildees
Assim com o passar do tempo um haacutebito tende a se repetir isto eacute ele
amplifica o que se comeccedilou melhorando sempre mais ou dirigindo-se cada vez mais
agrave decadecircncia Para o homem se tornar bom a exigecircncia eacutetica estaria reservada
agravequeles que tivessem comeccedilado bem aos demais soacute seria possiacutevel constatar seus
viacutecios e incoerecircncias Desta forma pode-se concluir que a eacutetica aristoteacutelica estaria
reservada somente a uns eleitos bem educados e aos outros ela condenaria a um
encadeamento fatiacutedico resultado de uma maacute educaccedilatildeo e consequente praacutetica
reiterada de viacutecios
Tendo revisitado as virtudes pertinentes agrave parte irracional da alma
passaremos a estudar as virtudes pertinentes agrave parte racional da alma que satildeo as
virtudes intelectuais
35 Virtudes Intelectuais
As virtudes como vimos satildeo de dois tipos a intelectual e a moral As
virtudes intelectuais satildeo majoritariamente tanto produzidas quanto ampliadas pela
instruccedilatildeo o que por certo exige experiecircncia e tempo (EN II 1 1103a15) As
virtudes intelectuais satildeo o objeto do livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco
52
Ao abordar tais virtudes Aristoacuteteles reapresenta a foacutermula da reta razatildeo ldquoJaacute
vimos que eacute certo escolher a mediania e evitar o excesso e a deficiecircncia e que a
mediania eacute fixada pela justa razatildeordquo (EN 1138b20)
Toda via estando algueacutem de posse dessa verdade isso natildeo o tornaraacute mais saacutebio do que antes queremos dizer por exemplo que tal pessoa natildeo saberaacute que medicamentos tomar pelo mero fato de lhe terem dito para tomar tudo que a arte a medicina ou um doutor em medicina lhe indicar Consequentemente no que toca agraves qualidades da alma igualmente natildeo bastaraacute meramente estabelecer a verdade da foacutermula acima Teremos aleacutem disso que definir com exatidatildeo qual eacute a justa razatildeo e qual eacute o padratildeo que a determina (EN 1138b20)
Aristoacuteteles define as partes da alma atribuindo agrave parte racional duas
faculdades a saber a faculdade cientiacutefica e a faculdade calculadora Enquanto o
objeto da faculdade cientiacutefica eacute aquele que se ocupa em especular as coisas cujos
primeiros princiacutepios satildeo invariaacuteveis a faculdade calculadora tem por objeto as
coisas que admitem variaccedilatildeo A definiccedilatildeo de caacutelculo eacute dada por Aristoacuteteles ldquoeacute o
mesmo que deliberaccedilatildeo e esta jamais eacute exercida sobre coisas invariaacuteveis
[entendemos] que a parte calculadora constitui uma parte independente da metade
irracional da alma (EN VI 1 1139a15)
Destaca trecircs elementos existentes na alma que controlam a accedilatildeo e o
atingimento da verdade a sensaccedilatildeo o intelecto e o desejo A sensaccedilatildeo natildeo gera
accedilatildeo pois a accedilatildeo eacute proacutepria ao homem enquanto a sensaccedilatildeo estaacute presente tanto na
alma do homem quanto na alma do animal Assim os movimentos dos animais satildeo
gerados pelos estiacutemulos sensoriais enquanto os movimentos proacuteprios ao homem a
praacutexis satildeo uma accedilatildeo guiada pelo intelecto e pelo desejo45
O pensamento especulativo desenvolvido pela faculdade cientiacutefica natildeo diz
respeito agrave accedilatildeo e ou agrave produccedilatildeo Ele se ocupa em elaborar juiacutezos de verdadeiro ou
falso
45
Conforme jaacute salientamos no capiacutetulo 2 O Movimento
53
Por outro lado o raciociacutenio praacutetico46 diz respeito ao que devemos buscar e
evitar no sentido de orientar as virtudes morais Eacute a partir dele que realizamos as
escolas entendendo por escolha o desejo deliberado (BERTI 1998 p 117)
Por conseguinte a escolha pode ser qualificada como o pensamento
relacionado ao desejo ou o desejo relacionado ao pensamento e o ser humano
como gerador da accedilatildeo eacute uma uniatildeo de desejo e intelecto (EN 1139b5)
46
Sobre razatildeo praacutetica vide LACERDA (2005)
54
4 PRUDEcircNCIA
41 Conceito
Aristoacuteteles na passagem 1140b do Livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco define a
prudecircncia como uma capacidade verdadeira e racional de agir sobre as coisas que
satildeo boas ou maacutes para o homem
De acordo com Enrico Berti a phroacutenesis ldquopara Aristoacuteteles eacute uma virtude ou
melhor a mais elevada virtude da parte calculadora da alma racional isto eacute a razatildeo
praacutetica Ela com efeito eacute por ele concebida como a capacidade de deliberar bem
ou seja de calcular os meios necessaacuterios para alcanccedilar um fim bomrdquo (BERTI 1998
p 146)
Por sua vez Tomaacutes de Aquino discorre sobre a prudecircncia na parte II-II
questotildees 47 a 56 em sua obra de referecircncia a Suma Teoloacutegica Tomaacutes eacute haacutebil na
leitura aristoteacutelica da prudecircncia e pode-se encontrar em sua obra uma foacutermula
sinteacutetica do que ele entende por prudecircncia reta razatildeo aplicada ao agir47 Portanto eacute
com fundamento em questotildees de razatildeo praacutetica que Tomaacutes define a prudecircncia ldquoE
este eacute o papel da prudecircncia aplicar os princiacutepios universais agraves conclusotildees
particulares do acircmbito do agir E assim natildeo compete agrave prudecircncia indicar o fim das
virtudes morais mas somente lidar com os meios para atingir o fimrdquo (II-II 476
negrito nosso)
Pierre Aubenque (2008) sonda pormenorizadamente os vaacuterios aspectos
apresentados pelo Estagirita do que seria a prudecircncia e de sua leitura agraves obras de
Aristoacuteteles extraiacutemos
[] a definiccedilatildeo dada por Aristoacuteteles no livro VI da Eacutetica Nicomaqueacuteia apresenta um caraacuteter demasiado elaborado ou se se prefere demasiado teacutecnico para poder conhecer a mesma fortuna Ali a prudecircncia eacute definida como uma ldquodisposiccedilatildeo praacutetica acompanhada de regra verdadeira concernente ao que eacute bom ou mau para o homemrdquo Conforme ao meacutetodo familiar a Aristoacuteteles essa definiccedilatildeo eacute apresentada como resultado de um processo ao mesmo tempo indutivo e regressivo Parte-se do uso comum constata-se que eacute chamado phronimos o
homem capaz de deliberaccedilatildeo (AUBENQUE 2008 p 60-61)
47 recta ratio agibilium
55
Ainda nessa direccedilatildeo Aubenque (2008) a distingue das outras virtudes em
particular das virtudes morais
[] enquanto a virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo (praacutetica) que concerne agrave
escolha ) a prudecircncia eacute uma disposiccedilatildeo praacutetica que
concerne agrave regra da escolha Natildeo se trata da retidatildeo da accedilatildeo mas da correccedilatildeo do criteacuterio razatildeo pela qual a prudecircncia eacute uma disposiccedilatildeo praacutetica acompanhada de uma regra verdadeira (AUBENQUE 2008 p61)
Alasdair Macintyre (2001) discorre sobre a prudecircncia como sendo a virtude
intelectual sem a qual natildeo se pode exercer nenhuma virtude de caraacuteter48
A virtude principal eacute portanto phronecircsis Phronecircsis assim como socircphrosunecirc eacute originariamente um termo aristocraacutetico de louvor Caracteriza algueacutem que sabe o que lhe eacute devido que se orgulha de reivindicar seus direitos Significa de maneira mais geneacuterica algueacutem que sabe como julgar em casos especiacuteficos Phronecircsis eacute a virtude intelectual mas eacute a virtude intelectual sem a qual natildeo se pode exercer nenhuma das virtudes de caraacuteter (MACINTYRE 2001 p15)
Javier Hervada (2008) em sua obra Liccedilotildees propedecircuticas de filosofia do
direito destaca o caraacuteter praacutetico e a inclinaccedilatildeo que a prudecircncia tem para com o
direito salientando suas caracteriacutesticas claacutessicas
A prudecircncia eacute de fato uma virtude intelectual ou dianoeacutetica a virtude do correto agir moral o que estaacute relacionado com a justiccedila que tambeacutem eacute virtude moral Isso salienta que a atividade juriacutedica depende de duas virtudes que satildeo a base do ofiacutecio de jurista a justiccedila e a prudecircncia (HERVADA 2008 p 58)
48
A interpretaccedilatildeo de MacIntyre sobre a singularidade da prudecircncia parece-nos extraiacuteda tanto de Tomaacutes quando se refere a ela como matildee das virtudes (III Sent d 33 q 2 a 5 c) quanto de Aristoacuteteles que nos ensina em sua Eacutetica a Nicocircmaco ldquoA prudecircncia proporciona todas as virtudes Ela fornece os meios de produzi-lasrdquo (VI 1145a)
56
Pierre Aubenque (2008) parece desembaraccedilar de forma haacutebil o que seria a
prudecircncia despindo dos textos de Aristoacuteteles a compreensatildeo de uma das questotildees
mais iacutentimas da filosofia grega e eacute nesse sentido que ele desenvolve sua conclusatildeo
O Estagirita encontraria aiacute a velha inquietude grega diante da imprevisibilidade do futuro e a precariedade das coisas humanas Se ele foi moderno isso se deve ao fato de natildeo ter querido dominar o acaso com preces Se a accedilatildeo sobre o acaso natildeo podia ser cientificamente determinada ndash visto que ldquodo acaso natildeo haacute ciecircnciardquo ndash natildeo seria tampouco improvisada e sem princiacutepios Natildeo retornaremos agrave soluccedilatildeo que ele deu a este problema e nomeou prudecircncia (AUBENQUE 2008 p 278)
A adoccedilatildeo do traacutegico em face ao fracasso da Providecircncia ou em outras
palavras uma vez que o futuro eacute indeterminado a escolha entre dois males faz-se
procurando o menor entre eles A accedilatildeo nesse sentido compreendendo natildeo poder
alcanccedilar o bem em absoluto o faz da melhor maneira que pode
42 Prudecircncia e liberdade
De acordo com Aubenque (2008 p 149) a liberdade do homem natildeo estaacute
ligada agrave contingecircncia muito pelo contraacuterio se opotildee a ela A metaacutefora da casa
trazida no livro da Metafiacutesica retrata uma situaccedilatildeo onde o universo eacute comparado a
uma casa onde os homens livres representam os astros porque ldquolhes eacute menos liacutecito
agir ao acasordquo tendo suas accedilotildees orientadas por regras enquanto ldquoos escravos e os
animaisrdquo cujas ldquoaccedilotildees satildeo raramente ordenadas ao bem comum mas ao contraacuterio
satildeo frequentemente abandonadas ao acasordquo representam o mundo sublunar Nessa
acepccedilatildeo os escravos eacute que satildeo ldquolivresrdquo no sentido moderno do termo porque natildeo
sabem o que fazem ldquoenquanto a liberdade do homem grego e sua perfeiccedilatildeo se
medem pela maior ou menor determinaccedilatildeo de suas accedilotildeesrdquo
A prudecircncia eacute o substituto propriamente humano de uma Providecircncia que falha [] A prudecircncia eacute tambeacutem a previdecircncia que preserva os indiviacuteduos dos perigos [] ela eacute tambeacutem virtude na medida em que realiza no mundo sublunar um pouco do Bem que a divindade foi impotente para introduzir aqui [] Mas se o mundo fosse inteiramente
57
perfeito natildeo restaria nada a fazer ora eacute no fazer ou agir e natildeo na imobilidade estranhamente comum agraves plantas e a Deus que o homem
realiza sua sua excelecircncia propriamente humana Saber nos desviaria do fazer dispensando-nos de escolher (AUBENQUE 2008 p 155)
A prudecircncia seraacute a virtude dos homens voltados agrave deliberaccedilatildeo num mundo
obscuro e difiacutecil cujo inacabamento eacute um convite ao que decerto eacute preciso nomear
como sua liberdade A prudecircncia diraacute a Magna Moralia eacute uma ldquodisposiccedilatildeo para
escolher e agir concernindo ao que estaacute em nosso poder fazer e natildeo fazerrdquo
(AUBENQUE 2008 p 155)
Por isso homens como Peacutericles satildeo julgados prudentes porque possuem uma faculdade de discernir que coisas satildeo boas para mesmos e para os seres humanos E eacute isso que coincide com nosso entendimento do que seja algueacutem conhecedor da administraccedilatildeo domeacutestica ou
49 administraccedilatildeo
poliacuteticardquo (EN VI 5 1140B10)
Santo Tomaacutes em seus Comentaacuterios agrave Eacutetica a Nicocircmaco conclui acerca da
prudecircncia ldquoDe que la prudecircncia no sea ciencia haacutebito demonstrativo acerca de lo
necesario y no sea arte haacutebito productivo con razoacuten se segue que la prudencia es
un haacutebito activo con razoacuten verdadera que no versa sobre lo producio que estaacute fuera
del hombre sino sobre el bien y el mal del hombre mesmordquo (AQUINO 2010 p 363-
364)50
43 Arte e Prudecircncia
Conforme explicado na definiccedilatildeo tomista enquanto a atividade proacutepria agrave arte
eacute a produccedilatildeo a atividade proacutepria agrave prudecircncia eacute a accedilatildeo
49
εἶναι δὲ τοιούτους ἡγούμεθα τοὺς οἰκονομικοὺς καὶ τοὺς πολιτικούς Algueacutem conhecedor da
administraccedilatildeo domeacutestica e poliacutetica [(EN VI 5 1140B10) texto original disponiacutevel no site PERSEUS DIGITAL LIBRARY traduccedilatildeo nossa] 50
De que a prudecircncia natildeo eacute ciecircncia que procura mostrar o que eacute necessaacuterio e tambeacutem natildeo eacute arte o haacutebito produtivo com o emprego da razatildeo segue que a prudecircncia eacute um habito segundo o qual se age com a razatildeo verdadeira que natildeo versa sobre o produto que estaacute fora de homem mas sobre o bem e o mal do proacuteprio homem (AQUINO 2010 p 363-364)
58
Destarte para o Estagirita a arte eacute o conhecimento teacutecnico de como fazer
as coisas Enquanto a prudecircncia eacute o conhecimento de como agir para assegurar os
fins da vida do ser humano Vejamos o texto de Aristoacuteteles
Toda arte se ocupa em trazer alguma coisa agrave existecircncia e dedicar-se a uma arte significa estudar como trazer ao existir uma coisa que eacute possiacutevel existir ou natildeo a causa eficiente da qual estando no criador e natildeo na coisa criada pois a arte natildeo se ocupa com coisas que existem ou passam a existir (vecircm a ser) necessariamente ou pela natureza uma vez que essas coisas possuem suas causas eficientes em si mesmas Mas como o criar e o fazer satildeo distintos infere-se que a arte sendo concernente ao criar natildeo concerne ao fazer E num certo sentido a arte se ocupa dos mesmos objetivos da sorte como diz Agaton A sorte eacute aficionada da arte e a arte da sorte (EN VI 4 1140a10-20)
Para Enrico Berti a arte
[] concerne a objetos que podem ser diferentemente do que satildeo ou seja contingentes por isso estaacute entre as virtudes da parte ldquocalculadorardquo da razatildeo a mesma que compreende a phroacutenesis A diferenccedila entre arte e phroacutenesis repousa no fato de que esta uacuteltima ocupa-se como vimos do que pode ser ldquopraticadordquo (to praktoacuten) das accedilotildees enquanto a arte se ocupa da produccedilatildeo de objetos A distinccedilatildeo entre ldquoaccedilatildeordquo (praacutexis) e ldquoproduccedilatildeordquo (poiacuteesis) eacute dada por Aristoacuteteles quase sempre por evidente e consiste no fato de que a accedilatildeo natildeo produz nenhum objeto diferente dela mesma isto eacute termina em si que eacute o produto (BERTI 1998 p 157)
Portanto a arte eacute como dissemos uma qualidade racional concernente ao
criar de acordo com um processo verdadeiro de raciociacutenio Em oposiccedilatildeo a lacuna
da arte eacute uma qualidade racional concernente ao criar que envolve um processo
falso de raciociacutenio Ambas lidam com aquilo que admite variaccedilatildeo (EN VI 4
1140a10-20)
44 Deliberaccedilatildeo e Escolha
Ao definir a accedilatildeo voluntaacuteria Aristoacuteteles diz que a escolha pertence ao seu
gecircnero mas que no entanto nem todo ato voluntaacuterio eacute escolhido O que ele
pretende com essa argumentaccedilatildeo e evidenciar a diferenccedila entre a escolha e a
deliberaccedilatildeo
59
Nesse sentido esclarece que a deliberaccedilatildeo eacute ldquo[] empregada em mateacuterias
que embora sujeitas a regras que geralmente satildeo para o bem satildeo incertas quanto
aos seus resultados e consequecircncias ou nas quais resultados e consequecircncias satildeo
indeterminados []rdquo (EN III 3 1112b10)
Aristoacuteteles em vaacuterias passagens insiste em indicar um ponto especiacutefico
acerca da deliberaccedilatildeo Segundo ele natildeo deliberamos a respeito dos fins mas a
respeito dos meios Daiacute a analogia ldquo[No exerciacutecio de uma arte] a questatildeo num
momento eacute saber quais ferramentas usar e num outro como usaacute-las similarmente
em outras esferas temos que considerar por vezes que meios empregar e outras
vezes como exatamente determinarmos os meios que devem ser empregadordquo (EN
III 3 1112b30) Dessa forma Aristoacuteteles afirma que o ser humano eacute princiacutepio-
fundamento de suas proacuteprias accedilotildees e que eacute proacutepria agrave deliberaccedilatildeo apontar as accedilotildees
possiacuteveis de serem realizadas pelo agente sendo que todas as accedilotildees tecircm em vista
algum fim que natildeo elas mesmas
Portanto natildeo se delibera sobre o que natildeo estaacute em nosso poder A
deliberaccedilatildeo estaacute condicionada ao que podemos Por isso mais uma vez afirmamos
que a accedilatildeo virtuosa dirige-se para o melhor possiacutevel Isso eacute esclarecido por Pierre
Aubenque (2008) quando aborda a trageacutedia grega
ldquoA trageacutedia grega natildeo dizia outra coisa e antes dela a poesia de Hesiacuteodo ou Teoacutenis Por mais que Aristoacuteteles tenha restringido o traacutegico natildeo o eliminou inteiramente eacute a distacircncia que separa oi polloi de
pantej o wj epi to polu de aei o melhor possiacutevel do bem absoluto[]rdquo
(2008 p 138)
Destarte de posse da deliberaccedilatildeo cujo objeto estaacute sob nosso poder poder-
se-aacute escolher Pois a escolha eacute o desejo deliberado de coisas em nosso poder
Aristoacuteteles (1113a13) estabelece a seguinte ordem ldquoprimeiramente deliberamos em
seguida selecionamos e finalmente fixamos nosso desejo de acordo com o
resultado de nossa deliberaccedilatildeordquo
Sobre a escolha Aristoacuteteles esclarece que ela natildeo eacute o mesmo que a
vontade pois enquanto a vontade visa o fim a escolha concerne aos meios Neste
60
sentido a escolha se opotildee agrave vontade afinal ao homem eacute permitido querer o bem
mas escolher o melhor possiacutevel51
Aristoacuteteles apresenta pela primeira vez o problema da dissonacircncia possiacutevel entre o fim e os meios e enfatiza ao mesmo tempo que a qualidade da accedilatildeo eacute medida natildeo somente pela retidatildeo da intenccedilatildeo (como acreditava Platatildeo) mas tambeacutem pela conveniecircncia dos meios (AUBENQUE 2008 p 218)
Uma outra importante observaccedilatildeo eacute feita por Aubenque (2008 p 227) Ele
encontra no texto de Aristoacuteteles duas foacutermulas comuns agrave prudecircncia A primeira eacute
esta que acabamos de descrever qual seja a capacidade de escolha judiciosa dos
meios
A segunda foacutermula eacute pertinente agrave capacidade de aplicar o universal ao
particular O que vemos eacute que o prudente deve ser capaz de operar com uma com
duas ou com ambas se eacute que eacute possiacutevel estabelecer fundada diferenccedila entre elas
que natildeo seja meramente teoacuterica
Natildeo haacute portanto nenhuma ldquocontradiccedilatildeordquo entre as duas descriccedilotildees da accedilatildeo dadas por Aristoacuteteles Pois uma vez reconhecido o particular se o universal a ele se aplica necessariamente eacute preciso inicialmente reconhecer o particular o que se deduz silogisticamente eacute a propriedade do particular de ser desejaacutevel mas natildeo a existecircncia do particular Natildeo eacute difiacutecil saber que eacute preciso ser corajoso nem decidir que o que foi reconhecido como corajoso dever ser cumprido Mas onde estaacute a coragem hic et nunc Eacute na bravata ou no sangue frio Na aventura ou na abstenccedilatildeo No combate sem esperanccedila ou na fuga que garante o futuro Eacute na infinita distacircncia entre os princiacutepios demasiado gerais e a variedade inacessiacutevel ao pensamento racional A distacircncia eacute igualmente infinita entre a eficaacutecia real do meio e a realizaccedilatildeo esperada do fim Eacute este infinito que Aristoacuteteles pede que a prudecircncia preencha por mediaccedilotildees laboriosas e incertas Mas esse infinito este aoristou que
afeta uma mateacuteria sempre mais ou menos reativa agrave determinaccedilatildeo e em geral um mundo que nunca acolhe inteiramente a ordem noacutes jaacute conhecemos o seu nome a contingecircncia (AUBENQUE 2008 p 228)
Antes de encerrar este assunto parece oportuno levantarmos uma questatildeo
que segue o acima exposto Pierre Aubenque (2008) na introduccedilatildeo ao capiacutetulo
intitulado Antropologia da prudecircncia nos fornece uma importante justificativa acerca
51
Sobre a responsabilidade pela accedilatildeo vide o item 35 Accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria
61
da ordem temaacutetica proposta no presente trabalho A questatildeo que pretendemos
levantar eacute por que tomamos como ponto de partida a contingecircncia
Mostramos ateacute aqui que a prudecircncia soacute teria razatildeo de ser num mundo contingente Ora se a encaramos natildeo mais de um ponto de vista coacutesmico mas humano a contingecircncia nos aparece como abertura agrave atividade dos homens ao mesmo tempo arriscada e eficaz Sem a contingecircncia a accedilatildeo dos homens natildeo seria apenas impossiacutevel seria tambeacutem inuacutetil Eacute tal accedilatildeo ao mesmo tempo permitida e requerida pela contingecircncia em suas relaccedilotildees com a prudecircncia que guia que se trata de analisar agora
Natildeo surpreenderaacute que encontremos aqui em termos ldquosubjetivosrdquo o que tentamos extrair acima em termos ldquoobjetivosrdquo A teoria da contingecircncia e a da accedilatildeo reta satildeo apenas o direito e o avesso de uma mesma doutrina eacute a indeterminaccedilatildeo dos futuros que faz do homem princiacutepio o inacabamento do mundo eacute o nascimento do homem (AUBENQUE 2008 p 173 negrito nosso)
Assim a deliberaccedilatildeo eacute pertinente agravequilo que podemos modificar Seja qual
for o meacutetodo adotado o problema a ser enfrentado eacute o mesmo as incontaacuteveis
possibilidades a que estamos submetidos sendo a escolha o ato intriacutenseco agrave
deliberaccedilatildeo o momento oportuno para escolher o melhor possiacutevel
De acordo com Hermann (2007) a prudecircncia proposta por Aristoacuteteles na
Eacutetica a Nicocircmaco eacute mais precisamente
[] a possibilidade de articular a relaccedilatildeo entre o universal e o particular ou ainda a aplicaccedilatildeo de princiacutepios gerais em casos particulares Inserindo no mundo o comportamento eacutetico interpotildee a individualidade de um eu entretecido em formas histoacutericas de vida com um ethos comum Assim o agir moral natildeo estaacute voltado para um bem transcendente mas realizado em accedilotildees concretas (HERMANN 2007 p 366)
Assim com o escopo de compreendermos melhor passaremos a analisar a
figura do prudente
45 O prudente
A virtude da prudecircncia eacute tratada no capiacutetulo 5 do livro VI da Eacutetica a
Nicocircmaco Aristoacuteteles para explicaacute-la toma emprestado exemplo de pessoas
62
consideradas prudentes De acordo com ele eacute caracteriacutestico do homem prudente
ser capaz de bem deliberar sobre o que eacute bom e proveitoso para si mesmo natildeo de
maneira particular mas sobre o que eacute bom e vantajoso para o bem-estar em geral
Assim o homem prudente em geral eacute aquele capaz de bem deliberar de modo
geral
Poderiacuteamos afirmar que o sistema moral de Aristoacuteteles estaacute centrado em
sua maior parte no indiviacuteduo Aleacutem dos dois livros VIII e IX que satildeo dedicados agrave
amizade pouco se diz sobre ela na totalidade da eacutetica Pouco se sugere que o ser
humano deve ter um interesse caloroso e pessoal pelas outras pessoas e o
altruiacutesmo parece-nos ausente Mesmo sobre a amizade encontram-se traccedilos de um
ponto de vista deveras egoiacutesta jaacute que a mesma natildeo constitui uma benevolecircncia
mas exige certa reciprocidade
Mas tais afirmaccedilotildees natildeo parecem prosperar Sua eacutetica esta pautada no
conceito de felicidade Tal conceito soacute pode ser compreendido no acircmbito da poacutelis e
em relaccedilatildeo ao outro Ou seja para sermos felizes devemos optar por uma vida
virtuosa e para uma vida virtuosa devemos praticar as virtudes torna-se evidente
que sua teoria natildeo soacute considera mas tem como fundamento a relaccedilatildeo muacutetua entre
os homens ou melhor entre os animais poliacuteticos Vejamos a explicaccedilatildeo de Tomaacutes
de Aquino [] compete agrave razatildeo deliberar acertadamente julgar e preceituar naquilo
que se chega ao fim devido Estaacute claro que a prudecircncia visa natildeo somente o bem
particular de um soacute mas tambeacutem o bem comum da multidatildeo (AQUINO 2004 p
602) Estabelecendo uma relaccedilatildeo com a virtude moral expotildee
[] como toda virtude moral que se refere ao bem comum se chama justiccedila legal assim a prudecircncia referida ao bem comum se chama ldquopoliacuteticardquo de modo que a poliacutetica se relaciona com a justiccedila legal da mesma forma que a prudecircncia simplesmente dita agrave virtude moral (AQUINO 2004 p 602)
Portanto podemos concluir que o prudente eacute aquele que sabe o que eacute bom
para si de um modo geral e tambeacutem para sua comunidade Tambeacutem podemos
afirmar que ele bem delibera Assim na linguagem atual prudente tem um certo
sabor daquele que calcula com vistas no interesse proacuteprio (MACINTYRE 1991 p
63
80) e consequentemente da comunidade Resta-nos entatildeo examinar sobre o que o
prudente delibera
Vimos que natildeo eacute objeto de deliberaccedilatildeo as coisas das quais natildeo podemos
deliberar ou seja as coisas que estatildeo no acircmbito do necessaacuterio Conclui-se disto
que
[] a prudecircncia (sabedoria praacutetica) natildeo eacute o mesmo que conhecimento cientiacutefico como tatildeo pouco pode ser o mesmo que a arte Natildeo eacute conhecimento cientiacutefico porque assuntos relacionados agrave conduta admitem mutaccedilatildeo e natildeo pode ser arte porque o criar e o fazer satildeo genericamente diferentes posto que o criar visa um fim que eacute distinto do ato de criar enquanto no fazer o fim natildeo pode ser outro senatildeo o proacuteprio ato ou seja fazer bem eacute em si mesmo um fim Insiste-se portanto que a prudecircncia eacute uma qualidade racional de consecuccedilatildeo da verdade que concerne agrave accedilatildeo relativamente a coisas que satildeo boas e maacutes aos seres humanos (EN VI 5 1140b1-5)
Na sequecircncia Aristoacuteteles cita Peacutericles como sendo um exemplo de homem
prudente Em suas palavras ldquoPor ter a capacidade de discernir que coisas satildeo boas
para si mesmo e para os seres humanos E eacute isso que coincide com nosso
entendimento do que seja algueacutem conhecedor da administraccedilatildeo domeacutestica ou
administraccedilatildeo poliacuteticardquo (EN VI 5 1140b1-5)
Como modelo de phroacutenimos (quem possui a phroacutenesis) isto eacute de ldquosaacutebiordquo ou ldquoprudenterdquo Aristoacuteteles indica Peacutericles (1140 b 8) o grande liacuteder poliacutetico que governa Atenas certamente natildeo um filoacutesofo de profissatildeo com o qual discutir de igual para igual talvez para dissentir Aristoacuteteles indica Soacutecrates (13 1144 b 18 28) certamente natildeo um liacuteder poliacutetico nem nunca um governador de sua cidade tambeacutem daiacute resulta a diferenccedila por ele estabelecida entre a phroacutenesis e a filosofia praacutetica
Com mais forte razatildeo a phroacutenesis difere da sabedoria a primeira efetivamente ocupa-se o homem isto eacute das realidades humanas enquanto a segunda como vimos ocupa-se das realidades mais elevadas que o homem das realidades divinas Se o modelo da phroacutenesis como vimos eacute Peacutericles os modelos de sabedoria indicados por Aristoacuteteles satildeo Tales e Anaxaacutegoras alhures considerados fiacutesicos mas aqui apresentados como investigadores de realidades divinas (os princiacutepios supremos) (BERTI 1998 p 146-147)
Em contraste agrave filosofia platocircnica o Estagirita aborda a temaacutetica acerca da
sabedoria teoacuteretica e da sabedoria praacutetica A sabedoria teoreacutetica estaacute em grau de
64
superioridade em relaccedilatildeo agrave praacutetica sendo que ao menos uma parte do valor desta
uacuteltima consiste na ajuda que daacute a produccedilatildeo da primeira
Entatildeo a felicidade chega apenas ateacute onde haacute contemplaccedilatildeo e as pessoas mais capazes de exercerem a atividade contemplativa fruem mais intensamente a felicidade natildeo como um acessoacuterio da contemplaccedilatildeo mas como algo inerente a ela pois a contemplaccedilatildeo eacute preciosa por si mesma A felicidade portanto deve ser alguma forma de contemplaccedilatildeo
Mas sendo criaturas humanas necessitamos tambeacutem de bem estar exterior pois nossa natureza natildeo eacute suficiente por si mesma para o exerciacutecio da atividade contemplativa Nosso corpo deve ser tambeacutem saudaacutevel e deve receber boa alimentaccedilatildeo e outros cuidados Nem por isso poreacutem devemos pensar que as nossas pessoas necessitam de muitas e grandes coisas para ser felizes simplesmente porque natildeo podem ser sumamente felizes sem bens exteriores com efeito a auto-suficiecircncia e a accedilatildeo natildeo pressupotildeem excessos e podemos praticar accedilotildees nobilitantes sem dominar a terra e o mar porquanto mesmo com recursos moderados eacute possiacutevel agir de conformidade com excelecircncia (isto eacute bastante evidente pois se pensa que os simples cidadatildeos praticam atos meritoacuterios natildeo menos que os detentores do poder ndash na verdade os praticam ainda mais) basta dispormos de recursos moderados pois a vida das pessoas que agem de conformidade com a excelecircncia seraacute feliz (EN X 9 1179a1)
Destarte a contemplaccedilatildeo constitui o ingrediente fundamental da felicidade
para Aristoacuteteles Eacute esta a melhor atividade de que o homem eacute capaz haja vista que
eacute o exerciacutecio do melhor do indiviacuteduo sobre o melhor de todos os objetos os quais
satildeo eternos e imutaacuteveis Por consistir naquilo que o homem pode fazer com maior
continuidade acarretar prazer puro e estaacutevel ser menos dependente dos outros
homens Em suma consiste no gecircnero de vida que se deve atribuir aos deuses jaacute
que seria absurdo atribuir-lhes vida moral
Entretanto a vida contemplativa eacute extremamente elevada para o homem
Enquanto seres humanos compostos de corpo de alma irracional e de razatildeo
homem natildeo a podem vivecirc-la Hipoteticamente poderaacute vivecirc-la somente em virtude do
elemento divino presente nele Todavia o homem natildeo deve seguir aqueles que
afirmam que pelo homem ser homem deve limitar o seu pensamento agraves coisas
humanas Ora ldquona medida do possiacutevelrdquo o homem deve apoderar-se da vida eterna
vivendo a vida desta parte de si mesmo pois eacute esta que constitui a melhor e mais
verdadeira parte de si mesmo O homem que vive assim eacute feliz
65
Entatildeo a phroacutenesis no sentido jaacute plenamente definido de sabedoria praacutetica iraacute constituir-se como virtude dianoeacutetica entre as virtudes eacuteticas de um lado e a filosofia (ou sophiacutea) como haacutebito contemplativo de outro A phroacutenesis aristoteacutelica encontra assim o seu lugar no centro dessa estrutura de uma teoria da praxis como teoria praacutetica que seraacute finalmente a alternativa aristoteacutelica agrave ontologia platocircnica do Bem (VAZ 2000 p 102)
Ainda sobre o prudente podemos extrair dos valiosos ensinamentos de
Henrique C de Lima Vaz
A phroacutenesis como virtude da razatildeo reta (orthoacutes loacutegos) ou da razatildeo que iraacute estabelecer a meacutedia razoaacutevel entre os extremos para as virtudes eacuteticas eacute a primeira das virtudes dianoeacuteticas e assinala justamente a presenccedila do logos regulador e ordenador no fluxo contingente das accedilotildees singulares Ao apontar no homem saacutebio (phroacutenimos) a norma existencial e concreta da phroacutenesis Aristoacuteteles torna patente na realidade viva as ldquocoisas humanasrdquo a dialeacutetica que se estabelece entre o impliacutecito vivido do ethos e o expliacutecito vivido pensado da Eacutetica ou ciecircncia praacutetica Essa dialeacutetica vem romper exatamente com o ciacuterculo vicioso que parece opor logo nos primeiros passos do pensamento eacutetico a praacutetica e a definiccedilatildeo das virtudes e do qual nasce a aporia inicial dos chamados diaacutelogos ldquosocraacuteticosrdquo de Platatildeo a praacutetica da virtude verdadeira conteacutem o saber da sua definiccedilatildeo e a definiccedilatildeo da virtude natildeo eacute senatildeo a abstraccedilatildeo da sua praacutetica Eacute necessaacuterio praticar a virtude para poder defini-la e eacute necessaacuterio defini-la para bem pratica-la A Eacutetica como ciecircncia se propotildee justamente instaurar um tipo de reflexatildeo que permita a ruptura deste ciacuterculo entre o abstrato e o concreto estabelecendo um fundamento racional e uma medida para o agir (VAZ 2000 p 103-104 negrito nosso)
De acordo com Werner Jaeger a prudecircncia eacute a virtude que relaciona o
conhecimento mais elevado com as coisas da vida praacutetica
A phroacutenesis eacute o transformador que converte o conhecimento eterno de Deus no movimento eacutetico da vontade e o aplica agraves particularidades da praacutetica Na Eacutetica a Nicocircmaco eacute o ldquoestado de capacidade de trabalharrdquo e nenhum homem jamais atua sem ela O conhecimento filosoacutefico de Deus natildeo eacute sua condiccedilatildeo essencial
52 (JAEGER 1963 p 265 traduccedilatildeo
nossa)
52
La phroacutenesis es el transformador que convierte el conoci-miento del Dios eterno en el movimiento
eacutetico de la voluntad y lo aplica a los detalles de la praacutecticaEn la Etica Nicomaquea es el estado de capacidad de obrar y ninguacuten hombre actuacutea jamaacutes sin ella El conocimiento filosoacutefico de Dios ya no es su condicioacuten esencial (JAEGER 1963 p 275 traduccedilatildeo nossa)
66
Eacute desse hiato entre o universal e o particular que cuida o prudente Eacute ele
quem delibera sobre o momento as circunstacircncias e a maneira como a accedilatildeo deve
ser deflagrada para que possa ser considera virtuosa
Feita essa exposiccedilatildeo geral da eacutetica contingecircncia eacutetica das virtudes e
prudecircncia noacutes acreditamos ao menos em parte estar aptos a abordar um assunto
que assume papel central na filosofia grega a justiccedila
67
5 JUSTICcedilA COMO VIRTUDE
Abordar a justiccedila ndash ou qualquer outra virtude ndash no pensamento aristoteacutelico eacute
uma tarefa aacuterdua e sinuosa A coerecircncia do pensamento de Aristoacuteteles como um
todo e ao mesmo tempo a especificaccedilatildeo das particularidades de cada mateacuteria a ser
estudada daacute agrave abordagem uma dupla sensaccedilatildeo De um lado certa seguranccedila
relacionada ao fato de sua coerecircncia nos impulsionar ainda que de forma intuitiva
agraves significacircncias de seus dizeres Por outro lado a preocupaccedilatildeo com a seguranccedila
da informaccedilatildeo a ser tratada bem como com as alteraccedilotildees semacircnticas que tornam-
se significativas principalmente com a transiccedilatildeo para modernidade53
Eacute importante observarmos que o tratamento dado agrave justiccedila por Aristoacuteteles
emprega instrumentos pouco convencionais ateacute mesmo para a eacutepoca De acordo
com Eduardo C B Bittar (2005)
A siacutentese operada pelo pensador permitiu por meio de seus textos que se congregassem inuacutemeros elementos doutrinaacuterios reunidos ao longo dos seacuteculos pelos quais se espalharam os conhecimentos gregos anteriores a ele (preacute-socraacuteticos socratismo sofistas platonismo) Eacute da reuniatildeo das opiniotildees dos saacutebios da opiniatildeo do povo da experiecircncia praacutetica analisados e avaliados criticamente dentro da visatildeo de todo o problema (justiccedila da cidade justiccedila domeacutestica justiccedila senhorial) que surgiu uma concepccedilatildeo propriamente aristoteacutelica (BITTAR 2005 p 90-91)
Tal concepccedilatildeo daacute a justiccedila um caraacuteter eacutetico pois insere a mesma entre as
virtudes Dessa forma as regras gerais aplicadas agraves virtudes em particular satildeo
igualmente aplicadas agrave justiccedila Sendo a prudecircncia como mais tarde diria Tomaacutes de
Aquino genitrix virtut e auriga virtut54 parece-nos ser conceito aristoteacutelico de justiccedila
vitalmente ligado ao conceito de prudecircncia ao passo que a prudecircncia realiza suas
accedilotildees assim como a justiccedila no espaccedilo pertinente agrave accedilatildeo racional qual seja o
domiacutenio do contingente Assim esclarece Juacutelio Aguiar de Oliveira (2011)
53
Tema amplamente abordado em por MACINTYRE (2001) 54
Matildee da virtude (III Sent d 33 q 2 a 5 c) e guia da virtude (IV Sent d 17 q 2 a 2 dco) Traduccedilatildeo nossa
68
Na medida em que se trata de uma questatildeo referente agrave accedilatildeo humana sua atuaccedilatildeo se daacute no domiacutenio do contingente Eacute por isso que a virtude da justiccedila (como todas as outras virtudes eacuteticas) depende da virtude da prudecircncia Se a accedilatildeo humana se desenrolasse no domiacutenio do necessaacuterio os preceitos da lei natural poderiam ser deduzidos do primeiro princiacutepio por meio da ciecircncia (deduccedilatildeo matemaacutetica) No entanto uma vez que a accedilatildeo humana se aacute no domiacutenio do contingente a virtude necessaacuteria para a boa deliberaccedilatildeo eacute a virtude da prudecircncia (OLIVEIRA 2011 p121)
Portanto a justiccedila em sentido amplo eacute uma virtude que ldquo[] natildeo comporta
uma compreensatildeo geneacuterica e indiferente agraves qualidade especiacuteficas dos indiviacuteduos eacute
pelo contraacuterio sensiacutevel dentro das ambiccedilotildees teoacutericas de Aristoacuteteles agrave dimensatildeo
individualrdquo (BITTAR 2005 p 93) O conceito dado eacute o seguinte [] a justiccedila eacute a
virtude perfeita por ser ela a praacutetica da virtude perfeita aleacutem do que eacute perfeita num
grau especial porque seu possuidor pode praticar sua virtude dirigindo-a aos outros
e natildeo apenas sozinho [] (ENV 1 1129b30)
Nesse sentido Alexandre Travessoni Gomes em sua obra O fundamento da
validade do direito Kant e Kelsen conclui
A justiccedila soacute eacute possiacutevel numa relaccedilatildeo com o outro Aristoacuteteles chega mesmo a afirmar que dentre as virtudes somente a justiccedila eacute o bem do outro Tanto no sentido universal quanto no particular natildeo haacute justiccedila de um indiviacuteduo consigo mesmo visto que a justiccedila e a virtude que se relaciona com o nosso proacuteximo seja ele governante ou associado[]
Soacute haacute ato justo ou injusto uma vez que algueacutem o queira O que eacute justo ou injusto eacute caracterizado pela lei mas o ato justo ou injusto pressupotildee a vontade O ato injusto eacute portanto o ato voluntaacuterio em que se conhece tanto a pessoa a quem atine quanto o ato como instrumento de justiccedila ou injusticcedila (GOMES 2004 p 61)
Destarte eacute ato justo ou injusto eacute o ato possiacutevel voluntaacuterio e direcionado ao
semelhante
51 Justo e injusto
69
O livro V da Eacutetica a Nicocircmaco trata sobre a justiccedila De acordo com o estilo
de oposiccedilatildeo frequentemente empregado pelo Estagirita a noccedilatildeo de Justo eacute
contraposta agrave noccedilatildeo do injusto
Podemos sintetizar a anaacutelise inserta na passagem 1129b1-10 nos seguintes
termos O injusto eacute de duas espeacutecies injusto legal e injusto desigual
O injusto legal eacute aquele que transgride a lei em outras palavras aquele que
age orientado pela ilegalidade
O injusto desigual por sua vez eacute aquele que toma mais do que lhe eacute devido
Aristoacuteteles eacute muito preciso nesse trecho ao indicar que o injusto desigual eacute tambeacutem
aquele que toma a menor parte das coisas indesejadas Ou seja tomar tanto
demasiado as coisas boas quanto menos as coisas maacutes55
A noccedilatildeo de justo toma parte na argumentaccedilatildeo expondo por oacutebvio que o
justo igual (ou equitativo) eacute aquele que toma a parte que lhe eacute devida
O justo legal por seu turno eacute aquele que age de acordo com as leis Nesse
sentido eacute importante destacar o caraacuteter das leis no pensamento de Aristoacuteteles As
leis satildeo produzidas pelos legisladores de acordo com as virtudes portanto elas
orientam as accedilotildees reiterando o haacutebito e consequentemente educando para a
virtude Esse eacute o fim da atividade poliacutetica A felicidade de cada um em particular e da
poacutelis como um todo
Nesse sentido o termo justo eacute aplicado agrave qualquer coisa que possa produzir
e preservar a felicidade ou as partes componentes da felicidade da comunidade
poliacutetica
Aristoacuteteles destaca que existe uma relaccedilatildeo de gecircnero e espeacutecie entre o justo
legal e o justo igual sendo o justo legal o gecircnero da qual o justo igual eacute espeacutecie A
conclusatildeo eacute a seguinte Eacute possiacutevel ser injusto legal sem ser injusto igual mas natildeo eacute
possiacutevel ser injusto igual sem ser injusto legal
52 Justo universal
55
Parte-se do pressuposto de que as pessoas desejam as coisas boas
70
O justo universal eacute o gecircnero o sentido mais amplo que se pode atribuir ao
termo justo Pode-se dizer que a justiccedila universal consiste na observacircncia da lei no
que diz respeito agravequilo que eacute legiacutetimo e que vige para o bem da comunidade
Assim a define HOumlFF (2003)
A justiccedila como virtude completa denominada justiccedila universal (iustitia universalis) por Santo Tomaacutes de Aquino significa para Aristoacuteteles com vistas ao outro a virtude perfeita ainda mais reluzente do que a estrela vespertina e matutina Consiste na atitude de cumprir voluntariamente tudo o que a lei e os costumes exigem A justiccedila universal denota uma integridade abrangente Dela fazem parte eg tambeacutem as obras da coragem e da prudecircncia a que Aristoacuteteles no entanto alude modestamente apenas com interdiccedilotildees a coragem proiacutebe cometer adulteacuterio e tornar-se violento (HOumlFF 2003 p 24 e 25)
Eduardo Bittar (2005) observa que
A accedilatildeo que se vincula agrave legalidade obedece a uma norma que a todos e para o bem de todos eacute dirigida como tal essa accedilatildeo deve corresponder a um justo legal e a forma de justiccedila que lhe eacute por consequumlecircncia eacute aqui chamada justiccedila legal Aquele que observa os conteuacutedos legais pode ser chamado de justo nesse sentido O mesmo a contrariu sensu a respeito do injusto que lhe corresponde (BITTAR 2005 p 96)
Outro ponto que parece importante nas observaccedilotildees de Eduardo C Bittar eacute
acerca da funccedilatildeo do legislador de acordo com ele a produccedilatildeo normativa da poacutelis eacute
um exerciacutecio da prudecircncia Eacute o mesmo que encontramos na passagem 1141b25
Nessa passagem Aristoacuteteles divide a prudecircncia em duas espeacutecies uma relativa agraves
coisas particulares que recebe o nome de ciecircncia poliacutetica e outra relativa agraves coisas
concernentes ao Estado que nomina ciecircncia legislativa
[] pois as accedilotildees que nascem da virtude em geral satildeo fundamentalmente idecircnticas agraves accedilotildees que estatildeo de acordo com a lei uma vez que a lei prescreve a conduta que exibe as vaacuterias virtudes particulares e proiacutebe a conduta que exibe os vaacuterios viacutecios particulares
71
Igualmente as regras estabelecidas para a educaccedilatildeo particulares (EN V 2 1130b20-25)
A conclusatildeo eacute que a injusticcedila no sentido universal tange todas as coisas que
constituem a esfera da virtude ou seja que as leis prescrevem os comportamentos
virtuosos Mas eacute possiacutevel afirmar que existe algum ato que seja injusto e que natildeo
obstante esteja em conformidade com a virtude Por certo que natildeo Apenas o fato
de um ato ser injusto por si mesmo constitui uma violaccedilatildeo agrave virtude Pois ldquoNa
Justiccedila se encontra toda a Virtude somadardquo (1129b30)56 e por isso a Justiccedila eacute a
virtude perfeita
53 Justo particular
Natildeo obstante a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos ser injustos sem nos afastar
da esfera da virtude Aristoacuteteles nos apresenta uma particcedilatildeo particularizada quanto
em relaccedilatildeo ao injusto no sentido universal
Enquanto uma parte a mais abrangente (injusticcedila universal) versa sobre a
transgressatildeo das normas a outra diz respeito particularmente agrave injusticcedila que visa o
lucro e a injusticcedila movida pelo desejo A essas duas uacuteltimas injusticcedilas ele daacute o
sentido de particular
A que visa o lucro estaacute claro que diz respeito a accedilatildeo de tomar mais do que
lhe eacute devido ela se comporta de um modo bem peculiar por que natildeo viola outra
virtude que natildeo seja a proacutepria Justiccedila A que eacute movida pelo desejo eacute descrita pelo
comportamento desregrado e natildeo por tomar mais do que lhe eacute devido
Tais manifestaccedilotildees particulares satildeo divididas em duas importantes classes
para a teoria da justiccedila aristoteacutelica a saber a justiccedila distributiva e a justiccedila corretiva
531 Justiccedila distributiva
56
De acordo com nota de nuacutemero 123 do tradutor essa maacutexima eacute atribuiacuteda a Teoacutegnis
72
A justiccedila distributiva diz respeito agrave distribuiccedilatildeo proporcional ao meacuterito de
cada pessoa de bens honra riqueza e demais ativos divisiacuteveis da comunidade
Desta forma considera o justo como o igual e o injusto como o desigual admitindo a
igualdade como uma mediania o que pressupotildee ao menos dois termos
Dado o acima podemos admitir que a justiccedila pressupotildee pelo menos quatro
termos sendo que dois deles referem-se agraves medidas e ou outros dois aos indiviacuteduos
a que agraves medidas predicam
A formulaccedilatildeo de Aristoacuteteles acerca da justiccedila distributiva eacute a conjunccedilatildeo do
primeiro termo de uma proporccedilatildeo com o terceiro e do segundo com o quarto e o
justo nesse sentido eacute uma mediania entre os extremos que satildeo desproporcionais
uma vez que a proporccedilatildeo eacute uma mediania e o justo eacute o proporcional (EN V 3
1131b10)
Eacute isso que os matemaacuteticos chamam de proporccedilatildeo geomeacutetrica aquela na
qual soma do primeiro e terceiro termos apresentaraacute a mesma relaccedilatildeo com a soma
do segundo e quarto A observaccedilatildeo que segue eacute a seguinte A justiccedila distributiva
natildeo eacute uma proporccedilatildeo contiacutenua pois seus segundo e terceiro termos um indiviacuteduo e
uma porccedilatildeo natildeo constituem um termo singular (EN V 3 1131a15)
Assim o justo eacute o proporcional e o injusto o que transgride a proporccedilatildeo O
injusto pode assim incorrer no excesso ou na deficiecircncia Isso [] porque um mal
menor comparado a um maior eacute tido como um bem porquanto o menor de dois
males eacute desejaacutevel do que o maior entretanto o que eacute [efetivamente] desejaacutevel eacute
bom e quanto mais desejaacutevel for maior o bem seraacute (EN V 3 1131a20)
532 Justiccedila corretiva
A justiccedila corretiva estaacute direcionada com as relaccedilotildees de acircmbito privado Esta
ao contraacuterio da distributiva natildeo eacute guiada pela proporccedilatildeo geomeacutetrica e sim pela
aritmeacutetica Aqui a lei leva em conta apenas a natureza do dano pois considera as
73
partes iguais seu objeto eacute identificar o sujeito que causou o dano e a quem o dano
fora causado
Elas satildeo distribuiacutedas em duas categorias voluntaacuterias e involuntaacuterias As
voluntaacuterias satildeo aquelas decorrentes da accedilatildeo volitiva entre os sujeitos O exemplo
mais utilizado para ilustrar eacute o de uma relaccedilatildeo de compra e venda
Aristoacuteteles traz para a relaccedilatildeo entre os particulares o problema que contorna
a teoria da justiccedila que eacute dar a cada um o que lhe cabe Dessa forma utiliza dos
termos ldquoperdardquo e ldquoganhordquo para as operaccedilotildees de permuta voluntaacuteria ldquoNesse contexto
ter mais do que lhe cabe eacute chamado de ganho e ter menos do que se tinha no iniacutecio
eacute chamado de perda como por exemplo comprar e vender e todas as transaccedilotildees
que recebem a imunidade da leirdquo (EN V 3 1132a15)
A justiccedila corretiva no sentido involuntaacuterio diz respeito a accedilatildeo decorrente da
vontade de apenas um dos sujeitos O Estagirita divide as do tipo involuntaacuterio em
duas espeacutecies sendo elas furtivas e violentas Ele as explica dando os seguintes
exemplos As furtivas deteacutem o furto o adulteacuterio o envenenamento a prostituiccedilatildeo a
seduccedilatildeo ou incitaccedilatildeo de escravos o assassinato agrave traiccedilatildeo o falso testemunho
Quanto agraves violentas deteacutem o assalto o aprisionamento o crime de morte o roubo
mediante violecircncia a mutilaccedilatildeo a linguagem abusiva o insulto
54 Justo domeacutestico
No trecho 1134 da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles apresenta mais duas
acepccedilotildees de justiccedila A justiccedila poliacutetica e a justiccedila domeacutestica Se avanccedilarmos mais
uma vez no texto e adentrarmos na temaacutetica prudecircncia vamos encontrar duas
figuras ou uma figura com duas caracteriacutesticas semelhantes agrave essas formas de
justiccedila Estamos referindo agrave figura do prudente como bom administrador domeacutestico
e ou bom administrador poliacutetico Proacutexima a essa mesma passagem do livro VI
encontramos uma nova referecircncia que diz respeito agrave duas manifestaccedilotildees
especiacuteficas da prudecircncia uma relativa ao Estado e outra relativa aos particulares Agrave
prudecircncia que concerne agraves coisas proacuteprias ao Estado Aristoacuteteles chama de Ciecircncia
74
Legislativa Agrave prudecircncia que concerne agraves coisas proacuteprias aos particulares ele chama
de Ciecircncia Poliacutetica
A justiccedila domeacutestica eacute aquela compreendida pelas relaccedilotildees que se
estabelecem entre marido e mulher pai e filho e senhor e escravo A mulher o filho
menor e o escravo natildeo participam ativamente das decisotildees da poacutelis o que os
isentam do conceito de justo poliacutetico Apesar da mulher natildeo participar das decisotildees
da poacutelis ela participa das decisotildees do lar o que a diferencia do escravo e do filho
Contra estes uacuteltimos natildeo se pode dizer que o senhorpai possa cometer injusticcedila
uma vez que satildeo considerados como parte do senhorpai sendo que ningueacutem pode
cometer injusticcedila contra si mesmo (BITTAR 2005 p 107)
55 Justo poliacutetico
Como jaacute referimos a compreensatildeo de justiccedila necessariamente
compreende dois termos-sujeito Essa implicaccedilatildeo natildeo eacute meramente loacutegica ela eacute
consequecircncia da teleologia que permeia toda a eacutetica aristoteacutelica Entretanto o justo
poliacutetico em especial refere-se a um grupo de pessoas que possuem a qualidade de
cidadatildeo Isso se deve principalmente por ser um pressuposto da justiccedila poliacutetica a
qualidade de participante ativo dos processos deliberativos proacuteprios agrave poacutelis
Feitas essas observaccedilotildees preliminares podemos agora procurar conceituar
o que seja a justiccedila poliacutetica De acordo com Eduardo C B Bittar
O justo poliacutetico consiste na aplicaccedilatildeo da justiccedila na cidade na poacutelis ou seja trata-se de algo que pertine ao corpo ciacutevico Assim existente no meio social eacute a justiccedila eu organiza um modo de vida que tende agrave auto-suficiecircncia da vida comunitaacuteria (autaacuterkeian) vigente entre os homens que partilham de um espaccedilo comum dividindo atividades segundo a multiplicidade de aptidotildees e necessidades de cada qual formando uma comunidade que tem por fim a eudaimoniacutea e a plena realizaccedilatildeo das
potencialidades humanas (BITTAR 2005 p 106)
75
A definiccedilatildeo dada pelo Estagirita eacute a seguinte ldquoJusticcedila poliacutetica quer dizer
justiccedila entre as pessoas livres e (real ou proporcionalmente) iguais que vivem uma
vida comum com a finalidade de satisfazer suas necessidadesrdquo (1134a25) O que
parece dizer que soacute podem agir justa ou injustamente aqueles que satildeo considerados
cidadatildeos
Aristoacuteteles divide a justiccedila poliacutetica em duas partes sendo uma a justiccedila
natural e outra a justiccedila convencional Comecemos pela natural
551 Justiccedila natural
O Estagirita explica que a justiccedila natural eacute aquela que possui idecircntica
validade em todos os lugares e natildeo depende de nossa aceitaccedilatildeo ou natildeo aceitaccedilatildeo
ldquoO justo natural (diacutekaion phyacutesikon) eacute aquele eu por si proacuteprio por todas as
partes possui a mesma potecircncia (dyacutenamis) e que natildeo depende para sua existecircncia
de qualquer decisatildeo de qualquer ato de positividade de qualquer opiniatildeo ou
conceito O que eacute por natureza eacute tal qual eacute []rdquo (BITTAR 2005) Continua definindo
A justiccedila natural eacute parte da justiccedila poliacutetica que visa permitir a realizaccedilatildeo plena do ser humano inserido na estrutura social do conviacutevio Sendo naturalmente um ser poliacutetico (zwon politikoacuten) a plena realizaccedilatildeo do animal racional estaacute condicionada agrave proacutepria natureza que o engendra o eu equivale a dizer que agrave sociabilidade agrave politicidade agrave autoridade ao relacionamento agrave reciprocidade estaacute o homem intestinamente ligado Reger-se sob o signo de sua natureza para o homem significa estar sob o governo da razatildeo o que se traduz no acircmbito social como estar sob o governo das leis que satildeo ldquoa razatildeo sem paixatildeordquo (BITTAR 2005 p 109)
552 Justo legal (convencional)
Aristoacuteteles define a justiccedila legal como aquela que em primeira instacircncia
pode ser estabelecida de um modo ou outro Isso quer dizer que a justiccedila legal eacute
76
composta pelas disposiccedilotildees definidas de um ou outro modo pela vontade do
legislador
A lei possui forccedila natildeo natural mas fundada na convenccedilatildeo Tendo vaacuterias formas de se estabelecer determinado princiacutepio como conteuacutedo da lei a opccedilatildeo eacute feita pelo legislador passando assim aquilo que a priori era indiferente que fosse de tal ou de qual maneira a ser vinculado a todos os cidadatildeos que a ela se subordinam
Tambeacutem eacute a esse tipo de justiccedila que se agregam as medias legais de caraacuteter particular os decretos e as sentenccedilas As leis em sua maior
parte dirigem-se genericamente a um grupo de cidadatildeos [] Os
decretos as decisotildees emanadas do poder administrativo do governante assim como as sentenccedilas judiciais a aplicaccedilatildeo concreta da generalidade abstrata das disposiccedilotildees legais
57 estatildeo tambeacutem atreladas ao justo
legal como parte da justiccedila poliacutetica que se realiza na vida ciacutevica (BITTAR 2005 p 110)
Dessa forma e imediatamente o fundamento de validade da disposiccedilatildeo natildeo
estaacute na justiccedila natural e sim na convenccedilatildeo orientada pela vontade do legislador
Porque ldquo[] enquanto uma lei da natureza eacute imutaacutevel e tem a mesma validade em
todos os lugares como o fogo que queima na Peacutersia observa-se que as regras da
justiccedila variam (EN V 6 1134a30)
Werner Jaeger em sua Paideia exprime a importacircncia do justo legal para o
povo grego
Acontece o mesmo na Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Anota um nuacutemero muito maior de Aretai que Platatildeo mas ao falar da justiccedila distingue um duplo conceito desta virtude existe uma justiccedila em sentido estrito juriacutedico e outra num sentido mais geral que engloba a totalidade das normas morais e poliacuteticas Reconhecemos nesta uacuteltima sem dificuldade o conceito de justiccedila do antigo Estado constitucional helecircnico Aristoacuteteles invoca expressamente o verso acima referido que inclui na justiccedila todas as virtudes A lei regula pelos seus preceitos as relaccedilotildees dos cidadatildeos com os deuses do Estado com os outros concidadatildeos e com os inimigos da Paacutetria[]
Como suma da comunidade citadina a poacutelis oferece muito Em contrapartida pode exigir ao maacuteximo Impotildee-se aos indiviacuteduos de modo vigoroso e implacaacutevel e neles imprime seu caraacuteter Eacute fonte de todas normas de vida vaacutelidas para os indiviacuteduos O valor do homem e de sua conduta mede-se exclusivamente pelo bem ou pelo mal que acarretam agrave cidade (JAEGER 1995 139-142 negrito nosso)
57
Sobre a aplicaccedilatildeo da lei geral ao caso concreto vide o capiacutetulo 5 A equidade
77
Em sua Retoacuterica Aristoacuteteles define e diferencia invocando a trageacutedia
Antiacutegona
Quando falo de dois tipos de direito ou lei refiro-me agrave lei particular e agrave lei comum A primeira varia segundo cada povo sendo parcialmente escrita a lei comum eacute a lei natural visto que haacute de fato uma justiccedila e uma injusticcedila das quais todos tecircm de alguma maneira a intuiccedilatildeo e que satildeo naturalmente comuns a todos independentemente de todo Estado e de toda convenccedilatildeo reciacuteproca Eacute isso que Antiacutegona de Soacutefocles expressa com clareza ao declarar que o sepultamento de Polinices fora um ato justo a despeito da proibiccedilatildeo ela quer dizer que fora um ato justo por ser o direito natural
Natildeo eacute de hoje ou de ontem
Mas vive eternamente ningueacutem podendo indicar sua origem (Ret I 13
1373b1-15)
Vimos o justo natural como algo imutaacutevel e com regras aplicaacuteveis agraves
diversas localidades Tambeacutem revisitamos o conceito de justo legal estabelecendo
que seu criteacuterio de validade esteja na vontade uma vez que eacute fruto de convenccedilatildeo
Agora restam-nos compreender como aproximar os princiacutepios gerais as leis
abstratas das contingecircncias que imprime em noacutes a incerta condiccedilatildeo humana
78
6 A EQUIDADE
Tanto em sua Eacutetica a Nicocircmaco quanto em sua Retoacuterica Aristoacuteteles utiliza o
termo equidade58 epieikeia em dois sentidos Num sentido lato significa benignidade
e indulgecircncia No sentido stricto eacute a correccedilatildeo da lei
ldquoSer equitativo eacute mostrar indulgecircncia ante as fraquezas humanas eacute tambeacutem
levar em conta menos a lei do que o legislador considerar natildeo a letra da lei mas a
intenccedilatildeo do legisladorrdquo (Ret I 13 1374b10)
ldquoE [tambeacutem] daqui se pode concluir claramente quem eacute o homem equitativo
ele eacute algueacutem que por escolha e haacutebito faz o que eacute equitativo e que natildeo eacute inflexiacutevel
quanto aos seus direitos se contentando em receber uma porccedilatildeo menor mesmo que
tenha a lei do seu ladordquo (EN V 10 1138a)
Sobre o sentido lato Carlos Alberto Schiavo
Por outro lado alguns autores entendem que o uso que os gregos ndash Platatildeo inclusive ndash davam para a palavra epieikeia era em um sentido vulgar de benignidade e indulgecircncia ateacute mesmo porque quando querem atribuir agrave Platatildeo um espiacuterito de rigidez na aplicaccedilatildeo da lei em atenccedilatildeo agrave supremacia que o filoacutesofo assinalava do Estado sobre o indiviacuteduo em seus ensinamentos acerca do justo (SCHIAVO 2013 p 6-7 traduccedilatildeo nossa)
59
Assim o conceito de equidade pode ser compreendido como o exerciacutecio do
justo e do bem atraveacutes da benignidade e da indulgecircncia Aqui a comunidade se
beneficia uma vez que o equacircnime alcanccedile seu bem atraveacutes de deliberaccedilotildees que
natildeo pretendem prover apenas o acircmbito individual
58
Equidade eacute a traduccedilatildeo romacircnica de aequitas e natildeo do grego epieiacutekeia Para uma traduccedilatildeo direta do grego a correspondente em liacutengua portuguesa eacute epiqueia que de acordo com Aureacutelio Buarque de Holanda ldquoepiqueia SF 1 Interpretaccedilatildeo razoaacutevel de lei ou preceito 2 Fig Meio-termo moderaccedilatildeordquo Vide PINTO G A GONCcedilALVES A L GONCcedilALVEZ V D C O problema da traduccedilatildeo do termo fairness na obra de John Rawls Belo Horizonte Editora Puc Minas 2009 59
Por otra parte algunos autores entienden que el uso que los griegos -Platon inclusive- daban a la palabra epieikeia era en un sentido vulgar de benignidad e indulgencia aun cuando hay quienes atribuyen a Platon un espiacuteritu de rigidez en la aplicacioacuten de la ley en atencioacuten a la supremaciacutea que el filosofo le asignaba al Estado sobre el individuo y a su idea respecto de persuadir de como es por naturaleza lo justo (SCHIAVO p6-7 traduccedilatildeo nossa)
59
79
Sobre o sentido stricto Aristoacuteteles afirma que a natureza essencial do
equitativo eacute uma retificaccedilatildeo da lei onde a lei eacute lacunar em funccedilatildeo de sua
generalidade
Este sentido pretende conhecer o ponto de colisatildeo entre a norma em sua
generalidade e a fraacutegil condiccedilatildeo humana em sua singularidade Em outras palavras
neste sentido Aristoacuteteles nos diz que por ser a lei geral e abstrata instala-se uma
distacircncia entre ela e seu objeto uma vez que as relaccedilotildees humanas satildeo contingentes
e portanto de difiacutecil determinaccedilatildeo
Esta distacircncia dificulta a aplicaccedilatildeo da norma podendo por vezes causar
injusticcedila Para evitar a injusticcedila proveniente da aplicaccedilatildeo do justo legal eacute necessaacuterio
acomodar este uacuteltimo agrave realidade do mundo fatiacutedico essa acomodaccedilatildeo eacute a equidade
em seu sentido stricto
61 Justiccedila e equidade ambiguidade do tema
Aristoacuteteles ao tratar da equidade comeccedila fazendo uma exposiccedilatildeo sobre a
ambiguidade terminoloacutegica entre justiccedila e equidade e o justo e o equitativo De
acordo com Eduardo Bittar
[] o uso dos termos se aproxima tamanhamente que ora chamamos de eacutequa uma situaccedilatildeo de justiccedila ora de justa uma situaccedilatildeo eacutequa De fato todos reconhecem que os termos natildeo se equivalem perfeitamente e neste caso o uso de um pelo outro conduz a equiacutevocos notoacuterios de modo que sendo semelhantes poreacutem natildeo idecircnticos devem ser distinguidos naquilo que lhes peculiariza Eacute no gecircnero (eacuteteron tocirc geacutenei) que se dizem aproximados os conceitos de ambos os termos O uso ainda mais esta a indicar a relativa e frequumlente coincidecircncia dos campos semacircmticos de ambos os significantes pois verdadeiramente se satildeo diversos ou o justo natildeo eacute bom ou o eacutequo natildeo o eacute (BITTAR 2005 p163)
Os termos no Grego de Aristoacuteteles satildeo canonicamente traduzidos por equidade e equitativo satildeo epieikeia e epiekis respectivamente Ele usa-os com muita frequecircncia na Eacutetica a Nicocircmaco e muita vezes em sua Retoacuterica e sua Poliacutetica Como ele mesmo nota que usa os termos em dois sentidos De longe o significado mais comum e geral eacute de epieikeia como simplesmente excelecircncia ou bondade A Eacutetica a Nicocircmaco
80
aplica mais tipicamente neste sentido Em uma passagem Aristoacuteteles diz que do ponto de vista da Justiccedila na rectificaccedilatildeo eacute indiferente se um homem bom tem defraudado um mau homem ou vice-versa a palavra para bom eacute epieikeis contrastava com phaulos para o mal Em trecircs passagens no entanto Aristoacuteteles usa os termos para se referir a uma virtude especiacutefica comumente dito ser a virtude da equidade um tipo particular de excelecircncia Aristoacuteteles caracteriza em verdade epieikeia no sentido especiacutefico como um epanorthoma nomou hei elleipei dia de katholou uma correccedilatildeo da lei onde a lei estaacute aqueacutem por causa de sua universalidade Na Retoacuterica descreve a justa quanto ao Paraacute para gegrammenon nomon δικαιον II que a justiccedila que se encontra aleacutem a lei escrita (SHINER 1994 p 1247 traduccedilatildeo nossa)
60
Ao tratar do assunto o Estagirita distingue a justiccedila e o justo pelas
quantificadoras universal e particular Quando aponta o sentido universal estaacute
referido agrave accedilatildeo como virtuosa ou natildeo Quando aponta o sentido particular diz que
estaacute relacionada ao prazer do ganho Eis a distinccedilatildeo ldquoEntretanto enquanto a
injusticcedila no sentido particular tange agrave honra ao dinheiro ou agrave seguranccedila ou seja laacute
qual for o termo que pudeacutessemos utilizar para englobar todas essas coisas seu
motivo sendo o prazer do ganho a injusticcedila no sentido universal tange a todas as
coisas que constituem a esfera da virtuderdquo (EN V 2 1130b1) Conclui na sequecircncia
que em sentido universal o justo eacute legal e em sentido particular o justo eacute igual ou
equitativo
O exame da natureza da equidade e do equitativo se daacute em sentido anaacutelogo
pois ldquo[] (nem tudo que eacute ilegal eacute natildeo equitativo ao passo que tudo que eacute natildeo
equitativo eacute ilegal) assim tambeacutem o injusto e a injusticcedila no sentido particular satildeo o
mesmo que o injusto e a injusticcedila no sentido universal mas destes distintos e a eles
relacionados como a parte do todordquo (EN V 2 1130b10)
60 The terms in Aristotles Greek standardly translated equity and equitable are epieikeia and
epiekis respectively He uses them frequently throughout the Nicomachean Ethics and often in the Rhetoric and Politics too As he himself notes he uses the terms in two senses By far the most common meaning is the general one-epieikeia means simply excellence or goodness The Nicomachean Ethics illustrates typically this sense In one passage Aristotle says that from the point of view of justice in rectification it is indifferent whether a good man has defrauded a bad man or vice versa the word for good is epieikeis contrasted with phaulos for bad In three passages however Aristotle uses the terms to refer to a specific virtue commonly said to be the virtue of equity a particular kind of excellence Aristotle pithily characterizes epieikeia in the specific sense as an epanorthoma nomou hei elleipei dia to katholou a correction of law where law falls short because of its universality The Rhetoric describes the equitable as to para to gegrammenon nomon dikaionII that justice which lies beyond the written law (SHINER 1994 p 1247 traduccedilatildeo nossa)
81
Justo eacute um adjetivo que se predica em uma determinada pessoa comportamento ou situaccedilatildeo atraveacutes da atribuiccedilatildeo a todas essas coisas da capacidade de justiccedila abstrata E assim o justo consiste em realizar o objeto principal da justiccedila a concretizaccedilatildeo da justiccedila ao niacutevel do caso concreto tem em primeiro plano de referecircncia o justo legal e na epikeia a concretizaccedilatildeo do justo em respeito a um comportamento que eacute completamente determinado que resulte excepcional frente ao primeiro plano de referecircncia E por justiccedila entendia o Estagirita Esti de dikaiosunh men areth di hv ta autwn ekastoi exousi kai wz o nomo z adikia de di hn ta allotpia oux wz o nomoz 61 58 en tanto los romanos la definiacutean como ldquoConstans er perpetua voluntas jus summ cuique tribuendi
62rdquo
o bien Est autem a iustitia appellantum nam ut eleganter Celsus definit ius est ars boni et aequi
63 (SCHIAVO 2013 p3)
64
Quanto agrave equidade e ao equitativo Aristoacuteteles retoma o assunto no capiacutetulo
10 do Livro V da Eacutetica a Nicocircmaco De acordo com ele a equidade e o equitativo se
relacionam com a justiccedila e com o justo respectivamente pois quando examinadas
afigura-se que justiccedila e equidade natildeo satildeo nem absolutamente idecircnticas nem
genericamente diferentes
Aqui uma nova referecircncia ao duplo sentido do termo equidade65 uma de
uso popular e outra de emprego teacutecnico Vejamos
Por vezes eacute verdade que louvamos a equidade e o homem equitativo a tal ponto que chegamos a empregar a palavra equitativo como um termo
61
Ret I 9 1367a 5-7 ldquoaquilo que fazemos por nossos benfeitores por forccedila da justiccedila disto e os serviccedilos prestados em geral pois o proveito que deles se extrai natildeo se dirige ao seu agenterdquo (ARISTOacuteTELES 2011 p 83 traduccedilatildeo Edson Bini) 62
Constante e perpeacutetua vontade de cumprir os deveres (traduccedilatildeo nossa) 63
E eacute chamada assim de justiccedila pela elegante definiccedilatildeo de Celso eacute a arte do bom e do equitativo (traduccedilatildeo nossa) 64
Justo es un adjetivo que se predica en concreto de una persona de una conducta o de una situacioacuten por el que se asigna a todas estas cosas la capacidad abstracta de justicia Y en tanto lo justo consiste en realizar el bien comuacuten como objeto principal de la justicia la concrecioacuten de la justicia a nivel del caso o del conflicto tiene un primer plano de referencia en la justicia legal y en la epiqueya la concrecioacuten de lo justo respecto de una conducta completamente determinada que resulta excepcional frente aquel primer plano de referencia Y por justicia el Estagirita entendiacutea Esti de dikaiosunh men areth di hv ta autwn ekastoi exousi kai wz o nomo z adikia de di hn ta allotpia oux wz o nomoz en tanto los romanos la definiacutean como ldquoConstans er perpetua voluntas jus summ cuique
tribuendi rdquo o bien Est autem a iustitia appellantum nam ut eleganter Celsus definit ius est ars boni et aequi (SCHIAVO 2013 p3) 65
Ao que tratamos no iniacutecio deste capiacutetulo
82
de aprovaccedilatildeo de outras coisas aleacutem do que eacute justo e a empregamos como equivalente de bom querendo dizer com mais equitativo meramente uma coisa eacute melhor Em outras oportunidades todavia quando submetemos a palavra efetivamente ao crivo da razatildeo nos parece estranho que o equitativo devesse ser louvaacutevel uma vez ser ele algo distinto do justo (ENV 10 1137b1)
Aristoacuteteles instala entatildeo certa dificuldade que nos parece proveniente da
loacutegica De acordo com ele ldquoSe satildeo diferentes [um deles] o justo ou o equitativo natildeo
eacute bom se ambos satildeo bons satildeo a mesma coisardquo (ENV 10 1137b1)
A soluccedilatildeo dada eacute que a equidade natildeo eacute diferente da justiccedila como um todo
mas diferente de uma parte dela a justiccedila legal Natildeo bastasse diferente Aristoacuteteles
ainda afirma ser a equidade superior uma vez que a equidade eacute a retificaccedilatildeo da
justiccedila legal
62 Justiccedila como equidade66
Talvez uma dificuldade na compreensatildeo da equidade aristoteacutelica esteja
associada a uma terceira concepccedilatildeo vigente em sua Eacutetica Tal concepccedilatildeo foi fruto
da investigaccedilatildeo tomista e permeia a ideia de equidade se sobrepondo por vezes agraves
duas primeiras concepccedilotildees apresentadas quais sejam a lato e a stricto
A questatildeo estaacute mais uma vez na proacutepria terminologia Sem precisar das
origens etimoloacutegicas da palavra justiccedila e da palavra equidade podemos estabelecer
um padratildeo como constante em ambos os conceitos
A palavra justiccedila nos remete agrave justeza agravequilo que estaacute conformado ou em
conformidade justificado assentado ajustado etc A palavra equidade por sua
vez nos remete agrave equalizado equiparado razoado etc
Numa primeira acepccedilatildeo a palavra equumlidade significa etimologicamente retidatildeo e justiccedila Numa segunda acepccedilatildeo poreacutem corresponde a
66
Aqui natildeo fazemos referecircncia a obra Justice as fairness do filoacutesofo John Rawls Sobre este assunto vide PINTO G A GONCcedilALVES A L GONCcedilALVEZ V D C O problema da traduccedilatildeo do termo fairness na obra de John Rawls Belo Horizonte Editora Puc Minas 2009
83
moderaccedilatildeo correccedilatildeo benignidade piedade coincidindo nesse sentido com a ideacuteia aristoteacutelica de epikeya que eacute o conveniente ou o que se ajusta ou melhor norma que se adapta a uma determinada relaccedilatildeo por corresponder agrave natureza essencial desta A equumlidade complementa a justiccedila corrigindo a lei pelas caracteriacutesticas concretas e muitas vezes imprevistas que as realizadas sociais apresentam e que natildeo satildeo passiacuteveis de enquadramento nos ditamentes da justiccedila geral A lei como natildeo pode deixar de ser regula as relaccedilotildees humanas de caraacuteter juriacutedico sob um acircngulo de todo geral e abstrato A equumlidade ao contraacuterio por sua proacutepria natureza visa a corrigir a lei quando esta como anota Aristoacuteteles se demonstra incompleta para abarcar o caso especial e concreto que foge agrave aplicaccedilatildeo geneacuterica (PAUPEacuteRIO 2003 p 67)
Parece que ambos os termos remetem a uma adaptaccedilatildeo que tem por fim
tornar igual ou ao menos fazer com que a medida estabelecida conheccedila seu objeto
Neste sentido instalador da ambiguidade eacute que muitos autores fazem
referecircncia agrave equidade como sendo a proacutepria justiccedila natural ou ao menos a parte
dela que nos toca
[] o termo ldquoequumlidaderdquo natildeo eacute uniacutevoco pois natildeo se aplica a uma soacute realidade nem tampouco equiacutevoco jaacute que natildeo designa duas ou mais realidades desconexas mas sim anaacutelogo pois se refere a realidades conexas ou relacionadas entre si
De maneira que a ldquoequumlidaderdquo tem sido de certa forma entendida como um direito natural em suas vaacuterias concepccedilotildees (DINIZ 242)
Palpeacuterio destaca que ldquoNo fundo como anotam alguns autores a equumlidade eacute
o proacuteprio direito natural natildeo propriamente em seus princiacutepios mas em sua
aplicaccedilatildeo e acomodaccedilatildeo aos casos concretosrdquo67 (PALPEacuteRIO p 69)
De acordoacute com Recasegraves Siches ldquola equidad es la expresioacuten de lo justo
natural en relacioacuten com el caso concreto Es decir la equidad es lo justo pero no lo
67
Na sequencia podemos encontrar o Autor dizendo que a justiccedila se difere da equidade contudo parece-nos que o conceito de justiccedila trabalhado neste ponto eacute o conceito de justo poliacutetico natildeo alcanccedilando a latitude aparente do texto que por referir apenas agrave justiccedila poderia nos sugerir seu sentido amplo vejamos ldquoNatildeo se confundindo com a clemecircncia que segundo Secircneca eacute a moderaccedilatildeo do acircnimo no poder de castigar a equumlidade distingue-se da proacutepria justiccedila porque enquanto esta corresponde agrave aspiraccedilatildeo do legislador aquela corresponde agrave do juizrdquo (p 69)
84
justo legal tal y como se desprenderiacutea de latildes palabras de la ley sino lo
auteacutenticamente justo respecto del caso particularrdquo (SICHES 2008 p 656)
Portanto tanto a justiccedila quanto a equidade parecem procurar acomodar a
medida constante das regras gerais e abstratas agraves realidades inconstantes em suas
singularidades e concretude Tal acomodaccedilatildeo procura estabelecer ou reestabelecer
certo paracircmetro de igualdade que nos parece aspiraccedilatildeo natural agrave justiccedila grega
621 Justiccedila e igualdade
A noccedilatildeo de justiccedila estaacute intimamente relacionada com a noccedilatildeo de
igualdade68 Da mesma forma em que a injusticcedila estaacute relacionada com a noccedilatildeo de
desigualdade Nuno Manoel M dos S Coelho em seu verbete Igualdade explica
que o desenvolvimento do ldquoconceito juriacutedico-filosoacutefico de igualdade no centro da
concepccedilatildeo de justiccedila como virtude diante do outro eu reconheccedilo como igual na
medida em que natildeo posso reivindicar tudo para mim mas devo dar a cada um o
seurdquo (COELHO 2011 p 215)
A igualdade eacute elemento essencial e baacutesico ldquoA justiccedila eacute uma igualdade e a injusticcedila uma desigualdaderdquo afirmou Aristoacuteteles ldquoA essecircncia da justiccedila eacute a igualdaderdquo acrescenta S Tomaacutes E mestre em tirar das palavras o que elas encerram mostra que a noccedilatildeo de igualdade estaacute contida no proacuteprio nome dessa virtude pois das coisas que estatildeo adequadas ou igualadas dizemos comumente que estatildeo ldquoajustadasrdquo (MONTORO 2009 p 170)
68
Podemos observar que a preocupaccedilatildeo com a igualdade e a tensatildeo existente entre igualdade material e igualdade formal aparece ateacute mesmo no contexto positivista como um problema a ser resolvido Tambeacutem daqui resulta que eacute errado considerar a regra que manda tratar os que satildeo iguais de forma igual como aplicaccedilatildeo do princiacutepio de justiccedila da igualdade A uacutenica norma que pode valer como princiacutepio de justiccedila da igualdade eacute a norma segundo a qual todos os homens devem ser igualmente tratados segundo a qual nenhuma das desigualdades que efetivamente existem entre eles deve ser tomada em consideraccedilatildeo (KELSEN 1998 p 55-56) Podemos ainda encontra tal preocupaccedilatildeo no liberalismo de pensadores como John Rawls vide Uma teoria da Justiccedila (2008)
85
A justiccedila em Aristoacuteteles faz necessaacuteria referecircncia agrave igualdade em seu
sentido material Tanto o eacute que a medida enquanto referecircncia da mediania eacute o
fundamento de sua eacutetica
Sobre a justiccedila enquanto igualdade Andreacute Franco Montoro desdobra acerca
da foacutermula tomista Ratio justitiae in hoc consistit quod alteri reddatur quod ei
debentur secundum aequalitatem69
[] em sentido estrito e proacuteprio a justiccedila designa uma virtude com objeto especial Nesse sentido ldquoa essecircncia da justiccedila consiste em dar a outrem o que lhe eacute devido sendo uma igualdaderdquo (simples ou proporcional) conforme a definiccedilatildeo de S Tomaacutes Soacute eacute justiccedila propriamente dita a relaccedilatildeo que tem por objeto - dar a outrem - o que lhe eacute devido - segundo uma igualdade A essas trecircs notas correspondem agraves caracteriacutesticas essenciais da justiccedila em sentido estrito - a alteridade ou pluralidade de pessoas (alteras de alter) - o devido (debitum) - a igualdade (aequalitas) (MONTORO 2009 p 165 - 166)
Ainda de acordo com Montoro a igualdade eacute estabelecida atraveacutes de
criteacuterios quantitativos
Duas realidades satildeo idecircnticas quando tecircm a mesma essecircncia Semelhantes quando tecircm as mesmas qualidades Iguais quando tecircm a mesma quantidade ldquoidem est unum in substancia siacutemile unum in qualitate aequale vero unum in quantitaterdquo Um homem eacute ldquoidecircnticordquo apenas a si mesmo De duas pessoas que tecircm os mesmos traccedilos dizemos que satildeo ldquosemelhantesrdquo Vinte eacute igual a 10 mais 10
A igualdade eacute pois uma equivalecircncia de quantidades Na justiccedila de forma analoacutegica e adaptada agrave natureza moral das relaccedilotildees humanas e essa tambeacutem a significaccedilatildeo de igualdade
Com razatildeo observou Recaseacutens Siches na justiccedila natildeo se trata de estabelecer ldquoidentidaderdquo como seria o caso de entregar um objeto e receber o mesmo objeto Isso natildeo teria sentido Natildeo se trata tambeacutem de receber um objeto ldquosemelhanterdquo ou parecido Mas de estabelecer uma equivalecircncia ou ldquoigualdaderdquo (MONTORO 2009 p171)
69
A justa razatildeo consiste em dar ao outro o que lhe eacute devido de acordo com a igualdade (traduccedilatildeo nossa)
86
Aristoacuteteles apresenta duas foacutermulas para que a igualdade seja alcanccedilada
uma ele denominou aritmeacutetica (conhecida como igualdade simples) e a outra
geomeacutetrica (conhecida como igualdade proporcional)
Desta forma a ldquoigualdade da justiccedila pode realizar-se de duas formas
distintasrdquo
a) igualdade simples ou absoluta eacute a equivalecircncia entre dois objetos que se verifica nas relaccedilotildees de troca o comprador de um objeto que vale 1000 dever efetuar um pagamento de igual valor (1000 = 1000) b) igualdade proporcional ou relativa eacute a que se realiza na distribuiccedilatildeo dos benefiacutecios e encargos entre os membros de uma comunidade se A que contribui com 50 recebe 5 B que contribui com 80 receberaacute 8 (550 = 880) Aristoacuteteles chamou a primeira igualdade ldquoaritmeacuteticardquo e a segunda ldquogeomeacutetricardquo Em qualquer caso a justiccedila procura realizar uma igualdade nas relaccedilotildees entre os homens Ou como diz Lachance na justiccedila devemos nos igualar ao proacuteximo por seu ato (MONTORO 2009 p 172)
A justiccedila portanto soacute pode ser compreendida a partir de seu princiacutepio de
igualdade Ainda sobre este ponto Aristoacuteteles apresenta dois importantes temas que
foram objeto de estudo dos itens 531 e 532 A justiccedila distributiva e a justiccedila
corretiva Natildeo obstante jaacute terem sido objeto de nosso estudo eacute necessaacuterio
revisitarmos tais conceitos em face da noccedilatildeo de igualdade
Assim pode-se dizer que haacute duas formas de justiccedila uma particular cujo
objeto eacute o bem particular e outra geral tambeacutem chamada legal ou social cujo objeto
eacute o bem comum A justiccedila particular realiza-se de duas formas justiccedila comutativa
quando um particular daacute a outro particular o bem que lhe eacute devido e justiccedila
distributiva quando a sociedade daacute a cada particular o bem que lhe eacute devido
Receber o devido e portanto natildeo tomar maior parcela dos bens desejados
e nem a menor parcela dos bens indesejados seja na relaccedilatildeo particular ou sobre
aquilo que eacute o bem comum parece-nos o criteacuterio da igualdade
63 Equidade melhor que um tipo de justiccedila
87
De acordo com Aristoacuteteles a equidade eacute melhor que um tipo de justiccedila Ele
estaacute se referindo agrave justiccedila legal pois
[] a equidade embora superior a uma espeacutecie de justiccedila eacute ela mesma justa natildeo eacute superior agrave justiccedila ao ser genericamente distinta dela Justiccedila e equidade satildeo portanto a mesma coisa sendo ambas boas ainda que a equidade seja melhor
A origem da dificuldade eacute que ldquoa equidade embora justa natildeo eacute justiccedila legal poreacutem retificaccedilatildeo desta (EN V 10 1137b10)
O que Aristoacuteteles parece querer dizer eacute que a justiccedila em todas as suas
acepccedilotildees compreende a equidade como seu princiacutepio No entanto a acepccedilatildeo de
justiccedila legal em sua rigidez e generalidade pode objetivamente ferir o justo razatildeo
pela qual a equidade enquanto princiacutepio da justiccedila eacute melhor Afinal eacute ela que natildeo
permite que uma das espeacutecies de justiccedila aquela que eacute convencionada pelo homem
seja aplicada de forma a causar injusticcedila
Eduardo Bittar explica como Aristoacuteteles desconstitui a aparente
ambiguidade da temaacutetica
o eacutequo sendo melhor que uma forma de justo ndash e aqui se percebe nitidamente qual a estrita relaccedilatildeo entre o eacutequo e uma forma especiacutefica de justo o justo legal ndash natildeo deixa de ser justo poreacutem natildeo simplesmente pelo fato de constituir um gecircnero diferente representa algo a mais que o justo Em verdade satildeo a mesma coisa o justo e o eacutequo (tautograven aacutera diacutekaion kaigrave epieikegraves) de maneira que assim sendo o eacutequo eacute melhor e mais desejaacutevel que o justo Se eacutequo e justo se equivalem nesta medida e da forma indicada segundo o gecircnero natildeo eacute verdade que o eacutequo seja o justo segundo a lei (ou tograve katagrave noacutemon deacute) de acordo com o que estaacute consignado no corpo legislativo e foi posto pela vontade humana como vinculativo da conduta social mas sim um corretivo do justo legal (epanothoma nomiacutemou diacutekaion) (BITTAR 2005 p163)
Portanto a equidade corresponde ao justo presente na concepccedilatildeo de justiccedila
para Aristoacuteteles poreacutem eacute melhor que o justo legal por ser o princiacutepio corretor do
mesmo
64 Natureza essencial do equitativo a retificaccedilatildeo do justo legal
88
O que encontramos no capiacutetulo 10 do Livro V da Eacutetica a Nicocircmaco satildeo duas
aplicaccedilotildees da equidade enquanto retificaccedilatildeo do justo legal A primeira que
examinaremos neste item 64 diz respeito ao rigor do justo legal e a segunda que
examinaremos no item 65 diz respeito agrave existecircncia de casos que o legislador natildeo
pode prever
Em verdade estas duas aplicaccedilotildees da equidade satildeo consequecircncia de uma
soacute coisa o caraacuteter geral da norma Se de um lado o rigor da norma que exige do
equacircnime a acomodaccedilatildeo do direito se daacute pela generalidade da norma de outro a
generalidade parece insuficiente para conhecer todos os casos o que oportuna o
surgimento das lacunas
641 A metaacutefora da reacutegua de chumbo
Aristoacuteteles para explicar melhor em que consiste a equidade ilustra sua
exposiccedilatildeo fazendo uma analogia das regras do direito com as reacuteguas empregadas
por pedreiros em lavras
Os construtores da ilha de Leacutesbos utilizavam em seus afazeres um
instrumento que chamou a atenccedilatildeo do Estagirita esse instrumento nada mais era do
que uma reacutegua feita de chumbo
A funccedilatildeo de tal reacutegua era manter a medida certa ainda que seu objeto
assumisse formas diversas Assim inobstante as irregularidades na forma das
pedras poderia graccedilas agrave maleabilidade da reacutegua ajustaacute-la ao objeto apurando
assim a medida certa
Com efeito essa eacute a razatildeo porque natildeo satildeo todas as coisas determinadas pela lei pelo fato de haver alguns casos [e situaccedilotildees] em relaccedilatildeo aos quais eacute impossiacutevel estabelecer uma lei eacute necessaacuteria a existecircncia de um decreto especial pois aquilo que eacute ele proacuteprio indefinido soacute pode ser medido por um padratildeo indefinido como a reacutegua pluacutembea usada pelos construtores de Lesbos tal como essa reacutegua natildeo eacute riacutegida podendo ser flexibilizada ao formato da pedra um decreto
89
especial eacute feito para se ajustar agraves circunstacircncias do caso (EN V 10 1137b30)
Desprende-se do texto que a medida que eacute ali buscada ldquo[] se assemelha
agraves diversas situaccedilotildees que se encadeiam na etapa de aplicaccedilatildeo da norma juriacutedica
mormente a interpretaccedilatildeo do fato e do comando legal que o atinge em foco de
incidecircncia Assim se veria a norma geral como medida e a situaccedilatildeo da vida erigida
em controveacutersia como a pedrardquo (LOPES 1993 p 46)
O conceito de equidade muito bem explicado pela metaacutefora da reacutegua de
chumbo na passagem 1137b30 da Eacutetica a Nicocircmaco segundo Javier Hervada
(2008) ldquoabranda o dever e acomoda o direitordquo (HERVADA 2008 p 171) ldquoO
equumlitativo soacute se daacute quando a reacutegua consegue captar todas as microscoacutepicas
reentracircncias do cenaacuterio multiforme que lhe cabe medirrdquo (LOPES 2007 p 77)
A lei eacute considerada aqui como um sumaacuterio de decisotildees saacutebias Eacute por conseguinte apropriado complementaacute-la com novas decisotildees saacutebias tomadas na situaccedilatildeo presente e eacute tambeacutem apropriado corrigi-la nos pontos em que natildeo resume corretamente o que um bom juiz faria O bom juiacutezo mais uma vez proporciona tanto uma concretude superior como uma superior sensibilidade ou flexibilidade
A exigecircncia de flexibilidade tatildeo importante para o nosso entendimento da concepccedilatildeo aristoteacutelica natildeo cientiacutefica de escolha eacute descrita pois em uma viacutevida metaacutefora Aristoacuteteles nos diz que uma pessoa que tenta tomar todas as decisotildees recorrendo a algum princiacutepio geral antecedente sustentando como firme e inflexiacutevel para a ocasiatildeo eacute como um arquiteto que procura usar uma reacutegua reta sobre as curvas intricadas de uma coluna canelada O bom arquiteto ao contraacuterio mediraacute como fazem os construtores de Lesbos com um tira flexiacutevel de metal que ldquose inclina arqueada para ajustar-se agrave forma da rocha que eacute natildeo eacute fixardquo (1137b30-2) A boa deliberaccedilatildeo tal como essa regra se acomoda ao que encontra de maneira sensiacutevel e com respeito pela complexidade Natildeo assume que a forma da regra governa as aparecircncias permite que as aparecircncias governem a si mesmas e sejam normativas para a correccedilatildeo da regra (NUSSBAUM 2009 p 263)
Portanto a metaacutefora revela uma equidade que eacute em si uma regra mas uma
regra cuja forma eacute capaz de moldar-se agraves nuanccedilas proacuteprias da mateacuteria
642 A retificaccedilatildeo do justo legal
90
Aristoacuteteles define equidade70 como sendo a retificaccedilatildeo do justo legal A lei
natildeo por um erro da parte do legislador mas pela sua proacutepria generalidade pode
criar se aplicada de modo inflexiacutevel agrave multiplicidade dos casos singulares
especiacuteficos o efeito oposto para o qual foi originalmente estabelecida Ou seja
sendo ldquoinfinita a mateacuteria sobre a qual se deve legislar e sendo necessaacuterio apesar
de tudo estabelecer leis eacute forccediloso falar em geralrdquo (Ret I 13 1374a30) A equidade
seraacute o mecanismo que coloca nas matildeos do aacuterbitro discricionariedade suficiente para
aplicar a norma de modo a natildeo causar uma injusticcedila por meio do proacuteprio justo legal
A necessidade da aplicaccedilatildeo da equumlidade decorre do fato de que as leis dizem genericamente e para todos sem diferenciar todas as nuanccedilas que possam existir na esfera dos fenocircmenos de modo que surgem casos para os quais se aplicada a lei (noacutemos) em sua generalidade (kathoacutelou) estar-se-aacute a causar uma injusticcedila por meio do proacuteprio justo legal Exatamente para superar os problemas decorrentes da impossibilidade de haver uma legislaccedilatildeo minimamente detalhista e futurista eacute que existe o eacutequo []
Se a lei eacute neste ponto e para estes fins falha isto natildeo se deve nem ao conteuacutedo da lei em si nem ao legislador natildeo se trata de um erro legislativo mas sim de um problema oriundo da proacutepria peculiar conformaccedilatildeo das coisas como satildeo praticamente Cada caso eacute um caso e demanda uma atenccedilatildeo especial e especiacutefica absolutamente focalizada sobre os seus traccedilos e as suas caracteriacutesticas de modo que nenhuma legislaccedilatildeo poder-se-ia aplicar a esta dimensatildeo dos fatos (BITTAR 2005 p164 - 165)
A equidade aristoteacutelica eacute portanto ldquoa correccedilatildeo dos rigores da leirdquo (BITTAR
2002 p 116)
[hellip] no tocante aos erros legislativos e demais hipoacuteteses de produccedilatildeo de injusticcedila decorrente da generalidade no preceito legal aplicado agrave realidade faacutetica Aristoacuteteles aponta a utilizaccedilatildeo do recurso da epieacuteikeia ou seja da equidade forma de modelagem dos princiacutepios legais para serem aplicados a sujeitos concretos frente agrave problemaacutetica fenomecircnica a ser resolvida pelo juiz (dikasteacutes) (BITTAR 2003 p 1056-
1057)
70
No original ἐπιείκεια (epieiacutekeia)
91
Aristoacuteteles percebe como o perceberia Hans Kelsen dois milecircnios depois71
que na passagem de uma norma mais geral ndash a lei por exemplo ndash para uma norma
mais concreta ndash como a sentenccedila judicial ndash sempre restaraacute uma margem de escolha
que caberaacute agrave prudecircncia72 do inteacuterprete-aplicador preencher
Na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles problematiza a relaccedilatildeo entre a norma e o
caso concreto explicando que ldquoA origem da dificuldade eacute que a equidade embora
justa natildeo eacute justiccedila legal poreacutem a retificaccedilatildeo desta A razatildeo para isso eacute que a lei eacute
sempre geral entretanto haacute casos que natildeo satildeo abrangidos pelo texto geral da leirdquo
(EN V 1137b12) Nesse sentido a equidade seria a virtude destinada a solucionar
os casos em que a lei natildeo alcanccedila a concretizaccedilatildeo da justiccedila
Aristoacuteteles eacute o primeiro doutrinador das ciecircncias juriacutedicas Ele diz muito antes de Larenz ldquoCada regulamento legal ou do direito estaacute para o caso isolado na mesma relaccedilatildeo que o geral estaacute para o indiviacuteduordquo (1135a)
O que aqui eacute descoberto e expressado com autoridade loacutegica natildeo eacute menos que o princiacutepio fundamental da subsunccedilatildeo juriacutedica a imputaccedilatildeo do fato agrave lei escrita (ldquoao conceito legal do direitordquo 1135a)
Aristoacuteteles nos fornece aqui muito antes de Esser e Wiacker uma teoria das claacuteusulas gerais sejam elas inseridas de fora na lei como o Princiacutepio da Relaccedilatildeo (uso de medidas adequadas em relaccedilatildeo ao desejado fim) no Art 12 GG (Constituiccedilatildeo Alematilde) ou estejam elas jaacute consolidadas na lei como o Princiacutepio da boa-feacuterdquo no sect 242 BGB (pois sua positivaccedilatildeo eacute supeacuterflua o conteuacutedo normativo de tal paraacutegrafo eacute tatildeo pequeno o quatildeo grande eacute seu caraacuteter de advertecircncia) O princiacutepio geral vaacutelido da equumlidade []
Se tiveacutessemos percebido em tempo esta vaacutelida opiniatildeo de Aristoacuteteles entatildeo natildeo teria surgido de forma alguma nos nossos anos 60 a ilusatildeo de que toda aplicaccedilatildeo da lei pode ser formalizada e com isso computadorizada pois o computador pode ateacute realizar algo nas futuras ldquogeraccedilotildees inteligentesrdquo ou muito inteligentes mas nunca epieikeia Um pensador loacutegico eacute soacute entatildeo loacutegico quando conhece e reconhece os limites da loacutegica (ADOMEIT 2000 p138 - 140)
A liccedilatildeo de Teacutercio Sampaio Ferraz Jr evidencia a equidade enquanto
princiacutepio que estabelece razoaacutevel elo entre a norma e agrave especificidade da situaccedilatildeo
71
Veja-se a esse respeito o capiacutetulo VIII da Teoria pura do direito kelseniana 72
E eacute neste ponto que os neoaristoteacutelicos divergem de Kelsen uma vez que para este natildeo eacute necessariamente a prudecircncia mas juiacutezos poliacuteticos de conveniecircncia ndash fundados no poder e natildeo na razatildeo ndash que orientaratildeo a escolha do julgador Para uma anaacutelise mais aprofundada e criacutetica desse ponto veja-se Ferraz Juacutenior 1994 p 260-346 (Capiacutetulos 5 e 6)
92
Por uacuteltimo no conjunto da razatildeo juriacutedica costuma-se mencionar a equumlidade Aristoacuteteles eacute responsaacutevel por sua definiccedilatildeo como a justiccedila do caso concreto A soluccedilatildeo de litiacutegios por equumlidade eacute a que se obteacutem pela consideraccedilatildeo harmocircnica das circunstacircncias concretas do que pode resultar um ajuste da norma agrave especificidade da situaccedilatildeo a fim de que a soluccedilatildeo seja justa Pois como diziam os romanos summum jus summa injuria
73 Natildeo se trata de um princiacutepio que se oponha agrave justiccedila mas que a
completa a torna plena
Da mesma forma que os princiacutepios gerais a equumlidade tem no sistema dinacircmico funccedilatildeo metalinguumliacutestica Ela responde pela estrutura de concretizaccedilatildeo do direito Natildeo eacute fonte pois no mesmo sentido das demais (FERRAZ JUNIOR 2011 p 213)
Ferraz Junior em seu capiacutetulo sobre a Dogmaacutetica Hermenecircutica destaca ao
menos quatro desdobramentos possiacuteveis na integraccedilatildeo por equidade Satildeo eles
expandir uma obrigaccedilatildeo limitar o exerciacutecio de direitos criar regras para situaccedilotildees
que se alteram ou que natildeo foram previstas vejamos
[] Fala-se aqui no sentimento do justo concreto em harmonia com as circunstacircncias e adequado ao caso O juiacutezo por equumlidade na falta de norma positiva eacute o recurso a uma espeacutecie de intuiccedilatildeo no concreto das exigecircncias da justiccedila enquanto igualdade proporcional O inteacuterprete deve poreacutem sempre buscar uma racionalizaccedilatildeo dessa intuiccedilatildeo mediante uma analise das consideraccedilotildees praacuteticas dos efeitos presumiacuteveis das soluccedilotildees encontradas o que exige juiacutezos empiacutericos e de valor os quais aparecem fundidos na expressatildeo juiacutezo por equumlidade A equumlidade pode integrar o direito de diferentes modos Por exemplo por seu intermeacutedio podemos expandir uma obrigaccedilatildeo criando deveres adicionais para aleacutem dos que constam de um contrato ou decorrem expressamente de lei podemos ainda limitar o exerciacutecio de direitos para prevenir abusos podemos tambeacutem criar regras para situaccedilotildees que se alteram desde seu regulamento ou que nele natildeo foram previstas Em todo caso o juiacutezo equumlitativo de um lado apesar das consideraccedilotildees dos efeitos presumiacuteveis eacute sempre um juiacutezo jungido ao particular sem preocupaccedilotildees generalizantes Natildeo gera assim uma compulsatildeo para que outros casos semelhantes sejam interpretados e decididos do mesmo modo Por isso natildeo eacute propriamente fonte do direito mas meio de integraccedilatildeo De outro lado poreacutem pela consideraccedilatildeo dos efeitos presumiacuteveis tambeacutem natildeo aparece como arbitraacuterio mas sim representando o sentido que seja juriacutedico no contexto social em que se aplica (FERRAZ JUNIOR 2011 p 281 negrito nosso)
Interessante notar que Ferraz Junior aponta que essa proximidade do juiacutezo
ao particular natildeo eacute uma arbitrariedade mas uma representaccedilatildeo juriacutedica no contexto
em que determinada norma incide
73
Brocardo de Ciacutecero que quer dizer Supremo direito suprema injusticcedila (De Officiis I 10 33)
93
Enquanto a justiccedila eacute de ordem geral e natildeo se preocupa senatildeo com princiacutepios a equumlidade contrariamente perquire as circunstacircncias peculiares ao caso e submete a regra abstrata agraves razotildees derivadas da espeacutecie Em certos casos impotildee-se abandonar a letra da lei para acompanhar os ditames da razatildeo e da justiccedila Nisso se cifra a equumlidade que tempera e abranda o rigor legal Natildeo foi agrave-toa que se referiu Ciacutecero baseado em Terecircncio ao brocardo summum jus summa injuria que daacute ecircnfase agrave ideacuteia de que o rigor da aplicaccedilatildeo inflexiacutevel da lei pode muitas vezes quando natildeo abrandado pela equumlidade acarretar dureza demasiada ou mesmo extrema injusticcedila (PAUPEacuteRIO 2003 p68)
Cabe agora examinarmos a equidade como recurso dado por Aristoacuteteles
para os casos natildeo abarcados pela legislaccedilatildeo
65 Equidade e lacuna
A compreensatildeo do sentido stricto de equidade ou seja enquanto correccedilatildeo
do justo legal tem por pressuposto a generalidade da norma Natildeo obstante tal
generalidade existem casos que natildeo satildeo abrangidos pela lei Surge assim a
dificuldade cuja equidade mais uma vez eacute a soluccedilatildeo dada pelo Estagirita De acordo
com ele
A razatildeo para isso eacute que a lei eacute sempre geral entretanto haacute casos que natildeo satildeo abrangidos pelo texto geral da lei [ou por esta ou aquela regra legal geral] Em mateacuterias portanto nas quais embora seja necessaacuterio discursar em termos gerais natildeo eacute possiacutevel fazecirc-lo corretamente a lei toma em consideraccedilatildeo a maioria dos casos embora natildeo esteja insciente do erro que tal coisa acarreta (EN V 10 1137b12)
74
Natildeo obstante o legislador ter a generalidade como instrumento de ampliaccedilatildeo
de incidecircncia da norma esta natildeo eacute geral suficientemente para abarcar em
completude as indeterminaacuteveis possibilidades proacuteprias ao acircmbito particular
74
Conforme jaacute citado
94
Sobre lacunas adverte Kelsen
Como poreacutem o Direito vigente eacute sempre aplicaacutevel pois natildeo haacute ldquolacunasrdquo neste sentido esta foacutermula quando se penetre o seu caraacuteter fictiacutecio natildeo opera a pretendida limitaccedilatildeo do poder atribuiacutedo ao tribunal mas a auto-anulaccedilatildeo da mesma Se poreacutem o tribunal tambeacutem aceita a ideacuteia de que haacute lacunas no Direito entatildeo esta ficccedilatildeo teoreticamente inaceitaacutevel realiza o efeito pretendido Com efeito o juiz - e especialmente o juiz de carreira que estaacute sob o controle de um tribunal superior - que natildeo se sente facilmente inclinado a tomar sobre si a responsabilidade de uma criaccedilatildeo do Direito ex novo soacute muito excepcionalmente aceitaraacute a existecircncia de uma lacuna no Direito e por isso soacute raramente faraacute uso do poder que lhe eacute conferido de assumir o lugar do legislador (KELSEN 1999 p 185)
Aristoacuteteles esclarece que as lacunas podem existir pela vontade do
legislador ou contra a vontade deste
O problema legislativo que com maior frequumlecircncia ocorre eacute causado pela abstraccedilatildeo e universalidade do preceito legal De fato a lei escrita eacute um imperativo que se formula impessoalmente abarcando sob sua tutela a pluralidade de cidadatildeos aos quais se dirige e a multiplicidade de casos que surgem na vida concreta da poacutelis Lacunas aparecem em todo sistema legislativo escrito e estas podem existir por vontade do legislador de que existam ou mesmo contra a vontade deste Assim contra a sua vontade existiratildeo ldquoquando o fato lhe passa despercebidordquo e por vontade do legislador ldquoquando natildeo podendo precisar tudo eles tecircm de estatuir princiacutepios gerais que natildeo satildeo aplicaacuteveis sempre mas soacute as mais das vezes (Ret I 1375b)
Assim quando a lacuna existe pela vontade do legislador eacute porque o
mesmo percebendo que natildeo pode precisar toda mateacuteria ele estabelece um princiacutepio
geral que natildeo pode sempre ser aplicado agrave mateacuteria Por outro lado quando a lacuna
existe contra a vontade do legislador eacute porque o fato passou-lhe despercebido
Neste sentido a equidade possibilita ao juiz julgar ainda que natildeo conheccedila no
direito norma objetivamente correspondente de acordo com Machado Paupeacuterio []
ao juiz caberia em tais circunstacircncias reconhecer por equumlidade a exceccedilatildeo agrave
norma legal jaacute que se tivesse sido dado ao legislador prever a tal hipoacutetese ele
95
mesmo teria admitido que em tais condiccedilotildees devessem ser abertos os portotildees75
(2003 p 69)
De acordo com Aristoacuteteles
Essa eacute a razatildeo porque quando ocorrem disputas os indiviacuteduos recorrem a um juiz Dirigir-se a um juiz eacute dirigir-se agrave justiccedila pois o juiz ideal eacute por assim dizer a justiccedila personificada E tambeacutem os homens necessitam de um juiz para que este seja um elemento mediano pelo que efetivamente em alguns lugares ele eacute chamado de mediador pois pensam que se ele atinge a mediania atinge o que eacute justo Assim o justo eacute uma espeacutecie de mediania na medida em que o juiz eacute um meio (intermediaacuterio) entre os litigantes (EN V 4 1132a20)
Eacute importante destacar a observaccedilatildeo feita por Maria Helena Diniz em sua
obra Lacunas no Direito ela propotildee a existecircncia de certa dificuldade no emprego da
equidade
A equumlidade eacute teoricamente uma virtude de que deve lanccedilar matildeo o aplicador para temperar os rigores de uma foacutermula demasiado geneacuterica fazendo com que essa natildeo contrarie os reclamos da justiccedila Considera portanto a equumlidade como uma virtude informada pela justiccedila
Todavia Aristoacuteteles na praacutetica preconizava a absoluta submissatildeo do magistrado agrave lei porque entendia ser perigoso decidir por equumlidade no ambiente de corrupccedilatildeo que reinava nos Estados-cidades helecircnicos e nos tribunais corroiacutedos ateacute agrave medula pelas paixotildees poliacuteticas e pelas facccedilotildees Recomenda o mestre Estagira o juiacutezo arbitral para decisotildees de equumlidade (DINIZ 2002 p 242-243)
Essa uacuteltima observaccedilatildeo a que se refere agrave abstenccedilatildeo do emprego de juiacutezos
por equidade aparece na Retoacuterica ao que natildeo poderiacuteamos deixar de fazer
referecircncia ldquo[] preferimos uma arbitragem a um litiacutegio jaacute que o aacuterbitro leva em
conta a equidade ao passo que o juiz leva em conta a lei A arbitragem foi criada
com o propoacutesito expresso de garantir espaccedilo total para a equidaderdquo (Ret I 13
1374b20)
75
Paupeacuterio estaacute se referindo ao exemplo de Santo Tomaacutes sobre um vilarejo onde uma regra
determinasse que os portotildees permanecessem fechados durante a noite sendo que em determinada noite parte da populaccedilatildeo fosse acossada por inimigos e recorressem aos portotildees para se protegerem a questatildeo eacute deveria os guardas desobedecer a regra abrindo os portotildees com o escopo de proteger os habitantes
96
Na anaacutelise das condiccedilotildees que permitem a aplicaccedilatildeo da epiqueacuteia (III 15 e ss em especial 20) explicamos que uma delas devia ser ldquoextraordinaacuteriardquo De caso que a previsatildeo normativa deve ao seu tempo considerar o curso ordinaacuterio das coisas Pois quando nos permitimos expor uma questatildeo (ou nova condiccedilatildeo) do procedimento ldquoem regra epiqueacuteia eacute de aplicaccedilatildeo exceccedilatildeo e restritiva para os juiacutezesrdquo (SHIAVO 2013 p 27
traduccedilatildeo nossa)76
De acordo com HOumlFF (2003 p 68) ldquoVisto as regras de um modo geral
prejudicarem a justiccedila do caso individual poderiacuteamos querer abrir matildeo delas e
confiar integralmente na faculdade de juiacutezo de pessoas Mas leis satildeo melhores agrave
medida que diferentemente de pessoas satildeo de todo isentas de paixotildeesrdquo
Natildeo aparece em qualquer outra parte do texto referecircncia ao natildeo emprego
da equidade O Filoacutesofo por certo natildeo eacute da posiccedilatildeo de que os juiacutezos devem ser
concretizados pela abstenccedilatildeo legal Muito pelo contraacuterio o que vemos eacute que o justo
de modo geral eacute o justo legal afinal como jaacute esclarecido a lei promulgada da forma
correta representa o bem da comunidade A questatildeo eacute que como criteacuterio do justo a
equidade permanece como condiccedilatildeo necessaacuteria para acomodaccedilatildeo do direito e
concretizaccedilatildeo da justiccedila uma vez que o bem geral natildeo pretende causar prejuiacutezos
aos particulares Destarte eacute certo que a pretensatildeo aristoteacutelica eacute que a equidade seja
paracircmetro de formulaccedilatildeo do ldquodecreto especialrdquo ao caso concreto para que este ao
aplicar a lei ou na ausecircncia desta natildeo se afaste do real fim a que se propotildeem os
legisladores
Portanto podemos dizer que a problemaacutetica acerca da natureza essencial
do equitativo eacute dupla Se de um lado o justo legal em sua generalidade pode causar
injusticcedila pela aplicaccedilatildeo insensiacutevel da norma ao caso concreto de outro a
generalidade natildeo eacute suficiente para compreender ainda que em sua insensibilidade
para com o particular uma totalidade normativa isenta de lacunas
76
En el anaacutelisis de las condiciones que permiten la aplicacioacuten de la epiqueya (ut supra III 15 y ss en especial 20) explicamos que una de aquellas debiacutea ser lo ldquoextraordinariordquo del caso frente a lo cual la previsioacuten normativa debioacute a su tiempo considerar el curso ordinario de las cosas Pues ahora nos permitimos exponer una cuestioacuten (o nueva condicioacuten) de procedimiento ldquola regla de la epiqueya es de aplicacioacuten excepcional y restrictiva para los juecesrdquo (SHIAVO 2013 p 27 traduccedilatildeo nossa)
97
66 O homem equitativo
Por certo o equacircnime eacute tambeacutem um homem de prudecircncia pois procura
dentro daquilo que lhe eacute permitido escolher o melhor possiacutevel Shiner ao referir agrave
metaacutefora da reacutegua pluacutembea define o artiacutefice de Lesbos ldquoNenhum artesatildeo eacute perfeito
mas isso eacute em parte porque os materiais contecircm imperfeiccedilotildees Alguns artesatildeos satildeo
o melhor que podem ser - ou seja o melhorrdquo (SHINER 1994 p 1257 traduccedilatildeo
nossa77)
Aristoacuteteles daacute a definiccedilatildeo do homem equitativo
[] ele eacute algueacutem que por escolha e haacutebito faz o que eacute equitativo e que natildeo eacute inflexiacutevel quanto aos seus direitos se contentando em receber uma porccedilatildeo menor mesmo que tenha a lei ao seu lado Eacute a disposiccedilatildeo correspondente eacute a equidade a qual eacute um tipo especial de justiccedila e de modo algum uma qualidade diferente (EN V 10 1138a)
Analisemos este conceito
ldquoEle eacute algueacutem que por escolha e haacutebito faz o que eacute equitatitivordquo
Escolha segundo o Estagirita eacute ldquoum desejo deliberado de coisas em nosso
poderrdquo (EN III 3 1113a10) Em Da Alma esclarece que o desejo eacute a fonte do
movimento78 ldquoO desejo [] eacute capaz de gerar movimento independentemente do
caacutelculo ou raciociacutenio porque o apetite eacute uma forma de desejo Eacute de se notar
entretanto que enquanto o intelecto eacute sempre correto o desejo e a imaginaccedilatildeo
podem ser tanto corretos quanto incorretosrdquo (DA III 10 433a20) Sobre a
deliberaccedilatildeo esclarece que ldquoA deliberaccedilatildeo portanto eacute empregada em mateacuterias que
embora sujeitas a regras que geralmente satildeo para o bem satildeo incertas quanto aos
seus resultados ou consequecircncias ou nas quais resultados ou consequecircncias satildeo
indeterminados [] Aleacutem disso natildeo deliberamos acerca de fins mas acerca de
meiosrdquo (EN III 3 1112b10) Ainda sobre a deliberaccedilatildeo Aristoacuteteles deixa uma
importante observaccedilatildeo Eacute a de que soacute podemos deliberar acerca daquilo que estaacute
77 No craftsman is perfect but that is in part because the materials contain imperfections Some
craftsmen are the best they can be-that is to say the best 78
Assunto tratado no item 22 O Movimento da potecircncia para o ato
98
em nosso poder ldquotem que ser um bem passiacutevel de vir a ser pela accedilatildeo e apenas o
que pode ser diferente de como eacute pode de tal modo vir a serrdquo (DA III 10 433a30)
Acerca do haacutebito esclarece Pierre Pelegrin A virtude eacutetica eacute com efeito um
ldquoestadordquo do sujeito que eacute de certo modo a cristalizaccedilatildeo de bons haacutebitos que se
implantam tanto melhor no indiviacuteduo quanto mais cedo ele os adquire na vida (2010
p28)
Sobre o equitativo Aristoacuteteles apresenta o conceito quando trata do justo e
injusto79 De acordo com esta concepccedilatildeo pode-se ser justo ou injusto de duas
formas a primeira com relaccedilatildeo a observacircncia ou transgressatildeo da lei e a segunda
relacionada ao criteacuterio de igualdade Esta uacuteltima com relaccedilatildeo agrave igualdade Aristoacuteteles
nomina ldquojusto equitativordquo
Pode-se ferir o equitativo por excesso ou deficiecircncia Por excesso quando
reteacutem maior parcela do bem desejaacutevel e por deficiecircncia quando toma para si menor
parcela daquilo que natildeo eacute desejaacutevel80 Assim como na relaccedilatildeo entre perda e ganho
obtenho ganho quando adquiro mais ldquobemrdquo e menos ldquomalrdquo e obtenho perda quando
adquiro menos ldquobemrdquo e mais ldquomalrdquo (EN V 4 1132a5-15)
ldquoe que natildeo eacute inflexiacutevel quanto aos seus direitos se contentando em receber
uma porccedilatildeo menor mesmo que tenha a lei ao seu ladordquo
Este aspecto do homem equitativo parece fazer referecircncia ao sentido lato de
equidade onde ldquoser equitativo eacute mostrar indulgecircnciardquo (Ret I 13 1374b10) O
equacircnime eacute justo e ainda melhor porque ateacute em receber o que lhe eacute devido
apresenta moderaccedilatildeo Natildeo ser inflexiacutevel quanto aos seus direitos demonstra que o
equacircnime estaacute fundido com seu princiacutepio de justiccedila a equidade Pois eacute ele mesmo a
ldquojusticcedila personificadardquo81 Eacute a virtude paradigmaticamente do juiz e dos outros por
extensatildeo (SHINER 1994 p 1251-1252 traduccedilatildeo nossa)82
79
EN V 2 1130b10 80
Aristoacuteteles define a deficiecircncia como a parcela menor recebida pela viacutetima Parece-nos que deixou de desenvolver o conceito nessas linhas Mas podemos visualizar esse desdobramento pouco mais adiante quando trata do ganho e da perda Vide (EN V 4 1132a5-15) 81 EN V 4 1132a20 82
It is a virtue paradigmatically of the judge and of others by extension (SHINER 1994 p 1251-1252)
99
ldquoEacute a disposiccedilatildeo correspondente a equidade a qual eacute um tipo especial de
justiccedila e de modo algum uma qualidade diferenterdquo
Nesta uacuteltima sentenccedila ele enquanto justo age pela equidade seja por natildeo
ser inflexiacutevel com o direito ao aplicaacute-lo a si ou a outrem ou seja pela capacidade de
conhecer o princiacutepio da justiccedila onde natildeo foi convencionada regra alguma ldquoEacute a
marca de um homem educado Aristoacuteteles no diz em uma famosa passagem olhar
com precisatildeo para cada classe de coisas apenas como o permite a natureza do
assuntordquo (SHINER 1994 p 1257 traduccedilatildeo nossa)
67 Equidade e Prudecircncia
Entendendo que o uso da equidade busca uma interpretaccedilatildeo razoaacutevel
(interpretarla razonablemente) da lei Recasens Siches (2008) nos ensina a
equidade eacute a expressatildeo do justo natural em relaccedilatildeo ao caso concreto Em outras
palavras a equidade eacute o justo mas natildeo o justo legal tal como se desprende das
palavras da lei mas autenticamente sobre o caso particular (SICHES 2008 p 656
traduccedilatildeo nossa)83 Portanto ldquopode-se dizer que tanto a reacutegua de Lesbos quanto a
pedra a que ela se amolda para medir manteacutem iacutentegra a sua natureza ndash reacutegua
como reacutegua pedra como pedra ambas submetidas ao criteacuterio apreciador daquele
que se incumbe de definiccedilatildeo da medidardquo (LOPES 1993 p 46)
Tomaacutes de Aquino (1225-1274) em sua Suma Teoloacutegica procura a
compreensatildeo do que seja a equidade observando a inexistecircncia de termo correlato
na liacutengua latina da palavra grega ἐπιείκεια (epieiacutekeia)84 acaba por deixar expliacutecita a
popularidade dessa virtude entre os medievais
Os atos humanos ndash sobre os quais incidem as leis ndash satildeo singulares e contingentes e portanto podem se dar com uma infinita variedade de modos
Daiacute que natildeo seja possiacutevel estabelecer uma lei que natildeo falhe em algum caso concreto[]
84
Et ad hoc ordinatur epicheia quae apud nos dicitur aequitas E isso eacute a epiqueacuteia que entre noacutes diz-se aequitas (traduccedilatildeo nossa)
100
Nesses casos e em casos semelhantes eacute mau seguir o que estaacute estabelecido pela lei e pelo contraacuterio eacute bom passar por cima da letra da lei e seguir o que pede pelo espiacuterito de justiccedila e utilidade comum E eacute isso que faz a epiqueacuteia que entre noacutes se chama equumlidade Fica assim evidente que a epiqueacuteia eacute virtude (Sum II-II 1201)
Nesse sentido a prudecircncia e a equidade apontam para questotildees relativas agrave
deliberaccedilatildeo mais especificamente sobre como agir de acordo com o bem Ambas
parecem obrar no espaccedilo existente entre o particular e o universal Destarte eacute
preciso perceber que
[] a existecircncia insuperaacutevel de um obstaacuteculo ontoloacutegico entre a regra e sua aplicaccedilatildeo entre o universal e o particular Taylor chama esse obstaacuteculo ontoloacutegico de ldquohiato froneacuteticordquo (phronetic gap) em referecircncia direta agrave sua matriz aristoteacutelica Aristoacuteteles como Aubenque (2003 p 75) observa natildeo tem a expectativa platocircnica de poder deduzir o particular do universal Aristoacuteteles natildeo culpa a ignoracircncia dos homens por essa incapacidade Natildeo se trata para Aristoacuteteles de uma fraqueza psicoloacutegica algo que portanto pudesse ser superado pelo Rei-Filoacutesofo de Platatildeo ou pelo Juiz Heacutercules de Dworkin A impossibilidade de deduzir o particular do universal decorre da proacutepria realidade e nesse sentido natildeo pode ser superada por uma ciecircncia A aplicaccedilatildeo das regras eacute antes de tudo uma questatildeo de prudecircncia (phronesis) (OLIVEIRA 2009 p 24 negrito nosso)
Essa limitaccedilatildeo da ciecircncia eacute objeto da exposiccedilatildeo acerca da prudecircncia (ENVI
5 1140a30) O fato eacute que o conhecimento cientiacutefico envolve demonstraccedilatildeo ou seja
diz respeito agraves coisas imutaacuteveis necessaacuterias Por outro lado a prudecircncia cuida de
assuntos relacionados agrave conduta admitindo assim a variaccedilatildeo ldquoPara que seja objeto
do conhecimento cientiacutefico uma verdade tem que ser demonstrada pelo processo
dedutivo a partir de outras verdades ao passo que a arte e a prudecircncia (sabedoria
praacutetica) se referem somente a coisas mutaacuteveisrdquo (EN VI 6 1141a1)
O caraacuteter praacutetico isto eacute concernente agrave accedilatildeo proacuteprio da phroacutenesis exige portanto que ela possua o conhecimento dos casos individuais pois a accedilatildeo se produz sempre em situaccedilotildees individuais por isso a phroacutenesis requer certa experiecircncia que eacute justamente o conhecimento dos particulares A phroacutenesis contudo inclui em alguma medida tambeacutem o conhecimento do universal no sentido de que deve saber aplicar ao caso individual uma caracteriacutestica geral como mostra o exemplo dado por Aristoacuteteles Natildeo basta para produzir sauacutede (accedilatildeo) saber que as carnes leves satildeo saudaacuteveis (caracteriacutestica universal) caso natildeo se saiba
101
que a carne de galinha eacute leve (caso individual ou particular) e portanto que a carne de galinha eacute saudaacutevel (aplicaccedilatildeo do universal ao particular)
Martha C Nussbaum explica que Aristoacuteteles aponta trecircs traccedilos da mateacuteria
praacutetica que demonstram porque as escolhas praacuteticas natildeo podem mesmo em
princiacutepio ser adequadas e completamente assimiladas em um sistema de regras
universais Satildeo esses traccedilos a mutabilidade a indeterminaccedilatildeo e a particularidade
(NUSSABAUM 2009 p 263)
Eacutemile Boutroux sustenta que pelo princiacutepio da irredutibilidade essa
especulaccedilatildeo abstrata ndash a do conhecimento cientiacutefico ndash ldquoseraacute impotente para nos
fazer conhecer a natureza aiacute seraacute necessaacuteria a experiecircncia E na ordem moral as
leis seratildeo insuficientes para fazer reinar a justiccedila seraacute preciso acrescentar-lhes o
magistrado encarregado de aplicar judiciosamente as regras gerais agrave diversidade
dos casos individuaisrdquo (2006 p 127)
No mesmo sentido Pierre Aubenque direciona a relaccedilatildeo entre a prudecircncia e
a equidade sintetizando os principais toacutepicos de nossa exposiccedilatildeo Tal siacutentese tem
por base o julgamento eacutetico proacuteprio agrave Eacutetica a Nicocircmaco onde o prudente natildeo teraacute
mais por analogia o saber do geocircmetra mas o engenho do carpinteiro
[] Enquanto Platatildeo natildeo parece ter posto em duacutevida que um saber suficientemente transcendente poderia abranger a totalidade dos casos particulares Aristoacuteteles nunca espera poder deduzir o particular do universal ldquoa falta nos diz ele natildeo estaacute na lei nem no legislador mas na natureza da coisa em th fnsei ton prgmatojrdquo Onde Platatildeo via uma
fraqueza psicoloacutegica devido a ignoracircncia dos homens Aristoacuteteles reconhece como faz habitualmente um obstaacuteculo ontoloacutegico um hiato que afeta a proacutepria realidade e que nenhuma ciecircncia poderaacute superar [] se a indeterminaccedilatildeo eacute ontoloacutegica a lei soacute pode depender de uma regra ela proacutepria indeterminada tou gar aoristou aoristin tal como a reacutegua
de chumbo de lesbos cuja a inexatidatildeo permite adaptar-se adequadamente aos contornos da pedra [] Para Aristoacuteteles ao contraacuterio de uma justiccedila abstrata cientiacutefica via sua sorte ligada a da lei eacute pois a justiccedila mesma que necessita ser corrigida pela virtude da equidade [] Percebe-se o paralelismo dessa problemaacutetica com a da prudecircncia ou antes o encavalamento de ambas se a prudecircncia eacute a virtude intelectual que permite a cada vez definir a norma o equacircnime deveraacute possuir no mais alto grau a virtude da prudecircncia para aplica-la em seu domiacutenio proacuteprio [] (AUBENQUE 2008 73-76 negrito nosso)
102
Portanto a prudecircncia e equidade produzem seus efeitos no acircmbito da razatildeo
praacutetica especificamente no que concerne a aplicaccedilatildeo da norma em sua
generalidade e abstraccedilatildeo ao caso concreto que transcorre num mundo
contingencial
O equacircnime eacute antes de qualquer coisa um prudente ou seja a virtude da
prudecircncia eacute um pressuposto para o exerciacutecio da equidade Isso fica evidenciado
pelo proacuteprio papel da prudecircncia qual seja guiar e orientar as escolhas para a
concretizaccedilatildeo das demais virtudes Ademais ambos possuem como faculdade
central a disposiccedilatildeo para o bem escolher de forma acomodar o bem absoluto85 ao
melhor possiacutevel86
85
Aspecto formal da regra enquanto forma e universalidade 86
Aspecto material da accedilatildeo enquanto mateacuteria e singularidade
103
7 CONCLUSAtildeO
Foi objeto do presente trabalho uma anaacutelise das formulaccedilotildees aristoteacutelicas
acerca do conceito de prudecircncia e equidade anaacutelise essa que deveria sustentar-se
sob a eacutegide de uma inter-relaccedilatildeo entre tais conceitos
Para alcanccedilar tal objetivo propomos no capiacutetulo 2 que a contingecircncia eacute algo
que se encontra em comum na atividade de ambos os conceitos como condiccedilatildeo
necessaacuteria agrave compreensatildeo dos mesmos Por isso o que a pouco chamamos de
hiato froneacutetico natildeo eacute outra coisa senatildeo a distacircncia entre o ldquoparticularrdquo e o
ldquouniversalrdquo entre a ldquopotecircnciardquo e o ldquoatordquo e entre o ldquomelhor que posso fazerrdquo e o ldquobem
absolutordquo
No capiacutetulo 3 intitulado Eacutetica das Virtudes procuramos clarear o liame entre
as virtudes e a necessidade de accedilatildeo caracteriacutestica inerente ao mundo contingencial
Nele introduzimos no que eacute pertinente agrave nossa proposta a teoria geral das virtudes
em Aristoacuteteles estabelecendo sua relaccedilatildeo com as partes da alma e diferenciado em
morais e intelectuais Neste sentido a relaccedilatildeo entre prudecircncia e equidade parece
distanciar-se devido a prudecircncia estar situada na faculdade cientiacutefica da alma
enquanto a equidade estaacute inserida na faculdade calculadora Tal problema eacute
solucionado pelo proacuteprio Aristoacuteteles afinal a prudecircncia como ordenadora das accedilotildees
virtuosas eacute o ponto de contato entre aquilo que estaacute e aquilo que natildeo estaacute ao
alcance do homem ou seja ela age como princiacutepio informativo entre a faculdade
calculadora e a faculdade cientiacutefica da parte racional da alma Por fim foi feita uma
exposiccedilatildeo acerca da mediania como paracircmetro da razatildeo praacutetica seguida de uma
exposiccedilatildeo sobre as accedilotildees voluntaacuterias e involuntaacuterias
A partir do capitulo 4 procuramos analisar a proposta aristoteacutelica do que
seja a prudecircncia Assim concluiacutemos ser a prudecircncia uma virtude intelectual situada
na parte racional da alma mais precisamente na parte que forma opiniotildees por ser
seu objeto a especulaccedilatildeo das coisas que admite variaccedilotildees e portanto satildeo
trabalhadas pela faculdade calculadora Nesse sentido eacute a qualidade racional de
consecuccedilatildeo da verdade capaz de bem deliberar em geral
104
No capiacutetulo 5 a justiccedila foi delineada como sendo uma virtude Tal virtude eacute
dita a mais perfeita pois segundo o Estagirita nela se encontra somada todas as
virtudes O que ele quer dizer com isso eacute que o fato de natildeo se observar qualquer
uma das virtudes eacute um ato de injusticcedila Neste sentido vimos a produccedilatildeo legislativa
como uma ramificaccedilatildeo da prudecircncia nomeada por Aristoacuteteles como ciecircncia
legislativa por desempenhar um duplo papel controlador e diretivo ndash no sentido de
educar para a virtude A outra ramificaccedilatildeo eacute a ciecircncia poliacutetica que diz respeito agrave
deliberaccedilatildeo a qual divide em processo deliberativo e processo judiciaacuterio Apoacutes
visualizarmos os conceitos proacuteprios agrave teoria da justiccedila de Aristoacuteteles concluiacutemos ser
ela uma virtude moral sendo ela mesma uma mediania que faz realizar agir e
desejar o que eacute o justo A justiccedila de modo geral ganha trecircs sentidos quais sejam
legal igual e equitativo
Por fim no capiacutetulo 6 procuramos analisar o conceito de equidade
Inicialmente apresentamos seu conceito lato e stricto Em seguida procuramos
compreender a ambiguidade apresentada por Aristoacuteteles acerca do tema
Apresentamos a justiccedila enquanto equidade compreendendo natildeo ser a equidade
diferente da justiccedila mas apenas melhor que uma de suas espeacutecies Procuramos
compreender a justiccedila enquanto estabelecimento da igualdade A natureza essencial
da equidade foi estudada enquanto retificaccedilatildeo do justo legal De acordo com isso
estaacute para noacutes a metaacutefora da reacutegua de chumbo que encontra a medida justa em sua
flexibilidade uma vez que em rigidez natildeo poderia conhecer as muacuteltiplas e possiacuteveis
formas na qual flutua a contingecircncia material Uma uacuteltima anaacutelise abordou a relaccedilatildeo
entre a prudecircncia e a equidade concluindo por uma relaccedilatildeo de gecircnero e espeacutecie
uma vez que a equidade eacute uma qualidade do prudente e que possuem como
principal ponto em comum a contingecircncia enquanto condiccedilatildeo para accedilatildeo
Eacute na pergunta que fizemos na introduccedilatildeo que concluiacutemos estar a chave para
a compreensatildeo dos conceitos formulados Qual a relaccedilatildeo entre a prudecircncia e a
equidade aristoteacutelica A reposta dada pelos comentadores no capiacutetulo 6 em
especial Pierre Aubenque aponta para noacutes uma relaccedilatildeo que comporta em sua
estrutura conceitual uma interdependecircncia Nesse sentido natildeo podemos
compreender o conceito de equidade sem compreender o conceito de prudecircncia
105
Essa relaccedilatildeo pode ser travada porque ambas lidam com situaccedilotildees em
comum Elas estatildeo para o homem como soluccedilatildeo naquilo em que a Providecircncia
falha Suas funccedilotildees trabalham para indicar a melhor decisatildeo quando se tem que
escolher entre dois males Elas procuram sanar a distacircncia entre os princiacutepios gerais
e a realidade em particular Elas satildeo as articulaccedilotildees que permitem ao homem fazer
a escolha pelo melhor possiacutevel uma vez que na fraacutegil condiccedilatildeo parece tatildeo distante
do bem absoluto quanto o homem de Deus
106
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Satildeo Paulo Martins Fontes 2005
Dedico este trabalho
Ao meu primogecircnito Davi na esperanccedila que ele se torne um homem feliz
mediante a praacutetica reiterada da virtude
Agrave minha esposa Camila testemunha e cuacutemplice de cada hora pelo amor e
compreensatildeo a mim dispensados
Aos meus pais que natildeo mediram esforccedilos e sacrifiacutecios pelo meu sonho
Aos meus irmatildeos Ramon e Giselle por compartilharem comigo a fraterna
amizade indispensaacutevel nos momentos difiacuteceis
AGRADECIMENTOS
A todos que contribuiacuteram direta ou indiretamente para a concretizaccedilatildeo deste
sonho Fica aqui registrada a minha gratidatildeo especialmente
Ao meu Orientador Professor Juacutelio Aguiar de Oliveira que acolheu e
acreditou em minhas ideias natildeo deixando que eu acreditasse que as contingecircncias
da vida fossem outra coisa que natildeo verdadeiras liccedilotildees e incentivos para o meu
aperfeiccediloamento pessoal e acadecircmico
Agradeccedilo tambeacutem ao meu Coorientador Alexandre Travessoni Gomes
Trivisonno pelos valorosos exemplos de retidatildeo e seriedade
Aos meus colegas de curso que comungaram comigo agrave elevada aspiraccedilatildeo
acadecircmica
Ao prof Virgiacutelio Diniz pela amizade e apoio de sempre
Agrave prof Leda Soares e prof Luciana Costa que sempre estiveram dispostas
a me ajudar da melhor forma possiacutevel jamais me esquecerei disso
Obrigado do fundo do meu coraccedilatildeo a todos vocecircs
Sou com efeito vosso servo e filho de vossa serva um
homem fraco cuja existecircncia eacute breve incapaz de compreender
vosso julgamento e vossas leis []
Que homem pois pode conhecer os desiacutegnios de Deus e
penetrar nas determinaccedilotildees do Senhor
Tiacutemidos satildeo os pensamentos dos mortais e incertas as nossas
providecircncias (SABEDORIA 10)
RESUMO
Esta dissertaccedilatildeo realizou um estudo acerca da concepccedilatildeo aristoteacutelica dos conceitos
de prudecircncia e equidade Seu objetivo foi analisar os conceitos de prudecircncia e
equidade e estabelecer as possiacuteveis relaccedilotildees inerentes a tais conceitos
Primeiramente procurou-se compreender a noccedilatildeo de contingecircncia verificando que
tal noccedilatildeo estaacute estritamente relacionada agrave possibilidade de accedilatildeo e portanto agrave
questotildees de razatildeo praacutetica Em seguida realizou-se uma abordagem acerca da eacutetica
das virtudes objetivando contextualizar os conceitos estudados Realizada uma
exposiccedilatildeo sobre a prudecircncia procurou-se estabelecer em linhas gerais a concepccedilatildeo
aristoteacutelica de justiccedila Por fim foi realizada uma tentativa de reconstruccedilatildeo dos
conceitos de prudecircncia e de equidade A conclusatildeo que se chegou foi a de que tanto
o conceito de prudecircncia quanto o de equidade estatildeo relacionados agrave questotildees de
razatildeo praacutetica A principal relaccedilatildeo estabelecida entre tais conceitos eacute a de que ambos
lidam com situaccedilotildees contingenciais o que evidencia a distacircncia entre o universal e o
particular que ao final chamamos de hiato-froneacutetico
Palavras-chave Aristoacuteteles Prudecircncia Equidade
ABSTRACT
This work conducted a study on the Aristotelian conception of the concepts of
prudence and equity His goal was to analyze the concepts of prudence and equity
and establish possible relationships inherent in such concepts First we sought to
understand the notion of contingency noting that such a notion is closely related to
the possibility of action and therefore the issues of practical reason Then took place
about an approach of virtue ethics aiming to contextualize the concepts studied An
exhibition about prudence sought to establish a broadly Aristotelian conception of
justice Finally an attempt was made to reconstruct concepts of prudence and equity
The conclusion reached was that both the concepts of prudence and equity are
related to issues of practical reason The main relationship between these concepts
is to both deal with contingency situations which shows the distance between the
universal and the particular which we call the phronetic gap
Key-words Aristotle Prudence Equity
LISTA DE ABREVIATURAS
AA ndash Analiacuteticos Anteriores
DA ndash Da Alma
DI ndash Da Interpretaccedilatildeo
EE ndash Eacutetica a Eudemo
EN ndash Eacutetica a Nicocircmaco
Fiacutes - Fiacutesica
Met ndash Metafiacutesica
MM ndash Magna Moralia
Pol ndash Poliacutetica
Ret - Retoacuterica
SUMAacuteRIO 1 INTRODUCcedilAtildeO12 2 A CONTINGEcircNCIA16 21 A Loacutegica16 22 O Movimento da potecircncia para o ato21 23 Indeterminismo e a eacutetica das virtudes26 231 Primeira concepccedilatildeo de acaso A boa fortuna26 232 Segunda concepccedilatildeo de acaso Acidente28 233 Terceira concepccedilatildeo de acaso contingecircncia30 2331 Trageacutedia32 3 EacuteTICA DAS VIRTUDES35 31 Eacutetica a Nicocircmaco36 32 Partes da Alma39 33 Virtudes Morais43 331 Doutrina da Mediana45 34 Accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria47 35 Virtudes Intelectuais51 4 PRUDEcircNCIA54 41 Conceito54 42 Prudecircncia e liberdade56 43 Arte e prudecircncia57 44 Deliberaccedilatildeo e Escolha58 45 O prudente61 5 JUSTICcedilA COMO VIRTUDE67 51 Justo e injusto68 52 Justo universal69 53 Justo particular71 531 Justiccedila distributiva71 532 Justiccedila corretiva72 54 Justo domeacutestico73 55 Justo poliacutetico74 551 Justo natural75 552 Justo legal (convencional)75 6 A EQUIDADE78 61 Justiccedila e equidade ambiguidade do tema79 62 Justiccedila como equidade82 621 Justiccedila e igualdade84 63 Equidade melhor que um tipo de justiccedila86 64 Natureza essencial do equitativo a retificaccedilatildeo do justo legal87 641 A metaacutefora da reacutegua de chumbo88 642 A retificaccedilatildeo do justo legal89 65 Equidade e lacuna93 66 O homem equitativo97
67 Equidade e Prudecircncia99 7 CONCLUSAtildeO103 REFEREcircNCIAS106
12
1 INTRODUCcedilAtildeO
Com o surgimento da modernidade originou-se uma ruptura nos
fundamentos da filosofia moral claacutessica Dessa forma conceitos basilares da
filosofia moral perderam os seus significados restando para o mundo
contemporacircneo apenas fragmentos de suas antigas concepccedilotildees Conforme propotildee
Alasdair MacIntyre (2001 p 15) em sua obra Depois da virtude o que possuiacutemos
satildeo apenas fragmentos de um esquema conceitual fragmentos hoje distantes de
seu contexto semacircntico o que quer dizer que utilizamos apenas os simulacros de
tais conceitos
Desse modo o significado claacutessico das virtudes da forma como
estabelecido por Aristoacuteteles foi alterado tornando-se inacessiacuteveis agrave nossa
compreensatildeo o sentido atribuiacutedo por Aristoacuteteles aos conceitos de prudecircncia e de
equidade
O conceito de prudecircncia1 apresenta significativas transformaccedilotildees
semacircnticas o que obscurece e compromete a compreensatildeo do seu significado
claacutessico Eacute o que Jean Lauand veio a perceber quando traduziu as questotildees 47-46
da Segunda Parte da Segunda Parte da Suma Teoloacutegica de Tomaacutes de Aquino
[] prudentia eacute uma daquelas tantas palavras fundamentais que sofreram desastrosas transformaccedilotildees semacircnticas com o passar do tempo
A proximidade entre nossa liacutengua e o latim de Tomaacutes natildeo nos deve enganar ocorre como diziacuteamos um conhecido fenocircmeno de alteraccedilatildeo do sentido das palavras que se manifesta muitas vezes quando lemos um autor de outra eacutepoca E natildeo soacute alteraccedilatildeo como mostra C S Lewis daacute-se frequumlentemente sobretudo no campo da eacutetica uma autecircntica inversatildeo de polaridade aquela palavra que originalmente designava uma qualidade positiva esvazia-se de seu sentido inicial ou passa a designar uma qualidade negativa
1 Optamos por escrever no termo utilizado usualmente pelos autores da liacutengua portuguesa Contudo
conforme consta desta introduccedilatildeo os conceitos proacuteprios agrave tradiccedilatildeo das virtudes perderam sua inteligibilidade restando para noacutes apenas simulacros do que um dia corresponderam De acordo com HERMANN (2007) ldquoO termo phronesis natildeo tem uma traduccedilatildeo que expresse de forma satisfatoacuteria o espectro semacircntico que possuiacutea para o mundo grego Habitualmente traduzido por prudecircncia o uso do termo descolou-se do contexto de origem e perdeu seu enraizamento eacuteticordquo O mesmo acontece com o termo Epeiqueia
13
Foi o que aconteceu entre outras com as palavras ldquoprudenterdquo e ldquoprudecircnciardquo []
Se hoje a palavra prudecircncia tornou-se aquela egoiacutesta cautela da indecisatildeo (em cima do muro) em Tomaacutes ao contraacuterio prudentia expressa exatamente o oposto eacute a arte de decidir corretamente [] virtude do liacutempido conhecimento do ser (LUAND 2005 p7-10)
O conceito de equidade igualmente nos parece de difiacutecil compreensatildeo O
dicionaacuterio grego-portuguecircs de Isidro Pereira registra as seguintes traduccedilotildees para
ἐπιείκεια conveniecircncia moderaccedilatildeo equidade epiqueia doccedilura bondade (cf
PEREIRA 1998 p 210 [verbete ἐπιείκεια]) Registrando a presenccedila de uma
traduccedilatildeo ainda mais proacutexima do termo grego epieiacutekeia menos usada contudo em
nosso vocabulaacuterio epiqueia2 Disso podemos constatar que embora a equidade
goze de grande popularidade no meio juriacutedico seu emprego por vezes varia ainda
que ligeiramente do conceito elaborado pelo Estagirita3
Portanto diante de tais dificuldades questionamos O que seria a prudecircncia
e a equidade na tradiccedilatildeo aristoteacutelica Tal questionamento nos levou a procurar nos
textos do proacuteprio Aristoacuteteles e seus comentadores os indiacutecios das formulaccedilotildees
originaacuterias Por ora o que podemos levantar eacute que ambos os conceitos satildeo
visualizados em situaccedilotildees muito aproximadas O que nos leva agrave possiblidade de
existir entre ambos uma relaccedilatildeo de interdependecircncia conceitual Talvez seja por isso
que quando Aristoacuteteles aborda as virtudes morais deixa a equidade como uacuteltimo
assunto antes de tratar da virtude intelectual da prudecircncia
Neste sentido o trabalho foi elaborado traccedilando um percurso entre as
condiccedilotildees necessaacuterias ao exerciacutecio das virtudes para em seguida procurarmos
contextualizar a teoria das virtudes como um todo e por fim conhecermos a virtude
da prudecircncia No momento subsequente realizamos uma exposiccedilatildeo da virtude da
justiccedila Apoacutes esses passos entendemos ser possiacutevel a formulaccedilatildeo das concepccedilotildees
aristoteacutelicas dos conceitos de prudecircncia e equidade
2 Abbagnano registra epiqueia como sendo sinocircnimo de equidade (1999 p 338 [verbete epiqueia])
Em seu verbete epiqueia Aureacutelio Buarque de Holanda embora natildeo a coloque como sinocircnimo de equidade registra ldquoepiqueia Sf 1 Interpretaccedilatildeo razoaacutevel de lei ou preceito 2 Fig Meio-termo moderaccedilatildeordquo Entendimento que nos parece mais proacuteximo agrave proposta Aristoteacutelica 3 Referecircncia agrave Aristoacuteteles por ser natural de Estagira uma antiga cidade da Macedocircnia situada hoje
na Greacutecia na regiatildeo de Calciacutedica
14
Dentro desse esquema o segundo capiacutetulo tem por objetivo analisar a
contingecircncia caracterizada pela indeterminaccedilatildeo objetiva na relaccedilatildeo entre o universal
e o particular como condiccedilatildeo para o exerciacutecio da razatildeo praacutetica4 Neste sentido
iremos buscar na loacutegica de Aristoacuteteles os elementos necessaacuterios para a sua
compreensatildeo
Uma concepccedilatildeo um tanto popular quando se trata de Aristoacuteteles eacute da
potecircncia e do ato A pretensatildeo eacute revisitar esse conceito com foco na relaccedilatildeo
contingencial que existe no movimento entre a potecircncia e o ato O objetivo do
capiacutetulo alcanccedila pouso numa concepccedilatildeo de contingecircncia proacutepria agrave eacutetica das
virtudes O que segue eacute a proposta de Pierre Aubenque (2008) em fazer uma
exposiccedilatildeo da contingecircncia nas concepccedilotildees de acaso Por fim eacute na trageacutedia grega
que Aubenque (2008) mostra as condiccedilotildees necessaacuterias ao exerciacutecio das virtudes
O terceiro capiacutetulo tem por objetivo trazer uma exposiccedilatildeo que contextualize
na tradiccedilatildeo aristoteacutelica das virtudes os conceitos que seratildeo estudados Neste
sentido eacute realizada inicialmente uma leitura acerca da teoria geral das virtudes na
Eacutetica a Nicocircmaco Observando as partes da alma e suas qualidades como racional e
irracional dividindo assim as virtudes em intelectuais e morais respectivamente
O quarto capiacutetulo procura reconstruir o conceito de prudecircncia relacionando-
o com a liberdade e a arte As temaacuteticas da deliberaccedilatildeo e da escolha satildeo neste
ponto inseridas como elementos indispensaacuteveis agrave anaacutelise do conceito de prudecircncia
O quinto capiacutetulo pretende oferecer uma visatildeo geral da teoria da justiccedila de
Aristoacuteteles como tambeacutem considerar o fato de Aristoacuteteles ter inserido sua exposiccedilatildeo
da equidade no livro V em relaccedilatildeo com o conceito de justiccedila objeto especiacutefico de
investigaccedilatildeo do livro mencionado
Por uacuteltimo procuramos o conceito de equidade Essa uacuteltima exposiccedilatildeo tem
por objetivo delinear a pretensatildeo de Aristoacuteteles com tal formulaccedilatildeo Nele natildeo
inserimos pretensotildees complexas acerca de teorias especiacuteficas e contemporacircneas
mas tatildeo somente a despretensiosa e sofisticada elaboraccedilatildeo aristoteacutelica do assunto
4 Sobre razatildeo praacutetica vide LACERDA Bruno Amaro O raciociacutenio juriacutedico uma visatildeo aristoteacutelica Belo
Horizonte Movimento Editorial da Faculdade de Direito da UFMG 2005
15
Eacute neste sentido que ao explicar o desdobramento da razatildeo praacutetica ele
abandona o modelo oferecido pela geometria buscando na carpintaria um novo
modelo (fiel no entanto agrave tradiccedilatildeo das virtudes) Por fim procuramos no conceito
de equidade traccedilos pertinentes agraves virtudes em geral e em especial agrave virtude da
prudecircncia
Para a conclusatildeo reservamos a tarefa de responder a seguinte questatildeo que
se impotildee apoacutes o estudo simultacircneo desses dois conceitos existe uma relaccedilatildeo
conceitual entre os conceitos de prudecircncia e equidade
16
2 A CONTINGEcircNCIA
A prudecircncia e a equidade estatildeo condicionadas ao campo da accedilatildeo Contudo
parece que ambas soacute podem se manifestar no acircmbito do contingente Sendo
portanto a contingecircncia nosso ponto de partida
Parece ser a contingecircncia um dos fenocircmenos mais intrigantes a se tratar por
uma dupla razatildeo A contingecircncia consegue ao mesmo tempo nos desmotivar por
nos ensinar a liccedilatildeo de que natildeo podemos tudo conter e que a nossa pretensiosa
construccedilatildeo cotidiana deve estar sempre alerta para as incontaacuteveis possibilidades a
qual o mundo nos submete Por outro lado e concomitantemente eacute ela quem nos
motiva que nos convida agrave accedilatildeo Pois assim como o vento escolhe seu caminho eacute
ela que tem o poder de inserir em nossas vidas as mudanccedilas pelas quais devemos
lutar para moldarmos nossos objetivos e possibilidades um ao outro
Eacute nesse sentido que nos parece liacutecita a crenccedila em uma possiacutevel
reintegraccedilatildeo do homem com a sua natureza divina pois estatildeo nas vicissitudes da
vida as liccedilotildees praacuteticas nas quais os homens podem dar o melhor de si em busca de
um aperfeiccediloamento moral
21 A Loacutegica5
Eacute no estudo da loacutegica que pretendemos encontrar nossa primeira referecircncia
sobre o que seja a contingecircncia Tradicionalmente entende-se por loacutegica o estudo
dos raciociacutenios que pretendem atraveacutes de regras proacuteprias concluiacuterem por
resultados verdadeiros Desnudando assim os raciociacutenios que se vestem com
aparente validade mas que ocultam viacutecios que os falseiam
Tais viacutecios satildeo comumente apontados como tendo duas fontes sendo uma
relacionada aos fundamentos do raciociacutenio e outra ao nexo que se estabelece entre
5 A loacutegica normalmente eacute classificada como pertencente agrave razatildeo especulativa Nosso estudo situa-se
no acircmbito da razatildeo praacutetica Natildeo obstante parece-nos que a compreensatildeo do pensamento de Aristoacuteteles daacute-se atraveacutes da compreensatildeo de seu meacutetodo que eacute abordado na loacutegica Por outro lado quando descreve o prudente Aristoacuteteles sempre faz menccedilatildeo de que ele natildeo versa apenas sobre questotildees da razatildeo especulativa mas tambeacutem questotildees de razatildeo praacutetica Portanto o conhecimento especulativo eacute pertinente ao agente da razatildeo praacutetica Vide EN VI 7 1141b15
17
eles e a conclusatildeo Nesse sentido a loacutegica aristoteacutelica eacute estudada em dois ramos
sendo eles conhecidos como Loacutegica Maior (ou material) e Loacutegica Menor (ou formal)
Comecemos pela Loacutegica Menor De acordo com o ensino tradicional de
loacutegica as proposiccedilotildees podem ser classificadas pela qualidade e pela quantidade ou
seja como afirmativas ou negativas e universais ou particulares respectivamente
Daacute-se agraves combinaccedilotildees possiacuteveis a seguinte notaccedilatildeo Se a proposiccedilatildeo for uma
universal afirmativa por exemplo Todo S eacute P6 (Todo homem eacute mortal) entatildeo temos
uma proposiccedilatildeo ldquoArdquo Se a proposiccedilatildeo for particular afirmativa por exemplo Alguns S
satildeo P (Alguns homens satildeo brancos) entatildeo temos uma proposiccedilatildeo ldquoIrdquo Se a
proposiccedilatildeo for uma universal negativa por exemplo Nenhum ldquoSrdquo eacute ldquoPrdquo (Nenhum
homem eacute mortal) entatildeo temos uma proposiccedilatildeo ldquoErdquo Se a proposiccedilatildeo for particular
negativa por exemplo Alguns S natildeo satildeo P (Alguns poliacuteticos natildeo satildeo corruptos)
entatildeo temos uma proposiccedilatildeo ldquoOrdquo
Eacute importante notar que nessa primeira classificaccedilatildeo o que se procura
evidenciar eacute a relaccedilatildeo entre o sujeito S e o predicado P sendo que pode estar-se
afirmando ou negando algo ao particular ou ao universal
Parece-nos que os termos empregados por perspicaacutecia ou feliz
coincidecircncia daacute-nos uma importante pista acerca do domiacutenio do contingente Pois eacute
justamente na tensatildeo existente entre o universal e o particular que noacutes podemos
extrair parte do conceito entatildeo estudado
Em sua liccedilatildeo sobre loacutegica Jacques Maritain (2001 p 106) explica essa
tensatildeo expondo brevemente sobre o modo como conhecemos as coisas De acordo
com ele as coisas se apresentam de duas maneiras por uma ideia ou por uma
representaccedilatildeo sensiacutevel As ideias estatildeo relacionadas como o que conhecemos por
universal ou seja lsquoaquilo que se encontra sempre idecircntico em uma multidatildeo de
indiviacuteduos um em muitos ldquounum in multisrdquorsquo
Precisando acerca do particular7 extrai-se da mesma liccedilatildeo
Aleacutem disso se examinarmos com cuidado as diversas ciecircncias isto eacute os diversos sistemas de ideacuteias pelos quais conhecemos o real constatamos que nenhuma delas tem por objeto o individual como tal [] Eacute preciso
6 ldquoSrdquo para sujeito e ldquoPrdquo para predicado
7 Maritain aborda o tema nominando o universal por ideia e o particular por representaccedilatildeo
18
que assim seja porque o individual como tal natildeo eacute explicativo (representando somente a si mesmo natildeo pode evidentemente dar a razatildeo de outra coisa) (MARITAIN 2001 p 105)
Ainda comparando os extremos da tensatildeo Jaques Maritain facilita a
compreensatildeo ldquoOra esta ideia e esta representaccedilatildeo satildeo bem diferentes a prova eacute
que posso fazer variar a segunda de muitas maneiras (o desenho que imagino pode
ser maior ou menor branco vermelho amarelo etc) sem que a primeira varie por
causa dissordquo (MARITAIN 2001 p 103)
Aiacute estaacute nossa primeira pista pois eacute no acircmbito do particular onde ldquopode-se
fazer variarrdquo ou seja onde existe uma dificuldade em predominar o certo o
determinado o evidente o necessaacuterio eacute que chamamos o domiacutenio do contingente
Aleacutem da classificaccedilatildeo pela qualidade e quantidade temos outra importante
classificaccedilatildeo que eacute pela modalidade Nesta podemos encontrar as proposiccedilotildees
como Verdadeiras Falsas8 Necessaacuterias Possiacuteveis Impossiacuteveis e Contingentes
Nas necessaacuterias9 o predicado decorre do sujeito sendo a compreensatildeo de um
indissociaacutevel da compreensatildeo do outro
Quanto agraves proposiccedilotildees possiacuteveis satildeo aquelas em que o predicado pode ser
ou natildeo ser atribuiacutedo ao sujeito Alguns filoacutesofos se restringem a essas duas
modalidades assim a compreensatildeo da contingecircncia fica embutida na modalidade
possiacutevel em outras palavras aquilo que pode ou natildeo pode ser Essa compreensatildeo
aparece na Eacutetica a Nicocircmaco (EN VI 5 1140b1 negrito nosso) ldquouma vez que natildeo
se pode deliberar sobre coisas que estatildeo no acircmbito da necessidade conclui-se que
8 Aristoacuteteles apresenta seis modalidades Os manuais de loacutegica em sua maioria apresentam apenas
quatro modalidades de proposiccedilotildees quais sejam as necessaacuterias possiacuteveis impossiacuteveis e contingentes As modalidades de proposiccedilotildees verdadeiras e falsas satildeo tratadas como valores por decorrerem do emprego das demais
9 Na Metafiacutesica Aristoacuteteles explica a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio e as demais modalidades As
foacutermulas satildeo e natildeo satildeo independentemente da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo pois foi mostrado que ningueacutem as gera ou cria Eacute por esta razatildeo tambeacutem que natildeo haacute definiccedilatildeo ou demonstraccedilatildeo de coisas individuais sensiacuteveis porque contecircm mateacuteria cuja a natureza eacute tal que pode tanto existir quanto natildeo existir Consequentemente todos os exemplos individuais delas satildeo pereciacuteveis E se entatildeo a demonstraccedilatildeo e a definiccedilatildeo de verdades necessaacuterias requerem conhecimento cientiacutefico e se tal como conhecimento natildeo poder ser agraves vez conhecimento e agraves vezes ignoracircncia (eacute a opiniatildeo que possui esta natureza) do mesmo modo tambeacutem demonstraccedilatildeo e a definiccedilatildeo natildeo satildeo passiacuteveis de variaccedilatildeo (eacute a opiniatildeo que se ocupa com aquilo que pode ser de outra maneira do que eacute) (Met 1039b25 - 1040a1)
19
a prudecircncia (sabedoria praacutetica) natildeo eacute o mesmo que conhecimento cientiacutefico porque
os assuntos relacionados agrave conduta admitem mutaccedilatildeordquo
Mais claramente Santo Tomaacutes discorre na segunda parte da Segunda
Parte Questatildeo 47 artigo 5 da Suma Teoloacutegica
Consequumlentemente se diraacute que a prudecircncia estando na razatildeo como jaacute foi dito distingue-se das outras virtudes intelectuais segundo a diversidade material de objetos Pois a sabedoria a ciecircncia e o intelecto tecircm como objetos coisas necessaacuterias a arte e a prudecircncia coisas contingentes [] (AQUINO 2004 p 593 negrito nosso)
Parece-nos importante o desdobramento nas quatro modalidades pois o
possiacutevel e contingente natildeo parecem sinocircnimos O principal argumento estaacute no fato
de que na noccedilatildeo de possiacutevel estaacute impliacutecito o seu contraacuterio ou seja o Impossiacutevel
hipoacutetese em que o predicado natildeo decorre do sujeito Por sua vez a noccedilatildeo de
contingecircncia natildeo compreende o incontingente
Em seu Dicionaacuterio de Filosofia Nicola Abbagnano expotildee no verbete
Contingente a diferenccedila entre contingecircncia e possiacutevel jaacute exposta por Boeacutecio
ldquopossibuumlerdquo e contingens significam a mesma coisa salvo talvez pelo fato de natildeo
existir o negativo de contingens que deveria ser incontingens assim como existe o
negativo de possibuumle que eacute iacutempossiacutebilerdquo (ABBAGNANO 2007 p 200)
Sendo portanto quatro as classificaccedilotildees das modalidades Necessaacuterio ou ldquoeacute
necessaacuterio que S seja Prdquo Possiacutevel ou ldquoeacute possiacutevel que S seja Prdquo Impossiacutevel ou ldquoeacute
impossiacutevel que S seja Prdquo e Contingente ou ldquoeacute contingente que S seja Prdquo
Assim as proposiccedilotildees sempre recebem o valor de verdadeiras quando
pertencem agrave modalidade Necessaacuterio recebem o valor de falsas quando pertencem agrave
modalidade Impossiacutevel recebem o valor de verdadeiras ou falsas quando pertencem
agrave modalidade Possiacutevel
Quando as proposiccedilotildees pertencem agrave modalidade Contingente natildeo podem
ser dotadas de valoraccedilatildeo uma vez que natildeo se pode decidir se satildeo verdadeiras ou
falsas Isso na loacutegica eacute conhecido como acidentes10 ou aquilo que estaacute presente e
ausente ainda que natildeo haja corrupccedilatildeo do sujeito Por isso quando se fala em
10
Retomaremos acerca dos acidentes quando estudarmos o acaso
20
contingecircncia soacute pode estar-se referindo ao momento presente ou futuro mas nunca
ao passado Satildeo nesses momentos em que impera o indeterminado que se
encontra a contingecircncia
Natildeo obstante a correta formulaccedilatildeo de um raciociacutenio eacute possiacutevel que
obtenhamos conclusotildees erradas hipoacutetese essa em que as premissas natildeo satildeo
verdadeiras Destarte diferente da loacutegica menor que se preocupa com a
conformidade das conclusotildees com as premissas a loacutegica maior preocupa-se com a
veracidade
Para que possamos compreender melhor o objeto da loacutegica maior eacute preciso
conceituar o que seja a verdade em mateacuteria de loacutegica assim valhamo-nos das
liccedilotildees de Manoel Correia de Barros (1945)
Jaacute vimos que pelo processo de abstracccedilatildeo a forma do objeto que conhecemos adquire na nossa inteligecircncia uma modalidade de existecircncia completamente diferente da que tem na realidade No objecto eacute concreta individual na inteligecircncia eacute universal abstracta A verdade do nosso conhecimento tem portanto outro significado Consiste simplesmente em natildeo atribuirmos ao objeto nenhuma nota que natildeo lhe pertenccedila na realidade Eacute o caso de analogia A relaccedilatildeo que o nosso espiacuterito estabelece entre dois conceitos deve ser idecircntica a uma relaccedilatildeo existente de facto entre os dois objetos que eles representam para que o nosso conhecimento seja verdadeiro Natildeo eacute necessaacuterio que conheccedilamos todas as relaccedilotildees entre os dois objectos e muito menos todas as relaccedilotildees de que um decircles pode ser termo para ser verdadeiro o conhecimento natildeo precisa ser exaustivo basta que a nota que afirmamos pertencer ao obejcto lhe pertenccedila realmente Assim falamos verdade quando dizemos que a neve eacute branca embora agravececircrca da neve haja muitas coisas mais a dizer e a saber
Natildeo haacute que saber duma ideia isolada se eacute verdadeira ou natildeo A questatildeo natildeo se potildee dado que a verdade eacute igualdade de relaccedilotildees que exigem claro estaacute dois termos []
Soacute pode ser verdadeiro ou falso o juiacutezo que se exprime pela proposiccedilatildeo e relaciona entre si um sujeito e um predicado Ecircsse sim se o predicado que atribuiacutemos ao sujeito lhe convecircm na realidade eacute verdadeiro se lhe natildeo conveacutem eacute falso (BARROS 1945 p 329-330)
Dessa forma para o estabelecimento da verdade eacute necessaacuterio que natildeo haja
nada de estranho ao objeto ou em outras palavras o predicado deve decorrer do
sujeito natildeo lhe dando qualquer nota que natildeo lhe pertenccedila Por isso afirma Maritain
(2001) que a verdade de nosso espiacuterito consiste em sua conformidade com a coisa
21
Nesse sentido eacute que podemos compreender o que afirmamos quando
falaacutevamos da loacutegica menor em que natildeo podemos atribuir o incerto ao passado
Pois por oacutebvio qualquer nota que natildeo lhe tenha ocorrido natildeo lhe pertence
[] os futuros contingentes natildeo existem no passado nem mesmo como verdades futuras Ontem por exemplo natildeo era uma verdade que ia hoje sair um determinado nuacutemero na lotaria porque natildeo existia ontem nenhum facto em que essa consequumlecircncia estivesse contida de modo necessaacuterio com o qual a proposiccedilatildeo em causa pudesse concordar (BARROS 1945 p 331)
Portanto como estaacute relacionado agrave coisa futura o contingente encontra-se
latente num estado de porvir Por isso eacute que estabelecemos nossa proacutexima
referecircncia acerca da contingecircncia no movimento
22 O Movimento11 da potecircncia para o ato
Eacute interessante notar que o momento propiacutecio agrave decisatildeo eacute um momento de
passagem ou em melhor termo um momento de movimento Natildeo eacute em vatildeo que
Pierre Aubenque (2008) em seu livro A Prudecircncia em Aristoacuteteles dedica boa parte
do capiacutetulo Cosmologia da Prudecircncia ndash o mesmo capiacutetulo no qual faz uma
abordagem sobre contingecircncia ndash ao tema O tempo oportuno (καιρος)
Nesse sentido estaacute [] a moral aristoteacutelica nos convidando a realizar nossa
excelecircncia neste mundo Natildeo podendo desconhecer que o mundo dura e muda no
tempo que eacute o ldquonuacutemerordquo de seu movimento (Aubenque 2008 p156)
Dessa forma eacute preciso compreender o movimento principalmente na tatildeo
conhecida passagem da Potecircncia para o Ato Como bem assinala Tomaacutes de Aquino
no artigo 5 da questatildeo 47 que estatildeo sob os auspiacutecios da contingencia tanto a
prudecircncia quanto a arte12 isso porque ambas ldquoestatildeo para serrdquo a prudecircncia para o
agir e arte para produzir13
11
Aristoacuteteles faz uma grande abordagem acerca do movimento de acordo com RUSSEL (2001) existem trecircs espeacutecies de movimento Movimento enquanto qualidade quantidade e mudanccedila de lugar REALE (1990) apresenta uma quarta divisatildeo enquanto substacircncia Dessa forma nomina o movimento entre a potecircncia e o ato como movimento enquanto qualidade proposta do presente item 12
Jaacute citado e referenciado no item 21 Esse assunto ainda seraacute tratado no item 43 Arte e prudecircncia 13
Sobre o movimento e a relaccedilatildeo entre a lei e o fato assina-la Carnelutti Assim aflora no discurso a conversatildeo do movimento na imobilidade E assim opotildee-se agrave lei ao direito O eterno contraste entre o
22
Ateacute Aristoacuteteles a concepccedilatildeo filosoacutefica acerca do movimento esteve
vinculada a duas teorias uma negava o movimento e outra o afirmava A corrente
que afirmava o movimento era liderada por Heraacuteclito de Eacutefeso (+- 540 aC)
Heraacuteclito afirmava que as coisas mudavam permanentemente em outras
palavras ele afirmava a inconstacircncia das coisas nesse sentido eacute atribuiacuteda a ele a
frase ldquoEntramos e natildeo entramos no mesmo rio Somos e natildeo somosrdquo Portanto o
movimento estaacute presente em todas as coisas agraves vezes afirmando que as coisas
ldquosatildeordquo e que ldquonatildeo satildeordquo ao mesmo tempo sendo como mais tarde diria Platatildeo ldquoO
nosso ser eacute um perpeacutetuo devirrdquo
Ao contraacuterio do que afirmava Heraacuteclito Parmecircnides de Eleia (+- 521 aC)
liderava a corrente que negava o movimento Assim Parmecircnides simplesmente
afirma que ldquoeacuterdquo Seu argumento eacute sustentado pela afirmaccedilatildeo de que aquilo que ldquonatildeo
eacuterdquo natildeo pode sequer ser imaginado pois natildeo se pode imaginar o nada Seu
pensamento culmina numa representaccedilatildeo do mundo como ldquouma esfera material
uniforme soacutelida e finita sem tempo movimento nem mudanccedilardquo (RUSSELL 2001 p
29-38)
De acordo com Parmecircnides os sentidos natildeo seriam instrumentos adequados
ao conhecimento verdadeiro sendo o conhecimento verdadeiro revelado pela razatildeo
Assim a verdade eacute apenas aquilo que eacute produzido pelo pensamento e portanto o
pensar eacute verdadeiramente ldquoserrdquo Eacute nesse sentido que afirma ser o movimento
impossiacutevel pois natildeo admite a passagem do ldquonatildeo serrdquo para o ldquoserrdquo uma vez que o
ldquonatildeo serrdquo eacute nada e natildeo pode ser inteligiacutevel
Ao contraacuterio de seus predecessores Aristoacuteteles inova conciliando ambas as
teorias Pois natildeo nega o que ldquoestaacute por virrdquo de Heraacuteclito e nem o ldquoserrdquo de
Parmecircnides
Aristoacuteteles natildeo nega o vir-a-ser de Heraacuteclito nem o ser de Parmecircnides mas une-os em uma siacutentese conclusiva jaacute iniciada pelos uacuteltimos preacute-socraacuteticos e grandemente aperfeiccediloada por Demoacutecrito e Platatildeo Segundo Aristoacuteteles a mudanccedila que eacute intuitiva pressupotildee uma realidade imutaacutevel que eacute de duas espeacutecies Um substrato comum elemento
ser e o mover-se apresenta-se tambeacutem ao jurista sub specie da oposiccedilatildeo do fato agrave lei A lei estaacute o fato move-se A lei eacute um estado o fato um desenvolvimento A lei eacute o presente o fato natildeo pode ser mais do que passado ou futuro A lei estaacute fora do tempo o fato estaacute dentro (CARNELUTTI 2003 p 40)
23
imutaacutevel da mudanccedila em que a mudanccedila se realiza e as determinaccedilotildees que se realizam nesse substrato a essecircncia a natureza que ele assume Essa contradiccedilatildeo Aristoacuteteles pretende evitar atraveacutes da interpretaccedilatildeo analoacutegica da noccedilatildeo de ser que lhe permite fazer uma distinccedilatildeo fundamental ser natildeo eacute apenas o que jaacute existe em ato ser eacute tambeacutem o que pode ser a virtualidade a potecircncia Assim sem contrariar qualquer princiacutepio loacutegico poder-se-ia compreender que uma substacircncia apresenta-se num dado momento certas caracteriacutesticas e noutra ocasiatildeo manifestasse caracteriacutesticas diferentes se uma folha verde torna-se amarela eacute porque verde e amarelo satildeo acidentes da folha (que eacute sempre folha independente de sua coloraccedilatildeo) A qualidade amarelo eacute uma virtualidade da folha que num certo momento se atualiza E essa passagem da potecircncia ao ato eacute que constitui segundo a teoria de Aristoacuteteles o movimento O termo movimento tem frequentemente a
mesma significaccedilatildeo que os vocaacutebulos mudanccedila e devir (ORIOLO
2009)
A compreensatildeo do ldquoserrdquo14 eacute explicada detalhadamente no Livro VII da
Metafiacutesica (Met VII 1 1028a10) Na passagem 1039b20 descreve a substacircncia
como sendo de dois tipos uma vez que o primeiro tipo seria uma combinaccedilatildeo de
foacutermula com a mateacuteria e o segundo tipo como sendo a forma em seu sentido pleno
Sendo a forma uma constante inadmitindo acidentes ao contraacuterio da foacutermula com a
mateacuteria que eacute passiacutevel de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo
Portanto a mudanccedila parece compreender como predicados ato e potecircncia
pois natildeo seria possiacutevel movimento enquanto ato uma vez que neste a causa final
jaacute fora atingida nem enquanto soacute potecircncia uma vez que algo pode permanecer
nesse estado sem que haja qualquer mudanccedila Nesse sentido o movimento eacute
potecircncia e ato
Para Aristoacuteteles o movimento eacute a a realizaccedilatildeo15 daquilo que estaacute em
potecircncia (Fiacutes III 1 201 a 10) Ou seja o movimento eacute a passagem da potecircncia
para o ato Um dos exemplos citados na Fiacutesica eacute o crescimento como sendo a
realizaccedilatildeo a passagem da potecircncia para o ato16 De acordo com Russell (2001)
14
Sobre o ser vide AUBENQUE (2012) 15
έντελέχεια (enteleacutekheia) 16
Y puesto que distinguimos en cada geacutenero lo actual y lo potencial el movimiento es la actualidad de lo potencial en cuanto a tal por ejemplo la actualidad de lo alterable en tanto que alterable es la alteracioacuten la de lo susceptible de aumento y la de su contrario lo susceptible de disminucioacuten mdash no hay nombre comuacuten para ambos mdash es el aumento y la disminucioacuten la de lo generable y lo destructible es la gene- racioacuten y la destruccioacuten la de lo desplazable es el desplazamiento en tanto que decimos que es tal estaacute en actualidad entonces estaacute siendo construido tal es el proceso de construccioacuten y lo mismo en el caso de la instruccioacuten la medicacioacuten la rotacioacuten el salto la maduracioacuten y el envejecimiento (Fiacutes III 1 201 a 16)
24
Se um frasco de oacuteleo comeccedila a queimar podemos dizer que eacute assim porque jaacute o era potencialmente mesmo antes Poreacutem evidentemente isto natildeo eacute uma explicaccedilatildeo Na verdade por motivos deste tipo algumas escolas filosoacuteficas negaram que se pudesse dizer qualquer coisa uacutetil sobre o assunto Antiacutestenes de Megara foi um deles como veremos adiante Segundo este ponto de vista uma coisa eacute de um determinado tipo ou natildeo e qualquer coisa aleacutem disto eacute tolice Mas eacute claro que fazemos afirmaccedilotildees como ldquoo oacuteleo eacute inflamaacutevelrdquo e elas fazem perfeito sentido A anaacutelise de Aristoacuteteles fornece a resposta correta Ao dizermos que uma coisa eacute potencialmente A queremos dizer que sob certas condiccedilotildees seraacute de fato assim [] As condiccedilotildees em questatildeo eacute claro devem ser tais que possam de fato ocorrer quer dizer ser atuais Neste sentido o atual eacute logicamente anterior ao potencial Agora pode-se dar uma explicaccedilatildeo da mudanccedila em virtude de uma substacircncia que eacute portadora potencial de uma seacuterie de qualidades que nela se tornam sucessivamente atuais (RUSSELL 2001 p 113)
Assim poderiacuteamos dizer que o hilemorfismo eacute o locus onde Aristoacuteteles
ensaia a teoria do movimento pois eacute da realidade sensiacutevel constituiacuteda de mateacuteria17 e
forma que podemos imaginar o salto e os possiacuteveis acidentes entre a potecircncia e o
ato ldquo[] parece que para a mesma coisa eacute possiacutevel tanto ser como natildeo ser Assim
por exemplo tudo aquilo que pode caminhar ou ser cortado pode natildeo caminhar ou
natildeo ser cortado E a razatildeo disso eacute que essas coisas que satildeo desta maneira em
potecircncia nem sempre satildeo em atordquo (Da Int 21b10) Essa postura apresentada em
Da Interpretaccedilatildeo pode ser contemplada tambeacutem na Metafiacutesica ldquo[] a mesma coisa
pois pode ser potencialmente ao mesmo tempo dois contraacuterios mas natildeo pode ser
atualmenterdquo (Met IV 5 1009b34-36)
No estudo das causas18 Aristoacuteteles as classifica em quatro quais sejam
causa formal causa material causa eficiente e causa final Considerar apenas a
forma e a mateacuteria natildeo eacute suficiente pois teriacuteamos uma teoria estaacutetica Como estamos
tratando de uma realidade dinacircmica eacute necessaacuterio portanto que consideremos a
existecircncia de um agente e seu objetivo
Assim a mateacuteria eacute potecircncia por estar apta a receber a forma e
consequentemente alcanccedilar o ato Tal como o bloco de granito estaacute apto a tornar-se
a Vecircnus de Milo
17
ύλη (hyle) 18
Sobre as quatro causas Giovanni Reale explica sua relaccedilatildeo com a Fiacutesica em especial no que
concerne ao movimento vide (REALE 2001 p 57)
25
Em De Anima (432a15 - 433b) Aristoacuteteles descreve o movimento como
pertencente agrave razatildeo praacutetica De acordo com o texto o intelecto ou a razatildeo
especulativa nada pensa na esfera do praacutetico nem delibera acerca dos objetos a
serem evitados ou buscados enquanto o movimento local diz respeito sempre ao
evitar ou ao buscar de algum objeto
Nesse importante trecho estatildeo inseridas as bases do silogismo praacutetico19
destarte a assertiva que segue o trecho eacute a seguinte ldquoe o ponto final do processo
de raciocinar constitui o ponto de partida da accedilatildeo Eacute por boa razatildeo que esses dois
nomeadamente o desejo e o intelecto praacutetico satildeo considerados fonte do
movimentordquo (DA 432a17)
Em sua Metafiacutesica (1046b5) afirma que toda potecircncia racional admite
resultados contraacuterios diferente das potecircncias irracionais onde o resultado eacute
necessaacuterio O exemplo utilizado eacute o do calor e o da medicina o calor soacute pode
produzir calor enquanto a medicina pode produzir sauacutede e doenccedila
Portanto o movimento pertencente agrave razatildeo praacutetica eacute para noacutes a passagem
da potecircncia para o ato Em tal passagem podemos constatar a presenccedila de
resultados contraacuterios ou seja aquilo que eacute em potecircncia natildeo o seraacute
19
Sobre ldquosilogismo praacuteticordquo vide Pierre Aubenque (2008 p 52) ldquologo entre a teoria e a praacutetica e
finalmente entre a ciecircncia e a prudecircncia esta uacuteltima relativa menos agrave ldquodeduccedilatildeordquo que desce do
princiacutepio agrave aplicaccedilatildeo do que a um ldquoempirismordquo que se esforccedila bem ou mal por se orientar no acircmago
mesmo do particularrdquo Neste trecho parece afastar-se da loacutegica Mais adiante na p 254 aborda
novamente o tema e conclui por uma perspectiva conciliadora ou seja apresenta duas foacutermulas para
a deliberaccedilatildeo uma a do silogismo praacutetico como aplicaccedilatildeo do universal ao particular e a outra que diz
respeito agrave escolha judiciosa dos meios Em sua Histoacuteria da Eacutetica Alasdair MacIntyre (1991 p 76 -
77) ldquoAristoacuteteles caracteriza la forma de deliberacioacuten implicada como un silogismo praacutectico La
premisa mayor de un silogismo semejante es un principio de accioacuten en el sentido de que cierta clase
de cosas es buena conviene o satisface a cierta clase de personas La premisa mayor es la
afirmacioacuten garantizada por la percepcioacuten de que hay un ejemplo de que aunque misterioso en su
contenido aclara la forma del silogismo praacutectico La premisa mayor indica que el alimento seco es
bueno para el hombre la premisa menor sentildeala la presencia de ese tipo de alimento y la conclusioacuten
es que el agente lo ingiere Que la conclusioacuten es una accioacuten pone de manifiesto que el silogismo
praacutectico es un modelo de razonamiento por parte del agente y no un modelo de razonamiento ajeno
sobre lo que el agente deberiacutea hacer (por eso una segunda premisa menor que indicara por ejemplo
la presencia de un en cuanto nos alejariacutea de la cuestioacuten) Ni tampoco es un modelo de confundirse
con aquellos silogismos muy comunes cuya conclusioacuten es una afirmacioacuten de este tipo Toda su
finalidad reside en indagar el sentido en que una accioacuten puede ser la resultante de un razonamientordquo
26
necessariamente em ato Da admissatildeo de tais resultados decorre a indeterminaccedilatildeo
Eacute justamente essa indeterminaccedilatildeo que justifica a deliberaccedilatildeo
23 Indeterminismo e a eacutetica das virtudes
Iniciamos o segundo capiacutetulo afirmando que tanto a prudecircncia quanto a
equidade pertencem ao campo da accedilatildeo e que ambas se manifestam nas situaccedilotildees
contingentes20 Revisitando os conceitos da loacutegica foi possiacutevel identificar a natureza
da contingecircncia como pertencente agraves modalidades Por fim identificamos que o
movimento entre a potecircncia e o ato eacute uma fonte contingencial uma vez que a
potecircncia admite atualizaccedilotildees contraacuterias evidenciando o que chamamos de
indeterminaccedilatildeo21
Neste item pretendemos compreender a natureza da indeterminaccedilatildeo como
um chamamento para accedilatildeo asseverando as diferentes concepccedilotildees da noccedilatildeo de
acaso nas obras de Aristoacuteteles
Pierre Aubenque (2008) em seu livro A prudecircncia em Aristoacuteteles faz uma
profunda leitura das obras do Estagirita evidenciando trecircs distintas concepccedilotildees de
acaso Na primeira delas uma leitura da Eacutetica Eudecircmia onde o acaso aparece sob a
forma de ldquofortunardquo Na segunda uma leitura da Fiacutesica esboccedilando o acaso como
inserto em sua teoria da causalidade E na terceira e uacuteltima uma leitura da Eacutetica a
Nicocircmaco o acaso enquanto indeterminaccedilatildeo objetiva isto eacute contingecircncia As trecircs
concepccedilotildees satildeo detalhadamente explicadas por Pierre Aubenque (2008 p 117-
130)
231 Primeira concepccedilatildeo de acaso A boa fortuna
20
Parece que a contingecircncia se manifesta de diversa forma em cada uma das virtudes situaccedilatildeo que seraacute analisada mais detidamente no estudo de cada uma delas 21
Aqui o emprego da expressatildeo ldquoindeterminaccedilatildeordquo refere-se a admissatildeo da existecircncia do acaso em verdade natildeo eacute nossa intenccedilatildeo trabalhar a dicotomia ldquodeterminismo-indeterminismordquo
27
Na Eacutetica Eudecircmica Aristoacuteteles procura mostrar que a boa fortuna22 natildeo se
deve ao exerciacutecio das virtudes morais ou intelectuais mas ao bom nascimento
desse modo a boa fortuna eacute algo irasciacutevel
O questionamento eacute formulado Se a boa fortuna natildeo eacute produto da razatildeo
entatildeo eacute um presente de deus ou uma causa natural
As objeccedilotildees seguem no sentido de que o bom nascimento natildeo se explica
pela proteccedilatildeo divina pois seria indigno dos deuses dispensarem favores aos maus
Da mesma forma natildeo seria pela natureza uma vez que ldquoa natureza eacute causa do que
eacute sempre uniforme ou do que acontece frequentemente e o acaso eacute o oposto dissordquo
(EE VII 14 1247a14-31)
Pierre Aubenque (2008) nos daacute a seguinte soluccedilatildeo
Tal objeccedilatildeo no entanto natildeo repousaria sobre uma concepccedilatildeo errocircnea do acaso Aristoacuteteles o pergunta para sugerir uma teoria segundo a qual ldquoeacute preciso rejeitar inteiramente o acaso e dizer que nada acontece por acaso pois quando dizemos que o acaso eacute uma causa haacute na realidade uma outra causa poreacutem ocultada para noacutes Eacute por isso que quando se define o acaso o tomamos como uma causa impenetraacutevel ao raciociacutenio humano (aitian alogon anqrwpinw logismw) como se se
tratasse de uma certa naturezardquo [] essa causa oculta ao entendimento humano que se chama impropriamente acaso eacute num certo sentido uma causa natural ndash e nesse sentido eacute verdadeiro dizer que os homens afortunados o satildeo por natureza Natureza poreacutem que natildeo deve ser entendida no sentido dos fiacutesicos eacute a boa ou maacute natureza o bom ou mau nascimento que eacute um dom dos deuses natildeo para recompensar nossos meacuteritos ou para complementaacute-los mas o dom inicial constitutivo de nosso quinhatildeo que natildeo eacute pois uma consequumlecircncia mas a fonte de nossos meacuteritos ou demeacuteritos (2008 p 119)
Portanto o acaso enquanto boa fortuna parece tanto um presente de Deus
por constituir o quinhatildeo inicial quanto uma causa natural pois os afortunados o satildeo
por natureza (EE VII 14 1247b28)23
Contudo Aubenque (2008) deixa em aberto uma seacuterie de questionamentos a
essas possiacuteveis soluccedilotildees o que nos parece liacutecito uma vez que para nosso objetivo
basta compreender as consequecircncias da boa fortuna no campo da razatildeo praacutetica
Vejamos a exposiccedilatildeo 22
eutuxia 23
Natildeo obstante a essa aparente soluccedilatildeo Pierre Aubenque (2008) natildeo a daacute por resolvida o que percebemos eacute uma questatildeo que tende agrave teologia provavelmente pretende uma soluccedilatildeo no acircmbito de outra obra
28
Mas a concepccedilatildeo de acaso sugerida pelo texto natildeo eacute nem tatildeo clara nem tatildeo isenta de dificuldades como poderia parecer agrave primeira vista Pois jaacute apresenta ao lado da noccedilatildeo religiosa de acaso ndash Forccedila oculta que a tudo dirige ndash uma outra concepccedilatildeo que liga o acaso natildeo mais a transcendecircncia insondaacutevel da divindade mas agraves falhas de sua accedilatildeo Vimos nesses textos que o acaso eacute oposto agrave natureza como excepcional ao uniforme Um pouco mais longe Aristoacuteteles esclarece que o acontecimento casual eacute aquele que certamente deriva das causas embora indefinidas e indeterminadas (apeirwn kai aoristwn) ou seja
do gecircnero de causas do qual natildeo pode haver ciecircncia Sem duacutevida o sentido geral do texto permite entender que Aristoacuteteles toma facilmente o partido da impossibilidade de uma ciecircncia do acaso visto haver algo superior agrave ciecircncia que eacute Deus (AUBENQUE 2008 p 126)
As conclusotildees que se seguem satildeo consequecircncia desta O sentido eacute o de
que o acaso eacute aparente pois seria Deus o primeiro motor Assim o sendo natildeo haacute
que se falar em deliberaccedilatildeo uma vez que a inteligecircncia Divina jaacute a teria previamente
realizado A denominaccedilatildeo ldquoacasordquo eacute funccedilatildeo de nossa ignoracircncia agrave Causa das
causas ou seja Deus
A consequecircncia que estrai Aristoacuteteles eacute que os homens afortunados natildeo devem sua fortuna agrave sua inteligecircncia nem mais particularmente agrave sua capacidade de deliberaccedilatildeo ldquopara qualquer lado que se lanccedilam triunfam sem reflexatildeo (alogoi ontej) deliberar natildeo lhes serve para nada pois
tem neles um princiacutepio que eacute melhor que o intelecto e a deliberaccedilatildeo enquanto os outros tecircm apenas raciociacutenio os afortunados natildeo o tem mas satildeo habitados pelo deusrdquo
24 (AUBENQUE 2008 p 121)
Assim para os afortunados o exerciacutecio das virtudes eacute inuacutetil uma vez que jaacute
possuem os bens necessaacuterios para alcanccedilarem a felicidade Ao contraacuterio dos
afortunados tal exerciacutecio eacute para os virtuosos o caminho alternativo para se
alcanccedilar aquilo que natildeo receberam da natureza ou da Providecircncia Divina
232 Segunda concepccedilatildeo de acaso Acidente
Na Fiacutesica eacute apresentada uma teoria da causalidade que atinge tanto os
seres dotados de escolha quanto os seres natildeo dotados Pierre Aubenque (2008)
24
EE VII 14 1248a29-33
29
explica que o acaso natildeo eacute o encontro de duas seacuteries causais mas o encontro de
uma seacuterie causal real dotada de uma certa finalidade com uma finalidade
imaginaacuteria de modo que tal encontro poderia ser retrospectivamente reconstruiacutedo a
partir do resultado
O exemplo extraiacutedo da Fiacutesica25 eacute de um homem que ao ir ao mercado
encontra-se por acaso com um algueacutem que o deve os fatos se desenrolam como
se o motivo de tal homem estar ali fosse cobrar a diacutevida quando de fato o motivo
era outro Essa interpretaccedilatildeo do acaso agora parece evidente vejamos
[] este motivo o uacutenico real eacute pois causa por acidente de um efeito que natildeo era visado como tal o ressarcimento da diacutevida Como se vecirc uma tal concepccedilatildeo do acaso natildeo introduz nenhuma falha no encadeamento causal o acaso apenas acrescenta uma intenccedilatildeo a qual sendo imaginaacuteria de fato natildeo acrescenta nem suprime nada agrave realidade do processo natural O acaso nesse sentido eacute uma ilusatildeo retrospectiva a projeccedilatildeo de uma finalidade humana sobre uma relaccedilatildeo causal que eacute por si mesma inteiramente estranha a esta finalidade (AUBENQUE 2008 p 126)
Essa noccedilatildeo que segundo AUBENQUE (2008) soa como determinista
recebe mais adiante um desenvolvimento mais apurado O acaso eacute concebido natildeo
como causa mas sim como efeito Desta forma o acaso enquanto encontro de uma
seacuterie causal e de um fim natildeo perseguido aparece como fato excepcional e sem
causas ao menos determinaacuteveis pois suas causas sendo causas acidentais satildeo
indeterminaacuteveis ldquoa causa por si mesma eacute determinada a causa por acidente eacute
indeterminada pois a pletora de acidentes possiacuteveis de uma coisa eacute infinitardquo (Fiacutes II
5 196b27-29)26 ldquoO acaso natildeo aparece senatildeo num mundo onde o acidente ndash ou
seja o que adveacutem sumbanei a uma coisa ndash natildeo se deixa reduzir agrave essecircncia um
mundo onde nada eacute dedutiacutevel onde a infinidade de acidentes possiacuteveis de uma
coisa tornam imprevisiacuteveis as combinaccedilotildees que daiacute podem resultarrdquo (AUBENQUE
2008 p 127)
Portanto a noccedilatildeo de acaso apresentada na Fiacutesica diferencia-se da boa
fortuna apresentada na Eacutetica a Eudemo pois enquanto a boa fortuna refere-se ao
25
Fiacutes II 5 196b 33-197a5 26
Fiacutes II 5 196b27-29
30
bom nascimento o acidente na Fiacutesica refere-se a incontaacuteveis possibilidades que nos
impedem de antever os possiacuteveis resultados
233 Terceira concepccedilatildeo de acaso contingecircncia
Diferente das duas concepccedilotildees anteriores a exposiccedilatildeo da Indeterminaccedilatildeo
objetiva ou contingecircncia passa a ter um cunho teoloacutegico-antropoloacutegico Parece que
a visatildeo da Eacutetica a Nicocircmaco sobre o acaso estaacute mais direcionada ao traacutegico
Pierre Aubenque (2008 p 127-28) inicia fazendo um interessante paralelo
entre o Saacutebio e o Prudente procurando entre esses aquele que poderaacute atingir a
felicidade A conclusatildeo como eacute de se esperar27 indica o prudente como aquele que
poderaacute um dia ser chamado feliz
Contudo o referido autor natildeo negligencia as aparentes objeccedilotildees ateacute mesmo
porque Aristoacuteteles natildeo as negligenciou Muito pelo contraacuterio ainda que de forma
bem tiacutemida Aristoacuteteles fez breve passagem expondo a grandeza da vida
contemplativa
A argumentaccedilatildeo apresentada por comentadores28 pode ser resumida da
seguinte forma Se o que o homem tem de mais proacuteximo a Deus eacute o intelecto entatildeo
Deus quer bem os saacutebios portanto os saacutebios satildeo felizes Nesse sentido a noccedilatildeo
temporal de felicidade inexiste pois basta o exerciacutecio das faculdades intelectivas
para alcanccedilar o estado de felicidade (AUBENQUE 2008)
A objeccedilatildeo apresentada por Pierre Aubenque (2008 p128) eacute clara De
acordo com ele eacute nesse ponto que Aristoacuteteles se afasta de toda a tradiccedilatildeo socraacutetica
pois no pensamento aristoteacutelico a virtude ainda que natildeo suficiente eacute condiccedilatildeo
necessaacuteria da felicidade
Ainda de acordo com essa objeccedilatildeo estaacute que a definiccedilatildeo de felicidade eacute
composta pela virtude e pelos bens exteriores e bens do corpo Por oacutebvio esses
dois uacuteltimos bens ldquonatildeo podem ser adquiridos pelo exerciacutecio ou meacuterito eles
dependem da boa fortunardquo (AUBENQUE 2008 p 129)
27
Afinal este eacute o tema desta dissertaccedilatildeo 28
Comentadores citados por AUBENQUE (2008) ZELLER Die Philosophie der Griechen II 2 1921 4ordf DIRLMEIER F Magna Moralia 1958
31
Destarte o primeiro desses bens a virtude natildeo pode ser compreendida sem
ter por referencial a contingecircncia Pois como jaacute exposto para ser feliz eacute preciso ser
virtuoso para ser virtuoso eacute preciso ter condiccedilotildees externas para exercitar as
virtudes
[] inicialmente porque a virtude necessita de uma mateacuteria para se exercer e como vimos de um ldquomundordquo ou seja necessita de condiccedilotildees que natildeo dependem de noacutes como amigos dinheiro um certo poder poliacutetico e tambeacutem de ocasiotildees as quais natildeo se oferecem a todos (Heacutercules teve a oportunidade de encontrar o leatildeo de Nemeacuteia e a hidra de Lerna Mas num segundo sentido natildeo pode haver felicidade completa sem a plenitude da vida (bioj teleioj) o que supotildee sem
duacutevida uma duraccedilatildeo optima mas tambeacutem a integridade do corpo e a prosperidade de nossos empreendimentos o que os gregos resumem em uma palavra eupraia (AUBENQUE 2008 p129)
Para encerrar a questatildeo entre o saacutebio e o prudente eacute exposta uma seacuterie de
argumentos que pretendem demonstrar a fragilidade dos argumentos socraacuteticos por
exemplo que enquanto Deus basta a si mesmo o homem precisa ter amigos ou
que o saacutebio necessita do oacutecio Enfim tantas satildeo as condiccedilotildees externas que natildeo
parece o saacutebio poder ser tatildeo autaacuterquico quanto pretende a visatildeo socraacutetica para ser
feliz
Mas a concepccedilatildeo perseguida em A Prudecircncia em Aristoacuteteles eacute a do fracasso
da Providecircncia Divina Isso quer dizer que a ldquovirtude depende do mundo tanto
quanto de suas condiccedilotildees de existecircncia e este mundo natildeo depende de noacutes Eis o
virtuoso de Aristoacuteteles e mesmo o contemplativo ndash os quais satildeo menos duas
personagens distintas do que a mesma personagem em niacuteveis diferentes de
excelecircnciardquo (AUBENQUE 2008 p 135) ambos condicionados agrave heteronomia e agrave
relaccedilatildeo de ldquoacasordquo Haacute algo de traacutegico na vida moral decorrente da uniatildeo entre a
felicidade e a virtude que natildeo eacute por assim dizer analiacutetica como acreditavam os
socraacuteticos mas sempre sinteacutetica porque depende numa proporccedilatildeo irredutiacutevel do
acasordquo (AUBENQUE 2008 p 135)
[] o ideal de Aristoacuteteles natildeo pode consistir numa assimilaccedilatildeo ao mundo em seu conjunto visto que este soacute eacute racional em suas partes superiores mas somente na imitaccedilatildeo da ordem que nelas reina O conhecimento dessa ordem que natildeo pode ser procurado na fiacutesica como para os estoacuteicos mas na teologia eacute o que Aristoacuteteles nomeia sabedoria Mas a
32
vida segundo a sabedoria natildeo eacute imediatamente acessiacutevel ao homem por uma ascese interior pois ela depende tambeacutem em suas condiccedilotildees de realizaccedilatildeo das circunstacircncias exteriores as quais natildeo satildeo nem na aparecircncia nem profundamente inteiramente racionais O reino da sabedoria exige pois um domiacutenio preacutevio das circunstacircncias domiacutenio que natildeo pode ser adquirido senatildeo por uma accedilatildeo teacutecnica sobre o mundo Se para os estoacuteicos a indiferenccedila em relaccedilatildeo agraves circunstacircncias se justificaraacute em uacuteltima anaacutelise pela crenccedila na Providecircncia e na convicccedilatildeo correlata de que todo real eacute racional o homem de Aristoacuteteles natildeo saberaacute fingir indiferenccedila a respeito de um mundo cuja indeterminaccedilatildeo eacute a forma propriamente aristoteacutelica do mal Poreacutem aqui se opera uma inversatildeo que forneceraacute o domiacutenio e no sentido mais forte do termo a ldquochancerdquo da accedilatildeo moral se a contingecircncia eacute a fonte do mal ela torna possiacutevel as iniciativas humanas em vista do bem a indeterminaccedilatildeo signo da impotecircncia da razatildeo universal eacute ao mesmo tempo abertura agrave accedilatildeo racional do homem [] O homem de Aristoacuteteles natildeo pode se tornar indiferente agraves circunstacircncias mas lhe eacute permitido na medida em que satildeo moldaacuteveis para moldaacute-las humanamente e se natildeo eacute convidado a mudar antes seus desejos do que a ordem do mundo eacute porque Aristoacuteteles conta com o desejo racional para terminar de ordenar o mundo tomando o lugar de uma Providecircncia faliacutevel (2008 p143-145 negrito nosso)
Dessa forma natildeo depende dos homens apenas moldar seus proacuteprios
desejos mas tambeacutem o mundo por ser somente ordenado de modo geral Dessa
forma a contingecircncia eacute o mal e o remeacutedio de acordo com o desejo29 do homem Eacute
nesse sentido que devemos abordar um tema que eacute corrente entre os
comentadores30 de Aristoacuteteles a trageacutedia
2331 Trageacutedia31
O elemento traacutegico heranccedila da mais alta literatura e ao mesmo tempo do
conhecimento popular do homem grego estaacute presente na obra do Estagirita Eacute
nesse sentido que os traccedilos mais marcantes de sua filosofia estatildeo inflados com a
nossa fraacutegil condiccedilatildeo humana
29
Sobre ldquodesejordquo eacute interessante notar que eacute a fonte do movimento e tambeacutem da escolha racional Para tanto consulte De Anima e a Eacutetica a Nicocircmaco 30
Sobre ldquotrageacutediardquo Vide AUBENQUE (2008) LOPES (2007) NUSSBAUM (2009) Martha Nussbaum (2009) faz uma detalhada exposiccedilatildeo acerca do elemento traacutegico Mocircnica Sette Lopes (2007 p 51) expotildee igualmente sobre o gecircnero literaacuterio ldquoA poesia traacutegica assemelha-se a uma escultura maleaacutevel e dinacircmica que visa agrave educaccedilatildeo da alma humana pelo exemplordquo Aqui optamos pelos aspectos expostos por Pierre Aubenque uma vez que esta em concordacircncia com sua exposiccedilatildeo sobre a contingecircncia 31
Vide item 44 Deliberaccedilatildeo e Escolha
33
O que parece ser o centro de toda sua eacutetica a felicidade estaacute mediada por
uma seacuterie de condiccedilotildees que natildeo depende de noacutes conforme jaacute citamos ldquoHaacute algo de
traacutegico na vida moral [] mas sempre sinteacutetica porque depende numa proporccedilatildeo
irredutiacutevel do acasordquo (AUBENQUE 2008 p 135)
O traacutegico eacute apresentado por Aristoacuteteles com um sentido mais humanizado
que divinizado ao contraacuterio de uma trageacutedia onde os heroacuteis satildeo imortalizados por
seus feitos o Estagirita apresenta um homem que faz o melhor que pode vejamos
Se esse traccedilo natildeo surpreendeu os comentadores eacute porque o traacutegico tem em Aristoacuteteles um aspecto residual de modo que se pocircde ver nele a sobrevivecircncia de uma prudecircncia popular ndash nada aleacutem do que natildeo ser preciso desafiar os deuses proclamando em alto e bom som a autarquia e a ldquoimortalidaderdquo do homem ndash da qual Aristoacuteteles natildeo teria inteiramente se libertado ou simplesmente uma concessatildeo puramente formal a esta mentalidade [] Em Aristoacuteteles o traacutegico eacute residual poreacutem em sentido ontoloacutegico no sentido de uma distacircncia sempre estreitaacutevel mas insuprimiacutevel que separa o homem da felicidade ou mesmo separa a felicidade do homem tout court e faz com que os homens possam ser felizes mas ldquocomo os homens podem secirc-lordquo (AUBENQUE 2008 p 136)
Dessa forma a accedilatildeo humana estaacute numa aacuterea entre o melhor possiacutevel e o
bem absoluto sendo o ponto final de nossa busca o modelo inacessiacutevel ou
superlativo absoluto
Eacute dentro dessa fronteira onde falha a Providecircncia e o traacutegico mostra um
homem que age e age o melhor possiacutevel dentro de suas possibilidades que
podemos compreender os contornos que liga a contingecircncia agrave eacutetica aristoteacutelica
Portanto Pierre Aubenque (2008 p 110-112) esclarece acerca da atuaccedilatildeo
da prudecircncia no campo da contingecircncia que agir e produzir satildeo de alguma forma
se inserir na ordem do mundo para modifica-lo eacute supor que este mundo que
oferece tal latitude comporta certo jogo certa indeterminaccedilatildeo certo inacabamento
Tanto o objeto da accedilatildeo (a prudecircncia) quanto o da produccedilatildeo (a arte) pertencem pois
ao domiacutenio daquilo que pode ser diferente Ora se a disposiccedilatildeo para produzir
acompanhada de regra chama-se arte a disposiccedilatildeo para agir acompanhada de
regra chama-se prudecircncia Por isso a accedilatildeo imanente agrave praacutexis tem menos por objeto
a natureza do que suas falhas ou inacabamentos Esta indeterminaccedilatildeo eacute
34
precisamente o que permite a Aristoacuteteles classificar os processos naturais no
domiacutenio da contingecircncia
Se for pois o homem prudente aquele que estaacute apto agrave accedilatildeo moral a
decisatildeo correta e portanto ao elo que pode ligar o conhecimento geral ao
particular32 tentaremos entendecirc-lo por sua virtude a Prudecircncia Antes poreacutem para
podermos compreender tal virtude bem como na sequecircncia seu conceito de justiccedila
e de equidade devemos fazer uma passagem pela teoria geral das virtudes
32
Essa distacircncia seraacute mais bem abordada em momento oportuno ndash quando tratarmos de prudecircncia e de equidade Aubenque reporta esse assunto em sua obra O problema do ser em Aristoacuteteles (2012 p 63)
35
3 EacuteTICA DAS VIRTUDES
No quarto capiacutetulo de seus Escritos de filosofia II Henrique C de Lima Vaz
faz uma interessante abordagem acerca da eacutetica A ilustraccedilatildeo eacute dada pelo proacuteprio
tiacutetulo Do ethos agrave sociedade Poliacutetica A gecircnese do direito
A proposta do referido capiacutetulo eacute demonstrar que o direito surge com a
relaccedilatildeo eacutetica que soacute pode ser vivenciada na poacutelis ldquoO aparecimento e
desenvolvimento da sociedade poliacutetica caminham em estreita inter-relaccedilatildeo com a
formaccedilatildeo da ciecircncia do ethosrdquo (VAZ 2000 p135) Assim podemos dizer que o
estudo da eacutetica surge e se desenvolve com o surgimento e desenvolvimento da
poacutelis
Neste sentido a lei aparece revelando ter como funccedilotildees educar o indiviacuteduo
agrave vida na cidade ao mesmo tempo em que repara os conflitos onde as virtudes natildeo
satildeo observadas33
A matriz conceptual eacute representada pela ideacuteia de lei (noacutemos) que deve permitir o estabelecimento de uma proporccedilatildeo ou correspondecircncia (analogiacutea) entre a lei ou medida (meacutetron) interior que rege a praxis do indiviacuteduo e a lei da cidade que eacute propriamente o noacutemos e deve assegurar a participaccedilatildeo equumlitativa (eunomiacutea) dos indiviacuteduos no bem que eacute comum a todos e que eacute primeiramente o proacuteprio viver-em-comum De um lado a explicitaccedilatildeo da racionalidade imanente do ethos se constitui como teoria da praxis individual e assume a forma de uma doutrina da virtude (areteacute) ou da Eacutetica no sentido estrito O ethos eacute entatildeo conceptualizado fundamentalmente como haacutebito (hexis) De outro a razatildeo do ethos iraacute exprimir-se na forma de uma teoria do existir e do agir em comum e se apresentaraacute como doutrina da lei justa (politeia) O ethos eacute entatildeo conceptualizado fundamentalmente como costume A ciecircncia da politeia ou a Poliacutetica eacute assim a outra face da Eacutetica (VAZ 2000
p135)
Portanto a eacutetica pretende orientar as relaccedilotildees humanas ordenando as
accedilotildees para o bem comum
33
Voltaremos a falar sobre o assunto quando tratarmos da Justiccedila como Virtude
36
[] as virtudes natildeo encontram seu lugar na vida do indiviacuteduo mas tambeacutem na vida da cidade e que o indiviacuteduo soacute eacute de fato inteligiacutevel como um politikon zocircon
Esse uacuteltimo comentaacuterio sugere que um modo de elucidar o relacionamento entre as virtudes e a moralidade das leis eacute pensar no que consistiria em qualquer eacutepoca fundar uma comunidade para realizar um projeto comum realizar algum bem reconhecido como bem comum por todos os participantes do projeto (MACINTYRE 2001 p 256-257)
Estabelecida a relaccedilatildeo entre a eacutetica e o direito devemos agora procurar os
fundamentos da eacutetica aristoteacutelica para entatildeo verificarmos o comportamento das
virtudes da Prudecircncia da Justiccedila e da Equidade no acircmbito da justiccedila aristoteacutelica
31 Eacutetica a Nicocircmaco
Na forma que comporta o tiacutetulo deste item passaremos a tratar algumas
questotildees pertinentes ao conteuacutedo da obra Eacutetica a Nicocircmaco a fim de contextualizar
o objeto deste trabalho
Os principais escritos de Aristoacuteteles sobre eacutetica que chegaram a noacutes satildeo
Eacutetica a Nicocircmaco Eacutetica a Eudemo e a Eacutetica Maior esta uacuteltima tambeacutem conhecida
como Magna Moraacutelia Os escritos sobre eacutetica em especial a Eacutetica a Nicocircmaco e a
Eacutetica a Eudemo comportam caracteriacutesticas de notas tomadas por disciacutepulos tendo
por base os ensinamentos passados pelo Estagirita (RUSSELL 2001 p 109)
Por ser uma obra mais amplamente aceita tomaremos a Eacutetica a Nicocircmaco
como principal referecircncia aristoteacutelica para a Eacutetica das Virtudes sem contudo
ignorar algum detalhe que possa elucidar aspectos pertinentes agrave nossa pretensatildeo e
presente nas outras duas obras citadas Nesse sentido comenta Eduardo Bittar
A Ethica Nicomachea recebeu amplo tratamento devido ao interesse que desperta dos modernos comentadores da obra o mesmo natildeo sucede com as duas outras obras dedicadas agrave temaacutetica Aliaacutes a trilogia natildeo parece gerar uniformidade no corpo dos eruditos pois a recepccedilatildeo de uma (EE ou MM) ou de ambas (EE e MM) natildeo tem sido paciacutefica questionando-se natildeo soacute acerca da pertinecircncia e da originalidade destas obras mas tambeacutem acerca da cumulaccedilatildeo tautoloacutegica de escritos para o tratamento de um mesmo problema o que seria assimeacutetrico na obra aristoteacutelica onde parece ser a regra a existecircncia de uma uacutenica obra para
37
a investigaccedilatildeo de uma problemaacutetica determinada (BITTAR 2003 p992)
A Eacutetica a Nicocircmaco inicia-se traccedilando questionamentos acerca do que seja
o bem Parte-se da ideia de que o indiviacuteduo suas accedilotildees e escolhas estatildeo voltadas
a um bem Este bem eacute aquilo a que todas as coisas possuem certa tendecircncia
Assim o fim de todas as accedilotildees humanas eacute o sumo bem (EN I 1 1094a) O
conhecimento deste fim conduz agrave determinaccedilatildeo da ciecircncia cujo bem supremo eacute o
objeto
Essa ciecircncia cujo estudo caberaacute agrave Eacutetica eacute a ciecircncia mestra isto eacute a
Poliacutetica As accedilotildees por si mesmas boas e justas podem admitir uma ampla variedade
de opiniotildees e neste sentido podem ter sua existecircncia devida agraves convenccedilotildees e natildeo
naturalmente Daiacute portanto constituem objeto da poliacutetica Assim visa-se a accedilatildeo do
bem mas o seu conhecimento natildeo eacute proveitoso a todos Agravequeles que desejam e
agem conforme um princiacutepio racional isso seraacute uacutetil por outro lado natildeo teraacute utilidade
para o jovem sem experiecircncias dos fatos da vida o qual segue tatildeo somente suas
paixotildees (ENI 3 1095a)
Essa interessante passagem revela ser o objeto das deliberaccedilotildees da poacutelis
temas como o ldquobomrdquo e o ldquojustordquo Aristoacuteteles natildeo ignora o fato de que o bom e o justo
admitem uma gama de opiniotildees por isso tais temas estatildeo na pauta das
convenccedilotildees
Aristoacuteteles argumenta que o sumo bem o bem perseguido por todos natildeo
pode ser o prazer a honra ou a riqueza Sobre o prazer argumenta que natildeo pode
se identificar com o sumo bem pois o prazer e o gozo satildeo proacuteprios agrave vida levada
pelos animais inferiores34
34
Interessante nota do tradutor quando Aristoacuteteles justifica a conduta de tais pessoas por se
espelhares em pessoas de alta posiccedilatildeo como Sardanaacutepalo De acordo com a nota de nuacutemero 08 ldquoSardanaacutepalo monarca assiacuterio sem consistecircncia histoacuterica de caraacuteter miacutetico O sofista tardio Ateneu de Naucraacutetis (circa 215 AD) atriui uma espeacutecie de maacutexima a Sardanaacutepalo que eacute esthie pine paize os talla touumltouuml ouumlk axia touuml apokrotematos (esthie pine paize os talla touumltouuml ouumlk axia touuml
apokrotematos) ou seja ldquoCome bebe diverte-te visto que tudo o mais natildeo vale um estalo dos dedosrdquo lhe atribui tambeacutem um trecho de um desabafo que assim finaliza kein ekho oss efagon kai efuumlbrisa kai met eroacutetos terpn epathon ta de polla kai olbia panta leluumltaiefagon kai efuumlbrisa kai met eroacutetos terpn epathon ta de polla kai olbia panta leluumltai) quer dizer ldquoeu tenho o que comi e ainda os voluptuosos atos de ultraje e amor carnal que realizei e experimentei ao passo que minha riqueza se foirdquo (BINI 2009 p 42)
38
Ora se todo o conhecimento e todo o trabalho visam a algum bem pode-se
afirmar que o fim seraacute a felicidade (RUSSELL 2001 p127) ndash objeto final da vida
fruto de atividade conforme a mais alta de todas as formas de excelecircncia (EN X 7
1177a)
Destarte faz-se necessaacuterio buscar o bem e conhecer o que ele eacute pois a
finalidade para tudo que se faz eacute o bem A vida ativa que possui um princiacutepio
racional eacute a melhor funccedilatildeo do homem Os bens satildeo as atividades da alma e
portanto parece que a felicidade se identifica com a virtude Por conseguinte agrave
virtude cabe a atividade virtuosa Entretanto o sumo bem estaacute em ato uma vez que
pode haver um estado de acircnimo sem gerar resultado positivo
[] pois pode existir o estado de espiacuterito sem que ele produza qualquer
resultado bom como no caso de uma pessoa adormecida ou inativa por
outra razatildeo mas natildeo pode ocorrer o mesmo com a atividade conforme agrave
excelecircncia de qualquer maneira ela se manifestaraacute e bem Da mesma
forma que nos jogos oliacutempicos os coroados natildeo satildeo os homens mais
fortes e belos e sim os que competem (alguns destes seratildeo os
vitoriosos) quem age conquista e justamente as coisas boas da vida
(EN I 8 1099a)
De acordo com Aristoacuteteles a mais apraziacutevel melhor e mais nobre coisa do
mundo eacute a felicidade pois a felicidade eacute uma atividade da alma de acordo com a
virtude e natildeo sendo necessariamente esta mesma felicidade a riqueza prazer ou
honra e outros mais Constata-se assim que estes bens exteriores satildeo necessaacuterios
agrave felicidade uma vez que natildeo se podem realizar atos nobres sem os meios (EN I
8 1099b)
Questiona-se se a felicidade eacute adquirida atraveacutes da aprendizagem do
haacutebito ou se eacute uma daacutediva da Providecircncia Divina ou eacute simples produto do acaso35
Sendo a felicidade a melhor coisa do mundo entatildeo seguramente seraacute uma daacutediva
divina ainda que resulte da virtude pela aprendizagem ou adestramento Portanto
natildeo se deve confiar ao simples acaso aquilo que eacute o melhor (EN I 9 1099b)
Esse ponto sem duacutevida eacute o convite agrave accedilatildeo humana e a admissatildeo do que
denominamos fracasso da Providecircncia Uma vez que ao homem em sua condiccedilatildeo
35
Voltaremos a este ponto quando tratarmos das virtudes morais e intelectuais
39
de mortal e natildeo-Deus natildeo eacute permitido se dar ao luxo de esperar uma soluccedilatildeo vinda
dos ceacuteus Pelo contraacuterio o melhor emprego que ele pode fazer eacute agir modificando e
adaptando seus desejos e possibilidades
Sobre as virtudes afirma o Filoacutesofo que existem as virtudes intelectuais as
que resultam do ensino e necessitam de experiecircncia e tempo e as virtudes morais
as quais satildeo adquiridas atraveacutes do haacutebito e pelo exerciacutecio como neste exemplo
[] os homens se tornam construtores construindo e se tornam citaristas tocando ciacutetara da mesma forma tornamo-os justos praticando atos justos moderados agindo moderadamente e corajosos agindo corajosamente (EN II 1103b1)
Portanto eacute atraveacutes da praacutetica reiterada que pode o homem moldar seu
caraacuteter sendo o homem virtuoso resultado de uma vida guiada pela reta razatildeo
32 Partes da Alma
Como exposto eacute ldquoo bem a finalidade de todas as coisasrdquo (EN I 1 1094a1)
sendo a felicidade o bem maior a ser alcanccedilado Nesse sentido podemos afirmar
que a accedilatildeo eacute uma ldquocerta atividade da alma em conformidade com a virtude perfeitardquo
(EN I 13 1102a5)
Aristoacuteteles divide a alma em partes de acordo com as atividades inerentes a
cada uma A primeira divisatildeo comporta duas partes sendo uma irracional e outra
dotada de razatildeo
No que se refere agrave psicologia algum ensino corrente em discursos externos eacute satisfatoacuterio e pode ser aqui adotado a saber que a alma eacute bipartida uma parte sendo irracional e a outra capacitada de razatildeo (Se essas duas partes satildeo realmente distintas no sentido que o satildeo as partes do corpo ou de qualquer outro conjunto divisiacutevel ou se embora distinguiacuteveis no pensamento como duas satildeo na realidade inseparaacuteveis como os lados convexo e cocircncavo de uma curva eacute uma questatildeo que carece de importacircncia para o assunto em pauta) (EN I 13 1102a27)
40
A segunda divisatildeo refere-se agrave parte irracional da alma Tal parte comporta a
funccedilatildeo vegetativa comum a todas as coisas vivas que diz respeito agrave nutriccedilatildeo e ao
crescimento e agrave funccedilatildeo sensitiva Sobre a parte vegetativa eacute interessante notar que
natildeo obstante ser comum a todos os seres vivos sua virtude natildeo eacute caracteriacutestica
dos seres humanos Vejamos
Considera-se ademais que na parte irracional da alma haacute uma divisatildeo que parece ser comum a todas as coisas vivas possuindo natureza vegetativa Refiro-me agrave divisatildeo que produz nutriccedilatildeo e crescimento pois eacute forccediloso supormos que uma faculdade vital dessa natureza existe em todas as coisas que assimilam alimento inclusive os embriotildees sendo que a mesma faculdade estaacute presente tambeacutem no organismo totalmente desenvolvido (o que eacute mais razoaacutevel do que supor uma faculdade nutritiva distinta no uacuteltimo) A virtude dessa faculdade parece portanto ser comum a todas as coisas animadas e natildeo caracteriacutestica do ser humano pois acredita-se que essa faculdade ou parte da alma eacute mais atuante durante o sono [enquanto a bondade e a maldade se manifestam minimamente durante o sono] natildeo podendo se distinguir um homem bom de um mau (e daiacute o adaacutegio segundo o qual durante metade de suas vidas natildeo haacute diferenccedila entre o feliz e o infeliz) Isso constitui um efeito natural do fato de o sono ser uma cessaccedilatildeo das atividades da alma das quais depende sua bondade ou maldade ndash exceto pelo fato de ser possiacutevel em algum modesto grau certas impressotildees sensoriais atingirem a alma durante o sono fazendo com que os sonhos dos bons sejam melhores do que aqueles dos homens comuns (EN I 13 1102b11)
Aristoacuteteles afirma que a parte relacionada aos apetites e desejos em geral ndash
a alma sensitiva ndash comum aos animais participa de algum modo do princiacutepio
racional Portanto ainda que tal parte esteja alojada na parte irracional ela manteacutem
em certa medida relaccedilotildees com o princiacutepio racional ldquoPois aprovamos a razatildeo do
indiviacuteduo continente tanto quanto o incontinente e a parte de suas almas que eacute
racional porque os induz na senda correta e os exorta para o curso mais excelenterdquo
(EN I 13 1102b15)
Sobre essa relaccedilatildeo da parte irracional da alma com o princiacutepio racional
Aristoacuteteles afirma que ldquonatildeo se pode duvidar de que tambeacutem na alma existe um
elemento distinto do princiacutepio [racional] que a ele se opotildee e lhe resisterdquo (EN I 13
1102b20-25) Para resolver essa aparente contradiccedilatildeo Aristoacuteteles mantecircm sua
teacutecnica de citar exemplos invocando aqui o exemplo do homem continente
argumentando no sentido do paraacutegrafo supra que ldquoesse segundo elemento como
mencionamos participa do princiacutepio racional Ao menos no homem continente ele
41
acata o comando do princiacutepio e eacute incontestaacutevel que no homem moderado e
corajoso ele eacute ainda mais submisso considerando-se que todas as artes da
natureza desse [tipo de] homem se harmonizam com o princiacutepiordquo (EN I 13
1102b25-30)
Destarte parece ser o princiacutepio racional capaz em alguma medida de
acessar essa parte irracional ldquo[] esse princiacutepio racional eacute capaz de algum modo
de recorrer agrave parte irracional eacute indicado por nossa praacutetica de advertir pelo emprego
que fazemos da censura e da exortaccedilatildeo em geralrdquo (EN I 13 1102b30)
Tal parte eacute responsaacutevel pelo movimento36 essa conclusatildeo eacute desdobrada no
De Anima
Ao menos o seguinte estaacute claro desde de que tenhamos a imaginaccedilatildeo na conta de uma espeacutecie de intelecccedilatildeo haacute duas fontes do movimento local nomeadamente o desejo e o intelecto [] A conclusatildeo eacute que estes dois satildeo fontes do movimento local o intelecto e o desejo entendendo eu aqui o intelecto que calcula ou raciocina em vista de um objetivo isto eacute o intelecto praacutetico o qual difere do intelecto teoacuterico (especulativo) em funccedilatildeo do caraacuteter de seu fim Por sua vez o desejo constantemente persegue um objetivo sendo que o proacuteprio objeto do desejo torna-se princiacutepio do intelecto praacutetico e o ponto final do processo de raciocinar constitui o ponto de partida da accedilatildeo (DA III 10 433a10-20)
Dessa forma tanto a parte irracional quanto a alma como um todo eacute dupla
Sendo que sua parte vegetativa natildeo toma parte do princiacutepio racional a outra
poreacutem que compreende os apetites e o desejo em geral participa de certo modo
do princiacutepio racional sendo obediente e submissa a ele que eacute o sentido que
emprestamos ao acatamento do ldquoracionalrdquo quando falamos em dar atenccedilatildeo ao
proacuteprio pai ou aos proacuteprios amigos e natildeo aquele que atribuiacutemos ao ldquoracionalrdquo nas
matemaacuteticas (EN I 13 1102b30)
Ora a virtude tambeacutem eacute diferenciada em consonacircncia com essa divisatildeo da alma Algumas formas de virtude satildeo chamadas de virtudes intelectuais e outras de virtudes morais A sabedoria e o entendimento e a prudecircncia satildeo virtudes intelectuais a generosidade e a temperanccedila satildeo virtudes morais Ao descrevermos o caraacuteter moral de algueacutem natildeo
36
Vide o item 22 Movimento da potecircncia para o ato
42
dizemos que se trata de algueacutem saacutebio ou capaz de entendimento mas que eacute uma pessoa moderada ou soacutebria Mas um homem saacutebio tambeacutem eacute louvado por sua disposiccedilatildeo e chamamos de virtudes as disposiccedilotildees dignas de louvor (EN I 13 1103a5)
Aristoacuteteles apresenta a parte racional da alma como dotada de duas
faculdades a faculdade cientiacutefica e a faculdade calculadora (EN VI 1 1139a15)
A primeira parte eacute dita ldquocientiacuteficardquo (epistemonikoacuten) enquanto a segunda ldquocalculadorardquo (logistikoacuten) Eacute evidente que na primeira entram todas as ciecircncias teoreacuteticas seja a matemaacutetica cujos objetos satildeo necessaacuterios seja a fiacutesica e a metafiacutesica cujos objetos tecircm ao menos princiacutepios necessaacuterios mas nela entram tambeacutem as ciecircncias praacuteticas ndash cujos objetos isto eacute os bens tecircm princiacutepios como vimos ao menos ldquogeralmenterdquo necessaacuterios ndash que portanto do ponto de vista epistemoloacutegico satildeo equiparaacuteveis agravequelas que tecircm princiacutepios necessaacuterios Na segunda entram ao contraacuterio todas as atividades que tecircm por objeto realidades independentes da ldquodeliberaccedilatildeordquo humana porque ndash diz Aristoacuteteles ndash deliberar e calcular satildeo a mesma coisa e ningueacutem delibera sobre as coisas que natildeo podem ser diferentemente (BERTI 1998 p 144)
Sobre essa divisatildeo explica Giovanni Reale
E posto que sejam duas as partes ou funccedilotildees da alma racional uma a que conhece as coisas contingentes e variaacuteveis e outra que conhece as coisas necessaacuterias e imutaacuteveis eacute natural que haja uma perfeiccedilatildeo ou virtude da primeira funccedilatildeo e uma perfeiccedilatildeo ou virtude da segunda funccedilatildeo da alma racional Estas duas partes da alma racional satildeo basicamente a razatildeo praacutetica e a razatildeo teoreacutetica e as respectivas virtudes satildeo as formas perfeitas com as quais se apreende a verdade praacutetica e a teoreacutetica (REALE 1985 p 106 traduccedilatildeo nossa)
37
Conforme vimos existe uma relaccedilatildeo entre a parte racional e a parte
irracional A parte apetitiva da alma irracional tem certa subordinaccedilatildeo agrave parte
37
Y puesto que son dos las partes o funciones del alma racional una la que conoce las cosas contingentes y variables la otra la que conoce las cosas necesarias e inmutables es natural que haya una perfeccioacuten o virtud de la primera funcioacuten y una perfeccioacuten o virtud de la segunda funcioacuten del alma racional Estas dos partes del alma racional son baacutesicamente la razoacuten praacutectica y la razoacuten teoreacutetica y las respectivas ldquovirtudesrdquo son las formas perfectas con las que se aprehende la verdad praacutectica y la teoreacutetica (REALE 1985 p 106 traduccedilatildeo nossa)
43
racional De acordo com o Estagirita eacute a faculdade calculadora que controla os
desejos proacuteprios da parte apetitiva vejamos
A virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo que diz respeito agrave escolha e escolha eacute desejo deliberado conclui-se que se a escolha deve ser boa tanto a razatildeo precisa ser verdadeira quanto o desejo correto e que o desejo tem que buscar as mesmas coisas afirmadas pela razatildeo Estamos nos referindo aqui ao raciociacutenio praacutetico e ao atingimento da verdade relativamente agrave accedilatildeo no que tange ao pensamento especulativo que natildeo concerne agrave accedilatildeo ou produccedilatildeo a funccedilatildeo certa e errada consiste na consecuccedilatildeo da verdade e falsidade respectivamente O atingir da verdade eacute efetivamente a funccedilatildeo de toda parte do intelecto mas a da inteligecircncia praacutetica eacute o atingimento da verdade correspondente ao correto desejo (EN VI 2 1139a25 negrito nosso)
Compreendidas as partes da alma na forma pertinente agrave eacutetica aristoteacutelica
torna-se necessaacuterio o estudo das virtudes em conformidade com tais partes
33 Virtudes Morais
O livro II da Eacutetica a Nicocircmaco faz uma exposiccedilatildeo geral acerca das virtudes
morais Essas virtudes pertencem ao acircmbito da parte irracional da alma mais
especificamente na parte dos desejos e apetites
De acordo com o Estagirita ldquoa virtude moral ou eacutetica eacute o produto do haacutebito
[] E portanto fica evidente que nenhuma das virtudes morais eacute em noacutes
engendrada pela natureza uma vez que nenhuma propriedade natural eacute passiacutevel de
ser alterada pelo haacutebitordquo (EN II 1 1103a15)
Em seu Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Tomaacutes de Aquino esclarece que
Em contraste a virtude eacute gerada pelo costume moral A Virtude moral estaacute na parte apetitiva portanto eacute uma inclinaccedilatildeo para algo apetitivo Esta inclinaccedilatildeo ou eacute por natureza que volta para o que estaacute em conformidade ou eacute pelo haacutebito que se volta para a natureza Assim o nome Virtude moral eacute retirado do haacutebitual com poucas alteraccedilotildees Porque escrever em grego ethos com uma letra e breve designa o caraacuteter ou virtude moral Mas ythos escrito com a letra g que eacute como
44
uma larga h que significa costume Como tambeacutem entre noacutes a palavra moral as vezes significa costumes e as vezes designa o que pertence ao viacutecio ou a virtude (AQUINO 2010 p130 traduccedilatildeo nossa)
38
Aristoacuteteles compara por analogia as virtudes morais com as artes por
ambas serem adquiridas pela reiteraccedilatildeo dos atos que lhes satildeo proacuteprios Admite a
impossibilidade de prescrever com exatidatildeo tais atos contudo descreve uma
foacutermula que pretende direcionar os atos no acircmbito das virtudes Tal foacutermula consiste
em agir de acordo com a justa razatildeo39
Dessa forma o muacutesico se torna bom muacutesico executando reiteradamente
sua(s) especialidade(s) musical (ais) assim como os homens se tornam justos
praticando atos de justos e corajosos realizando atos corajosos
Nessa altura do livro II Aristoacuteteles revela uma das funccedilotildees da lei educar
Vejamos suas palavras ldquo[] legisladores tornam os cidadatildeos bons treinando-os em
haacutebitos de accedilatildeo correta o que eacute a meta de toda a legislaccedilatildeo que se falhar no seu
atingimento seraacute um fracasso [tarefa] no que se distingue a boa constituiccedilatildeo da
maacuterdquo (EN II 1 1103b1-5)
Mas no que consistiria essa boa educaccedilatildeo A resposta dada eacute gostar e natildeo
gostar das coisas apropriadas Assim eacute desenvolvida a teoria geral das virtudes ou
doutrina da mediania pois assim como acontece no que diz respeito agrave sauacutede
acontece com as virtudes ambas satildeo afetadas pelo excesso e pela deficiecircncia
Uma indicaccedilatildeo de nossas disposiccedilotildees eacute fornecida pelo prazer ou pela dor que acompanha nossas accedilotildees []
Na verdade a virtude moral concerne a prazeres e dores pois o prazer nos leva a realizar as accedilotildees vis e a dor nos leva a deixar de realizar accedilotildees nobres []
Ademais se as virtudes tecircm a ver com accedilotildees e paixotildees e toda paixatildeo e toda accedilatildeo satildeo acompanhadas por prazer e dor isso constitui uma demonstraccedilatildeo adicional de que a virtude diz respeito ao prazer e agrave dor[]
38
En cambio la virtude se genera por la costumbre moral La virtud moral estaacute en la parte apetitiva por eso supone cierta inclinacioacuten a algo apetecible Esta inclinacioacuten o es por naturaleza la cual inclina a lo que le es conforme o es por la costumbre que se vuelca hacia la naturaleza Por eso el nombre de la virtude moral estaacute tomado de la costumbre con poco cambio Porque em grego ethos escrito com a letra e breve designa el caraacutecter o virtude moral Pero ythos escrito com la g que es
como uma N larga significa costumbre como tambieacuten entre nosotros la palabra moral a veces significa costumbre y a veces designa lo que pertenece al vicio o a la virtud (AQUINO 2010 p130) 39
Conforme formulaccedilatildeo tomista recta ratio agibilium
45
Mas os seres humanos se corrompem atraveacutes de prazeres e dores a saber quer perseguindo e evitando os prazeres e dores equiacutevocos quer os perseguindo e evitando no momento equiacutevoco ou da maneira equiacutevoca ou em um dos meios equiacutevocos [] (EN II 3 1104b)
Destarte a virtude moral eacute a qualidade segundo a qual se age da ldquomelhor
formardquo40 em relaccedilatildeo aos prazeres e dores sendo o viacutecio o oposto As virtudes satildeo
definidas por Aristoacuteteles como ldquoa disposiccedilatildeo que o torna um bom ser humano e
tambeacutem o que o faraacute desempenhar sua funccedilatildeo bemrdquo (EN II 6 1106a22)
Nesse sentindo a virtude natildeo eacute nem uma paixatildeo nem uma faculdade mas
um estado de caraacuteter O que a torna distinta eacute o fato de consistir na disposiccedilatildeo de
escolher o meio-termo
331 Doutrina da Mediania
Os atos praticados pelos homens em suas muacuteltiplas relaccedilotildees eacute que os
tornam justos ou injustos Explica o Filoacutesofo41 que eacute necessaacuterio cultivar o haacutebito de
praticar atos virtuosos desde a juventude Nesse sentido
[] a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia e pelo excesso tal como vemos acontecer com o vigor e a sauacutede (temos de explicar o invisiacutevel recorrendo a evidencia do visiacutevel) os exerciacutecios excessivos ou deficientes destroem igualmente o vigor e de maneira idecircntica as bebidas e os alimentos de mais ou menos destroem a sauacutede ao passo que seu uso em proporccedilotildees adequadas produz aumenta e conserva aquele e esta (EN II 2 1104a)
Sendo a virtude mais exata do que toda e qualquer arte e por possuir como
atributo o meio-termo o excesso ou a falta podem ser-lhe destrutivos Tanto o
excesso quanto a carecircncia satildeo graves formas de erro Entretanto o meio-termo
mostra-se como uma forma digna de louvor fazendo da virtude uma mediania Mas
ressalte-se que se trata de meio termo entre dois viacutecios Contudo nem toda accedilatildeo e
40
Vide o item 2331 Trageacutedia 41
Como Aristoacuteteles era referenciado por Tomaacutes de Aquino
46
nem toda paixatildeo admitem meio termo eacute o que observa ROSS (1957 p 231)42
ldquoPorque a mediania eacute num certo sentido um extremo []rdquo (EN II 6 1107a25)
Portanto do excesso ou da falta natildeo existe meio termo
[] se a virtude como a natureza eacute mais exata e melhor do que qualquer forma de arte se concluiraacute que a virtude deteacutem a qualidade de visar a mediania Eu me refiro agrave virtude moral
43 pois esta concerne agraves
paixotildees e accedilotildees nas quais se pode dispor de excesso ou deficiecircncia ou da devida mediania Por exemplo algueacutem pode estar receoso ou confiante sentir desejo ira ou compaixatildeo e experimentar prazer e dor em geral seja em excesso ou deficientemente e em ambos os casos indevidamente ao passo que experimentar esses sentimentos na ocasiatildeo certa oportunamente em relaccedilatildeo agraves pessoas certas para o propoacutesito certo e da maneira certa corresponde a sentir a medida melhor deles a qual eacute a quantidade meacutedia sendo que a melhor medida ou quantidade eacute evidentemente a marca da virtude Analogamente pode haver excesso deficiecircncia e a devida mediania nas accedilotildees (EN II 6 1106b20)
A virtude eacute entatildeo uma disposiccedilatildeo estabelecida que leva agrave escolha de accedilotildees
e paixotildees e que consiste essencialmente na observacircncia da mediania relativa a noacutes
sendo isso determinado pela razatildeo isto eacute como o homem prudente o determina
(EN II 6 1107a) As conclusotildees do Livro II apontam o quatildeo eacute difiacutecil atingir o meio-
termo uma vez que o mesmo natildeo eacute apreendido pelo raciociacutenio e sim pela
percepccedilatildeo Ele aponta trecircs regras como orientaccedilatildeo
A primeira regra eacute evitar o extremo que mais se opotildee agrave mediania Para natildeo
abandonar o estilo o Estagirita cita o conselho de Calipso personagem de a
Odisseacuteia ldquoPilota o navio o mantendo longe do borrifo e das vagasrdquo E continua
explicando ldquoPois dos dois extremos um deles constitui erro mais grave do que o
outro Por conseguinte porquanto atingir a mediania eacute extremamente difiacutecil a
42 Aristoteles luego nos previene contra un equivoco posible senalando queentre los sentimientos y
las acciones que se pueden nombrar no todos admiten un justo medio los nombres mismos de algunos de ellos tales como la desverguenza la envidia el adulterio el robo el asesinato implican su maldad Es decir que estos nombres no se aplican a los sentimientos moralmente indiferentes que son asunto de la virtud sino a un exceso vituperable de estos sentimientos no a las acciones que se relacionan con cierta clase de objeto sino a las acciones inicuas que se relacionan con este objeto La desverguenza es una incorrecta falta de verguenza el robo es un incorrecto exceso en la adquisicion de la riqueza El justo medio se opone al exceso y al defecto y por consecuencia no hay justo medio del exceso o del defecto como no existe exceso o defecto del justo medio (ROSS 1957 p 231)
43
Nota do tradutor de nuacutemero 48 Ou seja a teoria da mediania natildeo eacute aplicaacutevel agraves virtudes intelectuais (BINI 2009 p 77)
47
segunda melhor forma de navegar como indica o proveacuterbio eacute assumir o menor dos
males e a melhor maneira de fazecirc-lo seraacute a maneira que descrevemosrdquo (EN II 9
1109a30)
A segunda regra valendo-se do exemplo do carpinteiro em seu meacutetodo para
endireitar a madeira empenada consiste em observar os erros a que estamos mais
propensos de acordo com quais prazeres e dores experimentamos De posse de tal
observaccedilatildeo devemo-nos afastar do erro costumeiro estabelecendo assim um curso
mediano (EN II 9 1109b1)
Por fim o terceiro exemplo invocando Helena personagem de a Iliacuteada de
Homero
ldquo[] temos que em tudo que estar mais do que qualquer outra coisa de guarda contra o que eacute prazeroso e contra o prazer porque quando este estaacute em julgamento natildeo somos juiacutezes imparciais O procedimento correto eacute portanto encarar o prazer como os anciotildees do povo encaravam Helena e empregar (ou repetir) o discurso que dirigiram a ela em todas as ocasiotildees pois se assim o descartarmos teremos menos probabilidade de nos extraviar (EN II 9 1109b1)
Portanto podemos chamar de accedilatildeo virtuosa aquela que eacute direcionada pela
mediania que se projeta na melhor quantidade medida ocasiatildeo oportunidade e em
relaccedilatildeo agraves pessoas certas O acircmbito da accedilatildeo comporta uma biparticcedilatildeo que deve ser
considerada em se tratando de virtude a saber accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria
34 Accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria
Embora a virtude esteja relacionada com paixotildees e accedilotildees um sentimento ou
uma accedilatildeo pode ser algo voluntaacuterio ou involuntaacuterio Louvor e censura agraves paixotildees e
accedilotildees voluntaacuterias e perdatildeo e piedade agraves involuntaacuterias (EN III 1 1109b30)
Para Aristoacuteteles voluntaacuterio eacute o ato de escolher Mas eacute preciso fazer certas
ressalvas neste sentido Ora o que se pratica sob o impulso do momento pode ser
voluntaacuterio mas natildeo escolhido pois a escolha natildeo eacute comum aos seres irracionais
Escolher envolve um princiacutepio racional bem como o pensamento O objeto da
48
escolha apresenta-se ao alcance e o mesmo eacute desejado apoacutes uma deliberaccedilatildeo
Assim escolha eacute um desejo deliberado (EN III 1112a - 1113a) O fim eacute aquilo que
se deseja jaacute o meio eacute aquilo que eacute deliberado e escolhido e assim as accedilotildees devem
concordar com as escolhas e estas devem ser voluntaacuterias Com isso afirma o
Estagirita que a virtude estaacute ao poder de escolha do homem porque o exerciacutecio da
virtude diz respeito aos meios Aquilo cujo motor estaacute no agente que possui
conhecimento das circunstacircncias particulares do ato parece ser o que eacute voluntaacuterio
Involuntaacuterio segundo Aristoacuteteles eacute o que acontece sob compulsatildeo e
ignoracircncia em que o princiacutepio motor encontra-se externo ao indiviacuteduo e para o que
em nada contribui ou influi o indiviacuteduo que age ou sente a paixatildeo (EN III 1111b)
Assim atos encontram-se no homem e devem estar em seu poder e serem
voluntaacuterios Atraveacutes do exerciacutecio de atividades sobre os objetos particulares formam-
se as disposiccedilotildees de caraacuteter
[] um homem doente natildeo ficaraacute bom desta maneira embora possa acontecer que sua doenccedila seja voluntaacuteria no sentido de ser o resultado de sua vida de dissipaccedilatildeo e de sua desobediecircncia aos meacutedicos Neste caso de iniacutecio teria dependido dele natildeo ficar doente mas natildeo agora que ele desperdiccedilou sua oportunidade da mesma forma que depois de atirar uma pedra natildeo eacute possiacutevel fazecirc-la voltar atraacutes natildeo obstante a pessoa que atirou a pedra eacute responsaacutevel por havecirc-la apanhado e lanccedilado pois a origem do ato estava nesta pessoa (EN III 5 1114a)
Constata-se vaacuterias vezes a afirmaccedilatildeo da responsabilidade do homem diante
de suas accedilotildees Eacute importante observarmos assim como Pierre Aubenque (2008) o
fez que o homem natildeo eacute responsaacutevel por sua vontade mas por suas escolhas de
acordo com Aubenque (2008 p 222) ldquoNa perspectiva de Aristoacuteteles e dos gregos
a vontade natildeo eacute responsaacutevel pelo mal Ao contraacuterio o mal eacute o responsaacutevel pela maacute
qualidade da vontade [] Pois um homem nunca quer o mal enquanto tal pode
querer mal o bem e querendo o bem em geral escolher cada vez mais o menor
bemrdquo
49
Duas pressuposiccedilotildees fundamentam como princiacutepio da responsabilidade A
realidade eacute contingente44 e depende do indiviacuteduo que age Para que uma accedilatildeo seja
considerada virtuosa devem estar presentes estas duas exigecircncias uma vez que
[] onde estaacute ao nosso alcance agir tambeacutem estaacute ano nosso alcance
natildeo agir e onde somos capazes de dizer ldquonatildeordquo tambeacutem somos capazes
de dizer ldquosimrdquo consequumlentemente se agir quando agir eacute nobilitante
estaacute ao nosso alcance natildeo agir que seraacute ignoacutebil tambeacutem estaraacute ao
nosso alcance Se estaacute ao nosso alcance entatildeo praticar atos
nobilitantes ou ignoacutebeis e se isto era o que significava ser bom ou mau
estaacute igualmente ao nosso alcance ser moralmente excelentes ou
deficientes (EN III 5 1113b)
Para Aristoacuteteles o caraacuteter eacute resultado dos atos humanos conforme
argumenta a Eacutetica a Nicocircmaco Assim agindo desta ou daquela maneira adquire-se
uma ou outra disposiccedilatildeo eacutetica A realizaccedilatildeo de coisas justas resultaraacute em bons
haacutebitos e tornaraacute o caraacuteter justo (EN II 4 1105b) Ao agir de modo intemperante
adquire o haacutebito de ceder tatildeo somente aos desejos que conduz agrave intemperanccedila O
caraacuteter eacute assim o produto dos atos de seu autor e natildeo algo advindo da educaccedilatildeo
da condiccedilatildeo social ou da natureza
Assim os viacutecios e as virtudes possuem significado moral e natildeo satildeo somente
traccedilos psicoloacutegicos adquiridos Isto se daacute uma vez que pertencem ao campo daquilo
que depende do homem Ao agir o ser humano natildeo faz algo ao qual teraacute que
responder mais tarde como tambeacutem estaacute escolhendo o que seraacute Por isso ao agir
contra a regra que conhece estaacute consentindo em se tornar cego agrave lei e em natildeo
saber mais onde estaacute o bem Neste sentido a lei pune com maior severidade o
intemperante por ele deliberar em vista de um fim mau mesmo que possua a
capacidade de deliberar para o fim beniacutefico A ignoracircncia da regra pelo adulto
acresce a culpabilidade quando eacute produto de uma vida intemperante (EN III 5
1114a)
[] somente uma pessoa totalmente insensata poderia deixar de perceber que as disposiccedilotildees de nosso caraacuteter satildeo o resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injusto ou um homem que age
44
Veja o segundo capiacutetulo Contingecircncia
50
concupiscentimente natildeo deseje ser concupiscente Mas se uma pessoa pratica accedilotildees que a torna injusta sem ser ignorante ela seraacute injusta voluntariamente Disto natildeo resulta poreacutem que se ela quiser deixaraacute de
ser injusta e passaraacute a ser justa da mesma forma (EN III 5 1114a)
Ao abordar a responsabilidade humana Aristoacuteteles destaca que as
disposiccedilotildees satildeo voluntaacuterias de modos distintos
[] as accedilotildees e disposiccedilotildees natildeo satildeo voluntaacuterias de maneira idecircntica pois somos senhores de nossas accedilotildees do principio ao fim se conhecemos os fatos particulares mas embora tenhamos o controle da fase inicial de nossas disposiccedilotildees a evoluccedilatildeo de cada estaacutegio das mesmas natildeo eacute perceptiacutevel tal como acontece nas doenccedilas mas jaacute que a maneira de agir dependia de noacutes as disposiccedilotildees morais satildeo voluntaacuterias (EN III 5 1114a30)
O ato depende do ser humano em sua inteligibilidade porque o ser humano
possui um domiacutenio sobre as consequecircncias diretas do mesmo Por outro lado o ser
humano natildeo pode antecipar todas as consequecircncias advindas indiretamente dos
haacutebitos que ele assume O caraacuteter eacute imputaacutevel ao ser humano uma vez que agindo
ele tambeacutem estaacute forjando os seus haacutebitos
Embora o ser humano seja senhor de seus atos a cada instante ele natildeo
pode modificar o seu caraacuteter quando bem quer sendo que isso equivaleria a dizer
que o ser humano natildeo tem caraacuteter Assim apoacutes certo tempo o caraacuteter parece que
ficou tatildeo marcado que se torna impossiacutevel transformaacute-lo Resulta entatildeo o problema
da perfectibilidade do caraacuteter (EN III 5 1114a)
Ora cada ser humano eacute autor de seus atos enquanto eacute agente o que se
determina a um fim Sendo a escolha intencional dirigida pelo caraacuteter pode-se
afirmar que o ser o homem eacute causa de seus atos enquanto agente que consente
Assim de fato natildeo eacute o seu caraacuteter o determinante de sua decisatildeo (EN III 4 1113a)
Para Aristoacuteteles o caraacuteter comeccedila sua formaccedilatildeo durante a infacircncia Segundo
ele o jovem age para formar o seu caraacuteter enquanto que o adulto age a partir de seu
caraacuteter tendo a intenccedilatildeo de ser feliz Entretanto como os fins visados dependem do
caraacuteter as decisotildees do adulto apresentam-se como determinadas pelo seu
condicionamento educativo o qual ocorreu na infacircncia
51
O Estagirita afirma que o caraacuteter do jovem o qual eacute formado a partir dos
haacutebitos e da educaccedilatildeo que recebe ainda natildeo eacute nem vicioso e nem virtuoso Pode-
se prefigurar a virtude futura pelo amor ao belo pela justiccedila do gosto ou a nobreza
das paixotildees Tanto a virtude quanto o viacutecio somente se desenvolvem atraveacutes dos
atos dos quais somente o adulto eacute capaz uma vez que se realizam notadamente no
acircmbito da vida ciacutevica e militar A entrada na vida adulta quando satildeo tomadas as
primeiras decisotildees eacute quando se realizam os primeiros atos verdadeiros Natildeo se
pode negar entatildeo a influecircncia do caraacuteter adquirido pela educaccedilatildeo Assim o homem
comeccedila ao entrar na vida adulta a realizar alguma coisa que propotildee e visa fins ou
seja ele se torna o verdadeiro autor de seus atos e eacute responsaacutevel por aquilo que faz
e por aquilo que eacute Nesse momento eacute pela docilidade ou pela rebeliatildeo que o jovem
adquire boas ou maacutes disposiccedilotildees diante das paixotildees Por outro lado o adulto
adquire viacutecio ou virtude ou seja um caraacuteter moral atraveacutes de suas decisotildees
Assim com o passar do tempo um haacutebito tende a se repetir isto eacute ele
amplifica o que se comeccedilou melhorando sempre mais ou dirigindo-se cada vez mais
agrave decadecircncia Para o homem se tornar bom a exigecircncia eacutetica estaria reservada
agravequeles que tivessem comeccedilado bem aos demais soacute seria possiacutevel constatar seus
viacutecios e incoerecircncias Desta forma pode-se concluir que a eacutetica aristoteacutelica estaria
reservada somente a uns eleitos bem educados e aos outros ela condenaria a um
encadeamento fatiacutedico resultado de uma maacute educaccedilatildeo e consequente praacutetica
reiterada de viacutecios
Tendo revisitado as virtudes pertinentes agrave parte irracional da alma
passaremos a estudar as virtudes pertinentes agrave parte racional da alma que satildeo as
virtudes intelectuais
35 Virtudes Intelectuais
As virtudes como vimos satildeo de dois tipos a intelectual e a moral As
virtudes intelectuais satildeo majoritariamente tanto produzidas quanto ampliadas pela
instruccedilatildeo o que por certo exige experiecircncia e tempo (EN II 1 1103a15) As
virtudes intelectuais satildeo o objeto do livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco
52
Ao abordar tais virtudes Aristoacuteteles reapresenta a foacutermula da reta razatildeo ldquoJaacute
vimos que eacute certo escolher a mediania e evitar o excesso e a deficiecircncia e que a
mediania eacute fixada pela justa razatildeordquo (EN 1138b20)
Toda via estando algueacutem de posse dessa verdade isso natildeo o tornaraacute mais saacutebio do que antes queremos dizer por exemplo que tal pessoa natildeo saberaacute que medicamentos tomar pelo mero fato de lhe terem dito para tomar tudo que a arte a medicina ou um doutor em medicina lhe indicar Consequentemente no que toca agraves qualidades da alma igualmente natildeo bastaraacute meramente estabelecer a verdade da foacutermula acima Teremos aleacutem disso que definir com exatidatildeo qual eacute a justa razatildeo e qual eacute o padratildeo que a determina (EN 1138b20)
Aristoacuteteles define as partes da alma atribuindo agrave parte racional duas
faculdades a saber a faculdade cientiacutefica e a faculdade calculadora Enquanto o
objeto da faculdade cientiacutefica eacute aquele que se ocupa em especular as coisas cujos
primeiros princiacutepios satildeo invariaacuteveis a faculdade calculadora tem por objeto as
coisas que admitem variaccedilatildeo A definiccedilatildeo de caacutelculo eacute dada por Aristoacuteteles ldquoeacute o
mesmo que deliberaccedilatildeo e esta jamais eacute exercida sobre coisas invariaacuteveis
[entendemos] que a parte calculadora constitui uma parte independente da metade
irracional da alma (EN VI 1 1139a15)
Destaca trecircs elementos existentes na alma que controlam a accedilatildeo e o
atingimento da verdade a sensaccedilatildeo o intelecto e o desejo A sensaccedilatildeo natildeo gera
accedilatildeo pois a accedilatildeo eacute proacutepria ao homem enquanto a sensaccedilatildeo estaacute presente tanto na
alma do homem quanto na alma do animal Assim os movimentos dos animais satildeo
gerados pelos estiacutemulos sensoriais enquanto os movimentos proacuteprios ao homem a
praacutexis satildeo uma accedilatildeo guiada pelo intelecto e pelo desejo45
O pensamento especulativo desenvolvido pela faculdade cientiacutefica natildeo diz
respeito agrave accedilatildeo e ou agrave produccedilatildeo Ele se ocupa em elaborar juiacutezos de verdadeiro ou
falso
45
Conforme jaacute salientamos no capiacutetulo 2 O Movimento
53
Por outro lado o raciociacutenio praacutetico46 diz respeito ao que devemos buscar e
evitar no sentido de orientar as virtudes morais Eacute a partir dele que realizamos as
escolas entendendo por escolha o desejo deliberado (BERTI 1998 p 117)
Por conseguinte a escolha pode ser qualificada como o pensamento
relacionado ao desejo ou o desejo relacionado ao pensamento e o ser humano
como gerador da accedilatildeo eacute uma uniatildeo de desejo e intelecto (EN 1139b5)
46
Sobre razatildeo praacutetica vide LACERDA (2005)
54
4 PRUDEcircNCIA
41 Conceito
Aristoacuteteles na passagem 1140b do Livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco define a
prudecircncia como uma capacidade verdadeira e racional de agir sobre as coisas que
satildeo boas ou maacutes para o homem
De acordo com Enrico Berti a phroacutenesis ldquopara Aristoacuteteles eacute uma virtude ou
melhor a mais elevada virtude da parte calculadora da alma racional isto eacute a razatildeo
praacutetica Ela com efeito eacute por ele concebida como a capacidade de deliberar bem
ou seja de calcular os meios necessaacuterios para alcanccedilar um fim bomrdquo (BERTI 1998
p 146)
Por sua vez Tomaacutes de Aquino discorre sobre a prudecircncia na parte II-II
questotildees 47 a 56 em sua obra de referecircncia a Suma Teoloacutegica Tomaacutes eacute haacutebil na
leitura aristoteacutelica da prudecircncia e pode-se encontrar em sua obra uma foacutermula
sinteacutetica do que ele entende por prudecircncia reta razatildeo aplicada ao agir47 Portanto eacute
com fundamento em questotildees de razatildeo praacutetica que Tomaacutes define a prudecircncia ldquoE
este eacute o papel da prudecircncia aplicar os princiacutepios universais agraves conclusotildees
particulares do acircmbito do agir E assim natildeo compete agrave prudecircncia indicar o fim das
virtudes morais mas somente lidar com os meios para atingir o fimrdquo (II-II 476
negrito nosso)
Pierre Aubenque (2008) sonda pormenorizadamente os vaacuterios aspectos
apresentados pelo Estagirita do que seria a prudecircncia e de sua leitura agraves obras de
Aristoacuteteles extraiacutemos
[] a definiccedilatildeo dada por Aristoacuteteles no livro VI da Eacutetica Nicomaqueacuteia apresenta um caraacuteter demasiado elaborado ou se se prefere demasiado teacutecnico para poder conhecer a mesma fortuna Ali a prudecircncia eacute definida como uma ldquodisposiccedilatildeo praacutetica acompanhada de regra verdadeira concernente ao que eacute bom ou mau para o homemrdquo Conforme ao meacutetodo familiar a Aristoacuteteles essa definiccedilatildeo eacute apresentada como resultado de um processo ao mesmo tempo indutivo e regressivo Parte-se do uso comum constata-se que eacute chamado phronimos o
homem capaz de deliberaccedilatildeo (AUBENQUE 2008 p 60-61)
47 recta ratio agibilium
55
Ainda nessa direccedilatildeo Aubenque (2008) a distingue das outras virtudes em
particular das virtudes morais
[] enquanto a virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo (praacutetica) que concerne agrave
escolha ) a prudecircncia eacute uma disposiccedilatildeo praacutetica que
concerne agrave regra da escolha Natildeo se trata da retidatildeo da accedilatildeo mas da correccedilatildeo do criteacuterio razatildeo pela qual a prudecircncia eacute uma disposiccedilatildeo praacutetica acompanhada de uma regra verdadeira (AUBENQUE 2008 p61)
Alasdair Macintyre (2001) discorre sobre a prudecircncia como sendo a virtude
intelectual sem a qual natildeo se pode exercer nenhuma virtude de caraacuteter48
A virtude principal eacute portanto phronecircsis Phronecircsis assim como socircphrosunecirc eacute originariamente um termo aristocraacutetico de louvor Caracteriza algueacutem que sabe o que lhe eacute devido que se orgulha de reivindicar seus direitos Significa de maneira mais geneacuterica algueacutem que sabe como julgar em casos especiacuteficos Phronecircsis eacute a virtude intelectual mas eacute a virtude intelectual sem a qual natildeo se pode exercer nenhuma das virtudes de caraacuteter (MACINTYRE 2001 p15)
Javier Hervada (2008) em sua obra Liccedilotildees propedecircuticas de filosofia do
direito destaca o caraacuteter praacutetico e a inclinaccedilatildeo que a prudecircncia tem para com o
direito salientando suas caracteriacutesticas claacutessicas
A prudecircncia eacute de fato uma virtude intelectual ou dianoeacutetica a virtude do correto agir moral o que estaacute relacionado com a justiccedila que tambeacutem eacute virtude moral Isso salienta que a atividade juriacutedica depende de duas virtudes que satildeo a base do ofiacutecio de jurista a justiccedila e a prudecircncia (HERVADA 2008 p 58)
48
A interpretaccedilatildeo de MacIntyre sobre a singularidade da prudecircncia parece-nos extraiacuteda tanto de Tomaacutes quando se refere a ela como matildee das virtudes (III Sent d 33 q 2 a 5 c) quanto de Aristoacuteteles que nos ensina em sua Eacutetica a Nicocircmaco ldquoA prudecircncia proporciona todas as virtudes Ela fornece os meios de produzi-lasrdquo (VI 1145a)
56
Pierre Aubenque (2008) parece desembaraccedilar de forma haacutebil o que seria a
prudecircncia despindo dos textos de Aristoacuteteles a compreensatildeo de uma das questotildees
mais iacutentimas da filosofia grega e eacute nesse sentido que ele desenvolve sua conclusatildeo
O Estagirita encontraria aiacute a velha inquietude grega diante da imprevisibilidade do futuro e a precariedade das coisas humanas Se ele foi moderno isso se deve ao fato de natildeo ter querido dominar o acaso com preces Se a accedilatildeo sobre o acaso natildeo podia ser cientificamente determinada ndash visto que ldquodo acaso natildeo haacute ciecircnciardquo ndash natildeo seria tampouco improvisada e sem princiacutepios Natildeo retornaremos agrave soluccedilatildeo que ele deu a este problema e nomeou prudecircncia (AUBENQUE 2008 p 278)
A adoccedilatildeo do traacutegico em face ao fracasso da Providecircncia ou em outras
palavras uma vez que o futuro eacute indeterminado a escolha entre dois males faz-se
procurando o menor entre eles A accedilatildeo nesse sentido compreendendo natildeo poder
alcanccedilar o bem em absoluto o faz da melhor maneira que pode
42 Prudecircncia e liberdade
De acordo com Aubenque (2008 p 149) a liberdade do homem natildeo estaacute
ligada agrave contingecircncia muito pelo contraacuterio se opotildee a ela A metaacutefora da casa
trazida no livro da Metafiacutesica retrata uma situaccedilatildeo onde o universo eacute comparado a
uma casa onde os homens livres representam os astros porque ldquolhes eacute menos liacutecito
agir ao acasordquo tendo suas accedilotildees orientadas por regras enquanto ldquoos escravos e os
animaisrdquo cujas ldquoaccedilotildees satildeo raramente ordenadas ao bem comum mas ao contraacuterio
satildeo frequentemente abandonadas ao acasordquo representam o mundo sublunar Nessa
acepccedilatildeo os escravos eacute que satildeo ldquolivresrdquo no sentido moderno do termo porque natildeo
sabem o que fazem ldquoenquanto a liberdade do homem grego e sua perfeiccedilatildeo se
medem pela maior ou menor determinaccedilatildeo de suas accedilotildeesrdquo
A prudecircncia eacute o substituto propriamente humano de uma Providecircncia que falha [] A prudecircncia eacute tambeacutem a previdecircncia que preserva os indiviacuteduos dos perigos [] ela eacute tambeacutem virtude na medida em que realiza no mundo sublunar um pouco do Bem que a divindade foi impotente para introduzir aqui [] Mas se o mundo fosse inteiramente
57
perfeito natildeo restaria nada a fazer ora eacute no fazer ou agir e natildeo na imobilidade estranhamente comum agraves plantas e a Deus que o homem
realiza sua sua excelecircncia propriamente humana Saber nos desviaria do fazer dispensando-nos de escolher (AUBENQUE 2008 p 155)
A prudecircncia seraacute a virtude dos homens voltados agrave deliberaccedilatildeo num mundo
obscuro e difiacutecil cujo inacabamento eacute um convite ao que decerto eacute preciso nomear
como sua liberdade A prudecircncia diraacute a Magna Moralia eacute uma ldquodisposiccedilatildeo para
escolher e agir concernindo ao que estaacute em nosso poder fazer e natildeo fazerrdquo
(AUBENQUE 2008 p 155)
Por isso homens como Peacutericles satildeo julgados prudentes porque possuem uma faculdade de discernir que coisas satildeo boas para mesmos e para os seres humanos E eacute isso que coincide com nosso entendimento do que seja algueacutem conhecedor da administraccedilatildeo domeacutestica ou
49 administraccedilatildeo
poliacuteticardquo (EN VI 5 1140B10)
Santo Tomaacutes em seus Comentaacuterios agrave Eacutetica a Nicocircmaco conclui acerca da
prudecircncia ldquoDe que la prudecircncia no sea ciencia haacutebito demonstrativo acerca de lo
necesario y no sea arte haacutebito productivo con razoacuten se segue que la prudencia es
un haacutebito activo con razoacuten verdadera que no versa sobre lo producio que estaacute fuera
del hombre sino sobre el bien y el mal del hombre mesmordquo (AQUINO 2010 p 363-
364)50
43 Arte e Prudecircncia
Conforme explicado na definiccedilatildeo tomista enquanto a atividade proacutepria agrave arte
eacute a produccedilatildeo a atividade proacutepria agrave prudecircncia eacute a accedilatildeo
49
εἶναι δὲ τοιούτους ἡγούμεθα τοὺς οἰκονομικοὺς καὶ τοὺς πολιτικούς Algueacutem conhecedor da
administraccedilatildeo domeacutestica e poliacutetica [(EN VI 5 1140B10) texto original disponiacutevel no site PERSEUS DIGITAL LIBRARY traduccedilatildeo nossa] 50
De que a prudecircncia natildeo eacute ciecircncia que procura mostrar o que eacute necessaacuterio e tambeacutem natildeo eacute arte o haacutebito produtivo com o emprego da razatildeo segue que a prudecircncia eacute um habito segundo o qual se age com a razatildeo verdadeira que natildeo versa sobre o produto que estaacute fora de homem mas sobre o bem e o mal do proacuteprio homem (AQUINO 2010 p 363-364)
58
Destarte para o Estagirita a arte eacute o conhecimento teacutecnico de como fazer
as coisas Enquanto a prudecircncia eacute o conhecimento de como agir para assegurar os
fins da vida do ser humano Vejamos o texto de Aristoacuteteles
Toda arte se ocupa em trazer alguma coisa agrave existecircncia e dedicar-se a uma arte significa estudar como trazer ao existir uma coisa que eacute possiacutevel existir ou natildeo a causa eficiente da qual estando no criador e natildeo na coisa criada pois a arte natildeo se ocupa com coisas que existem ou passam a existir (vecircm a ser) necessariamente ou pela natureza uma vez que essas coisas possuem suas causas eficientes em si mesmas Mas como o criar e o fazer satildeo distintos infere-se que a arte sendo concernente ao criar natildeo concerne ao fazer E num certo sentido a arte se ocupa dos mesmos objetivos da sorte como diz Agaton A sorte eacute aficionada da arte e a arte da sorte (EN VI 4 1140a10-20)
Para Enrico Berti a arte
[] concerne a objetos que podem ser diferentemente do que satildeo ou seja contingentes por isso estaacute entre as virtudes da parte ldquocalculadorardquo da razatildeo a mesma que compreende a phroacutenesis A diferenccedila entre arte e phroacutenesis repousa no fato de que esta uacuteltima ocupa-se como vimos do que pode ser ldquopraticadordquo (to praktoacuten) das accedilotildees enquanto a arte se ocupa da produccedilatildeo de objetos A distinccedilatildeo entre ldquoaccedilatildeordquo (praacutexis) e ldquoproduccedilatildeordquo (poiacuteesis) eacute dada por Aristoacuteteles quase sempre por evidente e consiste no fato de que a accedilatildeo natildeo produz nenhum objeto diferente dela mesma isto eacute termina em si que eacute o produto (BERTI 1998 p 157)
Portanto a arte eacute como dissemos uma qualidade racional concernente ao
criar de acordo com um processo verdadeiro de raciociacutenio Em oposiccedilatildeo a lacuna
da arte eacute uma qualidade racional concernente ao criar que envolve um processo
falso de raciociacutenio Ambas lidam com aquilo que admite variaccedilatildeo (EN VI 4
1140a10-20)
44 Deliberaccedilatildeo e Escolha
Ao definir a accedilatildeo voluntaacuteria Aristoacuteteles diz que a escolha pertence ao seu
gecircnero mas que no entanto nem todo ato voluntaacuterio eacute escolhido O que ele
pretende com essa argumentaccedilatildeo e evidenciar a diferenccedila entre a escolha e a
deliberaccedilatildeo
59
Nesse sentido esclarece que a deliberaccedilatildeo eacute ldquo[] empregada em mateacuterias
que embora sujeitas a regras que geralmente satildeo para o bem satildeo incertas quanto
aos seus resultados e consequecircncias ou nas quais resultados e consequecircncias satildeo
indeterminados []rdquo (EN III 3 1112b10)
Aristoacuteteles em vaacuterias passagens insiste em indicar um ponto especiacutefico
acerca da deliberaccedilatildeo Segundo ele natildeo deliberamos a respeito dos fins mas a
respeito dos meios Daiacute a analogia ldquo[No exerciacutecio de uma arte] a questatildeo num
momento eacute saber quais ferramentas usar e num outro como usaacute-las similarmente
em outras esferas temos que considerar por vezes que meios empregar e outras
vezes como exatamente determinarmos os meios que devem ser empregadordquo (EN
III 3 1112b30) Dessa forma Aristoacuteteles afirma que o ser humano eacute princiacutepio-
fundamento de suas proacuteprias accedilotildees e que eacute proacutepria agrave deliberaccedilatildeo apontar as accedilotildees
possiacuteveis de serem realizadas pelo agente sendo que todas as accedilotildees tecircm em vista
algum fim que natildeo elas mesmas
Portanto natildeo se delibera sobre o que natildeo estaacute em nosso poder A
deliberaccedilatildeo estaacute condicionada ao que podemos Por isso mais uma vez afirmamos
que a accedilatildeo virtuosa dirige-se para o melhor possiacutevel Isso eacute esclarecido por Pierre
Aubenque (2008) quando aborda a trageacutedia grega
ldquoA trageacutedia grega natildeo dizia outra coisa e antes dela a poesia de Hesiacuteodo ou Teoacutenis Por mais que Aristoacuteteles tenha restringido o traacutegico natildeo o eliminou inteiramente eacute a distacircncia que separa oi polloi de
pantej o wj epi to polu de aei o melhor possiacutevel do bem absoluto[]rdquo
(2008 p 138)
Destarte de posse da deliberaccedilatildeo cujo objeto estaacute sob nosso poder poder-
se-aacute escolher Pois a escolha eacute o desejo deliberado de coisas em nosso poder
Aristoacuteteles (1113a13) estabelece a seguinte ordem ldquoprimeiramente deliberamos em
seguida selecionamos e finalmente fixamos nosso desejo de acordo com o
resultado de nossa deliberaccedilatildeordquo
Sobre a escolha Aristoacuteteles esclarece que ela natildeo eacute o mesmo que a
vontade pois enquanto a vontade visa o fim a escolha concerne aos meios Neste
60
sentido a escolha se opotildee agrave vontade afinal ao homem eacute permitido querer o bem
mas escolher o melhor possiacutevel51
Aristoacuteteles apresenta pela primeira vez o problema da dissonacircncia possiacutevel entre o fim e os meios e enfatiza ao mesmo tempo que a qualidade da accedilatildeo eacute medida natildeo somente pela retidatildeo da intenccedilatildeo (como acreditava Platatildeo) mas tambeacutem pela conveniecircncia dos meios (AUBENQUE 2008 p 218)
Uma outra importante observaccedilatildeo eacute feita por Aubenque (2008 p 227) Ele
encontra no texto de Aristoacuteteles duas foacutermulas comuns agrave prudecircncia A primeira eacute
esta que acabamos de descrever qual seja a capacidade de escolha judiciosa dos
meios
A segunda foacutermula eacute pertinente agrave capacidade de aplicar o universal ao
particular O que vemos eacute que o prudente deve ser capaz de operar com uma com
duas ou com ambas se eacute que eacute possiacutevel estabelecer fundada diferenccedila entre elas
que natildeo seja meramente teoacuterica
Natildeo haacute portanto nenhuma ldquocontradiccedilatildeordquo entre as duas descriccedilotildees da accedilatildeo dadas por Aristoacuteteles Pois uma vez reconhecido o particular se o universal a ele se aplica necessariamente eacute preciso inicialmente reconhecer o particular o que se deduz silogisticamente eacute a propriedade do particular de ser desejaacutevel mas natildeo a existecircncia do particular Natildeo eacute difiacutecil saber que eacute preciso ser corajoso nem decidir que o que foi reconhecido como corajoso dever ser cumprido Mas onde estaacute a coragem hic et nunc Eacute na bravata ou no sangue frio Na aventura ou na abstenccedilatildeo No combate sem esperanccedila ou na fuga que garante o futuro Eacute na infinita distacircncia entre os princiacutepios demasiado gerais e a variedade inacessiacutevel ao pensamento racional A distacircncia eacute igualmente infinita entre a eficaacutecia real do meio e a realizaccedilatildeo esperada do fim Eacute este infinito que Aristoacuteteles pede que a prudecircncia preencha por mediaccedilotildees laboriosas e incertas Mas esse infinito este aoristou que
afeta uma mateacuteria sempre mais ou menos reativa agrave determinaccedilatildeo e em geral um mundo que nunca acolhe inteiramente a ordem noacutes jaacute conhecemos o seu nome a contingecircncia (AUBENQUE 2008 p 228)
Antes de encerrar este assunto parece oportuno levantarmos uma questatildeo
que segue o acima exposto Pierre Aubenque (2008) na introduccedilatildeo ao capiacutetulo
intitulado Antropologia da prudecircncia nos fornece uma importante justificativa acerca
51
Sobre a responsabilidade pela accedilatildeo vide o item 35 Accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria
61
da ordem temaacutetica proposta no presente trabalho A questatildeo que pretendemos
levantar eacute por que tomamos como ponto de partida a contingecircncia
Mostramos ateacute aqui que a prudecircncia soacute teria razatildeo de ser num mundo contingente Ora se a encaramos natildeo mais de um ponto de vista coacutesmico mas humano a contingecircncia nos aparece como abertura agrave atividade dos homens ao mesmo tempo arriscada e eficaz Sem a contingecircncia a accedilatildeo dos homens natildeo seria apenas impossiacutevel seria tambeacutem inuacutetil Eacute tal accedilatildeo ao mesmo tempo permitida e requerida pela contingecircncia em suas relaccedilotildees com a prudecircncia que guia que se trata de analisar agora
Natildeo surpreenderaacute que encontremos aqui em termos ldquosubjetivosrdquo o que tentamos extrair acima em termos ldquoobjetivosrdquo A teoria da contingecircncia e a da accedilatildeo reta satildeo apenas o direito e o avesso de uma mesma doutrina eacute a indeterminaccedilatildeo dos futuros que faz do homem princiacutepio o inacabamento do mundo eacute o nascimento do homem (AUBENQUE 2008 p 173 negrito nosso)
Assim a deliberaccedilatildeo eacute pertinente agravequilo que podemos modificar Seja qual
for o meacutetodo adotado o problema a ser enfrentado eacute o mesmo as incontaacuteveis
possibilidades a que estamos submetidos sendo a escolha o ato intriacutenseco agrave
deliberaccedilatildeo o momento oportuno para escolher o melhor possiacutevel
De acordo com Hermann (2007) a prudecircncia proposta por Aristoacuteteles na
Eacutetica a Nicocircmaco eacute mais precisamente
[] a possibilidade de articular a relaccedilatildeo entre o universal e o particular ou ainda a aplicaccedilatildeo de princiacutepios gerais em casos particulares Inserindo no mundo o comportamento eacutetico interpotildee a individualidade de um eu entretecido em formas histoacutericas de vida com um ethos comum Assim o agir moral natildeo estaacute voltado para um bem transcendente mas realizado em accedilotildees concretas (HERMANN 2007 p 366)
Assim com o escopo de compreendermos melhor passaremos a analisar a
figura do prudente
45 O prudente
A virtude da prudecircncia eacute tratada no capiacutetulo 5 do livro VI da Eacutetica a
Nicocircmaco Aristoacuteteles para explicaacute-la toma emprestado exemplo de pessoas
62
consideradas prudentes De acordo com ele eacute caracteriacutestico do homem prudente
ser capaz de bem deliberar sobre o que eacute bom e proveitoso para si mesmo natildeo de
maneira particular mas sobre o que eacute bom e vantajoso para o bem-estar em geral
Assim o homem prudente em geral eacute aquele capaz de bem deliberar de modo
geral
Poderiacuteamos afirmar que o sistema moral de Aristoacuteteles estaacute centrado em
sua maior parte no indiviacuteduo Aleacutem dos dois livros VIII e IX que satildeo dedicados agrave
amizade pouco se diz sobre ela na totalidade da eacutetica Pouco se sugere que o ser
humano deve ter um interesse caloroso e pessoal pelas outras pessoas e o
altruiacutesmo parece-nos ausente Mesmo sobre a amizade encontram-se traccedilos de um
ponto de vista deveras egoiacutesta jaacute que a mesma natildeo constitui uma benevolecircncia
mas exige certa reciprocidade
Mas tais afirmaccedilotildees natildeo parecem prosperar Sua eacutetica esta pautada no
conceito de felicidade Tal conceito soacute pode ser compreendido no acircmbito da poacutelis e
em relaccedilatildeo ao outro Ou seja para sermos felizes devemos optar por uma vida
virtuosa e para uma vida virtuosa devemos praticar as virtudes torna-se evidente
que sua teoria natildeo soacute considera mas tem como fundamento a relaccedilatildeo muacutetua entre
os homens ou melhor entre os animais poliacuteticos Vejamos a explicaccedilatildeo de Tomaacutes
de Aquino [] compete agrave razatildeo deliberar acertadamente julgar e preceituar naquilo
que se chega ao fim devido Estaacute claro que a prudecircncia visa natildeo somente o bem
particular de um soacute mas tambeacutem o bem comum da multidatildeo (AQUINO 2004 p
602) Estabelecendo uma relaccedilatildeo com a virtude moral expotildee
[] como toda virtude moral que se refere ao bem comum se chama justiccedila legal assim a prudecircncia referida ao bem comum se chama ldquopoliacuteticardquo de modo que a poliacutetica se relaciona com a justiccedila legal da mesma forma que a prudecircncia simplesmente dita agrave virtude moral (AQUINO 2004 p 602)
Portanto podemos concluir que o prudente eacute aquele que sabe o que eacute bom
para si de um modo geral e tambeacutem para sua comunidade Tambeacutem podemos
afirmar que ele bem delibera Assim na linguagem atual prudente tem um certo
sabor daquele que calcula com vistas no interesse proacuteprio (MACINTYRE 1991 p
63
80) e consequentemente da comunidade Resta-nos entatildeo examinar sobre o que o
prudente delibera
Vimos que natildeo eacute objeto de deliberaccedilatildeo as coisas das quais natildeo podemos
deliberar ou seja as coisas que estatildeo no acircmbito do necessaacuterio Conclui-se disto
que
[] a prudecircncia (sabedoria praacutetica) natildeo eacute o mesmo que conhecimento cientiacutefico como tatildeo pouco pode ser o mesmo que a arte Natildeo eacute conhecimento cientiacutefico porque assuntos relacionados agrave conduta admitem mutaccedilatildeo e natildeo pode ser arte porque o criar e o fazer satildeo genericamente diferentes posto que o criar visa um fim que eacute distinto do ato de criar enquanto no fazer o fim natildeo pode ser outro senatildeo o proacuteprio ato ou seja fazer bem eacute em si mesmo um fim Insiste-se portanto que a prudecircncia eacute uma qualidade racional de consecuccedilatildeo da verdade que concerne agrave accedilatildeo relativamente a coisas que satildeo boas e maacutes aos seres humanos (EN VI 5 1140b1-5)
Na sequecircncia Aristoacuteteles cita Peacutericles como sendo um exemplo de homem
prudente Em suas palavras ldquoPor ter a capacidade de discernir que coisas satildeo boas
para si mesmo e para os seres humanos E eacute isso que coincide com nosso
entendimento do que seja algueacutem conhecedor da administraccedilatildeo domeacutestica ou
administraccedilatildeo poliacuteticardquo (EN VI 5 1140b1-5)
Como modelo de phroacutenimos (quem possui a phroacutenesis) isto eacute de ldquosaacutebiordquo ou ldquoprudenterdquo Aristoacuteteles indica Peacutericles (1140 b 8) o grande liacuteder poliacutetico que governa Atenas certamente natildeo um filoacutesofo de profissatildeo com o qual discutir de igual para igual talvez para dissentir Aristoacuteteles indica Soacutecrates (13 1144 b 18 28) certamente natildeo um liacuteder poliacutetico nem nunca um governador de sua cidade tambeacutem daiacute resulta a diferenccedila por ele estabelecida entre a phroacutenesis e a filosofia praacutetica
Com mais forte razatildeo a phroacutenesis difere da sabedoria a primeira efetivamente ocupa-se o homem isto eacute das realidades humanas enquanto a segunda como vimos ocupa-se das realidades mais elevadas que o homem das realidades divinas Se o modelo da phroacutenesis como vimos eacute Peacutericles os modelos de sabedoria indicados por Aristoacuteteles satildeo Tales e Anaxaacutegoras alhures considerados fiacutesicos mas aqui apresentados como investigadores de realidades divinas (os princiacutepios supremos) (BERTI 1998 p 146-147)
Em contraste agrave filosofia platocircnica o Estagirita aborda a temaacutetica acerca da
sabedoria teoacuteretica e da sabedoria praacutetica A sabedoria teoreacutetica estaacute em grau de
64
superioridade em relaccedilatildeo agrave praacutetica sendo que ao menos uma parte do valor desta
uacuteltima consiste na ajuda que daacute a produccedilatildeo da primeira
Entatildeo a felicidade chega apenas ateacute onde haacute contemplaccedilatildeo e as pessoas mais capazes de exercerem a atividade contemplativa fruem mais intensamente a felicidade natildeo como um acessoacuterio da contemplaccedilatildeo mas como algo inerente a ela pois a contemplaccedilatildeo eacute preciosa por si mesma A felicidade portanto deve ser alguma forma de contemplaccedilatildeo
Mas sendo criaturas humanas necessitamos tambeacutem de bem estar exterior pois nossa natureza natildeo eacute suficiente por si mesma para o exerciacutecio da atividade contemplativa Nosso corpo deve ser tambeacutem saudaacutevel e deve receber boa alimentaccedilatildeo e outros cuidados Nem por isso poreacutem devemos pensar que as nossas pessoas necessitam de muitas e grandes coisas para ser felizes simplesmente porque natildeo podem ser sumamente felizes sem bens exteriores com efeito a auto-suficiecircncia e a accedilatildeo natildeo pressupotildeem excessos e podemos praticar accedilotildees nobilitantes sem dominar a terra e o mar porquanto mesmo com recursos moderados eacute possiacutevel agir de conformidade com excelecircncia (isto eacute bastante evidente pois se pensa que os simples cidadatildeos praticam atos meritoacuterios natildeo menos que os detentores do poder ndash na verdade os praticam ainda mais) basta dispormos de recursos moderados pois a vida das pessoas que agem de conformidade com a excelecircncia seraacute feliz (EN X 9 1179a1)
Destarte a contemplaccedilatildeo constitui o ingrediente fundamental da felicidade
para Aristoacuteteles Eacute esta a melhor atividade de que o homem eacute capaz haja vista que
eacute o exerciacutecio do melhor do indiviacuteduo sobre o melhor de todos os objetos os quais
satildeo eternos e imutaacuteveis Por consistir naquilo que o homem pode fazer com maior
continuidade acarretar prazer puro e estaacutevel ser menos dependente dos outros
homens Em suma consiste no gecircnero de vida que se deve atribuir aos deuses jaacute
que seria absurdo atribuir-lhes vida moral
Entretanto a vida contemplativa eacute extremamente elevada para o homem
Enquanto seres humanos compostos de corpo de alma irracional e de razatildeo
homem natildeo a podem vivecirc-la Hipoteticamente poderaacute vivecirc-la somente em virtude do
elemento divino presente nele Todavia o homem natildeo deve seguir aqueles que
afirmam que pelo homem ser homem deve limitar o seu pensamento agraves coisas
humanas Ora ldquona medida do possiacutevelrdquo o homem deve apoderar-se da vida eterna
vivendo a vida desta parte de si mesmo pois eacute esta que constitui a melhor e mais
verdadeira parte de si mesmo O homem que vive assim eacute feliz
65
Entatildeo a phroacutenesis no sentido jaacute plenamente definido de sabedoria praacutetica iraacute constituir-se como virtude dianoeacutetica entre as virtudes eacuteticas de um lado e a filosofia (ou sophiacutea) como haacutebito contemplativo de outro A phroacutenesis aristoteacutelica encontra assim o seu lugar no centro dessa estrutura de uma teoria da praxis como teoria praacutetica que seraacute finalmente a alternativa aristoteacutelica agrave ontologia platocircnica do Bem (VAZ 2000 p 102)
Ainda sobre o prudente podemos extrair dos valiosos ensinamentos de
Henrique C de Lima Vaz
A phroacutenesis como virtude da razatildeo reta (orthoacutes loacutegos) ou da razatildeo que iraacute estabelecer a meacutedia razoaacutevel entre os extremos para as virtudes eacuteticas eacute a primeira das virtudes dianoeacuteticas e assinala justamente a presenccedila do logos regulador e ordenador no fluxo contingente das accedilotildees singulares Ao apontar no homem saacutebio (phroacutenimos) a norma existencial e concreta da phroacutenesis Aristoacuteteles torna patente na realidade viva as ldquocoisas humanasrdquo a dialeacutetica que se estabelece entre o impliacutecito vivido do ethos e o expliacutecito vivido pensado da Eacutetica ou ciecircncia praacutetica Essa dialeacutetica vem romper exatamente com o ciacuterculo vicioso que parece opor logo nos primeiros passos do pensamento eacutetico a praacutetica e a definiccedilatildeo das virtudes e do qual nasce a aporia inicial dos chamados diaacutelogos ldquosocraacuteticosrdquo de Platatildeo a praacutetica da virtude verdadeira conteacutem o saber da sua definiccedilatildeo e a definiccedilatildeo da virtude natildeo eacute senatildeo a abstraccedilatildeo da sua praacutetica Eacute necessaacuterio praticar a virtude para poder defini-la e eacute necessaacuterio defini-la para bem pratica-la A Eacutetica como ciecircncia se propotildee justamente instaurar um tipo de reflexatildeo que permita a ruptura deste ciacuterculo entre o abstrato e o concreto estabelecendo um fundamento racional e uma medida para o agir (VAZ 2000 p 103-104 negrito nosso)
De acordo com Werner Jaeger a prudecircncia eacute a virtude que relaciona o
conhecimento mais elevado com as coisas da vida praacutetica
A phroacutenesis eacute o transformador que converte o conhecimento eterno de Deus no movimento eacutetico da vontade e o aplica agraves particularidades da praacutetica Na Eacutetica a Nicocircmaco eacute o ldquoestado de capacidade de trabalharrdquo e nenhum homem jamais atua sem ela O conhecimento filosoacutefico de Deus natildeo eacute sua condiccedilatildeo essencial
52 (JAEGER 1963 p 265 traduccedilatildeo
nossa)
52
La phroacutenesis es el transformador que convierte el conoci-miento del Dios eterno en el movimiento
eacutetico de la voluntad y lo aplica a los detalles de la praacutecticaEn la Etica Nicomaquea es el estado de capacidad de obrar y ninguacuten hombre actuacutea jamaacutes sin ella El conocimiento filosoacutefico de Dios ya no es su condicioacuten esencial (JAEGER 1963 p 275 traduccedilatildeo nossa)
66
Eacute desse hiato entre o universal e o particular que cuida o prudente Eacute ele
quem delibera sobre o momento as circunstacircncias e a maneira como a accedilatildeo deve
ser deflagrada para que possa ser considera virtuosa
Feita essa exposiccedilatildeo geral da eacutetica contingecircncia eacutetica das virtudes e
prudecircncia noacutes acreditamos ao menos em parte estar aptos a abordar um assunto
que assume papel central na filosofia grega a justiccedila
67
5 JUSTICcedilA COMO VIRTUDE
Abordar a justiccedila ndash ou qualquer outra virtude ndash no pensamento aristoteacutelico eacute
uma tarefa aacuterdua e sinuosa A coerecircncia do pensamento de Aristoacuteteles como um
todo e ao mesmo tempo a especificaccedilatildeo das particularidades de cada mateacuteria a ser
estudada daacute agrave abordagem uma dupla sensaccedilatildeo De um lado certa seguranccedila
relacionada ao fato de sua coerecircncia nos impulsionar ainda que de forma intuitiva
agraves significacircncias de seus dizeres Por outro lado a preocupaccedilatildeo com a seguranccedila
da informaccedilatildeo a ser tratada bem como com as alteraccedilotildees semacircnticas que tornam-
se significativas principalmente com a transiccedilatildeo para modernidade53
Eacute importante observarmos que o tratamento dado agrave justiccedila por Aristoacuteteles
emprega instrumentos pouco convencionais ateacute mesmo para a eacutepoca De acordo
com Eduardo C B Bittar (2005)
A siacutentese operada pelo pensador permitiu por meio de seus textos que se congregassem inuacutemeros elementos doutrinaacuterios reunidos ao longo dos seacuteculos pelos quais se espalharam os conhecimentos gregos anteriores a ele (preacute-socraacuteticos socratismo sofistas platonismo) Eacute da reuniatildeo das opiniotildees dos saacutebios da opiniatildeo do povo da experiecircncia praacutetica analisados e avaliados criticamente dentro da visatildeo de todo o problema (justiccedila da cidade justiccedila domeacutestica justiccedila senhorial) que surgiu uma concepccedilatildeo propriamente aristoteacutelica (BITTAR 2005 p 90-91)
Tal concepccedilatildeo daacute a justiccedila um caraacuteter eacutetico pois insere a mesma entre as
virtudes Dessa forma as regras gerais aplicadas agraves virtudes em particular satildeo
igualmente aplicadas agrave justiccedila Sendo a prudecircncia como mais tarde diria Tomaacutes de
Aquino genitrix virtut e auriga virtut54 parece-nos ser conceito aristoteacutelico de justiccedila
vitalmente ligado ao conceito de prudecircncia ao passo que a prudecircncia realiza suas
accedilotildees assim como a justiccedila no espaccedilo pertinente agrave accedilatildeo racional qual seja o
domiacutenio do contingente Assim esclarece Juacutelio Aguiar de Oliveira (2011)
53
Tema amplamente abordado em por MACINTYRE (2001) 54
Matildee da virtude (III Sent d 33 q 2 a 5 c) e guia da virtude (IV Sent d 17 q 2 a 2 dco) Traduccedilatildeo nossa
68
Na medida em que se trata de uma questatildeo referente agrave accedilatildeo humana sua atuaccedilatildeo se daacute no domiacutenio do contingente Eacute por isso que a virtude da justiccedila (como todas as outras virtudes eacuteticas) depende da virtude da prudecircncia Se a accedilatildeo humana se desenrolasse no domiacutenio do necessaacuterio os preceitos da lei natural poderiam ser deduzidos do primeiro princiacutepio por meio da ciecircncia (deduccedilatildeo matemaacutetica) No entanto uma vez que a accedilatildeo humana se aacute no domiacutenio do contingente a virtude necessaacuteria para a boa deliberaccedilatildeo eacute a virtude da prudecircncia (OLIVEIRA 2011 p121)
Portanto a justiccedila em sentido amplo eacute uma virtude que ldquo[] natildeo comporta
uma compreensatildeo geneacuterica e indiferente agraves qualidade especiacuteficas dos indiviacuteduos eacute
pelo contraacuterio sensiacutevel dentro das ambiccedilotildees teoacutericas de Aristoacuteteles agrave dimensatildeo
individualrdquo (BITTAR 2005 p 93) O conceito dado eacute o seguinte [] a justiccedila eacute a
virtude perfeita por ser ela a praacutetica da virtude perfeita aleacutem do que eacute perfeita num
grau especial porque seu possuidor pode praticar sua virtude dirigindo-a aos outros
e natildeo apenas sozinho [] (ENV 1 1129b30)
Nesse sentido Alexandre Travessoni Gomes em sua obra O fundamento da
validade do direito Kant e Kelsen conclui
A justiccedila soacute eacute possiacutevel numa relaccedilatildeo com o outro Aristoacuteteles chega mesmo a afirmar que dentre as virtudes somente a justiccedila eacute o bem do outro Tanto no sentido universal quanto no particular natildeo haacute justiccedila de um indiviacuteduo consigo mesmo visto que a justiccedila e a virtude que se relaciona com o nosso proacuteximo seja ele governante ou associado[]
Soacute haacute ato justo ou injusto uma vez que algueacutem o queira O que eacute justo ou injusto eacute caracterizado pela lei mas o ato justo ou injusto pressupotildee a vontade O ato injusto eacute portanto o ato voluntaacuterio em que se conhece tanto a pessoa a quem atine quanto o ato como instrumento de justiccedila ou injusticcedila (GOMES 2004 p 61)
Destarte eacute ato justo ou injusto eacute o ato possiacutevel voluntaacuterio e direcionado ao
semelhante
51 Justo e injusto
69
O livro V da Eacutetica a Nicocircmaco trata sobre a justiccedila De acordo com o estilo
de oposiccedilatildeo frequentemente empregado pelo Estagirita a noccedilatildeo de Justo eacute
contraposta agrave noccedilatildeo do injusto
Podemos sintetizar a anaacutelise inserta na passagem 1129b1-10 nos seguintes
termos O injusto eacute de duas espeacutecies injusto legal e injusto desigual
O injusto legal eacute aquele que transgride a lei em outras palavras aquele que
age orientado pela ilegalidade
O injusto desigual por sua vez eacute aquele que toma mais do que lhe eacute devido
Aristoacuteteles eacute muito preciso nesse trecho ao indicar que o injusto desigual eacute tambeacutem
aquele que toma a menor parte das coisas indesejadas Ou seja tomar tanto
demasiado as coisas boas quanto menos as coisas maacutes55
A noccedilatildeo de justo toma parte na argumentaccedilatildeo expondo por oacutebvio que o
justo igual (ou equitativo) eacute aquele que toma a parte que lhe eacute devida
O justo legal por seu turno eacute aquele que age de acordo com as leis Nesse
sentido eacute importante destacar o caraacuteter das leis no pensamento de Aristoacuteteles As
leis satildeo produzidas pelos legisladores de acordo com as virtudes portanto elas
orientam as accedilotildees reiterando o haacutebito e consequentemente educando para a
virtude Esse eacute o fim da atividade poliacutetica A felicidade de cada um em particular e da
poacutelis como um todo
Nesse sentido o termo justo eacute aplicado agrave qualquer coisa que possa produzir
e preservar a felicidade ou as partes componentes da felicidade da comunidade
poliacutetica
Aristoacuteteles destaca que existe uma relaccedilatildeo de gecircnero e espeacutecie entre o justo
legal e o justo igual sendo o justo legal o gecircnero da qual o justo igual eacute espeacutecie A
conclusatildeo eacute a seguinte Eacute possiacutevel ser injusto legal sem ser injusto igual mas natildeo eacute
possiacutevel ser injusto igual sem ser injusto legal
52 Justo universal
55
Parte-se do pressuposto de que as pessoas desejam as coisas boas
70
O justo universal eacute o gecircnero o sentido mais amplo que se pode atribuir ao
termo justo Pode-se dizer que a justiccedila universal consiste na observacircncia da lei no
que diz respeito agravequilo que eacute legiacutetimo e que vige para o bem da comunidade
Assim a define HOumlFF (2003)
A justiccedila como virtude completa denominada justiccedila universal (iustitia universalis) por Santo Tomaacutes de Aquino significa para Aristoacuteteles com vistas ao outro a virtude perfeita ainda mais reluzente do que a estrela vespertina e matutina Consiste na atitude de cumprir voluntariamente tudo o que a lei e os costumes exigem A justiccedila universal denota uma integridade abrangente Dela fazem parte eg tambeacutem as obras da coragem e da prudecircncia a que Aristoacuteteles no entanto alude modestamente apenas com interdiccedilotildees a coragem proiacutebe cometer adulteacuterio e tornar-se violento (HOumlFF 2003 p 24 e 25)
Eduardo Bittar (2005) observa que
A accedilatildeo que se vincula agrave legalidade obedece a uma norma que a todos e para o bem de todos eacute dirigida como tal essa accedilatildeo deve corresponder a um justo legal e a forma de justiccedila que lhe eacute por consequumlecircncia eacute aqui chamada justiccedila legal Aquele que observa os conteuacutedos legais pode ser chamado de justo nesse sentido O mesmo a contrariu sensu a respeito do injusto que lhe corresponde (BITTAR 2005 p 96)
Outro ponto que parece importante nas observaccedilotildees de Eduardo C Bittar eacute
acerca da funccedilatildeo do legislador de acordo com ele a produccedilatildeo normativa da poacutelis eacute
um exerciacutecio da prudecircncia Eacute o mesmo que encontramos na passagem 1141b25
Nessa passagem Aristoacuteteles divide a prudecircncia em duas espeacutecies uma relativa agraves
coisas particulares que recebe o nome de ciecircncia poliacutetica e outra relativa agraves coisas
concernentes ao Estado que nomina ciecircncia legislativa
[] pois as accedilotildees que nascem da virtude em geral satildeo fundamentalmente idecircnticas agraves accedilotildees que estatildeo de acordo com a lei uma vez que a lei prescreve a conduta que exibe as vaacuterias virtudes particulares e proiacutebe a conduta que exibe os vaacuterios viacutecios particulares
71
Igualmente as regras estabelecidas para a educaccedilatildeo particulares (EN V 2 1130b20-25)
A conclusatildeo eacute que a injusticcedila no sentido universal tange todas as coisas que
constituem a esfera da virtude ou seja que as leis prescrevem os comportamentos
virtuosos Mas eacute possiacutevel afirmar que existe algum ato que seja injusto e que natildeo
obstante esteja em conformidade com a virtude Por certo que natildeo Apenas o fato
de um ato ser injusto por si mesmo constitui uma violaccedilatildeo agrave virtude Pois ldquoNa
Justiccedila se encontra toda a Virtude somadardquo (1129b30)56 e por isso a Justiccedila eacute a
virtude perfeita
53 Justo particular
Natildeo obstante a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos ser injustos sem nos afastar
da esfera da virtude Aristoacuteteles nos apresenta uma particcedilatildeo particularizada quanto
em relaccedilatildeo ao injusto no sentido universal
Enquanto uma parte a mais abrangente (injusticcedila universal) versa sobre a
transgressatildeo das normas a outra diz respeito particularmente agrave injusticcedila que visa o
lucro e a injusticcedila movida pelo desejo A essas duas uacuteltimas injusticcedilas ele daacute o
sentido de particular
A que visa o lucro estaacute claro que diz respeito a accedilatildeo de tomar mais do que
lhe eacute devido ela se comporta de um modo bem peculiar por que natildeo viola outra
virtude que natildeo seja a proacutepria Justiccedila A que eacute movida pelo desejo eacute descrita pelo
comportamento desregrado e natildeo por tomar mais do que lhe eacute devido
Tais manifestaccedilotildees particulares satildeo divididas em duas importantes classes
para a teoria da justiccedila aristoteacutelica a saber a justiccedila distributiva e a justiccedila corretiva
531 Justiccedila distributiva
56
De acordo com nota de nuacutemero 123 do tradutor essa maacutexima eacute atribuiacuteda a Teoacutegnis
72
A justiccedila distributiva diz respeito agrave distribuiccedilatildeo proporcional ao meacuterito de
cada pessoa de bens honra riqueza e demais ativos divisiacuteveis da comunidade
Desta forma considera o justo como o igual e o injusto como o desigual admitindo a
igualdade como uma mediania o que pressupotildee ao menos dois termos
Dado o acima podemos admitir que a justiccedila pressupotildee pelo menos quatro
termos sendo que dois deles referem-se agraves medidas e ou outros dois aos indiviacuteduos
a que agraves medidas predicam
A formulaccedilatildeo de Aristoacuteteles acerca da justiccedila distributiva eacute a conjunccedilatildeo do
primeiro termo de uma proporccedilatildeo com o terceiro e do segundo com o quarto e o
justo nesse sentido eacute uma mediania entre os extremos que satildeo desproporcionais
uma vez que a proporccedilatildeo eacute uma mediania e o justo eacute o proporcional (EN V 3
1131b10)
Eacute isso que os matemaacuteticos chamam de proporccedilatildeo geomeacutetrica aquela na
qual soma do primeiro e terceiro termos apresentaraacute a mesma relaccedilatildeo com a soma
do segundo e quarto A observaccedilatildeo que segue eacute a seguinte A justiccedila distributiva
natildeo eacute uma proporccedilatildeo contiacutenua pois seus segundo e terceiro termos um indiviacuteduo e
uma porccedilatildeo natildeo constituem um termo singular (EN V 3 1131a15)
Assim o justo eacute o proporcional e o injusto o que transgride a proporccedilatildeo O
injusto pode assim incorrer no excesso ou na deficiecircncia Isso [] porque um mal
menor comparado a um maior eacute tido como um bem porquanto o menor de dois
males eacute desejaacutevel do que o maior entretanto o que eacute [efetivamente] desejaacutevel eacute
bom e quanto mais desejaacutevel for maior o bem seraacute (EN V 3 1131a20)
532 Justiccedila corretiva
A justiccedila corretiva estaacute direcionada com as relaccedilotildees de acircmbito privado Esta
ao contraacuterio da distributiva natildeo eacute guiada pela proporccedilatildeo geomeacutetrica e sim pela
aritmeacutetica Aqui a lei leva em conta apenas a natureza do dano pois considera as
73
partes iguais seu objeto eacute identificar o sujeito que causou o dano e a quem o dano
fora causado
Elas satildeo distribuiacutedas em duas categorias voluntaacuterias e involuntaacuterias As
voluntaacuterias satildeo aquelas decorrentes da accedilatildeo volitiva entre os sujeitos O exemplo
mais utilizado para ilustrar eacute o de uma relaccedilatildeo de compra e venda
Aristoacuteteles traz para a relaccedilatildeo entre os particulares o problema que contorna
a teoria da justiccedila que eacute dar a cada um o que lhe cabe Dessa forma utiliza dos
termos ldquoperdardquo e ldquoganhordquo para as operaccedilotildees de permuta voluntaacuteria ldquoNesse contexto
ter mais do que lhe cabe eacute chamado de ganho e ter menos do que se tinha no iniacutecio
eacute chamado de perda como por exemplo comprar e vender e todas as transaccedilotildees
que recebem a imunidade da leirdquo (EN V 3 1132a15)
A justiccedila corretiva no sentido involuntaacuterio diz respeito a accedilatildeo decorrente da
vontade de apenas um dos sujeitos O Estagirita divide as do tipo involuntaacuterio em
duas espeacutecies sendo elas furtivas e violentas Ele as explica dando os seguintes
exemplos As furtivas deteacutem o furto o adulteacuterio o envenenamento a prostituiccedilatildeo a
seduccedilatildeo ou incitaccedilatildeo de escravos o assassinato agrave traiccedilatildeo o falso testemunho
Quanto agraves violentas deteacutem o assalto o aprisionamento o crime de morte o roubo
mediante violecircncia a mutilaccedilatildeo a linguagem abusiva o insulto
54 Justo domeacutestico
No trecho 1134 da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles apresenta mais duas
acepccedilotildees de justiccedila A justiccedila poliacutetica e a justiccedila domeacutestica Se avanccedilarmos mais
uma vez no texto e adentrarmos na temaacutetica prudecircncia vamos encontrar duas
figuras ou uma figura com duas caracteriacutesticas semelhantes agrave essas formas de
justiccedila Estamos referindo agrave figura do prudente como bom administrador domeacutestico
e ou bom administrador poliacutetico Proacutexima a essa mesma passagem do livro VI
encontramos uma nova referecircncia que diz respeito agrave duas manifestaccedilotildees
especiacuteficas da prudecircncia uma relativa ao Estado e outra relativa aos particulares Agrave
prudecircncia que concerne agraves coisas proacuteprias ao Estado Aristoacuteteles chama de Ciecircncia
74
Legislativa Agrave prudecircncia que concerne agraves coisas proacuteprias aos particulares ele chama
de Ciecircncia Poliacutetica
A justiccedila domeacutestica eacute aquela compreendida pelas relaccedilotildees que se
estabelecem entre marido e mulher pai e filho e senhor e escravo A mulher o filho
menor e o escravo natildeo participam ativamente das decisotildees da poacutelis o que os
isentam do conceito de justo poliacutetico Apesar da mulher natildeo participar das decisotildees
da poacutelis ela participa das decisotildees do lar o que a diferencia do escravo e do filho
Contra estes uacuteltimos natildeo se pode dizer que o senhorpai possa cometer injusticcedila
uma vez que satildeo considerados como parte do senhorpai sendo que ningueacutem pode
cometer injusticcedila contra si mesmo (BITTAR 2005 p 107)
55 Justo poliacutetico
Como jaacute referimos a compreensatildeo de justiccedila necessariamente
compreende dois termos-sujeito Essa implicaccedilatildeo natildeo eacute meramente loacutegica ela eacute
consequecircncia da teleologia que permeia toda a eacutetica aristoteacutelica Entretanto o justo
poliacutetico em especial refere-se a um grupo de pessoas que possuem a qualidade de
cidadatildeo Isso se deve principalmente por ser um pressuposto da justiccedila poliacutetica a
qualidade de participante ativo dos processos deliberativos proacuteprios agrave poacutelis
Feitas essas observaccedilotildees preliminares podemos agora procurar conceituar
o que seja a justiccedila poliacutetica De acordo com Eduardo C B Bittar
O justo poliacutetico consiste na aplicaccedilatildeo da justiccedila na cidade na poacutelis ou seja trata-se de algo que pertine ao corpo ciacutevico Assim existente no meio social eacute a justiccedila eu organiza um modo de vida que tende agrave auto-suficiecircncia da vida comunitaacuteria (autaacuterkeian) vigente entre os homens que partilham de um espaccedilo comum dividindo atividades segundo a multiplicidade de aptidotildees e necessidades de cada qual formando uma comunidade que tem por fim a eudaimoniacutea e a plena realizaccedilatildeo das
potencialidades humanas (BITTAR 2005 p 106)
75
A definiccedilatildeo dada pelo Estagirita eacute a seguinte ldquoJusticcedila poliacutetica quer dizer
justiccedila entre as pessoas livres e (real ou proporcionalmente) iguais que vivem uma
vida comum com a finalidade de satisfazer suas necessidadesrdquo (1134a25) O que
parece dizer que soacute podem agir justa ou injustamente aqueles que satildeo considerados
cidadatildeos
Aristoacuteteles divide a justiccedila poliacutetica em duas partes sendo uma a justiccedila
natural e outra a justiccedila convencional Comecemos pela natural
551 Justiccedila natural
O Estagirita explica que a justiccedila natural eacute aquela que possui idecircntica
validade em todos os lugares e natildeo depende de nossa aceitaccedilatildeo ou natildeo aceitaccedilatildeo
ldquoO justo natural (diacutekaion phyacutesikon) eacute aquele eu por si proacuteprio por todas as
partes possui a mesma potecircncia (dyacutenamis) e que natildeo depende para sua existecircncia
de qualquer decisatildeo de qualquer ato de positividade de qualquer opiniatildeo ou
conceito O que eacute por natureza eacute tal qual eacute []rdquo (BITTAR 2005) Continua definindo
A justiccedila natural eacute parte da justiccedila poliacutetica que visa permitir a realizaccedilatildeo plena do ser humano inserido na estrutura social do conviacutevio Sendo naturalmente um ser poliacutetico (zwon politikoacuten) a plena realizaccedilatildeo do animal racional estaacute condicionada agrave proacutepria natureza que o engendra o eu equivale a dizer que agrave sociabilidade agrave politicidade agrave autoridade ao relacionamento agrave reciprocidade estaacute o homem intestinamente ligado Reger-se sob o signo de sua natureza para o homem significa estar sob o governo da razatildeo o que se traduz no acircmbito social como estar sob o governo das leis que satildeo ldquoa razatildeo sem paixatildeordquo (BITTAR 2005 p 109)
552 Justo legal (convencional)
Aristoacuteteles define a justiccedila legal como aquela que em primeira instacircncia
pode ser estabelecida de um modo ou outro Isso quer dizer que a justiccedila legal eacute
76
composta pelas disposiccedilotildees definidas de um ou outro modo pela vontade do
legislador
A lei possui forccedila natildeo natural mas fundada na convenccedilatildeo Tendo vaacuterias formas de se estabelecer determinado princiacutepio como conteuacutedo da lei a opccedilatildeo eacute feita pelo legislador passando assim aquilo que a priori era indiferente que fosse de tal ou de qual maneira a ser vinculado a todos os cidadatildeos que a ela se subordinam
Tambeacutem eacute a esse tipo de justiccedila que se agregam as medias legais de caraacuteter particular os decretos e as sentenccedilas As leis em sua maior
parte dirigem-se genericamente a um grupo de cidadatildeos [] Os
decretos as decisotildees emanadas do poder administrativo do governante assim como as sentenccedilas judiciais a aplicaccedilatildeo concreta da generalidade abstrata das disposiccedilotildees legais
57 estatildeo tambeacutem atreladas ao justo
legal como parte da justiccedila poliacutetica que se realiza na vida ciacutevica (BITTAR 2005 p 110)
Dessa forma e imediatamente o fundamento de validade da disposiccedilatildeo natildeo
estaacute na justiccedila natural e sim na convenccedilatildeo orientada pela vontade do legislador
Porque ldquo[] enquanto uma lei da natureza eacute imutaacutevel e tem a mesma validade em
todos os lugares como o fogo que queima na Peacutersia observa-se que as regras da
justiccedila variam (EN V 6 1134a30)
Werner Jaeger em sua Paideia exprime a importacircncia do justo legal para o
povo grego
Acontece o mesmo na Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Anota um nuacutemero muito maior de Aretai que Platatildeo mas ao falar da justiccedila distingue um duplo conceito desta virtude existe uma justiccedila em sentido estrito juriacutedico e outra num sentido mais geral que engloba a totalidade das normas morais e poliacuteticas Reconhecemos nesta uacuteltima sem dificuldade o conceito de justiccedila do antigo Estado constitucional helecircnico Aristoacuteteles invoca expressamente o verso acima referido que inclui na justiccedila todas as virtudes A lei regula pelos seus preceitos as relaccedilotildees dos cidadatildeos com os deuses do Estado com os outros concidadatildeos e com os inimigos da Paacutetria[]
Como suma da comunidade citadina a poacutelis oferece muito Em contrapartida pode exigir ao maacuteximo Impotildee-se aos indiviacuteduos de modo vigoroso e implacaacutevel e neles imprime seu caraacuteter Eacute fonte de todas normas de vida vaacutelidas para os indiviacuteduos O valor do homem e de sua conduta mede-se exclusivamente pelo bem ou pelo mal que acarretam agrave cidade (JAEGER 1995 139-142 negrito nosso)
57
Sobre a aplicaccedilatildeo da lei geral ao caso concreto vide o capiacutetulo 5 A equidade
77
Em sua Retoacuterica Aristoacuteteles define e diferencia invocando a trageacutedia
Antiacutegona
Quando falo de dois tipos de direito ou lei refiro-me agrave lei particular e agrave lei comum A primeira varia segundo cada povo sendo parcialmente escrita a lei comum eacute a lei natural visto que haacute de fato uma justiccedila e uma injusticcedila das quais todos tecircm de alguma maneira a intuiccedilatildeo e que satildeo naturalmente comuns a todos independentemente de todo Estado e de toda convenccedilatildeo reciacuteproca Eacute isso que Antiacutegona de Soacutefocles expressa com clareza ao declarar que o sepultamento de Polinices fora um ato justo a despeito da proibiccedilatildeo ela quer dizer que fora um ato justo por ser o direito natural
Natildeo eacute de hoje ou de ontem
Mas vive eternamente ningueacutem podendo indicar sua origem (Ret I 13
1373b1-15)
Vimos o justo natural como algo imutaacutevel e com regras aplicaacuteveis agraves
diversas localidades Tambeacutem revisitamos o conceito de justo legal estabelecendo
que seu criteacuterio de validade esteja na vontade uma vez que eacute fruto de convenccedilatildeo
Agora restam-nos compreender como aproximar os princiacutepios gerais as leis
abstratas das contingecircncias que imprime em noacutes a incerta condiccedilatildeo humana
78
6 A EQUIDADE
Tanto em sua Eacutetica a Nicocircmaco quanto em sua Retoacuterica Aristoacuteteles utiliza o
termo equidade58 epieikeia em dois sentidos Num sentido lato significa benignidade
e indulgecircncia No sentido stricto eacute a correccedilatildeo da lei
ldquoSer equitativo eacute mostrar indulgecircncia ante as fraquezas humanas eacute tambeacutem
levar em conta menos a lei do que o legislador considerar natildeo a letra da lei mas a
intenccedilatildeo do legisladorrdquo (Ret I 13 1374b10)
ldquoE [tambeacutem] daqui se pode concluir claramente quem eacute o homem equitativo
ele eacute algueacutem que por escolha e haacutebito faz o que eacute equitativo e que natildeo eacute inflexiacutevel
quanto aos seus direitos se contentando em receber uma porccedilatildeo menor mesmo que
tenha a lei do seu ladordquo (EN V 10 1138a)
Sobre o sentido lato Carlos Alberto Schiavo
Por outro lado alguns autores entendem que o uso que os gregos ndash Platatildeo inclusive ndash davam para a palavra epieikeia era em um sentido vulgar de benignidade e indulgecircncia ateacute mesmo porque quando querem atribuir agrave Platatildeo um espiacuterito de rigidez na aplicaccedilatildeo da lei em atenccedilatildeo agrave supremacia que o filoacutesofo assinalava do Estado sobre o indiviacuteduo em seus ensinamentos acerca do justo (SCHIAVO 2013 p 6-7 traduccedilatildeo nossa)
59
Assim o conceito de equidade pode ser compreendido como o exerciacutecio do
justo e do bem atraveacutes da benignidade e da indulgecircncia Aqui a comunidade se
beneficia uma vez que o equacircnime alcanccedile seu bem atraveacutes de deliberaccedilotildees que
natildeo pretendem prover apenas o acircmbito individual
58
Equidade eacute a traduccedilatildeo romacircnica de aequitas e natildeo do grego epieiacutekeia Para uma traduccedilatildeo direta do grego a correspondente em liacutengua portuguesa eacute epiqueia que de acordo com Aureacutelio Buarque de Holanda ldquoepiqueia SF 1 Interpretaccedilatildeo razoaacutevel de lei ou preceito 2 Fig Meio-termo moderaccedilatildeordquo Vide PINTO G A GONCcedilALVES A L GONCcedilALVEZ V D C O problema da traduccedilatildeo do termo fairness na obra de John Rawls Belo Horizonte Editora Puc Minas 2009 59
Por otra parte algunos autores entienden que el uso que los griegos -Platon inclusive- daban a la palabra epieikeia era en un sentido vulgar de benignidad e indulgencia aun cuando hay quienes atribuyen a Platon un espiacuteritu de rigidez en la aplicacioacuten de la ley en atencioacuten a la supremaciacutea que el filosofo le asignaba al Estado sobre el individuo y a su idea respecto de persuadir de como es por naturaleza lo justo (SCHIAVO p6-7 traduccedilatildeo nossa)
59
79
Sobre o sentido stricto Aristoacuteteles afirma que a natureza essencial do
equitativo eacute uma retificaccedilatildeo da lei onde a lei eacute lacunar em funccedilatildeo de sua
generalidade
Este sentido pretende conhecer o ponto de colisatildeo entre a norma em sua
generalidade e a fraacutegil condiccedilatildeo humana em sua singularidade Em outras palavras
neste sentido Aristoacuteteles nos diz que por ser a lei geral e abstrata instala-se uma
distacircncia entre ela e seu objeto uma vez que as relaccedilotildees humanas satildeo contingentes
e portanto de difiacutecil determinaccedilatildeo
Esta distacircncia dificulta a aplicaccedilatildeo da norma podendo por vezes causar
injusticcedila Para evitar a injusticcedila proveniente da aplicaccedilatildeo do justo legal eacute necessaacuterio
acomodar este uacuteltimo agrave realidade do mundo fatiacutedico essa acomodaccedilatildeo eacute a equidade
em seu sentido stricto
61 Justiccedila e equidade ambiguidade do tema
Aristoacuteteles ao tratar da equidade comeccedila fazendo uma exposiccedilatildeo sobre a
ambiguidade terminoloacutegica entre justiccedila e equidade e o justo e o equitativo De
acordo com Eduardo Bittar
[] o uso dos termos se aproxima tamanhamente que ora chamamos de eacutequa uma situaccedilatildeo de justiccedila ora de justa uma situaccedilatildeo eacutequa De fato todos reconhecem que os termos natildeo se equivalem perfeitamente e neste caso o uso de um pelo outro conduz a equiacutevocos notoacuterios de modo que sendo semelhantes poreacutem natildeo idecircnticos devem ser distinguidos naquilo que lhes peculiariza Eacute no gecircnero (eacuteteron tocirc geacutenei) que se dizem aproximados os conceitos de ambos os termos O uso ainda mais esta a indicar a relativa e frequumlente coincidecircncia dos campos semacircmticos de ambos os significantes pois verdadeiramente se satildeo diversos ou o justo natildeo eacute bom ou o eacutequo natildeo o eacute (BITTAR 2005 p163)
Os termos no Grego de Aristoacuteteles satildeo canonicamente traduzidos por equidade e equitativo satildeo epieikeia e epiekis respectivamente Ele usa-os com muita frequecircncia na Eacutetica a Nicocircmaco e muita vezes em sua Retoacuterica e sua Poliacutetica Como ele mesmo nota que usa os termos em dois sentidos De longe o significado mais comum e geral eacute de epieikeia como simplesmente excelecircncia ou bondade A Eacutetica a Nicocircmaco
80
aplica mais tipicamente neste sentido Em uma passagem Aristoacuteteles diz que do ponto de vista da Justiccedila na rectificaccedilatildeo eacute indiferente se um homem bom tem defraudado um mau homem ou vice-versa a palavra para bom eacute epieikeis contrastava com phaulos para o mal Em trecircs passagens no entanto Aristoacuteteles usa os termos para se referir a uma virtude especiacutefica comumente dito ser a virtude da equidade um tipo particular de excelecircncia Aristoacuteteles caracteriza em verdade epieikeia no sentido especiacutefico como um epanorthoma nomou hei elleipei dia de katholou uma correccedilatildeo da lei onde a lei estaacute aqueacutem por causa de sua universalidade Na Retoacuterica descreve a justa quanto ao Paraacute para gegrammenon nomon δικαιον II que a justiccedila que se encontra aleacutem a lei escrita (SHINER 1994 p 1247 traduccedilatildeo nossa)
60
Ao tratar do assunto o Estagirita distingue a justiccedila e o justo pelas
quantificadoras universal e particular Quando aponta o sentido universal estaacute
referido agrave accedilatildeo como virtuosa ou natildeo Quando aponta o sentido particular diz que
estaacute relacionada ao prazer do ganho Eis a distinccedilatildeo ldquoEntretanto enquanto a
injusticcedila no sentido particular tange agrave honra ao dinheiro ou agrave seguranccedila ou seja laacute
qual for o termo que pudeacutessemos utilizar para englobar todas essas coisas seu
motivo sendo o prazer do ganho a injusticcedila no sentido universal tange a todas as
coisas que constituem a esfera da virtuderdquo (EN V 2 1130b1) Conclui na sequecircncia
que em sentido universal o justo eacute legal e em sentido particular o justo eacute igual ou
equitativo
O exame da natureza da equidade e do equitativo se daacute em sentido anaacutelogo
pois ldquo[] (nem tudo que eacute ilegal eacute natildeo equitativo ao passo que tudo que eacute natildeo
equitativo eacute ilegal) assim tambeacutem o injusto e a injusticcedila no sentido particular satildeo o
mesmo que o injusto e a injusticcedila no sentido universal mas destes distintos e a eles
relacionados como a parte do todordquo (EN V 2 1130b10)
60 The terms in Aristotles Greek standardly translated equity and equitable are epieikeia and
epiekis respectively He uses them frequently throughout the Nicomachean Ethics and often in the Rhetoric and Politics too As he himself notes he uses the terms in two senses By far the most common meaning is the general one-epieikeia means simply excellence or goodness The Nicomachean Ethics illustrates typically this sense In one passage Aristotle says that from the point of view of justice in rectification it is indifferent whether a good man has defrauded a bad man or vice versa the word for good is epieikeis contrasted with phaulos for bad In three passages however Aristotle uses the terms to refer to a specific virtue commonly said to be the virtue of equity a particular kind of excellence Aristotle pithily characterizes epieikeia in the specific sense as an epanorthoma nomou hei elleipei dia to katholou a correction of law where law falls short because of its universality The Rhetoric describes the equitable as to para to gegrammenon nomon dikaionII that justice which lies beyond the written law (SHINER 1994 p 1247 traduccedilatildeo nossa)
81
Justo eacute um adjetivo que se predica em uma determinada pessoa comportamento ou situaccedilatildeo atraveacutes da atribuiccedilatildeo a todas essas coisas da capacidade de justiccedila abstrata E assim o justo consiste em realizar o objeto principal da justiccedila a concretizaccedilatildeo da justiccedila ao niacutevel do caso concreto tem em primeiro plano de referecircncia o justo legal e na epikeia a concretizaccedilatildeo do justo em respeito a um comportamento que eacute completamente determinado que resulte excepcional frente ao primeiro plano de referecircncia E por justiccedila entendia o Estagirita Esti de dikaiosunh men areth di hv ta autwn ekastoi exousi kai wz o nomo z adikia de di hn ta allotpia oux wz o nomoz 61 58 en tanto los romanos la definiacutean como ldquoConstans er perpetua voluntas jus summ cuique tribuendi
62rdquo
o bien Est autem a iustitia appellantum nam ut eleganter Celsus definit ius est ars boni et aequi
63 (SCHIAVO 2013 p3)
64
Quanto agrave equidade e ao equitativo Aristoacuteteles retoma o assunto no capiacutetulo
10 do Livro V da Eacutetica a Nicocircmaco De acordo com ele a equidade e o equitativo se
relacionam com a justiccedila e com o justo respectivamente pois quando examinadas
afigura-se que justiccedila e equidade natildeo satildeo nem absolutamente idecircnticas nem
genericamente diferentes
Aqui uma nova referecircncia ao duplo sentido do termo equidade65 uma de
uso popular e outra de emprego teacutecnico Vejamos
Por vezes eacute verdade que louvamos a equidade e o homem equitativo a tal ponto que chegamos a empregar a palavra equitativo como um termo
61
Ret I 9 1367a 5-7 ldquoaquilo que fazemos por nossos benfeitores por forccedila da justiccedila disto e os serviccedilos prestados em geral pois o proveito que deles se extrai natildeo se dirige ao seu agenterdquo (ARISTOacuteTELES 2011 p 83 traduccedilatildeo Edson Bini) 62
Constante e perpeacutetua vontade de cumprir os deveres (traduccedilatildeo nossa) 63
E eacute chamada assim de justiccedila pela elegante definiccedilatildeo de Celso eacute a arte do bom e do equitativo (traduccedilatildeo nossa) 64
Justo es un adjetivo que se predica en concreto de una persona de una conducta o de una situacioacuten por el que se asigna a todas estas cosas la capacidad abstracta de justicia Y en tanto lo justo consiste en realizar el bien comuacuten como objeto principal de la justicia la concrecioacuten de la justicia a nivel del caso o del conflicto tiene un primer plano de referencia en la justicia legal y en la epiqueya la concrecioacuten de lo justo respecto de una conducta completamente determinada que resulta excepcional frente aquel primer plano de referencia Y por justicia el Estagirita entendiacutea Esti de dikaiosunh men areth di hv ta autwn ekastoi exousi kai wz o nomo z adikia de di hn ta allotpia oux wz o nomoz en tanto los romanos la definiacutean como ldquoConstans er perpetua voluntas jus summ cuique
tribuendi rdquo o bien Est autem a iustitia appellantum nam ut eleganter Celsus definit ius est ars boni et aequi (SCHIAVO 2013 p3) 65
Ao que tratamos no iniacutecio deste capiacutetulo
82
de aprovaccedilatildeo de outras coisas aleacutem do que eacute justo e a empregamos como equivalente de bom querendo dizer com mais equitativo meramente uma coisa eacute melhor Em outras oportunidades todavia quando submetemos a palavra efetivamente ao crivo da razatildeo nos parece estranho que o equitativo devesse ser louvaacutevel uma vez ser ele algo distinto do justo (ENV 10 1137b1)
Aristoacuteteles instala entatildeo certa dificuldade que nos parece proveniente da
loacutegica De acordo com ele ldquoSe satildeo diferentes [um deles] o justo ou o equitativo natildeo
eacute bom se ambos satildeo bons satildeo a mesma coisardquo (ENV 10 1137b1)
A soluccedilatildeo dada eacute que a equidade natildeo eacute diferente da justiccedila como um todo
mas diferente de uma parte dela a justiccedila legal Natildeo bastasse diferente Aristoacuteteles
ainda afirma ser a equidade superior uma vez que a equidade eacute a retificaccedilatildeo da
justiccedila legal
62 Justiccedila como equidade66
Talvez uma dificuldade na compreensatildeo da equidade aristoteacutelica esteja
associada a uma terceira concepccedilatildeo vigente em sua Eacutetica Tal concepccedilatildeo foi fruto
da investigaccedilatildeo tomista e permeia a ideia de equidade se sobrepondo por vezes agraves
duas primeiras concepccedilotildees apresentadas quais sejam a lato e a stricto
A questatildeo estaacute mais uma vez na proacutepria terminologia Sem precisar das
origens etimoloacutegicas da palavra justiccedila e da palavra equidade podemos estabelecer
um padratildeo como constante em ambos os conceitos
A palavra justiccedila nos remete agrave justeza agravequilo que estaacute conformado ou em
conformidade justificado assentado ajustado etc A palavra equidade por sua
vez nos remete agrave equalizado equiparado razoado etc
Numa primeira acepccedilatildeo a palavra equumlidade significa etimologicamente retidatildeo e justiccedila Numa segunda acepccedilatildeo poreacutem corresponde a
66
Aqui natildeo fazemos referecircncia a obra Justice as fairness do filoacutesofo John Rawls Sobre este assunto vide PINTO G A GONCcedilALVES A L GONCcedilALVEZ V D C O problema da traduccedilatildeo do termo fairness na obra de John Rawls Belo Horizonte Editora Puc Minas 2009
83
moderaccedilatildeo correccedilatildeo benignidade piedade coincidindo nesse sentido com a ideacuteia aristoteacutelica de epikeya que eacute o conveniente ou o que se ajusta ou melhor norma que se adapta a uma determinada relaccedilatildeo por corresponder agrave natureza essencial desta A equumlidade complementa a justiccedila corrigindo a lei pelas caracteriacutesticas concretas e muitas vezes imprevistas que as realizadas sociais apresentam e que natildeo satildeo passiacuteveis de enquadramento nos ditamentes da justiccedila geral A lei como natildeo pode deixar de ser regula as relaccedilotildees humanas de caraacuteter juriacutedico sob um acircngulo de todo geral e abstrato A equumlidade ao contraacuterio por sua proacutepria natureza visa a corrigir a lei quando esta como anota Aristoacuteteles se demonstra incompleta para abarcar o caso especial e concreto que foge agrave aplicaccedilatildeo geneacuterica (PAUPEacuteRIO 2003 p 67)
Parece que ambos os termos remetem a uma adaptaccedilatildeo que tem por fim
tornar igual ou ao menos fazer com que a medida estabelecida conheccedila seu objeto
Neste sentido instalador da ambiguidade eacute que muitos autores fazem
referecircncia agrave equidade como sendo a proacutepria justiccedila natural ou ao menos a parte
dela que nos toca
[] o termo ldquoequumlidaderdquo natildeo eacute uniacutevoco pois natildeo se aplica a uma soacute realidade nem tampouco equiacutevoco jaacute que natildeo designa duas ou mais realidades desconexas mas sim anaacutelogo pois se refere a realidades conexas ou relacionadas entre si
De maneira que a ldquoequumlidaderdquo tem sido de certa forma entendida como um direito natural em suas vaacuterias concepccedilotildees (DINIZ 242)
Palpeacuterio destaca que ldquoNo fundo como anotam alguns autores a equumlidade eacute
o proacuteprio direito natural natildeo propriamente em seus princiacutepios mas em sua
aplicaccedilatildeo e acomodaccedilatildeo aos casos concretosrdquo67 (PALPEacuteRIO p 69)
De acordoacute com Recasegraves Siches ldquola equidad es la expresioacuten de lo justo
natural en relacioacuten com el caso concreto Es decir la equidad es lo justo pero no lo
67
Na sequencia podemos encontrar o Autor dizendo que a justiccedila se difere da equidade contudo parece-nos que o conceito de justiccedila trabalhado neste ponto eacute o conceito de justo poliacutetico natildeo alcanccedilando a latitude aparente do texto que por referir apenas agrave justiccedila poderia nos sugerir seu sentido amplo vejamos ldquoNatildeo se confundindo com a clemecircncia que segundo Secircneca eacute a moderaccedilatildeo do acircnimo no poder de castigar a equumlidade distingue-se da proacutepria justiccedila porque enquanto esta corresponde agrave aspiraccedilatildeo do legislador aquela corresponde agrave do juizrdquo (p 69)
84
justo legal tal y como se desprenderiacutea de latildes palabras de la ley sino lo
auteacutenticamente justo respecto del caso particularrdquo (SICHES 2008 p 656)
Portanto tanto a justiccedila quanto a equidade parecem procurar acomodar a
medida constante das regras gerais e abstratas agraves realidades inconstantes em suas
singularidades e concretude Tal acomodaccedilatildeo procura estabelecer ou reestabelecer
certo paracircmetro de igualdade que nos parece aspiraccedilatildeo natural agrave justiccedila grega
621 Justiccedila e igualdade
A noccedilatildeo de justiccedila estaacute intimamente relacionada com a noccedilatildeo de
igualdade68 Da mesma forma em que a injusticcedila estaacute relacionada com a noccedilatildeo de
desigualdade Nuno Manoel M dos S Coelho em seu verbete Igualdade explica
que o desenvolvimento do ldquoconceito juriacutedico-filosoacutefico de igualdade no centro da
concepccedilatildeo de justiccedila como virtude diante do outro eu reconheccedilo como igual na
medida em que natildeo posso reivindicar tudo para mim mas devo dar a cada um o
seurdquo (COELHO 2011 p 215)
A igualdade eacute elemento essencial e baacutesico ldquoA justiccedila eacute uma igualdade e a injusticcedila uma desigualdaderdquo afirmou Aristoacuteteles ldquoA essecircncia da justiccedila eacute a igualdaderdquo acrescenta S Tomaacutes E mestre em tirar das palavras o que elas encerram mostra que a noccedilatildeo de igualdade estaacute contida no proacuteprio nome dessa virtude pois das coisas que estatildeo adequadas ou igualadas dizemos comumente que estatildeo ldquoajustadasrdquo (MONTORO 2009 p 170)
68
Podemos observar que a preocupaccedilatildeo com a igualdade e a tensatildeo existente entre igualdade material e igualdade formal aparece ateacute mesmo no contexto positivista como um problema a ser resolvido Tambeacutem daqui resulta que eacute errado considerar a regra que manda tratar os que satildeo iguais de forma igual como aplicaccedilatildeo do princiacutepio de justiccedila da igualdade A uacutenica norma que pode valer como princiacutepio de justiccedila da igualdade eacute a norma segundo a qual todos os homens devem ser igualmente tratados segundo a qual nenhuma das desigualdades que efetivamente existem entre eles deve ser tomada em consideraccedilatildeo (KELSEN 1998 p 55-56) Podemos ainda encontra tal preocupaccedilatildeo no liberalismo de pensadores como John Rawls vide Uma teoria da Justiccedila (2008)
85
A justiccedila em Aristoacuteteles faz necessaacuteria referecircncia agrave igualdade em seu
sentido material Tanto o eacute que a medida enquanto referecircncia da mediania eacute o
fundamento de sua eacutetica
Sobre a justiccedila enquanto igualdade Andreacute Franco Montoro desdobra acerca
da foacutermula tomista Ratio justitiae in hoc consistit quod alteri reddatur quod ei
debentur secundum aequalitatem69
[] em sentido estrito e proacuteprio a justiccedila designa uma virtude com objeto especial Nesse sentido ldquoa essecircncia da justiccedila consiste em dar a outrem o que lhe eacute devido sendo uma igualdaderdquo (simples ou proporcional) conforme a definiccedilatildeo de S Tomaacutes Soacute eacute justiccedila propriamente dita a relaccedilatildeo que tem por objeto - dar a outrem - o que lhe eacute devido - segundo uma igualdade A essas trecircs notas correspondem agraves caracteriacutesticas essenciais da justiccedila em sentido estrito - a alteridade ou pluralidade de pessoas (alteras de alter) - o devido (debitum) - a igualdade (aequalitas) (MONTORO 2009 p 165 - 166)
Ainda de acordo com Montoro a igualdade eacute estabelecida atraveacutes de
criteacuterios quantitativos
Duas realidades satildeo idecircnticas quando tecircm a mesma essecircncia Semelhantes quando tecircm as mesmas qualidades Iguais quando tecircm a mesma quantidade ldquoidem est unum in substancia siacutemile unum in qualitate aequale vero unum in quantitaterdquo Um homem eacute ldquoidecircnticordquo apenas a si mesmo De duas pessoas que tecircm os mesmos traccedilos dizemos que satildeo ldquosemelhantesrdquo Vinte eacute igual a 10 mais 10
A igualdade eacute pois uma equivalecircncia de quantidades Na justiccedila de forma analoacutegica e adaptada agrave natureza moral das relaccedilotildees humanas e essa tambeacutem a significaccedilatildeo de igualdade
Com razatildeo observou Recaseacutens Siches na justiccedila natildeo se trata de estabelecer ldquoidentidaderdquo como seria o caso de entregar um objeto e receber o mesmo objeto Isso natildeo teria sentido Natildeo se trata tambeacutem de receber um objeto ldquosemelhanterdquo ou parecido Mas de estabelecer uma equivalecircncia ou ldquoigualdaderdquo (MONTORO 2009 p171)
69
A justa razatildeo consiste em dar ao outro o que lhe eacute devido de acordo com a igualdade (traduccedilatildeo nossa)
86
Aristoacuteteles apresenta duas foacutermulas para que a igualdade seja alcanccedilada
uma ele denominou aritmeacutetica (conhecida como igualdade simples) e a outra
geomeacutetrica (conhecida como igualdade proporcional)
Desta forma a ldquoigualdade da justiccedila pode realizar-se de duas formas
distintasrdquo
a) igualdade simples ou absoluta eacute a equivalecircncia entre dois objetos que se verifica nas relaccedilotildees de troca o comprador de um objeto que vale 1000 dever efetuar um pagamento de igual valor (1000 = 1000) b) igualdade proporcional ou relativa eacute a que se realiza na distribuiccedilatildeo dos benefiacutecios e encargos entre os membros de uma comunidade se A que contribui com 50 recebe 5 B que contribui com 80 receberaacute 8 (550 = 880) Aristoacuteteles chamou a primeira igualdade ldquoaritmeacuteticardquo e a segunda ldquogeomeacutetricardquo Em qualquer caso a justiccedila procura realizar uma igualdade nas relaccedilotildees entre os homens Ou como diz Lachance na justiccedila devemos nos igualar ao proacuteximo por seu ato (MONTORO 2009 p 172)
A justiccedila portanto soacute pode ser compreendida a partir de seu princiacutepio de
igualdade Ainda sobre este ponto Aristoacuteteles apresenta dois importantes temas que
foram objeto de estudo dos itens 531 e 532 A justiccedila distributiva e a justiccedila
corretiva Natildeo obstante jaacute terem sido objeto de nosso estudo eacute necessaacuterio
revisitarmos tais conceitos em face da noccedilatildeo de igualdade
Assim pode-se dizer que haacute duas formas de justiccedila uma particular cujo
objeto eacute o bem particular e outra geral tambeacutem chamada legal ou social cujo objeto
eacute o bem comum A justiccedila particular realiza-se de duas formas justiccedila comutativa
quando um particular daacute a outro particular o bem que lhe eacute devido e justiccedila
distributiva quando a sociedade daacute a cada particular o bem que lhe eacute devido
Receber o devido e portanto natildeo tomar maior parcela dos bens desejados
e nem a menor parcela dos bens indesejados seja na relaccedilatildeo particular ou sobre
aquilo que eacute o bem comum parece-nos o criteacuterio da igualdade
63 Equidade melhor que um tipo de justiccedila
87
De acordo com Aristoacuteteles a equidade eacute melhor que um tipo de justiccedila Ele
estaacute se referindo agrave justiccedila legal pois
[] a equidade embora superior a uma espeacutecie de justiccedila eacute ela mesma justa natildeo eacute superior agrave justiccedila ao ser genericamente distinta dela Justiccedila e equidade satildeo portanto a mesma coisa sendo ambas boas ainda que a equidade seja melhor
A origem da dificuldade eacute que ldquoa equidade embora justa natildeo eacute justiccedila legal poreacutem retificaccedilatildeo desta (EN V 10 1137b10)
O que Aristoacuteteles parece querer dizer eacute que a justiccedila em todas as suas
acepccedilotildees compreende a equidade como seu princiacutepio No entanto a acepccedilatildeo de
justiccedila legal em sua rigidez e generalidade pode objetivamente ferir o justo razatildeo
pela qual a equidade enquanto princiacutepio da justiccedila eacute melhor Afinal eacute ela que natildeo
permite que uma das espeacutecies de justiccedila aquela que eacute convencionada pelo homem
seja aplicada de forma a causar injusticcedila
Eduardo Bittar explica como Aristoacuteteles desconstitui a aparente
ambiguidade da temaacutetica
o eacutequo sendo melhor que uma forma de justo ndash e aqui se percebe nitidamente qual a estrita relaccedilatildeo entre o eacutequo e uma forma especiacutefica de justo o justo legal ndash natildeo deixa de ser justo poreacutem natildeo simplesmente pelo fato de constituir um gecircnero diferente representa algo a mais que o justo Em verdade satildeo a mesma coisa o justo e o eacutequo (tautograven aacutera diacutekaion kaigrave epieikegraves) de maneira que assim sendo o eacutequo eacute melhor e mais desejaacutevel que o justo Se eacutequo e justo se equivalem nesta medida e da forma indicada segundo o gecircnero natildeo eacute verdade que o eacutequo seja o justo segundo a lei (ou tograve katagrave noacutemon deacute) de acordo com o que estaacute consignado no corpo legislativo e foi posto pela vontade humana como vinculativo da conduta social mas sim um corretivo do justo legal (epanothoma nomiacutemou diacutekaion) (BITTAR 2005 p163)
Portanto a equidade corresponde ao justo presente na concepccedilatildeo de justiccedila
para Aristoacuteteles poreacutem eacute melhor que o justo legal por ser o princiacutepio corretor do
mesmo
64 Natureza essencial do equitativo a retificaccedilatildeo do justo legal
88
O que encontramos no capiacutetulo 10 do Livro V da Eacutetica a Nicocircmaco satildeo duas
aplicaccedilotildees da equidade enquanto retificaccedilatildeo do justo legal A primeira que
examinaremos neste item 64 diz respeito ao rigor do justo legal e a segunda que
examinaremos no item 65 diz respeito agrave existecircncia de casos que o legislador natildeo
pode prever
Em verdade estas duas aplicaccedilotildees da equidade satildeo consequecircncia de uma
soacute coisa o caraacuteter geral da norma Se de um lado o rigor da norma que exige do
equacircnime a acomodaccedilatildeo do direito se daacute pela generalidade da norma de outro a
generalidade parece insuficiente para conhecer todos os casos o que oportuna o
surgimento das lacunas
641 A metaacutefora da reacutegua de chumbo
Aristoacuteteles para explicar melhor em que consiste a equidade ilustra sua
exposiccedilatildeo fazendo uma analogia das regras do direito com as reacuteguas empregadas
por pedreiros em lavras
Os construtores da ilha de Leacutesbos utilizavam em seus afazeres um
instrumento que chamou a atenccedilatildeo do Estagirita esse instrumento nada mais era do
que uma reacutegua feita de chumbo
A funccedilatildeo de tal reacutegua era manter a medida certa ainda que seu objeto
assumisse formas diversas Assim inobstante as irregularidades na forma das
pedras poderia graccedilas agrave maleabilidade da reacutegua ajustaacute-la ao objeto apurando
assim a medida certa
Com efeito essa eacute a razatildeo porque natildeo satildeo todas as coisas determinadas pela lei pelo fato de haver alguns casos [e situaccedilotildees] em relaccedilatildeo aos quais eacute impossiacutevel estabelecer uma lei eacute necessaacuteria a existecircncia de um decreto especial pois aquilo que eacute ele proacuteprio indefinido soacute pode ser medido por um padratildeo indefinido como a reacutegua pluacutembea usada pelos construtores de Lesbos tal como essa reacutegua natildeo eacute riacutegida podendo ser flexibilizada ao formato da pedra um decreto
89
especial eacute feito para se ajustar agraves circunstacircncias do caso (EN V 10 1137b30)
Desprende-se do texto que a medida que eacute ali buscada ldquo[] se assemelha
agraves diversas situaccedilotildees que se encadeiam na etapa de aplicaccedilatildeo da norma juriacutedica
mormente a interpretaccedilatildeo do fato e do comando legal que o atinge em foco de
incidecircncia Assim se veria a norma geral como medida e a situaccedilatildeo da vida erigida
em controveacutersia como a pedrardquo (LOPES 1993 p 46)
O conceito de equidade muito bem explicado pela metaacutefora da reacutegua de
chumbo na passagem 1137b30 da Eacutetica a Nicocircmaco segundo Javier Hervada
(2008) ldquoabranda o dever e acomoda o direitordquo (HERVADA 2008 p 171) ldquoO
equumlitativo soacute se daacute quando a reacutegua consegue captar todas as microscoacutepicas
reentracircncias do cenaacuterio multiforme que lhe cabe medirrdquo (LOPES 2007 p 77)
A lei eacute considerada aqui como um sumaacuterio de decisotildees saacutebias Eacute por conseguinte apropriado complementaacute-la com novas decisotildees saacutebias tomadas na situaccedilatildeo presente e eacute tambeacutem apropriado corrigi-la nos pontos em que natildeo resume corretamente o que um bom juiz faria O bom juiacutezo mais uma vez proporciona tanto uma concretude superior como uma superior sensibilidade ou flexibilidade
A exigecircncia de flexibilidade tatildeo importante para o nosso entendimento da concepccedilatildeo aristoteacutelica natildeo cientiacutefica de escolha eacute descrita pois em uma viacutevida metaacutefora Aristoacuteteles nos diz que uma pessoa que tenta tomar todas as decisotildees recorrendo a algum princiacutepio geral antecedente sustentando como firme e inflexiacutevel para a ocasiatildeo eacute como um arquiteto que procura usar uma reacutegua reta sobre as curvas intricadas de uma coluna canelada O bom arquiteto ao contraacuterio mediraacute como fazem os construtores de Lesbos com um tira flexiacutevel de metal que ldquose inclina arqueada para ajustar-se agrave forma da rocha que eacute natildeo eacute fixardquo (1137b30-2) A boa deliberaccedilatildeo tal como essa regra se acomoda ao que encontra de maneira sensiacutevel e com respeito pela complexidade Natildeo assume que a forma da regra governa as aparecircncias permite que as aparecircncias governem a si mesmas e sejam normativas para a correccedilatildeo da regra (NUSSBAUM 2009 p 263)
Portanto a metaacutefora revela uma equidade que eacute em si uma regra mas uma
regra cuja forma eacute capaz de moldar-se agraves nuanccedilas proacuteprias da mateacuteria
642 A retificaccedilatildeo do justo legal
90
Aristoacuteteles define equidade70 como sendo a retificaccedilatildeo do justo legal A lei
natildeo por um erro da parte do legislador mas pela sua proacutepria generalidade pode
criar se aplicada de modo inflexiacutevel agrave multiplicidade dos casos singulares
especiacuteficos o efeito oposto para o qual foi originalmente estabelecida Ou seja
sendo ldquoinfinita a mateacuteria sobre a qual se deve legislar e sendo necessaacuterio apesar
de tudo estabelecer leis eacute forccediloso falar em geralrdquo (Ret I 13 1374a30) A equidade
seraacute o mecanismo que coloca nas matildeos do aacuterbitro discricionariedade suficiente para
aplicar a norma de modo a natildeo causar uma injusticcedila por meio do proacuteprio justo legal
A necessidade da aplicaccedilatildeo da equumlidade decorre do fato de que as leis dizem genericamente e para todos sem diferenciar todas as nuanccedilas que possam existir na esfera dos fenocircmenos de modo que surgem casos para os quais se aplicada a lei (noacutemos) em sua generalidade (kathoacutelou) estar-se-aacute a causar uma injusticcedila por meio do proacuteprio justo legal Exatamente para superar os problemas decorrentes da impossibilidade de haver uma legislaccedilatildeo minimamente detalhista e futurista eacute que existe o eacutequo []
Se a lei eacute neste ponto e para estes fins falha isto natildeo se deve nem ao conteuacutedo da lei em si nem ao legislador natildeo se trata de um erro legislativo mas sim de um problema oriundo da proacutepria peculiar conformaccedilatildeo das coisas como satildeo praticamente Cada caso eacute um caso e demanda uma atenccedilatildeo especial e especiacutefica absolutamente focalizada sobre os seus traccedilos e as suas caracteriacutesticas de modo que nenhuma legislaccedilatildeo poder-se-ia aplicar a esta dimensatildeo dos fatos (BITTAR 2005 p164 - 165)
A equidade aristoteacutelica eacute portanto ldquoa correccedilatildeo dos rigores da leirdquo (BITTAR
2002 p 116)
[hellip] no tocante aos erros legislativos e demais hipoacuteteses de produccedilatildeo de injusticcedila decorrente da generalidade no preceito legal aplicado agrave realidade faacutetica Aristoacuteteles aponta a utilizaccedilatildeo do recurso da epieacuteikeia ou seja da equidade forma de modelagem dos princiacutepios legais para serem aplicados a sujeitos concretos frente agrave problemaacutetica fenomecircnica a ser resolvida pelo juiz (dikasteacutes) (BITTAR 2003 p 1056-
1057)
70
No original ἐπιείκεια (epieiacutekeia)
91
Aristoacuteteles percebe como o perceberia Hans Kelsen dois milecircnios depois71
que na passagem de uma norma mais geral ndash a lei por exemplo ndash para uma norma
mais concreta ndash como a sentenccedila judicial ndash sempre restaraacute uma margem de escolha
que caberaacute agrave prudecircncia72 do inteacuterprete-aplicador preencher
Na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles problematiza a relaccedilatildeo entre a norma e o
caso concreto explicando que ldquoA origem da dificuldade eacute que a equidade embora
justa natildeo eacute justiccedila legal poreacutem a retificaccedilatildeo desta A razatildeo para isso eacute que a lei eacute
sempre geral entretanto haacute casos que natildeo satildeo abrangidos pelo texto geral da leirdquo
(EN V 1137b12) Nesse sentido a equidade seria a virtude destinada a solucionar
os casos em que a lei natildeo alcanccedila a concretizaccedilatildeo da justiccedila
Aristoacuteteles eacute o primeiro doutrinador das ciecircncias juriacutedicas Ele diz muito antes de Larenz ldquoCada regulamento legal ou do direito estaacute para o caso isolado na mesma relaccedilatildeo que o geral estaacute para o indiviacuteduordquo (1135a)
O que aqui eacute descoberto e expressado com autoridade loacutegica natildeo eacute menos que o princiacutepio fundamental da subsunccedilatildeo juriacutedica a imputaccedilatildeo do fato agrave lei escrita (ldquoao conceito legal do direitordquo 1135a)
Aristoacuteteles nos fornece aqui muito antes de Esser e Wiacker uma teoria das claacuteusulas gerais sejam elas inseridas de fora na lei como o Princiacutepio da Relaccedilatildeo (uso de medidas adequadas em relaccedilatildeo ao desejado fim) no Art 12 GG (Constituiccedilatildeo Alematilde) ou estejam elas jaacute consolidadas na lei como o Princiacutepio da boa-feacuterdquo no sect 242 BGB (pois sua positivaccedilatildeo eacute supeacuterflua o conteuacutedo normativo de tal paraacutegrafo eacute tatildeo pequeno o quatildeo grande eacute seu caraacuteter de advertecircncia) O princiacutepio geral vaacutelido da equumlidade []
Se tiveacutessemos percebido em tempo esta vaacutelida opiniatildeo de Aristoacuteteles entatildeo natildeo teria surgido de forma alguma nos nossos anos 60 a ilusatildeo de que toda aplicaccedilatildeo da lei pode ser formalizada e com isso computadorizada pois o computador pode ateacute realizar algo nas futuras ldquogeraccedilotildees inteligentesrdquo ou muito inteligentes mas nunca epieikeia Um pensador loacutegico eacute soacute entatildeo loacutegico quando conhece e reconhece os limites da loacutegica (ADOMEIT 2000 p138 - 140)
A liccedilatildeo de Teacutercio Sampaio Ferraz Jr evidencia a equidade enquanto
princiacutepio que estabelece razoaacutevel elo entre a norma e agrave especificidade da situaccedilatildeo
71
Veja-se a esse respeito o capiacutetulo VIII da Teoria pura do direito kelseniana 72
E eacute neste ponto que os neoaristoteacutelicos divergem de Kelsen uma vez que para este natildeo eacute necessariamente a prudecircncia mas juiacutezos poliacuteticos de conveniecircncia ndash fundados no poder e natildeo na razatildeo ndash que orientaratildeo a escolha do julgador Para uma anaacutelise mais aprofundada e criacutetica desse ponto veja-se Ferraz Juacutenior 1994 p 260-346 (Capiacutetulos 5 e 6)
92
Por uacuteltimo no conjunto da razatildeo juriacutedica costuma-se mencionar a equumlidade Aristoacuteteles eacute responsaacutevel por sua definiccedilatildeo como a justiccedila do caso concreto A soluccedilatildeo de litiacutegios por equumlidade eacute a que se obteacutem pela consideraccedilatildeo harmocircnica das circunstacircncias concretas do que pode resultar um ajuste da norma agrave especificidade da situaccedilatildeo a fim de que a soluccedilatildeo seja justa Pois como diziam os romanos summum jus summa injuria
73 Natildeo se trata de um princiacutepio que se oponha agrave justiccedila mas que a
completa a torna plena
Da mesma forma que os princiacutepios gerais a equumlidade tem no sistema dinacircmico funccedilatildeo metalinguumliacutestica Ela responde pela estrutura de concretizaccedilatildeo do direito Natildeo eacute fonte pois no mesmo sentido das demais (FERRAZ JUNIOR 2011 p 213)
Ferraz Junior em seu capiacutetulo sobre a Dogmaacutetica Hermenecircutica destaca ao
menos quatro desdobramentos possiacuteveis na integraccedilatildeo por equidade Satildeo eles
expandir uma obrigaccedilatildeo limitar o exerciacutecio de direitos criar regras para situaccedilotildees
que se alteram ou que natildeo foram previstas vejamos
[] Fala-se aqui no sentimento do justo concreto em harmonia com as circunstacircncias e adequado ao caso O juiacutezo por equumlidade na falta de norma positiva eacute o recurso a uma espeacutecie de intuiccedilatildeo no concreto das exigecircncias da justiccedila enquanto igualdade proporcional O inteacuterprete deve poreacutem sempre buscar uma racionalizaccedilatildeo dessa intuiccedilatildeo mediante uma analise das consideraccedilotildees praacuteticas dos efeitos presumiacuteveis das soluccedilotildees encontradas o que exige juiacutezos empiacutericos e de valor os quais aparecem fundidos na expressatildeo juiacutezo por equumlidade A equumlidade pode integrar o direito de diferentes modos Por exemplo por seu intermeacutedio podemos expandir uma obrigaccedilatildeo criando deveres adicionais para aleacutem dos que constam de um contrato ou decorrem expressamente de lei podemos ainda limitar o exerciacutecio de direitos para prevenir abusos podemos tambeacutem criar regras para situaccedilotildees que se alteram desde seu regulamento ou que nele natildeo foram previstas Em todo caso o juiacutezo equumlitativo de um lado apesar das consideraccedilotildees dos efeitos presumiacuteveis eacute sempre um juiacutezo jungido ao particular sem preocupaccedilotildees generalizantes Natildeo gera assim uma compulsatildeo para que outros casos semelhantes sejam interpretados e decididos do mesmo modo Por isso natildeo eacute propriamente fonte do direito mas meio de integraccedilatildeo De outro lado poreacutem pela consideraccedilatildeo dos efeitos presumiacuteveis tambeacutem natildeo aparece como arbitraacuterio mas sim representando o sentido que seja juriacutedico no contexto social em que se aplica (FERRAZ JUNIOR 2011 p 281 negrito nosso)
Interessante notar que Ferraz Junior aponta que essa proximidade do juiacutezo
ao particular natildeo eacute uma arbitrariedade mas uma representaccedilatildeo juriacutedica no contexto
em que determinada norma incide
73
Brocardo de Ciacutecero que quer dizer Supremo direito suprema injusticcedila (De Officiis I 10 33)
93
Enquanto a justiccedila eacute de ordem geral e natildeo se preocupa senatildeo com princiacutepios a equumlidade contrariamente perquire as circunstacircncias peculiares ao caso e submete a regra abstrata agraves razotildees derivadas da espeacutecie Em certos casos impotildee-se abandonar a letra da lei para acompanhar os ditames da razatildeo e da justiccedila Nisso se cifra a equumlidade que tempera e abranda o rigor legal Natildeo foi agrave-toa que se referiu Ciacutecero baseado em Terecircncio ao brocardo summum jus summa injuria que daacute ecircnfase agrave ideacuteia de que o rigor da aplicaccedilatildeo inflexiacutevel da lei pode muitas vezes quando natildeo abrandado pela equumlidade acarretar dureza demasiada ou mesmo extrema injusticcedila (PAUPEacuteRIO 2003 p68)
Cabe agora examinarmos a equidade como recurso dado por Aristoacuteteles
para os casos natildeo abarcados pela legislaccedilatildeo
65 Equidade e lacuna
A compreensatildeo do sentido stricto de equidade ou seja enquanto correccedilatildeo
do justo legal tem por pressuposto a generalidade da norma Natildeo obstante tal
generalidade existem casos que natildeo satildeo abrangidos pela lei Surge assim a
dificuldade cuja equidade mais uma vez eacute a soluccedilatildeo dada pelo Estagirita De acordo
com ele
A razatildeo para isso eacute que a lei eacute sempre geral entretanto haacute casos que natildeo satildeo abrangidos pelo texto geral da lei [ou por esta ou aquela regra legal geral] Em mateacuterias portanto nas quais embora seja necessaacuterio discursar em termos gerais natildeo eacute possiacutevel fazecirc-lo corretamente a lei toma em consideraccedilatildeo a maioria dos casos embora natildeo esteja insciente do erro que tal coisa acarreta (EN V 10 1137b12)
74
Natildeo obstante o legislador ter a generalidade como instrumento de ampliaccedilatildeo
de incidecircncia da norma esta natildeo eacute geral suficientemente para abarcar em
completude as indeterminaacuteveis possibilidades proacuteprias ao acircmbito particular
74
Conforme jaacute citado
94
Sobre lacunas adverte Kelsen
Como poreacutem o Direito vigente eacute sempre aplicaacutevel pois natildeo haacute ldquolacunasrdquo neste sentido esta foacutermula quando se penetre o seu caraacuteter fictiacutecio natildeo opera a pretendida limitaccedilatildeo do poder atribuiacutedo ao tribunal mas a auto-anulaccedilatildeo da mesma Se poreacutem o tribunal tambeacutem aceita a ideacuteia de que haacute lacunas no Direito entatildeo esta ficccedilatildeo teoreticamente inaceitaacutevel realiza o efeito pretendido Com efeito o juiz - e especialmente o juiz de carreira que estaacute sob o controle de um tribunal superior - que natildeo se sente facilmente inclinado a tomar sobre si a responsabilidade de uma criaccedilatildeo do Direito ex novo soacute muito excepcionalmente aceitaraacute a existecircncia de uma lacuna no Direito e por isso soacute raramente faraacute uso do poder que lhe eacute conferido de assumir o lugar do legislador (KELSEN 1999 p 185)
Aristoacuteteles esclarece que as lacunas podem existir pela vontade do
legislador ou contra a vontade deste
O problema legislativo que com maior frequumlecircncia ocorre eacute causado pela abstraccedilatildeo e universalidade do preceito legal De fato a lei escrita eacute um imperativo que se formula impessoalmente abarcando sob sua tutela a pluralidade de cidadatildeos aos quais se dirige e a multiplicidade de casos que surgem na vida concreta da poacutelis Lacunas aparecem em todo sistema legislativo escrito e estas podem existir por vontade do legislador de que existam ou mesmo contra a vontade deste Assim contra a sua vontade existiratildeo ldquoquando o fato lhe passa despercebidordquo e por vontade do legislador ldquoquando natildeo podendo precisar tudo eles tecircm de estatuir princiacutepios gerais que natildeo satildeo aplicaacuteveis sempre mas soacute as mais das vezes (Ret I 1375b)
Assim quando a lacuna existe pela vontade do legislador eacute porque o
mesmo percebendo que natildeo pode precisar toda mateacuteria ele estabelece um princiacutepio
geral que natildeo pode sempre ser aplicado agrave mateacuteria Por outro lado quando a lacuna
existe contra a vontade do legislador eacute porque o fato passou-lhe despercebido
Neste sentido a equidade possibilita ao juiz julgar ainda que natildeo conheccedila no
direito norma objetivamente correspondente de acordo com Machado Paupeacuterio []
ao juiz caberia em tais circunstacircncias reconhecer por equumlidade a exceccedilatildeo agrave
norma legal jaacute que se tivesse sido dado ao legislador prever a tal hipoacutetese ele
95
mesmo teria admitido que em tais condiccedilotildees devessem ser abertos os portotildees75
(2003 p 69)
De acordo com Aristoacuteteles
Essa eacute a razatildeo porque quando ocorrem disputas os indiviacuteduos recorrem a um juiz Dirigir-se a um juiz eacute dirigir-se agrave justiccedila pois o juiz ideal eacute por assim dizer a justiccedila personificada E tambeacutem os homens necessitam de um juiz para que este seja um elemento mediano pelo que efetivamente em alguns lugares ele eacute chamado de mediador pois pensam que se ele atinge a mediania atinge o que eacute justo Assim o justo eacute uma espeacutecie de mediania na medida em que o juiz eacute um meio (intermediaacuterio) entre os litigantes (EN V 4 1132a20)
Eacute importante destacar a observaccedilatildeo feita por Maria Helena Diniz em sua
obra Lacunas no Direito ela propotildee a existecircncia de certa dificuldade no emprego da
equidade
A equumlidade eacute teoricamente uma virtude de que deve lanccedilar matildeo o aplicador para temperar os rigores de uma foacutermula demasiado geneacuterica fazendo com que essa natildeo contrarie os reclamos da justiccedila Considera portanto a equumlidade como uma virtude informada pela justiccedila
Todavia Aristoacuteteles na praacutetica preconizava a absoluta submissatildeo do magistrado agrave lei porque entendia ser perigoso decidir por equumlidade no ambiente de corrupccedilatildeo que reinava nos Estados-cidades helecircnicos e nos tribunais corroiacutedos ateacute agrave medula pelas paixotildees poliacuteticas e pelas facccedilotildees Recomenda o mestre Estagira o juiacutezo arbitral para decisotildees de equumlidade (DINIZ 2002 p 242-243)
Essa uacuteltima observaccedilatildeo a que se refere agrave abstenccedilatildeo do emprego de juiacutezos
por equidade aparece na Retoacuterica ao que natildeo poderiacuteamos deixar de fazer
referecircncia ldquo[] preferimos uma arbitragem a um litiacutegio jaacute que o aacuterbitro leva em
conta a equidade ao passo que o juiz leva em conta a lei A arbitragem foi criada
com o propoacutesito expresso de garantir espaccedilo total para a equidaderdquo (Ret I 13
1374b20)
75
Paupeacuterio estaacute se referindo ao exemplo de Santo Tomaacutes sobre um vilarejo onde uma regra
determinasse que os portotildees permanecessem fechados durante a noite sendo que em determinada noite parte da populaccedilatildeo fosse acossada por inimigos e recorressem aos portotildees para se protegerem a questatildeo eacute deveria os guardas desobedecer a regra abrindo os portotildees com o escopo de proteger os habitantes
96
Na anaacutelise das condiccedilotildees que permitem a aplicaccedilatildeo da epiqueacuteia (III 15 e ss em especial 20) explicamos que uma delas devia ser ldquoextraordinaacuteriardquo De caso que a previsatildeo normativa deve ao seu tempo considerar o curso ordinaacuterio das coisas Pois quando nos permitimos expor uma questatildeo (ou nova condiccedilatildeo) do procedimento ldquoem regra epiqueacuteia eacute de aplicaccedilatildeo exceccedilatildeo e restritiva para os juiacutezesrdquo (SHIAVO 2013 p 27
traduccedilatildeo nossa)76
De acordo com HOumlFF (2003 p 68) ldquoVisto as regras de um modo geral
prejudicarem a justiccedila do caso individual poderiacuteamos querer abrir matildeo delas e
confiar integralmente na faculdade de juiacutezo de pessoas Mas leis satildeo melhores agrave
medida que diferentemente de pessoas satildeo de todo isentas de paixotildeesrdquo
Natildeo aparece em qualquer outra parte do texto referecircncia ao natildeo emprego
da equidade O Filoacutesofo por certo natildeo eacute da posiccedilatildeo de que os juiacutezos devem ser
concretizados pela abstenccedilatildeo legal Muito pelo contraacuterio o que vemos eacute que o justo
de modo geral eacute o justo legal afinal como jaacute esclarecido a lei promulgada da forma
correta representa o bem da comunidade A questatildeo eacute que como criteacuterio do justo a
equidade permanece como condiccedilatildeo necessaacuteria para acomodaccedilatildeo do direito e
concretizaccedilatildeo da justiccedila uma vez que o bem geral natildeo pretende causar prejuiacutezos
aos particulares Destarte eacute certo que a pretensatildeo aristoteacutelica eacute que a equidade seja
paracircmetro de formulaccedilatildeo do ldquodecreto especialrdquo ao caso concreto para que este ao
aplicar a lei ou na ausecircncia desta natildeo se afaste do real fim a que se propotildeem os
legisladores
Portanto podemos dizer que a problemaacutetica acerca da natureza essencial
do equitativo eacute dupla Se de um lado o justo legal em sua generalidade pode causar
injusticcedila pela aplicaccedilatildeo insensiacutevel da norma ao caso concreto de outro a
generalidade natildeo eacute suficiente para compreender ainda que em sua insensibilidade
para com o particular uma totalidade normativa isenta de lacunas
76
En el anaacutelisis de las condiciones que permiten la aplicacioacuten de la epiqueya (ut supra III 15 y ss en especial 20) explicamos que una de aquellas debiacutea ser lo ldquoextraordinariordquo del caso frente a lo cual la previsioacuten normativa debioacute a su tiempo considerar el curso ordinario de las cosas Pues ahora nos permitimos exponer una cuestioacuten (o nueva condicioacuten) de procedimiento ldquola regla de la epiqueya es de aplicacioacuten excepcional y restrictiva para los juecesrdquo (SHIAVO 2013 p 27 traduccedilatildeo nossa)
97
66 O homem equitativo
Por certo o equacircnime eacute tambeacutem um homem de prudecircncia pois procura
dentro daquilo que lhe eacute permitido escolher o melhor possiacutevel Shiner ao referir agrave
metaacutefora da reacutegua pluacutembea define o artiacutefice de Lesbos ldquoNenhum artesatildeo eacute perfeito
mas isso eacute em parte porque os materiais contecircm imperfeiccedilotildees Alguns artesatildeos satildeo
o melhor que podem ser - ou seja o melhorrdquo (SHINER 1994 p 1257 traduccedilatildeo
nossa77)
Aristoacuteteles daacute a definiccedilatildeo do homem equitativo
[] ele eacute algueacutem que por escolha e haacutebito faz o que eacute equitativo e que natildeo eacute inflexiacutevel quanto aos seus direitos se contentando em receber uma porccedilatildeo menor mesmo que tenha a lei ao seu lado Eacute a disposiccedilatildeo correspondente eacute a equidade a qual eacute um tipo especial de justiccedila e de modo algum uma qualidade diferente (EN V 10 1138a)
Analisemos este conceito
ldquoEle eacute algueacutem que por escolha e haacutebito faz o que eacute equitatitivordquo
Escolha segundo o Estagirita eacute ldquoum desejo deliberado de coisas em nosso
poderrdquo (EN III 3 1113a10) Em Da Alma esclarece que o desejo eacute a fonte do
movimento78 ldquoO desejo [] eacute capaz de gerar movimento independentemente do
caacutelculo ou raciociacutenio porque o apetite eacute uma forma de desejo Eacute de se notar
entretanto que enquanto o intelecto eacute sempre correto o desejo e a imaginaccedilatildeo
podem ser tanto corretos quanto incorretosrdquo (DA III 10 433a20) Sobre a
deliberaccedilatildeo esclarece que ldquoA deliberaccedilatildeo portanto eacute empregada em mateacuterias que
embora sujeitas a regras que geralmente satildeo para o bem satildeo incertas quanto aos
seus resultados ou consequecircncias ou nas quais resultados ou consequecircncias satildeo
indeterminados [] Aleacutem disso natildeo deliberamos acerca de fins mas acerca de
meiosrdquo (EN III 3 1112b10) Ainda sobre a deliberaccedilatildeo Aristoacuteteles deixa uma
importante observaccedilatildeo Eacute a de que soacute podemos deliberar acerca daquilo que estaacute
77 No craftsman is perfect but that is in part because the materials contain imperfections Some
craftsmen are the best they can be-that is to say the best 78
Assunto tratado no item 22 O Movimento da potecircncia para o ato
98
em nosso poder ldquotem que ser um bem passiacutevel de vir a ser pela accedilatildeo e apenas o
que pode ser diferente de como eacute pode de tal modo vir a serrdquo (DA III 10 433a30)
Acerca do haacutebito esclarece Pierre Pelegrin A virtude eacutetica eacute com efeito um
ldquoestadordquo do sujeito que eacute de certo modo a cristalizaccedilatildeo de bons haacutebitos que se
implantam tanto melhor no indiviacuteduo quanto mais cedo ele os adquire na vida (2010
p28)
Sobre o equitativo Aristoacuteteles apresenta o conceito quando trata do justo e
injusto79 De acordo com esta concepccedilatildeo pode-se ser justo ou injusto de duas
formas a primeira com relaccedilatildeo a observacircncia ou transgressatildeo da lei e a segunda
relacionada ao criteacuterio de igualdade Esta uacuteltima com relaccedilatildeo agrave igualdade Aristoacuteteles
nomina ldquojusto equitativordquo
Pode-se ferir o equitativo por excesso ou deficiecircncia Por excesso quando
reteacutem maior parcela do bem desejaacutevel e por deficiecircncia quando toma para si menor
parcela daquilo que natildeo eacute desejaacutevel80 Assim como na relaccedilatildeo entre perda e ganho
obtenho ganho quando adquiro mais ldquobemrdquo e menos ldquomalrdquo e obtenho perda quando
adquiro menos ldquobemrdquo e mais ldquomalrdquo (EN V 4 1132a5-15)
ldquoe que natildeo eacute inflexiacutevel quanto aos seus direitos se contentando em receber
uma porccedilatildeo menor mesmo que tenha a lei ao seu ladordquo
Este aspecto do homem equitativo parece fazer referecircncia ao sentido lato de
equidade onde ldquoser equitativo eacute mostrar indulgecircnciardquo (Ret I 13 1374b10) O
equacircnime eacute justo e ainda melhor porque ateacute em receber o que lhe eacute devido
apresenta moderaccedilatildeo Natildeo ser inflexiacutevel quanto aos seus direitos demonstra que o
equacircnime estaacute fundido com seu princiacutepio de justiccedila a equidade Pois eacute ele mesmo a
ldquojusticcedila personificadardquo81 Eacute a virtude paradigmaticamente do juiz e dos outros por
extensatildeo (SHINER 1994 p 1251-1252 traduccedilatildeo nossa)82
79
EN V 2 1130b10 80
Aristoacuteteles define a deficiecircncia como a parcela menor recebida pela viacutetima Parece-nos que deixou de desenvolver o conceito nessas linhas Mas podemos visualizar esse desdobramento pouco mais adiante quando trata do ganho e da perda Vide (EN V 4 1132a5-15) 81 EN V 4 1132a20 82
It is a virtue paradigmatically of the judge and of others by extension (SHINER 1994 p 1251-1252)
99
ldquoEacute a disposiccedilatildeo correspondente a equidade a qual eacute um tipo especial de
justiccedila e de modo algum uma qualidade diferenterdquo
Nesta uacuteltima sentenccedila ele enquanto justo age pela equidade seja por natildeo
ser inflexiacutevel com o direito ao aplicaacute-lo a si ou a outrem ou seja pela capacidade de
conhecer o princiacutepio da justiccedila onde natildeo foi convencionada regra alguma ldquoEacute a
marca de um homem educado Aristoacuteteles no diz em uma famosa passagem olhar
com precisatildeo para cada classe de coisas apenas como o permite a natureza do
assuntordquo (SHINER 1994 p 1257 traduccedilatildeo nossa)
67 Equidade e Prudecircncia
Entendendo que o uso da equidade busca uma interpretaccedilatildeo razoaacutevel
(interpretarla razonablemente) da lei Recasens Siches (2008) nos ensina a
equidade eacute a expressatildeo do justo natural em relaccedilatildeo ao caso concreto Em outras
palavras a equidade eacute o justo mas natildeo o justo legal tal como se desprende das
palavras da lei mas autenticamente sobre o caso particular (SICHES 2008 p 656
traduccedilatildeo nossa)83 Portanto ldquopode-se dizer que tanto a reacutegua de Lesbos quanto a
pedra a que ela se amolda para medir manteacutem iacutentegra a sua natureza ndash reacutegua
como reacutegua pedra como pedra ambas submetidas ao criteacuterio apreciador daquele
que se incumbe de definiccedilatildeo da medidardquo (LOPES 1993 p 46)
Tomaacutes de Aquino (1225-1274) em sua Suma Teoloacutegica procura a
compreensatildeo do que seja a equidade observando a inexistecircncia de termo correlato
na liacutengua latina da palavra grega ἐπιείκεια (epieiacutekeia)84 acaba por deixar expliacutecita a
popularidade dessa virtude entre os medievais
Os atos humanos ndash sobre os quais incidem as leis ndash satildeo singulares e contingentes e portanto podem se dar com uma infinita variedade de modos
Daiacute que natildeo seja possiacutevel estabelecer uma lei que natildeo falhe em algum caso concreto[]
84
Et ad hoc ordinatur epicheia quae apud nos dicitur aequitas E isso eacute a epiqueacuteia que entre noacutes diz-se aequitas (traduccedilatildeo nossa)
100
Nesses casos e em casos semelhantes eacute mau seguir o que estaacute estabelecido pela lei e pelo contraacuterio eacute bom passar por cima da letra da lei e seguir o que pede pelo espiacuterito de justiccedila e utilidade comum E eacute isso que faz a epiqueacuteia que entre noacutes se chama equumlidade Fica assim evidente que a epiqueacuteia eacute virtude (Sum II-II 1201)
Nesse sentido a prudecircncia e a equidade apontam para questotildees relativas agrave
deliberaccedilatildeo mais especificamente sobre como agir de acordo com o bem Ambas
parecem obrar no espaccedilo existente entre o particular e o universal Destarte eacute
preciso perceber que
[] a existecircncia insuperaacutevel de um obstaacuteculo ontoloacutegico entre a regra e sua aplicaccedilatildeo entre o universal e o particular Taylor chama esse obstaacuteculo ontoloacutegico de ldquohiato froneacuteticordquo (phronetic gap) em referecircncia direta agrave sua matriz aristoteacutelica Aristoacuteteles como Aubenque (2003 p 75) observa natildeo tem a expectativa platocircnica de poder deduzir o particular do universal Aristoacuteteles natildeo culpa a ignoracircncia dos homens por essa incapacidade Natildeo se trata para Aristoacuteteles de uma fraqueza psicoloacutegica algo que portanto pudesse ser superado pelo Rei-Filoacutesofo de Platatildeo ou pelo Juiz Heacutercules de Dworkin A impossibilidade de deduzir o particular do universal decorre da proacutepria realidade e nesse sentido natildeo pode ser superada por uma ciecircncia A aplicaccedilatildeo das regras eacute antes de tudo uma questatildeo de prudecircncia (phronesis) (OLIVEIRA 2009 p 24 negrito nosso)
Essa limitaccedilatildeo da ciecircncia eacute objeto da exposiccedilatildeo acerca da prudecircncia (ENVI
5 1140a30) O fato eacute que o conhecimento cientiacutefico envolve demonstraccedilatildeo ou seja
diz respeito agraves coisas imutaacuteveis necessaacuterias Por outro lado a prudecircncia cuida de
assuntos relacionados agrave conduta admitindo assim a variaccedilatildeo ldquoPara que seja objeto
do conhecimento cientiacutefico uma verdade tem que ser demonstrada pelo processo
dedutivo a partir de outras verdades ao passo que a arte e a prudecircncia (sabedoria
praacutetica) se referem somente a coisas mutaacuteveisrdquo (EN VI 6 1141a1)
O caraacuteter praacutetico isto eacute concernente agrave accedilatildeo proacuteprio da phroacutenesis exige portanto que ela possua o conhecimento dos casos individuais pois a accedilatildeo se produz sempre em situaccedilotildees individuais por isso a phroacutenesis requer certa experiecircncia que eacute justamente o conhecimento dos particulares A phroacutenesis contudo inclui em alguma medida tambeacutem o conhecimento do universal no sentido de que deve saber aplicar ao caso individual uma caracteriacutestica geral como mostra o exemplo dado por Aristoacuteteles Natildeo basta para produzir sauacutede (accedilatildeo) saber que as carnes leves satildeo saudaacuteveis (caracteriacutestica universal) caso natildeo se saiba
101
que a carne de galinha eacute leve (caso individual ou particular) e portanto que a carne de galinha eacute saudaacutevel (aplicaccedilatildeo do universal ao particular)
Martha C Nussbaum explica que Aristoacuteteles aponta trecircs traccedilos da mateacuteria
praacutetica que demonstram porque as escolhas praacuteticas natildeo podem mesmo em
princiacutepio ser adequadas e completamente assimiladas em um sistema de regras
universais Satildeo esses traccedilos a mutabilidade a indeterminaccedilatildeo e a particularidade
(NUSSABAUM 2009 p 263)
Eacutemile Boutroux sustenta que pelo princiacutepio da irredutibilidade essa
especulaccedilatildeo abstrata ndash a do conhecimento cientiacutefico ndash ldquoseraacute impotente para nos
fazer conhecer a natureza aiacute seraacute necessaacuteria a experiecircncia E na ordem moral as
leis seratildeo insuficientes para fazer reinar a justiccedila seraacute preciso acrescentar-lhes o
magistrado encarregado de aplicar judiciosamente as regras gerais agrave diversidade
dos casos individuaisrdquo (2006 p 127)
No mesmo sentido Pierre Aubenque direciona a relaccedilatildeo entre a prudecircncia e
a equidade sintetizando os principais toacutepicos de nossa exposiccedilatildeo Tal siacutentese tem
por base o julgamento eacutetico proacuteprio agrave Eacutetica a Nicocircmaco onde o prudente natildeo teraacute
mais por analogia o saber do geocircmetra mas o engenho do carpinteiro
[] Enquanto Platatildeo natildeo parece ter posto em duacutevida que um saber suficientemente transcendente poderia abranger a totalidade dos casos particulares Aristoacuteteles nunca espera poder deduzir o particular do universal ldquoa falta nos diz ele natildeo estaacute na lei nem no legislador mas na natureza da coisa em th fnsei ton prgmatojrdquo Onde Platatildeo via uma
fraqueza psicoloacutegica devido a ignoracircncia dos homens Aristoacuteteles reconhece como faz habitualmente um obstaacuteculo ontoloacutegico um hiato que afeta a proacutepria realidade e que nenhuma ciecircncia poderaacute superar [] se a indeterminaccedilatildeo eacute ontoloacutegica a lei soacute pode depender de uma regra ela proacutepria indeterminada tou gar aoristou aoristin tal como a reacutegua
de chumbo de lesbos cuja a inexatidatildeo permite adaptar-se adequadamente aos contornos da pedra [] Para Aristoacuteteles ao contraacuterio de uma justiccedila abstrata cientiacutefica via sua sorte ligada a da lei eacute pois a justiccedila mesma que necessita ser corrigida pela virtude da equidade [] Percebe-se o paralelismo dessa problemaacutetica com a da prudecircncia ou antes o encavalamento de ambas se a prudecircncia eacute a virtude intelectual que permite a cada vez definir a norma o equacircnime deveraacute possuir no mais alto grau a virtude da prudecircncia para aplica-la em seu domiacutenio proacuteprio [] (AUBENQUE 2008 73-76 negrito nosso)
102
Portanto a prudecircncia e equidade produzem seus efeitos no acircmbito da razatildeo
praacutetica especificamente no que concerne a aplicaccedilatildeo da norma em sua
generalidade e abstraccedilatildeo ao caso concreto que transcorre num mundo
contingencial
O equacircnime eacute antes de qualquer coisa um prudente ou seja a virtude da
prudecircncia eacute um pressuposto para o exerciacutecio da equidade Isso fica evidenciado
pelo proacuteprio papel da prudecircncia qual seja guiar e orientar as escolhas para a
concretizaccedilatildeo das demais virtudes Ademais ambos possuem como faculdade
central a disposiccedilatildeo para o bem escolher de forma acomodar o bem absoluto85 ao
melhor possiacutevel86
85
Aspecto formal da regra enquanto forma e universalidade 86
Aspecto material da accedilatildeo enquanto mateacuteria e singularidade
103
7 CONCLUSAtildeO
Foi objeto do presente trabalho uma anaacutelise das formulaccedilotildees aristoteacutelicas
acerca do conceito de prudecircncia e equidade anaacutelise essa que deveria sustentar-se
sob a eacutegide de uma inter-relaccedilatildeo entre tais conceitos
Para alcanccedilar tal objetivo propomos no capiacutetulo 2 que a contingecircncia eacute algo
que se encontra em comum na atividade de ambos os conceitos como condiccedilatildeo
necessaacuteria agrave compreensatildeo dos mesmos Por isso o que a pouco chamamos de
hiato froneacutetico natildeo eacute outra coisa senatildeo a distacircncia entre o ldquoparticularrdquo e o
ldquouniversalrdquo entre a ldquopotecircnciardquo e o ldquoatordquo e entre o ldquomelhor que posso fazerrdquo e o ldquobem
absolutordquo
No capiacutetulo 3 intitulado Eacutetica das Virtudes procuramos clarear o liame entre
as virtudes e a necessidade de accedilatildeo caracteriacutestica inerente ao mundo contingencial
Nele introduzimos no que eacute pertinente agrave nossa proposta a teoria geral das virtudes
em Aristoacuteteles estabelecendo sua relaccedilatildeo com as partes da alma e diferenciado em
morais e intelectuais Neste sentido a relaccedilatildeo entre prudecircncia e equidade parece
distanciar-se devido a prudecircncia estar situada na faculdade cientiacutefica da alma
enquanto a equidade estaacute inserida na faculdade calculadora Tal problema eacute
solucionado pelo proacuteprio Aristoacuteteles afinal a prudecircncia como ordenadora das accedilotildees
virtuosas eacute o ponto de contato entre aquilo que estaacute e aquilo que natildeo estaacute ao
alcance do homem ou seja ela age como princiacutepio informativo entre a faculdade
calculadora e a faculdade cientiacutefica da parte racional da alma Por fim foi feita uma
exposiccedilatildeo acerca da mediania como paracircmetro da razatildeo praacutetica seguida de uma
exposiccedilatildeo sobre as accedilotildees voluntaacuterias e involuntaacuterias
A partir do capitulo 4 procuramos analisar a proposta aristoteacutelica do que
seja a prudecircncia Assim concluiacutemos ser a prudecircncia uma virtude intelectual situada
na parte racional da alma mais precisamente na parte que forma opiniotildees por ser
seu objeto a especulaccedilatildeo das coisas que admite variaccedilotildees e portanto satildeo
trabalhadas pela faculdade calculadora Nesse sentido eacute a qualidade racional de
consecuccedilatildeo da verdade capaz de bem deliberar em geral
104
No capiacutetulo 5 a justiccedila foi delineada como sendo uma virtude Tal virtude eacute
dita a mais perfeita pois segundo o Estagirita nela se encontra somada todas as
virtudes O que ele quer dizer com isso eacute que o fato de natildeo se observar qualquer
uma das virtudes eacute um ato de injusticcedila Neste sentido vimos a produccedilatildeo legislativa
como uma ramificaccedilatildeo da prudecircncia nomeada por Aristoacuteteles como ciecircncia
legislativa por desempenhar um duplo papel controlador e diretivo ndash no sentido de
educar para a virtude A outra ramificaccedilatildeo eacute a ciecircncia poliacutetica que diz respeito agrave
deliberaccedilatildeo a qual divide em processo deliberativo e processo judiciaacuterio Apoacutes
visualizarmos os conceitos proacuteprios agrave teoria da justiccedila de Aristoacuteteles concluiacutemos ser
ela uma virtude moral sendo ela mesma uma mediania que faz realizar agir e
desejar o que eacute o justo A justiccedila de modo geral ganha trecircs sentidos quais sejam
legal igual e equitativo
Por fim no capiacutetulo 6 procuramos analisar o conceito de equidade
Inicialmente apresentamos seu conceito lato e stricto Em seguida procuramos
compreender a ambiguidade apresentada por Aristoacuteteles acerca do tema
Apresentamos a justiccedila enquanto equidade compreendendo natildeo ser a equidade
diferente da justiccedila mas apenas melhor que uma de suas espeacutecies Procuramos
compreender a justiccedila enquanto estabelecimento da igualdade A natureza essencial
da equidade foi estudada enquanto retificaccedilatildeo do justo legal De acordo com isso
estaacute para noacutes a metaacutefora da reacutegua de chumbo que encontra a medida justa em sua
flexibilidade uma vez que em rigidez natildeo poderia conhecer as muacuteltiplas e possiacuteveis
formas na qual flutua a contingecircncia material Uma uacuteltima anaacutelise abordou a relaccedilatildeo
entre a prudecircncia e a equidade concluindo por uma relaccedilatildeo de gecircnero e espeacutecie
uma vez que a equidade eacute uma qualidade do prudente e que possuem como
principal ponto em comum a contingecircncia enquanto condiccedilatildeo para accedilatildeo
Eacute na pergunta que fizemos na introduccedilatildeo que concluiacutemos estar a chave para
a compreensatildeo dos conceitos formulados Qual a relaccedilatildeo entre a prudecircncia e a
equidade aristoteacutelica A reposta dada pelos comentadores no capiacutetulo 6 em
especial Pierre Aubenque aponta para noacutes uma relaccedilatildeo que comporta em sua
estrutura conceitual uma interdependecircncia Nesse sentido natildeo podemos
compreender o conceito de equidade sem compreender o conceito de prudecircncia
105
Essa relaccedilatildeo pode ser travada porque ambas lidam com situaccedilotildees em
comum Elas estatildeo para o homem como soluccedilatildeo naquilo em que a Providecircncia
falha Suas funccedilotildees trabalham para indicar a melhor decisatildeo quando se tem que
escolher entre dois males Elas procuram sanar a distacircncia entre os princiacutepios gerais
e a realidade em particular Elas satildeo as articulaccedilotildees que permitem ao homem fazer
a escolha pelo melhor possiacutevel uma vez que na fraacutegil condiccedilatildeo parece tatildeo distante
do bem absoluto quanto o homem de Deus
106
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Satildeo Paulo Martins Fontes 2005
AGRADECIMENTOS
A todos que contribuiacuteram direta ou indiretamente para a concretizaccedilatildeo deste
sonho Fica aqui registrada a minha gratidatildeo especialmente
Ao meu Orientador Professor Juacutelio Aguiar de Oliveira que acolheu e
acreditou em minhas ideias natildeo deixando que eu acreditasse que as contingecircncias
da vida fossem outra coisa que natildeo verdadeiras liccedilotildees e incentivos para o meu
aperfeiccediloamento pessoal e acadecircmico
Agradeccedilo tambeacutem ao meu Coorientador Alexandre Travessoni Gomes
Trivisonno pelos valorosos exemplos de retidatildeo e seriedade
Aos meus colegas de curso que comungaram comigo agrave elevada aspiraccedilatildeo
acadecircmica
Ao prof Virgiacutelio Diniz pela amizade e apoio de sempre
Agrave prof Leda Soares e prof Luciana Costa que sempre estiveram dispostas
a me ajudar da melhor forma possiacutevel jamais me esquecerei disso
Obrigado do fundo do meu coraccedilatildeo a todos vocecircs
Sou com efeito vosso servo e filho de vossa serva um
homem fraco cuja existecircncia eacute breve incapaz de compreender
vosso julgamento e vossas leis []
Que homem pois pode conhecer os desiacutegnios de Deus e
penetrar nas determinaccedilotildees do Senhor
Tiacutemidos satildeo os pensamentos dos mortais e incertas as nossas
providecircncias (SABEDORIA 10)
RESUMO
Esta dissertaccedilatildeo realizou um estudo acerca da concepccedilatildeo aristoteacutelica dos conceitos
de prudecircncia e equidade Seu objetivo foi analisar os conceitos de prudecircncia e
equidade e estabelecer as possiacuteveis relaccedilotildees inerentes a tais conceitos
Primeiramente procurou-se compreender a noccedilatildeo de contingecircncia verificando que
tal noccedilatildeo estaacute estritamente relacionada agrave possibilidade de accedilatildeo e portanto agrave
questotildees de razatildeo praacutetica Em seguida realizou-se uma abordagem acerca da eacutetica
das virtudes objetivando contextualizar os conceitos estudados Realizada uma
exposiccedilatildeo sobre a prudecircncia procurou-se estabelecer em linhas gerais a concepccedilatildeo
aristoteacutelica de justiccedila Por fim foi realizada uma tentativa de reconstruccedilatildeo dos
conceitos de prudecircncia e de equidade A conclusatildeo que se chegou foi a de que tanto
o conceito de prudecircncia quanto o de equidade estatildeo relacionados agrave questotildees de
razatildeo praacutetica A principal relaccedilatildeo estabelecida entre tais conceitos eacute a de que ambos
lidam com situaccedilotildees contingenciais o que evidencia a distacircncia entre o universal e o
particular que ao final chamamos de hiato-froneacutetico
Palavras-chave Aristoacuteteles Prudecircncia Equidade
ABSTRACT
This work conducted a study on the Aristotelian conception of the concepts of
prudence and equity His goal was to analyze the concepts of prudence and equity
and establish possible relationships inherent in such concepts First we sought to
understand the notion of contingency noting that such a notion is closely related to
the possibility of action and therefore the issues of practical reason Then took place
about an approach of virtue ethics aiming to contextualize the concepts studied An
exhibition about prudence sought to establish a broadly Aristotelian conception of
justice Finally an attempt was made to reconstruct concepts of prudence and equity
The conclusion reached was that both the concepts of prudence and equity are
related to issues of practical reason The main relationship between these concepts
is to both deal with contingency situations which shows the distance between the
universal and the particular which we call the phronetic gap
Key-words Aristotle Prudence Equity
LISTA DE ABREVIATURAS
AA ndash Analiacuteticos Anteriores
DA ndash Da Alma
DI ndash Da Interpretaccedilatildeo
EE ndash Eacutetica a Eudemo
EN ndash Eacutetica a Nicocircmaco
Fiacutes - Fiacutesica
Met ndash Metafiacutesica
MM ndash Magna Moralia
Pol ndash Poliacutetica
Ret - Retoacuterica
SUMAacuteRIO 1 INTRODUCcedilAtildeO12 2 A CONTINGEcircNCIA16 21 A Loacutegica16 22 O Movimento da potecircncia para o ato21 23 Indeterminismo e a eacutetica das virtudes26 231 Primeira concepccedilatildeo de acaso A boa fortuna26 232 Segunda concepccedilatildeo de acaso Acidente28 233 Terceira concepccedilatildeo de acaso contingecircncia30 2331 Trageacutedia32 3 EacuteTICA DAS VIRTUDES35 31 Eacutetica a Nicocircmaco36 32 Partes da Alma39 33 Virtudes Morais43 331 Doutrina da Mediana45 34 Accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria47 35 Virtudes Intelectuais51 4 PRUDEcircNCIA54 41 Conceito54 42 Prudecircncia e liberdade56 43 Arte e prudecircncia57 44 Deliberaccedilatildeo e Escolha58 45 O prudente61 5 JUSTICcedilA COMO VIRTUDE67 51 Justo e injusto68 52 Justo universal69 53 Justo particular71 531 Justiccedila distributiva71 532 Justiccedila corretiva72 54 Justo domeacutestico73 55 Justo poliacutetico74 551 Justo natural75 552 Justo legal (convencional)75 6 A EQUIDADE78 61 Justiccedila e equidade ambiguidade do tema79 62 Justiccedila como equidade82 621 Justiccedila e igualdade84 63 Equidade melhor que um tipo de justiccedila86 64 Natureza essencial do equitativo a retificaccedilatildeo do justo legal87 641 A metaacutefora da reacutegua de chumbo88 642 A retificaccedilatildeo do justo legal89 65 Equidade e lacuna93 66 O homem equitativo97
67 Equidade e Prudecircncia99 7 CONCLUSAtildeO103 REFEREcircNCIAS106
12
1 INTRODUCcedilAtildeO
Com o surgimento da modernidade originou-se uma ruptura nos
fundamentos da filosofia moral claacutessica Dessa forma conceitos basilares da
filosofia moral perderam os seus significados restando para o mundo
contemporacircneo apenas fragmentos de suas antigas concepccedilotildees Conforme propotildee
Alasdair MacIntyre (2001 p 15) em sua obra Depois da virtude o que possuiacutemos
satildeo apenas fragmentos de um esquema conceitual fragmentos hoje distantes de
seu contexto semacircntico o que quer dizer que utilizamos apenas os simulacros de
tais conceitos
Desse modo o significado claacutessico das virtudes da forma como
estabelecido por Aristoacuteteles foi alterado tornando-se inacessiacuteveis agrave nossa
compreensatildeo o sentido atribuiacutedo por Aristoacuteteles aos conceitos de prudecircncia e de
equidade
O conceito de prudecircncia1 apresenta significativas transformaccedilotildees
semacircnticas o que obscurece e compromete a compreensatildeo do seu significado
claacutessico Eacute o que Jean Lauand veio a perceber quando traduziu as questotildees 47-46
da Segunda Parte da Segunda Parte da Suma Teoloacutegica de Tomaacutes de Aquino
[] prudentia eacute uma daquelas tantas palavras fundamentais que sofreram desastrosas transformaccedilotildees semacircnticas com o passar do tempo
A proximidade entre nossa liacutengua e o latim de Tomaacutes natildeo nos deve enganar ocorre como diziacuteamos um conhecido fenocircmeno de alteraccedilatildeo do sentido das palavras que se manifesta muitas vezes quando lemos um autor de outra eacutepoca E natildeo soacute alteraccedilatildeo como mostra C S Lewis daacute-se frequumlentemente sobretudo no campo da eacutetica uma autecircntica inversatildeo de polaridade aquela palavra que originalmente designava uma qualidade positiva esvazia-se de seu sentido inicial ou passa a designar uma qualidade negativa
1 Optamos por escrever no termo utilizado usualmente pelos autores da liacutengua portuguesa Contudo
conforme consta desta introduccedilatildeo os conceitos proacuteprios agrave tradiccedilatildeo das virtudes perderam sua inteligibilidade restando para noacutes apenas simulacros do que um dia corresponderam De acordo com HERMANN (2007) ldquoO termo phronesis natildeo tem uma traduccedilatildeo que expresse de forma satisfatoacuteria o espectro semacircntico que possuiacutea para o mundo grego Habitualmente traduzido por prudecircncia o uso do termo descolou-se do contexto de origem e perdeu seu enraizamento eacuteticordquo O mesmo acontece com o termo Epeiqueia
13
Foi o que aconteceu entre outras com as palavras ldquoprudenterdquo e ldquoprudecircnciardquo []
Se hoje a palavra prudecircncia tornou-se aquela egoiacutesta cautela da indecisatildeo (em cima do muro) em Tomaacutes ao contraacuterio prudentia expressa exatamente o oposto eacute a arte de decidir corretamente [] virtude do liacutempido conhecimento do ser (LUAND 2005 p7-10)
O conceito de equidade igualmente nos parece de difiacutecil compreensatildeo O
dicionaacuterio grego-portuguecircs de Isidro Pereira registra as seguintes traduccedilotildees para
ἐπιείκεια conveniecircncia moderaccedilatildeo equidade epiqueia doccedilura bondade (cf
PEREIRA 1998 p 210 [verbete ἐπιείκεια]) Registrando a presenccedila de uma
traduccedilatildeo ainda mais proacutexima do termo grego epieiacutekeia menos usada contudo em
nosso vocabulaacuterio epiqueia2 Disso podemos constatar que embora a equidade
goze de grande popularidade no meio juriacutedico seu emprego por vezes varia ainda
que ligeiramente do conceito elaborado pelo Estagirita3
Portanto diante de tais dificuldades questionamos O que seria a prudecircncia
e a equidade na tradiccedilatildeo aristoteacutelica Tal questionamento nos levou a procurar nos
textos do proacuteprio Aristoacuteteles e seus comentadores os indiacutecios das formulaccedilotildees
originaacuterias Por ora o que podemos levantar eacute que ambos os conceitos satildeo
visualizados em situaccedilotildees muito aproximadas O que nos leva agrave possiblidade de
existir entre ambos uma relaccedilatildeo de interdependecircncia conceitual Talvez seja por isso
que quando Aristoacuteteles aborda as virtudes morais deixa a equidade como uacuteltimo
assunto antes de tratar da virtude intelectual da prudecircncia
Neste sentido o trabalho foi elaborado traccedilando um percurso entre as
condiccedilotildees necessaacuterias ao exerciacutecio das virtudes para em seguida procurarmos
contextualizar a teoria das virtudes como um todo e por fim conhecermos a virtude
da prudecircncia No momento subsequente realizamos uma exposiccedilatildeo da virtude da
justiccedila Apoacutes esses passos entendemos ser possiacutevel a formulaccedilatildeo das concepccedilotildees
aristoteacutelicas dos conceitos de prudecircncia e equidade
2 Abbagnano registra epiqueia como sendo sinocircnimo de equidade (1999 p 338 [verbete epiqueia])
Em seu verbete epiqueia Aureacutelio Buarque de Holanda embora natildeo a coloque como sinocircnimo de equidade registra ldquoepiqueia Sf 1 Interpretaccedilatildeo razoaacutevel de lei ou preceito 2 Fig Meio-termo moderaccedilatildeordquo Entendimento que nos parece mais proacuteximo agrave proposta Aristoteacutelica 3 Referecircncia agrave Aristoacuteteles por ser natural de Estagira uma antiga cidade da Macedocircnia situada hoje
na Greacutecia na regiatildeo de Calciacutedica
14
Dentro desse esquema o segundo capiacutetulo tem por objetivo analisar a
contingecircncia caracterizada pela indeterminaccedilatildeo objetiva na relaccedilatildeo entre o universal
e o particular como condiccedilatildeo para o exerciacutecio da razatildeo praacutetica4 Neste sentido
iremos buscar na loacutegica de Aristoacuteteles os elementos necessaacuterios para a sua
compreensatildeo
Uma concepccedilatildeo um tanto popular quando se trata de Aristoacuteteles eacute da
potecircncia e do ato A pretensatildeo eacute revisitar esse conceito com foco na relaccedilatildeo
contingencial que existe no movimento entre a potecircncia e o ato O objetivo do
capiacutetulo alcanccedila pouso numa concepccedilatildeo de contingecircncia proacutepria agrave eacutetica das
virtudes O que segue eacute a proposta de Pierre Aubenque (2008) em fazer uma
exposiccedilatildeo da contingecircncia nas concepccedilotildees de acaso Por fim eacute na trageacutedia grega
que Aubenque (2008) mostra as condiccedilotildees necessaacuterias ao exerciacutecio das virtudes
O terceiro capiacutetulo tem por objetivo trazer uma exposiccedilatildeo que contextualize
na tradiccedilatildeo aristoteacutelica das virtudes os conceitos que seratildeo estudados Neste
sentido eacute realizada inicialmente uma leitura acerca da teoria geral das virtudes na
Eacutetica a Nicocircmaco Observando as partes da alma e suas qualidades como racional e
irracional dividindo assim as virtudes em intelectuais e morais respectivamente
O quarto capiacutetulo procura reconstruir o conceito de prudecircncia relacionando-
o com a liberdade e a arte As temaacuteticas da deliberaccedilatildeo e da escolha satildeo neste
ponto inseridas como elementos indispensaacuteveis agrave anaacutelise do conceito de prudecircncia
O quinto capiacutetulo pretende oferecer uma visatildeo geral da teoria da justiccedila de
Aristoacuteteles como tambeacutem considerar o fato de Aristoacuteteles ter inserido sua exposiccedilatildeo
da equidade no livro V em relaccedilatildeo com o conceito de justiccedila objeto especiacutefico de
investigaccedilatildeo do livro mencionado
Por uacuteltimo procuramos o conceito de equidade Essa uacuteltima exposiccedilatildeo tem
por objetivo delinear a pretensatildeo de Aristoacuteteles com tal formulaccedilatildeo Nele natildeo
inserimos pretensotildees complexas acerca de teorias especiacuteficas e contemporacircneas
mas tatildeo somente a despretensiosa e sofisticada elaboraccedilatildeo aristoteacutelica do assunto
4 Sobre razatildeo praacutetica vide LACERDA Bruno Amaro O raciociacutenio juriacutedico uma visatildeo aristoteacutelica Belo
Horizonte Movimento Editorial da Faculdade de Direito da UFMG 2005
15
Eacute neste sentido que ao explicar o desdobramento da razatildeo praacutetica ele
abandona o modelo oferecido pela geometria buscando na carpintaria um novo
modelo (fiel no entanto agrave tradiccedilatildeo das virtudes) Por fim procuramos no conceito
de equidade traccedilos pertinentes agraves virtudes em geral e em especial agrave virtude da
prudecircncia
Para a conclusatildeo reservamos a tarefa de responder a seguinte questatildeo que
se impotildee apoacutes o estudo simultacircneo desses dois conceitos existe uma relaccedilatildeo
conceitual entre os conceitos de prudecircncia e equidade
16
2 A CONTINGEcircNCIA
A prudecircncia e a equidade estatildeo condicionadas ao campo da accedilatildeo Contudo
parece que ambas soacute podem se manifestar no acircmbito do contingente Sendo
portanto a contingecircncia nosso ponto de partida
Parece ser a contingecircncia um dos fenocircmenos mais intrigantes a se tratar por
uma dupla razatildeo A contingecircncia consegue ao mesmo tempo nos desmotivar por
nos ensinar a liccedilatildeo de que natildeo podemos tudo conter e que a nossa pretensiosa
construccedilatildeo cotidiana deve estar sempre alerta para as incontaacuteveis possibilidades a
qual o mundo nos submete Por outro lado e concomitantemente eacute ela quem nos
motiva que nos convida agrave accedilatildeo Pois assim como o vento escolhe seu caminho eacute
ela que tem o poder de inserir em nossas vidas as mudanccedilas pelas quais devemos
lutar para moldarmos nossos objetivos e possibilidades um ao outro
Eacute nesse sentido que nos parece liacutecita a crenccedila em uma possiacutevel
reintegraccedilatildeo do homem com a sua natureza divina pois estatildeo nas vicissitudes da
vida as liccedilotildees praacuteticas nas quais os homens podem dar o melhor de si em busca de
um aperfeiccediloamento moral
21 A Loacutegica5
Eacute no estudo da loacutegica que pretendemos encontrar nossa primeira referecircncia
sobre o que seja a contingecircncia Tradicionalmente entende-se por loacutegica o estudo
dos raciociacutenios que pretendem atraveacutes de regras proacuteprias concluiacuterem por
resultados verdadeiros Desnudando assim os raciociacutenios que se vestem com
aparente validade mas que ocultam viacutecios que os falseiam
Tais viacutecios satildeo comumente apontados como tendo duas fontes sendo uma
relacionada aos fundamentos do raciociacutenio e outra ao nexo que se estabelece entre
5 A loacutegica normalmente eacute classificada como pertencente agrave razatildeo especulativa Nosso estudo situa-se
no acircmbito da razatildeo praacutetica Natildeo obstante parece-nos que a compreensatildeo do pensamento de Aristoacuteteles daacute-se atraveacutes da compreensatildeo de seu meacutetodo que eacute abordado na loacutegica Por outro lado quando descreve o prudente Aristoacuteteles sempre faz menccedilatildeo de que ele natildeo versa apenas sobre questotildees da razatildeo especulativa mas tambeacutem questotildees de razatildeo praacutetica Portanto o conhecimento especulativo eacute pertinente ao agente da razatildeo praacutetica Vide EN VI 7 1141b15
17
eles e a conclusatildeo Nesse sentido a loacutegica aristoteacutelica eacute estudada em dois ramos
sendo eles conhecidos como Loacutegica Maior (ou material) e Loacutegica Menor (ou formal)
Comecemos pela Loacutegica Menor De acordo com o ensino tradicional de
loacutegica as proposiccedilotildees podem ser classificadas pela qualidade e pela quantidade ou
seja como afirmativas ou negativas e universais ou particulares respectivamente
Daacute-se agraves combinaccedilotildees possiacuteveis a seguinte notaccedilatildeo Se a proposiccedilatildeo for uma
universal afirmativa por exemplo Todo S eacute P6 (Todo homem eacute mortal) entatildeo temos
uma proposiccedilatildeo ldquoArdquo Se a proposiccedilatildeo for particular afirmativa por exemplo Alguns S
satildeo P (Alguns homens satildeo brancos) entatildeo temos uma proposiccedilatildeo ldquoIrdquo Se a
proposiccedilatildeo for uma universal negativa por exemplo Nenhum ldquoSrdquo eacute ldquoPrdquo (Nenhum
homem eacute mortal) entatildeo temos uma proposiccedilatildeo ldquoErdquo Se a proposiccedilatildeo for particular
negativa por exemplo Alguns S natildeo satildeo P (Alguns poliacuteticos natildeo satildeo corruptos)
entatildeo temos uma proposiccedilatildeo ldquoOrdquo
Eacute importante notar que nessa primeira classificaccedilatildeo o que se procura
evidenciar eacute a relaccedilatildeo entre o sujeito S e o predicado P sendo que pode estar-se
afirmando ou negando algo ao particular ou ao universal
Parece-nos que os termos empregados por perspicaacutecia ou feliz
coincidecircncia daacute-nos uma importante pista acerca do domiacutenio do contingente Pois eacute
justamente na tensatildeo existente entre o universal e o particular que noacutes podemos
extrair parte do conceito entatildeo estudado
Em sua liccedilatildeo sobre loacutegica Jacques Maritain (2001 p 106) explica essa
tensatildeo expondo brevemente sobre o modo como conhecemos as coisas De acordo
com ele as coisas se apresentam de duas maneiras por uma ideia ou por uma
representaccedilatildeo sensiacutevel As ideias estatildeo relacionadas como o que conhecemos por
universal ou seja lsquoaquilo que se encontra sempre idecircntico em uma multidatildeo de
indiviacuteduos um em muitos ldquounum in multisrdquorsquo
Precisando acerca do particular7 extrai-se da mesma liccedilatildeo
Aleacutem disso se examinarmos com cuidado as diversas ciecircncias isto eacute os diversos sistemas de ideacuteias pelos quais conhecemos o real constatamos que nenhuma delas tem por objeto o individual como tal [] Eacute preciso
6 ldquoSrdquo para sujeito e ldquoPrdquo para predicado
7 Maritain aborda o tema nominando o universal por ideia e o particular por representaccedilatildeo
18
que assim seja porque o individual como tal natildeo eacute explicativo (representando somente a si mesmo natildeo pode evidentemente dar a razatildeo de outra coisa) (MARITAIN 2001 p 105)
Ainda comparando os extremos da tensatildeo Jaques Maritain facilita a
compreensatildeo ldquoOra esta ideia e esta representaccedilatildeo satildeo bem diferentes a prova eacute
que posso fazer variar a segunda de muitas maneiras (o desenho que imagino pode
ser maior ou menor branco vermelho amarelo etc) sem que a primeira varie por
causa dissordquo (MARITAIN 2001 p 103)
Aiacute estaacute nossa primeira pista pois eacute no acircmbito do particular onde ldquopode-se
fazer variarrdquo ou seja onde existe uma dificuldade em predominar o certo o
determinado o evidente o necessaacuterio eacute que chamamos o domiacutenio do contingente
Aleacutem da classificaccedilatildeo pela qualidade e quantidade temos outra importante
classificaccedilatildeo que eacute pela modalidade Nesta podemos encontrar as proposiccedilotildees
como Verdadeiras Falsas8 Necessaacuterias Possiacuteveis Impossiacuteveis e Contingentes
Nas necessaacuterias9 o predicado decorre do sujeito sendo a compreensatildeo de um
indissociaacutevel da compreensatildeo do outro
Quanto agraves proposiccedilotildees possiacuteveis satildeo aquelas em que o predicado pode ser
ou natildeo ser atribuiacutedo ao sujeito Alguns filoacutesofos se restringem a essas duas
modalidades assim a compreensatildeo da contingecircncia fica embutida na modalidade
possiacutevel em outras palavras aquilo que pode ou natildeo pode ser Essa compreensatildeo
aparece na Eacutetica a Nicocircmaco (EN VI 5 1140b1 negrito nosso) ldquouma vez que natildeo
se pode deliberar sobre coisas que estatildeo no acircmbito da necessidade conclui-se que
8 Aristoacuteteles apresenta seis modalidades Os manuais de loacutegica em sua maioria apresentam apenas
quatro modalidades de proposiccedilotildees quais sejam as necessaacuterias possiacuteveis impossiacuteveis e contingentes As modalidades de proposiccedilotildees verdadeiras e falsas satildeo tratadas como valores por decorrerem do emprego das demais
9 Na Metafiacutesica Aristoacuteteles explica a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio e as demais modalidades As
foacutermulas satildeo e natildeo satildeo independentemente da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo pois foi mostrado que ningueacutem as gera ou cria Eacute por esta razatildeo tambeacutem que natildeo haacute definiccedilatildeo ou demonstraccedilatildeo de coisas individuais sensiacuteveis porque contecircm mateacuteria cuja a natureza eacute tal que pode tanto existir quanto natildeo existir Consequentemente todos os exemplos individuais delas satildeo pereciacuteveis E se entatildeo a demonstraccedilatildeo e a definiccedilatildeo de verdades necessaacuterias requerem conhecimento cientiacutefico e se tal como conhecimento natildeo poder ser agraves vez conhecimento e agraves vezes ignoracircncia (eacute a opiniatildeo que possui esta natureza) do mesmo modo tambeacutem demonstraccedilatildeo e a definiccedilatildeo natildeo satildeo passiacuteveis de variaccedilatildeo (eacute a opiniatildeo que se ocupa com aquilo que pode ser de outra maneira do que eacute) (Met 1039b25 - 1040a1)
19
a prudecircncia (sabedoria praacutetica) natildeo eacute o mesmo que conhecimento cientiacutefico porque
os assuntos relacionados agrave conduta admitem mutaccedilatildeordquo
Mais claramente Santo Tomaacutes discorre na segunda parte da Segunda
Parte Questatildeo 47 artigo 5 da Suma Teoloacutegica
Consequumlentemente se diraacute que a prudecircncia estando na razatildeo como jaacute foi dito distingue-se das outras virtudes intelectuais segundo a diversidade material de objetos Pois a sabedoria a ciecircncia e o intelecto tecircm como objetos coisas necessaacuterias a arte e a prudecircncia coisas contingentes [] (AQUINO 2004 p 593 negrito nosso)
Parece-nos importante o desdobramento nas quatro modalidades pois o
possiacutevel e contingente natildeo parecem sinocircnimos O principal argumento estaacute no fato
de que na noccedilatildeo de possiacutevel estaacute impliacutecito o seu contraacuterio ou seja o Impossiacutevel
hipoacutetese em que o predicado natildeo decorre do sujeito Por sua vez a noccedilatildeo de
contingecircncia natildeo compreende o incontingente
Em seu Dicionaacuterio de Filosofia Nicola Abbagnano expotildee no verbete
Contingente a diferenccedila entre contingecircncia e possiacutevel jaacute exposta por Boeacutecio
ldquopossibuumlerdquo e contingens significam a mesma coisa salvo talvez pelo fato de natildeo
existir o negativo de contingens que deveria ser incontingens assim como existe o
negativo de possibuumle que eacute iacutempossiacutebilerdquo (ABBAGNANO 2007 p 200)
Sendo portanto quatro as classificaccedilotildees das modalidades Necessaacuterio ou ldquoeacute
necessaacuterio que S seja Prdquo Possiacutevel ou ldquoeacute possiacutevel que S seja Prdquo Impossiacutevel ou ldquoeacute
impossiacutevel que S seja Prdquo e Contingente ou ldquoeacute contingente que S seja Prdquo
Assim as proposiccedilotildees sempre recebem o valor de verdadeiras quando
pertencem agrave modalidade Necessaacuterio recebem o valor de falsas quando pertencem agrave
modalidade Impossiacutevel recebem o valor de verdadeiras ou falsas quando pertencem
agrave modalidade Possiacutevel
Quando as proposiccedilotildees pertencem agrave modalidade Contingente natildeo podem
ser dotadas de valoraccedilatildeo uma vez que natildeo se pode decidir se satildeo verdadeiras ou
falsas Isso na loacutegica eacute conhecido como acidentes10 ou aquilo que estaacute presente e
ausente ainda que natildeo haja corrupccedilatildeo do sujeito Por isso quando se fala em
10
Retomaremos acerca dos acidentes quando estudarmos o acaso
20
contingecircncia soacute pode estar-se referindo ao momento presente ou futuro mas nunca
ao passado Satildeo nesses momentos em que impera o indeterminado que se
encontra a contingecircncia
Natildeo obstante a correta formulaccedilatildeo de um raciociacutenio eacute possiacutevel que
obtenhamos conclusotildees erradas hipoacutetese essa em que as premissas natildeo satildeo
verdadeiras Destarte diferente da loacutegica menor que se preocupa com a
conformidade das conclusotildees com as premissas a loacutegica maior preocupa-se com a
veracidade
Para que possamos compreender melhor o objeto da loacutegica maior eacute preciso
conceituar o que seja a verdade em mateacuteria de loacutegica assim valhamo-nos das
liccedilotildees de Manoel Correia de Barros (1945)
Jaacute vimos que pelo processo de abstracccedilatildeo a forma do objeto que conhecemos adquire na nossa inteligecircncia uma modalidade de existecircncia completamente diferente da que tem na realidade No objecto eacute concreta individual na inteligecircncia eacute universal abstracta A verdade do nosso conhecimento tem portanto outro significado Consiste simplesmente em natildeo atribuirmos ao objeto nenhuma nota que natildeo lhe pertenccedila na realidade Eacute o caso de analogia A relaccedilatildeo que o nosso espiacuterito estabelece entre dois conceitos deve ser idecircntica a uma relaccedilatildeo existente de facto entre os dois objetos que eles representam para que o nosso conhecimento seja verdadeiro Natildeo eacute necessaacuterio que conheccedilamos todas as relaccedilotildees entre os dois objectos e muito menos todas as relaccedilotildees de que um decircles pode ser termo para ser verdadeiro o conhecimento natildeo precisa ser exaustivo basta que a nota que afirmamos pertencer ao obejcto lhe pertenccedila realmente Assim falamos verdade quando dizemos que a neve eacute branca embora agravececircrca da neve haja muitas coisas mais a dizer e a saber
Natildeo haacute que saber duma ideia isolada se eacute verdadeira ou natildeo A questatildeo natildeo se potildee dado que a verdade eacute igualdade de relaccedilotildees que exigem claro estaacute dois termos []
Soacute pode ser verdadeiro ou falso o juiacutezo que se exprime pela proposiccedilatildeo e relaciona entre si um sujeito e um predicado Ecircsse sim se o predicado que atribuiacutemos ao sujeito lhe convecircm na realidade eacute verdadeiro se lhe natildeo conveacutem eacute falso (BARROS 1945 p 329-330)
Dessa forma para o estabelecimento da verdade eacute necessaacuterio que natildeo haja
nada de estranho ao objeto ou em outras palavras o predicado deve decorrer do
sujeito natildeo lhe dando qualquer nota que natildeo lhe pertenccedila Por isso afirma Maritain
(2001) que a verdade de nosso espiacuterito consiste em sua conformidade com a coisa
21
Nesse sentido eacute que podemos compreender o que afirmamos quando
falaacutevamos da loacutegica menor em que natildeo podemos atribuir o incerto ao passado
Pois por oacutebvio qualquer nota que natildeo lhe tenha ocorrido natildeo lhe pertence
[] os futuros contingentes natildeo existem no passado nem mesmo como verdades futuras Ontem por exemplo natildeo era uma verdade que ia hoje sair um determinado nuacutemero na lotaria porque natildeo existia ontem nenhum facto em que essa consequumlecircncia estivesse contida de modo necessaacuterio com o qual a proposiccedilatildeo em causa pudesse concordar (BARROS 1945 p 331)
Portanto como estaacute relacionado agrave coisa futura o contingente encontra-se
latente num estado de porvir Por isso eacute que estabelecemos nossa proacutexima
referecircncia acerca da contingecircncia no movimento
22 O Movimento11 da potecircncia para o ato
Eacute interessante notar que o momento propiacutecio agrave decisatildeo eacute um momento de
passagem ou em melhor termo um momento de movimento Natildeo eacute em vatildeo que
Pierre Aubenque (2008) em seu livro A Prudecircncia em Aristoacuteteles dedica boa parte
do capiacutetulo Cosmologia da Prudecircncia ndash o mesmo capiacutetulo no qual faz uma
abordagem sobre contingecircncia ndash ao tema O tempo oportuno (καιρος)
Nesse sentido estaacute [] a moral aristoteacutelica nos convidando a realizar nossa
excelecircncia neste mundo Natildeo podendo desconhecer que o mundo dura e muda no
tempo que eacute o ldquonuacutemerordquo de seu movimento (Aubenque 2008 p156)
Dessa forma eacute preciso compreender o movimento principalmente na tatildeo
conhecida passagem da Potecircncia para o Ato Como bem assinala Tomaacutes de Aquino
no artigo 5 da questatildeo 47 que estatildeo sob os auspiacutecios da contingencia tanto a
prudecircncia quanto a arte12 isso porque ambas ldquoestatildeo para serrdquo a prudecircncia para o
agir e arte para produzir13
11
Aristoacuteteles faz uma grande abordagem acerca do movimento de acordo com RUSSEL (2001) existem trecircs espeacutecies de movimento Movimento enquanto qualidade quantidade e mudanccedila de lugar REALE (1990) apresenta uma quarta divisatildeo enquanto substacircncia Dessa forma nomina o movimento entre a potecircncia e o ato como movimento enquanto qualidade proposta do presente item 12
Jaacute citado e referenciado no item 21 Esse assunto ainda seraacute tratado no item 43 Arte e prudecircncia 13
Sobre o movimento e a relaccedilatildeo entre a lei e o fato assina-la Carnelutti Assim aflora no discurso a conversatildeo do movimento na imobilidade E assim opotildee-se agrave lei ao direito O eterno contraste entre o
22
Ateacute Aristoacuteteles a concepccedilatildeo filosoacutefica acerca do movimento esteve
vinculada a duas teorias uma negava o movimento e outra o afirmava A corrente
que afirmava o movimento era liderada por Heraacuteclito de Eacutefeso (+- 540 aC)
Heraacuteclito afirmava que as coisas mudavam permanentemente em outras
palavras ele afirmava a inconstacircncia das coisas nesse sentido eacute atribuiacuteda a ele a
frase ldquoEntramos e natildeo entramos no mesmo rio Somos e natildeo somosrdquo Portanto o
movimento estaacute presente em todas as coisas agraves vezes afirmando que as coisas
ldquosatildeordquo e que ldquonatildeo satildeordquo ao mesmo tempo sendo como mais tarde diria Platatildeo ldquoO
nosso ser eacute um perpeacutetuo devirrdquo
Ao contraacuterio do que afirmava Heraacuteclito Parmecircnides de Eleia (+- 521 aC)
liderava a corrente que negava o movimento Assim Parmecircnides simplesmente
afirma que ldquoeacuterdquo Seu argumento eacute sustentado pela afirmaccedilatildeo de que aquilo que ldquonatildeo
eacuterdquo natildeo pode sequer ser imaginado pois natildeo se pode imaginar o nada Seu
pensamento culmina numa representaccedilatildeo do mundo como ldquouma esfera material
uniforme soacutelida e finita sem tempo movimento nem mudanccedilardquo (RUSSELL 2001 p
29-38)
De acordo com Parmecircnides os sentidos natildeo seriam instrumentos adequados
ao conhecimento verdadeiro sendo o conhecimento verdadeiro revelado pela razatildeo
Assim a verdade eacute apenas aquilo que eacute produzido pelo pensamento e portanto o
pensar eacute verdadeiramente ldquoserrdquo Eacute nesse sentido que afirma ser o movimento
impossiacutevel pois natildeo admite a passagem do ldquonatildeo serrdquo para o ldquoserrdquo uma vez que o
ldquonatildeo serrdquo eacute nada e natildeo pode ser inteligiacutevel
Ao contraacuterio de seus predecessores Aristoacuteteles inova conciliando ambas as
teorias Pois natildeo nega o que ldquoestaacute por virrdquo de Heraacuteclito e nem o ldquoserrdquo de
Parmecircnides
Aristoacuteteles natildeo nega o vir-a-ser de Heraacuteclito nem o ser de Parmecircnides mas une-os em uma siacutentese conclusiva jaacute iniciada pelos uacuteltimos preacute-socraacuteticos e grandemente aperfeiccediloada por Demoacutecrito e Platatildeo Segundo Aristoacuteteles a mudanccedila que eacute intuitiva pressupotildee uma realidade imutaacutevel que eacute de duas espeacutecies Um substrato comum elemento
ser e o mover-se apresenta-se tambeacutem ao jurista sub specie da oposiccedilatildeo do fato agrave lei A lei estaacute o fato move-se A lei eacute um estado o fato um desenvolvimento A lei eacute o presente o fato natildeo pode ser mais do que passado ou futuro A lei estaacute fora do tempo o fato estaacute dentro (CARNELUTTI 2003 p 40)
23
imutaacutevel da mudanccedila em que a mudanccedila se realiza e as determinaccedilotildees que se realizam nesse substrato a essecircncia a natureza que ele assume Essa contradiccedilatildeo Aristoacuteteles pretende evitar atraveacutes da interpretaccedilatildeo analoacutegica da noccedilatildeo de ser que lhe permite fazer uma distinccedilatildeo fundamental ser natildeo eacute apenas o que jaacute existe em ato ser eacute tambeacutem o que pode ser a virtualidade a potecircncia Assim sem contrariar qualquer princiacutepio loacutegico poder-se-ia compreender que uma substacircncia apresenta-se num dado momento certas caracteriacutesticas e noutra ocasiatildeo manifestasse caracteriacutesticas diferentes se uma folha verde torna-se amarela eacute porque verde e amarelo satildeo acidentes da folha (que eacute sempre folha independente de sua coloraccedilatildeo) A qualidade amarelo eacute uma virtualidade da folha que num certo momento se atualiza E essa passagem da potecircncia ao ato eacute que constitui segundo a teoria de Aristoacuteteles o movimento O termo movimento tem frequentemente a
mesma significaccedilatildeo que os vocaacutebulos mudanccedila e devir (ORIOLO
2009)
A compreensatildeo do ldquoserrdquo14 eacute explicada detalhadamente no Livro VII da
Metafiacutesica (Met VII 1 1028a10) Na passagem 1039b20 descreve a substacircncia
como sendo de dois tipos uma vez que o primeiro tipo seria uma combinaccedilatildeo de
foacutermula com a mateacuteria e o segundo tipo como sendo a forma em seu sentido pleno
Sendo a forma uma constante inadmitindo acidentes ao contraacuterio da foacutermula com a
mateacuteria que eacute passiacutevel de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo
Portanto a mudanccedila parece compreender como predicados ato e potecircncia
pois natildeo seria possiacutevel movimento enquanto ato uma vez que neste a causa final
jaacute fora atingida nem enquanto soacute potecircncia uma vez que algo pode permanecer
nesse estado sem que haja qualquer mudanccedila Nesse sentido o movimento eacute
potecircncia e ato
Para Aristoacuteteles o movimento eacute a a realizaccedilatildeo15 daquilo que estaacute em
potecircncia (Fiacutes III 1 201 a 10) Ou seja o movimento eacute a passagem da potecircncia
para o ato Um dos exemplos citados na Fiacutesica eacute o crescimento como sendo a
realizaccedilatildeo a passagem da potecircncia para o ato16 De acordo com Russell (2001)
14
Sobre o ser vide AUBENQUE (2012) 15
έντελέχεια (enteleacutekheia) 16
Y puesto que distinguimos en cada geacutenero lo actual y lo potencial el movimiento es la actualidad de lo potencial en cuanto a tal por ejemplo la actualidad de lo alterable en tanto que alterable es la alteracioacuten la de lo susceptible de aumento y la de su contrario lo susceptible de disminucioacuten mdash no hay nombre comuacuten para ambos mdash es el aumento y la disminucioacuten la de lo generable y lo destructible es la gene- racioacuten y la destruccioacuten la de lo desplazable es el desplazamiento en tanto que decimos que es tal estaacute en actualidad entonces estaacute siendo construido tal es el proceso de construccioacuten y lo mismo en el caso de la instruccioacuten la medicacioacuten la rotacioacuten el salto la maduracioacuten y el envejecimiento (Fiacutes III 1 201 a 16)
24
Se um frasco de oacuteleo comeccedila a queimar podemos dizer que eacute assim porque jaacute o era potencialmente mesmo antes Poreacutem evidentemente isto natildeo eacute uma explicaccedilatildeo Na verdade por motivos deste tipo algumas escolas filosoacuteficas negaram que se pudesse dizer qualquer coisa uacutetil sobre o assunto Antiacutestenes de Megara foi um deles como veremos adiante Segundo este ponto de vista uma coisa eacute de um determinado tipo ou natildeo e qualquer coisa aleacutem disto eacute tolice Mas eacute claro que fazemos afirmaccedilotildees como ldquoo oacuteleo eacute inflamaacutevelrdquo e elas fazem perfeito sentido A anaacutelise de Aristoacuteteles fornece a resposta correta Ao dizermos que uma coisa eacute potencialmente A queremos dizer que sob certas condiccedilotildees seraacute de fato assim [] As condiccedilotildees em questatildeo eacute claro devem ser tais que possam de fato ocorrer quer dizer ser atuais Neste sentido o atual eacute logicamente anterior ao potencial Agora pode-se dar uma explicaccedilatildeo da mudanccedila em virtude de uma substacircncia que eacute portadora potencial de uma seacuterie de qualidades que nela se tornam sucessivamente atuais (RUSSELL 2001 p 113)
Assim poderiacuteamos dizer que o hilemorfismo eacute o locus onde Aristoacuteteles
ensaia a teoria do movimento pois eacute da realidade sensiacutevel constituiacuteda de mateacuteria17 e
forma que podemos imaginar o salto e os possiacuteveis acidentes entre a potecircncia e o
ato ldquo[] parece que para a mesma coisa eacute possiacutevel tanto ser como natildeo ser Assim
por exemplo tudo aquilo que pode caminhar ou ser cortado pode natildeo caminhar ou
natildeo ser cortado E a razatildeo disso eacute que essas coisas que satildeo desta maneira em
potecircncia nem sempre satildeo em atordquo (Da Int 21b10) Essa postura apresentada em
Da Interpretaccedilatildeo pode ser contemplada tambeacutem na Metafiacutesica ldquo[] a mesma coisa
pois pode ser potencialmente ao mesmo tempo dois contraacuterios mas natildeo pode ser
atualmenterdquo (Met IV 5 1009b34-36)
No estudo das causas18 Aristoacuteteles as classifica em quatro quais sejam
causa formal causa material causa eficiente e causa final Considerar apenas a
forma e a mateacuteria natildeo eacute suficiente pois teriacuteamos uma teoria estaacutetica Como estamos
tratando de uma realidade dinacircmica eacute necessaacuterio portanto que consideremos a
existecircncia de um agente e seu objetivo
Assim a mateacuteria eacute potecircncia por estar apta a receber a forma e
consequentemente alcanccedilar o ato Tal como o bloco de granito estaacute apto a tornar-se
a Vecircnus de Milo
17
ύλη (hyle) 18
Sobre as quatro causas Giovanni Reale explica sua relaccedilatildeo com a Fiacutesica em especial no que
concerne ao movimento vide (REALE 2001 p 57)
25
Em De Anima (432a15 - 433b) Aristoacuteteles descreve o movimento como
pertencente agrave razatildeo praacutetica De acordo com o texto o intelecto ou a razatildeo
especulativa nada pensa na esfera do praacutetico nem delibera acerca dos objetos a
serem evitados ou buscados enquanto o movimento local diz respeito sempre ao
evitar ou ao buscar de algum objeto
Nesse importante trecho estatildeo inseridas as bases do silogismo praacutetico19
destarte a assertiva que segue o trecho eacute a seguinte ldquoe o ponto final do processo
de raciocinar constitui o ponto de partida da accedilatildeo Eacute por boa razatildeo que esses dois
nomeadamente o desejo e o intelecto praacutetico satildeo considerados fonte do
movimentordquo (DA 432a17)
Em sua Metafiacutesica (1046b5) afirma que toda potecircncia racional admite
resultados contraacuterios diferente das potecircncias irracionais onde o resultado eacute
necessaacuterio O exemplo utilizado eacute o do calor e o da medicina o calor soacute pode
produzir calor enquanto a medicina pode produzir sauacutede e doenccedila
Portanto o movimento pertencente agrave razatildeo praacutetica eacute para noacutes a passagem
da potecircncia para o ato Em tal passagem podemos constatar a presenccedila de
resultados contraacuterios ou seja aquilo que eacute em potecircncia natildeo o seraacute
19
Sobre ldquosilogismo praacuteticordquo vide Pierre Aubenque (2008 p 52) ldquologo entre a teoria e a praacutetica e
finalmente entre a ciecircncia e a prudecircncia esta uacuteltima relativa menos agrave ldquodeduccedilatildeordquo que desce do
princiacutepio agrave aplicaccedilatildeo do que a um ldquoempirismordquo que se esforccedila bem ou mal por se orientar no acircmago
mesmo do particularrdquo Neste trecho parece afastar-se da loacutegica Mais adiante na p 254 aborda
novamente o tema e conclui por uma perspectiva conciliadora ou seja apresenta duas foacutermulas para
a deliberaccedilatildeo uma a do silogismo praacutetico como aplicaccedilatildeo do universal ao particular e a outra que diz
respeito agrave escolha judiciosa dos meios Em sua Histoacuteria da Eacutetica Alasdair MacIntyre (1991 p 76 -
77) ldquoAristoacuteteles caracteriza la forma de deliberacioacuten implicada como un silogismo praacutectico La
premisa mayor de un silogismo semejante es un principio de accioacuten en el sentido de que cierta clase
de cosas es buena conviene o satisface a cierta clase de personas La premisa mayor es la
afirmacioacuten garantizada por la percepcioacuten de que hay un ejemplo de que aunque misterioso en su
contenido aclara la forma del silogismo praacutectico La premisa mayor indica que el alimento seco es
bueno para el hombre la premisa menor sentildeala la presencia de ese tipo de alimento y la conclusioacuten
es que el agente lo ingiere Que la conclusioacuten es una accioacuten pone de manifiesto que el silogismo
praacutectico es un modelo de razonamiento por parte del agente y no un modelo de razonamiento ajeno
sobre lo que el agente deberiacutea hacer (por eso una segunda premisa menor que indicara por ejemplo
la presencia de un en cuanto nos alejariacutea de la cuestioacuten) Ni tampoco es un modelo de confundirse
con aquellos silogismos muy comunes cuya conclusioacuten es una afirmacioacuten de este tipo Toda su
finalidad reside en indagar el sentido en que una accioacuten puede ser la resultante de un razonamientordquo
26
necessariamente em ato Da admissatildeo de tais resultados decorre a indeterminaccedilatildeo
Eacute justamente essa indeterminaccedilatildeo que justifica a deliberaccedilatildeo
23 Indeterminismo e a eacutetica das virtudes
Iniciamos o segundo capiacutetulo afirmando que tanto a prudecircncia quanto a
equidade pertencem ao campo da accedilatildeo e que ambas se manifestam nas situaccedilotildees
contingentes20 Revisitando os conceitos da loacutegica foi possiacutevel identificar a natureza
da contingecircncia como pertencente agraves modalidades Por fim identificamos que o
movimento entre a potecircncia e o ato eacute uma fonte contingencial uma vez que a
potecircncia admite atualizaccedilotildees contraacuterias evidenciando o que chamamos de
indeterminaccedilatildeo21
Neste item pretendemos compreender a natureza da indeterminaccedilatildeo como
um chamamento para accedilatildeo asseverando as diferentes concepccedilotildees da noccedilatildeo de
acaso nas obras de Aristoacuteteles
Pierre Aubenque (2008) em seu livro A prudecircncia em Aristoacuteteles faz uma
profunda leitura das obras do Estagirita evidenciando trecircs distintas concepccedilotildees de
acaso Na primeira delas uma leitura da Eacutetica Eudecircmia onde o acaso aparece sob a
forma de ldquofortunardquo Na segunda uma leitura da Fiacutesica esboccedilando o acaso como
inserto em sua teoria da causalidade E na terceira e uacuteltima uma leitura da Eacutetica a
Nicocircmaco o acaso enquanto indeterminaccedilatildeo objetiva isto eacute contingecircncia As trecircs
concepccedilotildees satildeo detalhadamente explicadas por Pierre Aubenque (2008 p 117-
130)
231 Primeira concepccedilatildeo de acaso A boa fortuna
20
Parece que a contingecircncia se manifesta de diversa forma em cada uma das virtudes situaccedilatildeo que seraacute analisada mais detidamente no estudo de cada uma delas 21
Aqui o emprego da expressatildeo ldquoindeterminaccedilatildeordquo refere-se a admissatildeo da existecircncia do acaso em verdade natildeo eacute nossa intenccedilatildeo trabalhar a dicotomia ldquodeterminismo-indeterminismordquo
27
Na Eacutetica Eudecircmica Aristoacuteteles procura mostrar que a boa fortuna22 natildeo se
deve ao exerciacutecio das virtudes morais ou intelectuais mas ao bom nascimento
desse modo a boa fortuna eacute algo irasciacutevel
O questionamento eacute formulado Se a boa fortuna natildeo eacute produto da razatildeo
entatildeo eacute um presente de deus ou uma causa natural
As objeccedilotildees seguem no sentido de que o bom nascimento natildeo se explica
pela proteccedilatildeo divina pois seria indigno dos deuses dispensarem favores aos maus
Da mesma forma natildeo seria pela natureza uma vez que ldquoa natureza eacute causa do que
eacute sempre uniforme ou do que acontece frequentemente e o acaso eacute o oposto dissordquo
(EE VII 14 1247a14-31)
Pierre Aubenque (2008) nos daacute a seguinte soluccedilatildeo
Tal objeccedilatildeo no entanto natildeo repousaria sobre uma concepccedilatildeo errocircnea do acaso Aristoacuteteles o pergunta para sugerir uma teoria segundo a qual ldquoeacute preciso rejeitar inteiramente o acaso e dizer que nada acontece por acaso pois quando dizemos que o acaso eacute uma causa haacute na realidade uma outra causa poreacutem ocultada para noacutes Eacute por isso que quando se define o acaso o tomamos como uma causa impenetraacutevel ao raciociacutenio humano (aitian alogon anqrwpinw logismw) como se se
tratasse de uma certa naturezardquo [] essa causa oculta ao entendimento humano que se chama impropriamente acaso eacute num certo sentido uma causa natural ndash e nesse sentido eacute verdadeiro dizer que os homens afortunados o satildeo por natureza Natureza poreacutem que natildeo deve ser entendida no sentido dos fiacutesicos eacute a boa ou maacute natureza o bom ou mau nascimento que eacute um dom dos deuses natildeo para recompensar nossos meacuteritos ou para complementaacute-los mas o dom inicial constitutivo de nosso quinhatildeo que natildeo eacute pois uma consequumlecircncia mas a fonte de nossos meacuteritos ou demeacuteritos (2008 p 119)
Portanto o acaso enquanto boa fortuna parece tanto um presente de Deus
por constituir o quinhatildeo inicial quanto uma causa natural pois os afortunados o satildeo
por natureza (EE VII 14 1247b28)23
Contudo Aubenque (2008) deixa em aberto uma seacuterie de questionamentos a
essas possiacuteveis soluccedilotildees o que nos parece liacutecito uma vez que para nosso objetivo
basta compreender as consequecircncias da boa fortuna no campo da razatildeo praacutetica
Vejamos a exposiccedilatildeo 22
eutuxia 23
Natildeo obstante a essa aparente soluccedilatildeo Pierre Aubenque (2008) natildeo a daacute por resolvida o que percebemos eacute uma questatildeo que tende agrave teologia provavelmente pretende uma soluccedilatildeo no acircmbito de outra obra
28
Mas a concepccedilatildeo de acaso sugerida pelo texto natildeo eacute nem tatildeo clara nem tatildeo isenta de dificuldades como poderia parecer agrave primeira vista Pois jaacute apresenta ao lado da noccedilatildeo religiosa de acaso ndash Forccedila oculta que a tudo dirige ndash uma outra concepccedilatildeo que liga o acaso natildeo mais a transcendecircncia insondaacutevel da divindade mas agraves falhas de sua accedilatildeo Vimos nesses textos que o acaso eacute oposto agrave natureza como excepcional ao uniforme Um pouco mais longe Aristoacuteteles esclarece que o acontecimento casual eacute aquele que certamente deriva das causas embora indefinidas e indeterminadas (apeirwn kai aoristwn) ou seja
do gecircnero de causas do qual natildeo pode haver ciecircncia Sem duacutevida o sentido geral do texto permite entender que Aristoacuteteles toma facilmente o partido da impossibilidade de uma ciecircncia do acaso visto haver algo superior agrave ciecircncia que eacute Deus (AUBENQUE 2008 p 126)
As conclusotildees que se seguem satildeo consequecircncia desta O sentido eacute o de
que o acaso eacute aparente pois seria Deus o primeiro motor Assim o sendo natildeo haacute
que se falar em deliberaccedilatildeo uma vez que a inteligecircncia Divina jaacute a teria previamente
realizado A denominaccedilatildeo ldquoacasordquo eacute funccedilatildeo de nossa ignoracircncia agrave Causa das
causas ou seja Deus
A consequecircncia que estrai Aristoacuteteles eacute que os homens afortunados natildeo devem sua fortuna agrave sua inteligecircncia nem mais particularmente agrave sua capacidade de deliberaccedilatildeo ldquopara qualquer lado que se lanccedilam triunfam sem reflexatildeo (alogoi ontej) deliberar natildeo lhes serve para nada pois
tem neles um princiacutepio que eacute melhor que o intelecto e a deliberaccedilatildeo enquanto os outros tecircm apenas raciociacutenio os afortunados natildeo o tem mas satildeo habitados pelo deusrdquo
24 (AUBENQUE 2008 p 121)
Assim para os afortunados o exerciacutecio das virtudes eacute inuacutetil uma vez que jaacute
possuem os bens necessaacuterios para alcanccedilarem a felicidade Ao contraacuterio dos
afortunados tal exerciacutecio eacute para os virtuosos o caminho alternativo para se
alcanccedilar aquilo que natildeo receberam da natureza ou da Providecircncia Divina
232 Segunda concepccedilatildeo de acaso Acidente
Na Fiacutesica eacute apresentada uma teoria da causalidade que atinge tanto os
seres dotados de escolha quanto os seres natildeo dotados Pierre Aubenque (2008)
24
EE VII 14 1248a29-33
29
explica que o acaso natildeo eacute o encontro de duas seacuteries causais mas o encontro de
uma seacuterie causal real dotada de uma certa finalidade com uma finalidade
imaginaacuteria de modo que tal encontro poderia ser retrospectivamente reconstruiacutedo a
partir do resultado
O exemplo extraiacutedo da Fiacutesica25 eacute de um homem que ao ir ao mercado
encontra-se por acaso com um algueacutem que o deve os fatos se desenrolam como
se o motivo de tal homem estar ali fosse cobrar a diacutevida quando de fato o motivo
era outro Essa interpretaccedilatildeo do acaso agora parece evidente vejamos
[] este motivo o uacutenico real eacute pois causa por acidente de um efeito que natildeo era visado como tal o ressarcimento da diacutevida Como se vecirc uma tal concepccedilatildeo do acaso natildeo introduz nenhuma falha no encadeamento causal o acaso apenas acrescenta uma intenccedilatildeo a qual sendo imaginaacuteria de fato natildeo acrescenta nem suprime nada agrave realidade do processo natural O acaso nesse sentido eacute uma ilusatildeo retrospectiva a projeccedilatildeo de uma finalidade humana sobre uma relaccedilatildeo causal que eacute por si mesma inteiramente estranha a esta finalidade (AUBENQUE 2008 p 126)
Essa noccedilatildeo que segundo AUBENQUE (2008) soa como determinista
recebe mais adiante um desenvolvimento mais apurado O acaso eacute concebido natildeo
como causa mas sim como efeito Desta forma o acaso enquanto encontro de uma
seacuterie causal e de um fim natildeo perseguido aparece como fato excepcional e sem
causas ao menos determinaacuteveis pois suas causas sendo causas acidentais satildeo
indeterminaacuteveis ldquoa causa por si mesma eacute determinada a causa por acidente eacute
indeterminada pois a pletora de acidentes possiacuteveis de uma coisa eacute infinitardquo (Fiacutes II
5 196b27-29)26 ldquoO acaso natildeo aparece senatildeo num mundo onde o acidente ndash ou
seja o que adveacutem sumbanei a uma coisa ndash natildeo se deixa reduzir agrave essecircncia um
mundo onde nada eacute dedutiacutevel onde a infinidade de acidentes possiacuteveis de uma
coisa tornam imprevisiacuteveis as combinaccedilotildees que daiacute podem resultarrdquo (AUBENQUE
2008 p 127)
Portanto a noccedilatildeo de acaso apresentada na Fiacutesica diferencia-se da boa
fortuna apresentada na Eacutetica a Eudemo pois enquanto a boa fortuna refere-se ao
25
Fiacutes II 5 196b 33-197a5 26
Fiacutes II 5 196b27-29
30
bom nascimento o acidente na Fiacutesica refere-se a incontaacuteveis possibilidades que nos
impedem de antever os possiacuteveis resultados
233 Terceira concepccedilatildeo de acaso contingecircncia
Diferente das duas concepccedilotildees anteriores a exposiccedilatildeo da Indeterminaccedilatildeo
objetiva ou contingecircncia passa a ter um cunho teoloacutegico-antropoloacutegico Parece que
a visatildeo da Eacutetica a Nicocircmaco sobre o acaso estaacute mais direcionada ao traacutegico
Pierre Aubenque (2008 p 127-28) inicia fazendo um interessante paralelo
entre o Saacutebio e o Prudente procurando entre esses aquele que poderaacute atingir a
felicidade A conclusatildeo como eacute de se esperar27 indica o prudente como aquele que
poderaacute um dia ser chamado feliz
Contudo o referido autor natildeo negligencia as aparentes objeccedilotildees ateacute mesmo
porque Aristoacuteteles natildeo as negligenciou Muito pelo contraacuterio ainda que de forma
bem tiacutemida Aristoacuteteles fez breve passagem expondo a grandeza da vida
contemplativa
A argumentaccedilatildeo apresentada por comentadores28 pode ser resumida da
seguinte forma Se o que o homem tem de mais proacuteximo a Deus eacute o intelecto entatildeo
Deus quer bem os saacutebios portanto os saacutebios satildeo felizes Nesse sentido a noccedilatildeo
temporal de felicidade inexiste pois basta o exerciacutecio das faculdades intelectivas
para alcanccedilar o estado de felicidade (AUBENQUE 2008)
A objeccedilatildeo apresentada por Pierre Aubenque (2008 p128) eacute clara De
acordo com ele eacute nesse ponto que Aristoacuteteles se afasta de toda a tradiccedilatildeo socraacutetica
pois no pensamento aristoteacutelico a virtude ainda que natildeo suficiente eacute condiccedilatildeo
necessaacuteria da felicidade
Ainda de acordo com essa objeccedilatildeo estaacute que a definiccedilatildeo de felicidade eacute
composta pela virtude e pelos bens exteriores e bens do corpo Por oacutebvio esses
dois uacuteltimos bens ldquonatildeo podem ser adquiridos pelo exerciacutecio ou meacuterito eles
dependem da boa fortunardquo (AUBENQUE 2008 p 129)
27
Afinal este eacute o tema desta dissertaccedilatildeo 28
Comentadores citados por AUBENQUE (2008) ZELLER Die Philosophie der Griechen II 2 1921 4ordf DIRLMEIER F Magna Moralia 1958
31
Destarte o primeiro desses bens a virtude natildeo pode ser compreendida sem
ter por referencial a contingecircncia Pois como jaacute exposto para ser feliz eacute preciso ser
virtuoso para ser virtuoso eacute preciso ter condiccedilotildees externas para exercitar as
virtudes
[] inicialmente porque a virtude necessita de uma mateacuteria para se exercer e como vimos de um ldquomundordquo ou seja necessita de condiccedilotildees que natildeo dependem de noacutes como amigos dinheiro um certo poder poliacutetico e tambeacutem de ocasiotildees as quais natildeo se oferecem a todos (Heacutercules teve a oportunidade de encontrar o leatildeo de Nemeacuteia e a hidra de Lerna Mas num segundo sentido natildeo pode haver felicidade completa sem a plenitude da vida (bioj teleioj) o que supotildee sem
duacutevida uma duraccedilatildeo optima mas tambeacutem a integridade do corpo e a prosperidade de nossos empreendimentos o que os gregos resumem em uma palavra eupraia (AUBENQUE 2008 p129)
Para encerrar a questatildeo entre o saacutebio e o prudente eacute exposta uma seacuterie de
argumentos que pretendem demonstrar a fragilidade dos argumentos socraacuteticos por
exemplo que enquanto Deus basta a si mesmo o homem precisa ter amigos ou
que o saacutebio necessita do oacutecio Enfim tantas satildeo as condiccedilotildees externas que natildeo
parece o saacutebio poder ser tatildeo autaacuterquico quanto pretende a visatildeo socraacutetica para ser
feliz
Mas a concepccedilatildeo perseguida em A Prudecircncia em Aristoacuteteles eacute a do fracasso
da Providecircncia Divina Isso quer dizer que a ldquovirtude depende do mundo tanto
quanto de suas condiccedilotildees de existecircncia e este mundo natildeo depende de noacutes Eis o
virtuoso de Aristoacuteteles e mesmo o contemplativo ndash os quais satildeo menos duas
personagens distintas do que a mesma personagem em niacuteveis diferentes de
excelecircnciardquo (AUBENQUE 2008 p 135) ambos condicionados agrave heteronomia e agrave
relaccedilatildeo de ldquoacasordquo Haacute algo de traacutegico na vida moral decorrente da uniatildeo entre a
felicidade e a virtude que natildeo eacute por assim dizer analiacutetica como acreditavam os
socraacuteticos mas sempre sinteacutetica porque depende numa proporccedilatildeo irredutiacutevel do
acasordquo (AUBENQUE 2008 p 135)
[] o ideal de Aristoacuteteles natildeo pode consistir numa assimilaccedilatildeo ao mundo em seu conjunto visto que este soacute eacute racional em suas partes superiores mas somente na imitaccedilatildeo da ordem que nelas reina O conhecimento dessa ordem que natildeo pode ser procurado na fiacutesica como para os estoacuteicos mas na teologia eacute o que Aristoacuteteles nomeia sabedoria Mas a
32
vida segundo a sabedoria natildeo eacute imediatamente acessiacutevel ao homem por uma ascese interior pois ela depende tambeacutem em suas condiccedilotildees de realizaccedilatildeo das circunstacircncias exteriores as quais natildeo satildeo nem na aparecircncia nem profundamente inteiramente racionais O reino da sabedoria exige pois um domiacutenio preacutevio das circunstacircncias domiacutenio que natildeo pode ser adquirido senatildeo por uma accedilatildeo teacutecnica sobre o mundo Se para os estoacuteicos a indiferenccedila em relaccedilatildeo agraves circunstacircncias se justificaraacute em uacuteltima anaacutelise pela crenccedila na Providecircncia e na convicccedilatildeo correlata de que todo real eacute racional o homem de Aristoacuteteles natildeo saberaacute fingir indiferenccedila a respeito de um mundo cuja indeterminaccedilatildeo eacute a forma propriamente aristoteacutelica do mal Poreacutem aqui se opera uma inversatildeo que forneceraacute o domiacutenio e no sentido mais forte do termo a ldquochancerdquo da accedilatildeo moral se a contingecircncia eacute a fonte do mal ela torna possiacutevel as iniciativas humanas em vista do bem a indeterminaccedilatildeo signo da impotecircncia da razatildeo universal eacute ao mesmo tempo abertura agrave accedilatildeo racional do homem [] O homem de Aristoacuteteles natildeo pode se tornar indiferente agraves circunstacircncias mas lhe eacute permitido na medida em que satildeo moldaacuteveis para moldaacute-las humanamente e se natildeo eacute convidado a mudar antes seus desejos do que a ordem do mundo eacute porque Aristoacuteteles conta com o desejo racional para terminar de ordenar o mundo tomando o lugar de uma Providecircncia faliacutevel (2008 p143-145 negrito nosso)
Dessa forma natildeo depende dos homens apenas moldar seus proacuteprios
desejos mas tambeacutem o mundo por ser somente ordenado de modo geral Dessa
forma a contingecircncia eacute o mal e o remeacutedio de acordo com o desejo29 do homem Eacute
nesse sentido que devemos abordar um tema que eacute corrente entre os
comentadores30 de Aristoacuteteles a trageacutedia
2331 Trageacutedia31
O elemento traacutegico heranccedila da mais alta literatura e ao mesmo tempo do
conhecimento popular do homem grego estaacute presente na obra do Estagirita Eacute
nesse sentido que os traccedilos mais marcantes de sua filosofia estatildeo inflados com a
nossa fraacutegil condiccedilatildeo humana
29
Sobre ldquodesejordquo eacute interessante notar que eacute a fonte do movimento e tambeacutem da escolha racional Para tanto consulte De Anima e a Eacutetica a Nicocircmaco 30
Sobre ldquotrageacutediardquo Vide AUBENQUE (2008) LOPES (2007) NUSSBAUM (2009) Martha Nussbaum (2009) faz uma detalhada exposiccedilatildeo acerca do elemento traacutegico Mocircnica Sette Lopes (2007 p 51) expotildee igualmente sobre o gecircnero literaacuterio ldquoA poesia traacutegica assemelha-se a uma escultura maleaacutevel e dinacircmica que visa agrave educaccedilatildeo da alma humana pelo exemplordquo Aqui optamos pelos aspectos expostos por Pierre Aubenque uma vez que esta em concordacircncia com sua exposiccedilatildeo sobre a contingecircncia 31
Vide item 44 Deliberaccedilatildeo e Escolha
33
O que parece ser o centro de toda sua eacutetica a felicidade estaacute mediada por
uma seacuterie de condiccedilotildees que natildeo depende de noacutes conforme jaacute citamos ldquoHaacute algo de
traacutegico na vida moral [] mas sempre sinteacutetica porque depende numa proporccedilatildeo
irredutiacutevel do acasordquo (AUBENQUE 2008 p 135)
O traacutegico eacute apresentado por Aristoacuteteles com um sentido mais humanizado
que divinizado ao contraacuterio de uma trageacutedia onde os heroacuteis satildeo imortalizados por
seus feitos o Estagirita apresenta um homem que faz o melhor que pode vejamos
Se esse traccedilo natildeo surpreendeu os comentadores eacute porque o traacutegico tem em Aristoacuteteles um aspecto residual de modo que se pocircde ver nele a sobrevivecircncia de uma prudecircncia popular ndash nada aleacutem do que natildeo ser preciso desafiar os deuses proclamando em alto e bom som a autarquia e a ldquoimortalidaderdquo do homem ndash da qual Aristoacuteteles natildeo teria inteiramente se libertado ou simplesmente uma concessatildeo puramente formal a esta mentalidade [] Em Aristoacuteteles o traacutegico eacute residual poreacutem em sentido ontoloacutegico no sentido de uma distacircncia sempre estreitaacutevel mas insuprimiacutevel que separa o homem da felicidade ou mesmo separa a felicidade do homem tout court e faz com que os homens possam ser felizes mas ldquocomo os homens podem secirc-lordquo (AUBENQUE 2008 p 136)
Dessa forma a accedilatildeo humana estaacute numa aacuterea entre o melhor possiacutevel e o
bem absoluto sendo o ponto final de nossa busca o modelo inacessiacutevel ou
superlativo absoluto
Eacute dentro dessa fronteira onde falha a Providecircncia e o traacutegico mostra um
homem que age e age o melhor possiacutevel dentro de suas possibilidades que
podemos compreender os contornos que liga a contingecircncia agrave eacutetica aristoteacutelica
Portanto Pierre Aubenque (2008 p 110-112) esclarece acerca da atuaccedilatildeo
da prudecircncia no campo da contingecircncia que agir e produzir satildeo de alguma forma
se inserir na ordem do mundo para modifica-lo eacute supor que este mundo que
oferece tal latitude comporta certo jogo certa indeterminaccedilatildeo certo inacabamento
Tanto o objeto da accedilatildeo (a prudecircncia) quanto o da produccedilatildeo (a arte) pertencem pois
ao domiacutenio daquilo que pode ser diferente Ora se a disposiccedilatildeo para produzir
acompanhada de regra chama-se arte a disposiccedilatildeo para agir acompanhada de
regra chama-se prudecircncia Por isso a accedilatildeo imanente agrave praacutexis tem menos por objeto
a natureza do que suas falhas ou inacabamentos Esta indeterminaccedilatildeo eacute
34
precisamente o que permite a Aristoacuteteles classificar os processos naturais no
domiacutenio da contingecircncia
Se for pois o homem prudente aquele que estaacute apto agrave accedilatildeo moral a
decisatildeo correta e portanto ao elo que pode ligar o conhecimento geral ao
particular32 tentaremos entendecirc-lo por sua virtude a Prudecircncia Antes poreacutem para
podermos compreender tal virtude bem como na sequecircncia seu conceito de justiccedila
e de equidade devemos fazer uma passagem pela teoria geral das virtudes
32
Essa distacircncia seraacute mais bem abordada em momento oportuno ndash quando tratarmos de prudecircncia e de equidade Aubenque reporta esse assunto em sua obra O problema do ser em Aristoacuteteles (2012 p 63)
35
3 EacuteTICA DAS VIRTUDES
No quarto capiacutetulo de seus Escritos de filosofia II Henrique C de Lima Vaz
faz uma interessante abordagem acerca da eacutetica A ilustraccedilatildeo eacute dada pelo proacuteprio
tiacutetulo Do ethos agrave sociedade Poliacutetica A gecircnese do direito
A proposta do referido capiacutetulo eacute demonstrar que o direito surge com a
relaccedilatildeo eacutetica que soacute pode ser vivenciada na poacutelis ldquoO aparecimento e
desenvolvimento da sociedade poliacutetica caminham em estreita inter-relaccedilatildeo com a
formaccedilatildeo da ciecircncia do ethosrdquo (VAZ 2000 p135) Assim podemos dizer que o
estudo da eacutetica surge e se desenvolve com o surgimento e desenvolvimento da
poacutelis
Neste sentido a lei aparece revelando ter como funccedilotildees educar o indiviacuteduo
agrave vida na cidade ao mesmo tempo em que repara os conflitos onde as virtudes natildeo
satildeo observadas33
A matriz conceptual eacute representada pela ideacuteia de lei (noacutemos) que deve permitir o estabelecimento de uma proporccedilatildeo ou correspondecircncia (analogiacutea) entre a lei ou medida (meacutetron) interior que rege a praxis do indiviacuteduo e a lei da cidade que eacute propriamente o noacutemos e deve assegurar a participaccedilatildeo equumlitativa (eunomiacutea) dos indiviacuteduos no bem que eacute comum a todos e que eacute primeiramente o proacuteprio viver-em-comum De um lado a explicitaccedilatildeo da racionalidade imanente do ethos se constitui como teoria da praxis individual e assume a forma de uma doutrina da virtude (areteacute) ou da Eacutetica no sentido estrito O ethos eacute entatildeo conceptualizado fundamentalmente como haacutebito (hexis) De outro a razatildeo do ethos iraacute exprimir-se na forma de uma teoria do existir e do agir em comum e se apresentaraacute como doutrina da lei justa (politeia) O ethos eacute entatildeo conceptualizado fundamentalmente como costume A ciecircncia da politeia ou a Poliacutetica eacute assim a outra face da Eacutetica (VAZ 2000
p135)
Portanto a eacutetica pretende orientar as relaccedilotildees humanas ordenando as
accedilotildees para o bem comum
33
Voltaremos a falar sobre o assunto quando tratarmos da Justiccedila como Virtude
36
[] as virtudes natildeo encontram seu lugar na vida do indiviacuteduo mas tambeacutem na vida da cidade e que o indiviacuteduo soacute eacute de fato inteligiacutevel como um politikon zocircon
Esse uacuteltimo comentaacuterio sugere que um modo de elucidar o relacionamento entre as virtudes e a moralidade das leis eacute pensar no que consistiria em qualquer eacutepoca fundar uma comunidade para realizar um projeto comum realizar algum bem reconhecido como bem comum por todos os participantes do projeto (MACINTYRE 2001 p 256-257)
Estabelecida a relaccedilatildeo entre a eacutetica e o direito devemos agora procurar os
fundamentos da eacutetica aristoteacutelica para entatildeo verificarmos o comportamento das
virtudes da Prudecircncia da Justiccedila e da Equidade no acircmbito da justiccedila aristoteacutelica
31 Eacutetica a Nicocircmaco
Na forma que comporta o tiacutetulo deste item passaremos a tratar algumas
questotildees pertinentes ao conteuacutedo da obra Eacutetica a Nicocircmaco a fim de contextualizar
o objeto deste trabalho
Os principais escritos de Aristoacuteteles sobre eacutetica que chegaram a noacutes satildeo
Eacutetica a Nicocircmaco Eacutetica a Eudemo e a Eacutetica Maior esta uacuteltima tambeacutem conhecida
como Magna Moraacutelia Os escritos sobre eacutetica em especial a Eacutetica a Nicocircmaco e a
Eacutetica a Eudemo comportam caracteriacutesticas de notas tomadas por disciacutepulos tendo
por base os ensinamentos passados pelo Estagirita (RUSSELL 2001 p 109)
Por ser uma obra mais amplamente aceita tomaremos a Eacutetica a Nicocircmaco
como principal referecircncia aristoteacutelica para a Eacutetica das Virtudes sem contudo
ignorar algum detalhe que possa elucidar aspectos pertinentes agrave nossa pretensatildeo e
presente nas outras duas obras citadas Nesse sentido comenta Eduardo Bittar
A Ethica Nicomachea recebeu amplo tratamento devido ao interesse que desperta dos modernos comentadores da obra o mesmo natildeo sucede com as duas outras obras dedicadas agrave temaacutetica Aliaacutes a trilogia natildeo parece gerar uniformidade no corpo dos eruditos pois a recepccedilatildeo de uma (EE ou MM) ou de ambas (EE e MM) natildeo tem sido paciacutefica questionando-se natildeo soacute acerca da pertinecircncia e da originalidade destas obras mas tambeacutem acerca da cumulaccedilatildeo tautoloacutegica de escritos para o tratamento de um mesmo problema o que seria assimeacutetrico na obra aristoteacutelica onde parece ser a regra a existecircncia de uma uacutenica obra para
37
a investigaccedilatildeo de uma problemaacutetica determinada (BITTAR 2003 p992)
A Eacutetica a Nicocircmaco inicia-se traccedilando questionamentos acerca do que seja
o bem Parte-se da ideia de que o indiviacuteduo suas accedilotildees e escolhas estatildeo voltadas
a um bem Este bem eacute aquilo a que todas as coisas possuem certa tendecircncia
Assim o fim de todas as accedilotildees humanas eacute o sumo bem (EN I 1 1094a) O
conhecimento deste fim conduz agrave determinaccedilatildeo da ciecircncia cujo bem supremo eacute o
objeto
Essa ciecircncia cujo estudo caberaacute agrave Eacutetica eacute a ciecircncia mestra isto eacute a
Poliacutetica As accedilotildees por si mesmas boas e justas podem admitir uma ampla variedade
de opiniotildees e neste sentido podem ter sua existecircncia devida agraves convenccedilotildees e natildeo
naturalmente Daiacute portanto constituem objeto da poliacutetica Assim visa-se a accedilatildeo do
bem mas o seu conhecimento natildeo eacute proveitoso a todos Agravequeles que desejam e
agem conforme um princiacutepio racional isso seraacute uacutetil por outro lado natildeo teraacute utilidade
para o jovem sem experiecircncias dos fatos da vida o qual segue tatildeo somente suas
paixotildees (ENI 3 1095a)
Essa interessante passagem revela ser o objeto das deliberaccedilotildees da poacutelis
temas como o ldquobomrdquo e o ldquojustordquo Aristoacuteteles natildeo ignora o fato de que o bom e o justo
admitem uma gama de opiniotildees por isso tais temas estatildeo na pauta das
convenccedilotildees
Aristoacuteteles argumenta que o sumo bem o bem perseguido por todos natildeo
pode ser o prazer a honra ou a riqueza Sobre o prazer argumenta que natildeo pode
se identificar com o sumo bem pois o prazer e o gozo satildeo proacuteprios agrave vida levada
pelos animais inferiores34
34
Interessante nota do tradutor quando Aristoacuteteles justifica a conduta de tais pessoas por se
espelhares em pessoas de alta posiccedilatildeo como Sardanaacutepalo De acordo com a nota de nuacutemero 08 ldquoSardanaacutepalo monarca assiacuterio sem consistecircncia histoacuterica de caraacuteter miacutetico O sofista tardio Ateneu de Naucraacutetis (circa 215 AD) atriui uma espeacutecie de maacutexima a Sardanaacutepalo que eacute esthie pine paize os talla touumltouuml ouumlk axia touuml apokrotematos (esthie pine paize os talla touumltouuml ouumlk axia touuml
apokrotematos) ou seja ldquoCome bebe diverte-te visto que tudo o mais natildeo vale um estalo dos dedosrdquo lhe atribui tambeacutem um trecho de um desabafo que assim finaliza kein ekho oss efagon kai efuumlbrisa kai met eroacutetos terpn epathon ta de polla kai olbia panta leluumltaiefagon kai efuumlbrisa kai met eroacutetos terpn epathon ta de polla kai olbia panta leluumltai) quer dizer ldquoeu tenho o que comi e ainda os voluptuosos atos de ultraje e amor carnal que realizei e experimentei ao passo que minha riqueza se foirdquo (BINI 2009 p 42)
38
Ora se todo o conhecimento e todo o trabalho visam a algum bem pode-se
afirmar que o fim seraacute a felicidade (RUSSELL 2001 p127) ndash objeto final da vida
fruto de atividade conforme a mais alta de todas as formas de excelecircncia (EN X 7
1177a)
Destarte faz-se necessaacuterio buscar o bem e conhecer o que ele eacute pois a
finalidade para tudo que se faz eacute o bem A vida ativa que possui um princiacutepio
racional eacute a melhor funccedilatildeo do homem Os bens satildeo as atividades da alma e
portanto parece que a felicidade se identifica com a virtude Por conseguinte agrave
virtude cabe a atividade virtuosa Entretanto o sumo bem estaacute em ato uma vez que
pode haver um estado de acircnimo sem gerar resultado positivo
[] pois pode existir o estado de espiacuterito sem que ele produza qualquer
resultado bom como no caso de uma pessoa adormecida ou inativa por
outra razatildeo mas natildeo pode ocorrer o mesmo com a atividade conforme agrave
excelecircncia de qualquer maneira ela se manifestaraacute e bem Da mesma
forma que nos jogos oliacutempicos os coroados natildeo satildeo os homens mais
fortes e belos e sim os que competem (alguns destes seratildeo os
vitoriosos) quem age conquista e justamente as coisas boas da vida
(EN I 8 1099a)
De acordo com Aristoacuteteles a mais apraziacutevel melhor e mais nobre coisa do
mundo eacute a felicidade pois a felicidade eacute uma atividade da alma de acordo com a
virtude e natildeo sendo necessariamente esta mesma felicidade a riqueza prazer ou
honra e outros mais Constata-se assim que estes bens exteriores satildeo necessaacuterios
agrave felicidade uma vez que natildeo se podem realizar atos nobres sem os meios (EN I
8 1099b)
Questiona-se se a felicidade eacute adquirida atraveacutes da aprendizagem do
haacutebito ou se eacute uma daacutediva da Providecircncia Divina ou eacute simples produto do acaso35
Sendo a felicidade a melhor coisa do mundo entatildeo seguramente seraacute uma daacutediva
divina ainda que resulte da virtude pela aprendizagem ou adestramento Portanto
natildeo se deve confiar ao simples acaso aquilo que eacute o melhor (EN I 9 1099b)
Esse ponto sem duacutevida eacute o convite agrave accedilatildeo humana e a admissatildeo do que
denominamos fracasso da Providecircncia Uma vez que ao homem em sua condiccedilatildeo
35
Voltaremos a este ponto quando tratarmos das virtudes morais e intelectuais
39
de mortal e natildeo-Deus natildeo eacute permitido se dar ao luxo de esperar uma soluccedilatildeo vinda
dos ceacuteus Pelo contraacuterio o melhor emprego que ele pode fazer eacute agir modificando e
adaptando seus desejos e possibilidades
Sobre as virtudes afirma o Filoacutesofo que existem as virtudes intelectuais as
que resultam do ensino e necessitam de experiecircncia e tempo e as virtudes morais
as quais satildeo adquiridas atraveacutes do haacutebito e pelo exerciacutecio como neste exemplo
[] os homens se tornam construtores construindo e se tornam citaristas tocando ciacutetara da mesma forma tornamo-os justos praticando atos justos moderados agindo moderadamente e corajosos agindo corajosamente (EN II 1103b1)
Portanto eacute atraveacutes da praacutetica reiterada que pode o homem moldar seu
caraacuteter sendo o homem virtuoso resultado de uma vida guiada pela reta razatildeo
32 Partes da Alma
Como exposto eacute ldquoo bem a finalidade de todas as coisasrdquo (EN I 1 1094a1)
sendo a felicidade o bem maior a ser alcanccedilado Nesse sentido podemos afirmar
que a accedilatildeo eacute uma ldquocerta atividade da alma em conformidade com a virtude perfeitardquo
(EN I 13 1102a5)
Aristoacuteteles divide a alma em partes de acordo com as atividades inerentes a
cada uma A primeira divisatildeo comporta duas partes sendo uma irracional e outra
dotada de razatildeo
No que se refere agrave psicologia algum ensino corrente em discursos externos eacute satisfatoacuterio e pode ser aqui adotado a saber que a alma eacute bipartida uma parte sendo irracional e a outra capacitada de razatildeo (Se essas duas partes satildeo realmente distintas no sentido que o satildeo as partes do corpo ou de qualquer outro conjunto divisiacutevel ou se embora distinguiacuteveis no pensamento como duas satildeo na realidade inseparaacuteveis como os lados convexo e cocircncavo de uma curva eacute uma questatildeo que carece de importacircncia para o assunto em pauta) (EN I 13 1102a27)
40
A segunda divisatildeo refere-se agrave parte irracional da alma Tal parte comporta a
funccedilatildeo vegetativa comum a todas as coisas vivas que diz respeito agrave nutriccedilatildeo e ao
crescimento e agrave funccedilatildeo sensitiva Sobre a parte vegetativa eacute interessante notar que
natildeo obstante ser comum a todos os seres vivos sua virtude natildeo eacute caracteriacutestica
dos seres humanos Vejamos
Considera-se ademais que na parte irracional da alma haacute uma divisatildeo que parece ser comum a todas as coisas vivas possuindo natureza vegetativa Refiro-me agrave divisatildeo que produz nutriccedilatildeo e crescimento pois eacute forccediloso supormos que uma faculdade vital dessa natureza existe em todas as coisas que assimilam alimento inclusive os embriotildees sendo que a mesma faculdade estaacute presente tambeacutem no organismo totalmente desenvolvido (o que eacute mais razoaacutevel do que supor uma faculdade nutritiva distinta no uacuteltimo) A virtude dessa faculdade parece portanto ser comum a todas as coisas animadas e natildeo caracteriacutestica do ser humano pois acredita-se que essa faculdade ou parte da alma eacute mais atuante durante o sono [enquanto a bondade e a maldade se manifestam minimamente durante o sono] natildeo podendo se distinguir um homem bom de um mau (e daiacute o adaacutegio segundo o qual durante metade de suas vidas natildeo haacute diferenccedila entre o feliz e o infeliz) Isso constitui um efeito natural do fato de o sono ser uma cessaccedilatildeo das atividades da alma das quais depende sua bondade ou maldade ndash exceto pelo fato de ser possiacutevel em algum modesto grau certas impressotildees sensoriais atingirem a alma durante o sono fazendo com que os sonhos dos bons sejam melhores do que aqueles dos homens comuns (EN I 13 1102b11)
Aristoacuteteles afirma que a parte relacionada aos apetites e desejos em geral ndash
a alma sensitiva ndash comum aos animais participa de algum modo do princiacutepio
racional Portanto ainda que tal parte esteja alojada na parte irracional ela manteacutem
em certa medida relaccedilotildees com o princiacutepio racional ldquoPois aprovamos a razatildeo do
indiviacuteduo continente tanto quanto o incontinente e a parte de suas almas que eacute
racional porque os induz na senda correta e os exorta para o curso mais excelenterdquo
(EN I 13 1102b15)
Sobre essa relaccedilatildeo da parte irracional da alma com o princiacutepio racional
Aristoacuteteles afirma que ldquonatildeo se pode duvidar de que tambeacutem na alma existe um
elemento distinto do princiacutepio [racional] que a ele se opotildee e lhe resisterdquo (EN I 13
1102b20-25) Para resolver essa aparente contradiccedilatildeo Aristoacuteteles mantecircm sua
teacutecnica de citar exemplos invocando aqui o exemplo do homem continente
argumentando no sentido do paraacutegrafo supra que ldquoesse segundo elemento como
mencionamos participa do princiacutepio racional Ao menos no homem continente ele
41
acata o comando do princiacutepio e eacute incontestaacutevel que no homem moderado e
corajoso ele eacute ainda mais submisso considerando-se que todas as artes da
natureza desse [tipo de] homem se harmonizam com o princiacutepiordquo (EN I 13
1102b25-30)
Destarte parece ser o princiacutepio racional capaz em alguma medida de
acessar essa parte irracional ldquo[] esse princiacutepio racional eacute capaz de algum modo
de recorrer agrave parte irracional eacute indicado por nossa praacutetica de advertir pelo emprego
que fazemos da censura e da exortaccedilatildeo em geralrdquo (EN I 13 1102b30)
Tal parte eacute responsaacutevel pelo movimento36 essa conclusatildeo eacute desdobrada no
De Anima
Ao menos o seguinte estaacute claro desde de que tenhamos a imaginaccedilatildeo na conta de uma espeacutecie de intelecccedilatildeo haacute duas fontes do movimento local nomeadamente o desejo e o intelecto [] A conclusatildeo eacute que estes dois satildeo fontes do movimento local o intelecto e o desejo entendendo eu aqui o intelecto que calcula ou raciocina em vista de um objetivo isto eacute o intelecto praacutetico o qual difere do intelecto teoacuterico (especulativo) em funccedilatildeo do caraacuteter de seu fim Por sua vez o desejo constantemente persegue um objetivo sendo que o proacuteprio objeto do desejo torna-se princiacutepio do intelecto praacutetico e o ponto final do processo de raciocinar constitui o ponto de partida da accedilatildeo (DA III 10 433a10-20)
Dessa forma tanto a parte irracional quanto a alma como um todo eacute dupla
Sendo que sua parte vegetativa natildeo toma parte do princiacutepio racional a outra
poreacutem que compreende os apetites e o desejo em geral participa de certo modo
do princiacutepio racional sendo obediente e submissa a ele que eacute o sentido que
emprestamos ao acatamento do ldquoracionalrdquo quando falamos em dar atenccedilatildeo ao
proacuteprio pai ou aos proacuteprios amigos e natildeo aquele que atribuiacutemos ao ldquoracionalrdquo nas
matemaacuteticas (EN I 13 1102b30)
Ora a virtude tambeacutem eacute diferenciada em consonacircncia com essa divisatildeo da alma Algumas formas de virtude satildeo chamadas de virtudes intelectuais e outras de virtudes morais A sabedoria e o entendimento e a prudecircncia satildeo virtudes intelectuais a generosidade e a temperanccedila satildeo virtudes morais Ao descrevermos o caraacuteter moral de algueacutem natildeo
36
Vide o item 22 Movimento da potecircncia para o ato
42
dizemos que se trata de algueacutem saacutebio ou capaz de entendimento mas que eacute uma pessoa moderada ou soacutebria Mas um homem saacutebio tambeacutem eacute louvado por sua disposiccedilatildeo e chamamos de virtudes as disposiccedilotildees dignas de louvor (EN I 13 1103a5)
Aristoacuteteles apresenta a parte racional da alma como dotada de duas
faculdades a faculdade cientiacutefica e a faculdade calculadora (EN VI 1 1139a15)
A primeira parte eacute dita ldquocientiacuteficardquo (epistemonikoacuten) enquanto a segunda ldquocalculadorardquo (logistikoacuten) Eacute evidente que na primeira entram todas as ciecircncias teoreacuteticas seja a matemaacutetica cujos objetos satildeo necessaacuterios seja a fiacutesica e a metafiacutesica cujos objetos tecircm ao menos princiacutepios necessaacuterios mas nela entram tambeacutem as ciecircncias praacuteticas ndash cujos objetos isto eacute os bens tecircm princiacutepios como vimos ao menos ldquogeralmenterdquo necessaacuterios ndash que portanto do ponto de vista epistemoloacutegico satildeo equiparaacuteveis agravequelas que tecircm princiacutepios necessaacuterios Na segunda entram ao contraacuterio todas as atividades que tecircm por objeto realidades independentes da ldquodeliberaccedilatildeordquo humana porque ndash diz Aristoacuteteles ndash deliberar e calcular satildeo a mesma coisa e ningueacutem delibera sobre as coisas que natildeo podem ser diferentemente (BERTI 1998 p 144)
Sobre essa divisatildeo explica Giovanni Reale
E posto que sejam duas as partes ou funccedilotildees da alma racional uma a que conhece as coisas contingentes e variaacuteveis e outra que conhece as coisas necessaacuterias e imutaacuteveis eacute natural que haja uma perfeiccedilatildeo ou virtude da primeira funccedilatildeo e uma perfeiccedilatildeo ou virtude da segunda funccedilatildeo da alma racional Estas duas partes da alma racional satildeo basicamente a razatildeo praacutetica e a razatildeo teoreacutetica e as respectivas virtudes satildeo as formas perfeitas com as quais se apreende a verdade praacutetica e a teoreacutetica (REALE 1985 p 106 traduccedilatildeo nossa)
37
Conforme vimos existe uma relaccedilatildeo entre a parte racional e a parte
irracional A parte apetitiva da alma irracional tem certa subordinaccedilatildeo agrave parte
37
Y puesto que son dos las partes o funciones del alma racional una la que conoce las cosas contingentes y variables la otra la que conoce las cosas necesarias e inmutables es natural que haya una perfeccioacuten o virtud de la primera funcioacuten y una perfeccioacuten o virtud de la segunda funcioacuten del alma racional Estas dos partes del alma racional son baacutesicamente la razoacuten praacutectica y la razoacuten teoreacutetica y las respectivas ldquovirtudesrdquo son las formas perfectas con las que se aprehende la verdad praacutectica y la teoreacutetica (REALE 1985 p 106 traduccedilatildeo nossa)
43
racional De acordo com o Estagirita eacute a faculdade calculadora que controla os
desejos proacuteprios da parte apetitiva vejamos
A virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo que diz respeito agrave escolha e escolha eacute desejo deliberado conclui-se que se a escolha deve ser boa tanto a razatildeo precisa ser verdadeira quanto o desejo correto e que o desejo tem que buscar as mesmas coisas afirmadas pela razatildeo Estamos nos referindo aqui ao raciociacutenio praacutetico e ao atingimento da verdade relativamente agrave accedilatildeo no que tange ao pensamento especulativo que natildeo concerne agrave accedilatildeo ou produccedilatildeo a funccedilatildeo certa e errada consiste na consecuccedilatildeo da verdade e falsidade respectivamente O atingir da verdade eacute efetivamente a funccedilatildeo de toda parte do intelecto mas a da inteligecircncia praacutetica eacute o atingimento da verdade correspondente ao correto desejo (EN VI 2 1139a25 negrito nosso)
Compreendidas as partes da alma na forma pertinente agrave eacutetica aristoteacutelica
torna-se necessaacuterio o estudo das virtudes em conformidade com tais partes
33 Virtudes Morais
O livro II da Eacutetica a Nicocircmaco faz uma exposiccedilatildeo geral acerca das virtudes
morais Essas virtudes pertencem ao acircmbito da parte irracional da alma mais
especificamente na parte dos desejos e apetites
De acordo com o Estagirita ldquoa virtude moral ou eacutetica eacute o produto do haacutebito
[] E portanto fica evidente que nenhuma das virtudes morais eacute em noacutes
engendrada pela natureza uma vez que nenhuma propriedade natural eacute passiacutevel de
ser alterada pelo haacutebitordquo (EN II 1 1103a15)
Em seu Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Tomaacutes de Aquino esclarece que
Em contraste a virtude eacute gerada pelo costume moral A Virtude moral estaacute na parte apetitiva portanto eacute uma inclinaccedilatildeo para algo apetitivo Esta inclinaccedilatildeo ou eacute por natureza que volta para o que estaacute em conformidade ou eacute pelo haacutebito que se volta para a natureza Assim o nome Virtude moral eacute retirado do haacutebitual com poucas alteraccedilotildees Porque escrever em grego ethos com uma letra e breve designa o caraacuteter ou virtude moral Mas ythos escrito com a letra g que eacute como
44
uma larga h que significa costume Como tambeacutem entre noacutes a palavra moral as vezes significa costumes e as vezes designa o que pertence ao viacutecio ou a virtude (AQUINO 2010 p130 traduccedilatildeo nossa)
38
Aristoacuteteles compara por analogia as virtudes morais com as artes por
ambas serem adquiridas pela reiteraccedilatildeo dos atos que lhes satildeo proacuteprios Admite a
impossibilidade de prescrever com exatidatildeo tais atos contudo descreve uma
foacutermula que pretende direcionar os atos no acircmbito das virtudes Tal foacutermula consiste
em agir de acordo com a justa razatildeo39
Dessa forma o muacutesico se torna bom muacutesico executando reiteradamente
sua(s) especialidade(s) musical (ais) assim como os homens se tornam justos
praticando atos de justos e corajosos realizando atos corajosos
Nessa altura do livro II Aristoacuteteles revela uma das funccedilotildees da lei educar
Vejamos suas palavras ldquo[] legisladores tornam os cidadatildeos bons treinando-os em
haacutebitos de accedilatildeo correta o que eacute a meta de toda a legislaccedilatildeo que se falhar no seu
atingimento seraacute um fracasso [tarefa] no que se distingue a boa constituiccedilatildeo da
maacuterdquo (EN II 1 1103b1-5)
Mas no que consistiria essa boa educaccedilatildeo A resposta dada eacute gostar e natildeo
gostar das coisas apropriadas Assim eacute desenvolvida a teoria geral das virtudes ou
doutrina da mediania pois assim como acontece no que diz respeito agrave sauacutede
acontece com as virtudes ambas satildeo afetadas pelo excesso e pela deficiecircncia
Uma indicaccedilatildeo de nossas disposiccedilotildees eacute fornecida pelo prazer ou pela dor que acompanha nossas accedilotildees []
Na verdade a virtude moral concerne a prazeres e dores pois o prazer nos leva a realizar as accedilotildees vis e a dor nos leva a deixar de realizar accedilotildees nobres []
Ademais se as virtudes tecircm a ver com accedilotildees e paixotildees e toda paixatildeo e toda accedilatildeo satildeo acompanhadas por prazer e dor isso constitui uma demonstraccedilatildeo adicional de que a virtude diz respeito ao prazer e agrave dor[]
38
En cambio la virtude se genera por la costumbre moral La virtud moral estaacute en la parte apetitiva por eso supone cierta inclinacioacuten a algo apetecible Esta inclinacioacuten o es por naturaleza la cual inclina a lo que le es conforme o es por la costumbre que se vuelca hacia la naturaleza Por eso el nombre de la virtude moral estaacute tomado de la costumbre con poco cambio Porque em grego ethos escrito com a letra e breve designa el caraacutecter o virtude moral Pero ythos escrito com la g que es
como uma N larga significa costumbre como tambieacuten entre nosotros la palabra moral a veces significa costumbre y a veces designa lo que pertenece al vicio o a la virtud (AQUINO 2010 p130) 39
Conforme formulaccedilatildeo tomista recta ratio agibilium
45
Mas os seres humanos se corrompem atraveacutes de prazeres e dores a saber quer perseguindo e evitando os prazeres e dores equiacutevocos quer os perseguindo e evitando no momento equiacutevoco ou da maneira equiacutevoca ou em um dos meios equiacutevocos [] (EN II 3 1104b)
Destarte a virtude moral eacute a qualidade segundo a qual se age da ldquomelhor
formardquo40 em relaccedilatildeo aos prazeres e dores sendo o viacutecio o oposto As virtudes satildeo
definidas por Aristoacuteteles como ldquoa disposiccedilatildeo que o torna um bom ser humano e
tambeacutem o que o faraacute desempenhar sua funccedilatildeo bemrdquo (EN II 6 1106a22)
Nesse sentindo a virtude natildeo eacute nem uma paixatildeo nem uma faculdade mas
um estado de caraacuteter O que a torna distinta eacute o fato de consistir na disposiccedilatildeo de
escolher o meio-termo
331 Doutrina da Mediania
Os atos praticados pelos homens em suas muacuteltiplas relaccedilotildees eacute que os
tornam justos ou injustos Explica o Filoacutesofo41 que eacute necessaacuterio cultivar o haacutebito de
praticar atos virtuosos desde a juventude Nesse sentido
[] a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia e pelo excesso tal como vemos acontecer com o vigor e a sauacutede (temos de explicar o invisiacutevel recorrendo a evidencia do visiacutevel) os exerciacutecios excessivos ou deficientes destroem igualmente o vigor e de maneira idecircntica as bebidas e os alimentos de mais ou menos destroem a sauacutede ao passo que seu uso em proporccedilotildees adequadas produz aumenta e conserva aquele e esta (EN II 2 1104a)
Sendo a virtude mais exata do que toda e qualquer arte e por possuir como
atributo o meio-termo o excesso ou a falta podem ser-lhe destrutivos Tanto o
excesso quanto a carecircncia satildeo graves formas de erro Entretanto o meio-termo
mostra-se como uma forma digna de louvor fazendo da virtude uma mediania Mas
ressalte-se que se trata de meio termo entre dois viacutecios Contudo nem toda accedilatildeo e
40
Vide o item 2331 Trageacutedia 41
Como Aristoacuteteles era referenciado por Tomaacutes de Aquino
46
nem toda paixatildeo admitem meio termo eacute o que observa ROSS (1957 p 231)42
ldquoPorque a mediania eacute num certo sentido um extremo []rdquo (EN II 6 1107a25)
Portanto do excesso ou da falta natildeo existe meio termo
[] se a virtude como a natureza eacute mais exata e melhor do que qualquer forma de arte se concluiraacute que a virtude deteacutem a qualidade de visar a mediania Eu me refiro agrave virtude moral
43 pois esta concerne agraves
paixotildees e accedilotildees nas quais se pode dispor de excesso ou deficiecircncia ou da devida mediania Por exemplo algueacutem pode estar receoso ou confiante sentir desejo ira ou compaixatildeo e experimentar prazer e dor em geral seja em excesso ou deficientemente e em ambos os casos indevidamente ao passo que experimentar esses sentimentos na ocasiatildeo certa oportunamente em relaccedilatildeo agraves pessoas certas para o propoacutesito certo e da maneira certa corresponde a sentir a medida melhor deles a qual eacute a quantidade meacutedia sendo que a melhor medida ou quantidade eacute evidentemente a marca da virtude Analogamente pode haver excesso deficiecircncia e a devida mediania nas accedilotildees (EN II 6 1106b20)
A virtude eacute entatildeo uma disposiccedilatildeo estabelecida que leva agrave escolha de accedilotildees
e paixotildees e que consiste essencialmente na observacircncia da mediania relativa a noacutes
sendo isso determinado pela razatildeo isto eacute como o homem prudente o determina
(EN II 6 1107a) As conclusotildees do Livro II apontam o quatildeo eacute difiacutecil atingir o meio-
termo uma vez que o mesmo natildeo eacute apreendido pelo raciociacutenio e sim pela
percepccedilatildeo Ele aponta trecircs regras como orientaccedilatildeo
A primeira regra eacute evitar o extremo que mais se opotildee agrave mediania Para natildeo
abandonar o estilo o Estagirita cita o conselho de Calipso personagem de a
Odisseacuteia ldquoPilota o navio o mantendo longe do borrifo e das vagasrdquo E continua
explicando ldquoPois dos dois extremos um deles constitui erro mais grave do que o
outro Por conseguinte porquanto atingir a mediania eacute extremamente difiacutecil a
42 Aristoteles luego nos previene contra un equivoco posible senalando queentre los sentimientos y
las acciones que se pueden nombrar no todos admiten un justo medio los nombres mismos de algunos de ellos tales como la desverguenza la envidia el adulterio el robo el asesinato implican su maldad Es decir que estos nombres no se aplican a los sentimientos moralmente indiferentes que son asunto de la virtud sino a un exceso vituperable de estos sentimientos no a las acciones que se relacionan con cierta clase de objeto sino a las acciones inicuas que se relacionan con este objeto La desverguenza es una incorrecta falta de verguenza el robo es un incorrecto exceso en la adquisicion de la riqueza El justo medio se opone al exceso y al defecto y por consecuencia no hay justo medio del exceso o del defecto como no existe exceso o defecto del justo medio (ROSS 1957 p 231)
43
Nota do tradutor de nuacutemero 48 Ou seja a teoria da mediania natildeo eacute aplicaacutevel agraves virtudes intelectuais (BINI 2009 p 77)
47
segunda melhor forma de navegar como indica o proveacuterbio eacute assumir o menor dos
males e a melhor maneira de fazecirc-lo seraacute a maneira que descrevemosrdquo (EN II 9
1109a30)
A segunda regra valendo-se do exemplo do carpinteiro em seu meacutetodo para
endireitar a madeira empenada consiste em observar os erros a que estamos mais
propensos de acordo com quais prazeres e dores experimentamos De posse de tal
observaccedilatildeo devemo-nos afastar do erro costumeiro estabelecendo assim um curso
mediano (EN II 9 1109b1)
Por fim o terceiro exemplo invocando Helena personagem de a Iliacuteada de
Homero
ldquo[] temos que em tudo que estar mais do que qualquer outra coisa de guarda contra o que eacute prazeroso e contra o prazer porque quando este estaacute em julgamento natildeo somos juiacutezes imparciais O procedimento correto eacute portanto encarar o prazer como os anciotildees do povo encaravam Helena e empregar (ou repetir) o discurso que dirigiram a ela em todas as ocasiotildees pois se assim o descartarmos teremos menos probabilidade de nos extraviar (EN II 9 1109b1)
Portanto podemos chamar de accedilatildeo virtuosa aquela que eacute direcionada pela
mediania que se projeta na melhor quantidade medida ocasiatildeo oportunidade e em
relaccedilatildeo agraves pessoas certas O acircmbito da accedilatildeo comporta uma biparticcedilatildeo que deve ser
considerada em se tratando de virtude a saber accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria
34 Accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria
Embora a virtude esteja relacionada com paixotildees e accedilotildees um sentimento ou
uma accedilatildeo pode ser algo voluntaacuterio ou involuntaacuterio Louvor e censura agraves paixotildees e
accedilotildees voluntaacuterias e perdatildeo e piedade agraves involuntaacuterias (EN III 1 1109b30)
Para Aristoacuteteles voluntaacuterio eacute o ato de escolher Mas eacute preciso fazer certas
ressalvas neste sentido Ora o que se pratica sob o impulso do momento pode ser
voluntaacuterio mas natildeo escolhido pois a escolha natildeo eacute comum aos seres irracionais
Escolher envolve um princiacutepio racional bem como o pensamento O objeto da
48
escolha apresenta-se ao alcance e o mesmo eacute desejado apoacutes uma deliberaccedilatildeo
Assim escolha eacute um desejo deliberado (EN III 1112a - 1113a) O fim eacute aquilo que
se deseja jaacute o meio eacute aquilo que eacute deliberado e escolhido e assim as accedilotildees devem
concordar com as escolhas e estas devem ser voluntaacuterias Com isso afirma o
Estagirita que a virtude estaacute ao poder de escolha do homem porque o exerciacutecio da
virtude diz respeito aos meios Aquilo cujo motor estaacute no agente que possui
conhecimento das circunstacircncias particulares do ato parece ser o que eacute voluntaacuterio
Involuntaacuterio segundo Aristoacuteteles eacute o que acontece sob compulsatildeo e
ignoracircncia em que o princiacutepio motor encontra-se externo ao indiviacuteduo e para o que
em nada contribui ou influi o indiviacuteduo que age ou sente a paixatildeo (EN III 1111b)
Assim atos encontram-se no homem e devem estar em seu poder e serem
voluntaacuterios Atraveacutes do exerciacutecio de atividades sobre os objetos particulares formam-
se as disposiccedilotildees de caraacuteter
[] um homem doente natildeo ficaraacute bom desta maneira embora possa acontecer que sua doenccedila seja voluntaacuteria no sentido de ser o resultado de sua vida de dissipaccedilatildeo e de sua desobediecircncia aos meacutedicos Neste caso de iniacutecio teria dependido dele natildeo ficar doente mas natildeo agora que ele desperdiccedilou sua oportunidade da mesma forma que depois de atirar uma pedra natildeo eacute possiacutevel fazecirc-la voltar atraacutes natildeo obstante a pessoa que atirou a pedra eacute responsaacutevel por havecirc-la apanhado e lanccedilado pois a origem do ato estava nesta pessoa (EN III 5 1114a)
Constata-se vaacuterias vezes a afirmaccedilatildeo da responsabilidade do homem diante
de suas accedilotildees Eacute importante observarmos assim como Pierre Aubenque (2008) o
fez que o homem natildeo eacute responsaacutevel por sua vontade mas por suas escolhas de
acordo com Aubenque (2008 p 222) ldquoNa perspectiva de Aristoacuteteles e dos gregos
a vontade natildeo eacute responsaacutevel pelo mal Ao contraacuterio o mal eacute o responsaacutevel pela maacute
qualidade da vontade [] Pois um homem nunca quer o mal enquanto tal pode
querer mal o bem e querendo o bem em geral escolher cada vez mais o menor
bemrdquo
49
Duas pressuposiccedilotildees fundamentam como princiacutepio da responsabilidade A
realidade eacute contingente44 e depende do indiviacuteduo que age Para que uma accedilatildeo seja
considerada virtuosa devem estar presentes estas duas exigecircncias uma vez que
[] onde estaacute ao nosso alcance agir tambeacutem estaacute ano nosso alcance
natildeo agir e onde somos capazes de dizer ldquonatildeordquo tambeacutem somos capazes
de dizer ldquosimrdquo consequumlentemente se agir quando agir eacute nobilitante
estaacute ao nosso alcance natildeo agir que seraacute ignoacutebil tambeacutem estaraacute ao
nosso alcance Se estaacute ao nosso alcance entatildeo praticar atos
nobilitantes ou ignoacutebeis e se isto era o que significava ser bom ou mau
estaacute igualmente ao nosso alcance ser moralmente excelentes ou
deficientes (EN III 5 1113b)
Para Aristoacuteteles o caraacuteter eacute resultado dos atos humanos conforme
argumenta a Eacutetica a Nicocircmaco Assim agindo desta ou daquela maneira adquire-se
uma ou outra disposiccedilatildeo eacutetica A realizaccedilatildeo de coisas justas resultaraacute em bons
haacutebitos e tornaraacute o caraacuteter justo (EN II 4 1105b) Ao agir de modo intemperante
adquire o haacutebito de ceder tatildeo somente aos desejos que conduz agrave intemperanccedila O
caraacuteter eacute assim o produto dos atos de seu autor e natildeo algo advindo da educaccedilatildeo
da condiccedilatildeo social ou da natureza
Assim os viacutecios e as virtudes possuem significado moral e natildeo satildeo somente
traccedilos psicoloacutegicos adquiridos Isto se daacute uma vez que pertencem ao campo daquilo
que depende do homem Ao agir o ser humano natildeo faz algo ao qual teraacute que
responder mais tarde como tambeacutem estaacute escolhendo o que seraacute Por isso ao agir
contra a regra que conhece estaacute consentindo em se tornar cego agrave lei e em natildeo
saber mais onde estaacute o bem Neste sentido a lei pune com maior severidade o
intemperante por ele deliberar em vista de um fim mau mesmo que possua a
capacidade de deliberar para o fim beniacutefico A ignoracircncia da regra pelo adulto
acresce a culpabilidade quando eacute produto de uma vida intemperante (EN III 5
1114a)
[] somente uma pessoa totalmente insensata poderia deixar de perceber que as disposiccedilotildees de nosso caraacuteter satildeo o resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injusto ou um homem que age
44
Veja o segundo capiacutetulo Contingecircncia
50
concupiscentimente natildeo deseje ser concupiscente Mas se uma pessoa pratica accedilotildees que a torna injusta sem ser ignorante ela seraacute injusta voluntariamente Disto natildeo resulta poreacutem que se ela quiser deixaraacute de
ser injusta e passaraacute a ser justa da mesma forma (EN III 5 1114a)
Ao abordar a responsabilidade humana Aristoacuteteles destaca que as
disposiccedilotildees satildeo voluntaacuterias de modos distintos
[] as accedilotildees e disposiccedilotildees natildeo satildeo voluntaacuterias de maneira idecircntica pois somos senhores de nossas accedilotildees do principio ao fim se conhecemos os fatos particulares mas embora tenhamos o controle da fase inicial de nossas disposiccedilotildees a evoluccedilatildeo de cada estaacutegio das mesmas natildeo eacute perceptiacutevel tal como acontece nas doenccedilas mas jaacute que a maneira de agir dependia de noacutes as disposiccedilotildees morais satildeo voluntaacuterias (EN III 5 1114a30)
O ato depende do ser humano em sua inteligibilidade porque o ser humano
possui um domiacutenio sobre as consequecircncias diretas do mesmo Por outro lado o ser
humano natildeo pode antecipar todas as consequecircncias advindas indiretamente dos
haacutebitos que ele assume O caraacuteter eacute imputaacutevel ao ser humano uma vez que agindo
ele tambeacutem estaacute forjando os seus haacutebitos
Embora o ser humano seja senhor de seus atos a cada instante ele natildeo
pode modificar o seu caraacuteter quando bem quer sendo que isso equivaleria a dizer
que o ser humano natildeo tem caraacuteter Assim apoacutes certo tempo o caraacuteter parece que
ficou tatildeo marcado que se torna impossiacutevel transformaacute-lo Resulta entatildeo o problema
da perfectibilidade do caraacuteter (EN III 5 1114a)
Ora cada ser humano eacute autor de seus atos enquanto eacute agente o que se
determina a um fim Sendo a escolha intencional dirigida pelo caraacuteter pode-se
afirmar que o ser o homem eacute causa de seus atos enquanto agente que consente
Assim de fato natildeo eacute o seu caraacuteter o determinante de sua decisatildeo (EN III 4 1113a)
Para Aristoacuteteles o caraacuteter comeccedila sua formaccedilatildeo durante a infacircncia Segundo
ele o jovem age para formar o seu caraacuteter enquanto que o adulto age a partir de seu
caraacuteter tendo a intenccedilatildeo de ser feliz Entretanto como os fins visados dependem do
caraacuteter as decisotildees do adulto apresentam-se como determinadas pelo seu
condicionamento educativo o qual ocorreu na infacircncia
51
O Estagirita afirma que o caraacuteter do jovem o qual eacute formado a partir dos
haacutebitos e da educaccedilatildeo que recebe ainda natildeo eacute nem vicioso e nem virtuoso Pode-
se prefigurar a virtude futura pelo amor ao belo pela justiccedila do gosto ou a nobreza
das paixotildees Tanto a virtude quanto o viacutecio somente se desenvolvem atraveacutes dos
atos dos quais somente o adulto eacute capaz uma vez que se realizam notadamente no
acircmbito da vida ciacutevica e militar A entrada na vida adulta quando satildeo tomadas as
primeiras decisotildees eacute quando se realizam os primeiros atos verdadeiros Natildeo se
pode negar entatildeo a influecircncia do caraacuteter adquirido pela educaccedilatildeo Assim o homem
comeccedila ao entrar na vida adulta a realizar alguma coisa que propotildee e visa fins ou
seja ele se torna o verdadeiro autor de seus atos e eacute responsaacutevel por aquilo que faz
e por aquilo que eacute Nesse momento eacute pela docilidade ou pela rebeliatildeo que o jovem
adquire boas ou maacutes disposiccedilotildees diante das paixotildees Por outro lado o adulto
adquire viacutecio ou virtude ou seja um caraacuteter moral atraveacutes de suas decisotildees
Assim com o passar do tempo um haacutebito tende a se repetir isto eacute ele
amplifica o que se comeccedilou melhorando sempre mais ou dirigindo-se cada vez mais
agrave decadecircncia Para o homem se tornar bom a exigecircncia eacutetica estaria reservada
agravequeles que tivessem comeccedilado bem aos demais soacute seria possiacutevel constatar seus
viacutecios e incoerecircncias Desta forma pode-se concluir que a eacutetica aristoteacutelica estaria
reservada somente a uns eleitos bem educados e aos outros ela condenaria a um
encadeamento fatiacutedico resultado de uma maacute educaccedilatildeo e consequente praacutetica
reiterada de viacutecios
Tendo revisitado as virtudes pertinentes agrave parte irracional da alma
passaremos a estudar as virtudes pertinentes agrave parte racional da alma que satildeo as
virtudes intelectuais
35 Virtudes Intelectuais
As virtudes como vimos satildeo de dois tipos a intelectual e a moral As
virtudes intelectuais satildeo majoritariamente tanto produzidas quanto ampliadas pela
instruccedilatildeo o que por certo exige experiecircncia e tempo (EN II 1 1103a15) As
virtudes intelectuais satildeo o objeto do livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco
52
Ao abordar tais virtudes Aristoacuteteles reapresenta a foacutermula da reta razatildeo ldquoJaacute
vimos que eacute certo escolher a mediania e evitar o excesso e a deficiecircncia e que a
mediania eacute fixada pela justa razatildeordquo (EN 1138b20)
Toda via estando algueacutem de posse dessa verdade isso natildeo o tornaraacute mais saacutebio do que antes queremos dizer por exemplo que tal pessoa natildeo saberaacute que medicamentos tomar pelo mero fato de lhe terem dito para tomar tudo que a arte a medicina ou um doutor em medicina lhe indicar Consequentemente no que toca agraves qualidades da alma igualmente natildeo bastaraacute meramente estabelecer a verdade da foacutermula acima Teremos aleacutem disso que definir com exatidatildeo qual eacute a justa razatildeo e qual eacute o padratildeo que a determina (EN 1138b20)
Aristoacuteteles define as partes da alma atribuindo agrave parte racional duas
faculdades a saber a faculdade cientiacutefica e a faculdade calculadora Enquanto o
objeto da faculdade cientiacutefica eacute aquele que se ocupa em especular as coisas cujos
primeiros princiacutepios satildeo invariaacuteveis a faculdade calculadora tem por objeto as
coisas que admitem variaccedilatildeo A definiccedilatildeo de caacutelculo eacute dada por Aristoacuteteles ldquoeacute o
mesmo que deliberaccedilatildeo e esta jamais eacute exercida sobre coisas invariaacuteveis
[entendemos] que a parte calculadora constitui uma parte independente da metade
irracional da alma (EN VI 1 1139a15)
Destaca trecircs elementos existentes na alma que controlam a accedilatildeo e o
atingimento da verdade a sensaccedilatildeo o intelecto e o desejo A sensaccedilatildeo natildeo gera
accedilatildeo pois a accedilatildeo eacute proacutepria ao homem enquanto a sensaccedilatildeo estaacute presente tanto na
alma do homem quanto na alma do animal Assim os movimentos dos animais satildeo
gerados pelos estiacutemulos sensoriais enquanto os movimentos proacuteprios ao homem a
praacutexis satildeo uma accedilatildeo guiada pelo intelecto e pelo desejo45
O pensamento especulativo desenvolvido pela faculdade cientiacutefica natildeo diz
respeito agrave accedilatildeo e ou agrave produccedilatildeo Ele se ocupa em elaborar juiacutezos de verdadeiro ou
falso
45
Conforme jaacute salientamos no capiacutetulo 2 O Movimento
53
Por outro lado o raciociacutenio praacutetico46 diz respeito ao que devemos buscar e
evitar no sentido de orientar as virtudes morais Eacute a partir dele que realizamos as
escolas entendendo por escolha o desejo deliberado (BERTI 1998 p 117)
Por conseguinte a escolha pode ser qualificada como o pensamento
relacionado ao desejo ou o desejo relacionado ao pensamento e o ser humano
como gerador da accedilatildeo eacute uma uniatildeo de desejo e intelecto (EN 1139b5)
46
Sobre razatildeo praacutetica vide LACERDA (2005)
54
4 PRUDEcircNCIA
41 Conceito
Aristoacuteteles na passagem 1140b do Livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco define a
prudecircncia como uma capacidade verdadeira e racional de agir sobre as coisas que
satildeo boas ou maacutes para o homem
De acordo com Enrico Berti a phroacutenesis ldquopara Aristoacuteteles eacute uma virtude ou
melhor a mais elevada virtude da parte calculadora da alma racional isto eacute a razatildeo
praacutetica Ela com efeito eacute por ele concebida como a capacidade de deliberar bem
ou seja de calcular os meios necessaacuterios para alcanccedilar um fim bomrdquo (BERTI 1998
p 146)
Por sua vez Tomaacutes de Aquino discorre sobre a prudecircncia na parte II-II
questotildees 47 a 56 em sua obra de referecircncia a Suma Teoloacutegica Tomaacutes eacute haacutebil na
leitura aristoteacutelica da prudecircncia e pode-se encontrar em sua obra uma foacutermula
sinteacutetica do que ele entende por prudecircncia reta razatildeo aplicada ao agir47 Portanto eacute
com fundamento em questotildees de razatildeo praacutetica que Tomaacutes define a prudecircncia ldquoE
este eacute o papel da prudecircncia aplicar os princiacutepios universais agraves conclusotildees
particulares do acircmbito do agir E assim natildeo compete agrave prudecircncia indicar o fim das
virtudes morais mas somente lidar com os meios para atingir o fimrdquo (II-II 476
negrito nosso)
Pierre Aubenque (2008) sonda pormenorizadamente os vaacuterios aspectos
apresentados pelo Estagirita do que seria a prudecircncia e de sua leitura agraves obras de
Aristoacuteteles extraiacutemos
[] a definiccedilatildeo dada por Aristoacuteteles no livro VI da Eacutetica Nicomaqueacuteia apresenta um caraacuteter demasiado elaborado ou se se prefere demasiado teacutecnico para poder conhecer a mesma fortuna Ali a prudecircncia eacute definida como uma ldquodisposiccedilatildeo praacutetica acompanhada de regra verdadeira concernente ao que eacute bom ou mau para o homemrdquo Conforme ao meacutetodo familiar a Aristoacuteteles essa definiccedilatildeo eacute apresentada como resultado de um processo ao mesmo tempo indutivo e regressivo Parte-se do uso comum constata-se que eacute chamado phronimos o
homem capaz de deliberaccedilatildeo (AUBENQUE 2008 p 60-61)
47 recta ratio agibilium
55
Ainda nessa direccedilatildeo Aubenque (2008) a distingue das outras virtudes em
particular das virtudes morais
[] enquanto a virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo (praacutetica) que concerne agrave
escolha ) a prudecircncia eacute uma disposiccedilatildeo praacutetica que
concerne agrave regra da escolha Natildeo se trata da retidatildeo da accedilatildeo mas da correccedilatildeo do criteacuterio razatildeo pela qual a prudecircncia eacute uma disposiccedilatildeo praacutetica acompanhada de uma regra verdadeira (AUBENQUE 2008 p61)
Alasdair Macintyre (2001) discorre sobre a prudecircncia como sendo a virtude
intelectual sem a qual natildeo se pode exercer nenhuma virtude de caraacuteter48
A virtude principal eacute portanto phronecircsis Phronecircsis assim como socircphrosunecirc eacute originariamente um termo aristocraacutetico de louvor Caracteriza algueacutem que sabe o que lhe eacute devido que se orgulha de reivindicar seus direitos Significa de maneira mais geneacuterica algueacutem que sabe como julgar em casos especiacuteficos Phronecircsis eacute a virtude intelectual mas eacute a virtude intelectual sem a qual natildeo se pode exercer nenhuma das virtudes de caraacuteter (MACINTYRE 2001 p15)
Javier Hervada (2008) em sua obra Liccedilotildees propedecircuticas de filosofia do
direito destaca o caraacuteter praacutetico e a inclinaccedilatildeo que a prudecircncia tem para com o
direito salientando suas caracteriacutesticas claacutessicas
A prudecircncia eacute de fato uma virtude intelectual ou dianoeacutetica a virtude do correto agir moral o que estaacute relacionado com a justiccedila que tambeacutem eacute virtude moral Isso salienta que a atividade juriacutedica depende de duas virtudes que satildeo a base do ofiacutecio de jurista a justiccedila e a prudecircncia (HERVADA 2008 p 58)
48
A interpretaccedilatildeo de MacIntyre sobre a singularidade da prudecircncia parece-nos extraiacuteda tanto de Tomaacutes quando se refere a ela como matildee das virtudes (III Sent d 33 q 2 a 5 c) quanto de Aristoacuteteles que nos ensina em sua Eacutetica a Nicocircmaco ldquoA prudecircncia proporciona todas as virtudes Ela fornece os meios de produzi-lasrdquo (VI 1145a)
56
Pierre Aubenque (2008) parece desembaraccedilar de forma haacutebil o que seria a
prudecircncia despindo dos textos de Aristoacuteteles a compreensatildeo de uma das questotildees
mais iacutentimas da filosofia grega e eacute nesse sentido que ele desenvolve sua conclusatildeo
O Estagirita encontraria aiacute a velha inquietude grega diante da imprevisibilidade do futuro e a precariedade das coisas humanas Se ele foi moderno isso se deve ao fato de natildeo ter querido dominar o acaso com preces Se a accedilatildeo sobre o acaso natildeo podia ser cientificamente determinada ndash visto que ldquodo acaso natildeo haacute ciecircnciardquo ndash natildeo seria tampouco improvisada e sem princiacutepios Natildeo retornaremos agrave soluccedilatildeo que ele deu a este problema e nomeou prudecircncia (AUBENQUE 2008 p 278)
A adoccedilatildeo do traacutegico em face ao fracasso da Providecircncia ou em outras
palavras uma vez que o futuro eacute indeterminado a escolha entre dois males faz-se
procurando o menor entre eles A accedilatildeo nesse sentido compreendendo natildeo poder
alcanccedilar o bem em absoluto o faz da melhor maneira que pode
42 Prudecircncia e liberdade
De acordo com Aubenque (2008 p 149) a liberdade do homem natildeo estaacute
ligada agrave contingecircncia muito pelo contraacuterio se opotildee a ela A metaacutefora da casa
trazida no livro da Metafiacutesica retrata uma situaccedilatildeo onde o universo eacute comparado a
uma casa onde os homens livres representam os astros porque ldquolhes eacute menos liacutecito
agir ao acasordquo tendo suas accedilotildees orientadas por regras enquanto ldquoos escravos e os
animaisrdquo cujas ldquoaccedilotildees satildeo raramente ordenadas ao bem comum mas ao contraacuterio
satildeo frequentemente abandonadas ao acasordquo representam o mundo sublunar Nessa
acepccedilatildeo os escravos eacute que satildeo ldquolivresrdquo no sentido moderno do termo porque natildeo
sabem o que fazem ldquoenquanto a liberdade do homem grego e sua perfeiccedilatildeo se
medem pela maior ou menor determinaccedilatildeo de suas accedilotildeesrdquo
A prudecircncia eacute o substituto propriamente humano de uma Providecircncia que falha [] A prudecircncia eacute tambeacutem a previdecircncia que preserva os indiviacuteduos dos perigos [] ela eacute tambeacutem virtude na medida em que realiza no mundo sublunar um pouco do Bem que a divindade foi impotente para introduzir aqui [] Mas se o mundo fosse inteiramente
57
perfeito natildeo restaria nada a fazer ora eacute no fazer ou agir e natildeo na imobilidade estranhamente comum agraves plantas e a Deus que o homem
realiza sua sua excelecircncia propriamente humana Saber nos desviaria do fazer dispensando-nos de escolher (AUBENQUE 2008 p 155)
A prudecircncia seraacute a virtude dos homens voltados agrave deliberaccedilatildeo num mundo
obscuro e difiacutecil cujo inacabamento eacute um convite ao que decerto eacute preciso nomear
como sua liberdade A prudecircncia diraacute a Magna Moralia eacute uma ldquodisposiccedilatildeo para
escolher e agir concernindo ao que estaacute em nosso poder fazer e natildeo fazerrdquo
(AUBENQUE 2008 p 155)
Por isso homens como Peacutericles satildeo julgados prudentes porque possuem uma faculdade de discernir que coisas satildeo boas para mesmos e para os seres humanos E eacute isso que coincide com nosso entendimento do que seja algueacutem conhecedor da administraccedilatildeo domeacutestica ou
49 administraccedilatildeo
poliacuteticardquo (EN VI 5 1140B10)
Santo Tomaacutes em seus Comentaacuterios agrave Eacutetica a Nicocircmaco conclui acerca da
prudecircncia ldquoDe que la prudecircncia no sea ciencia haacutebito demonstrativo acerca de lo
necesario y no sea arte haacutebito productivo con razoacuten se segue que la prudencia es
un haacutebito activo con razoacuten verdadera que no versa sobre lo producio que estaacute fuera
del hombre sino sobre el bien y el mal del hombre mesmordquo (AQUINO 2010 p 363-
364)50
43 Arte e Prudecircncia
Conforme explicado na definiccedilatildeo tomista enquanto a atividade proacutepria agrave arte
eacute a produccedilatildeo a atividade proacutepria agrave prudecircncia eacute a accedilatildeo
49
εἶναι δὲ τοιούτους ἡγούμεθα τοὺς οἰκονομικοὺς καὶ τοὺς πολιτικούς Algueacutem conhecedor da
administraccedilatildeo domeacutestica e poliacutetica [(EN VI 5 1140B10) texto original disponiacutevel no site PERSEUS DIGITAL LIBRARY traduccedilatildeo nossa] 50
De que a prudecircncia natildeo eacute ciecircncia que procura mostrar o que eacute necessaacuterio e tambeacutem natildeo eacute arte o haacutebito produtivo com o emprego da razatildeo segue que a prudecircncia eacute um habito segundo o qual se age com a razatildeo verdadeira que natildeo versa sobre o produto que estaacute fora de homem mas sobre o bem e o mal do proacuteprio homem (AQUINO 2010 p 363-364)
58
Destarte para o Estagirita a arte eacute o conhecimento teacutecnico de como fazer
as coisas Enquanto a prudecircncia eacute o conhecimento de como agir para assegurar os
fins da vida do ser humano Vejamos o texto de Aristoacuteteles
Toda arte se ocupa em trazer alguma coisa agrave existecircncia e dedicar-se a uma arte significa estudar como trazer ao existir uma coisa que eacute possiacutevel existir ou natildeo a causa eficiente da qual estando no criador e natildeo na coisa criada pois a arte natildeo se ocupa com coisas que existem ou passam a existir (vecircm a ser) necessariamente ou pela natureza uma vez que essas coisas possuem suas causas eficientes em si mesmas Mas como o criar e o fazer satildeo distintos infere-se que a arte sendo concernente ao criar natildeo concerne ao fazer E num certo sentido a arte se ocupa dos mesmos objetivos da sorte como diz Agaton A sorte eacute aficionada da arte e a arte da sorte (EN VI 4 1140a10-20)
Para Enrico Berti a arte
[] concerne a objetos que podem ser diferentemente do que satildeo ou seja contingentes por isso estaacute entre as virtudes da parte ldquocalculadorardquo da razatildeo a mesma que compreende a phroacutenesis A diferenccedila entre arte e phroacutenesis repousa no fato de que esta uacuteltima ocupa-se como vimos do que pode ser ldquopraticadordquo (to praktoacuten) das accedilotildees enquanto a arte se ocupa da produccedilatildeo de objetos A distinccedilatildeo entre ldquoaccedilatildeordquo (praacutexis) e ldquoproduccedilatildeordquo (poiacuteesis) eacute dada por Aristoacuteteles quase sempre por evidente e consiste no fato de que a accedilatildeo natildeo produz nenhum objeto diferente dela mesma isto eacute termina em si que eacute o produto (BERTI 1998 p 157)
Portanto a arte eacute como dissemos uma qualidade racional concernente ao
criar de acordo com um processo verdadeiro de raciociacutenio Em oposiccedilatildeo a lacuna
da arte eacute uma qualidade racional concernente ao criar que envolve um processo
falso de raciociacutenio Ambas lidam com aquilo que admite variaccedilatildeo (EN VI 4
1140a10-20)
44 Deliberaccedilatildeo e Escolha
Ao definir a accedilatildeo voluntaacuteria Aristoacuteteles diz que a escolha pertence ao seu
gecircnero mas que no entanto nem todo ato voluntaacuterio eacute escolhido O que ele
pretende com essa argumentaccedilatildeo e evidenciar a diferenccedila entre a escolha e a
deliberaccedilatildeo
59
Nesse sentido esclarece que a deliberaccedilatildeo eacute ldquo[] empregada em mateacuterias
que embora sujeitas a regras que geralmente satildeo para o bem satildeo incertas quanto
aos seus resultados e consequecircncias ou nas quais resultados e consequecircncias satildeo
indeterminados []rdquo (EN III 3 1112b10)
Aristoacuteteles em vaacuterias passagens insiste em indicar um ponto especiacutefico
acerca da deliberaccedilatildeo Segundo ele natildeo deliberamos a respeito dos fins mas a
respeito dos meios Daiacute a analogia ldquo[No exerciacutecio de uma arte] a questatildeo num
momento eacute saber quais ferramentas usar e num outro como usaacute-las similarmente
em outras esferas temos que considerar por vezes que meios empregar e outras
vezes como exatamente determinarmos os meios que devem ser empregadordquo (EN
III 3 1112b30) Dessa forma Aristoacuteteles afirma que o ser humano eacute princiacutepio-
fundamento de suas proacuteprias accedilotildees e que eacute proacutepria agrave deliberaccedilatildeo apontar as accedilotildees
possiacuteveis de serem realizadas pelo agente sendo que todas as accedilotildees tecircm em vista
algum fim que natildeo elas mesmas
Portanto natildeo se delibera sobre o que natildeo estaacute em nosso poder A
deliberaccedilatildeo estaacute condicionada ao que podemos Por isso mais uma vez afirmamos
que a accedilatildeo virtuosa dirige-se para o melhor possiacutevel Isso eacute esclarecido por Pierre
Aubenque (2008) quando aborda a trageacutedia grega
ldquoA trageacutedia grega natildeo dizia outra coisa e antes dela a poesia de Hesiacuteodo ou Teoacutenis Por mais que Aristoacuteteles tenha restringido o traacutegico natildeo o eliminou inteiramente eacute a distacircncia que separa oi polloi de
pantej o wj epi to polu de aei o melhor possiacutevel do bem absoluto[]rdquo
(2008 p 138)
Destarte de posse da deliberaccedilatildeo cujo objeto estaacute sob nosso poder poder-
se-aacute escolher Pois a escolha eacute o desejo deliberado de coisas em nosso poder
Aristoacuteteles (1113a13) estabelece a seguinte ordem ldquoprimeiramente deliberamos em
seguida selecionamos e finalmente fixamos nosso desejo de acordo com o
resultado de nossa deliberaccedilatildeordquo
Sobre a escolha Aristoacuteteles esclarece que ela natildeo eacute o mesmo que a
vontade pois enquanto a vontade visa o fim a escolha concerne aos meios Neste
60
sentido a escolha se opotildee agrave vontade afinal ao homem eacute permitido querer o bem
mas escolher o melhor possiacutevel51
Aristoacuteteles apresenta pela primeira vez o problema da dissonacircncia possiacutevel entre o fim e os meios e enfatiza ao mesmo tempo que a qualidade da accedilatildeo eacute medida natildeo somente pela retidatildeo da intenccedilatildeo (como acreditava Platatildeo) mas tambeacutem pela conveniecircncia dos meios (AUBENQUE 2008 p 218)
Uma outra importante observaccedilatildeo eacute feita por Aubenque (2008 p 227) Ele
encontra no texto de Aristoacuteteles duas foacutermulas comuns agrave prudecircncia A primeira eacute
esta que acabamos de descrever qual seja a capacidade de escolha judiciosa dos
meios
A segunda foacutermula eacute pertinente agrave capacidade de aplicar o universal ao
particular O que vemos eacute que o prudente deve ser capaz de operar com uma com
duas ou com ambas se eacute que eacute possiacutevel estabelecer fundada diferenccedila entre elas
que natildeo seja meramente teoacuterica
Natildeo haacute portanto nenhuma ldquocontradiccedilatildeordquo entre as duas descriccedilotildees da accedilatildeo dadas por Aristoacuteteles Pois uma vez reconhecido o particular se o universal a ele se aplica necessariamente eacute preciso inicialmente reconhecer o particular o que se deduz silogisticamente eacute a propriedade do particular de ser desejaacutevel mas natildeo a existecircncia do particular Natildeo eacute difiacutecil saber que eacute preciso ser corajoso nem decidir que o que foi reconhecido como corajoso dever ser cumprido Mas onde estaacute a coragem hic et nunc Eacute na bravata ou no sangue frio Na aventura ou na abstenccedilatildeo No combate sem esperanccedila ou na fuga que garante o futuro Eacute na infinita distacircncia entre os princiacutepios demasiado gerais e a variedade inacessiacutevel ao pensamento racional A distacircncia eacute igualmente infinita entre a eficaacutecia real do meio e a realizaccedilatildeo esperada do fim Eacute este infinito que Aristoacuteteles pede que a prudecircncia preencha por mediaccedilotildees laboriosas e incertas Mas esse infinito este aoristou que
afeta uma mateacuteria sempre mais ou menos reativa agrave determinaccedilatildeo e em geral um mundo que nunca acolhe inteiramente a ordem noacutes jaacute conhecemos o seu nome a contingecircncia (AUBENQUE 2008 p 228)
Antes de encerrar este assunto parece oportuno levantarmos uma questatildeo
que segue o acima exposto Pierre Aubenque (2008) na introduccedilatildeo ao capiacutetulo
intitulado Antropologia da prudecircncia nos fornece uma importante justificativa acerca
51
Sobre a responsabilidade pela accedilatildeo vide o item 35 Accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria
61
da ordem temaacutetica proposta no presente trabalho A questatildeo que pretendemos
levantar eacute por que tomamos como ponto de partida a contingecircncia
Mostramos ateacute aqui que a prudecircncia soacute teria razatildeo de ser num mundo contingente Ora se a encaramos natildeo mais de um ponto de vista coacutesmico mas humano a contingecircncia nos aparece como abertura agrave atividade dos homens ao mesmo tempo arriscada e eficaz Sem a contingecircncia a accedilatildeo dos homens natildeo seria apenas impossiacutevel seria tambeacutem inuacutetil Eacute tal accedilatildeo ao mesmo tempo permitida e requerida pela contingecircncia em suas relaccedilotildees com a prudecircncia que guia que se trata de analisar agora
Natildeo surpreenderaacute que encontremos aqui em termos ldquosubjetivosrdquo o que tentamos extrair acima em termos ldquoobjetivosrdquo A teoria da contingecircncia e a da accedilatildeo reta satildeo apenas o direito e o avesso de uma mesma doutrina eacute a indeterminaccedilatildeo dos futuros que faz do homem princiacutepio o inacabamento do mundo eacute o nascimento do homem (AUBENQUE 2008 p 173 negrito nosso)
Assim a deliberaccedilatildeo eacute pertinente agravequilo que podemos modificar Seja qual
for o meacutetodo adotado o problema a ser enfrentado eacute o mesmo as incontaacuteveis
possibilidades a que estamos submetidos sendo a escolha o ato intriacutenseco agrave
deliberaccedilatildeo o momento oportuno para escolher o melhor possiacutevel
De acordo com Hermann (2007) a prudecircncia proposta por Aristoacuteteles na
Eacutetica a Nicocircmaco eacute mais precisamente
[] a possibilidade de articular a relaccedilatildeo entre o universal e o particular ou ainda a aplicaccedilatildeo de princiacutepios gerais em casos particulares Inserindo no mundo o comportamento eacutetico interpotildee a individualidade de um eu entretecido em formas histoacutericas de vida com um ethos comum Assim o agir moral natildeo estaacute voltado para um bem transcendente mas realizado em accedilotildees concretas (HERMANN 2007 p 366)
Assim com o escopo de compreendermos melhor passaremos a analisar a
figura do prudente
45 O prudente
A virtude da prudecircncia eacute tratada no capiacutetulo 5 do livro VI da Eacutetica a
Nicocircmaco Aristoacuteteles para explicaacute-la toma emprestado exemplo de pessoas
62
consideradas prudentes De acordo com ele eacute caracteriacutestico do homem prudente
ser capaz de bem deliberar sobre o que eacute bom e proveitoso para si mesmo natildeo de
maneira particular mas sobre o que eacute bom e vantajoso para o bem-estar em geral
Assim o homem prudente em geral eacute aquele capaz de bem deliberar de modo
geral
Poderiacuteamos afirmar que o sistema moral de Aristoacuteteles estaacute centrado em
sua maior parte no indiviacuteduo Aleacutem dos dois livros VIII e IX que satildeo dedicados agrave
amizade pouco se diz sobre ela na totalidade da eacutetica Pouco se sugere que o ser
humano deve ter um interesse caloroso e pessoal pelas outras pessoas e o
altruiacutesmo parece-nos ausente Mesmo sobre a amizade encontram-se traccedilos de um
ponto de vista deveras egoiacutesta jaacute que a mesma natildeo constitui uma benevolecircncia
mas exige certa reciprocidade
Mas tais afirmaccedilotildees natildeo parecem prosperar Sua eacutetica esta pautada no
conceito de felicidade Tal conceito soacute pode ser compreendido no acircmbito da poacutelis e
em relaccedilatildeo ao outro Ou seja para sermos felizes devemos optar por uma vida
virtuosa e para uma vida virtuosa devemos praticar as virtudes torna-se evidente
que sua teoria natildeo soacute considera mas tem como fundamento a relaccedilatildeo muacutetua entre
os homens ou melhor entre os animais poliacuteticos Vejamos a explicaccedilatildeo de Tomaacutes
de Aquino [] compete agrave razatildeo deliberar acertadamente julgar e preceituar naquilo
que se chega ao fim devido Estaacute claro que a prudecircncia visa natildeo somente o bem
particular de um soacute mas tambeacutem o bem comum da multidatildeo (AQUINO 2004 p
602) Estabelecendo uma relaccedilatildeo com a virtude moral expotildee
[] como toda virtude moral que se refere ao bem comum se chama justiccedila legal assim a prudecircncia referida ao bem comum se chama ldquopoliacuteticardquo de modo que a poliacutetica se relaciona com a justiccedila legal da mesma forma que a prudecircncia simplesmente dita agrave virtude moral (AQUINO 2004 p 602)
Portanto podemos concluir que o prudente eacute aquele que sabe o que eacute bom
para si de um modo geral e tambeacutem para sua comunidade Tambeacutem podemos
afirmar que ele bem delibera Assim na linguagem atual prudente tem um certo
sabor daquele que calcula com vistas no interesse proacuteprio (MACINTYRE 1991 p
63
80) e consequentemente da comunidade Resta-nos entatildeo examinar sobre o que o
prudente delibera
Vimos que natildeo eacute objeto de deliberaccedilatildeo as coisas das quais natildeo podemos
deliberar ou seja as coisas que estatildeo no acircmbito do necessaacuterio Conclui-se disto
que
[] a prudecircncia (sabedoria praacutetica) natildeo eacute o mesmo que conhecimento cientiacutefico como tatildeo pouco pode ser o mesmo que a arte Natildeo eacute conhecimento cientiacutefico porque assuntos relacionados agrave conduta admitem mutaccedilatildeo e natildeo pode ser arte porque o criar e o fazer satildeo genericamente diferentes posto que o criar visa um fim que eacute distinto do ato de criar enquanto no fazer o fim natildeo pode ser outro senatildeo o proacuteprio ato ou seja fazer bem eacute em si mesmo um fim Insiste-se portanto que a prudecircncia eacute uma qualidade racional de consecuccedilatildeo da verdade que concerne agrave accedilatildeo relativamente a coisas que satildeo boas e maacutes aos seres humanos (EN VI 5 1140b1-5)
Na sequecircncia Aristoacuteteles cita Peacutericles como sendo um exemplo de homem
prudente Em suas palavras ldquoPor ter a capacidade de discernir que coisas satildeo boas
para si mesmo e para os seres humanos E eacute isso que coincide com nosso
entendimento do que seja algueacutem conhecedor da administraccedilatildeo domeacutestica ou
administraccedilatildeo poliacuteticardquo (EN VI 5 1140b1-5)
Como modelo de phroacutenimos (quem possui a phroacutenesis) isto eacute de ldquosaacutebiordquo ou ldquoprudenterdquo Aristoacuteteles indica Peacutericles (1140 b 8) o grande liacuteder poliacutetico que governa Atenas certamente natildeo um filoacutesofo de profissatildeo com o qual discutir de igual para igual talvez para dissentir Aristoacuteteles indica Soacutecrates (13 1144 b 18 28) certamente natildeo um liacuteder poliacutetico nem nunca um governador de sua cidade tambeacutem daiacute resulta a diferenccedila por ele estabelecida entre a phroacutenesis e a filosofia praacutetica
Com mais forte razatildeo a phroacutenesis difere da sabedoria a primeira efetivamente ocupa-se o homem isto eacute das realidades humanas enquanto a segunda como vimos ocupa-se das realidades mais elevadas que o homem das realidades divinas Se o modelo da phroacutenesis como vimos eacute Peacutericles os modelos de sabedoria indicados por Aristoacuteteles satildeo Tales e Anaxaacutegoras alhures considerados fiacutesicos mas aqui apresentados como investigadores de realidades divinas (os princiacutepios supremos) (BERTI 1998 p 146-147)
Em contraste agrave filosofia platocircnica o Estagirita aborda a temaacutetica acerca da
sabedoria teoacuteretica e da sabedoria praacutetica A sabedoria teoreacutetica estaacute em grau de
64
superioridade em relaccedilatildeo agrave praacutetica sendo que ao menos uma parte do valor desta
uacuteltima consiste na ajuda que daacute a produccedilatildeo da primeira
Entatildeo a felicidade chega apenas ateacute onde haacute contemplaccedilatildeo e as pessoas mais capazes de exercerem a atividade contemplativa fruem mais intensamente a felicidade natildeo como um acessoacuterio da contemplaccedilatildeo mas como algo inerente a ela pois a contemplaccedilatildeo eacute preciosa por si mesma A felicidade portanto deve ser alguma forma de contemplaccedilatildeo
Mas sendo criaturas humanas necessitamos tambeacutem de bem estar exterior pois nossa natureza natildeo eacute suficiente por si mesma para o exerciacutecio da atividade contemplativa Nosso corpo deve ser tambeacutem saudaacutevel e deve receber boa alimentaccedilatildeo e outros cuidados Nem por isso poreacutem devemos pensar que as nossas pessoas necessitam de muitas e grandes coisas para ser felizes simplesmente porque natildeo podem ser sumamente felizes sem bens exteriores com efeito a auto-suficiecircncia e a accedilatildeo natildeo pressupotildeem excessos e podemos praticar accedilotildees nobilitantes sem dominar a terra e o mar porquanto mesmo com recursos moderados eacute possiacutevel agir de conformidade com excelecircncia (isto eacute bastante evidente pois se pensa que os simples cidadatildeos praticam atos meritoacuterios natildeo menos que os detentores do poder ndash na verdade os praticam ainda mais) basta dispormos de recursos moderados pois a vida das pessoas que agem de conformidade com a excelecircncia seraacute feliz (EN X 9 1179a1)
Destarte a contemplaccedilatildeo constitui o ingrediente fundamental da felicidade
para Aristoacuteteles Eacute esta a melhor atividade de que o homem eacute capaz haja vista que
eacute o exerciacutecio do melhor do indiviacuteduo sobre o melhor de todos os objetos os quais
satildeo eternos e imutaacuteveis Por consistir naquilo que o homem pode fazer com maior
continuidade acarretar prazer puro e estaacutevel ser menos dependente dos outros
homens Em suma consiste no gecircnero de vida que se deve atribuir aos deuses jaacute
que seria absurdo atribuir-lhes vida moral
Entretanto a vida contemplativa eacute extremamente elevada para o homem
Enquanto seres humanos compostos de corpo de alma irracional e de razatildeo
homem natildeo a podem vivecirc-la Hipoteticamente poderaacute vivecirc-la somente em virtude do
elemento divino presente nele Todavia o homem natildeo deve seguir aqueles que
afirmam que pelo homem ser homem deve limitar o seu pensamento agraves coisas
humanas Ora ldquona medida do possiacutevelrdquo o homem deve apoderar-se da vida eterna
vivendo a vida desta parte de si mesmo pois eacute esta que constitui a melhor e mais
verdadeira parte de si mesmo O homem que vive assim eacute feliz
65
Entatildeo a phroacutenesis no sentido jaacute plenamente definido de sabedoria praacutetica iraacute constituir-se como virtude dianoeacutetica entre as virtudes eacuteticas de um lado e a filosofia (ou sophiacutea) como haacutebito contemplativo de outro A phroacutenesis aristoteacutelica encontra assim o seu lugar no centro dessa estrutura de uma teoria da praxis como teoria praacutetica que seraacute finalmente a alternativa aristoteacutelica agrave ontologia platocircnica do Bem (VAZ 2000 p 102)
Ainda sobre o prudente podemos extrair dos valiosos ensinamentos de
Henrique C de Lima Vaz
A phroacutenesis como virtude da razatildeo reta (orthoacutes loacutegos) ou da razatildeo que iraacute estabelecer a meacutedia razoaacutevel entre os extremos para as virtudes eacuteticas eacute a primeira das virtudes dianoeacuteticas e assinala justamente a presenccedila do logos regulador e ordenador no fluxo contingente das accedilotildees singulares Ao apontar no homem saacutebio (phroacutenimos) a norma existencial e concreta da phroacutenesis Aristoacuteteles torna patente na realidade viva as ldquocoisas humanasrdquo a dialeacutetica que se estabelece entre o impliacutecito vivido do ethos e o expliacutecito vivido pensado da Eacutetica ou ciecircncia praacutetica Essa dialeacutetica vem romper exatamente com o ciacuterculo vicioso que parece opor logo nos primeiros passos do pensamento eacutetico a praacutetica e a definiccedilatildeo das virtudes e do qual nasce a aporia inicial dos chamados diaacutelogos ldquosocraacuteticosrdquo de Platatildeo a praacutetica da virtude verdadeira conteacutem o saber da sua definiccedilatildeo e a definiccedilatildeo da virtude natildeo eacute senatildeo a abstraccedilatildeo da sua praacutetica Eacute necessaacuterio praticar a virtude para poder defini-la e eacute necessaacuterio defini-la para bem pratica-la A Eacutetica como ciecircncia se propotildee justamente instaurar um tipo de reflexatildeo que permita a ruptura deste ciacuterculo entre o abstrato e o concreto estabelecendo um fundamento racional e uma medida para o agir (VAZ 2000 p 103-104 negrito nosso)
De acordo com Werner Jaeger a prudecircncia eacute a virtude que relaciona o
conhecimento mais elevado com as coisas da vida praacutetica
A phroacutenesis eacute o transformador que converte o conhecimento eterno de Deus no movimento eacutetico da vontade e o aplica agraves particularidades da praacutetica Na Eacutetica a Nicocircmaco eacute o ldquoestado de capacidade de trabalharrdquo e nenhum homem jamais atua sem ela O conhecimento filosoacutefico de Deus natildeo eacute sua condiccedilatildeo essencial
52 (JAEGER 1963 p 265 traduccedilatildeo
nossa)
52
La phroacutenesis es el transformador que convierte el conoci-miento del Dios eterno en el movimiento
eacutetico de la voluntad y lo aplica a los detalles de la praacutecticaEn la Etica Nicomaquea es el estado de capacidad de obrar y ninguacuten hombre actuacutea jamaacutes sin ella El conocimiento filosoacutefico de Dios ya no es su condicioacuten esencial (JAEGER 1963 p 275 traduccedilatildeo nossa)
66
Eacute desse hiato entre o universal e o particular que cuida o prudente Eacute ele
quem delibera sobre o momento as circunstacircncias e a maneira como a accedilatildeo deve
ser deflagrada para que possa ser considera virtuosa
Feita essa exposiccedilatildeo geral da eacutetica contingecircncia eacutetica das virtudes e
prudecircncia noacutes acreditamos ao menos em parte estar aptos a abordar um assunto
que assume papel central na filosofia grega a justiccedila
67
5 JUSTICcedilA COMO VIRTUDE
Abordar a justiccedila ndash ou qualquer outra virtude ndash no pensamento aristoteacutelico eacute
uma tarefa aacuterdua e sinuosa A coerecircncia do pensamento de Aristoacuteteles como um
todo e ao mesmo tempo a especificaccedilatildeo das particularidades de cada mateacuteria a ser
estudada daacute agrave abordagem uma dupla sensaccedilatildeo De um lado certa seguranccedila
relacionada ao fato de sua coerecircncia nos impulsionar ainda que de forma intuitiva
agraves significacircncias de seus dizeres Por outro lado a preocupaccedilatildeo com a seguranccedila
da informaccedilatildeo a ser tratada bem como com as alteraccedilotildees semacircnticas que tornam-
se significativas principalmente com a transiccedilatildeo para modernidade53
Eacute importante observarmos que o tratamento dado agrave justiccedila por Aristoacuteteles
emprega instrumentos pouco convencionais ateacute mesmo para a eacutepoca De acordo
com Eduardo C B Bittar (2005)
A siacutentese operada pelo pensador permitiu por meio de seus textos que se congregassem inuacutemeros elementos doutrinaacuterios reunidos ao longo dos seacuteculos pelos quais se espalharam os conhecimentos gregos anteriores a ele (preacute-socraacuteticos socratismo sofistas platonismo) Eacute da reuniatildeo das opiniotildees dos saacutebios da opiniatildeo do povo da experiecircncia praacutetica analisados e avaliados criticamente dentro da visatildeo de todo o problema (justiccedila da cidade justiccedila domeacutestica justiccedila senhorial) que surgiu uma concepccedilatildeo propriamente aristoteacutelica (BITTAR 2005 p 90-91)
Tal concepccedilatildeo daacute a justiccedila um caraacuteter eacutetico pois insere a mesma entre as
virtudes Dessa forma as regras gerais aplicadas agraves virtudes em particular satildeo
igualmente aplicadas agrave justiccedila Sendo a prudecircncia como mais tarde diria Tomaacutes de
Aquino genitrix virtut e auriga virtut54 parece-nos ser conceito aristoteacutelico de justiccedila
vitalmente ligado ao conceito de prudecircncia ao passo que a prudecircncia realiza suas
accedilotildees assim como a justiccedila no espaccedilo pertinente agrave accedilatildeo racional qual seja o
domiacutenio do contingente Assim esclarece Juacutelio Aguiar de Oliveira (2011)
53
Tema amplamente abordado em por MACINTYRE (2001) 54
Matildee da virtude (III Sent d 33 q 2 a 5 c) e guia da virtude (IV Sent d 17 q 2 a 2 dco) Traduccedilatildeo nossa
68
Na medida em que se trata de uma questatildeo referente agrave accedilatildeo humana sua atuaccedilatildeo se daacute no domiacutenio do contingente Eacute por isso que a virtude da justiccedila (como todas as outras virtudes eacuteticas) depende da virtude da prudecircncia Se a accedilatildeo humana se desenrolasse no domiacutenio do necessaacuterio os preceitos da lei natural poderiam ser deduzidos do primeiro princiacutepio por meio da ciecircncia (deduccedilatildeo matemaacutetica) No entanto uma vez que a accedilatildeo humana se aacute no domiacutenio do contingente a virtude necessaacuteria para a boa deliberaccedilatildeo eacute a virtude da prudecircncia (OLIVEIRA 2011 p121)
Portanto a justiccedila em sentido amplo eacute uma virtude que ldquo[] natildeo comporta
uma compreensatildeo geneacuterica e indiferente agraves qualidade especiacuteficas dos indiviacuteduos eacute
pelo contraacuterio sensiacutevel dentro das ambiccedilotildees teoacutericas de Aristoacuteteles agrave dimensatildeo
individualrdquo (BITTAR 2005 p 93) O conceito dado eacute o seguinte [] a justiccedila eacute a
virtude perfeita por ser ela a praacutetica da virtude perfeita aleacutem do que eacute perfeita num
grau especial porque seu possuidor pode praticar sua virtude dirigindo-a aos outros
e natildeo apenas sozinho [] (ENV 1 1129b30)
Nesse sentido Alexandre Travessoni Gomes em sua obra O fundamento da
validade do direito Kant e Kelsen conclui
A justiccedila soacute eacute possiacutevel numa relaccedilatildeo com o outro Aristoacuteteles chega mesmo a afirmar que dentre as virtudes somente a justiccedila eacute o bem do outro Tanto no sentido universal quanto no particular natildeo haacute justiccedila de um indiviacuteduo consigo mesmo visto que a justiccedila e a virtude que se relaciona com o nosso proacuteximo seja ele governante ou associado[]
Soacute haacute ato justo ou injusto uma vez que algueacutem o queira O que eacute justo ou injusto eacute caracterizado pela lei mas o ato justo ou injusto pressupotildee a vontade O ato injusto eacute portanto o ato voluntaacuterio em que se conhece tanto a pessoa a quem atine quanto o ato como instrumento de justiccedila ou injusticcedila (GOMES 2004 p 61)
Destarte eacute ato justo ou injusto eacute o ato possiacutevel voluntaacuterio e direcionado ao
semelhante
51 Justo e injusto
69
O livro V da Eacutetica a Nicocircmaco trata sobre a justiccedila De acordo com o estilo
de oposiccedilatildeo frequentemente empregado pelo Estagirita a noccedilatildeo de Justo eacute
contraposta agrave noccedilatildeo do injusto
Podemos sintetizar a anaacutelise inserta na passagem 1129b1-10 nos seguintes
termos O injusto eacute de duas espeacutecies injusto legal e injusto desigual
O injusto legal eacute aquele que transgride a lei em outras palavras aquele que
age orientado pela ilegalidade
O injusto desigual por sua vez eacute aquele que toma mais do que lhe eacute devido
Aristoacuteteles eacute muito preciso nesse trecho ao indicar que o injusto desigual eacute tambeacutem
aquele que toma a menor parte das coisas indesejadas Ou seja tomar tanto
demasiado as coisas boas quanto menos as coisas maacutes55
A noccedilatildeo de justo toma parte na argumentaccedilatildeo expondo por oacutebvio que o
justo igual (ou equitativo) eacute aquele que toma a parte que lhe eacute devida
O justo legal por seu turno eacute aquele que age de acordo com as leis Nesse
sentido eacute importante destacar o caraacuteter das leis no pensamento de Aristoacuteteles As
leis satildeo produzidas pelos legisladores de acordo com as virtudes portanto elas
orientam as accedilotildees reiterando o haacutebito e consequentemente educando para a
virtude Esse eacute o fim da atividade poliacutetica A felicidade de cada um em particular e da
poacutelis como um todo
Nesse sentido o termo justo eacute aplicado agrave qualquer coisa que possa produzir
e preservar a felicidade ou as partes componentes da felicidade da comunidade
poliacutetica
Aristoacuteteles destaca que existe uma relaccedilatildeo de gecircnero e espeacutecie entre o justo
legal e o justo igual sendo o justo legal o gecircnero da qual o justo igual eacute espeacutecie A
conclusatildeo eacute a seguinte Eacute possiacutevel ser injusto legal sem ser injusto igual mas natildeo eacute
possiacutevel ser injusto igual sem ser injusto legal
52 Justo universal
55
Parte-se do pressuposto de que as pessoas desejam as coisas boas
70
O justo universal eacute o gecircnero o sentido mais amplo que se pode atribuir ao
termo justo Pode-se dizer que a justiccedila universal consiste na observacircncia da lei no
que diz respeito agravequilo que eacute legiacutetimo e que vige para o bem da comunidade
Assim a define HOumlFF (2003)
A justiccedila como virtude completa denominada justiccedila universal (iustitia universalis) por Santo Tomaacutes de Aquino significa para Aristoacuteteles com vistas ao outro a virtude perfeita ainda mais reluzente do que a estrela vespertina e matutina Consiste na atitude de cumprir voluntariamente tudo o que a lei e os costumes exigem A justiccedila universal denota uma integridade abrangente Dela fazem parte eg tambeacutem as obras da coragem e da prudecircncia a que Aristoacuteteles no entanto alude modestamente apenas com interdiccedilotildees a coragem proiacutebe cometer adulteacuterio e tornar-se violento (HOumlFF 2003 p 24 e 25)
Eduardo Bittar (2005) observa que
A accedilatildeo que se vincula agrave legalidade obedece a uma norma que a todos e para o bem de todos eacute dirigida como tal essa accedilatildeo deve corresponder a um justo legal e a forma de justiccedila que lhe eacute por consequumlecircncia eacute aqui chamada justiccedila legal Aquele que observa os conteuacutedos legais pode ser chamado de justo nesse sentido O mesmo a contrariu sensu a respeito do injusto que lhe corresponde (BITTAR 2005 p 96)
Outro ponto que parece importante nas observaccedilotildees de Eduardo C Bittar eacute
acerca da funccedilatildeo do legislador de acordo com ele a produccedilatildeo normativa da poacutelis eacute
um exerciacutecio da prudecircncia Eacute o mesmo que encontramos na passagem 1141b25
Nessa passagem Aristoacuteteles divide a prudecircncia em duas espeacutecies uma relativa agraves
coisas particulares que recebe o nome de ciecircncia poliacutetica e outra relativa agraves coisas
concernentes ao Estado que nomina ciecircncia legislativa
[] pois as accedilotildees que nascem da virtude em geral satildeo fundamentalmente idecircnticas agraves accedilotildees que estatildeo de acordo com a lei uma vez que a lei prescreve a conduta que exibe as vaacuterias virtudes particulares e proiacutebe a conduta que exibe os vaacuterios viacutecios particulares
71
Igualmente as regras estabelecidas para a educaccedilatildeo particulares (EN V 2 1130b20-25)
A conclusatildeo eacute que a injusticcedila no sentido universal tange todas as coisas que
constituem a esfera da virtude ou seja que as leis prescrevem os comportamentos
virtuosos Mas eacute possiacutevel afirmar que existe algum ato que seja injusto e que natildeo
obstante esteja em conformidade com a virtude Por certo que natildeo Apenas o fato
de um ato ser injusto por si mesmo constitui uma violaccedilatildeo agrave virtude Pois ldquoNa
Justiccedila se encontra toda a Virtude somadardquo (1129b30)56 e por isso a Justiccedila eacute a
virtude perfeita
53 Justo particular
Natildeo obstante a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos ser injustos sem nos afastar
da esfera da virtude Aristoacuteteles nos apresenta uma particcedilatildeo particularizada quanto
em relaccedilatildeo ao injusto no sentido universal
Enquanto uma parte a mais abrangente (injusticcedila universal) versa sobre a
transgressatildeo das normas a outra diz respeito particularmente agrave injusticcedila que visa o
lucro e a injusticcedila movida pelo desejo A essas duas uacuteltimas injusticcedilas ele daacute o
sentido de particular
A que visa o lucro estaacute claro que diz respeito a accedilatildeo de tomar mais do que
lhe eacute devido ela se comporta de um modo bem peculiar por que natildeo viola outra
virtude que natildeo seja a proacutepria Justiccedila A que eacute movida pelo desejo eacute descrita pelo
comportamento desregrado e natildeo por tomar mais do que lhe eacute devido
Tais manifestaccedilotildees particulares satildeo divididas em duas importantes classes
para a teoria da justiccedila aristoteacutelica a saber a justiccedila distributiva e a justiccedila corretiva
531 Justiccedila distributiva
56
De acordo com nota de nuacutemero 123 do tradutor essa maacutexima eacute atribuiacuteda a Teoacutegnis
72
A justiccedila distributiva diz respeito agrave distribuiccedilatildeo proporcional ao meacuterito de
cada pessoa de bens honra riqueza e demais ativos divisiacuteveis da comunidade
Desta forma considera o justo como o igual e o injusto como o desigual admitindo a
igualdade como uma mediania o que pressupotildee ao menos dois termos
Dado o acima podemos admitir que a justiccedila pressupotildee pelo menos quatro
termos sendo que dois deles referem-se agraves medidas e ou outros dois aos indiviacuteduos
a que agraves medidas predicam
A formulaccedilatildeo de Aristoacuteteles acerca da justiccedila distributiva eacute a conjunccedilatildeo do
primeiro termo de uma proporccedilatildeo com o terceiro e do segundo com o quarto e o
justo nesse sentido eacute uma mediania entre os extremos que satildeo desproporcionais
uma vez que a proporccedilatildeo eacute uma mediania e o justo eacute o proporcional (EN V 3
1131b10)
Eacute isso que os matemaacuteticos chamam de proporccedilatildeo geomeacutetrica aquela na
qual soma do primeiro e terceiro termos apresentaraacute a mesma relaccedilatildeo com a soma
do segundo e quarto A observaccedilatildeo que segue eacute a seguinte A justiccedila distributiva
natildeo eacute uma proporccedilatildeo contiacutenua pois seus segundo e terceiro termos um indiviacuteduo e
uma porccedilatildeo natildeo constituem um termo singular (EN V 3 1131a15)
Assim o justo eacute o proporcional e o injusto o que transgride a proporccedilatildeo O
injusto pode assim incorrer no excesso ou na deficiecircncia Isso [] porque um mal
menor comparado a um maior eacute tido como um bem porquanto o menor de dois
males eacute desejaacutevel do que o maior entretanto o que eacute [efetivamente] desejaacutevel eacute
bom e quanto mais desejaacutevel for maior o bem seraacute (EN V 3 1131a20)
532 Justiccedila corretiva
A justiccedila corretiva estaacute direcionada com as relaccedilotildees de acircmbito privado Esta
ao contraacuterio da distributiva natildeo eacute guiada pela proporccedilatildeo geomeacutetrica e sim pela
aritmeacutetica Aqui a lei leva em conta apenas a natureza do dano pois considera as
73
partes iguais seu objeto eacute identificar o sujeito que causou o dano e a quem o dano
fora causado
Elas satildeo distribuiacutedas em duas categorias voluntaacuterias e involuntaacuterias As
voluntaacuterias satildeo aquelas decorrentes da accedilatildeo volitiva entre os sujeitos O exemplo
mais utilizado para ilustrar eacute o de uma relaccedilatildeo de compra e venda
Aristoacuteteles traz para a relaccedilatildeo entre os particulares o problema que contorna
a teoria da justiccedila que eacute dar a cada um o que lhe cabe Dessa forma utiliza dos
termos ldquoperdardquo e ldquoganhordquo para as operaccedilotildees de permuta voluntaacuteria ldquoNesse contexto
ter mais do que lhe cabe eacute chamado de ganho e ter menos do que se tinha no iniacutecio
eacute chamado de perda como por exemplo comprar e vender e todas as transaccedilotildees
que recebem a imunidade da leirdquo (EN V 3 1132a15)
A justiccedila corretiva no sentido involuntaacuterio diz respeito a accedilatildeo decorrente da
vontade de apenas um dos sujeitos O Estagirita divide as do tipo involuntaacuterio em
duas espeacutecies sendo elas furtivas e violentas Ele as explica dando os seguintes
exemplos As furtivas deteacutem o furto o adulteacuterio o envenenamento a prostituiccedilatildeo a
seduccedilatildeo ou incitaccedilatildeo de escravos o assassinato agrave traiccedilatildeo o falso testemunho
Quanto agraves violentas deteacutem o assalto o aprisionamento o crime de morte o roubo
mediante violecircncia a mutilaccedilatildeo a linguagem abusiva o insulto
54 Justo domeacutestico
No trecho 1134 da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles apresenta mais duas
acepccedilotildees de justiccedila A justiccedila poliacutetica e a justiccedila domeacutestica Se avanccedilarmos mais
uma vez no texto e adentrarmos na temaacutetica prudecircncia vamos encontrar duas
figuras ou uma figura com duas caracteriacutesticas semelhantes agrave essas formas de
justiccedila Estamos referindo agrave figura do prudente como bom administrador domeacutestico
e ou bom administrador poliacutetico Proacutexima a essa mesma passagem do livro VI
encontramos uma nova referecircncia que diz respeito agrave duas manifestaccedilotildees
especiacuteficas da prudecircncia uma relativa ao Estado e outra relativa aos particulares Agrave
prudecircncia que concerne agraves coisas proacuteprias ao Estado Aristoacuteteles chama de Ciecircncia
74
Legislativa Agrave prudecircncia que concerne agraves coisas proacuteprias aos particulares ele chama
de Ciecircncia Poliacutetica
A justiccedila domeacutestica eacute aquela compreendida pelas relaccedilotildees que se
estabelecem entre marido e mulher pai e filho e senhor e escravo A mulher o filho
menor e o escravo natildeo participam ativamente das decisotildees da poacutelis o que os
isentam do conceito de justo poliacutetico Apesar da mulher natildeo participar das decisotildees
da poacutelis ela participa das decisotildees do lar o que a diferencia do escravo e do filho
Contra estes uacuteltimos natildeo se pode dizer que o senhorpai possa cometer injusticcedila
uma vez que satildeo considerados como parte do senhorpai sendo que ningueacutem pode
cometer injusticcedila contra si mesmo (BITTAR 2005 p 107)
55 Justo poliacutetico
Como jaacute referimos a compreensatildeo de justiccedila necessariamente
compreende dois termos-sujeito Essa implicaccedilatildeo natildeo eacute meramente loacutegica ela eacute
consequecircncia da teleologia que permeia toda a eacutetica aristoteacutelica Entretanto o justo
poliacutetico em especial refere-se a um grupo de pessoas que possuem a qualidade de
cidadatildeo Isso se deve principalmente por ser um pressuposto da justiccedila poliacutetica a
qualidade de participante ativo dos processos deliberativos proacuteprios agrave poacutelis
Feitas essas observaccedilotildees preliminares podemos agora procurar conceituar
o que seja a justiccedila poliacutetica De acordo com Eduardo C B Bittar
O justo poliacutetico consiste na aplicaccedilatildeo da justiccedila na cidade na poacutelis ou seja trata-se de algo que pertine ao corpo ciacutevico Assim existente no meio social eacute a justiccedila eu organiza um modo de vida que tende agrave auto-suficiecircncia da vida comunitaacuteria (autaacuterkeian) vigente entre os homens que partilham de um espaccedilo comum dividindo atividades segundo a multiplicidade de aptidotildees e necessidades de cada qual formando uma comunidade que tem por fim a eudaimoniacutea e a plena realizaccedilatildeo das
potencialidades humanas (BITTAR 2005 p 106)
75
A definiccedilatildeo dada pelo Estagirita eacute a seguinte ldquoJusticcedila poliacutetica quer dizer
justiccedila entre as pessoas livres e (real ou proporcionalmente) iguais que vivem uma
vida comum com a finalidade de satisfazer suas necessidadesrdquo (1134a25) O que
parece dizer que soacute podem agir justa ou injustamente aqueles que satildeo considerados
cidadatildeos
Aristoacuteteles divide a justiccedila poliacutetica em duas partes sendo uma a justiccedila
natural e outra a justiccedila convencional Comecemos pela natural
551 Justiccedila natural
O Estagirita explica que a justiccedila natural eacute aquela que possui idecircntica
validade em todos os lugares e natildeo depende de nossa aceitaccedilatildeo ou natildeo aceitaccedilatildeo
ldquoO justo natural (diacutekaion phyacutesikon) eacute aquele eu por si proacuteprio por todas as
partes possui a mesma potecircncia (dyacutenamis) e que natildeo depende para sua existecircncia
de qualquer decisatildeo de qualquer ato de positividade de qualquer opiniatildeo ou
conceito O que eacute por natureza eacute tal qual eacute []rdquo (BITTAR 2005) Continua definindo
A justiccedila natural eacute parte da justiccedila poliacutetica que visa permitir a realizaccedilatildeo plena do ser humano inserido na estrutura social do conviacutevio Sendo naturalmente um ser poliacutetico (zwon politikoacuten) a plena realizaccedilatildeo do animal racional estaacute condicionada agrave proacutepria natureza que o engendra o eu equivale a dizer que agrave sociabilidade agrave politicidade agrave autoridade ao relacionamento agrave reciprocidade estaacute o homem intestinamente ligado Reger-se sob o signo de sua natureza para o homem significa estar sob o governo da razatildeo o que se traduz no acircmbito social como estar sob o governo das leis que satildeo ldquoa razatildeo sem paixatildeordquo (BITTAR 2005 p 109)
552 Justo legal (convencional)
Aristoacuteteles define a justiccedila legal como aquela que em primeira instacircncia
pode ser estabelecida de um modo ou outro Isso quer dizer que a justiccedila legal eacute
76
composta pelas disposiccedilotildees definidas de um ou outro modo pela vontade do
legislador
A lei possui forccedila natildeo natural mas fundada na convenccedilatildeo Tendo vaacuterias formas de se estabelecer determinado princiacutepio como conteuacutedo da lei a opccedilatildeo eacute feita pelo legislador passando assim aquilo que a priori era indiferente que fosse de tal ou de qual maneira a ser vinculado a todos os cidadatildeos que a ela se subordinam
Tambeacutem eacute a esse tipo de justiccedila que se agregam as medias legais de caraacuteter particular os decretos e as sentenccedilas As leis em sua maior
parte dirigem-se genericamente a um grupo de cidadatildeos [] Os
decretos as decisotildees emanadas do poder administrativo do governante assim como as sentenccedilas judiciais a aplicaccedilatildeo concreta da generalidade abstrata das disposiccedilotildees legais
57 estatildeo tambeacutem atreladas ao justo
legal como parte da justiccedila poliacutetica que se realiza na vida ciacutevica (BITTAR 2005 p 110)
Dessa forma e imediatamente o fundamento de validade da disposiccedilatildeo natildeo
estaacute na justiccedila natural e sim na convenccedilatildeo orientada pela vontade do legislador
Porque ldquo[] enquanto uma lei da natureza eacute imutaacutevel e tem a mesma validade em
todos os lugares como o fogo que queima na Peacutersia observa-se que as regras da
justiccedila variam (EN V 6 1134a30)
Werner Jaeger em sua Paideia exprime a importacircncia do justo legal para o
povo grego
Acontece o mesmo na Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Anota um nuacutemero muito maior de Aretai que Platatildeo mas ao falar da justiccedila distingue um duplo conceito desta virtude existe uma justiccedila em sentido estrito juriacutedico e outra num sentido mais geral que engloba a totalidade das normas morais e poliacuteticas Reconhecemos nesta uacuteltima sem dificuldade o conceito de justiccedila do antigo Estado constitucional helecircnico Aristoacuteteles invoca expressamente o verso acima referido que inclui na justiccedila todas as virtudes A lei regula pelos seus preceitos as relaccedilotildees dos cidadatildeos com os deuses do Estado com os outros concidadatildeos e com os inimigos da Paacutetria[]
Como suma da comunidade citadina a poacutelis oferece muito Em contrapartida pode exigir ao maacuteximo Impotildee-se aos indiviacuteduos de modo vigoroso e implacaacutevel e neles imprime seu caraacuteter Eacute fonte de todas normas de vida vaacutelidas para os indiviacuteduos O valor do homem e de sua conduta mede-se exclusivamente pelo bem ou pelo mal que acarretam agrave cidade (JAEGER 1995 139-142 negrito nosso)
57
Sobre a aplicaccedilatildeo da lei geral ao caso concreto vide o capiacutetulo 5 A equidade
77
Em sua Retoacuterica Aristoacuteteles define e diferencia invocando a trageacutedia
Antiacutegona
Quando falo de dois tipos de direito ou lei refiro-me agrave lei particular e agrave lei comum A primeira varia segundo cada povo sendo parcialmente escrita a lei comum eacute a lei natural visto que haacute de fato uma justiccedila e uma injusticcedila das quais todos tecircm de alguma maneira a intuiccedilatildeo e que satildeo naturalmente comuns a todos independentemente de todo Estado e de toda convenccedilatildeo reciacuteproca Eacute isso que Antiacutegona de Soacutefocles expressa com clareza ao declarar que o sepultamento de Polinices fora um ato justo a despeito da proibiccedilatildeo ela quer dizer que fora um ato justo por ser o direito natural
Natildeo eacute de hoje ou de ontem
Mas vive eternamente ningueacutem podendo indicar sua origem (Ret I 13
1373b1-15)
Vimos o justo natural como algo imutaacutevel e com regras aplicaacuteveis agraves
diversas localidades Tambeacutem revisitamos o conceito de justo legal estabelecendo
que seu criteacuterio de validade esteja na vontade uma vez que eacute fruto de convenccedilatildeo
Agora restam-nos compreender como aproximar os princiacutepios gerais as leis
abstratas das contingecircncias que imprime em noacutes a incerta condiccedilatildeo humana
78
6 A EQUIDADE
Tanto em sua Eacutetica a Nicocircmaco quanto em sua Retoacuterica Aristoacuteteles utiliza o
termo equidade58 epieikeia em dois sentidos Num sentido lato significa benignidade
e indulgecircncia No sentido stricto eacute a correccedilatildeo da lei
ldquoSer equitativo eacute mostrar indulgecircncia ante as fraquezas humanas eacute tambeacutem
levar em conta menos a lei do que o legislador considerar natildeo a letra da lei mas a
intenccedilatildeo do legisladorrdquo (Ret I 13 1374b10)
ldquoE [tambeacutem] daqui se pode concluir claramente quem eacute o homem equitativo
ele eacute algueacutem que por escolha e haacutebito faz o que eacute equitativo e que natildeo eacute inflexiacutevel
quanto aos seus direitos se contentando em receber uma porccedilatildeo menor mesmo que
tenha a lei do seu ladordquo (EN V 10 1138a)
Sobre o sentido lato Carlos Alberto Schiavo
Por outro lado alguns autores entendem que o uso que os gregos ndash Platatildeo inclusive ndash davam para a palavra epieikeia era em um sentido vulgar de benignidade e indulgecircncia ateacute mesmo porque quando querem atribuir agrave Platatildeo um espiacuterito de rigidez na aplicaccedilatildeo da lei em atenccedilatildeo agrave supremacia que o filoacutesofo assinalava do Estado sobre o indiviacuteduo em seus ensinamentos acerca do justo (SCHIAVO 2013 p 6-7 traduccedilatildeo nossa)
59
Assim o conceito de equidade pode ser compreendido como o exerciacutecio do
justo e do bem atraveacutes da benignidade e da indulgecircncia Aqui a comunidade se
beneficia uma vez que o equacircnime alcanccedile seu bem atraveacutes de deliberaccedilotildees que
natildeo pretendem prover apenas o acircmbito individual
58
Equidade eacute a traduccedilatildeo romacircnica de aequitas e natildeo do grego epieiacutekeia Para uma traduccedilatildeo direta do grego a correspondente em liacutengua portuguesa eacute epiqueia que de acordo com Aureacutelio Buarque de Holanda ldquoepiqueia SF 1 Interpretaccedilatildeo razoaacutevel de lei ou preceito 2 Fig Meio-termo moderaccedilatildeordquo Vide PINTO G A GONCcedilALVES A L GONCcedilALVEZ V D C O problema da traduccedilatildeo do termo fairness na obra de John Rawls Belo Horizonte Editora Puc Minas 2009 59
Por otra parte algunos autores entienden que el uso que los griegos -Platon inclusive- daban a la palabra epieikeia era en un sentido vulgar de benignidad e indulgencia aun cuando hay quienes atribuyen a Platon un espiacuteritu de rigidez en la aplicacioacuten de la ley en atencioacuten a la supremaciacutea que el filosofo le asignaba al Estado sobre el individuo y a su idea respecto de persuadir de como es por naturaleza lo justo (SCHIAVO p6-7 traduccedilatildeo nossa)
59
79
Sobre o sentido stricto Aristoacuteteles afirma que a natureza essencial do
equitativo eacute uma retificaccedilatildeo da lei onde a lei eacute lacunar em funccedilatildeo de sua
generalidade
Este sentido pretende conhecer o ponto de colisatildeo entre a norma em sua
generalidade e a fraacutegil condiccedilatildeo humana em sua singularidade Em outras palavras
neste sentido Aristoacuteteles nos diz que por ser a lei geral e abstrata instala-se uma
distacircncia entre ela e seu objeto uma vez que as relaccedilotildees humanas satildeo contingentes
e portanto de difiacutecil determinaccedilatildeo
Esta distacircncia dificulta a aplicaccedilatildeo da norma podendo por vezes causar
injusticcedila Para evitar a injusticcedila proveniente da aplicaccedilatildeo do justo legal eacute necessaacuterio
acomodar este uacuteltimo agrave realidade do mundo fatiacutedico essa acomodaccedilatildeo eacute a equidade
em seu sentido stricto
61 Justiccedila e equidade ambiguidade do tema
Aristoacuteteles ao tratar da equidade comeccedila fazendo uma exposiccedilatildeo sobre a
ambiguidade terminoloacutegica entre justiccedila e equidade e o justo e o equitativo De
acordo com Eduardo Bittar
[] o uso dos termos se aproxima tamanhamente que ora chamamos de eacutequa uma situaccedilatildeo de justiccedila ora de justa uma situaccedilatildeo eacutequa De fato todos reconhecem que os termos natildeo se equivalem perfeitamente e neste caso o uso de um pelo outro conduz a equiacutevocos notoacuterios de modo que sendo semelhantes poreacutem natildeo idecircnticos devem ser distinguidos naquilo que lhes peculiariza Eacute no gecircnero (eacuteteron tocirc geacutenei) que se dizem aproximados os conceitos de ambos os termos O uso ainda mais esta a indicar a relativa e frequumlente coincidecircncia dos campos semacircmticos de ambos os significantes pois verdadeiramente se satildeo diversos ou o justo natildeo eacute bom ou o eacutequo natildeo o eacute (BITTAR 2005 p163)
Os termos no Grego de Aristoacuteteles satildeo canonicamente traduzidos por equidade e equitativo satildeo epieikeia e epiekis respectivamente Ele usa-os com muita frequecircncia na Eacutetica a Nicocircmaco e muita vezes em sua Retoacuterica e sua Poliacutetica Como ele mesmo nota que usa os termos em dois sentidos De longe o significado mais comum e geral eacute de epieikeia como simplesmente excelecircncia ou bondade A Eacutetica a Nicocircmaco
80
aplica mais tipicamente neste sentido Em uma passagem Aristoacuteteles diz que do ponto de vista da Justiccedila na rectificaccedilatildeo eacute indiferente se um homem bom tem defraudado um mau homem ou vice-versa a palavra para bom eacute epieikeis contrastava com phaulos para o mal Em trecircs passagens no entanto Aristoacuteteles usa os termos para se referir a uma virtude especiacutefica comumente dito ser a virtude da equidade um tipo particular de excelecircncia Aristoacuteteles caracteriza em verdade epieikeia no sentido especiacutefico como um epanorthoma nomou hei elleipei dia de katholou uma correccedilatildeo da lei onde a lei estaacute aqueacutem por causa de sua universalidade Na Retoacuterica descreve a justa quanto ao Paraacute para gegrammenon nomon δικαιον II que a justiccedila que se encontra aleacutem a lei escrita (SHINER 1994 p 1247 traduccedilatildeo nossa)
60
Ao tratar do assunto o Estagirita distingue a justiccedila e o justo pelas
quantificadoras universal e particular Quando aponta o sentido universal estaacute
referido agrave accedilatildeo como virtuosa ou natildeo Quando aponta o sentido particular diz que
estaacute relacionada ao prazer do ganho Eis a distinccedilatildeo ldquoEntretanto enquanto a
injusticcedila no sentido particular tange agrave honra ao dinheiro ou agrave seguranccedila ou seja laacute
qual for o termo que pudeacutessemos utilizar para englobar todas essas coisas seu
motivo sendo o prazer do ganho a injusticcedila no sentido universal tange a todas as
coisas que constituem a esfera da virtuderdquo (EN V 2 1130b1) Conclui na sequecircncia
que em sentido universal o justo eacute legal e em sentido particular o justo eacute igual ou
equitativo
O exame da natureza da equidade e do equitativo se daacute em sentido anaacutelogo
pois ldquo[] (nem tudo que eacute ilegal eacute natildeo equitativo ao passo que tudo que eacute natildeo
equitativo eacute ilegal) assim tambeacutem o injusto e a injusticcedila no sentido particular satildeo o
mesmo que o injusto e a injusticcedila no sentido universal mas destes distintos e a eles
relacionados como a parte do todordquo (EN V 2 1130b10)
60 The terms in Aristotles Greek standardly translated equity and equitable are epieikeia and
epiekis respectively He uses them frequently throughout the Nicomachean Ethics and often in the Rhetoric and Politics too As he himself notes he uses the terms in two senses By far the most common meaning is the general one-epieikeia means simply excellence or goodness The Nicomachean Ethics illustrates typically this sense In one passage Aristotle says that from the point of view of justice in rectification it is indifferent whether a good man has defrauded a bad man or vice versa the word for good is epieikeis contrasted with phaulos for bad In three passages however Aristotle uses the terms to refer to a specific virtue commonly said to be the virtue of equity a particular kind of excellence Aristotle pithily characterizes epieikeia in the specific sense as an epanorthoma nomou hei elleipei dia to katholou a correction of law where law falls short because of its universality The Rhetoric describes the equitable as to para to gegrammenon nomon dikaionII that justice which lies beyond the written law (SHINER 1994 p 1247 traduccedilatildeo nossa)
81
Justo eacute um adjetivo que se predica em uma determinada pessoa comportamento ou situaccedilatildeo atraveacutes da atribuiccedilatildeo a todas essas coisas da capacidade de justiccedila abstrata E assim o justo consiste em realizar o objeto principal da justiccedila a concretizaccedilatildeo da justiccedila ao niacutevel do caso concreto tem em primeiro plano de referecircncia o justo legal e na epikeia a concretizaccedilatildeo do justo em respeito a um comportamento que eacute completamente determinado que resulte excepcional frente ao primeiro plano de referecircncia E por justiccedila entendia o Estagirita Esti de dikaiosunh men areth di hv ta autwn ekastoi exousi kai wz o nomo z adikia de di hn ta allotpia oux wz o nomoz 61 58 en tanto los romanos la definiacutean como ldquoConstans er perpetua voluntas jus summ cuique tribuendi
62rdquo
o bien Est autem a iustitia appellantum nam ut eleganter Celsus definit ius est ars boni et aequi
63 (SCHIAVO 2013 p3)
64
Quanto agrave equidade e ao equitativo Aristoacuteteles retoma o assunto no capiacutetulo
10 do Livro V da Eacutetica a Nicocircmaco De acordo com ele a equidade e o equitativo se
relacionam com a justiccedila e com o justo respectivamente pois quando examinadas
afigura-se que justiccedila e equidade natildeo satildeo nem absolutamente idecircnticas nem
genericamente diferentes
Aqui uma nova referecircncia ao duplo sentido do termo equidade65 uma de
uso popular e outra de emprego teacutecnico Vejamos
Por vezes eacute verdade que louvamos a equidade e o homem equitativo a tal ponto que chegamos a empregar a palavra equitativo como um termo
61
Ret I 9 1367a 5-7 ldquoaquilo que fazemos por nossos benfeitores por forccedila da justiccedila disto e os serviccedilos prestados em geral pois o proveito que deles se extrai natildeo se dirige ao seu agenterdquo (ARISTOacuteTELES 2011 p 83 traduccedilatildeo Edson Bini) 62
Constante e perpeacutetua vontade de cumprir os deveres (traduccedilatildeo nossa) 63
E eacute chamada assim de justiccedila pela elegante definiccedilatildeo de Celso eacute a arte do bom e do equitativo (traduccedilatildeo nossa) 64
Justo es un adjetivo que se predica en concreto de una persona de una conducta o de una situacioacuten por el que se asigna a todas estas cosas la capacidad abstracta de justicia Y en tanto lo justo consiste en realizar el bien comuacuten como objeto principal de la justicia la concrecioacuten de la justicia a nivel del caso o del conflicto tiene un primer plano de referencia en la justicia legal y en la epiqueya la concrecioacuten de lo justo respecto de una conducta completamente determinada que resulta excepcional frente aquel primer plano de referencia Y por justicia el Estagirita entendiacutea Esti de dikaiosunh men areth di hv ta autwn ekastoi exousi kai wz o nomo z adikia de di hn ta allotpia oux wz o nomoz en tanto los romanos la definiacutean como ldquoConstans er perpetua voluntas jus summ cuique
tribuendi rdquo o bien Est autem a iustitia appellantum nam ut eleganter Celsus definit ius est ars boni et aequi (SCHIAVO 2013 p3) 65
Ao que tratamos no iniacutecio deste capiacutetulo
82
de aprovaccedilatildeo de outras coisas aleacutem do que eacute justo e a empregamos como equivalente de bom querendo dizer com mais equitativo meramente uma coisa eacute melhor Em outras oportunidades todavia quando submetemos a palavra efetivamente ao crivo da razatildeo nos parece estranho que o equitativo devesse ser louvaacutevel uma vez ser ele algo distinto do justo (ENV 10 1137b1)
Aristoacuteteles instala entatildeo certa dificuldade que nos parece proveniente da
loacutegica De acordo com ele ldquoSe satildeo diferentes [um deles] o justo ou o equitativo natildeo
eacute bom se ambos satildeo bons satildeo a mesma coisardquo (ENV 10 1137b1)
A soluccedilatildeo dada eacute que a equidade natildeo eacute diferente da justiccedila como um todo
mas diferente de uma parte dela a justiccedila legal Natildeo bastasse diferente Aristoacuteteles
ainda afirma ser a equidade superior uma vez que a equidade eacute a retificaccedilatildeo da
justiccedila legal
62 Justiccedila como equidade66
Talvez uma dificuldade na compreensatildeo da equidade aristoteacutelica esteja
associada a uma terceira concepccedilatildeo vigente em sua Eacutetica Tal concepccedilatildeo foi fruto
da investigaccedilatildeo tomista e permeia a ideia de equidade se sobrepondo por vezes agraves
duas primeiras concepccedilotildees apresentadas quais sejam a lato e a stricto
A questatildeo estaacute mais uma vez na proacutepria terminologia Sem precisar das
origens etimoloacutegicas da palavra justiccedila e da palavra equidade podemos estabelecer
um padratildeo como constante em ambos os conceitos
A palavra justiccedila nos remete agrave justeza agravequilo que estaacute conformado ou em
conformidade justificado assentado ajustado etc A palavra equidade por sua
vez nos remete agrave equalizado equiparado razoado etc
Numa primeira acepccedilatildeo a palavra equumlidade significa etimologicamente retidatildeo e justiccedila Numa segunda acepccedilatildeo poreacutem corresponde a
66
Aqui natildeo fazemos referecircncia a obra Justice as fairness do filoacutesofo John Rawls Sobre este assunto vide PINTO G A GONCcedilALVES A L GONCcedilALVEZ V D C O problema da traduccedilatildeo do termo fairness na obra de John Rawls Belo Horizonte Editora Puc Minas 2009
83
moderaccedilatildeo correccedilatildeo benignidade piedade coincidindo nesse sentido com a ideacuteia aristoteacutelica de epikeya que eacute o conveniente ou o que se ajusta ou melhor norma que se adapta a uma determinada relaccedilatildeo por corresponder agrave natureza essencial desta A equumlidade complementa a justiccedila corrigindo a lei pelas caracteriacutesticas concretas e muitas vezes imprevistas que as realizadas sociais apresentam e que natildeo satildeo passiacuteveis de enquadramento nos ditamentes da justiccedila geral A lei como natildeo pode deixar de ser regula as relaccedilotildees humanas de caraacuteter juriacutedico sob um acircngulo de todo geral e abstrato A equumlidade ao contraacuterio por sua proacutepria natureza visa a corrigir a lei quando esta como anota Aristoacuteteles se demonstra incompleta para abarcar o caso especial e concreto que foge agrave aplicaccedilatildeo geneacuterica (PAUPEacuteRIO 2003 p 67)
Parece que ambos os termos remetem a uma adaptaccedilatildeo que tem por fim
tornar igual ou ao menos fazer com que a medida estabelecida conheccedila seu objeto
Neste sentido instalador da ambiguidade eacute que muitos autores fazem
referecircncia agrave equidade como sendo a proacutepria justiccedila natural ou ao menos a parte
dela que nos toca
[] o termo ldquoequumlidaderdquo natildeo eacute uniacutevoco pois natildeo se aplica a uma soacute realidade nem tampouco equiacutevoco jaacute que natildeo designa duas ou mais realidades desconexas mas sim anaacutelogo pois se refere a realidades conexas ou relacionadas entre si
De maneira que a ldquoequumlidaderdquo tem sido de certa forma entendida como um direito natural em suas vaacuterias concepccedilotildees (DINIZ 242)
Palpeacuterio destaca que ldquoNo fundo como anotam alguns autores a equumlidade eacute
o proacuteprio direito natural natildeo propriamente em seus princiacutepios mas em sua
aplicaccedilatildeo e acomodaccedilatildeo aos casos concretosrdquo67 (PALPEacuteRIO p 69)
De acordoacute com Recasegraves Siches ldquola equidad es la expresioacuten de lo justo
natural en relacioacuten com el caso concreto Es decir la equidad es lo justo pero no lo
67
Na sequencia podemos encontrar o Autor dizendo que a justiccedila se difere da equidade contudo parece-nos que o conceito de justiccedila trabalhado neste ponto eacute o conceito de justo poliacutetico natildeo alcanccedilando a latitude aparente do texto que por referir apenas agrave justiccedila poderia nos sugerir seu sentido amplo vejamos ldquoNatildeo se confundindo com a clemecircncia que segundo Secircneca eacute a moderaccedilatildeo do acircnimo no poder de castigar a equumlidade distingue-se da proacutepria justiccedila porque enquanto esta corresponde agrave aspiraccedilatildeo do legislador aquela corresponde agrave do juizrdquo (p 69)
84
justo legal tal y como se desprenderiacutea de latildes palabras de la ley sino lo
auteacutenticamente justo respecto del caso particularrdquo (SICHES 2008 p 656)
Portanto tanto a justiccedila quanto a equidade parecem procurar acomodar a
medida constante das regras gerais e abstratas agraves realidades inconstantes em suas
singularidades e concretude Tal acomodaccedilatildeo procura estabelecer ou reestabelecer
certo paracircmetro de igualdade que nos parece aspiraccedilatildeo natural agrave justiccedila grega
621 Justiccedila e igualdade
A noccedilatildeo de justiccedila estaacute intimamente relacionada com a noccedilatildeo de
igualdade68 Da mesma forma em que a injusticcedila estaacute relacionada com a noccedilatildeo de
desigualdade Nuno Manoel M dos S Coelho em seu verbete Igualdade explica
que o desenvolvimento do ldquoconceito juriacutedico-filosoacutefico de igualdade no centro da
concepccedilatildeo de justiccedila como virtude diante do outro eu reconheccedilo como igual na
medida em que natildeo posso reivindicar tudo para mim mas devo dar a cada um o
seurdquo (COELHO 2011 p 215)
A igualdade eacute elemento essencial e baacutesico ldquoA justiccedila eacute uma igualdade e a injusticcedila uma desigualdaderdquo afirmou Aristoacuteteles ldquoA essecircncia da justiccedila eacute a igualdaderdquo acrescenta S Tomaacutes E mestre em tirar das palavras o que elas encerram mostra que a noccedilatildeo de igualdade estaacute contida no proacuteprio nome dessa virtude pois das coisas que estatildeo adequadas ou igualadas dizemos comumente que estatildeo ldquoajustadasrdquo (MONTORO 2009 p 170)
68
Podemos observar que a preocupaccedilatildeo com a igualdade e a tensatildeo existente entre igualdade material e igualdade formal aparece ateacute mesmo no contexto positivista como um problema a ser resolvido Tambeacutem daqui resulta que eacute errado considerar a regra que manda tratar os que satildeo iguais de forma igual como aplicaccedilatildeo do princiacutepio de justiccedila da igualdade A uacutenica norma que pode valer como princiacutepio de justiccedila da igualdade eacute a norma segundo a qual todos os homens devem ser igualmente tratados segundo a qual nenhuma das desigualdades que efetivamente existem entre eles deve ser tomada em consideraccedilatildeo (KELSEN 1998 p 55-56) Podemos ainda encontra tal preocupaccedilatildeo no liberalismo de pensadores como John Rawls vide Uma teoria da Justiccedila (2008)
85
A justiccedila em Aristoacuteteles faz necessaacuteria referecircncia agrave igualdade em seu
sentido material Tanto o eacute que a medida enquanto referecircncia da mediania eacute o
fundamento de sua eacutetica
Sobre a justiccedila enquanto igualdade Andreacute Franco Montoro desdobra acerca
da foacutermula tomista Ratio justitiae in hoc consistit quod alteri reddatur quod ei
debentur secundum aequalitatem69
[] em sentido estrito e proacuteprio a justiccedila designa uma virtude com objeto especial Nesse sentido ldquoa essecircncia da justiccedila consiste em dar a outrem o que lhe eacute devido sendo uma igualdaderdquo (simples ou proporcional) conforme a definiccedilatildeo de S Tomaacutes Soacute eacute justiccedila propriamente dita a relaccedilatildeo que tem por objeto - dar a outrem - o que lhe eacute devido - segundo uma igualdade A essas trecircs notas correspondem agraves caracteriacutesticas essenciais da justiccedila em sentido estrito - a alteridade ou pluralidade de pessoas (alteras de alter) - o devido (debitum) - a igualdade (aequalitas) (MONTORO 2009 p 165 - 166)
Ainda de acordo com Montoro a igualdade eacute estabelecida atraveacutes de
criteacuterios quantitativos
Duas realidades satildeo idecircnticas quando tecircm a mesma essecircncia Semelhantes quando tecircm as mesmas qualidades Iguais quando tecircm a mesma quantidade ldquoidem est unum in substancia siacutemile unum in qualitate aequale vero unum in quantitaterdquo Um homem eacute ldquoidecircnticordquo apenas a si mesmo De duas pessoas que tecircm os mesmos traccedilos dizemos que satildeo ldquosemelhantesrdquo Vinte eacute igual a 10 mais 10
A igualdade eacute pois uma equivalecircncia de quantidades Na justiccedila de forma analoacutegica e adaptada agrave natureza moral das relaccedilotildees humanas e essa tambeacutem a significaccedilatildeo de igualdade
Com razatildeo observou Recaseacutens Siches na justiccedila natildeo se trata de estabelecer ldquoidentidaderdquo como seria o caso de entregar um objeto e receber o mesmo objeto Isso natildeo teria sentido Natildeo se trata tambeacutem de receber um objeto ldquosemelhanterdquo ou parecido Mas de estabelecer uma equivalecircncia ou ldquoigualdaderdquo (MONTORO 2009 p171)
69
A justa razatildeo consiste em dar ao outro o que lhe eacute devido de acordo com a igualdade (traduccedilatildeo nossa)
86
Aristoacuteteles apresenta duas foacutermulas para que a igualdade seja alcanccedilada
uma ele denominou aritmeacutetica (conhecida como igualdade simples) e a outra
geomeacutetrica (conhecida como igualdade proporcional)
Desta forma a ldquoigualdade da justiccedila pode realizar-se de duas formas
distintasrdquo
a) igualdade simples ou absoluta eacute a equivalecircncia entre dois objetos que se verifica nas relaccedilotildees de troca o comprador de um objeto que vale 1000 dever efetuar um pagamento de igual valor (1000 = 1000) b) igualdade proporcional ou relativa eacute a que se realiza na distribuiccedilatildeo dos benefiacutecios e encargos entre os membros de uma comunidade se A que contribui com 50 recebe 5 B que contribui com 80 receberaacute 8 (550 = 880) Aristoacuteteles chamou a primeira igualdade ldquoaritmeacuteticardquo e a segunda ldquogeomeacutetricardquo Em qualquer caso a justiccedila procura realizar uma igualdade nas relaccedilotildees entre os homens Ou como diz Lachance na justiccedila devemos nos igualar ao proacuteximo por seu ato (MONTORO 2009 p 172)
A justiccedila portanto soacute pode ser compreendida a partir de seu princiacutepio de
igualdade Ainda sobre este ponto Aristoacuteteles apresenta dois importantes temas que
foram objeto de estudo dos itens 531 e 532 A justiccedila distributiva e a justiccedila
corretiva Natildeo obstante jaacute terem sido objeto de nosso estudo eacute necessaacuterio
revisitarmos tais conceitos em face da noccedilatildeo de igualdade
Assim pode-se dizer que haacute duas formas de justiccedila uma particular cujo
objeto eacute o bem particular e outra geral tambeacutem chamada legal ou social cujo objeto
eacute o bem comum A justiccedila particular realiza-se de duas formas justiccedila comutativa
quando um particular daacute a outro particular o bem que lhe eacute devido e justiccedila
distributiva quando a sociedade daacute a cada particular o bem que lhe eacute devido
Receber o devido e portanto natildeo tomar maior parcela dos bens desejados
e nem a menor parcela dos bens indesejados seja na relaccedilatildeo particular ou sobre
aquilo que eacute o bem comum parece-nos o criteacuterio da igualdade
63 Equidade melhor que um tipo de justiccedila
87
De acordo com Aristoacuteteles a equidade eacute melhor que um tipo de justiccedila Ele
estaacute se referindo agrave justiccedila legal pois
[] a equidade embora superior a uma espeacutecie de justiccedila eacute ela mesma justa natildeo eacute superior agrave justiccedila ao ser genericamente distinta dela Justiccedila e equidade satildeo portanto a mesma coisa sendo ambas boas ainda que a equidade seja melhor
A origem da dificuldade eacute que ldquoa equidade embora justa natildeo eacute justiccedila legal poreacutem retificaccedilatildeo desta (EN V 10 1137b10)
O que Aristoacuteteles parece querer dizer eacute que a justiccedila em todas as suas
acepccedilotildees compreende a equidade como seu princiacutepio No entanto a acepccedilatildeo de
justiccedila legal em sua rigidez e generalidade pode objetivamente ferir o justo razatildeo
pela qual a equidade enquanto princiacutepio da justiccedila eacute melhor Afinal eacute ela que natildeo
permite que uma das espeacutecies de justiccedila aquela que eacute convencionada pelo homem
seja aplicada de forma a causar injusticcedila
Eduardo Bittar explica como Aristoacuteteles desconstitui a aparente
ambiguidade da temaacutetica
o eacutequo sendo melhor que uma forma de justo ndash e aqui se percebe nitidamente qual a estrita relaccedilatildeo entre o eacutequo e uma forma especiacutefica de justo o justo legal ndash natildeo deixa de ser justo poreacutem natildeo simplesmente pelo fato de constituir um gecircnero diferente representa algo a mais que o justo Em verdade satildeo a mesma coisa o justo e o eacutequo (tautograven aacutera diacutekaion kaigrave epieikegraves) de maneira que assim sendo o eacutequo eacute melhor e mais desejaacutevel que o justo Se eacutequo e justo se equivalem nesta medida e da forma indicada segundo o gecircnero natildeo eacute verdade que o eacutequo seja o justo segundo a lei (ou tograve katagrave noacutemon deacute) de acordo com o que estaacute consignado no corpo legislativo e foi posto pela vontade humana como vinculativo da conduta social mas sim um corretivo do justo legal (epanothoma nomiacutemou diacutekaion) (BITTAR 2005 p163)
Portanto a equidade corresponde ao justo presente na concepccedilatildeo de justiccedila
para Aristoacuteteles poreacutem eacute melhor que o justo legal por ser o princiacutepio corretor do
mesmo
64 Natureza essencial do equitativo a retificaccedilatildeo do justo legal
88
O que encontramos no capiacutetulo 10 do Livro V da Eacutetica a Nicocircmaco satildeo duas
aplicaccedilotildees da equidade enquanto retificaccedilatildeo do justo legal A primeira que
examinaremos neste item 64 diz respeito ao rigor do justo legal e a segunda que
examinaremos no item 65 diz respeito agrave existecircncia de casos que o legislador natildeo
pode prever
Em verdade estas duas aplicaccedilotildees da equidade satildeo consequecircncia de uma
soacute coisa o caraacuteter geral da norma Se de um lado o rigor da norma que exige do
equacircnime a acomodaccedilatildeo do direito se daacute pela generalidade da norma de outro a
generalidade parece insuficiente para conhecer todos os casos o que oportuna o
surgimento das lacunas
641 A metaacutefora da reacutegua de chumbo
Aristoacuteteles para explicar melhor em que consiste a equidade ilustra sua
exposiccedilatildeo fazendo uma analogia das regras do direito com as reacuteguas empregadas
por pedreiros em lavras
Os construtores da ilha de Leacutesbos utilizavam em seus afazeres um
instrumento que chamou a atenccedilatildeo do Estagirita esse instrumento nada mais era do
que uma reacutegua feita de chumbo
A funccedilatildeo de tal reacutegua era manter a medida certa ainda que seu objeto
assumisse formas diversas Assim inobstante as irregularidades na forma das
pedras poderia graccedilas agrave maleabilidade da reacutegua ajustaacute-la ao objeto apurando
assim a medida certa
Com efeito essa eacute a razatildeo porque natildeo satildeo todas as coisas determinadas pela lei pelo fato de haver alguns casos [e situaccedilotildees] em relaccedilatildeo aos quais eacute impossiacutevel estabelecer uma lei eacute necessaacuteria a existecircncia de um decreto especial pois aquilo que eacute ele proacuteprio indefinido soacute pode ser medido por um padratildeo indefinido como a reacutegua pluacutembea usada pelos construtores de Lesbos tal como essa reacutegua natildeo eacute riacutegida podendo ser flexibilizada ao formato da pedra um decreto
89
especial eacute feito para se ajustar agraves circunstacircncias do caso (EN V 10 1137b30)
Desprende-se do texto que a medida que eacute ali buscada ldquo[] se assemelha
agraves diversas situaccedilotildees que se encadeiam na etapa de aplicaccedilatildeo da norma juriacutedica
mormente a interpretaccedilatildeo do fato e do comando legal que o atinge em foco de
incidecircncia Assim se veria a norma geral como medida e a situaccedilatildeo da vida erigida
em controveacutersia como a pedrardquo (LOPES 1993 p 46)
O conceito de equidade muito bem explicado pela metaacutefora da reacutegua de
chumbo na passagem 1137b30 da Eacutetica a Nicocircmaco segundo Javier Hervada
(2008) ldquoabranda o dever e acomoda o direitordquo (HERVADA 2008 p 171) ldquoO
equumlitativo soacute se daacute quando a reacutegua consegue captar todas as microscoacutepicas
reentracircncias do cenaacuterio multiforme que lhe cabe medirrdquo (LOPES 2007 p 77)
A lei eacute considerada aqui como um sumaacuterio de decisotildees saacutebias Eacute por conseguinte apropriado complementaacute-la com novas decisotildees saacutebias tomadas na situaccedilatildeo presente e eacute tambeacutem apropriado corrigi-la nos pontos em que natildeo resume corretamente o que um bom juiz faria O bom juiacutezo mais uma vez proporciona tanto uma concretude superior como uma superior sensibilidade ou flexibilidade
A exigecircncia de flexibilidade tatildeo importante para o nosso entendimento da concepccedilatildeo aristoteacutelica natildeo cientiacutefica de escolha eacute descrita pois em uma viacutevida metaacutefora Aristoacuteteles nos diz que uma pessoa que tenta tomar todas as decisotildees recorrendo a algum princiacutepio geral antecedente sustentando como firme e inflexiacutevel para a ocasiatildeo eacute como um arquiteto que procura usar uma reacutegua reta sobre as curvas intricadas de uma coluna canelada O bom arquiteto ao contraacuterio mediraacute como fazem os construtores de Lesbos com um tira flexiacutevel de metal que ldquose inclina arqueada para ajustar-se agrave forma da rocha que eacute natildeo eacute fixardquo (1137b30-2) A boa deliberaccedilatildeo tal como essa regra se acomoda ao que encontra de maneira sensiacutevel e com respeito pela complexidade Natildeo assume que a forma da regra governa as aparecircncias permite que as aparecircncias governem a si mesmas e sejam normativas para a correccedilatildeo da regra (NUSSBAUM 2009 p 263)
Portanto a metaacutefora revela uma equidade que eacute em si uma regra mas uma
regra cuja forma eacute capaz de moldar-se agraves nuanccedilas proacuteprias da mateacuteria
642 A retificaccedilatildeo do justo legal
90
Aristoacuteteles define equidade70 como sendo a retificaccedilatildeo do justo legal A lei
natildeo por um erro da parte do legislador mas pela sua proacutepria generalidade pode
criar se aplicada de modo inflexiacutevel agrave multiplicidade dos casos singulares
especiacuteficos o efeito oposto para o qual foi originalmente estabelecida Ou seja
sendo ldquoinfinita a mateacuteria sobre a qual se deve legislar e sendo necessaacuterio apesar
de tudo estabelecer leis eacute forccediloso falar em geralrdquo (Ret I 13 1374a30) A equidade
seraacute o mecanismo que coloca nas matildeos do aacuterbitro discricionariedade suficiente para
aplicar a norma de modo a natildeo causar uma injusticcedila por meio do proacuteprio justo legal
A necessidade da aplicaccedilatildeo da equumlidade decorre do fato de que as leis dizem genericamente e para todos sem diferenciar todas as nuanccedilas que possam existir na esfera dos fenocircmenos de modo que surgem casos para os quais se aplicada a lei (noacutemos) em sua generalidade (kathoacutelou) estar-se-aacute a causar uma injusticcedila por meio do proacuteprio justo legal Exatamente para superar os problemas decorrentes da impossibilidade de haver uma legislaccedilatildeo minimamente detalhista e futurista eacute que existe o eacutequo []
Se a lei eacute neste ponto e para estes fins falha isto natildeo se deve nem ao conteuacutedo da lei em si nem ao legislador natildeo se trata de um erro legislativo mas sim de um problema oriundo da proacutepria peculiar conformaccedilatildeo das coisas como satildeo praticamente Cada caso eacute um caso e demanda uma atenccedilatildeo especial e especiacutefica absolutamente focalizada sobre os seus traccedilos e as suas caracteriacutesticas de modo que nenhuma legislaccedilatildeo poder-se-ia aplicar a esta dimensatildeo dos fatos (BITTAR 2005 p164 - 165)
A equidade aristoteacutelica eacute portanto ldquoa correccedilatildeo dos rigores da leirdquo (BITTAR
2002 p 116)
[hellip] no tocante aos erros legislativos e demais hipoacuteteses de produccedilatildeo de injusticcedila decorrente da generalidade no preceito legal aplicado agrave realidade faacutetica Aristoacuteteles aponta a utilizaccedilatildeo do recurso da epieacuteikeia ou seja da equidade forma de modelagem dos princiacutepios legais para serem aplicados a sujeitos concretos frente agrave problemaacutetica fenomecircnica a ser resolvida pelo juiz (dikasteacutes) (BITTAR 2003 p 1056-
1057)
70
No original ἐπιείκεια (epieiacutekeia)
91
Aristoacuteteles percebe como o perceberia Hans Kelsen dois milecircnios depois71
que na passagem de uma norma mais geral ndash a lei por exemplo ndash para uma norma
mais concreta ndash como a sentenccedila judicial ndash sempre restaraacute uma margem de escolha
que caberaacute agrave prudecircncia72 do inteacuterprete-aplicador preencher
Na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles problematiza a relaccedilatildeo entre a norma e o
caso concreto explicando que ldquoA origem da dificuldade eacute que a equidade embora
justa natildeo eacute justiccedila legal poreacutem a retificaccedilatildeo desta A razatildeo para isso eacute que a lei eacute
sempre geral entretanto haacute casos que natildeo satildeo abrangidos pelo texto geral da leirdquo
(EN V 1137b12) Nesse sentido a equidade seria a virtude destinada a solucionar
os casos em que a lei natildeo alcanccedila a concretizaccedilatildeo da justiccedila
Aristoacuteteles eacute o primeiro doutrinador das ciecircncias juriacutedicas Ele diz muito antes de Larenz ldquoCada regulamento legal ou do direito estaacute para o caso isolado na mesma relaccedilatildeo que o geral estaacute para o indiviacuteduordquo (1135a)
O que aqui eacute descoberto e expressado com autoridade loacutegica natildeo eacute menos que o princiacutepio fundamental da subsunccedilatildeo juriacutedica a imputaccedilatildeo do fato agrave lei escrita (ldquoao conceito legal do direitordquo 1135a)
Aristoacuteteles nos fornece aqui muito antes de Esser e Wiacker uma teoria das claacuteusulas gerais sejam elas inseridas de fora na lei como o Princiacutepio da Relaccedilatildeo (uso de medidas adequadas em relaccedilatildeo ao desejado fim) no Art 12 GG (Constituiccedilatildeo Alematilde) ou estejam elas jaacute consolidadas na lei como o Princiacutepio da boa-feacuterdquo no sect 242 BGB (pois sua positivaccedilatildeo eacute supeacuterflua o conteuacutedo normativo de tal paraacutegrafo eacute tatildeo pequeno o quatildeo grande eacute seu caraacuteter de advertecircncia) O princiacutepio geral vaacutelido da equumlidade []
Se tiveacutessemos percebido em tempo esta vaacutelida opiniatildeo de Aristoacuteteles entatildeo natildeo teria surgido de forma alguma nos nossos anos 60 a ilusatildeo de que toda aplicaccedilatildeo da lei pode ser formalizada e com isso computadorizada pois o computador pode ateacute realizar algo nas futuras ldquogeraccedilotildees inteligentesrdquo ou muito inteligentes mas nunca epieikeia Um pensador loacutegico eacute soacute entatildeo loacutegico quando conhece e reconhece os limites da loacutegica (ADOMEIT 2000 p138 - 140)
A liccedilatildeo de Teacutercio Sampaio Ferraz Jr evidencia a equidade enquanto
princiacutepio que estabelece razoaacutevel elo entre a norma e agrave especificidade da situaccedilatildeo
71
Veja-se a esse respeito o capiacutetulo VIII da Teoria pura do direito kelseniana 72
E eacute neste ponto que os neoaristoteacutelicos divergem de Kelsen uma vez que para este natildeo eacute necessariamente a prudecircncia mas juiacutezos poliacuteticos de conveniecircncia ndash fundados no poder e natildeo na razatildeo ndash que orientaratildeo a escolha do julgador Para uma anaacutelise mais aprofundada e criacutetica desse ponto veja-se Ferraz Juacutenior 1994 p 260-346 (Capiacutetulos 5 e 6)
92
Por uacuteltimo no conjunto da razatildeo juriacutedica costuma-se mencionar a equumlidade Aristoacuteteles eacute responsaacutevel por sua definiccedilatildeo como a justiccedila do caso concreto A soluccedilatildeo de litiacutegios por equumlidade eacute a que se obteacutem pela consideraccedilatildeo harmocircnica das circunstacircncias concretas do que pode resultar um ajuste da norma agrave especificidade da situaccedilatildeo a fim de que a soluccedilatildeo seja justa Pois como diziam os romanos summum jus summa injuria
73 Natildeo se trata de um princiacutepio que se oponha agrave justiccedila mas que a
completa a torna plena
Da mesma forma que os princiacutepios gerais a equumlidade tem no sistema dinacircmico funccedilatildeo metalinguumliacutestica Ela responde pela estrutura de concretizaccedilatildeo do direito Natildeo eacute fonte pois no mesmo sentido das demais (FERRAZ JUNIOR 2011 p 213)
Ferraz Junior em seu capiacutetulo sobre a Dogmaacutetica Hermenecircutica destaca ao
menos quatro desdobramentos possiacuteveis na integraccedilatildeo por equidade Satildeo eles
expandir uma obrigaccedilatildeo limitar o exerciacutecio de direitos criar regras para situaccedilotildees
que se alteram ou que natildeo foram previstas vejamos
[] Fala-se aqui no sentimento do justo concreto em harmonia com as circunstacircncias e adequado ao caso O juiacutezo por equumlidade na falta de norma positiva eacute o recurso a uma espeacutecie de intuiccedilatildeo no concreto das exigecircncias da justiccedila enquanto igualdade proporcional O inteacuterprete deve poreacutem sempre buscar uma racionalizaccedilatildeo dessa intuiccedilatildeo mediante uma analise das consideraccedilotildees praacuteticas dos efeitos presumiacuteveis das soluccedilotildees encontradas o que exige juiacutezos empiacutericos e de valor os quais aparecem fundidos na expressatildeo juiacutezo por equumlidade A equumlidade pode integrar o direito de diferentes modos Por exemplo por seu intermeacutedio podemos expandir uma obrigaccedilatildeo criando deveres adicionais para aleacutem dos que constam de um contrato ou decorrem expressamente de lei podemos ainda limitar o exerciacutecio de direitos para prevenir abusos podemos tambeacutem criar regras para situaccedilotildees que se alteram desde seu regulamento ou que nele natildeo foram previstas Em todo caso o juiacutezo equumlitativo de um lado apesar das consideraccedilotildees dos efeitos presumiacuteveis eacute sempre um juiacutezo jungido ao particular sem preocupaccedilotildees generalizantes Natildeo gera assim uma compulsatildeo para que outros casos semelhantes sejam interpretados e decididos do mesmo modo Por isso natildeo eacute propriamente fonte do direito mas meio de integraccedilatildeo De outro lado poreacutem pela consideraccedilatildeo dos efeitos presumiacuteveis tambeacutem natildeo aparece como arbitraacuterio mas sim representando o sentido que seja juriacutedico no contexto social em que se aplica (FERRAZ JUNIOR 2011 p 281 negrito nosso)
Interessante notar que Ferraz Junior aponta que essa proximidade do juiacutezo
ao particular natildeo eacute uma arbitrariedade mas uma representaccedilatildeo juriacutedica no contexto
em que determinada norma incide
73
Brocardo de Ciacutecero que quer dizer Supremo direito suprema injusticcedila (De Officiis I 10 33)
93
Enquanto a justiccedila eacute de ordem geral e natildeo se preocupa senatildeo com princiacutepios a equumlidade contrariamente perquire as circunstacircncias peculiares ao caso e submete a regra abstrata agraves razotildees derivadas da espeacutecie Em certos casos impotildee-se abandonar a letra da lei para acompanhar os ditames da razatildeo e da justiccedila Nisso se cifra a equumlidade que tempera e abranda o rigor legal Natildeo foi agrave-toa que se referiu Ciacutecero baseado em Terecircncio ao brocardo summum jus summa injuria que daacute ecircnfase agrave ideacuteia de que o rigor da aplicaccedilatildeo inflexiacutevel da lei pode muitas vezes quando natildeo abrandado pela equumlidade acarretar dureza demasiada ou mesmo extrema injusticcedila (PAUPEacuteRIO 2003 p68)
Cabe agora examinarmos a equidade como recurso dado por Aristoacuteteles
para os casos natildeo abarcados pela legislaccedilatildeo
65 Equidade e lacuna
A compreensatildeo do sentido stricto de equidade ou seja enquanto correccedilatildeo
do justo legal tem por pressuposto a generalidade da norma Natildeo obstante tal
generalidade existem casos que natildeo satildeo abrangidos pela lei Surge assim a
dificuldade cuja equidade mais uma vez eacute a soluccedilatildeo dada pelo Estagirita De acordo
com ele
A razatildeo para isso eacute que a lei eacute sempre geral entretanto haacute casos que natildeo satildeo abrangidos pelo texto geral da lei [ou por esta ou aquela regra legal geral] Em mateacuterias portanto nas quais embora seja necessaacuterio discursar em termos gerais natildeo eacute possiacutevel fazecirc-lo corretamente a lei toma em consideraccedilatildeo a maioria dos casos embora natildeo esteja insciente do erro que tal coisa acarreta (EN V 10 1137b12)
74
Natildeo obstante o legislador ter a generalidade como instrumento de ampliaccedilatildeo
de incidecircncia da norma esta natildeo eacute geral suficientemente para abarcar em
completude as indeterminaacuteveis possibilidades proacuteprias ao acircmbito particular
74
Conforme jaacute citado
94
Sobre lacunas adverte Kelsen
Como poreacutem o Direito vigente eacute sempre aplicaacutevel pois natildeo haacute ldquolacunasrdquo neste sentido esta foacutermula quando se penetre o seu caraacuteter fictiacutecio natildeo opera a pretendida limitaccedilatildeo do poder atribuiacutedo ao tribunal mas a auto-anulaccedilatildeo da mesma Se poreacutem o tribunal tambeacutem aceita a ideacuteia de que haacute lacunas no Direito entatildeo esta ficccedilatildeo teoreticamente inaceitaacutevel realiza o efeito pretendido Com efeito o juiz - e especialmente o juiz de carreira que estaacute sob o controle de um tribunal superior - que natildeo se sente facilmente inclinado a tomar sobre si a responsabilidade de uma criaccedilatildeo do Direito ex novo soacute muito excepcionalmente aceitaraacute a existecircncia de uma lacuna no Direito e por isso soacute raramente faraacute uso do poder que lhe eacute conferido de assumir o lugar do legislador (KELSEN 1999 p 185)
Aristoacuteteles esclarece que as lacunas podem existir pela vontade do
legislador ou contra a vontade deste
O problema legislativo que com maior frequumlecircncia ocorre eacute causado pela abstraccedilatildeo e universalidade do preceito legal De fato a lei escrita eacute um imperativo que se formula impessoalmente abarcando sob sua tutela a pluralidade de cidadatildeos aos quais se dirige e a multiplicidade de casos que surgem na vida concreta da poacutelis Lacunas aparecem em todo sistema legislativo escrito e estas podem existir por vontade do legislador de que existam ou mesmo contra a vontade deste Assim contra a sua vontade existiratildeo ldquoquando o fato lhe passa despercebidordquo e por vontade do legislador ldquoquando natildeo podendo precisar tudo eles tecircm de estatuir princiacutepios gerais que natildeo satildeo aplicaacuteveis sempre mas soacute as mais das vezes (Ret I 1375b)
Assim quando a lacuna existe pela vontade do legislador eacute porque o
mesmo percebendo que natildeo pode precisar toda mateacuteria ele estabelece um princiacutepio
geral que natildeo pode sempre ser aplicado agrave mateacuteria Por outro lado quando a lacuna
existe contra a vontade do legislador eacute porque o fato passou-lhe despercebido
Neste sentido a equidade possibilita ao juiz julgar ainda que natildeo conheccedila no
direito norma objetivamente correspondente de acordo com Machado Paupeacuterio []
ao juiz caberia em tais circunstacircncias reconhecer por equumlidade a exceccedilatildeo agrave
norma legal jaacute que se tivesse sido dado ao legislador prever a tal hipoacutetese ele
95
mesmo teria admitido que em tais condiccedilotildees devessem ser abertos os portotildees75
(2003 p 69)
De acordo com Aristoacuteteles
Essa eacute a razatildeo porque quando ocorrem disputas os indiviacuteduos recorrem a um juiz Dirigir-se a um juiz eacute dirigir-se agrave justiccedila pois o juiz ideal eacute por assim dizer a justiccedila personificada E tambeacutem os homens necessitam de um juiz para que este seja um elemento mediano pelo que efetivamente em alguns lugares ele eacute chamado de mediador pois pensam que se ele atinge a mediania atinge o que eacute justo Assim o justo eacute uma espeacutecie de mediania na medida em que o juiz eacute um meio (intermediaacuterio) entre os litigantes (EN V 4 1132a20)
Eacute importante destacar a observaccedilatildeo feita por Maria Helena Diniz em sua
obra Lacunas no Direito ela propotildee a existecircncia de certa dificuldade no emprego da
equidade
A equumlidade eacute teoricamente uma virtude de que deve lanccedilar matildeo o aplicador para temperar os rigores de uma foacutermula demasiado geneacuterica fazendo com que essa natildeo contrarie os reclamos da justiccedila Considera portanto a equumlidade como uma virtude informada pela justiccedila
Todavia Aristoacuteteles na praacutetica preconizava a absoluta submissatildeo do magistrado agrave lei porque entendia ser perigoso decidir por equumlidade no ambiente de corrupccedilatildeo que reinava nos Estados-cidades helecircnicos e nos tribunais corroiacutedos ateacute agrave medula pelas paixotildees poliacuteticas e pelas facccedilotildees Recomenda o mestre Estagira o juiacutezo arbitral para decisotildees de equumlidade (DINIZ 2002 p 242-243)
Essa uacuteltima observaccedilatildeo a que se refere agrave abstenccedilatildeo do emprego de juiacutezos
por equidade aparece na Retoacuterica ao que natildeo poderiacuteamos deixar de fazer
referecircncia ldquo[] preferimos uma arbitragem a um litiacutegio jaacute que o aacuterbitro leva em
conta a equidade ao passo que o juiz leva em conta a lei A arbitragem foi criada
com o propoacutesito expresso de garantir espaccedilo total para a equidaderdquo (Ret I 13
1374b20)
75
Paupeacuterio estaacute se referindo ao exemplo de Santo Tomaacutes sobre um vilarejo onde uma regra
determinasse que os portotildees permanecessem fechados durante a noite sendo que em determinada noite parte da populaccedilatildeo fosse acossada por inimigos e recorressem aos portotildees para se protegerem a questatildeo eacute deveria os guardas desobedecer a regra abrindo os portotildees com o escopo de proteger os habitantes
96
Na anaacutelise das condiccedilotildees que permitem a aplicaccedilatildeo da epiqueacuteia (III 15 e ss em especial 20) explicamos que uma delas devia ser ldquoextraordinaacuteriardquo De caso que a previsatildeo normativa deve ao seu tempo considerar o curso ordinaacuterio das coisas Pois quando nos permitimos expor uma questatildeo (ou nova condiccedilatildeo) do procedimento ldquoem regra epiqueacuteia eacute de aplicaccedilatildeo exceccedilatildeo e restritiva para os juiacutezesrdquo (SHIAVO 2013 p 27
traduccedilatildeo nossa)76
De acordo com HOumlFF (2003 p 68) ldquoVisto as regras de um modo geral
prejudicarem a justiccedila do caso individual poderiacuteamos querer abrir matildeo delas e
confiar integralmente na faculdade de juiacutezo de pessoas Mas leis satildeo melhores agrave
medida que diferentemente de pessoas satildeo de todo isentas de paixotildeesrdquo
Natildeo aparece em qualquer outra parte do texto referecircncia ao natildeo emprego
da equidade O Filoacutesofo por certo natildeo eacute da posiccedilatildeo de que os juiacutezos devem ser
concretizados pela abstenccedilatildeo legal Muito pelo contraacuterio o que vemos eacute que o justo
de modo geral eacute o justo legal afinal como jaacute esclarecido a lei promulgada da forma
correta representa o bem da comunidade A questatildeo eacute que como criteacuterio do justo a
equidade permanece como condiccedilatildeo necessaacuteria para acomodaccedilatildeo do direito e
concretizaccedilatildeo da justiccedila uma vez que o bem geral natildeo pretende causar prejuiacutezos
aos particulares Destarte eacute certo que a pretensatildeo aristoteacutelica eacute que a equidade seja
paracircmetro de formulaccedilatildeo do ldquodecreto especialrdquo ao caso concreto para que este ao
aplicar a lei ou na ausecircncia desta natildeo se afaste do real fim a que se propotildeem os
legisladores
Portanto podemos dizer que a problemaacutetica acerca da natureza essencial
do equitativo eacute dupla Se de um lado o justo legal em sua generalidade pode causar
injusticcedila pela aplicaccedilatildeo insensiacutevel da norma ao caso concreto de outro a
generalidade natildeo eacute suficiente para compreender ainda que em sua insensibilidade
para com o particular uma totalidade normativa isenta de lacunas
76
En el anaacutelisis de las condiciones que permiten la aplicacioacuten de la epiqueya (ut supra III 15 y ss en especial 20) explicamos que una de aquellas debiacutea ser lo ldquoextraordinariordquo del caso frente a lo cual la previsioacuten normativa debioacute a su tiempo considerar el curso ordinario de las cosas Pues ahora nos permitimos exponer una cuestioacuten (o nueva condicioacuten) de procedimiento ldquola regla de la epiqueya es de aplicacioacuten excepcional y restrictiva para los juecesrdquo (SHIAVO 2013 p 27 traduccedilatildeo nossa)
97
66 O homem equitativo
Por certo o equacircnime eacute tambeacutem um homem de prudecircncia pois procura
dentro daquilo que lhe eacute permitido escolher o melhor possiacutevel Shiner ao referir agrave
metaacutefora da reacutegua pluacutembea define o artiacutefice de Lesbos ldquoNenhum artesatildeo eacute perfeito
mas isso eacute em parte porque os materiais contecircm imperfeiccedilotildees Alguns artesatildeos satildeo
o melhor que podem ser - ou seja o melhorrdquo (SHINER 1994 p 1257 traduccedilatildeo
nossa77)
Aristoacuteteles daacute a definiccedilatildeo do homem equitativo
[] ele eacute algueacutem que por escolha e haacutebito faz o que eacute equitativo e que natildeo eacute inflexiacutevel quanto aos seus direitos se contentando em receber uma porccedilatildeo menor mesmo que tenha a lei ao seu lado Eacute a disposiccedilatildeo correspondente eacute a equidade a qual eacute um tipo especial de justiccedila e de modo algum uma qualidade diferente (EN V 10 1138a)
Analisemos este conceito
ldquoEle eacute algueacutem que por escolha e haacutebito faz o que eacute equitatitivordquo
Escolha segundo o Estagirita eacute ldquoum desejo deliberado de coisas em nosso
poderrdquo (EN III 3 1113a10) Em Da Alma esclarece que o desejo eacute a fonte do
movimento78 ldquoO desejo [] eacute capaz de gerar movimento independentemente do
caacutelculo ou raciociacutenio porque o apetite eacute uma forma de desejo Eacute de se notar
entretanto que enquanto o intelecto eacute sempre correto o desejo e a imaginaccedilatildeo
podem ser tanto corretos quanto incorretosrdquo (DA III 10 433a20) Sobre a
deliberaccedilatildeo esclarece que ldquoA deliberaccedilatildeo portanto eacute empregada em mateacuterias que
embora sujeitas a regras que geralmente satildeo para o bem satildeo incertas quanto aos
seus resultados ou consequecircncias ou nas quais resultados ou consequecircncias satildeo
indeterminados [] Aleacutem disso natildeo deliberamos acerca de fins mas acerca de
meiosrdquo (EN III 3 1112b10) Ainda sobre a deliberaccedilatildeo Aristoacuteteles deixa uma
importante observaccedilatildeo Eacute a de que soacute podemos deliberar acerca daquilo que estaacute
77 No craftsman is perfect but that is in part because the materials contain imperfections Some
craftsmen are the best they can be-that is to say the best 78
Assunto tratado no item 22 O Movimento da potecircncia para o ato
98
em nosso poder ldquotem que ser um bem passiacutevel de vir a ser pela accedilatildeo e apenas o
que pode ser diferente de como eacute pode de tal modo vir a serrdquo (DA III 10 433a30)
Acerca do haacutebito esclarece Pierre Pelegrin A virtude eacutetica eacute com efeito um
ldquoestadordquo do sujeito que eacute de certo modo a cristalizaccedilatildeo de bons haacutebitos que se
implantam tanto melhor no indiviacuteduo quanto mais cedo ele os adquire na vida (2010
p28)
Sobre o equitativo Aristoacuteteles apresenta o conceito quando trata do justo e
injusto79 De acordo com esta concepccedilatildeo pode-se ser justo ou injusto de duas
formas a primeira com relaccedilatildeo a observacircncia ou transgressatildeo da lei e a segunda
relacionada ao criteacuterio de igualdade Esta uacuteltima com relaccedilatildeo agrave igualdade Aristoacuteteles
nomina ldquojusto equitativordquo
Pode-se ferir o equitativo por excesso ou deficiecircncia Por excesso quando
reteacutem maior parcela do bem desejaacutevel e por deficiecircncia quando toma para si menor
parcela daquilo que natildeo eacute desejaacutevel80 Assim como na relaccedilatildeo entre perda e ganho
obtenho ganho quando adquiro mais ldquobemrdquo e menos ldquomalrdquo e obtenho perda quando
adquiro menos ldquobemrdquo e mais ldquomalrdquo (EN V 4 1132a5-15)
ldquoe que natildeo eacute inflexiacutevel quanto aos seus direitos se contentando em receber
uma porccedilatildeo menor mesmo que tenha a lei ao seu ladordquo
Este aspecto do homem equitativo parece fazer referecircncia ao sentido lato de
equidade onde ldquoser equitativo eacute mostrar indulgecircnciardquo (Ret I 13 1374b10) O
equacircnime eacute justo e ainda melhor porque ateacute em receber o que lhe eacute devido
apresenta moderaccedilatildeo Natildeo ser inflexiacutevel quanto aos seus direitos demonstra que o
equacircnime estaacute fundido com seu princiacutepio de justiccedila a equidade Pois eacute ele mesmo a
ldquojusticcedila personificadardquo81 Eacute a virtude paradigmaticamente do juiz e dos outros por
extensatildeo (SHINER 1994 p 1251-1252 traduccedilatildeo nossa)82
79
EN V 2 1130b10 80
Aristoacuteteles define a deficiecircncia como a parcela menor recebida pela viacutetima Parece-nos que deixou de desenvolver o conceito nessas linhas Mas podemos visualizar esse desdobramento pouco mais adiante quando trata do ganho e da perda Vide (EN V 4 1132a5-15) 81 EN V 4 1132a20 82
It is a virtue paradigmatically of the judge and of others by extension (SHINER 1994 p 1251-1252)
99
ldquoEacute a disposiccedilatildeo correspondente a equidade a qual eacute um tipo especial de
justiccedila e de modo algum uma qualidade diferenterdquo
Nesta uacuteltima sentenccedila ele enquanto justo age pela equidade seja por natildeo
ser inflexiacutevel com o direito ao aplicaacute-lo a si ou a outrem ou seja pela capacidade de
conhecer o princiacutepio da justiccedila onde natildeo foi convencionada regra alguma ldquoEacute a
marca de um homem educado Aristoacuteteles no diz em uma famosa passagem olhar
com precisatildeo para cada classe de coisas apenas como o permite a natureza do
assuntordquo (SHINER 1994 p 1257 traduccedilatildeo nossa)
67 Equidade e Prudecircncia
Entendendo que o uso da equidade busca uma interpretaccedilatildeo razoaacutevel
(interpretarla razonablemente) da lei Recasens Siches (2008) nos ensina a
equidade eacute a expressatildeo do justo natural em relaccedilatildeo ao caso concreto Em outras
palavras a equidade eacute o justo mas natildeo o justo legal tal como se desprende das
palavras da lei mas autenticamente sobre o caso particular (SICHES 2008 p 656
traduccedilatildeo nossa)83 Portanto ldquopode-se dizer que tanto a reacutegua de Lesbos quanto a
pedra a que ela se amolda para medir manteacutem iacutentegra a sua natureza ndash reacutegua
como reacutegua pedra como pedra ambas submetidas ao criteacuterio apreciador daquele
que se incumbe de definiccedilatildeo da medidardquo (LOPES 1993 p 46)
Tomaacutes de Aquino (1225-1274) em sua Suma Teoloacutegica procura a
compreensatildeo do que seja a equidade observando a inexistecircncia de termo correlato
na liacutengua latina da palavra grega ἐπιείκεια (epieiacutekeia)84 acaba por deixar expliacutecita a
popularidade dessa virtude entre os medievais
Os atos humanos ndash sobre os quais incidem as leis ndash satildeo singulares e contingentes e portanto podem se dar com uma infinita variedade de modos
Daiacute que natildeo seja possiacutevel estabelecer uma lei que natildeo falhe em algum caso concreto[]
84
Et ad hoc ordinatur epicheia quae apud nos dicitur aequitas E isso eacute a epiqueacuteia que entre noacutes diz-se aequitas (traduccedilatildeo nossa)
100
Nesses casos e em casos semelhantes eacute mau seguir o que estaacute estabelecido pela lei e pelo contraacuterio eacute bom passar por cima da letra da lei e seguir o que pede pelo espiacuterito de justiccedila e utilidade comum E eacute isso que faz a epiqueacuteia que entre noacutes se chama equumlidade Fica assim evidente que a epiqueacuteia eacute virtude (Sum II-II 1201)
Nesse sentido a prudecircncia e a equidade apontam para questotildees relativas agrave
deliberaccedilatildeo mais especificamente sobre como agir de acordo com o bem Ambas
parecem obrar no espaccedilo existente entre o particular e o universal Destarte eacute
preciso perceber que
[] a existecircncia insuperaacutevel de um obstaacuteculo ontoloacutegico entre a regra e sua aplicaccedilatildeo entre o universal e o particular Taylor chama esse obstaacuteculo ontoloacutegico de ldquohiato froneacuteticordquo (phronetic gap) em referecircncia direta agrave sua matriz aristoteacutelica Aristoacuteteles como Aubenque (2003 p 75) observa natildeo tem a expectativa platocircnica de poder deduzir o particular do universal Aristoacuteteles natildeo culpa a ignoracircncia dos homens por essa incapacidade Natildeo se trata para Aristoacuteteles de uma fraqueza psicoloacutegica algo que portanto pudesse ser superado pelo Rei-Filoacutesofo de Platatildeo ou pelo Juiz Heacutercules de Dworkin A impossibilidade de deduzir o particular do universal decorre da proacutepria realidade e nesse sentido natildeo pode ser superada por uma ciecircncia A aplicaccedilatildeo das regras eacute antes de tudo uma questatildeo de prudecircncia (phronesis) (OLIVEIRA 2009 p 24 negrito nosso)
Essa limitaccedilatildeo da ciecircncia eacute objeto da exposiccedilatildeo acerca da prudecircncia (ENVI
5 1140a30) O fato eacute que o conhecimento cientiacutefico envolve demonstraccedilatildeo ou seja
diz respeito agraves coisas imutaacuteveis necessaacuterias Por outro lado a prudecircncia cuida de
assuntos relacionados agrave conduta admitindo assim a variaccedilatildeo ldquoPara que seja objeto
do conhecimento cientiacutefico uma verdade tem que ser demonstrada pelo processo
dedutivo a partir de outras verdades ao passo que a arte e a prudecircncia (sabedoria
praacutetica) se referem somente a coisas mutaacuteveisrdquo (EN VI 6 1141a1)
O caraacuteter praacutetico isto eacute concernente agrave accedilatildeo proacuteprio da phroacutenesis exige portanto que ela possua o conhecimento dos casos individuais pois a accedilatildeo se produz sempre em situaccedilotildees individuais por isso a phroacutenesis requer certa experiecircncia que eacute justamente o conhecimento dos particulares A phroacutenesis contudo inclui em alguma medida tambeacutem o conhecimento do universal no sentido de que deve saber aplicar ao caso individual uma caracteriacutestica geral como mostra o exemplo dado por Aristoacuteteles Natildeo basta para produzir sauacutede (accedilatildeo) saber que as carnes leves satildeo saudaacuteveis (caracteriacutestica universal) caso natildeo se saiba
101
que a carne de galinha eacute leve (caso individual ou particular) e portanto que a carne de galinha eacute saudaacutevel (aplicaccedilatildeo do universal ao particular)
Martha C Nussbaum explica que Aristoacuteteles aponta trecircs traccedilos da mateacuteria
praacutetica que demonstram porque as escolhas praacuteticas natildeo podem mesmo em
princiacutepio ser adequadas e completamente assimiladas em um sistema de regras
universais Satildeo esses traccedilos a mutabilidade a indeterminaccedilatildeo e a particularidade
(NUSSABAUM 2009 p 263)
Eacutemile Boutroux sustenta que pelo princiacutepio da irredutibilidade essa
especulaccedilatildeo abstrata ndash a do conhecimento cientiacutefico ndash ldquoseraacute impotente para nos
fazer conhecer a natureza aiacute seraacute necessaacuteria a experiecircncia E na ordem moral as
leis seratildeo insuficientes para fazer reinar a justiccedila seraacute preciso acrescentar-lhes o
magistrado encarregado de aplicar judiciosamente as regras gerais agrave diversidade
dos casos individuaisrdquo (2006 p 127)
No mesmo sentido Pierre Aubenque direciona a relaccedilatildeo entre a prudecircncia e
a equidade sintetizando os principais toacutepicos de nossa exposiccedilatildeo Tal siacutentese tem
por base o julgamento eacutetico proacuteprio agrave Eacutetica a Nicocircmaco onde o prudente natildeo teraacute
mais por analogia o saber do geocircmetra mas o engenho do carpinteiro
[] Enquanto Platatildeo natildeo parece ter posto em duacutevida que um saber suficientemente transcendente poderia abranger a totalidade dos casos particulares Aristoacuteteles nunca espera poder deduzir o particular do universal ldquoa falta nos diz ele natildeo estaacute na lei nem no legislador mas na natureza da coisa em th fnsei ton prgmatojrdquo Onde Platatildeo via uma
fraqueza psicoloacutegica devido a ignoracircncia dos homens Aristoacuteteles reconhece como faz habitualmente um obstaacuteculo ontoloacutegico um hiato que afeta a proacutepria realidade e que nenhuma ciecircncia poderaacute superar [] se a indeterminaccedilatildeo eacute ontoloacutegica a lei soacute pode depender de uma regra ela proacutepria indeterminada tou gar aoristou aoristin tal como a reacutegua
de chumbo de lesbos cuja a inexatidatildeo permite adaptar-se adequadamente aos contornos da pedra [] Para Aristoacuteteles ao contraacuterio de uma justiccedila abstrata cientiacutefica via sua sorte ligada a da lei eacute pois a justiccedila mesma que necessita ser corrigida pela virtude da equidade [] Percebe-se o paralelismo dessa problemaacutetica com a da prudecircncia ou antes o encavalamento de ambas se a prudecircncia eacute a virtude intelectual que permite a cada vez definir a norma o equacircnime deveraacute possuir no mais alto grau a virtude da prudecircncia para aplica-la em seu domiacutenio proacuteprio [] (AUBENQUE 2008 73-76 negrito nosso)
102
Portanto a prudecircncia e equidade produzem seus efeitos no acircmbito da razatildeo
praacutetica especificamente no que concerne a aplicaccedilatildeo da norma em sua
generalidade e abstraccedilatildeo ao caso concreto que transcorre num mundo
contingencial
O equacircnime eacute antes de qualquer coisa um prudente ou seja a virtude da
prudecircncia eacute um pressuposto para o exerciacutecio da equidade Isso fica evidenciado
pelo proacuteprio papel da prudecircncia qual seja guiar e orientar as escolhas para a
concretizaccedilatildeo das demais virtudes Ademais ambos possuem como faculdade
central a disposiccedilatildeo para o bem escolher de forma acomodar o bem absoluto85 ao
melhor possiacutevel86
85
Aspecto formal da regra enquanto forma e universalidade 86
Aspecto material da accedilatildeo enquanto mateacuteria e singularidade
103
7 CONCLUSAtildeO
Foi objeto do presente trabalho uma anaacutelise das formulaccedilotildees aristoteacutelicas
acerca do conceito de prudecircncia e equidade anaacutelise essa que deveria sustentar-se
sob a eacutegide de uma inter-relaccedilatildeo entre tais conceitos
Para alcanccedilar tal objetivo propomos no capiacutetulo 2 que a contingecircncia eacute algo
que se encontra em comum na atividade de ambos os conceitos como condiccedilatildeo
necessaacuteria agrave compreensatildeo dos mesmos Por isso o que a pouco chamamos de
hiato froneacutetico natildeo eacute outra coisa senatildeo a distacircncia entre o ldquoparticularrdquo e o
ldquouniversalrdquo entre a ldquopotecircnciardquo e o ldquoatordquo e entre o ldquomelhor que posso fazerrdquo e o ldquobem
absolutordquo
No capiacutetulo 3 intitulado Eacutetica das Virtudes procuramos clarear o liame entre
as virtudes e a necessidade de accedilatildeo caracteriacutestica inerente ao mundo contingencial
Nele introduzimos no que eacute pertinente agrave nossa proposta a teoria geral das virtudes
em Aristoacuteteles estabelecendo sua relaccedilatildeo com as partes da alma e diferenciado em
morais e intelectuais Neste sentido a relaccedilatildeo entre prudecircncia e equidade parece
distanciar-se devido a prudecircncia estar situada na faculdade cientiacutefica da alma
enquanto a equidade estaacute inserida na faculdade calculadora Tal problema eacute
solucionado pelo proacuteprio Aristoacuteteles afinal a prudecircncia como ordenadora das accedilotildees
virtuosas eacute o ponto de contato entre aquilo que estaacute e aquilo que natildeo estaacute ao
alcance do homem ou seja ela age como princiacutepio informativo entre a faculdade
calculadora e a faculdade cientiacutefica da parte racional da alma Por fim foi feita uma
exposiccedilatildeo acerca da mediania como paracircmetro da razatildeo praacutetica seguida de uma
exposiccedilatildeo sobre as accedilotildees voluntaacuterias e involuntaacuterias
A partir do capitulo 4 procuramos analisar a proposta aristoteacutelica do que
seja a prudecircncia Assim concluiacutemos ser a prudecircncia uma virtude intelectual situada
na parte racional da alma mais precisamente na parte que forma opiniotildees por ser
seu objeto a especulaccedilatildeo das coisas que admite variaccedilotildees e portanto satildeo
trabalhadas pela faculdade calculadora Nesse sentido eacute a qualidade racional de
consecuccedilatildeo da verdade capaz de bem deliberar em geral
104
No capiacutetulo 5 a justiccedila foi delineada como sendo uma virtude Tal virtude eacute
dita a mais perfeita pois segundo o Estagirita nela se encontra somada todas as
virtudes O que ele quer dizer com isso eacute que o fato de natildeo se observar qualquer
uma das virtudes eacute um ato de injusticcedila Neste sentido vimos a produccedilatildeo legislativa
como uma ramificaccedilatildeo da prudecircncia nomeada por Aristoacuteteles como ciecircncia
legislativa por desempenhar um duplo papel controlador e diretivo ndash no sentido de
educar para a virtude A outra ramificaccedilatildeo eacute a ciecircncia poliacutetica que diz respeito agrave
deliberaccedilatildeo a qual divide em processo deliberativo e processo judiciaacuterio Apoacutes
visualizarmos os conceitos proacuteprios agrave teoria da justiccedila de Aristoacuteteles concluiacutemos ser
ela uma virtude moral sendo ela mesma uma mediania que faz realizar agir e
desejar o que eacute o justo A justiccedila de modo geral ganha trecircs sentidos quais sejam
legal igual e equitativo
Por fim no capiacutetulo 6 procuramos analisar o conceito de equidade
Inicialmente apresentamos seu conceito lato e stricto Em seguida procuramos
compreender a ambiguidade apresentada por Aristoacuteteles acerca do tema
Apresentamos a justiccedila enquanto equidade compreendendo natildeo ser a equidade
diferente da justiccedila mas apenas melhor que uma de suas espeacutecies Procuramos
compreender a justiccedila enquanto estabelecimento da igualdade A natureza essencial
da equidade foi estudada enquanto retificaccedilatildeo do justo legal De acordo com isso
estaacute para noacutes a metaacutefora da reacutegua de chumbo que encontra a medida justa em sua
flexibilidade uma vez que em rigidez natildeo poderia conhecer as muacuteltiplas e possiacuteveis
formas na qual flutua a contingecircncia material Uma uacuteltima anaacutelise abordou a relaccedilatildeo
entre a prudecircncia e a equidade concluindo por uma relaccedilatildeo de gecircnero e espeacutecie
uma vez que a equidade eacute uma qualidade do prudente e que possuem como
principal ponto em comum a contingecircncia enquanto condiccedilatildeo para accedilatildeo
Eacute na pergunta que fizemos na introduccedilatildeo que concluiacutemos estar a chave para
a compreensatildeo dos conceitos formulados Qual a relaccedilatildeo entre a prudecircncia e a
equidade aristoteacutelica A reposta dada pelos comentadores no capiacutetulo 6 em
especial Pierre Aubenque aponta para noacutes uma relaccedilatildeo que comporta em sua
estrutura conceitual uma interdependecircncia Nesse sentido natildeo podemos
compreender o conceito de equidade sem compreender o conceito de prudecircncia
105
Essa relaccedilatildeo pode ser travada porque ambas lidam com situaccedilotildees em
comum Elas estatildeo para o homem como soluccedilatildeo naquilo em que a Providecircncia
falha Suas funccedilotildees trabalham para indicar a melhor decisatildeo quando se tem que
escolher entre dois males Elas procuram sanar a distacircncia entre os princiacutepios gerais
e a realidade em particular Elas satildeo as articulaccedilotildees que permitem ao homem fazer
a escolha pelo melhor possiacutevel uma vez que na fraacutegil condiccedilatildeo parece tatildeo distante
do bem absoluto quanto o homem de Deus
106
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Sou com efeito vosso servo e filho de vossa serva um
homem fraco cuja existecircncia eacute breve incapaz de compreender
vosso julgamento e vossas leis []
Que homem pois pode conhecer os desiacutegnios de Deus e
penetrar nas determinaccedilotildees do Senhor
Tiacutemidos satildeo os pensamentos dos mortais e incertas as nossas
providecircncias (SABEDORIA 10)
RESUMO
Esta dissertaccedilatildeo realizou um estudo acerca da concepccedilatildeo aristoteacutelica dos conceitos
de prudecircncia e equidade Seu objetivo foi analisar os conceitos de prudecircncia e
equidade e estabelecer as possiacuteveis relaccedilotildees inerentes a tais conceitos
Primeiramente procurou-se compreender a noccedilatildeo de contingecircncia verificando que
tal noccedilatildeo estaacute estritamente relacionada agrave possibilidade de accedilatildeo e portanto agrave
questotildees de razatildeo praacutetica Em seguida realizou-se uma abordagem acerca da eacutetica
das virtudes objetivando contextualizar os conceitos estudados Realizada uma
exposiccedilatildeo sobre a prudecircncia procurou-se estabelecer em linhas gerais a concepccedilatildeo
aristoteacutelica de justiccedila Por fim foi realizada uma tentativa de reconstruccedilatildeo dos
conceitos de prudecircncia e de equidade A conclusatildeo que se chegou foi a de que tanto
o conceito de prudecircncia quanto o de equidade estatildeo relacionados agrave questotildees de
razatildeo praacutetica A principal relaccedilatildeo estabelecida entre tais conceitos eacute a de que ambos
lidam com situaccedilotildees contingenciais o que evidencia a distacircncia entre o universal e o
particular que ao final chamamos de hiato-froneacutetico
Palavras-chave Aristoacuteteles Prudecircncia Equidade
ABSTRACT
This work conducted a study on the Aristotelian conception of the concepts of
prudence and equity His goal was to analyze the concepts of prudence and equity
and establish possible relationships inherent in such concepts First we sought to
understand the notion of contingency noting that such a notion is closely related to
the possibility of action and therefore the issues of practical reason Then took place
about an approach of virtue ethics aiming to contextualize the concepts studied An
exhibition about prudence sought to establish a broadly Aristotelian conception of
justice Finally an attempt was made to reconstruct concepts of prudence and equity
The conclusion reached was that both the concepts of prudence and equity are
related to issues of practical reason The main relationship between these concepts
is to both deal with contingency situations which shows the distance between the
universal and the particular which we call the phronetic gap
Key-words Aristotle Prudence Equity
LISTA DE ABREVIATURAS
AA ndash Analiacuteticos Anteriores
DA ndash Da Alma
DI ndash Da Interpretaccedilatildeo
EE ndash Eacutetica a Eudemo
EN ndash Eacutetica a Nicocircmaco
Fiacutes - Fiacutesica
Met ndash Metafiacutesica
MM ndash Magna Moralia
Pol ndash Poliacutetica
Ret - Retoacuterica
SUMAacuteRIO 1 INTRODUCcedilAtildeO12 2 A CONTINGEcircNCIA16 21 A Loacutegica16 22 O Movimento da potecircncia para o ato21 23 Indeterminismo e a eacutetica das virtudes26 231 Primeira concepccedilatildeo de acaso A boa fortuna26 232 Segunda concepccedilatildeo de acaso Acidente28 233 Terceira concepccedilatildeo de acaso contingecircncia30 2331 Trageacutedia32 3 EacuteTICA DAS VIRTUDES35 31 Eacutetica a Nicocircmaco36 32 Partes da Alma39 33 Virtudes Morais43 331 Doutrina da Mediana45 34 Accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria47 35 Virtudes Intelectuais51 4 PRUDEcircNCIA54 41 Conceito54 42 Prudecircncia e liberdade56 43 Arte e prudecircncia57 44 Deliberaccedilatildeo e Escolha58 45 O prudente61 5 JUSTICcedilA COMO VIRTUDE67 51 Justo e injusto68 52 Justo universal69 53 Justo particular71 531 Justiccedila distributiva71 532 Justiccedila corretiva72 54 Justo domeacutestico73 55 Justo poliacutetico74 551 Justo natural75 552 Justo legal (convencional)75 6 A EQUIDADE78 61 Justiccedila e equidade ambiguidade do tema79 62 Justiccedila como equidade82 621 Justiccedila e igualdade84 63 Equidade melhor que um tipo de justiccedila86 64 Natureza essencial do equitativo a retificaccedilatildeo do justo legal87 641 A metaacutefora da reacutegua de chumbo88 642 A retificaccedilatildeo do justo legal89 65 Equidade e lacuna93 66 O homem equitativo97
67 Equidade e Prudecircncia99 7 CONCLUSAtildeO103 REFEREcircNCIAS106
12
1 INTRODUCcedilAtildeO
Com o surgimento da modernidade originou-se uma ruptura nos
fundamentos da filosofia moral claacutessica Dessa forma conceitos basilares da
filosofia moral perderam os seus significados restando para o mundo
contemporacircneo apenas fragmentos de suas antigas concepccedilotildees Conforme propotildee
Alasdair MacIntyre (2001 p 15) em sua obra Depois da virtude o que possuiacutemos
satildeo apenas fragmentos de um esquema conceitual fragmentos hoje distantes de
seu contexto semacircntico o que quer dizer que utilizamos apenas os simulacros de
tais conceitos
Desse modo o significado claacutessico das virtudes da forma como
estabelecido por Aristoacuteteles foi alterado tornando-se inacessiacuteveis agrave nossa
compreensatildeo o sentido atribuiacutedo por Aristoacuteteles aos conceitos de prudecircncia e de
equidade
O conceito de prudecircncia1 apresenta significativas transformaccedilotildees
semacircnticas o que obscurece e compromete a compreensatildeo do seu significado
claacutessico Eacute o que Jean Lauand veio a perceber quando traduziu as questotildees 47-46
da Segunda Parte da Segunda Parte da Suma Teoloacutegica de Tomaacutes de Aquino
[] prudentia eacute uma daquelas tantas palavras fundamentais que sofreram desastrosas transformaccedilotildees semacircnticas com o passar do tempo
A proximidade entre nossa liacutengua e o latim de Tomaacutes natildeo nos deve enganar ocorre como diziacuteamos um conhecido fenocircmeno de alteraccedilatildeo do sentido das palavras que se manifesta muitas vezes quando lemos um autor de outra eacutepoca E natildeo soacute alteraccedilatildeo como mostra C S Lewis daacute-se frequumlentemente sobretudo no campo da eacutetica uma autecircntica inversatildeo de polaridade aquela palavra que originalmente designava uma qualidade positiva esvazia-se de seu sentido inicial ou passa a designar uma qualidade negativa
1 Optamos por escrever no termo utilizado usualmente pelos autores da liacutengua portuguesa Contudo
conforme consta desta introduccedilatildeo os conceitos proacuteprios agrave tradiccedilatildeo das virtudes perderam sua inteligibilidade restando para noacutes apenas simulacros do que um dia corresponderam De acordo com HERMANN (2007) ldquoO termo phronesis natildeo tem uma traduccedilatildeo que expresse de forma satisfatoacuteria o espectro semacircntico que possuiacutea para o mundo grego Habitualmente traduzido por prudecircncia o uso do termo descolou-se do contexto de origem e perdeu seu enraizamento eacuteticordquo O mesmo acontece com o termo Epeiqueia
13
Foi o que aconteceu entre outras com as palavras ldquoprudenterdquo e ldquoprudecircnciardquo []
Se hoje a palavra prudecircncia tornou-se aquela egoiacutesta cautela da indecisatildeo (em cima do muro) em Tomaacutes ao contraacuterio prudentia expressa exatamente o oposto eacute a arte de decidir corretamente [] virtude do liacutempido conhecimento do ser (LUAND 2005 p7-10)
O conceito de equidade igualmente nos parece de difiacutecil compreensatildeo O
dicionaacuterio grego-portuguecircs de Isidro Pereira registra as seguintes traduccedilotildees para
ἐπιείκεια conveniecircncia moderaccedilatildeo equidade epiqueia doccedilura bondade (cf
PEREIRA 1998 p 210 [verbete ἐπιείκεια]) Registrando a presenccedila de uma
traduccedilatildeo ainda mais proacutexima do termo grego epieiacutekeia menos usada contudo em
nosso vocabulaacuterio epiqueia2 Disso podemos constatar que embora a equidade
goze de grande popularidade no meio juriacutedico seu emprego por vezes varia ainda
que ligeiramente do conceito elaborado pelo Estagirita3
Portanto diante de tais dificuldades questionamos O que seria a prudecircncia
e a equidade na tradiccedilatildeo aristoteacutelica Tal questionamento nos levou a procurar nos
textos do proacuteprio Aristoacuteteles e seus comentadores os indiacutecios das formulaccedilotildees
originaacuterias Por ora o que podemos levantar eacute que ambos os conceitos satildeo
visualizados em situaccedilotildees muito aproximadas O que nos leva agrave possiblidade de
existir entre ambos uma relaccedilatildeo de interdependecircncia conceitual Talvez seja por isso
que quando Aristoacuteteles aborda as virtudes morais deixa a equidade como uacuteltimo
assunto antes de tratar da virtude intelectual da prudecircncia
Neste sentido o trabalho foi elaborado traccedilando um percurso entre as
condiccedilotildees necessaacuterias ao exerciacutecio das virtudes para em seguida procurarmos
contextualizar a teoria das virtudes como um todo e por fim conhecermos a virtude
da prudecircncia No momento subsequente realizamos uma exposiccedilatildeo da virtude da
justiccedila Apoacutes esses passos entendemos ser possiacutevel a formulaccedilatildeo das concepccedilotildees
aristoteacutelicas dos conceitos de prudecircncia e equidade
2 Abbagnano registra epiqueia como sendo sinocircnimo de equidade (1999 p 338 [verbete epiqueia])
Em seu verbete epiqueia Aureacutelio Buarque de Holanda embora natildeo a coloque como sinocircnimo de equidade registra ldquoepiqueia Sf 1 Interpretaccedilatildeo razoaacutevel de lei ou preceito 2 Fig Meio-termo moderaccedilatildeordquo Entendimento que nos parece mais proacuteximo agrave proposta Aristoteacutelica 3 Referecircncia agrave Aristoacuteteles por ser natural de Estagira uma antiga cidade da Macedocircnia situada hoje
na Greacutecia na regiatildeo de Calciacutedica
14
Dentro desse esquema o segundo capiacutetulo tem por objetivo analisar a
contingecircncia caracterizada pela indeterminaccedilatildeo objetiva na relaccedilatildeo entre o universal
e o particular como condiccedilatildeo para o exerciacutecio da razatildeo praacutetica4 Neste sentido
iremos buscar na loacutegica de Aristoacuteteles os elementos necessaacuterios para a sua
compreensatildeo
Uma concepccedilatildeo um tanto popular quando se trata de Aristoacuteteles eacute da
potecircncia e do ato A pretensatildeo eacute revisitar esse conceito com foco na relaccedilatildeo
contingencial que existe no movimento entre a potecircncia e o ato O objetivo do
capiacutetulo alcanccedila pouso numa concepccedilatildeo de contingecircncia proacutepria agrave eacutetica das
virtudes O que segue eacute a proposta de Pierre Aubenque (2008) em fazer uma
exposiccedilatildeo da contingecircncia nas concepccedilotildees de acaso Por fim eacute na trageacutedia grega
que Aubenque (2008) mostra as condiccedilotildees necessaacuterias ao exerciacutecio das virtudes
O terceiro capiacutetulo tem por objetivo trazer uma exposiccedilatildeo que contextualize
na tradiccedilatildeo aristoteacutelica das virtudes os conceitos que seratildeo estudados Neste
sentido eacute realizada inicialmente uma leitura acerca da teoria geral das virtudes na
Eacutetica a Nicocircmaco Observando as partes da alma e suas qualidades como racional e
irracional dividindo assim as virtudes em intelectuais e morais respectivamente
O quarto capiacutetulo procura reconstruir o conceito de prudecircncia relacionando-
o com a liberdade e a arte As temaacuteticas da deliberaccedilatildeo e da escolha satildeo neste
ponto inseridas como elementos indispensaacuteveis agrave anaacutelise do conceito de prudecircncia
O quinto capiacutetulo pretende oferecer uma visatildeo geral da teoria da justiccedila de
Aristoacuteteles como tambeacutem considerar o fato de Aristoacuteteles ter inserido sua exposiccedilatildeo
da equidade no livro V em relaccedilatildeo com o conceito de justiccedila objeto especiacutefico de
investigaccedilatildeo do livro mencionado
Por uacuteltimo procuramos o conceito de equidade Essa uacuteltima exposiccedilatildeo tem
por objetivo delinear a pretensatildeo de Aristoacuteteles com tal formulaccedilatildeo Nele natildeo
inserimos pretensotildees complexas acerca de teorias especiacuteficas e contemporacircneas
mas tatildeo somente a despretensiosa e sofisticada elaboraccedilatildeo aristoteacutelica do assunto
4 Sobre razatildeo praacutetica vide LACERDA Bruno Amaro O raciociacutenio juriacutedico uma visatildeo aristoteacutelica Belo
Horizonte Movimento Editorial da Faculdade de Direito da UFMG 2005
15
Eacute neste sentido que ao explicar o desdobramento da razatildeo praacutetica ele
abandona o modelo oferecido pela geometria buscando na carpintaria um novo
modelo (fiel no entanto agrave tradiccedilatildeo das virtudes) Por fim procuramos no conceito
de equidade traccedilos pertinentes agraves virtudes em geral e em especial agrave virtude da
prudecircncia
Para a conclusatildeo reservamos a tarefa de responder a seguinte questatildeo que
se impotildee apoacutes o estudo simultacircneo desses dois conceitos existe uma relaccedilatildeo
conceitual entre os conceitos de prudecircncia e equidade
16
2 A CONTINGEcircNCIA
A prudecircncia e a equidade estatildeo condicionadas ao campo da accedilatildeo Contudo
parece que ambas soacute podem se manifestar no acircmbito do contingente Sendo
portanto a contingecircncia nosso ponto de partida
Parece ser a contingecircncia um dos fenocircmenos mais intrigantes a se tratar por
uma dupla razatildeo A contingecircncia consegue ao mesmo tempo nos desmotivar por
nos ensinar a liccedilatildeo de que natildeo podemos tudo conter e que a nossa pretensiosa
construccedilatildeo cotidiana deve estar sempre alerta para as incontaacuteveis possibilidades a
qual o mundo nos submete Por outro lado e concomitantemente eacute ela quem nos
motiva que nos convida agrave accedilatildeo Pois assim como o vento escolhe seu caminho eacute
ela que tem o poder de inserir em nossas vidas as mudanccedilas pelas quais devemos
lutar para moldarmos nossos objetivos e possibilidades um ao outro
Eacute nesse sentido que nos parece liacutecita a crenccedila em uma possiacutevel
reintegraccedilatildeo do homem com a sua natureza divina pois estatildeo nas vicissitudes da
vida as liccedilotildees praacuteticas nas quais os homens podem dar o melhor de si em busca de
um aperfeiccediloamento moral
21 A Loacutegica5
Eacute no estudo da loacutegica que pretendemos encontrar nossa primeira referecircncia
sobre o que seja a contingecircncia Tradicionalmente entende-se por loacutegica o estudo
dos raciociacutenios que pretendem atraveacutes de regras proacuteprias concluiacuterem por
resultados verdadeiros Desnudando assim os raciociacutenios que se vestem com
aparente validade mas que ocultam viacutecios que os falseiam
Tais viacutecios satildeo comumente apontados como tendo duas fontes sendo uma
relacionada aos fundamentos do raciociacutenio e outra ao nexo que se estabelece entre
5 A loacutegica normalmente eacute classificada como pertencente agrave razatildeo especulativa Nosso estudo situa-se
no acircmbito da razatildeo praacutetica Natildeo obstante parece-nos que a compreensatildeo do pensamento de Aristoacuteteles daacute-se atraveacutes da compreensatildeo de seu meacutetodo que eacute abordado na loacutegica Por outro lado quando descreve o prudente Aristoacuteteles sempre faz menccedilatildeo de que ele natildeo versa apenas sobre questotildees da razatildeo especulativa mas tambeacutem questotildees de razatildeo praacutetica Portanto o conhecimento especulativo eacute pertinente ao agente da razatildeo praacutetica Vide EN VI 7 1141b15
17
eles e a conclusatildeo Nesse sentido a loacutegica aristoteacutelica eacute estudada em dois ramos
sendo eles conhecidos como Loacutegica Maior (ou material) e Loacutegica Menor (ou formal)
Comecemos pela Loacutegica Menor De acordo com o ensino tradicional de
loacutegica as proposiccedilotildees podem ser classificadas pela qualidade e pela quantidade ou
seja como afirmativas ou negativas e universais ou particulares respectivamente
Daacute-se agraves combinaccedilotildees possiacuteveis a seguinte notaccedilatildeo Se a proposiccedilatildeo for uma
universal afirmativa por exemplo Todo S eacute P6 (Todo homem eacute mortal) entatildeo temos
uma proposiccedilatildeo ldquoArdquo Se a proposiccedilatildeo for particular afirmativa por exemplo Alguns S
satildeo P (Alguns homens satildeo brancos) entatildeo temos uma proposiccedilatildeo ldquoIrdquo Se a
proposiccedilatildeo for uma universal negativa por exemplo Nenhum ldquoSrdquo eacute ldquoPrdquo (Nenhum
homem eacute mortal) entatildeo temos uma proposiccedilatildeo ldquoErdquo Se a proposiccedilatildeo for particular
negativa por exemplo Alguns S natildeo satildeo P (Alguns poliacuteticos natildeo satildeo corruptos)
entatildeo temos uma proposiccedilatildeo ldquoOrdquo
Eacute importante notar que nessa primeira classificaccedilatildeo o que se procura
evidenciar eacute a relaccedilatildeo entre o sujeito S e o predicado P sendo que pode estar-se
afirmando ou negando algo ao particular ou ao universal
Parece-nos que os termos empregados por perspicaacutecia ou feliz
coincidecircncia daacute-nos uma importante pista acerca do domiacutenio do contingente Pois eacute
justamente na tensatildeo existente entre o universal e o particular que noacutes podemos
extrair parte do conceito entatildeo estudado
Em sua liccedilatildeo sobre loacutegica Jacques Maritain (2001 p 106) explica essa
tensatildeo expondo brevemente sobre o modo como conhecemos as coisas De acordo
com ele as coisas se apresentam de duas maneiras por uma ideia ou por uma
representaccedilatildeo sensiacutevel As ideias estatildeo relacionadas como o que conhecemos por
universal ou seja lsquoaquilo que se encontra sempre idecircntico em uma multidatildeo de
indiviacuteduos um em muitos ldquounum in multisrdquorsquo
Precisando acerca do particular7 extrai-se da mesma liccedilatildeo
Aleacutem disso se examinarmos com cuidado as diversas ciecircncias isto eacute os diversos sistemas de ideacuteias pelos quais conhecemos o real constatamos que nenhuma delas tem por objeto o individual como tal [] Eacute preciso
6 ldquoSrdquo para sujeito e ldquoPrdquo para predicado
7 Maritain aborda o tema nominando o universal por ideia e o particular por representaccedilatildeo
18
que assim seja porque o individual como tal natildeo eacute explicativo (representando somente a si mesmo natildeo pode evidentemente dar a razatildeo de outra coisa) (MARITAIN 2001 p 105)
Ainda comparando os extremos da tensatildeo Jaques Maritain facilita a
compreensatildeo ldquoOra esta ideia e esta representaccedilatildeo satildeo bem diferentes a prova eacute
que posso fazer variar a segunda de muitas maneiras (o desenho que imagino pode
ser maior ou menor branco vermelho amarelo etc) sem que a primeira varie por
causa dissordquo (MARITAIN 2001 p 103)
Aiacute estaacute nossa primeira pista pois eacute no acircmbito do particular onde ldquopode-se
fazer variarrdquo ou seja onde existe uma dificuldade em predominar o certo o
determinado o evidente o necessaacuterio eacute que chamamos o domiacutenio do contingente
Aleacutem da classificaccedilatildeo pela qualidade e quantidade temos outra importante
classificaccedilatildeo que eacute pela modalidade Nesta podemos encontrar as proposiccedilotildees
como Verdadeiras Falsas8 Necessaacuterias Possiacuteveis Impossiacuteveis e Contingentes
Nas necessaacuterias9 o predicado decorre do sujeito sendo a compreensatildeo de um
indissociaacutevel da compreensatildeo do outro
Quanto agraves proposiccedilotildees possiacuteveis satildeo aquelas em que o predicado pode ser
ou natildeo ser atribuiacutedo ao sujeito Alguns filoacutesofos se restringem a essas duas
modalidades assim a compreensatildeo da contingecircncia fica embutida na modalidade
possiacutevel em outras palavras aquilo que pode ou natildeo pode ser Essa compreensatildeo
aparece na Eacutetica a Nicocircmaco (EN VI 5 1140b1 negrito nosso) ldquouma vez que natildeo
se pode deliberar sobre coisas que estatildeo no acircmbito da necessidade conclui-se que
8 Aristoacuteteles apresenta seis modalidades Os manuais de loacutegica em sua maioria apresentam apenas
quatro modalidades de proposiccedilotildees quais sejam as necessaacuterias possiacuteveis impossiacuteveis e contingentes As modalidades de proposiccedilotildees verdadeiras e falsas satildeo tratadas como valores por decorrerem do emprego das demais
9 Na Metafiacutesica Aristoacuteteles explica a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio e as demais modalidades As
foacutermulas satildeo e natildeo satildeo independentemente da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo pois foi mostrado que ningueacutem as gera ou cria Eacute por esta razatildeo tambeacutem que natildeo haacute definiccedilatildeo ou demonstraccedilatildeo de coisas individuais sensiacuteveis porque contecircm mateacuteria cuja a natureza eacute tal que pode tanto existir quanto natildeo existir Consequentemente todos os exemplos individuais delas satildeo pereciacuteveis E se entatildeo a demonstraccedilatildeo e a definiccedilatildeo de verdades necessaacuterias requerem conhecimento cientiacutefico e se tal como conhecimento natildeo poder ser agraves vez conhecimento e agraves vezes ignoracircncia (eacute a opiniatildeo que possui esta natureza) do mesmo modo tambeacutem demonstraccedilatildeo e a definiccedilatildeo natildeo satildeo passiacuteveis de variaccedilatildeo (eacute a opiniatildeo que se ocupa com aquilo que pode ser de outra maneira do que eacute) (Met 1039b25 - 1040a1)
19
a prudecircncia (sabedoria praacutetica) natildeo eacute o mesmo que conhecimento cientiacutefico porque
os assuntos relacionados agrave conduta admitem mutaccedilatildeordquo
Mais claramente Santo Tomaacutes discorre na segunda parte da Segunda
Parte Questatildeo 47 artigo 5 da Suma Teoloacutegica
Consequumlentemente se diraacute que a prudecircncia estando na razatildeo como jaacute foi dito distingue-se das outras virtudes intelectuais segundo a diversidade material de objetos Pois a sabedoria a ciecircncia e o intelecto tecircm como objetos coisas necessaacuterias a arte e a prudecircncia coisas contingentes [] (AQUINO 2004 p 593 negrito nosso)
Parece-nos importante o desdobramento nas quatro modalidades pois o
possiacutevel e contingente natildeo parecem sinocircnimos O principal argumento estaacute no fato
de que na noccedilatildeo de possiacutevel estaacute impliacutecito o seu contraacuterio ou seja o Impossiacutevel
hipoacutetese em que o predicado natildeo decorre do sujeito Por sua vez a noccedilatildeo de
contingecircncia natildeo compreende o incontingente
Em seu Dicionaacuterio de Filosofia Nicola Abbagnano expotildee no verbete
Contingente a diferenccedila entre contingecircncia e possiacutevel jaacute exposta por Boeacutecio
ldquopossibuumlerdquo e contingens significam a mesma coisa salvo talvez pelo fato de natildeo
existir o negativo de contingens que deveria ser incontingens assim como existe o
negativo de possibuumle que eacute iacutempossiacutebilerdquo (ABBAGNANO 2007 p 200)
Sendo portanto quatro as classificaccedilotildees das modalidades Necessaacuterio ou ldquoeacute
necessaacuterio que S seja Prdquo Possiacutevel ou ldquoeacute possiacutevel que S seja Prdquo Impossiacutevel ou ldquoeacute
impossiacutevel que S seja Prdquo e Contingente ou ldquoeacute contingente que S seja Prdquo
Assim as proposiccedilotildees sempre recebem o valor de verdadeiras quando
pertencem agrave modalidade Necessaacuterio recebem o valor de falsas quando pertencem agrave
modalidade Impossiacutevel recebem o valor de verdadeiras ou falsas quando pertencem
agrave modalidade Possiacutevel
Quando as proposiccedilotildees pertencem agrave modalidade Contingente natildeo podem
ser dotadas de valoraccedilatildeo uma vez que natildeo se pode decidir se satildeo verdadeiras ou
falsas Isso na loacutegica eacute conhecido como acidentes10 ou aquilo que estaacute presente e
ausente ainda que natildeo haja corrupccedilatildeo do sujeito Por isso quando se fala em
10
Retomaremos acerca dos acidentes quando estudarmos o acaso
20
contingecircncia soacute pode estar-se referindo ao momento presente ou futuro mas nunca
ao passado Satildeo nesses momentos em que impera o indeterminado que se
encontra a contingecircncia
Natildeo obstante a correta formulaccedilatildeo de um raciociacutenio eacute possiacutevel que
obtenhamos conclusotildees erradas hipoacutetese essa em que as premissas natildeo satildeo
verdadeiras Destarte diferente da loacutegica menor que se preocupa com a
conformidade das conclusotildees com as premissas a loacutegica maior preocupa-se com a
veracidade
Para que possamos compreender melhor o objeto da loacutegica maior eacute preciso
conceituar o que seja a verdade em mateacuteria de loacutegica assim valhamo-nos das
liccedilotildees de Manoel Correia de Barros (1945)
Jaacute vimos que pelo processo de abstracccedilatildeo a forma do objeto que conhecemos adquire na nossa inteligecircncia uma modalidade de existecircncia completamente diferente da que tem na realidade No objecto eacute concreta individual na inteligecircncia eacute universal abstracta A verdade do nosso conhecimento tem portanto outro significado Consiste simplesmente em natildeo atribuirmos ao objeto nenhuma nota que natildeo lhe pertenccedila na realidade Eacute o caso de analogia A relaccedilatildeo que o nosso espiacuterito estabelece entre dois conceitos deve ser idecircntica a uma relaccedilatildeo existente de facto entre os dois objetos que eles representam para que o nosso conhecimento seja verdadeiro Natildeo eacute necessaacuterio que conheccedilamos todas as relaccedilotildees entre os dois objectos e muito menos todas as relaccedilotildees de que um decircles pode ser termo para ser verdadeiro o conhecimento natildeo precisa ser exaustivo basta que a nota que afirmamos pertencer ao obejcto lhe pertenccedila realmente Assim falamos verdade quando dizemos que a neve eacute branca embora agravececircrca da neve haja muitas coisas mais a dizer e a saber
Natildeo haacute que saber duma ideia isolada se eacute verdadeira ou natildeo A questatildeo natildeo se potildee dado que a verdade eacute igualdade de relaccedilotildees que exigem claro estaacute dois termos []
Soacute pode ser verdadeiro ou falso o juiacutezo que se exprime pela proposiccedilatildeo e relaciona entre si um sujeito e um predicado Ecircsse sim se o predicado que atribuiacutemos ao sujeito lhe convecircm na realidade eacute verdadeiro se lhe natildeo conveacutem eacute falso (BARROS 1945 p 329-330)
Dessa forma para o estabelecimento da verdade eacute necessaacuterio que natildeo haja
nada de estranho ao objeto ou em outras palavras o predicado deve decorrer do
sujeito natildeo lhe dando qualquer nota que natildeo lhe pertenccedila Por isso afirma Maritain
(2001) que a verdade de nosso espiacuterito consiste em sua conformidade com a coisa
21
Nesse sentido eacute que podemos compreender o que afirmamos quando
falaacutevamos da loacutegica menor em que natildeo podemos atribuir o incerto ao passado
Pois por oacutebvio qualquer nota que natildeo lhe tenha ocorrido natildeo lhe pertence
[] os futuros contingentes natildeo existem no passado nem mesmo como verdades futuras Ontem por exemplo natildeo era uma verdade que ia hoje sair um determinado nuacutemero na lotaria porque natildeo existia ontem nenhum facto em que essa consequumlecircncia estivesse contida de modo necessaacuterio com o qual a proposiccedilatildeo em causa pudesse concordar (BARROS 1945 p 331)
Portanto como estaacute relacionado agrave coisa futura o contingente encontra-se
latente num estado de porvir Por isso eacute que estabelecemos nossa proacutexima
referecircncia acerca da contingecircncia no movimento
22 O Movimento11 da potecircncia para o ato
Eacute interessante notar que o momento propiacutecio agrave decisatildeo eacute um momento de
passagem ou em melhor termo um momento de movimento Natildeo eacute em vatildeo que
Pierre Aubenque (2008) em seu livro A Prudecircncia em Aristoacuteteles dedica boa parte
do capiacutetulo Cosmologia da Prudecircncia ndash o mesmo capiacutetulo no qual faz uma
abordagem sobre contingecircncia ndash ao tema O tempo oportuno (καιρος)
Nesse sentido estaacute [] a moral aristoteacutelica nos convidando a realizar nossa
excelecircncia neste mundo Natildeo podendo desconhecer que o mundo dura e muda no
tempo que eacute o ldquonuacutemerordquo de seu movimento (Aubenque 2008 p156)
Dessa forma eacute preciso compreender o movimento principalmente na tatildeo
conhecida passagem da Potecircncia para o Ato Como bem assinala Tomaacutes de Aquino
no artigo 5 da questatildeo 47 que estatildeo sob os auspiacutecios da contingencia tanto a
prudecircncia quanto a arte12 isso porque ambas ldquoestatildeo para serrdquo a prudecircncia para o
agir e arte para produzir13
11
Aristoacuteteles faz uma grande abordagem acerca do movimento de acordo com RUSSEL (2001) existem trecircs espeacutecies de movimento Movimento enquanto qualidade quantidade e mudanccedila de lugar REALE (1990) apresenta uma quarta divisatildeo enquanto substacircncia Dessa forma nomina o movimento entre a potecircncia e o ato como movimento enquanto qualidade proposta do presente item 12
Jaacute citado e referenciado no item 21 Esse assunto ainda seraacute tratado no item 43 Arte e prudecircncia 13
Sobre o movimento e a relaccedilatildeo entre a lei e o fato assina-la Carnelutti Assim aflora no discurso a conversatildeo do movimento na imobilidade E assim opotildee-se agrave lei ao direito O eterno contraste entre o
22
Ateacute Aristoacuteteles a concepccedilatildeo filosoacutefica acerca do movimento esteve
vinculada a duas teorias uma negava o movimento e outra o afirmava A corrente
que afirmava o movimento era liderada por Heraacuteclito de Eacutefeso (+- 540 aC)
Heraacuteclito afirmava que as coisas mudavam permanentemente em outras
palavras ele afirmava a inconstacircncia das coisas nesse sentido eacute atribuiacuteda a ele a
frase ldquoEntramos e natildeo entramos no mesmo rio Somos e natildeo somosrdquo Portanto o
movimento estaacute presente em todas as coisas agraves vezes afirmando que as coisas
ldquosatildeordquo e que ldquonatildeo satildeordquo ao mesmo tempo sendo como mais tarde diria Platatildeo ldquoO
nosso ser eacute um perpeacutetuo devirrdquo
Ao contraacuterio do que afirmava Heraacuteclito Parmecircnides de Eleia (+- 521 aC)
liderava a corrente que negava o movimento Assim Parmecircnides simplesmente
afirma que ldquoeacuterdquo Seu argumento eacute sustentado pela afirmaccedilatildeo de que aquilo que ldquonatildeo
eacuterdquo natildeo pode sequer ser imaginado pois natildeo se pode imaginar o nada Seu
pensamento culmina numa representaccedilatildeo do mundo como ldquouma esfera material
uniforme soacutelida e finita sem tempo movimento nem mudanccedilardquo (RUSSELL 2001 p
29-38)
De acordo com Parmecircnides os sentidos natildeo seriam instrumentos adequados
ao conhecimento verdadeiro sendo o conhecimento verdadeiro revelado pela razatildeo
Assim a verdade eacute apenas aquilo que eacute produzido pelo pensamento e portanto o
pensar eacute verdadeiramente ldquoserrdquo Eacute nesse sentido que afirma ser o movimento
impossiacutevel pois natildeo admite a passagem do ldquonatildeo serrdquo para o ldquoserrdquo uma vez que o
ldquonatildeo serrdquo eacute nada e natildeo pode ser inteligiacutevel
Ao contraacuterio de seus predecessores Aristoacuteteles inova conciliando ambas as
teorias Pois natildeo nega o que ldquoestaacute por virrdquo de Heraacuteclito e nem o ldquoserrdquo de
Parmecircnides
Aristoacuteteles natildeo nega o vir-a-ser de Heraacuteclito nem o ser de Parmecircnides mas une-os em uma siacutentese conclusiva jaacute iniciada pelos uacuteltimos preacute-socraacuteticos e grandemente aperfeiccediloada por Demoacutecrito e Platatildeo Segundo Aristoacuteteles a mudanccedila que eacute intuitiva pressupotildee uma realidade imutaacutevel que eacute de duas espeacutecies Um substrato comum elemento
ser e o mover-se apresenta-se tambeacutem ao jurista sub specie da oposiccedilatildeo do fato agrave lei A lei estaacute o fato move-se A lei eacute um estado o fato um desenvolvimento A lei eacute o presente o fato natildeo pode ser mais do que passado ou futuro A lei estaacute fora do tempo o fato estaacute dentro (CARNELUTTI 2003 p 40)
23
imutaacutevel da mudanccedila em que a mudanccedila se realiza e as determinaccedilotildees que se realizam nesse substrato a essecircncia a natureza que ele assume Essa contradiccedilatildeo Aristoacuteteles pretende evitar atraveacutes da interpretaccedilatildeo analoacutegica da noccedilatildeo de ser que lhe permite fazer uma distinccedilatildeo fundamental ser natildeo eacute apenas o que jaacute existe em ato ser eacute tambeacutem o que pode ser a virtualidade a potecircncia Assim sem contrariar qualquer princiacutepio loacutegico poder-se-ia compreender que uma substacircncia apresenta-se num dado momento certas caracteriacutesticas e noutra ocasiatildeo manifestasse caracteriacutesticas diferentes se uma folha verde torna-se amarela eacute porque verde e amarelo satildeo acidentes da folha (que eacute sempre folha independente de sua coloraccedilatildeo) A qualidade amarelo eacute uma virtualidade da folha que num certo momento se atualiza E essa passagem da potecircncia ao ato eacute que constitui segundo a teoria de Aristoacuteteles o movimento O termo movimento tem frequentemente a
mesma significaccedilatildeo que os vocaacutebulos mudanccedila e devir (ORIOLO
2009)
A compreensatildeo do ldquoserrdquo14 eacute explicada detalhadamente no Livro VII da
Metafiacutesica (Met VII 1 1028a10) Na passagem 1039b20 descreve a substacircncia
como sendo de dois tipos uma vez que o primeiro tipo seria uma combinaccedilatildeo de
foacutermula com a mateacuteria e o segundo tipo como sendo a forma em seu sentido pleno
Sendo a forma uma constante inadmitindo acidentes ao contraacuterio da foacutermula com a
mateacuteria que eacute passiacutevel de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo
Portanto a mudanccedila parece compreender como predicados ato e potecircncia
pois natildeo seria possiacutevel movimento enquanto ato uma vez que neste a causa final
jaacute fora atingida nem enquanto soacute potecircncia uma vez que algo pode permanecer
nesse estado sem que haja qualquer mudanccedila Nesse sentido o movimento eacute
potecircncia e ato
Para Aristoacuteteles o movimento eacute a a realizaccedilatildeo15 daquilo que estaacute em
potecircncia (Fiacutes III 1 201 a 10) Ou seja o movimento eacute a passagem da potecircncia
para o ato Um dos exemplos citados na Fiacutesica eacute o crescimento como sendo a
realizaccedilatildeo a passagem da potecircncia para o ato16 De acordo com Russell (2001)
14
Sobre o ser vide AUBENQUE (2012) 15
έντελέχεια (enteleacutekheia) 16
Y puesto que distinguimos en cada geacutenero lo actual y lo potencial el movimiento es la actualidad de lo potencial en cuanto a tal por ejemplo la actualidad de lo alterable en tanto que alterable es la alteracioacuten la de lo susceptible de aumento y la de su contrario lo susceptible de disminucioacuten mdash no hay nombre comuacuten para ambos mdash es el aumento y la disminucioacuten la de lo generable y lo destructible es la gene- racioacuten y la destruccioacuten la de lo desplazable es el desplazamiento en tanto que decimos que es tal estaacute en actualidad entonces estaacute siendo construido tal es el proceso de construccioacuten y lo mismo en el caso de la instruccioacuten la medicacioacuten la rotacioacuten el salto la maduracioacuten y el envejecimiento (Fiacutes III 1 201 a 16)
24
Se um frasco de oacuteleo comeccedila a queimar podemos dizer que eacute assim porque jaacute o era potencialmente mesmo antes Poreacutem evidentemente isto natildeo eacute uma explicaccedilatildeo Na verdade por motivos deste tipo algumas escolas filosoacuteficas negaram que se pudesse dizer qualquer coisa uacutetil sobre o assunto Antiacutestenes de Megara foi um deles como veremos adiante Segundo este ponto de vista uma coisa eacute de um determinado tipo ou natildeo e qualquer coisa aleacutem disto eacute tolice Mas eacute claro que fazemos afirmaccedilotildees como ldquoo oacuteleo eacute inflamaacutevelrdquo e elas fazem perfeito sentido A anaacutelise de Aristoacuteteles fornece a resposta correta Ao dizermos que uma coisa eacute potencialmente A queremos dizer que sob certas condiccedilotildees seraacute de fato assim [] As condiccedilotildees em questatildeo eacute claro devem ser tais que possam de fato ocorrer quer dizer ser atuais Neste sentido o atual eacute logicamente anterior ao potencial Agora pode-se dar uma explicaccedilatildeo da mudanccedila em virtude de uma substacircncia que eacute portadora potencial de uma seacuterie de qualidades que nela se tornam sucessivamente atuais (RUSSELL 2001 p 113)
Assim poderiacuteamos dizer que o hilemorfismo eacute o locus onde Aristoacuteteles
ensaia a teoria do movimento pois eacute da realidade sensiacutevel constituiacuteda de mateacuteria17 e
forma que podemos imaginar o salto e os possiacuteveis acidentes entre a potecircncia e o
ato ldquo[] parece que para a mesma coisa eacute possiacutevel tanto ser como natildeo ser Assim
por exemplo tudo aquilo que pode caminhar ou ser cortado pode natildeo caminhar ou
natildeo ser cortado E a razatildeo disso eacute que essas coisas que satildeo desta maneira em
potecircncia nem sempre satildeo em atordquo (Da Int 21b10) Essa postura apresentada em
Da Interpretaccedilatildeo pode ser contemplada tambeacutem na Metafiacutesica ldquo[] a mesma coisa
pois pode ser potencialmente ao mesmo tempo dois contraacuterios mas natildeo pode ser
atualmenterdquo (Met IV 5 1009b34-36)
No estudo das causas18 Aristoacuteteles as classifica em quatro quais sejam
causa formal causa material causa eficiente e causa final Considerar apenas a
forma e a mateacuteria natildeo eacute suficiente pois teriacuteamos uma teoria estaacutetica Como estamos
tratando de uma realidade dinacircmica eacute necessaacuterio portanto que consideremos a
existecircncia de um agente e seu objetivo
Assim a mateacuteria eacute potecircncia por estar apta a receber a forma e
consequentemente alcanccedilar o ato Tal como o bloco de granito estaacute apto a tornar-se
a Vecircnus de Milo
17
ύλη (hyle) 18
Sobre as quatro causas Giovanni Reale explica sua relaccedilatildeo com a Fiacutesica em especial no que
concerne ao movimento vide (REALE 2001 p 57)
25
Em De Anima (432a15 - 433b) Aristoacuteteles descreve o movimento como
pertencente agrave razatildeo praacutetica De acordo com o texto o intelecto ou a razatildeo
especulativa nada pensa na esfera do praacutetico nem delibera acerca dos objetos a
serem evitados ou buscados enquanto o movimento local diz respeito sempre ao
evitar ou ao buscar de algum objeto
Nesse importante trecho estatildeo inseridas as bases do silogismo praacutetico19
destarte a assertiva que segue o trecho eacute a seguinte ldquoe o ponto final do processo
de raciocinar constitui o ponto de partida da accedilatildeo Eacute por boa razatildeo que esses dois
nomeadamente o desejo e o intelecto praacutetico satildeo considerados fonte do
movimentordquo (DA 432a17)
Em sua Metafiacutesica (1046b5) afirma que toda potecircncia racional admite
resultados contraacuterios diferente das potecircncias irracionais onde o resultado eacute
necessaacuterio O exemplo utilizado eacute o do calor e o da medicina o calor soacute pode
produzir calor enquanto a medicina pode produzir sauacutede e doenccedila
Portanto o movimento pertencente agrave razatildeo praacutetica eacute para noacutes a passagem
da potecircncia para o ato Em tal passagem podemos constatar a presenccedila de
resultados contraacuterios ou seja aquilo que eacute em potecircncia natildeo o seraacute
19
Sobre ldquosilogismo praacuteticordquo vide Pierre Aubenque (2008 p 52) ldquologo entre a teoria e a praacutetica e
finalmente entre a ciecircncia e a prudecircncia esta uacuteltima relativa menos agrave ldquodeduccedilatildeordquo que desce do
princiacutepio agrave aplicaccedilatildeo do que a um ldquoempirismordquo que se esforccedila bem ou mal por se orientar no acircmago
mesmo do particularrdquo Neste trecho parece afastar-se da loacutegica Mais adiante na p 254 aborda
novamente o tema e conclui por uma perspectiva conciliadora ou seja apresenta duas foacutermulas para
a deliberaccedilatildeo uma a do silogismo praacutetico como aplicaccedilatildeo do universal ao particular e a outra que diz
respeito agrave escolha judiciosa dos meios Em sua Histoacuteria da Eacutetica Alasdair MacIntyre (1991 p 76 -
77) ldquoAristoacuteteles caracteriza la forma de deliberacioacuten implicada como un silogismo praacutectico La
premisa mayor de un silogismo semejante es un principio de accioacuten en el sentido de que cierta clase
de cosas es buena conviene o satisface a cierta clase de personas La premisa mayor es la
afirmacioacuten garantizada por la percepcioacuten de que hay un ejemplo de que aunque misterioso en su
contenido aclara la forma del silogismo praacutectico La premisa mayor indica que el alimento seco es
bueno para el hombre la premisa menor sentildeala la presencia de ese tipo de alimento y la conclusioacuten
es que el agente lo ingiere Que la conclusioacuten es una accioacuten pone de manifiesto que el silogismo
praacutectico es un modelo de razonamiento por parte del agente y no un modelo de razonamiento ajeno
sobre lo que el agente deberiacutea hacer (por eso una segunda premisa menor que indicara por ejemplo
la presencia de un en cuanto nos alejariacutea de la cuestioacuten) Ni tampoco es un modelo de confundirse
con aquellos silogismos muy comunes cuya conclusioacuten es una afirmacioacuten de este tipo Toda su
finalidad reside en indagar el sentido en que una accioacuten puede ser la resultante de un razonamientordquo
26
necessariamente em ato Da admissatildeo de tais resultados decorre a indeterminaccedilatildeo
Eacute justamente essa indeterminaccedilatildeo que justifica a deliberaccedilatildeo
23 Indeterminismo e a eacutetica das virtudes
Iniciamos o segundo capiacutetulo afirmando que tanto a prudecircncia quanto a
equidade pertencem ao campo da accedilatildeo e que ambas se manifestam nas situaccedilotildees
contingentes20 Revisitando os conceitos da loacutegica foi possiacutevel identificar a natureza
da contingecircncia como pertencente agraves modalidades Por fim identificamos que o
movimento entre a potecircncia e o ato eacute uma fonte contingencial uma vez que a
potecircncia admite atualizaccedilotildees contraacuterias evidenciando o que chamamos de
indeterminaccedilatildeo21
Neste item pretendemos compreender a natureza da indeterminaccedilatildeo como
um chamamento para accedilatildeo asseverando as diferentes concepccedilotildees da noccedilatildeo de
acaso nas obras de Aristoacuteteles
Pierre Aubenque (2008) em seu livro A prudecircncia em Aristoacuteteles faz uma
profunda leitura das obras do Estagirita evidenciando trecircs distintas concepccedilotildees de
acaso Na primeira delas uma leitura da Eacutetica Eudecircmia onde o acaso aparece sob a
forma de ldquofortunardquo Na segunda uma leitura da Fiacutesica esboccedilando o acaso como
inserto em sua teoria da causalidade E na terceira e uacuteltima uma leitura da Eacutetica a
Nicocircmaco o acaso enquanto indeterminaccedilatildeo objetiva isto eacute contingecircncia As trecircs
concepccedilotildees satildeo detalhadamente explicadas por Pierre Aubenque (2008 p 117-
130)
231 Primeira concepccedilatildeo de acaso A boa fortuna
20
Parece que a contingecircncia se manifesta de diversa forma em cada uma das virtudes situaccedilatildeo que seraacute analisada mais detidamente no estudo de cada uma delas 21
Aqui o emprego da expressatildeo ldquoindeterminaccedilatildeordquo refere-se a admissatildeo da existecircncia do acaso em verdade natildeo eacute nossa intenccedilatildeo trabalhar a dicotomia ldquodeterminismo-indeterminismordquo
27
Na Eacutetica Eudecircmica Aristoacuteteles procura mostrar que a boa fortuna22 natildeo se
deve ao exerciacutecio das virtudes morais ou intelectuais mas ao bom nascimento
desse modo a boa fortuna eacute algo irasciacutevel
O questionamento eacute formulado Se a boa fortuna natildeo eacute produto da razatildeo
entatildeo eacute um presente de deus ou uma causa natural
As objeccedilotildees seguem no sentido de que o bom nascimento natildeo se explica
pela proteccedilatildeo divina pois seria indigno dos deuses dispensarem favores aos maus
Da mesma forma natildeo seria pela natureza uma vez que ldquoa natureza eacute causa do que
eacute sempre uniforme ou do que acontece frequentemente e o acaso eacute o oposto dissordquo
(EE VII 14 1247a14-31)
Pierre Aubenque (2008) nos daacute a seguinte soluccedilatildeo
Tal objeccedilatildeo no entanto natildeo repousaria sobre uma concepccedilatildeo errocircnea do acaso Aristoacuteteles o pergunta para sugerir uma teoria segundo a qual ldquoeacute preciso rejeitar inteiramente o acaso e dizer que nada acontece por acaso pois quando dizemos que o acaso eacute uma causa haacute na realidade uma outra causa poreacutem ocultada para noacutes Eacute por isso que quando se define o acaso o tomamos como uma causa impenetraacutevel ao raciociacutenio humano (aitian alogon anqrwpinw logismw) como se se
tratasse de uma certa naturezardquo [] essa causa oculta ao entendimento humano que se chama impropriamente acaso eacute num certo sentido uma causa natural ndash e nesse sentido eacute verdadeiro dizer que os homens afortunados o satildeo por natureza Natureza poreacutem que natildeo deve ser entendida no sentido dos fiacutesicos eacute a boa ou maacute natureza o bom ou mau nascimento que eacute um dom dos deuses natildeo para recompensar nossos meacuteritos ou para complementaacute-los mas o dom inicial constitutivo de nosso quinhatildeo que natildeo eacute pois uma consequumlecircncia mas a fonte de nossos meacuteritos ou demeacuteritos (2008 p 119)
Portanto o acaso enquanto boa fortuna parece tanto um presente de Deus
por constituir o quinhatildeo inicial quanto uma causa natural pois os afortunados o satildeo
por natureza (EE VII 14 1247b28)23
Contudo Aubenque (2008) deixa em aberto uma seacuterie de questionamentos a
essas possiacuteveis soluccedilotildees o que nos parece liacutecito uma vez que para nosso objetivo
basta compreender as consequecircncias da boa fortuna no campo da razatildeo praacutetica
Vejamos a exposiccedilatildeo 22
eutuxia 23
Natildeo obstante a essa aparente soluccedilatildeo Pierre Aubenque (2008) natildeo a daacute por resolvida o que percebemos eacute uma questatildeo que tende agrave teologia provavelmente pretende uma soluccedilatildeo no acircmbito de outra obra
28
Mas a concepccedilatildeo de acaso sugerida pelo texto natildeo eacute nem tatildeo clara nem tatildeo isenta de dificuldades como poderia parecer agrave primeira vista Pois jaacute apresenta ao lado da noccedilatildeo religiosa de acaso ndash Forccedila oculta que a tudo dirige ndash uma outra concepccedilatildeo que liga o acaso natildeo mais a transcendecircncia insondaacutevel da divindade mas agraves falhas de sua accedilatildeo Vimos nesses textos que o acaso eacute oposto agrave natureza como excepcional ao uniforme Um pouco mais longe Aristoacuteteles esclarece que o acontecimento casual eacute aquele que certamente deriva das causas embora indefinidas e indeterminadas (apeirwn kai aoristwn) ou seja
do gecircnero de causas do qual natildeo pode haver ciecircncia Sem duacutevida o sentido geral do texto permite entender que Aristoacuteteles toma facilmente o partido da impossibilidade de uma ciecircncia do acaso visto haver algo superior agrave ciecircncia que eacute Deus (AUBENQUE 2008 p 126)
As conclusotildees que se seguem satildeo consequecircncia desta O sentido eacute o de
que o acaso eacute aparente pois seria Deus o primeiro motor Assim o sendo natildeo haacute
que se falar em deliberaccedilatildeo uma vez que a inteligecircncia Divina jaacute a teria previamente
realizado A denominaccedilatildeo ldquoacasordquo eacute funccedilatildeo de nossa ignoracircncia agrave Causa das
causas ou seja Deus
A consequecircncia que estrai Aristoacuteteles eacute que os homens afortunados natildeo devem sua fortuna agrave sua inteligecircncia nem mais particularmente agrave sua capacidade de deliberaccedilatildeo ldquopara qualquer lado que se lanccedilam triunfam sem reflexatildeo (alogoi ontej) deliberar natildeo lhes serve para nada pois
tem neles um princiacutepio que eacute melhor que o intelecto e a deliberaccedilatildeo enquanto os outros tecircm apenas raciociacutenio os afortunados natildeo o tem mas satildeo habitados pelo deusrdquo
24 (AUBENQUE 2008 p 121)
Assim para os afortunados o exerciacutecio das virtudes eacute inuacutetil uma vez que jaacute
possuem os bens necessaacuterios para alcanccedilarem a felicidade Ao contraacuterio dos
afortunados tal exerciacutecio eacute para os virtuosos o caminho alternativo para se
alcanccedilar aquilo que natildeo receberam da natureza ou da Providecircncia Divina
232 Segunda concepccedilatildeo de acaso Acidente
Na Fiacutesica eacute apresentada uma teoria da causalidade que atinge tanto os
seres dotados de escolha quanto os seres natildeo dotados Pierre Aubenque (2008)
24
EE VII 14 1248a29-33
29
explica que o acaso natildeo eacute o encontro de duas seacuteries causais mas o encontro de
uma seacuterie causal real dotada de uma certa finalidade com uma finalidade
imaginaacuteria de modo que tal encontro poderia ser retrospectivamente reconstruiacutedo a
partir do resultado
O exemplo extraiacutedo da Fiacutesica25 eacute de um homem que ao ir ao mercado
encontra-se por acaso com um algueacutem que o deve os fatos se desenrolam como
se o motivo de tal homem estar ali fosse cobrar a diacutevida quando de fato o motivo
era outro Essa interpretaccedilatildeo do acaso agora parece evidente vejamos
[] este motivo o uacutenico real eacute pois causa por acidente de um efeito que natildeo era visado como tal o ressarcimento da diacutevida Como se vecirc uma tal concepccedilatildeo do acaso natildeo introduz nenhuma falha no encadeamento causal o acaso apenas acrescenta uma intenccedilatildeo a qual sendo imaginaacuteria de fato natildeo acrescenta nem suprime nada agrave realidade do processo natural O acaso nesse sentido eacute uma ilusatildeo retrospectiva a projeccedilatildeo de uma finalidade humana sobre uma relaccedilatildeo causal que eacute por si mesma inteiramente estranha a esta finalidade (AUBENQUE 2008 p 126)
Essa noccedilatildeo que segundo AUBENQUE (2008) soa como determinista
recebe mais adiante um desenvolvimento mais apurado O acaso eacute concebido natildeo
como causa mas sim como efeito Desta forma o acaso enquanto encontro de uma
seacuterie causal e de um fim natildeo perseguido aparece como fato excepcional e sem
causas ao menos determinaacuteveis pois suas causas sendo causas acidentais satildeo
indeterminaacuteveis ldquoa causa por si mesma eacute determinada a causa por acidente eacute
indeterminada pois a pletora de acidentes possiacuteveis de uma coisa eacute infinitardquo (Fiacutes II
5 196b27-29)26 ldquoO acaso natildeo aparece senatildeo num mundo onde o acidente ndash ou
seja o que adveacutem sumbanei a uma coisa ndash natildeo se deixa reduzir agrave essecircncia um
mundo onde nada eacute dedutiacutevel onde a infinidade de acidentes possiacuteveis de uma
coisa tornam imprevisiacuteveis as combinaccedilotildees que daiacute podem resultarrdquo (AUBENQUE
2008 p 127)
Portanto a noccedilatildeo de acaso apresentada na Fiacutesica diferencia-se da boa
fortuna apresentada na Eacutetica a Eudemo pois enquanto a boa fortuna refere-se ao
25
Fiacutes II 5 196b 33-197a5 26
Fiacutes II 5 196b27-29
30
bom nascimento o acidente na Fiacutesica refere-se a incontaacuteveis possibilidades que nos
impedem de antever os possiacuteveis resultados
233 Terceira concepccedilatildeo de acaso contingecircncia
Diferente das duas concepccedilotildees anteriores a exposiccedilatildeo da Indeterminaccedilatildeo
objetiva ou contingecircncia passa a ter um cunho teoloacutegico-antropoloacutegico Parece que
a visatildeo da Eacutetica a Nicocircmaco sobre o acaso estaacute mais direcionada ao traacutegico
Pierre Aubenque (2008 p 127-28) inicia fazendo um interessante paralelo
entre o Saacutebio e o Prudente procurando entre esses aquele que poderaacute atingir a
felicidade A conclusatildeo como eacute de se esperar27 indica o prudente como aquele que
poderaacute um dia ser chamado feliz
Contudo o referido autor natildeo negligencia as aparentes objeccedilotildees ateacute mesmo
porque Aristoacuteteles natildeo as negligenciou Muito pelo contraacuterio ainda que de forma
bem tiacutemida Aristoacuteteles fez breve passagem expondo a grandeza da vida
contemplativa
A argumentaccedilatildeo apresentada por comentadores28 pode ser resumida da
seguinte forma Se o que o homem tem de mais proacuteximo a Deus eacute o intelecto entatildeo
Deus quer bem os saacutebios portanto os saacutebios satildeo felizes Nesse sentido a noccedilatildeo
temporal de felicidade inexiste pois basta o exerciacutecio das faculdades intelectivas
para alcanccedilar o estado de felicidade (AUBENQUE 2008)
A objeccedilatildeo apresentada por Pierre Aubenque (2008 p128) eacute clara De
acordo com ele eacute nesse ponto que Aristoacuteteles se afasta de toda a tradiccedilatildeo socraacutetica
pois no pensamento aristoteacutelico a virtude ainda que natildeo suficiente eacute condiccedilatildeo
necessaacuteria da felicidade
Ainda de acordo com essa objeccedilatildeo estaacute que a definiccedilatildeo de felicidade eacute
composta pela virtude e pelos bens exteriores e bens do corpo Por oacutebvio esses
dois uacuteltimos bens ldquonatildeo podem ser adquiridos pelo exerciacutecio ou meacuterito eles
dependem da boa fortunardquo (AUBENQUE 2008 p 129)
27
Afinal este eacute o tema desta dissertaccedilatildeo 28
Comentadores citados por AUBENQUE (2008) ZELLER Die Philosophie der Griechen II 2 1921 4ordf DIRLMEIER F Magna Moralia 1958
31
Destarte o primeiro desses bens a virtude natildeo pode ser compreendida sem
ter por referencial a contingecircncia Pois como jaacute exposto para ser feliz eacute preciso ser
virtuoso para ser virtuoso eacute preciso ter condiccedilotildees externas para exercitar as
virtudes
[] inicialmente porque a virtude necessita de uma mateacuteria para se exercer e como vimos de um ldquomundordquo ou seja necessita de condiccedilotildees que natildeo dependem de noacutes como amigos dinheiro um certo poder poliacutetico e tambeacutem de ocasiotildees as quais natildeo se oferecem a todos (Heacutercules teve a oportunidade de encontrar o leatildeo de Nemeacuteia e a hidra de Lerna Mas num segundo sentido natildeo pode haver felicidade completa sem a plenitude da vida (bioj teleioj) o que supotildee sem
duacutevida uma duraccedilatildeo optima mas tambeacutem a integridade do corpo e a prosperidade de nossos empreendimentos o que os gregos resumem em uma palavra eupraia (AUBENQUE 2008 p129)
Para encerrar a questatildeo entre o saacutebio e o prudente eacute exposta uma seacuterie de
argumentos que pretendem demonstrar a fragilidade dos argumentos socraacuteticos por
exemplo que enquanto Deus basta a si mesmo o homem precisa ter amigos ou
que o saacutebio necessita do oacutecio Enfim tantas satildeo as condiccedilotildees externas que natildeo
parece o saacutebio poder ser tatildeo autaacuterquico quanto pretende a visatildeo socraacutetica para ser
feliz
Mas a concepccedilatildeo perseguida em A Prudecircncia em Aristoacuteteles eacute a do fracasso
da Providecircncia Divina Isso quer dizer que a ldquovirtude depende do mundo tanto
quanto de suas condiccedilotildees de existecircncia e este mundo natildeo depende de noacutes Eis o
virtuoso de Aristoacuteteles e mesmo o contemplativo ndash os quais satildeo menos duas
personagens distintas do que a mesma personagem em niacuteveis diferentes de
excelecircnciardquo (AUBENQUE 2008 p 135) ambos condicionados agrave heteronomia e agrave
relaccedilatildeo de ldquoacasordquo Haacute algo de traacutegico na vida moral decorrente da uniatildeo entre a
felicidade e a virtude que natildeo eacute por assim dizer analiacutetica como acreditavam os
socraacuteticos mas sempre sinteacutetica porque depende numa proporccedilatildeo irredutiacutevel do
acasordquo (AUBENQUE 2008 p 135)
[] o ideal de Aristoacuteteles natildeo pode consistir numa assimilaccedilatildeo ao mundo em seu conjunto visto que este soacute eacute racional em suas partes superiores mas somente na imitaccedilatildeo da ordem que nelas reina O conhecimento dessa ordem que natildeo pode ser procurado na fiacutesica como para os estoacuteicos mas na teologia eacute o que Aristoacuteteles nomeia sabedoria Mas a
32
vida segundo a sabedoria natildeo eacute imediatamente acessiacutevel ao homem por uma ascese interior pois ela depende tambeacutem em suas condiccedilotildees de realizaccedilatildeo das circunstacircncias exteriores as quais natildeo satildeo nem na aparecircncia nem profundamente inteiramente racionais O reino da sabedoria exige pois um domiacutenio preacutevio das circunstacircncias domiacutenio que natildeo pode ser adquirido senatildeo por uma accedilatildeo teacutecnica sobre o mundo Se para os estoacuteicos a indiferenccedila em relaccedilatildeo agraves circunstacircncias se justificaraacute em uacuteltima anaacutelise pela crenccedila na Providecircncia e na convicccedilatildeo correlata de que todo real eacute racional o homem de Aristoacuteteles natildeo saberaacute fingir indiferenccedila a respeito de um mundo cuja indeterminaccedilatildeo eacute a forma propriamente aristoteacutelica do mal Poreacutem aqui se opera uma inversatildeo que forneceraacute o domiacutenio e no sentido mais forte do termo a ldquochancerdquo da accedilatildeo moral se a contingecircncia eacute a fonte do mal ela torna possiacutevel as iniciativas humanas em vista do bem a indeterminaccedilatildeo signo da impotecircncia da razatildeo universal eacute ao mesmo tempo abertura agrave accedilatildeo racional do homem [] O homem de Aristoacuteteles natildeo pode se tornar indiferente agraves circunstacircncias mas lhe eacute permitido na medida em que satildeo moldaacuteveis para moldaacute-las humanamente e se natildeo eacute convidado a mudar antes seus desejos do que a ordem do mundo eacute porque Aristoacuteteles conta com o desejo racional para terminar de ordenar o mundo tomando o lugar de uma Providecircncia faliacutevel (2008 p143-145 negrito nosso)
Dessa forma natildeo depende dos homens apenas moldar seus proacuteprios
desejos mas tambeacutem o mundo por ser somente ordenado de modo geral Dessa
forma a contingecircncia eacute o mal e o remeacutedio de acordo com o desejo29 do homem Eacute
nesse sentido que devemos abordar um tema que eacute corrente entre os
comentadores30 de Aristoacuteteles a trageacutedia
2331 Trageacutedia31
O elemento traacutegico heranccedila da mais alta literatura e ao mesmo tempo do
conhecimento popular do homem grego estaacute presente na obra do Estagirita Eacute
nesse sentido que os traccedilos mais marcantes de sua filosofia estatildeo inflados com a
nossa fraacutegil condiccedilatildeo humana
29
Sobre ldquodesejordquo eacute interessante notar que eacute a fonte do movimento e tambeacutem da escolha racional Para tanto consulte De Anima e a Eacutetica a Nicocircmaco 30
Sobre ldquotrageacutediardquo Vide AUBENQUE (2008) LOPES (2007) NUSSBAUM (2009) Martha Nussbaum (2009) faz uma detalhada exposiccedilatildeo acerca do elemento traacutegico Mocircnica Sette Lopes (2007 p 51) expotildee igualmente sobre o gecircnero literaacuterio ldquoA poesia traacutegica assemelha-se a uma escultura maleaacutevel e dinacircmica que visa agrave educaccedilatildeo da alma humana pelo exemplordquo Aqui optamos pelos aspectos expostos por Pierre Aubenque uma vez que esta em concordacircncia com sua exposiccedilatildeo sobre a contingecircncia 31
Vide item 44 Deliberaccedilatildeo e Escolha
33
O que parece ser o centro de toda sua eacutetica a felicidade estaacute mediada por
uma seacuterie de condiccedilotildees que natildeo depende de noacutes conforme jaacute citamos ldquoHaacute algo de
traacutegico na vida moral [] mas sempre sinteacutetica porque depende numa proporccedilatildeo
irredutiacutevel do acasordquo (AUBENQUE 2008 p 135)
O traacutegico eacute apresentado por Aristoacuteteles com um sentido mais humanizado
que divinizado ao contraacuterio de uma trageacutedia onde os heroacuteis satildeo imortalizados por
seus feitos o Estagirita apresenta um homem que faz o melhor que pode vejamos
Se esse traccedilo natildeo surpreendeu os comentadores eacute porque o traacutegico tem em Aristoacuteteles um aspecto residual de modo que se pocircde ver nele a sobrevivecircncia de uma prudecircncia popular ndash nada aleacutem do que natildeo ser preciso desafiar os deuses proclamando em alto e bom som a autarquia e a ldquoimortalidaderdquo do homem ndash da qual Aristoacuteteles natildeo teria inteiramente se libertado ou simplesmente uma concessatildeo puramente formal a esta mentalidade [] Em Aristoacuteteles o traacutegico eacute residual poreacutem em sentido ontoloacutegico no sentido de uma distacircncia sempre estreitaacutevel mas insuprimiacutevel que separa o homem da felicidade ou mesmo separa a felicidade do homem tout court e faz com que os homens possam ser felizes mas ldquocomo os homens podem secirc-lordquo (AUBENQUE 2008 p 136)
Dessa forma a accedilatildeo humana estaacute numa aacuterea entre o melhor possiacutevel e o
bem absoluto sendo o ponto final de nossa busca o modelo inacessiacutevel ou
superlativo absoluto
Eacute dentro dessa fronteira onde falha a Providecircncia e o traacutegico mostra um
homem que age e age o melhor possiacutevel dentro de suas possibilidades que
podemos compreender os contornos que liga a contingecircncia agrave eacutetica aristoteacutelica
Portanto Pierre Aubenque (2008 p 110-112) esclarece acerca da atuaccedilatildeo
da prudecircncia no campo da contingecircncia que agir e produzir satildeo de alguma forma
se inserir na ordem do mundo para modifica-lo eacute supor que este mundo que
oferece tal latitude comporta certo jogo certa indeterminaccedilatildeo certo inacabamento
Tanto o objeto da accedilatildeo (a prudecircncia) quanto o da produccedilatildeo (a arte) pertencem pois
ao domiacutenio daquilo que pode ser diferente Ora se a disposiccedilatildeo para produzir
acompanhada de regra chama-se arte a disposiccedilatildeo para agir acompanhada de
regra chama-se prudecircncia Por isso a accedilatildeo imanente agrave praacutexis tem menos por objeto
a natureza do que suas falhas ou inacabamentos Esta indeterminaccedilatildeo eacute
34
precisamente o que permite a Aristoacuteteles classificar os processos naturais no
domiacutenio da contingecircncia
Se for pois o homem prudente aquele que estaacute apto agrave accedilatildeo moral a
decisatildeo correta e portanto ao elo que pode ligar o conhecimento geral ao
particular32 tentaremos entendecirc-lo por sua virtude a Prudecircncia Antes poreacutem para
podermos compreender tal virtude bem como na sequecircncia seu conceito de justiccedila
e de equidade devemos fazer uma passagem pela teoria geral das virtudes
32
Essa distacircncia seraacute mais bem abordada em momento oportuno ndash quando tratarmos de prudecircncia e de equidade Aubenque reporta esse assunto em sua obra O problema do ser em Aristoacuteteles (2012 p 63)
35
3 EacuteTICA DAS VIRTUDES
No quarto capiacutetulo de seus Escritos de filosofia II Henrique C de Lima Vaz
faz uma interessante abordagem acerca da eacutetica A ilustraccedilatildeo eacute dada pelo proacuteprio
tiacutetulo Do ethos agrave sociedade Poliacutetica A gecircnese do direito
A proposta do referido capiacutetulo eacute demonstrar que o direito surge com a
relaccedilatildeo eacutetica que soacute pode ser vivenciada na poacutelis ldquoO aparecimento e
desenvolvimento da sociedade poliacutetica caminham em estreita inter-relaccedilatildeo com a
formaccedilatildeo da ciecircncia do ethosrdquo (VAZ 2000 p135) Assim podemos dizer que o
estudo da eacutetica surge e se desenvolve com o surgimento e desenvolvimento da
poacutelis
Neste sentido a lei aparece revelando ter como funccedilotildees educar o indiviacuteduo
agrave vida na cidade ao mesmo tempo em que repara os conflitos onde as virtudes natildeo
satildeo observadas33
A matriz conceptual eacute representada pela ideacuteia de lei (noacutemos) que deve permitir o estabelecimento de uma proporccedilatildeo ou correspondecircncia (analogiacutea) entre a lei ou medida (meacutetron) interior que rege a praxis do indiviacuteduo e a lei da cidade que eacute propriamente o noacutemos e deve assegurar a participaccedilatildeo equumlitativa (eunomiacutea) dos indiviacuteduos no bem que eacute comum a todos e que eacute primeiramente o proacuteprio viver-em-comum De um lado a explicitaccedilatildeo da racionalidade imanente do ethos se constitui como teoria da praxis individual e assume a forma de uma doutrina da virtude (areteacute) ou da Eacutetica no sentido estrito O ethos eacute entatildeo conceptualizado fundamentalmente como haacutebito (hexis) De outro a razatildeo do ethos iraacute exprimir-se na forma de uma teoria do existir e do agir em comum e se apresentaraacute como doutrina da lei justa (politeia) O ethos eacute entatildeo conceptualizado fundamentalmente como costume A ciecircncia da politeia ou a Poliacutetica eacute assim a outra face da Eacutetica (VAZ 2000
p135)
Portanto a eacutetica pretende orientar as relaccedilotildees humanas ordenando as
accedilotildees para o bem comum
33
Voltaremos a falar sobre o assunto quando tratarmos da Justiccedila como Virtude
36
[] as virtudes natildeo encontram seu lugar na vida do indiviacuteduo mas tambeacutem na vida da cidade e que o indiviacuteduo soacute eacute de fato inteligiacutevel como um politikon zocircon
Esse uacuteltimo comentaacuterio sugere que um modo de elucidar o relacionamento entre as virtudes e a moralidade das leis eacute pensar no que consistiria em qualquer eacutepoca fundar uma comunidade para realizar um projeto comum realizar algum bem reconhecido como bem comum por todos os participantes do projeto (MACINTYRE 2001 p 256-257)
Estabelecida a relaccedilatildeo entre a eacutetica e o direito devemos agora procurar os
fundamentos da eacutetica aristoteacutelica para entatildeo verificarmos o comportamento das
virtudes da Prudecircncia da Justiccedila e da Equidade no acircmbito da justiccedila aristoteacutelica
31 Eacutetica a Nicocircmaco
Na forma que comporta o tiacutetulo deste item passaremos a tratar algumas
questotildees pertinentes ao conteuacutedo da obra Eacutetica a Nicocircmaco a fim de contextualizar
o objeto deste trabalho
Os principais escritos de Aristoacuteteles sobre eacutetica que chegaram a noacutes satildeo
Eacutetica a Nicocircmaco Eacutetica a Eudemo e a Eacutetica Maior esta uacuteltima tambeacutem conhecida
como Magna Moraacutelia Os escritos sobre eacutetica em especial a Eacutetica a Nicocircmaco e a
Eacutetica a Eudemo comportam caracteriacutesticas de notas tomadas por disciacutepulos tendo
por base os ensinamentos passados pelo Estagirita (RUSSELL 2001 p 109)
Por ser uma obra mais amplamente aceita tomaremos a Eacutetica a Nicocircmaco
como principal referecircncia aristoteacutelica para a Eacutetica das Virtudes sem contudo
ignorar algum detalhe que possa elucidar aspectos pertinentes agrave nossa pretensatildeo e
presente nas outras duas obras citadas Nesse sentido comenta Eduardo Bittar
A Ethica Nicomachea recebeu amplo tratamento devido ao interesse que desperta dos modernos comentadores da obra o mesmo natildeo sucede com as duas outras obras dedicadas agrave temaacutetica Aliaacutes a trilogia natildeo parece gerar uniformidade no corpo dos eruditos pois a recepccedilatildeo de uma (EE ou MM) ou de ambas (EE e MM) natildeo tem sido paciacutefica questionando-se natildeo soacute acerca da pertinecircncia e da originalidade destas obras mas tambeacutem acerca da cumulaccedilatildeo tautoloacutegica de escritos para o tratamento de um mesmo problema o que seria assimeacutetrico na obra aristoteacutelica onde parece ser a regra a existecircncia de uma uacutenica obra para
37
a investigaccedilatildeo de uma problemaacutetica determinada (BITTAR 2003 p992)
A Eacutetica a Nicocircmaco inicia-se traccedilando questionamentos acerca do que seja
o bem Parte-se da ideia de que o indiviacuteduo suas accedilotildees e escolhas estatildeo voltadas
a um bem Este bem eacute aquilo a que todas as coisas possuem certa tendecircncia
Assim o fim de todas as accedilotildees humanas eacute o sumo bem (EN I 1 1094a) O
conhecimento deste fim conduz agrave determinaccedilatildeo da ciecircncia cujo bem supremo eacute o
objeto
Essa ciecircncia cujo estudo caberaacute agrave Eacutetica eacute a ciecircncia mestra isto eacute a
Poliacutetica As accedilotildees por si mesmas boas e justas podem admitir uma ampla variedade
de opiniotildees e neste sentido podem ter sua existecircncia devida agraves convenccedilotildees e natildeo
naturalmente Daiacute portanto constituem objeto da poliacutetica Assim visa-se a accedilatildeo do
bem mas o seu conhecimento natildeo eacute proveitoso a todos Agravequeles que desejam e
agem conforme um princiacutepio racional isso seraacute uacutetil por outro lado natildeo teraacute utilidade
para o jovem sem experiecircncias dos fatos da vida o qual segue tatildeo somente suas
paixotildees (ENI 3 1095a)
Essa interessante passagem revela ser o objeto das deliberaccedilotildees da poacutelis
temas como o ldquobomrdquo e o ldquojustordquo Aristoacuteteles natildeo ignora o fato de que o bom e o justo
admitem uma gama de opiniotildees por isso tais temas estatildeo na pauta das
convenccedilotildees
Aristoacuteteles argumenta que o sumo bem o bem perseguido por todos natildeo
pode ser o prazer a honra ou a riqueza Sobre o prazer argumenta que natildeo pode
se identificar com o sumo bem pois o prazer e o gozo satildeo proacuteprios agrave vida levada
pelos animais inferiores34
34
Interessante nota do tradutor quando Aristoacuteteles justifica a conduta de tais pessoas por se
espelhares em pessoas de alta posiccedilatildeo como Sardanaacutepalo De acordo com a nota de nuacutemero 08 ldquoSardanaacutepalo monarca assiacuterio sem consistecircncia histoacuterica de caraacuteter miacutetico O sofista tardio Ateneu de Naucraacutetis (circa 215 AD) atriui uma espeacutecie de maacutexima a Sardanaacutepalo que eacute esthie pine paize os talla touumltouuml ouumlk axia touuml apokrotematos (esthie pine paize os talla touumltouuml ouumlk axia touuml
apokrotematos) ou seja ldquoCome bebe diverte-te visto que tudo o mais natildeo vale um estalo dos dedosrdquo lhe atribui tambeacutem um trecho de um desabafo que assim finaliza kein ekho oss efagon kai efuumlbrisa kai met eroacutetos terpn epathon ta de polla kai olbia panta leluumltaiefagon kai efuumlbrisa kai met eroacutetos terpn epathon ta de polla kai olbia panta leluumltai) quer dizer ldquoeu tenho o que comi e ainda os voluptuosos atos de ultraje e amor carnal que realizei e experimentei ao passo que minha riqueza se foirdquo (BINI 2009 p 42)
38
Ora se todo o conhecimento e todo o trabalho visam a algum bem pode-se
afirmar que o fim seraacute a felicidade (RUSSELL 2001 p127) ndash objeto final da vida
fruto de atividade conforme a mais alta de todas as formas de excelecircncia (EN X 7
1177a)
Destarte faz-se necessaacuterio buscar o bem e conhecer o que ele eacute pois a
finalidade para tudo que se faz eacute o bem A vida ativa que possui um princiacutepio
racional eacute a melhor funccedilatildeo do homem Os bens satildeo as atividades da alma e
portanto parece que a felicidade se identifica com a virtude Por conseguinte agrave
virtude cabe a atividade virtuosa Entretanto o sumo bem estaacute em ato uma vez que
pode haver um estado de acircnimo sem gerar resultado positivo
[] pois pode existir o estado de espiacuterito sem que ele produza qualquer
resultado bom como no caso de uma pessoa adormecida ou inativa por
outra razatildeo mas natildeo pode ocorrer o mesmo com a atividade conforme agrave
excelecircncia de qualquer maneira ela se manifestaraacute e bem Da mesma
forma que nos jogos oliacutempicos os coroados natildeo satildeo os homens mais
fortes e belos e sim os que competem (alguns destes seratildeo os
vitoriosos) quem age conquista e justamente as coisas boas da vida
(EN I 8 1099a)
De acordo com Aristoacuteteles a mais apraziacutevel melhor e mais nobre coisa do
mundo eacute a felicidade pois a felicidade eacute uma atividade da alma de acordo com a
virtude e natildeo sendo necessariamente esta mesma felicidade a riqueza prazer ou
honra e outros mais Constata-se assim que estes bens exteriores satildeo necessaacuterios
agrave felicidade uma vez que natildeo se podem realizar atos nobres sem os meios (EN I
8 1099b)
Questiona-se se a felicidade eacute adquirida atraveacutes da aprendizagem do
haacutebito ou se eacute uma daacutediva da Providecircncia Divina ou eacute simples produto do acaso35
Sendo a felicidade a melhor coisa do mundo entatildeo seguramente seraacute uma daacutediva
divina ainda que resulte da virtude pela aprendizagem ou adestramento Portanto
natildeo se deve confiar ao simples acaso aquilo que eacute o melhor (EN I 9 1099b)
Esse ponto sem duacutevida eacute o convite agrave accedilatildeo humana e a admissatildeo do que
denominamos fracasso da Providecircncia Uma vez que ao homem em sua condiccedilatildeo
35
Voltaremos a este ponto quando tratarmos das virtudes morais e intelectuais
39
de mortal e natildeo-Deus natildeo eacute permitido se dar ao luxo de esperar uma soluccedilatildeo vinda
dos ceacuteus Pelo contraacuterio o melhor emprego que ele pode fazer eacute agir modificando e
adaptando seus desejos e possibilidades
Sobre as virtudes afirma o Filoacutesofo que existem as virtudes intelectuais as
que resultam do ensino e necessitam de experiecircncia e tempo e as virtudes morais
as quais satildeo adquiridas atraveacutes do haacutebito e pelo exerciacutecio como neste exemplo
[] os homens se tornam construtores construindo e se tornam citaristas tocando ciacutetara da mesma forma tornamo-os justos praticando atos justos moderados agindo moderadamente e corajosos agindo corajosamente (EN II 1103b1)
Portanto eacute atraveacutes da praacutetica reiterada que pode o homem moldar seu
caraacuteter sendo o homem virtuoso resultado de uma vida guiada pela reta razatildeo
32 Partes da Alma
Como exposto eacute ldquoo bem a finalidade de todas as coisasrdquo (EN I 1 1094a1)
sendo a felicidade o bem maior a ser alcanccedilado Nesse sentido podemos afirmar
que a accedilatildeo eacute uma ldquocerta atividade da alma em conformidade com a virtude perfeitardquo
(EN I 13 1102a5)
Aristoacuteteles divide a alma em partes de acordo com as atividades inerentes a
cada uma A primeira divisatildeo comporta duas partes sendo uma irracional e outra
dotada de razatildeo
No que se refere agrave psicologia algum ensino corrente em discursos externos eacute satisfatoacuterio e pode ser aqui adotado a saber que a alma eacute bipartida uma parte sendo irracional e a outra capacitada de razatildeo (Se essas duas partes satildeo realmente distintas no sentido que o satildeo as partes do corpo ou de qualquer outro conjunto divisiacutevel ou se embora distinguiacuteveis no pensamento como duas satildeo na realidade inseparaacuteveis como os lados convexo e cocircncavo de uma curva eacute uma questatildeo que carece de importacircncia para o assunto em pauta) (EN I 13 1102a27)
40
A segunda divisatildeo refere-se agrave parte irracional da alma Tal parte comporta a
funccedilatildeo vegetativa comum a todas as coisas vivas que diz respeito agrave nutriccedilatildeo e ao
crescimento e agrave funccedilatildeo sensitiva Sobre a parte vegetativa eacute interessante notar que
natildeo obstante ser comum a todos os seres vivos sua virtude natildeo eacute caracteriacutestica
dos seres humanos Vejamos
Considera-se ademais que na parte irracional da alma haacute uma divisatildeo que parece ser comum a todas as coisas vivas possuindo natureza vegetativa Refiro-me agrave divisatildeo que produz nutriccedilatildeo e crescimento pois eacute forccediloso supormos que uma faculdade vital dessa natureza existe em todas as coisas que assimilam alimento inclusive os embriotildees sendo que a mesma faculdade estaacute presente tambeacutem no organismo totalmente desenvolvido (o que eacute mais razoaacutevel do que supor uma faculdade nutritiva distinta no uacuteltimo) A virtude dessa faculdade parece portanto ser comum a todas as coisas animadas e natildeo caracteriacutestica do ser humano pois acredita-se que essa faculdade ou parte da alma eacute mais atuante durante o sono [enquanto a bondade e a maldade se manifestam minimamente durante o sono] natildeo podendo se distinguir um homem bom de um mau (e daiacute o adaacutegio segundo o qual durante metade de suas vidas natildeo haacute diferenccedila entre o feliz e o infeliz) Isso constitui um efeito natural do fato de o sono ser uma cessaccedilatildeo das atividades da alma das quais depende sua bondade ou maldade ndash exceto pelo fato de ser possiacutevel em algum modesto grau certas impressotildees sensoriais atingirem a alma durante o sono fazendo com que os sonhos dos bons sejam melhores do que aqueles dos homens comuns (EN I 13 1102b11)
Aristoacuteteles afirma que a parte relacionada aos apetites e desejos em geral ndash
a alma sensitiva ndash comum aos animais participa de algum modo do princiacutepio
racional Portanto ainda que tal parte esteja alojada na parte irracional ela manteacutem
em certa medida relaccedilotildees com o princiacutepio racional ldquoPois aprovamos a razatildeo do
indiviacuteduo continente tanto quanto o incontinente e a parte de suas almas que eacute
racional porque os induz na senda correta e os exorta para o curso mais excelenterdquo
(EN I 13 1102b15)
Sobre essa relaccedilatildeo da parte irracional da alma com o princiacutepio racional
Aristoacuteteles afirma que ldquonatildeo se pode duvidar de que tambeacutem na alma existe um
elemento distinto do princiacutepio [racional] que a ele se opotildee e lhe resisterdquo (EN I 13
1102b20-25) Para resolver essa aparente contradiccedilatildeo Aristoacuteteles mantecircm sua
teacutecnica de citar exemplos invocando aqui o exemplo do homem continente
argumentando no sentido do paraacutegrafo supra que ldquoesse segundo elemento como
mencionamos participa do princiacutepio racional Ao menos no homem continente ele
41
acata o comando do princiacutepio e eacute incontestaacutevel que no homem moderado e
corajoso ele eacute ainda mais submisso considerando-se que todas as artes da
natureza desse [tipo de] homem se harmonizam com o princiacutepiordquo (EN I 13
1102b25-30)
Destarte parece ser o princiacutepio racional capaz em alguma medida de
acessar essa parte irracional ldquo[] esse princiacutepio racional eacute capaz de algum modo
de recorrer agrave parte irracional eacute indicado por nossa praacutetica de advertir pelo emprego
que fazemos da censura e da exortaccedilatildeo em geralrdquo (EN I 13 1102b30)
Tal parte eacute responsaacutevel pelo movimento36 essa conclusatildeo eacute desdobrada no
De Anima
Ao menos o seguinte estaacute claro desde de que tenhamos a imaginaccedilatildeo na conta de uma espeacutecie de intelecccedilatildeo haacute duas fontes do movimento local nomeadamente o desejo e o intelecto [] A conclusatildeo eacute que estes dois satildeo fontes do movimento local o intelecto e o desejo entendendo eu aqui o intelecto que calcula ou raciocina em vista de um objetivo isto eacute o intelecto praacutetico o qual difere do intelecto teoacuterico (especulativo) em funccedilatildeo do caraacuteter de seu fim Por sua vez o desejo constantemente persegue um objetivo sendo que o proacuteprio objeto do desejo torna-se princiacutepio do intelecto praacutetico e o ponto final do processo de raciocinar constitui o ponto de partida da accedilatildeo (DA III 10 433a10-20)
Dessa forma tanto a parte irracional quanto a alma como um todo eacute dupla
Sendo que sua parte vegetativa natildeo toma parte do princiacutepio racional a outra
poreacutem que compreende os apetites e o desejo em geral participa de certo modo
do princiacutepio racional sendo obediente e submissa a ele que eacute o sentido que
emprestamos ao acatamento do ldquoracionalrdquo quando falamos em dar atenccedilatildeo ao
proacuteprio pai ou aos proacuteprios amigos e natildeo aquele que atribuiacutemos ao ldquoracionalrdquo nas
matemaacuteticas (EN I 13 1102b30)
Ora a virtude tambeacutem eacute diferenciada em consonacircncia com essa divisatildeo da alma Algumas formas de virtude satildeo chamadas de virtudes intelectuais e outras de virtudes morais A sabedoria e o entendimento e a prudecircncia satildeo virtudes intelectuais a generosidade e a temperanccedila satildeo virtudes morais Ao descrevermos o caraacuteter moral de algueacutem natildeo
36
Vide o item 22 Movimento da potecircncia para o ato
42
dizemos que se trata de algueacutem saacutebio ou capaz de entendimento mas que eacute uma pessoa moderada ou soacutebria Mas um homem saacutebio tambeacutem eacute louvado por sua disposiccedilatildeo e chamamos de virtudes as disposiccedilotildees dignas de louvor (EN I 13 1103a5)
Aristoacuteteles apresenta a parte racional da alma como dotada de duas
faculdades a faculdade cientiacutefica e a faculdade calculadora (EN VI 1 1139a15)
A primeira parte eacute dita ldquocientiacuteficardquo (epistemonikoacuten) enquanto a segunda ldquocalculadorardquo (logistikoacuten) Eacute evidente que na primeira entram todas as ciecircncias teoreacuteticas seja a matemaacutetica cujos objetos satildeo necessaacuterios seja a fiacutesica e a metafiacutesica cujos objetos tecircm ao menos princiacutepios necessaacuterios mas nela entram tambeacutem as ciecircncias praacuteticas ndash cujos objetos isto eacute os bens tecircm princiacutepios como vimos ao menos ldquogeralmenterdquo necessaacuterios ndash que portanto do ponto de vista epistemoloacutegico satildeo equiparaacuteveis agravequelas que tecircm princiacutepios necessaacuterios Na segunda entram ao contraacuterio todas as atividades que tecircm por objeto realidades independentes da ldquodeliberaccedilatildeordquo humana porque ndash diz Aristoacuteteles ndash deliberar e calcular satildeo a mesma coisa e ningueacutem delibera sobre as coisas que natildeo podem ser diferentemente (BERTI 1998 p 144)
Sobre essa divisatildeo explica Giovanni Reale
E posto que sejam duas as partes ou funccedilotildees da alma racional uma a que conhece as coisas contingentes e variaacuteveis e outra que conhece as coisas necessaacuterias e imutaacuteveis eacute natural que haja uma perfeiccedilatildeo ou virtude da primeira funccedilatildeo e uma perfeiccedilatildeo ou virtude da segunda funccedilatildeo da alma racional Estas duas partes da alma racional satildeo basicamente a razatildeo praacutetica e a razatildeo teoreacutetica e as respectivas virtudes satildeo as formas perfeitas com as quais se apreende a verdade praacutetica e a teoreacutetica (REALE 1985 p 106 traduccedilatildeo nossa)
37
Conforme vimos existe uma relaccedilatildeo entre a parte racional e a parte
irracional A parte apetitiva da alma irracional tem certa subordinaccedilatildeo agrave parte
37
Y puesto que son dos las partes o funciones del alma racional una la que conoce las cosas contingentes y variables la otra la que conoce las cosas necesarias e inmutables es natural que haya una perfeccioacuten o virtud de la primera funcioacuten y una perfeccioacuten o virtud de la segunda funcioacuten del alma racional Estas dos partes del alma racional son baacutesicamente la razoacuten praacutectica y la razoacuten teoreacutetica y las respectivas ldquovirtudesrdquo son las formas perfectas con las que se aprehende la verdad praacutectica y la teoreacutetica (REALE 1985 p 106 traduccedilatildeo nossa)
43
racional De acordo com o Estagirita eacute a faculdade calculadora que controla os
desejos proacuteprios da parte apetitiva vejamos
A virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo que diz respeito agrave escolha e escolha eacute desejo deliberado conclui-se que se a escolha deve ser boa tanto a razatildeo precisa ser verdadeira quanto o desejo correto e que o desejo tem que buscar as mesmas coisas afirmadas pela razatildeo Estamos nos referindo aqui ao raciociacutenio praacutetico e ao atingimento da verdade relativamente agrave accedilatildeo no que tange ao pensamento especulativo que natildeo concerne agrave accedilatildeo ou produccedilatildeo a funccedilatildeo certa e errada consiste na consecuccedilatildeo da verdade e falsidade respectivamente O atingir da verdade eacute efetivamente a funccedilatildeo de toda parte do intelecto mas a da inteligecircncia praacutetica eacute o atingimento da verdade correspondente ao correto desejo (EN VI 2 1139a25 negrito nosso)
Compreendidas as partes da alma na forma pertinente agrave eacutetica aristoteacutelica
torna-se necessaacuterio o estudo das virtudes em conformidade com tais partes
33 Virtudes Morais
O livro II da Eacutetica a Nicocircmaco faz uma exposiccedilatildeo geral acerca das virtudes
morais Essas virtudes pertencem ao acircmbito da parte irracional da alma mais
especificamente na parte dos desejos e apetites
De acordo com o Estagirita ldquoa virtude moral ou eacutetica eacute o produto do haacutebito
[] E portanto fica evidente que nenhuma das virtudes morais eacute em noacutes
engendrada pela natureza uma vez que nenhuma propriedade natural eacute passiacutevel de
ser alterada pelo haacutebitordquo (EN II 1 1103a15)
Em seu Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Tomaacutes de Aquino esclarece que
Em contraste a virtude eacute gerada pelo costume moral A Virtude moral estaacute na parte apetitiva portanto eacute uma inclinaccedilatildeo para algo apetitivo Esta inclinaccedilatildeo ou eacute por natureza que volta para o que estaacute em conformidade ou eacute pelo haacutebito que se volta para a natureza Assim o nome Virtude moral eacute retirado do haacutebitual com poucas alteraccedilotildees Porque escrever em grego ethos com uma letra e breve designa o caraacuteter ou virtude moral Mas ythos escrito com a letra g que eacute como
44
uma larga h que significa costume Como tambeacutem entre noacutes a palavra moral as vezes significa costumes e as vezes designa o que pertence ao viacutecio ou a virtude (AQUINO 2010 p130 traduccedilatildeo nossa)
38
Aristoacuteteles compara por analogia as virtudes morais com as artes por
ambas serem adquiridas pela reiteraccedilatildeo dos atos que lhes satildeo proacuteprios Admite a
impossibilidade de prescrever com exatidatildeo tais atos contudo descreve uma
foacutermula que pretende direcionar os atos no acircmbito das virtudes Tal foacutermula consiste
em agir de acordo com a justa razatildeo39
Dessa forma o muacutesico se torna bom muacutesico executando reiteradamente
sua(s) especialidade(s) musical (ais) assim como os homens se tornam justos
praticando atos de justos e corajosos realizando atos corajosos
Nessa altura do livro II Aristoacuteteles revela uma das funccedilotildees da lei educar
Vejamos suas palavras ldquo[] legisladores tornam os cidadatildeos bons treinando-os em
haacutebitos de accedilatildeo correta o que eacute a meta de toda a legislaccedilatildeo que se falhar no seu
atingimento seraacute um fracasso [tarefa] no que se distingue a boa constituiccedilatildeo da
maacuterdquo (EN II 1 1103b1-5)
Mas no que consistiria essa boa educaccedilatildeo A resposta dada eacute gostar e natildeo
gostar das coisas apropriadas Assim eacute desenvolvida a teoria geral das virtudes ou
doutrina da mediania pois assim como acontece no que diz respeito agrave sauacutede
acontece com as virtudes ambas satildeo afetadas pelo excesso e pela deficiecircncia
Uma indicaccedilatildeo de nossas disposiccedilotildees eacute fornecida pelo prazer ou pela dor que acompanha nossas accedilotildees []
Na verdade a virtude moral concerne a prazeres e dores pois o prazer nos leva a realizar as accedilotildees vis e a dor nos leva a deixar de realizar accedilotildees nobres []
Ademais se as virtudes tecircm a ver com accedilotildees e paixotildees e toda paixatildeo e toda accedilatildeo satildeo acompanhadas por prazer e dor isso constitui uma demonstraccedilatildeo adicional de que a virtude diz respeito ao prazer e agrave dor[]
38
En cambio la virtude se genera por la costumbre moral La virtud moral estaacute en la parte apetitiva por eso supone cierta inclinacioacuten a algo apetecible Esta inclinacioacuten o es por naturaleza la cual inclina a lo que le es conforme o es por la costumbre que se vuelca hacia la naturaleza Por eso el nombre de la virtude moral estaacute tomado de la costumbre con poco cambio Porque em grego ethos escrito com a letra e breve designa el caraacutecter o virtude moral Pero ythos escrito com la g que es
como uma N larga significa costumbre como tambieacuten entre nosotros la palabra moral a veces significa costumbre y a veces designa lo que pertenece al vicio o a la virtud (AQUINO 2010 p130) 39
Conforme formulaccedilatildeo tomista recta ratio agibilium
45
Mas os seres humanos se corrompem atraveacutes de prazeres e dores a saber quer perseguindo e evitando os prazeres e dores equiacutevocos quer os perseguindo e evitando no momento equiacutevoco ou da maneira equiacutevoca ou em um dos meios equiacutevocos [] (EN II 3 1104b)
Destarte a virtude moral eacute a qualidade segundo a qual se age da ldquomelhor
formardquo40 em relaccedilatildeo aos prazeres e dores sendo o viacutecio o oposto As virtudes satildeo
definidas por Aristoacuteteles como ldquoa disposiccedilatildeo que o torna um bom ser humano e
tambeacutem o que o faraacute desempenhar sua funccedilatildeo bemrdquo (EN II 6 1106a22)
Nesse sentindo a virtude natildeo eacute nem uma paixatildeo nem uma faculdade mas
um estado de caraacuteter O que a torna distinta eacute o fato de consistir na disposiccedilatildeo de
escolher o meio-termo
331 Doutrina da Mediania
Os atos praticados pelos homens em suas muacuteltiplas relaccedilotildees eacute que os
tornam justos ou injustos Explica o Filoacutesofo41 que eacute necessaacuterio cultivar o haacutebito de
praticar atos virtuosos desde a juventude Nesse sentido
[] a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia e pelo excesso tal como vemos acontecer com o vigor e a sauacutede (temos de explicar o invisiacutevel recorrendo a evidencia do visiacutevel) os exerciacutecios excessivos ou deficientes destroem igualmente o vigor e de maneira idecircntica as bebidas e os alimentos de mais ou menos destroem a sauacutede ao passo que seu uso em proporccedilotildees adequadas produz aumenta e conserva aquele e esta (EN II 2 1104a)
Sendo a virtude mais exata do que toda e qualquer arte e por possuir como
atributo o meio-termo o excesso ou a falta podem ser-lhe destrutivos Tanto o
excesso quanto a carecircncia satildeo graves formas de erro Entretanto o meio-termo
mostra-se como uma forma digna de louvor fazendo da virtude uma mediania Mas
ressalte-se que se trata de meio termo entre dois viacutecios Contudo nem toda accedilatildeo e
40
Vide o item 2331 Trageacutedia 41
Como Aristoacuteteles era referenciado por Tomaacutes de Aquino
46
nem toda paixatildeo admitem meio termo eacute o que observa ROSS (1957 p 231)42
ldquoPorque a mediania eacute num certo sentido um extremo []rdquo (EN II 6 1107a25)
Portanto do excesso ou da falta natildeo existe meio termo
[] se a virtude como a natureza eacute mais exata e melhor do que qualquer forma de arte se concluiraacute que a virtude deteacutem a qualidade de visar a mediania Eu me refiro agrave virtude moral
43 pois esta concerne agraves
paixotildees e accedilotildees nas quais se pode dispor de excesso ou deficiecircncia ou da devida mediania Por exemplo algueacutem pode estar receoso ou confiante sentir desejo ira ou compaixatildeo e experimentar prazer e dor em geral seja em excesso ou deficientemente e em ambos os casos indevidamente ao passo que experimentar esses sentimentos na ocasiatildeo certa oportunamente em relaccedilatildeo agraves pessoas certas para o propoacutesito certo e da maneira certa corresponde a sentir a medida melhor deles a qual eacute a quantidade meacutedia sendo que a melhor medida ou quantidade eacute evidentemente a marca da virtude Analogamente pode haver excesso deficiecircncia e a devida mediania nas accedilotildees (EN II 6 1106b20)
A virtude eacute entatildeo uma disposiccedilatildeo estabelecida que leva agrave escolha de accedilotildees
e paixotildees e que consiste essencialmente na observacircncia da mediania relativa a noacutes
sendo isso determinado pela razatildeo isto eacute como o homem prudente o determina
(EN II 6 1107a) As conclusotildees do Livro II apontam o quatildeo eacute difiacutecil atingir o meio-
termo uma vez que o mesmo natildeo eacute apreendido pelo raciociacutenio e sim pela
percepccedilatildeo Ele aponta trecircs regras como orientaccedilatildeo
A primeira regra eacute evitar o extremo que mais se opotildee agrave mediania Para natildeo
abandonar o estilo o Estagirita cita o conselho de Calipso personagem de a
Odisseacuteia ldquoPilota o navio o mantendo longe do borrifo e das vagasrdquo E continua
explicando ldquoPois dos dois extremos um deles constitui erro mais grave do que o
outro Por conseguinte porquanto atingir a mediania eacute extremamente difiacutecil a
42 Aristoteles luego nos previene contra un equivoco posible senalando queentre los sentimientos y
las acciones que se pueden nombrar no todos admiten un justo medio los nombres mismos de algunos de ellos tales como la desverguenza la envidia el adulterio el robo el asesinato implican su maldad Es decir que estos nombres no se aplican a los sentimientos moralmente indiferentes que son asunto de la virtud sino a un exceso vituperable de estos sentimientos no a las acciones que se relacionan con cierta clase de objeto sino a las acciones inicuas que se relacionan con este objeto La desverguenza es una incorrecta falta de verguenza el robo es un incorrecto exceso en la adquisicion de la riqueza El justo medio se opone al exceso y al defecto y por consecuencia no hay justo medio del exceso o del defecto como no existe exceso o defecto del justo medio (ROSS 1957 p 231)
43
Nota do tradutor de nuacutemero 48 Ou seja a teoria da mediania natildeo eacute aplicaacutevel agraves virtudes intelectuais (BINI 2009 p 77)
47
segunda melhor forma de navegar como indica o proveacuterbio eacute assumir o menor dos
males e a melhor maneira de fazecirc-lo seraacute a maneira que descrevemosrdquo (EN II 9
1109a30)
A segunda regra valendo-se do exemplo do carpinteiro em seu meacutetodo para
endireitar a madeira empenada consiste em observar os erros a que estamos mais
propensos de acordo com quais prazeres e dores experimentamos De posse de tal
observaccedilatildeo devemo-nos afastar do erro costumeiro estabelecendo assim um curso
mediano (EN II 9 1109b1)
Por fim o terceiro exemplo invocando Helena personagem de a Iliacuteada de
Homero
ldquo[] temos que em tudo que estar mais do que qualquer outra coisa de guarda contra o que eacute prazeroso e contra o prazer porque quando este estaacute em julgamento natildeo somos juiacutezes imparciais O procedimento correto eacute portanto encarar o prazer como os anciotildees do povo encaravam Helena e empregar (ou repetir) o discurso que dirigiram a ela em todas as ocasiotildees pois se assim o descartarmos teremos menos probabilidade de nos extraviar (EN II 9 1109b1)
Portanto podemos chamar de accedilatildeo virtuosa aquela que eacute direcionada pela
mediania que se projeta na melhor quantidade medida ocasiatildeo oportunidade e em
relaccedilatildeo agraves pessoas certas O acircmbito da accedilatildeo comporta uma biparticcedilatildeo que deve ser
considerada em se tratando de virtude a saber accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria
34 Accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria
Embora a virtude esteja relacionada com paixotildees e accedilotildees um sentimento ou
uma accedilatildeo pode ser algo voluntaacuterio ou involuntaacuterio Louvor e censura agraves paixotildees e
accedilotildees voluntaacuterias e perdatildeo e piedade agraves involuntaacuterias (EN III 1 1109b30)
Para Aristoacuteteles voluntaacuterio eacute o ato de escolher Mas eacute preciso fazer certas
ressalvas neste sentido Ora o que se pratica sob o impulso do momento pode ser
voluntaacuterio mas natildeo escolhido pois a escolha natildeo eacute comum aos seres irracionais
Escolher envolve um princiacutepio racional bem como o pensamento O objeto da
48
escolha apresenta-se ao alcance e o mesmo eacute desejado apoacutes uma deliberaccedilatildeo
Assim escolha eacute um desejo deliberado (EN III 1112a - 1113a) O fim eacute aquilo que
se deseja jaacute o meio eacute aquilo que eacute deliberado e escolhido e assim as accedilotildees devem
concordar com as escolhas e estas devem ser voluntaacuterias Com isso afirma o
Estagirita que a virtude estaacute ao poder de escolha do homem porque o exerciacutecio da
virtude diz respeito aos meios Aquilo cujo motor estaacute no agente que possui
conhecimento das circunstacircncias particulares do ato parece ser o que eacute voluntaacuterio
Involuntaacuterio segundo Aristoacuteteles eacute o que acontece sob compulsatildeo e
ignoracircncia em que o princiacutepio motor encontra-se externo ao indiviacuteduo e para o que
em nada contribui ou influi o indiviacuteduo que age ou sente a paixatildeo (EN III 1111b)
Assim atos encontram-se no homem e devem estar em seu poder e serem
voluntaacuterios Atraveacutes do exerciacutecio de atividades sobre os objetos particulares formam-
se as disposiccedilotildees de caraacuteter
[] um homem doente natildeo ficaraacute bom desta maneira embora possa acontecer que sua doenccedila seja voluntaacuteria no sentido de ser o resultado de sua vida de dissipaccedilatildeo e de sua desobediecircncia aos meacutedicos Neste caso de iniacutecio teria dependido dele natildeo ficar doente mas natildeo agora que ele desperdiccedilou sua oportunidade da mesma forma que depois de atirar uma pedra natildeo eacute possiacutevel fazecirc-la voltar atraacutes natildeo obstante a pessoa que atirou a pedra eacute responsaacutevel por havecirc-la apanhado e lanccedilado pois a origem do ato estava nesta pessoa (EN III 5 1114a)
Constata-se vaacuterias vezes a afirmaccedilatildeo da responsabilidade do homem diante
de suas accedilotildees Eacute importante observarmos assim como Pierre Aubenque (2008) o
fez que o homem natildeo eacute responsaacutevel por sua vontade mas por suas escolhas de
acordo com Aubenque (2008 p 222) ldquoNa perspectiva de Aristoacuteteles e dos gregos
a vontade natildeo eacute responsaacutevel pelo mal Ao contraacuterio o mal eacute o responsaacutevel pela maacute
qualidade da vontade [] Pois um homem nunca quer o mal enquanto tal pode
querer mal o bem e querendo o bem em geral escolher cada vez mais o menor
bemrdquo
49
Duas pressuposiccedilotildees fundamentam como princiacutepio da responsabilidade A
realidade eacute contingente44 e depende do indiviacuteduo que age Para que uma accedilatildeo seja
considerada virtuosa devem estar presentes estas duas exigecircncias uma vez que
[] onde estaacute ao nosso alcance agir tambeacutem estaacute ano nosso alcance
natildeo agir e onde somos capazes de dizer ldquonatildeordquo tambeacutem somos capazes
de dizer ldquosimrdquo consequumlentemente se agir quando agir eacute nobilitante
estaacute ao nosso alcance natildeo agir que seraacute ignoacutebil tambeacutem estaraacute ao
nosso alcance Se estaacute ao nosso alcance entatildeo praticar atos
nobilitantes ou ignoacutebeis e se isto era o que significava ser bom ou mau
estaacute igualmente ao nosso alcance ser moralmente excelentes ou
deficientes (EN III 5 1113b)
Para Aristoacuteteles o caraacuteter eacute resultado dos atos humanos conforme
argumenta a Eacutetica a Nicocircmaco Assim agindo desta ou daquela maneira adquire-se
uma ou outra disposiccedilatildeo eacutetica A realizaccedilatildeo de coisas justas resultaraacute em bons
haacutebitos e tornaraacute o caraacuteter justo (EN II 4 1105b) Ao agir de modo intemperante
adquire o haacutebito de ceder tatildeo somente aos desejos que conduz agrave intemperanccedila O
caraacuteter eacute assim o produto dos atos de seu autor e natildeo algo advindo da educaccedilatildeo
da condiccedilatildeo social ou da natureza
Assim os viacutecios e as virtudes possuem significado moral e natildeo satildeo somente
traccedilos psicoloacutegicos adquiridos Isto se daacute uma vez que pertencem ao campo daquilo
que depende do homem Ao agir o ser humano natildeo faz algo ao qual teraacute que
responder mais tarde como tambeacutem estaacute escolhendo o que seraacute Por isso ao agir
contra a regra que conhece estaacute consentindo em se tornar cego agrave lei e em natildeo
saber mais onde estaacute o bem Neste sentido a lei pune com maior severidade o
intemperante por ele deliberar em vista de um fim mau mesmo que possua a
capacidade de deliberar para o fim beniacutefico A ignoracircncia da regra pelo adulto
acresce a culpabilidade quando eacute produto de uma vida intemperante (EN III 5
1114a)
[] somente uma pessoa totalmente insensata poderia deixar de perceber que as disposiccedilotildees de nosso caraacuteter satildeo o resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injusto ou um homem que age
44
Veja o segundo capiacutetulo Contingecircncia
50
concupiscentimente natildeo deseje ser concupiscente Mas se uma pessoa pratica accedilotildees que a torna injusta sem ser ignorante ela seraacute injusta voluntariamente Disto natildeo resulta poreacutem que se ela quiser deixaraacute de
ser injusta e passaraacute a ser justa da mesma forma (EN III 5 1114a)
Ao abordar a responsabilidade humana Aristoacuteteles destaca que as
disposiccedilotildees satildeo voluntaacuterias de modos distintos
[] as accedilotildees e disposiccedilotildees natildeo satildeo voluntaacuterias de maneira idecircntica pois somos senhores de nossas accedilotildees do principio ao fim se conhecemos os fatos particulares mas embora tenhamos o controle da fase inicial de nossas disposiccedilotildees a evoluccedilatildeo de cada estaacutegio das mesmas natildeo eacute perceptiacutevel tal como acontece nas doenccedilas mas jaacute que a maneira de agir dependia de noacutes as disposiccedilotildees morais satildeo voluntaacuterias (EN III 5 1114a30)
O ato depende do ser humano em sua inteligibilidade porque o ser humano
possui um domiacutenio sobre as consequecircncias diretas do mesmo Por outro lado o ser
humano natildeo pode antecipar todas as consequecircncias advindas indiretamente dos
haacutebitos que ele assume O caraacuteter eacute imputaacutevel ao ser humano uma vez que agindo
ele tambeacutem estaacute forjando os seus haacutebitos
Embora o ser humano seja senhor de seus atos a cada instante ele natildeo
pode modificar o seu caraacuteter quando bem quer sendo que isso equivaleria a dizer
que o ser humano natildeo tem caraacuteter Assim apoacutes certo tempo o caraacuteter parece que
ficou tatildeo marcado que se torna impossiacutevel transformaacute-lo Resulta entatildeo o problema
da perfectibilidade do caraacuteter (EN III 5 1114a)
Ora cada ser humano eacute autor de seus atos enquanto eacute agente o que se
determina a um fim Sendo a escolha intencional dirigida pelo caraacuteter pode-se
afirmar que o ser o homem eacute causa de seus atos enquanto agente que consente
Assim de fato natildeo eacute o seu caraacuteter o determinante de sua decisatildeo (EN III 4 1113a)
Para Aristoacuteteles o caraacuteter comeccedila sua formaccedilatildeo durante a infacircncia Segundo
ele o jovem age para formar o seu caraacuteter enquanto que o adulto age a partir de seu
caraacuteter tendo a intenccedilatildeo de ser feliz Entretanto como os fins visados dependem do
caraacuteter as decisotildees do adulto apresentam-se como determinadas pelo seu
condicionamento educativo o qual ocorreu na infacircncia
51
O Estagirita afirma que o caraacuteter do jovem o qual eacute formado a partir dos
haacutebitos e da educaccedilatildeo que recebe ainda natildeo eacute nem vicioso e nem virtuoso Pode-
se prefigurar a virtude futura pelo amor ao belo pela justiccedila do gosto ou a nobreza
das paixotildees Tanto a virtude quanto o viacutecio somente se desenvolvem atraveacutes dos
atos dos quais somente o adulto eacute capaz uma vez que se realizam notadamente no
acircmbito da vida ciacutevica e militar A entrada na vida adulta quando satildeo tomadas as
primeiras decisotildees eacute quando se realizam os primeiros atos verdadeiros Natildeo se
pode negar entatildeo a influecircncia do caraacuteter adquirido pela educaccedilatildeo Assim o homem
comeccedila ao entrar na vida adulta a realizar alguma coisa que propotildee e visa fins ou
seja ele se torna o verdadeiro autor de seus atos e eacute responsaacutevel por aquilo que faz
e por aquilo que eacute Nesse momento eacute pela docilidade ou pela rebeliatildeo que o jovem
adquire boas ou maacutes disposiccedilotildees diante das paixotildees Por outro lado o adulto
adquire viacutecio ou virtude ou seja um caraacuteter moral atraveacutes de suas decisotildees
Assim com o passar do tempo um haacutebito tende a se repetir isto eacute ele
amplifica o que se comeccedilou melhorando sempre mais ou dirigindo-se cada vez mais
agrave decadecircncia Para o homem se tornar bom a exigecircncia eacutetica estaria reservada
agravequeles que tivessem comeccedilado bem aos demais soacute seria possiacutevel constatar seus
viacutecios e incoerecircncias Desta forma pode-se concluir que a eacutetica aristoteacutelica estaria
reservada somente a uns eleitos bem educados e aos outros ela condenaria a um
encadeamento fatiacutedico resultado de uma maacute educaccedilatildeo e consequente praacutetica
reiterada de viacutecios
Tendo revisitado as virtudes pertinentes agrave parte irracional da alma
passaremos a estudar as virtudes pertinentes agrave parte racional da alma que satildeo as
virtudes intelectuais
35 Virtudes Intelectuais
As virtudes como vimos satildeo de dois tipos a intelectual e a moral As
virtudes intelectuais satildeo majoritariamente tanto produzidas quanto ampliadas pela
instruccedilatildeo o que por certo exige experiecircncia e tempo (EN II 1 1103a15) As
virtudes intelectuais satildeo o objeto do livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco
52
Ao abordar tais virtudes Aristoacuteteles reapresenta a foacutermula da reta razatildeo ldquoJaacute
vimos que eacute certo escolher a mediania e evitar o excesso e a deficiecircncia e que a
mediania eacute fixada pela justa razatildeordquo (EN 1138b20)
Toda via estando algueacutem de posse dessa verdade isso natildeo o tornaraacute mais saacutebio do que antes queremos dizer por exemplo que tal pessoa natildeo saberaacute que medicamentos tomar pelo mero fato de lhe terem dito para tomar tudo que a arte a medicina ou um doutor em medicina lhe indicar Consequentemente no que toca agraves qualidades da alma igualmente natildeo bastaraacute meramente estabelecer a verdade da foacutermula acima Teremos aleacutem disso que definir com exatidatildeo qual eacute a justa razatildeo e qual eacute o padratildeo que a determina (EN 1138b20)
Aristoacuteteles define as partes da alma atribuindo agrave parte racional duas
faculdades a saber a faculdade cientiacutefica e a faculdade calculadora Enquanto o
objeto da faculdade cientiacutefica eacute aquele que se ocupa em especular as coisas cujos
primeiros princiacutepios satildeo invariaacuteveis a faculdade calculadora tem por objeto as
coisas que admitem variaccedilatildeo A definiccedilatildeo de caacutelculo eacute dada por Aristoacuteteles ldquoeacute o
mesmo que deliberaccedilatildeo e esta jamais eacute exercida sobre coisas invariaacuteveis
[entendemos] que a parte calculadora constitui uma parte independente da metade
irracional da alma (EN VI 1 1139a15)
Destaca trecircs elementos existentes na alma que controlam a accedilatildeo e o
atingimento da verdade a sensaccedilatildeo o intelecto e o desejo A sensaccedilatildeo natildeo gera
accedilatildeo pois a accedilatildeo eacute proacutepria ao homem enquanto a sensaccedilatildeo estaacute presente tanto na
alma do homem quanto na alma do animal Assim os movimentos dos animais satildeo
gerados pelos estiacutemulos sensoriais enquanto os movimentos proacuteprios ao homem a
praacutexis satildeo uma accedilatildeo guiada pelo intelecto e pelo desejo45
O pensamento especulativo desenvolvido pela faculdade cientiacutefica natildeo diz
respeito agrave accedilatildeo e ou agrave produccedilatildeo Ele se ocupa em elaborar juiacutezos de verdadeiro ou
falso
45
Conforme jaacute salientamos no capiacutetulo 2 O Movimento
53
Por outro lado o raciociacutenio praacutetico46 diz respeito ao que devemos buscar e
evitar no sentido de orientar as virtudes morais Eacute a partir dele que realizamos as
escolas entendendo por escolha o desejo deliberado (BERTI 1998 p 117)
Por conseguinte a escolha pode ser qualificada como o pensamento
relacionado ao desejo ou o desejo relacionado ao pensamento e o ser humano
como gerador da accedilatildeo eacute uma uniatildeo de desejo e intelecto (EN 1139b5)
46
Sobre razatildeo praacutetica vide LACERDA (2005)
54
4 PRUDEcircNCIA
41 Conceito
Aristoacuteteles na passagem 1140b do Livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco define a
prudecircncia como uma capacidade verdadeira e racional de agir sobre as coisas que
satildeo boas ou maacutes para o homem
De acordo com Enrico Berti a phroacutenesis ldquopara Aristoacuteteles eacute uma virtude ou
melhor a mais elevada virtude da parte calculadora da alma racional isto eacute a razatildeo
praacutetica Ela com efeito eacute por ele concebida como a capacidade de deliberar bem
ou seja de calcular os meios necessaacuterios para alcanccedilar um fim bomrdquo (BERTI 1998
p 146)
Por sua vez Tomaacutes de Aquino discorre sobre a prudecircncia na parte II-II
questotildees 47 a 56 em sua obra de referecircncia a Suma Teoloacutegica Tomaacutes eacute haacutebil na
leitura aristoteacutelica da prudecircncia e pode-se encontrar em sua obra uma foacutermula
sinteacutetica do que ele entende por prudecircncia reta razatildeo aplicada ao agir47 Portanto eacute
com fundamento em questotildees de razatildeo praacutetica que Tomaacutes define a prudecircncia ldquoE
este eacute o papel da prudecircncia aplicar os princiacutepios universais agraves conclusotildees
particulares do acircmbito do agir E assim natildeo compete agrave prudecircncia indicar o fim das
virtudes morais mas somente lidar com os meios para atingir o fimrdquo (II-II 476
negrito nosso)
Pierre Aubenque (2008) sonda pormenorizadamente os vaacuterios aspectos
apresentados pelo Estagirita do que seria a prudecircncia e de sua leitura agraves obras de
Aristoacuteteles extraiacutemos
[] a definiccedilatildeo dada por Aristoacuteteles no livro VI da Eacutetica Nicomaqueacuteia apresenta um caraacuteter demasiado elaborado ou se se prefere demasiado teacutecnico para poder conhecer a mesma fortuna Ali a prudecircncia eacute definida como uma ldquodisposiccedilatildeo praacutetica acompanhada de regra verdadeira concernente ao que eacute bom ou mau para o homemrdquo Conforme ao meacutetodo familiar a Aristoacuteteles essa definiccedilatildeo eacute apresentada como resultado de um processo ao mesmo tempo indutivo e regressivo Parte-se do uso comum constata-se que eacute chamado phronimos o
homem capaz de deliberaccedilatildeo (AUBENQUE 2008 p 60-61)
47 recta ratio agibilium
55
Ainda nessa direccedilatildeo Aubenque (2008) a distingue das outras virtudes em
particular das virtudes morais
[] enquanto a virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo (praacutetica) que concerne agrave
escolha ) a prudecircncia eacute uma disposiccedilatildeo praacutetica que
concerne agrave regra da escolha Natildeo se trata da retidatildeo da accedilatildeo mas da correccedilatildeo do criteacuterio razatildeo pela qual a prudecircncia eacute uma disposiccedilatildeo praacutetica acompanhada de uma regra verdadeira (AUBENQUE 2008 p61)
Alasdair Macintyre (2001) discorre sobre a prudecircncia como sendo a virtude
intelectual sem a qual natildeo se pode exercer nenhuma virtude de caraacuteter48
A virtude principal eacute portanto phronecircsis Phronecircsis assim como socircphrosunecirc eacute originariamente um termo aristocraacutetico de louvor Caracteriza algueacutem que sabe o que lhe eacute devido que se orgulha de reivindicar seus direitos Significa de maneira mais geneacuterica algueacutem que sabe como julgar em casos especiacuteficos Phronecircsis eacute a virtude intelectual mas eacute a virtude intelectual sem a qual natildeo se pode exercer nenhuma das virtudes de caraacuteter (MACINTYRE 2001 p15)
Javier Hervada (2008) em sua obra Liccedilotildees propedecircuticas de filosofia do
direito destaca o caraacuteter praacutetico e a inclinaccedilatildeo que a prudecircncia tem para com o
direito salientando suas caracteriacutesticas claacutessicas
A prudecircncia eacute de fato uma virtude intelectual ou dianoeacutetica a virtude do correto agir moral o que estaacute relacionado com a justiccedila que tambeacutem eacute virtude moral Isso salienta que a atividade juriacutedica depende de duas virtudes que satildeo a base do ofiacutecio de jurista a justiccedila e a prudecircncia (HERVADA 2008 p 58)
48
A interpretaccedilatildeo de MacIntyre sobre a singularidade da prudecircncia parece-nos extraiacuteda tanto de Tomaacutes quando se refere a ela como matildee das virtudes (III Sent d 33 q 2 a 5 c) quanto de Aristoacuteteles que nos ensina em sua Eacutetica a Nicocircmaco ldquoA prudecircncia proporciona todas as virtudes Ela fornece os meios de produzi-lasrdquo (VI 1145a)
56
Pierre Aubenque (2008) parece desembaraccedilar de forma haacutebil o que seria a
prudecircncia despindo dos textos de Aristoacuteteles a compreensatildeo de uma das questotildees
mais iacutentimas da filosofia grega e eacute nesse sentido que ele desenvolve sua conclusatildeo
O Estagirita encontraria aiacute a velha inquietude grega diante da imprevisibilidade do futuro e a precariedade das coisas humanas Se ele foi moderno isso se deve ao fato de natildeo ter querido dominar o acaso com preces Se a accedilatildeo sobre o acaso natildeo podia ser cientificamente determinada ndash visto que ldquodo acaso natildeo haacute ciecircnciardquo ndash natildeo seria tampouco improvisada e sem princiacutepios Natildeo retornaremos agrave soluccedilatildeo que ele deu a este problema e nomeou prudecircncia (AUBENQUE 2008 p 278)
A adoccedilatildeo do traacutegico em face ao fracasso da Providecircncia ou em outras
palavras uma vez que o futuro eacute indeterminado a escolha entre dois males faz-se
procurando o menor entre eles A accedilatildeo nesse sentido compreendendo natildeo poder
alcanccedilar o bem em absoluto o faz da melhor maneira que pode
42 Prudecircncia e liberdade
De acordo com Aubenque (2008 p 149) a liberdade do homem natildeo estaacute
ligada agrave contingecircncia muito pelo contraacuterio se opotildee a ela A metaacutefora da casa
trazida no livro da Metafiacutesica retrata uma situaccedilatildeo onde o universo eacute comparado a
uma casa onde os homens livres representam os astros porque ldquolhes eacute menos liacutecito
agir ao acasordquo tendo suas accedilotildees orientadas por regras enquanto ldquoos escravos e os
animaisrdquo cujas ldquoaccedilotildees satildeo raramente ordenadas ao bem comum mas ao contraacuterio
satildeo frequentemente abandonadas ao acasordquo representam o mundo sublunar Nessa
acepccedilatildeo os escravos eacute que satildeo ldquolivresrdquo no sentido moderno do termo porque natildeo
sabem o que fazem ldquoenquanto a liberdade do homem grego e sua perfeiccedilatildeo se
medem pela maior ou menor determinaccedilatildeo de suas accedilotildeesrdquo
A prudecircncia eacute o substituto propriamente humano de uma Providecircncia que falha [] A prudecircncia eacute tambeacutem a previdecircncia que preserva os indiviacuteduos dos perigos [] ela eacute tambeacutem virtude na medida em que realiza no mundo sublunar um pouco do Bem que a divindade foi impotente para introduzir aqui [] Mas se o mundo fosse inteiramente
57
perfeito natildeo restaria nada a fazer ora eacute no fazer ou agir e natildeo na imobilidade estranhamente comum agraves plantas e a Deus que o homem
realiza sua sua excelecircncia propriamente humana Saber nos desviaria do fazer dispensando-nos de escolher (AUBENQUE 2008 p 155)
A prudecircncia seraacute a virtude dos homens voltados agrave deliberaccedilatildeo num mundo
obscuro e difiacutecil cujo inacabamento eacute um convite ao que decerto eacute preciso nomear
como sua liberdade A prudecircncia diraacute a Magna Moralia eacute uma ldquodisposiccedilatildeo para
escolher e agir concernindo ao que estaacute em nosso poder fazer e natildeo fazerrdquo
(AUBENQUE 2008 p 155)
Por isso homens como Peacutericles satildeo julgados prudentes porque possuem uma faculdade de discernir que coisas satildeo boas para mesmos e para os seres humanos E eacute isso que coincide com nosso entendimento do que seja algueacutem conhecedor da administraccedilatildeo domeacutestica ou
49 administraccedilatildeo
poliacuteticardquo (EN VI 5 1140B10)
Santo Tomaacutes em seus Comentaacuterios agrave Eacutetica a Nicocircmaco conclui acerca da
prudecircncia ldquoDe que la prudecircncia no sea ciencia haacutebito demonstrativo acerca de lo
necesario y no sea arte haacutebito productivo con razoacuten se segue que la prudencia es
un haacutebito activo con razoacuten verdadera que no versa sobre lo producio que estaacute fuera
del hombre sino sobre el bien y el mal del hombre mesmordquo (AQUINO 2010 p 363-
364)50
43 Arte e Prudecircncia
Conforme explicado na definiccedilatildeo tomista enquanto a atividade proacutepria agrave arte
eacute a produccedilatildeo a atividade proacutepria agrave prudecircncia eacute a accedilatildeo
49
εἶναι δὲ τοιούτους ἡγούμεθα τοὺς οἰκονομικοὺς καὶ τοὺς πολιτικούς Algueacutem conhecedor da
administraccedilatildeo domeacutestica e poliacutetica [(EN VI 5 1140B10) texto original disponiacutevel no site PERSEUS DIGITAL LIBRARY traduccedilatildeo nossa] 50
De que a prudecircncia natildeo eacute ciecircncia que procura mostrar o que eacute necessaacuterio e tambeacutem natildeo eacute arte o haacutebito produtivo com o emprego da razatildeo segue que a prudecircncia eacute um habito segundo o qual se age com a razatildeo verdadeira que natildeo versa sobre o produto que estaacute fora de homem mas sobre o bem e o mal do proacuteprio homem (AQUINO 2010 p 363-364)
58
Destarte para o Estagirita a arte eacute o conhecimento teacutecnico de como fazer
as coisas Enquanto a prudecircncia eacute o conhecimento de como agir para assegurar os
fins da vida do ser humano Vejamos o texto de Aristoacuteteles
Toda arte se ocupa em trazer alguma coisa agrave existecircncia e dedicar-se a uma arte significa estudar como trazer ao existir uma coisa que eacute possiacutevel existir ou natildeo a causa eficiente da qual estando no criador e natildeo na coisa criada pois a arte natildeo se ocupa com coisas que existem ou passam a existir (vecircm a ser) necessariamente ou pela natureza uma vez que essas coisas possuem suas causas eficientes em si mesmas Mas como o criar e o fazer satildeo distintos infere-se que a arte sendo concernente ao criar natildeo concerne ao fazer E num certo sentido a arte se ocupa dos mesmos objetivos da sorte como diz Agaton A sorte eacute aficionada da arte e a arte da sorte (EN VI 4 1140a10-20)
Para Enrico Berti a arte
[] concerne a objetos que podem ser diferentemente do que satildeo ou seja contingentes por isso estaacute entre as virtudes da parte ldquocalculadorardquo da razatildeo a mesma que compreende a phroacutenesis A diferenccedila entre arte e phroacutenesis repousa no fato de que esta uacuteltima ocupa-se como vimos do que pode ser ldquopraticadordquo (to praktoacuten) das accedilotildees enquanto a arte se ocupa da produccedilatildeo de objetos A distinccedilatildeo entre ldquoaccedilatildeordquo (praacutexis) e ldquoproduccedilatildeordquo (poiacuteesis) eacute dada por Aristoacuteteles quase sempre por evidente e consiste no fato de que a accedilatildeo natildeo produz nenhum objeto diferente dela mesma isto eacute termina em si que eacute o produto (BERTI 1998 p 157)
Portanto a arte eacute como dissemos uma qualidade racional concernente ao
criar de acordo com um processo verdadeiro de raciociacutenio Em oposiccedilatildeo a lacuna
da arte eacute uma qualidade racional concernente ao criar que envolve um processo
falso de raciociacutenio Ambas lidam com aquilo que admite variaccedilatildeo (EN VI 4
1140a10-20)
44 Deliberaccedilatildeo e Escolha
Ao definir a accedilatildeo voluntaacuteria Aristoacuteteles diz que a escolha pertence ao seu
gecircnero mas que no entanto nem todo ato voluntaacuterio eacute escolhido O que ele
pretende com essa argumentaccedilatildeo e evidenciar a diferenccedila entre a escolha e a
deliberaccedilatildeo
59
Nesse sentido esclarece que a deliberaccedilatildeo eacute ldquo[] empregada em mateacuterias
que embora sujeitas a regras que geralmente satildeo para o bem satildeo incertas quanto
aos seus resultados e consequecircncias ou nas quais resultados e consequecircncias satildeo
indeterminados []rdquo (EN III 3 1112b10)
Aristoacuteteles em vaacuterias passagens insiste em indicar um ponto especiacutefico
acerca da deliberaccedilatildeo Segundo ele natildeo deliberamos a respeito dos fins mas a
respeito dos meios Daiacute a analogia ldquo[No exerciacutecio de uma arte] a questatildeo num
momento eacute saber quais ferramentas usar e num outro como usaacute-las similarmente
em outras esferas temos que considerar por vezes que meios empregar e outras
vezes como exatamente determinarmos os meios que devem ser empregadordquo (EN
III 3 1112b30) Dessa forma Aristoacuteteles afirma que o ser humano eacute princiacutepio-
fundamento de suas proacuteprias accedilotildees e que eacute proacutepria agrave deliberaccedilatildeo apontar as accedilotildees
possiacuteveis de serem realizadas pelo agente sendo que todas as accedilotildees tecircm em vista
algum fim que natildeo elas mesmas
Portanto natildeo se delibera sobre o que natildeo estaacute em nosso poder A
deliberaccedilatildeo estaacute condicionada ao que podemos Por isso mais uma vez afirmamos
que a accedilatildeo virtuosa dirige-se para o melhor possiacutevel Isso eacute esclarecido por Pierre
Aubenque (2008) quando aborda a trageacutedia grega
ldquoA trageacutedia grega natildeo dizia outra coisa e antes dela a poesia de Hesiacuteodo ou Teoacutenis Por mais que Aristoacuteteles tenha restringido o traacutegico natildeo o eliminou inteiramente eacute a distacircncia que separa oi polloi de
pantej o wj epi to polu de aei o melhor possiacutevel do bem absoluto[]rdquo
(2008 p 138)
Destarte de posse da deliberaccedilatildeo cujo objeto estaacute sob nosso poder poder-
se-aacute escolher Pois a escolha eacute o desejo deliberado de coisas em nosso poder
Aristoacuteteles (1113a13) estabelece a seguinte ordem ldquoprimeiramente deliberamos em
seguida selecionamos e finalmente fixamos nosso desejo de acordo com o
resultado de nossa deliberaccedilatildeordquo
Sobre a escolha Aristoacuteteles esclarece que ela natildeo eacute o mesmo que a
vontade pois enquanto a vontade visa o fim a escolha concerne aos meios Neste
60
sentido a escolha se opotildee agrave vontade afinal ao homem eacute permitido querer o bem
mas escolher o melhor possiacutevel51
Aristoacuteteles apresenta pela primeira vez o problema da dissonacircncia possiacutevel entre o fim e os meios e enfatiza ao mesmo tempo que a qualidade da accedilatildeo eacute medida natildeo somente pela retidatildeo da intenccedilatildeo (como acreditava Platatildeo) mas tambeacutem pela conveniecircncia dos meios (AUBENQUE 2008 p 218)
Uma outra importante observaccedilatildeo eacute feita por Aubenque (2008 p 227) Ele
encontra no texto de Aristoacuteteles duas foacutermulas comuns agrave prudecircncia A primeira eacute
esta que acabamos de descrever qual seja a capacidade de escolha judiciosa dos
meios
A segunda foacutermula eacute pertinente agrave capacidade de aplicar o universal ao
particular O que vemos eacute que o prudente deve ser capaz de operar com uma com
duas ou com ambas se eacute que eacute possiacutevel estabelecer fundada diferenccedila entre elas
que natildeo seja meramente teoacuterica
Natildeo haacute portanto nenhuma ldquocontradiccedilatildeordquo entre as duas descriccedilotildees da accedilatildeo dadas por Aristoacuteteles Pois uma vez reconhecido o particular se o universal a ele se aplica necessariamente eacute preciso inicialmente reconhecer o particular o que se deduz silogisticamente eacute a propriedade do particular de ser desejaacutevel mas natildeo a existecircncia do particular Natildeo eacute difiacutecil saber que eacute preciso ser corajoso nem decidir que o que foi reconhecido como corajoso dever ser cumprido Mas onde estaacute a coragem hic et nunc Eacute na bravata ou no sangue frio Na aventura ou na abstenccedilatildeo No combate sem esperanccedila ou na fuga que garante o futuro Eacute na infinita distacircncia entre os princiacutepios demasiado gerais e a variedade inacessiacutevel ao pensamento racional A distacircncia eacute igualmente infinita entre a eficaacutecia real do meio e a realizaccedilatildeo esperada do fim Eacute este infinito que Aristoacuteteles pede que a prudecircncia preencha por mediaccedilotildees laboriosas e incertas Mas esse infinito este aoristou que
afeta uma mateacuteria sempre mais ou menos reativa agrave determinaccedilatildeo e em geral um mundo que nunca acolhe inteiramente a ordem noacutes jaacute conhecemos o seu nome a contingecircncia (AUBENQUE 2008 p 228)
Antes de encerrar este assunto parece oportuno levantarmos uma questatildeo
que segue o acima exposto Pierre Aubenque (2008) na introduccedilatildeo ao capiacutetulo
intitulado Antropologia da prudecircncia nos fornece uma importante justificativa acerca
51
Sobre a responsabilidade pela accedilatildeo vide o item 35 Accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria
61
da ordem temaacutetica proposta no presente trabalho A questatildeo que pretendemos
levantar eacute por que tomamos como ponto de partida a contingecircncia
Mostramos ateacute aqui que a prudecircncia soacute teria razatildeo de ser num mundo contingente Ora se a encaramos natildeo mais de um ponto de vista coacutesmico mas humano a contingecircncia nos aparece como abertura agrave atividade dos homens ao mesmo tempo arriscada e eficaz Sem a contingecircncia a accedilatildeo dos homens natildeo seria apenas impossiacutevel seria tambeacutem inuacutetil Eacute tal accedilatildeo ao mesmo tempo permitida e requerida pela contingecircncia em suas relaccedilotildees com a prudecircncia que guia que se trata de analisar agora
Natildeo surpreenderaacute que encontremos aqui em termos ldquosubjetivosrdquo o que tentamos extrair acima em termos ldquoobjetivosrdquo A teoria da contingecircncia e a da accedilatildeo reta satildeo apenas o direito e o avesso de uma mesma doutrina eacute a indeterminaccedilatildeo dos futuros que faz do homem princiacutepio o inacabamento do mundo eacute o nascimento do homem (AUBENQUE 2008 p 173 negrito nosso)
Assim a deliberaccedilatildeo eacute pertinente agravequilo que podemos modificar Seja qual
for o meacutetodo adotado o problema a ser enfrentado eacute o mesmo as incontaacuteveis
possibilidades a que estamos submetidos sendo a escolha o ato intriacutenseco agrave
deliberaccedilatildeo o momento oportuno para escolher o melhor possiacutevel
De acordo com Hermann (2007) a prudecircncia proposta por Aristoacuteteles na
Eacutetica a Nicocircmaco eacute mais precisamente
[] a possibilidade de articular a relaccedilatildeo entre o universal e o particular ou ainda a aplicaccedilatildeo de princiacutepios gerais em casos particulares Inserindo no mundo o comportamento eacutetico interpotildee a individualidade de um eu entretecido em formas histoacutericas de vida com um ethos comum Assim o agir moral natildeo estaacute voltado para um bem transcendente mas realizado em accedilotildees concretas (HERMANN 2007 p 366)
Assim com o escopo de compreendermos melhor passaremos a analisar a
figura do prudente
45 O prudente
A virtude da prudecircncia eacute tratada no capiacutetulo 5 do livro VI da Eacutetica a
Nicocircmaco Aristoacuteteles para explicaacute-la toma emprestado exemplo de pessoas
62
consideradas prudentes De acordo com ele eacute caracteriacutestico do homem prudente
ser capaz de bem deliberar sobre o que eacute bom e proveitoso para si mesmo natildeo de
maneira particular mas sobre o que eacute bom e vantajoso para o bem-estar em geral
Assim o homem prudente em geral eacute aquele capaz de bem deliberar de modo
geral
Poderiacuteamos afirmar que o sistema moral de Aristoacuteteles estaacute centrado em
sua maior parte no indiviacuteduo Aleacutem dos dois livros VIII e IX que satildeo dedicados agrave
amizade pouco se diz sobre ela na totalidade da eacutetica Pouco se sugere que o ser
humano deve ter um interesse caloroso e pessoal pelas outras pessoas e o
altruiacutesmo parece-nos ausente Mesmo sobre a amizade encontram-se traccedilos de um
ponto de vista deveras egoiacutesta jaacute que a mesma natildeo constitui uma benevolecircncia
mas exige certa reciprocidade
Mas tais afirmaccedilotildees natildeo parecem prosperar Sua eacutetica esta pautada no
conceito de felicidade Tal conceito soacute pode ser compreendido no acircmbito da poacutelis e
em relaccedilatildeo ao outro Ou seja para sermos felizes devemos optar por uma vida
virtuosa e para uma vida virtuosa devemos praticar as virtudes torna-se evidente
que sua teoria natildeo soacute considera mas tem como fundamento a relaccedilatildeo muacutetua entre
os homens ou melhor entre os animais poliacuteticos Vejamos a explicaccedilatildeo de Tomaacutes
de Aquino [] compete agrave razatildeo deliberar acertadamente julgar e preceituar naquilo
que se chega ao fim devido Estaacute claro que a prudecircncia visa natildeo somente o bem
particular de um soacute mas tambeacutem o bem comum da multidatildeo (AQUINO 2004 p
602) Estabelecendo uma relaccedilatildeo com a virtude moral expotildee
[] como toda virtude moral que se refere ao bem comum se chama justiccedila legal assim a prudecircncia referida ao bem comum se chama ldquopoliacuteticardquo de modo que a poliacutetica se relaciona com a justiccedila legal da mesma forma que a prudecircncia simplesmente dita agrave virtude moral (AQUINO 2004 p 602)
Portanto podemos concluir que o prudente eacute aquele que sabe o que eacute bom
para si de um modo geral e tambeacutem para sua comunidade Tambeacutem podemos
afirmar que ele bem delibera Assim na linguagem atual prudente tem um certo
sabor daquele que calcula com vistas no interesse proacuteprio (MACINTYRE 1991 p
63
80) e consequentemente da comunidade Resta-nos entatildeo examinar sobre o que o
prudente delibera
Vimos que natildeo eacute objeto de deliberaccedilatildeo as coisas das quais natildeo podemos
deliberar ou seja as coisas que estatildeo no acircmbito do necessaacuterio Conclui-se disto
que
[] a prudecircncia (sabedoria praacutetica) natildeo eacute o mesmo que conhecimento cientiacutefico como tatildeo pouco pode ser o mesmo que a arte Natildeo eacute conhecimento cientiacutefico porque assuntos relacionados agrave conduta admitem mutaccedilatildeo e natildeo pode ser arte porque o criar e o fazer satildeo genericamente diferentes posto que o criar visa um fim que eacute distinto do ato de criar enquanto no fazer o fim natildeo pode ser outro senatildeo o proacuteprio ato ou seja fazer bem eacute em si mesmo um fim Insiste-se portanto que a prudecircncia eacute uma qualidade racional de consecuccedilatildeo da verdade que concerne agrave accedilatildeo relativamente a coisas que satildeo boas e maacutes aos seres humanos (EN VI 5 1140b1-5)
Na sequecircncia Aristoacuteteles cita Peacutericles como sendo um exemplo de homem
prudente Em suas palavras ldquoPor ter a capacidade de discernir que coisas satildeo boas
para si mesmo e para os seres humanos E eacute isso que coincide com nosso
entendimento do que seja algueacutem conhecedor da administraccedilatildeo domeacutestica ou
administraccedilatildeo poliacuteticardquo (EN VI 5 1140b1-5)
Como modelo de phroacutenimos (quem possui a phroacutenesis) isto eacute de ldquosaacutebiordquo ou ldquoprudenterdquo Aristoacuteteles indica Peacutericles (1140 b 8) o grande liacuteder poliacutetico que governa Atenas certamente natildeo um filoacutesofo de profissatildeo com o qual discutir de igual para igual talvez para dissentir Aristoacuteteles indica Soacutecrates (13 1144 b 18 28) certamente natildeo um liacuteder poliacutetico nem nunca um governador de sua cidade tambeacutem daiacute resulta a diferenccedila por ele estabelecida entre a phroacutenesis e a filosofia praacutetica
Com mais forte razatildeo a phroacutenesis difere da sabedoria a primeira efetivamente ocupa-se o homem isto eacute das realidades humanas enquanto a segunda como vimos ocupa-se das realidades mais elevadas que o homem das realidades divinas Se o modelo da phroacutenesis como vimos eacute Peacutericles os modelos de sabedoria indicados por Aristoacuteteles satildeo Tales e Anaxaacutegoras alhures considerados fiacutesicos mas aqui apresentados como investigadores de realidades divinas (os princiacutepios supremos) (BERTI 1998 p 146-147)
Em contraste agrave filosofia platocircnica o Estagirita aborda a temaacutetica acerca da
sabedoria teoacuteretica e da sabedoria praacutetica A sabedoria teoreacutetica estaacute em grau de
64
superioridade em relaccedilatildeo agrave praacutetica sendo que ao menos uma parte do valor desta
uacuteltima consiste na ajuda que daacute a produccedilatildeo da primeira
Entatildeo a felicidade chega apenas ateacute onde haacute contemplaccedilatildeo e as pessoas mais capazes de exercerem a atividade contemplativa fruem mais intensamente a felicidade natildeo como um acessoacuterio da contemplaccedilatildeo mas como algo inerente a ela pois a contemplaccedilatildeo eacute preciosa por si mesma A felicidade portanto deve ser alguma forma de contemplaccedilatildeo
Mas sendo criaturas humanas necessitamos tambeacutem de bem estar exterior pois nossa natureza natildeo eacute suficiente por si mesma para o exerciacutecio da atividade contemplativa Nosso corpo deve ser tambeacutem saudaacutevel e deve receber boa alimentaccedilatildeo e outros cuidados Nem por isso poreacutem devemos pensar que as nossas pessoas necessitam de muitas e grandes coisas para ser felizes simplesmente porque natildeo podem ser sumamente felizes sem bens exteriores com efeito a auto-suficiecircncia e a accedilatildeo natildeo pressupotildeem excessos e podemos praticar accedilotildees nobilitantes sem dominar a terra e o mar porquanto mesmo com recursos moderados eacute possiacutevel agir de conformidade com excelecircncia (isto eacute bastante evidente pois se pensa que os simples cidadatildeos praticam atos meritoacuterios natildeo menos que os detentores do poder ndash na verdade os praticam ainda mais) basta dispormos de recursos moderados pois a vida das pessoas que agem de conformidade com a excelecircncia seraacute feliz (EN X 9 1179a1)
Destarte a contemplaccedilatildeo constitui o ingrediente fundamental da felicidade
para Aristoacuteteles Eacute esta a melhor atividade de que o homem eacute capaz haja vista que
eacute o exerciacutecio do melhor do indiviacuteduo sobre o melhor de todos os objetos os quais
satildeo eternos e imutaacuteveis Por consistir naquilo que o homem pode fazer com maior
continuidade acarretar prazer puro e estaacutevel ser menos dependente dos outros
homens Em suma consiste no gecircnero de vida que se deve atribuir aos deuses jaacute
que seria absurdo atribuir-lhes vida moral
Entretanto a vida contemplativa eacute extremamente elevada para o homem
Enquanto seres humanos compostos de corpo de alma irracional e de razatildeo
homem natildeo a podem vivecirc-la Hipoteticamente poderaacute vivecirc-la somente em virtude do
elemento divino presente nele Todavia o homem natildeo deve seguir aqueles que
afirmam que pelo homem ser homem deve limitar o seu pensamento agraves coisas
humanas Ora ldquona medida do possiacutevelrdquo o homem deve apoderar-se da vida eterna
vivendo a vida desta parte de si mesmo pois eacute esta que constitui a melhor e mais
verdadeira parte de si mesmo O homem que vive assim eacute feliz
65
Entatildeo a phroacutenesis no sentido jaacute plenamente definido de sabedoria praacutetica iraacute constituir-se como virtude dianoeacutetica entre as virtudes eacuteticas de um lado e a filosofia (ou sophiacutea) como haacutebito contemplativo de outro A phroacutenesis aristoteacutelica encontra assim o seu lugar no centro dessa estrutura de uma teoria da praxis como teoria praacutetica que seraacute finalmente a alternativa aristoteacutelica agrave ontologia platocircnica do Bem (VAZ 2000 p 102)
Ainda sobre o prudente podemos extrair dos valiosos ensinamentos de
Henrique C de Lima Vaz
A phroacutenesis como virtude da razatildeo reta (orthoacutes loacutegos) ou da razatildeo que iraacute estabelecer a meacutedia razoaacutevel entre os extremos para as virtudes eacuteticas eacute a primeira das virtudes dianoeacuteticas e assinala justamente a presenccedila do logos regulador e ordenador no fluxo contingente das accedilotildees singulares Ao apontar no homem saacutebio (phroacutenimos) a norma existencial e concreta da phroacutenesis Aristoacuteteles torna patente na realidade viva as ldquocoisas humanasrdquo a dialeacutetica que se estabelece entre o impliacutecito vivido do ethos e o expliacutecito vivido pensado da Eacutetica ou ciecircncia praacutetica Essa dialeacutetica vem romper exatamente com o ciacuterculo vicioso que parece opor logo nos primeiros passos do pensamento eacutetico a praacutetica e a definiccedilatildeo das virtudes e do qual nasce a aporia inicial dos chamados diaacutelogos ldquosocraacuteticosrdquo de Platatildeo a praacutetica da virtude verdadeira conteacutem o saber da sua definiccedilatildeo e a definiccedilatildeo da virtude natildeo eacute senatildeo a abstraccedilatildeo da sua praacutetica Eacute necessaacuterio praticar a virtude para poder defini-la e eacute necessaacuterio defini-la para bem pratica-la A Eacutetica como ciecircncia se propotildee justamente instaurar um tipo de reflexatildeo que permita a ruptura deste ciacuterculo entre o abstrato e o concreto estabelecendo um fundamento racional e uma medida para o agir (VAZ 2000 p 103-104 negrito nosso)
De acordo com Werner Jaeger a prudecircncia eacute a virtude que relaciona o
conhecimento mais elevado com as coisas da vida praacutetica
A phroacutenesis eacute o transformador que converte o conhecimento eterno de Deus no movimento eacutetico da vontade e o aplica agraves particularidades da praacutetica Na Eacutetica a Nicocircmaco eacute o ldquoestado de capacidade de trabalharrdquo e nenhum homem jamais atua sem ela O conhecimento filosoacutefico de Deus natildeo eacute sua condiccedilatildeo essencial
52 (JAEGER 1963 p 265 traduccedilatildeo
nossa)
52
La phroacutenesis es el transformador que convierte el conoci-miento del Dios eterno en el movimiento
eacutetico de la voluntad y lo aplica a los detalles de la praacutecticaEn la Etica Nicomaquea es el estado de capacidad de obrar y ninguacuten hombre actuacutea jamaacutes sin ella El conocimiento filosoacutefico de Dios ya no es su condicioacuten esencial (JAEGER 1963 p 275 traduccedilatildeo nossa)
66
Eacute desse hiato entre o universal e o particular que cuida o prudente Eacute ele
quem delibera sobre o momento as circunstacircncias e a maneira como a accedilatildeo deve
ser deflagrada para que possa ser considera virtuosa
Feita essa exposiccedilatildeo geral da eacutetica contingecircncia eacutetica das virtudes e
prudecircncia noacutes acreditamos ao menos em parte estar aptos a abordar um assunto
que assume papel central na filosofia grega a justiccedila
67
5 JUSTICcedilA COMO VIRTUDE
Abordar a justiccedila ndash ou qualquer outra virtude ndash no pensamento aristoteacutelico eacute
uma tarefa aacuterdua e sinuosa A coerecircncia do pensamento de Aristoacuteteles como um
todo e ao mesmo tempo a especificaccedilatildeo das particularidades de cada mateacuteria a ser
estudada daacute agrave abordagem uma dupla sensaccedilatildeo De um lado certa seguranccedila
relacionada ao fato de sua coerecircncia nos impulsionar ainda que de forma intuitiva
agraves significacircncias de seus dizeres Por outro lado a preocupaccedilatildeo com a seguranccedila
da informaccedilatildeo a ser tratada bem como com as alteraccedilotildees semacircnticas que tornam-
se significativas principalmente com a transiccedilatildeo para modernidade53
Eacute importante observarmos que o tratamento dado agrave justiccedila por Aristoacuteteles
emprega instrumentos pouco convencionais ateacute mesmo para a eacutepoca De acordo
com Eduardo C B Bittar (2005)
A siacutentese operada pelo pensador permitiu por meio de seus textos que se congregassem inuacutemeros elementos doutrinaacuterios reunidos ao longo dos seacuteculos pelos quais se espalharam os conhecimentos gregos anteriores a ele (preacute-socraacuteticos socratismo sofistas platonismo) Eacute da reuniatildeo das opiniotildees dos saacutebios da opiniatildeo do povo da experiecircncia praacutetica analisados e avaliados criticamente dentro da visatildeo de todo o problema (justiccedila da cidade justiccedila domeacutestica justiccedila senhorial) que surgiu uma concepccedilatildeo propriamente aristoteacutelica (BITTAR 2005 p 90-91)
Tal concepccedilatildeo daacute a justiccedila um caraacuteter eacutetico pois insere a mesma entre as
virtudes Dessa forma as regras gerais aplicadas agraves virtudes em particular satildeo
igualmente aplicadas agrave justiccedila Sendo a prudecircncia como mais tarde diria Tomaacutes de
Aquino genitrix virtut e auriga virtut54 parece-nos ser conceito aristoteacutelico de justiccedila
vitalmente ligado ao conceito de prudecircncia ao passo que a prudecircncia realiza suas
accedilotildees assim como a justiccedila no espaccedilo pertinente agrave accedilatildeo racional qual seja o
domiacutenio do contingente Assim esclarece Juacutelio Aguiar de Oliveira (2011)
53
Tema amplamente abordado em por MACINTYRE (2001) 54
Matildee da virtude (III Sent d 33 q 2 a 5 c) e guia da virtude (IV Sent d 17 q 2 a 2 dco) Traduccedilatildeo nossa
68
Na medida em que se trata de uma questatildeo referente agrave accedilatildeo humana sua atuaccedilatildeo se daacute no domiacutenio do contingente Eacute por isso que a virtude da justiccedila (como todas as outras virtudes eacuteticas) depende da virtude da prudecircncia Se a accedilatildeo humana se desenrolasse no domiacutenio do necessaacuterio os preceitos da lei natural poderiam ser deduzidos do primeiro princiacutepio por meio da ciecircncia (deduccedilatildeo matemaacutetica) No entanto uma vez que a accedilatildeo humana se aacute no domiacutenio do contingente a virtude necessaacuteria para a boa deliberaccedilatildeo eacute a virtude da prudecircncia (OLIVEIRA 2011 p121)
Portanto a justiccedila em sentido amplo eacute uma virtude que ldquo[] natildeo comporta
uma compreensatildeo geneacuterica e indiferente agraves qualidade especiacuteficas dos indiviacuteduos eacute
pelo contraacuterio sensiacutevel dentro das ambiccedilotildees teoacutericas de Aristoacuteteles agrave dimensatildeo
individualrdquo (BITTAR 2005 p 93) O conceito dado eacute o seguinte [] a justiccedila eacute a
virtude perfeita por ser ela a praacutetica da virtude perfeita aleacutem do que eacute perfeita num
grau especial porque seu possuidor pode praticar sua virtude dirigindo-a aos outros
e natildeo apenas sozinho [] (ENV 1 1129b30)
Nesse sentido Alexandre Travessoni Gomes em sua obra O fundamento da
validade do direito Kant e Kelsen conclui
A justiccedila soacute eacute possiacutevel numa relaccedilatildeo com o outro Aristoacuteteles chega mesmo a afirmar que dentre as virtudes somente a justiccedila eacute o bem do outro Tanto no sentido universal quanto no particular natildeo haacute justiccedila de um indiviacuteduo consigo mesmo visto que a justiccedila e a virtude que se relaciona com o nosso proacuteximo seja ele governante ou associado[]
Soacute haacute ato justo ou injusto uma vez que algueacutem o queira O que eacute justo ou injusto eacute caracterizado pela lei mas o ato justo ou injusto pressupotildee a vontade O ato injusto eacute portanto o ato voluntaacuterio em que se conhece tanto a pessoa a quem atine quanto o ato como instrumento de justiccedila ou injusticcedila (GOMES 2004 p 61)
Destarte eacute ato justo ou injusto eacute o ato possiacutevel voluntaacuterio e direcionado ao
semelhante
51 Justo e injusto
69
O livro V da Eacutetica a Nicocircmaco trata sobre a justiccedila De acordo com o estilo
de oposiccedilatildeo frequentemente empregado pelo Estagirita a noccedilatildeo de Justo eacute
contraposta agrave noccedilatildeo do injusto
Podemos sintetizar a anaacutelise inserta na passagem 1129b1-10 nos seguintes
termos O injusto eacute de duas espeacutecies injusto legal e injusto desigual
O injusto legal eacute aquele que transgride a lei em outras palavras aquele que
age orientado pela ilegalidade
O injusto desigual por sua vez eacute aquele que toma mais do que lhe eacute devido
Aristoacuteteles eacute muito preciso nesse trecho ao indicar que o injusto desigual eacute tambeacutem
aquele que toma a menor parte das coisas indesejadas Ou seja tomar tanto
demasiado as coisas boas quanto menos as coisas maacutes55
A noccedilatildeo de justo toma parte na argumentaccedilatildeo expondo por oacutebvio que o
justo igual (ou equitativo) eacute aquele que toma a parte que lhe eacute devida
O justo legal por seu turno eacute aquele que age de acordo com as leis Nesse
sentido eacute importante destacar o caraacuteter das leis no pensamento de Aristoacuteteles As
leis satildeo produzidas pelos legisladores de acordo com as virtudes portanto elas
orientam as accedilotildees reiterando o haacutebito e consequentemente educando para a
virtude Esse eacute o fim da atividade poliacutetica A felicidade de cada um em particular e da
poacutelis como um todo
Nesse sentido o termo justo eacute aplicado agrave qualquer coisa que possa produzir
e preservar a felicidade ou as partes componentes da felicidade da comunidade
poliacutetica
Aristoacuteteles destaca que existe uma relaccedilatildeo de gecircnero e espeacutecie entre o justo
legal e o justo igual sendo o justo legal o gecircnero da qual o justo igual eacute espeacutecie A
conclusatildeo eacute a seguinte Eacute possiacutevel ser injusto legal sem ser injusto igual mas natildeo eacute
possiacutevel ser injusto igual sem ser injusto legal
52 Justo universal
55
Parte-se do pressuposto de que as pessoas desejam as coisas boas
70
O justo universal eacute o gecircnero o sentido mais amplo que se pode atribuir ao
termo justo Pode-se dizer que a justiccedila universal consiste na observacircncia da lei no
que diz respeito agravequilo que eacute legiacutetimo e que vige para o bem da comunidade
Assim a define HOumlFF (2003)
A justiccedila como virtude completa denominada justiccedila universal (iustitia universalis) por Santo Tomaacutes de Aquino significa para Aristoacuteteles com vistas ao outro a virtude perfeita ainda mais reluzente do que a estrela vespertina e matutina Consiste na atitude de cumprir voluntariamente tudo o que a lei e os costumes exigem A justiccedila universal denota uma integridade abrangente Dela fazem parte eg tambeacutem as obras da coragem e da prudecircncia a que Aristoacuteteles no entanto alude modestamente apenas com interdiccedilotildees a coragem proiacutebe cometer adulteacuterio e tornar-se violento (HOumlFF 2003 p 24 e 25)
Eduardo Bittar (2005) observa que
A accedilatildeo que se vincula agrave legalidade obedece a uma norma que a todos e para o bem de todos eacute dirigida como tal essa accedilatildeo deve corresponder a um justo legal e a forma de justiccedila que lhe eacute por consequumlecircncia eacute aqui chamada justiccedila legal Aquele que observa os conteuacutedos legais pode ser chamado de justo nesse sentido O mesmo a contrariu sensu a respeito do injusto que lhe corresponde (BITTAR 2005 p 96)
Outro ponto que parece importante nas observaccedilotildees de Eduardo C Bittar eacute
acerca da funccedilatildeo do legislador de acordo com ele a produccedilatildeo normativa da poacutelis eacute
um exerciacutecio da prudecircncia Eacute o mesmo que encontramos na passagem 1141b25
Nessa passagem Aristoacuteteles divide a prudecircncia em duas espeacutecies uma relativa agraves
coisas particulares que recebe o nome de ciecircncia poliacutetica e outra relativa agraves coisas
concernentes ao Estado que nomina ciecircncia legislativa
[] pois as accedilotildees que nascem da virtude em geral satildeo fundamentalmente idecircnticas agraves accedilotildees que estatildeo de acordo com a lei uma vez que a lei prescreve a conduta que exibe as vaacuterias virtudes particulares e proiacutebe a conduta que exibe os vaacuterios viacutecios particulares
71
Igualmente as regras estabelecidas para a educaccedilatildeo particulares (EN V 2 1130b20-25)
A conclusatildeo eacute que a injusticcedila no sentido universal tange todas as coisas que
constituem a esfera da virtude ou seja que as leis prescrevem os comportamentos
virtuosos Mas eacute possiacutevel afirmar que existe algum ato que seja injusto e que natildeo
obstante esteja em conformidade com a virtude Por certo que natildeo Apenas o fato
de um ato ser injusto por si mesmo constitui uma violaccedilatildeo agrave virtude Pois ldquoNa
Justiccedila se encontra toda a Virtude somadardquo (1129b30)56 e por isso a Justiccedila eacute a
virtude perfeita
53 Justo particular
Natildeo obstante a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos ser injustos sem nos afastar
da esfera da virtude Aristoacuteteles nos apresenta uma particcedilatildeo particularizada quanto
em relaccedilatildeo ao injusto no sentido universal
Enquanto uma parte a mais abrangente (injusticcedila universal) versa sobre a
transgressatildeo das normas a outra diz respeito particularmente agrave injusticcedila que visa o
lucro e a injusticcedila movida pelo desejo A essas duas uacuteltimas injusticcedilas ele daacute o
sentido de particular
A que visa o lucro estaacute claro que diz respeito a accedilatildeo de tomar mais do que
lhe eacute devido ela se comporta de um modo bem peculiar por que natildeo viola outra
virtude que natildeo seja a proacutepria Justiccedila A que eacute movida pelo desejo eacute descrita pelo
comportamento desregrado e natildeo por tomar mais do que lhe eacute devido
Tais manifestaccedilotildees particulares satildeo divididas em duas importantes classes
para a teoria da justiccedila aristoteacutelica a saber a justiccedila distributiva e a justiccedila corretiva
531 Justiccedila distributiva
56
De acordo com nota de nuacutemero 123 do tradutor essa maacutexima eacute atribuiacuteda a Teoacutegnis
72
A justiccedila distributiva diz respeito agrave distribuiccedilatildeo proporcional ao meacuterito de
cada pessoa de bens honra riqueza e demais ativos divisiacuteveis da comunidade
Desta forma considera o justo como o igual e o injusto como o desigual admitindo a
igualdade como uma mediania o que pressupotildee ao menos dois termos
Dado o acima podemos admitir que a justiccedila pressupotildee pelo menos quatro
termos sendo que dois deles referem-se agraves medidas e ou outros dois aos indiviacuteduos
a que agraves medidas predicam
A formulaccedilatildeo de Aristoacuteteles acerca da justiccedila distributiva eacute a conjunccedilatildeo do
primeiro termo de uma proporccedilatildeo com o terceiro e do segundo com o quarto e o
justo nesse sentido eacute uma mediania entre os extremos que satildeo desproporcionais
uma vez que a proporccedilatildeo eacute uma mediania e o justo eacute o proporcional (EN V 3
1131b10)
Eacute isso que os matemaacuteticos chamam de proporccedilatildeo geomeacutetrica aquela na
qual soma do primeiro e terceiro termos apresentaraacute a mesma relaccedilatildeo com a soma
do segundo e quarto A observaccedilatildeo que segue eacute a seguinte A justiccedila distributiva
natildeo eacute uma proporccedilatildeo contiacutenua pois seus segundo e terceiro termos um indiviacuteduo e
uma porccedilatildeo natildeo constituem um termo singular (EN V 3 1131a15)
Assim o justo eacute o proporcional e o injusto o que transgride a proporccedilatildeo O
injusto pode assim incorrer no excesso ou na deficiecircncia Isso [] porque um mal
menor comparado a um maior eacute tido como um bem porquanto o menor de dois
males eacute desejaacutevel do que o maior entretanto o que eacute [efetivamente] desejaacutevel eacute
bom e quanto mais desejaacutevel for maior o bem seraacute (EN V 3 1131a20)
532 Justiccedila corretiva
A justiccedila corretiva estaacute direcionada com as relaccedilotildees de acircmbito privado Esta
ao contraacuterio da distributiva natildeo eacute guiada pela proporccedilatildeo geomeacutetrica e sim pela
aritmeacutetica Aqui a lei leva em conta apenas a natureza do dano pois considera as
73
partes iguais seu objeto eacute identificar o sujeito que causou o dano e a quem o dano
fora causado
Elas satildeo distribuiacutedas em duas categorias voluntaacuterias e involuntaacuterias As
voluntaacuterias satildeo aquelas decorrentes da accedilatildeo volitiva entre os sujeitos O exemplo
mais utilizado para ilustrar eacute o de uma relaccedilatildeo de compra e venda
Aristoacuteteles traz para a relaccedilatildeo entre os particulares o problema que contorna
a teoria da justiccedila que eacute dar a cada um o que lhe cabe Dessa forma utiliza dos
termos ldquoperdardquo e ldquoganhordquo para as operaccedilotildees de permuta voluntaacuteria ldquoNesse contexto
ter mais do que lhe cabe eacute chamado de ganho e ter menos do que se tinha no iniacutecio
eacute chamado de perda como por exemplo comprar e vender e todas as transaccedilotildees
que recebem a imunidade da leirdquo (EN V 3 1132a15)
A justiccedila corretiva no sentido involuntaacuterio diz respeito a accedilatildeo decorrente da
vontade de apenas um dos sujeitos O Estagirita divide as do tipo involuntaacuterio em
duas espeacutecies sendo elas furtivas e violentas Ele as explica dando os seguintes
exemplos As furtivas deteacutem o furto o adulteacuterio o envenenamento a prostituiccedilatildeo a
seduccedilatildeo ou incitaccedilatildeo de escravos o assassinato agrave traiccedilatildeo o falso testemunho
Quanto agraves violentas deteacutem o assalto o aprisionamento o crime de morte o roubo
mediante violecircncia a mutilaccedilatildeo a linguagem abusiva o insulto
54 Justo domeacutestico
No trecho 1134 da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles apresenta mais duas
acepccedilotildees de justiccedila A justiccedila poliacutetica e a justiccedila domeacutestica Se avanccedilarmos mais
uma vez no texto e adentrarmos na temaacutetica prudecircncia vamos encontrar duas
figuras ou uma figura com duas caracteriacutesticas semelhantes agrave essas formas de
justiccedila Estamos referindo agrave figura do prudente como bom administrador domeacutestico
e ou bom administrador poliacutetico Proacutexima a essa mesma passagem do livro VI
encontramos uma nova referecircncia que diz respeito agrave duas manifestaccedilotildees
especiacuteficas da prudecircncia uma relativa ao Estado e outra relativa aos particulares Agrave
prudecircncia que concerne agraves coisas proacuteprias ao Estado Aristoacuteteles chama de Ciecircncia
74
Legislativa Agrave prudecircncia que concerne agraves coisas proacuteprias aos particulares ele chama
de Ciecircncia Poliacutetica
A justiccedila domeacutestica eacute aquela compreendida pelas relaccedilotildees que se
estabelecem entre marido e mulher pai e filho e senhor e escravo A mulher o filho
menor e o escravo natildeo participam ativamente das decisotildees da poacutelis o que os
isentam do conceito de justo poliacutetico Apesar da mulher natildeo participar das decisotildees
da poacutelis ela participa das decisotildees do lar o que a diferencia do escravo e do filho
Contra estes uacuteltimos natildeo se pode dizer que o senhorpai possa cometer injusticcedila
uma vez que satildeo considerados como parte do senhorpai sendo que ningueacutem pode
cometer injusticcedila contra si mesmo (BITTAR 2005 p 107)
55 Justo poliacutetico
Como jaacute referimos a compreensatildeo de justiccedila necessariamente
compreende dois termos-sujeito Essa implicaccedilatildeo natildeo eacute meramente loacutegica ela eacute
consequecircncia da teleologia que permeia toda a eacutetica aristoteacutelica Entretanto o justo
poliacutetico em especial refere-se a um grupo de pessoas que possuem a qualidade de
cidadatildeo Isso se deve principalmente por ser um pressuposto da justiccedila poliacutetica a
qualidade de participante ativo dos processos deliberativos proacuteprios agrave poacutelis
Feitas essas observaccedilotildees preliminares podemos agora procurar conceituar
o que seja a justiccedila poliacutetica De acordo com Eduardo C B Bittar
O justo poliacutetico consiste na aplicaccedilatildeo da justiccedila na cidade na poacutelis ou seja trata-se de algo que pertine ao corpo ciacutevico Assim existente no meio social eacute a justiccedila eu organiza um modo de vida que tende agrave auto-suficiecircncia da vida comunitaacuteria (autaacuterkeian) vigente entre os homens que partilham de um espaccedilo comum dividindo atividades segundo a multiplicidade de aptidotildees e necessidades de cada qual formando uma comunidade que tem por fim a eudaimoniacutea e a plena realizaccedilatildeo das
potencialidades humanas (BITTAR 2005 p 106)
75
A definiccedilatildeo dada pelo Estagirita eacute a seguinte ldquoJusticcedila poliacutetica quer dizer
justiccedila entre as pessoas livres e (real ou proporcionalmente) iguais que vivem uma
vida comum com a finalidade de satisfazer suas necessidadesrdquo (1134a25) O que
parece dizer que soacute podem agir justa ou injustamente aqueles que satildeo considerados
cidadatildeos
Aristoacuteteles divide a justiccedila poliacutetica em duas partes sendo uma a justiccedila
natural e outra a justiccedila convencional Comecemos pela natural
551 Justiccedila natural
O Estagirita explica que a justiccedila natural eacute aquela que possui idecircntica
validade em todos os lugares e natildeo depende de nossa aceitaccedilatildeo ou natildeo aceitaccedilatildeo
ldquoO justo natural (diacutekaion phyacutesikon) eacute aquele eu por si proacuteprio por todas as
partes possui a mesma potecircncia (dyacutenamis) e que natildeo depende para sua existecircncia
de qualquer decisatildeo de qualquer ato de positividade de qualquer opiniatildeo ou
conceito O que eacute por natureza eacute tal qual eacute []rdquo (BITTAR 2005) Continua definindo
A justiccedila natural eacute parte da justiccedila poliacutetica que visa permitir a realizaccedilatildeo plena do ser humano inserido na estrutura social do conviacutevio Sendo naturalmente um ser poliacutetico (zwon politikoacuten) a plena realizaccedilatildeo do animal racional estaacute condicionada agrave proacutepria natureza que o engendra o eu equivale a dizer que agrave sociabilidade agrave politicidade agrave autoridade ao relacionamento agrave reciprocidade estaacute o homem intestinamente ligado Reger-se sob o signo de sua natureza para o homem significa estar sob o governo da razatildeo o que se traduz no acircmbito social como estar sob o governo das leis que satildeo ldquoa razatildeo sem paixatildeordquo (BITTAR 2005 p 109)
552 Justo legal (convencional)
Aristoacuteteles define a justiccedila legal como aquela que em primeira instacircncia
pode ser estabelecida de um modo ou outro Isso quer dizer que a justiccedila legal eacute
76
composta pelas disposiccedilotildees definidas de um ou outro modo pela vontade do
legislador
A lei possui forccedila natildeo natural mas fundada na convenccedilatildeo Tendo vaacuterias formas de se estabelecer determinado princiacutepio como conteuacutedo da lei a opccedilatildeo eacute feita pelo legislador passando assim aquilo que a priori era indiferente que fosse de tal ou de qual maneira a ser vinculado a todos os cidadatildeos que a ela se subordinam
Tambeacutem eacute a esse tipo de justiccedila que se agregam as medias legais de caraacuteter particular os decretos e as sentenccedilas As leis em sua maior
parte dirigem-se genericamente a um grupo de cidadatildeos [] Os
decretos as decisotildees emanadas do poder administrativo do governante assim como as sentenccedilas judiciais a aplicaccedilatildeo concreta da generalidade abstrata das disposiccedilotildees legais
57 estatildeo tambeacutem atreladas ao justo
legal como parte da justiccedila poliacutetica que se realiza na vida ciacutevica (BITTAR 2005 p 110)
Dessa forma e imediatamente o fundamento de validade da disposiccedilatildeo natildeo
estaacute na justiccedila natural e sim na convenccedilatildeo orientada pela vontade do legislador
Porque ldquo[] enquanto uma lei da natureza eacute imutaacutevel e tem a mesma validade em
todos os lugares como o fogo que queima na Peacutersia observa-se que as regras da
justiccedila variam (EN V 6 1134a30)
Werner Jaeger em sua Paideia exprime a importacircncia do justo legal para o
povo grego
Acontece o mesmo na Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Anota um nuacutemero muito maior de Aretai que Platatildeo mas ao falar da justiccedila distingue um duplo conceito desta virtude existe uma justiccedila em sentido estrito juriacutedico e outra num sentido mais geral que engloba a totalidade das normas morais e poliacuteticas Reconhecemos nesta uacuteltima sem dificuldade o conceito de justiccedila do antigo Estado constitucional helecircnico Aristoacuteteles invoca expressamente o verso acima referido que inclui na justiccedila todas as virtudes A lei regula pelos seus preceitos as relaccedilotildees dos cidadatildeos com os deuses do Estado com os outros concidadatildeos e com os inimigos da Paacutetria[]
Como suma da comunidade citadina a poacutelis oferece muito Em contrapartida pode exigir ao maacuteximo Impotildee-se aos indiviacuteduos de modo vigoroso e implacaacutevel e neles imprime seu caraacuteter Eacute fonte de todas normas de vida vaacutelidas para os indiviacuteduos O valor do homem e de sua conduta mede-se exclusivamente pelo bem ou pelo mal que acarretam agrave cidade (JAEGER 1995 139-142 negrito nosso)
57
Sobre a aplicaccedilatildeo da lei geral ao caso concreto vide o capiacutetulo 5 A equidade
77
Em sua Retoacuterica Aristoacuteteles define e diferencia invocando a trageacutedia
Antiacutegona
Quando falo de dois tipos de direito ou lei refiro-me agrave lei particular e agrave lei comum A primeira varia segundo cada povo sendo parcialmente escrita a lei comum eacute a lei natural visto que haacute de fato uma justiccedila e uma injusticcedila das quais todos tecircm de alguma maneira a intuiccedilatildeo e que satildeo naturalmente comuns a todos independentemente de todo Estado e de toda convenccedilatildeo reciacuteproca Eacute isso que Antiacutegona de Soacutefocles expressa com clareza ao declarar que o sepultamento de Polinices fora um ato justo a despeito da proibiccedilatildeo ela quer dizer que fora um ato justo por ser o direito natural
Natildeo eacute de hoje ou de ontem
Mas vive eternamente ningueacutem podendo indicar sua origem (Ret I 13
1373b1-15)
Vimos o justo natural como algo imutaacutevel e com regras aplicaacuteveis agraves
diversas localidades Tambeacutem revisitamos o conceito de justo legal estabelecendo
que seu criteacuterio de validade esteja na vontade uma vez que eacute fruto de convenccedilatildeo
Agora restam-nos compreender como aproximar os princiacutepios gerais as leis
abstratas das contingecircncias que imprime em noacutes a incerta condiccedilatildeo humana
78
6 A EQUIDADE
Tanto em sua Eacutetica a Nicocircmaco quanto em sua Retoacuterica Aristoacuteteles utiliza o
termo equidade58 epieikeia em dois sentidos Num sentido lato significa benignidade
e indulgecircncia No sentido stricto eacute a correccedilatildeo da lei
ldquoSer equitativo eacute mostrar indulgecircncia ante as fraquezas humanas eacute tambeacutem
levar em conta menos a lei do que o legislador considerar natildeo a letra da lei mas a
intenccedilatildeo do legisladorrdquo (Ret I 13 1374b10)
ldquoE [tambeacutem] daqui se pode concluir claramente quem eacute o homem equitativo
ele eacute algueacutem que por escolha e haacutebito faz o que eacute equitativo e que natildeo eacute inflexiacutevel
quanto aos seus direitos se contentando em receber uma porccedilatildeo menor mesmo que
tenha a lei do seu ladordquo (EN V 10 1138a)
Sobre o sentido lato Carlos Alberto Schiavo
Por outro lado alguns autores entendem que o uso que os gregos ndash Platatildeo inclusive ndash davam para a palavra epieikeia era em um sentido vulgar de benignidade e indulgecircncia ateacute mesmo porque quando querem atribuir agrave Platatildeo um espiacuterito de rigidez na aplicaccedilatildeo da lei em atenccedilatildeo agrave supremacia que o filoacutesofo assinalava do Estado sobre o indiviacuteduo em seus ensinamentos acerca do justo (SCHIAVO 2013 p 6-7 traduccedilatildeo nossa)
59
Assim o conceito de equidade pode ser compreendido como o exerciacutecio do
justo e do bem atraveacutes da benignidade e da indulgecircncia Aqui a comunidade se
beneficia uma vez que o equacircnime alcanccedile seu bem atraveacutes de deliberaccedilotildees que
natildeo pretendem prover apenas o acircmbito individual
58
Equidade eacute a traduccedilatildeo romacircnica de aequitas e natildeo do grego epieiacutekeia Para uma traduccedilatildeo direta do grego a correspondente em liacutengua portuguesa eacute epiqueia que de acordo com Aureacutelio Buarque de Holanda ldquoepiqueia SF 1 Interpretaccedilatildeo razoaacutevel de lei ou preceito 2 Fig Meio-termo moderaccedilatildeordquo Vide PINTO G A GONCcedilALVES A L GONCcedilALVEZ V D C O problema da traduccedilatildeo do termo fairness na obra de John Rawls Belo Horizonte Editora Puc Minas 2009 59
Por otra parte algunos autores entienden que el uso que los griegos -Platon inclusive- daban a la palabra epieikeia era en un sentido vulgar de benignidad e indulgencia aun cuando hay quienes atribuyen a Platon un espiacuteritu de rigidez en la aplicacioacuten de la ley en atencioacuten a la supremaciacutea que el filosofo le asignaba al Estado sobre el individuo y a su idea respecto de persuadir de como es por naturaleza lo justo (SCHIAVO p6-7 traduccedilatildeo nossa)
59
79
Sobre o sentido stricto Aristoacuteteles afirma que a natureza essencial do
equitativo eacute uma retificaccedilatildeo da lei onde a lei eacute lacunar em funccedilatildeo de sua
generalidade
Este sentido pretende conhecer o ponto de colisatildeo entre a norma em sua
generalidade e a fraacutegil condiccedilatildeo humana em sua singularidade Em outras palavras
neste sentido Aristoacuteteles nos diz que por ser a lei geral e abstrata instala-se uma
distacircncia entre ela e seu objeto uma vez que as relaccedilotildees humanas satildeo contingentes
e portanto de difiacutecil determinaccedilatildeo
Esta distacircncia dificulta a aplicaccedilatildeo da norma podendo por vezes causar
injusticcedila Para evitar a injusticcedila proveniente da aplicaccedilatildeo do justo legal eacute necessaacuterio
acomodar este uacuteltimo agrave realidade do mundo fatiacutedico essa acomodaccedilatildeo eacute a equidade
em seu sentido stricto
61 Justiccedila e equidade ambiguidade do tema
Aristoacuteteles ao tratar da equidade comeccedila fazendo uma exposiccedilatildeo sobre a
ambiguidade terminoloacutegica entre justiccedila e equidade e o justo e o equitativo De
acordo com Eduardo Bittar
[] o uso dos termos se aproxima tamanhamente que ora chamamos de eacutequa uma situaccedilatildeo de justiccedila ora de justa uma situaccedilatildeo eacutequa De fato todos reconhecem que os termos natildeo se equivalem perfeitamente e neste caso o uso de um pelo outro conduz a equiacutevocos notoacuterios de modo que sendo semelhantes poreacutem natildeo idecircnticos devem ser distinguidos naquilo que lhes peculiariza Eacute no gecircnero (eacuteteron tocirc geacutenei) que se dizem aproximados os conceitos de ambos os termos O uso ainda mais esta a indicar a relativa e frequumlente coincidecircncia dos campos semacircmticos de ambos os significantes pois verdadeiramente se satildeo diversos ou o justo natildeo eacute bom ou o eacutequo natildeo o eacute (BITTAR 2005 p163)
Os termos no Grego de Aristoacuteteles satildeo canonicamente traduzidos por equidade e equitativo satildeo epieikeia e epiekis respectivamente Ele usa-os com muita frequecircncia na Eacutetica a Nicocircmaco e muita vezes em sua Retoacuterica e sua Poliacutetica Como ele mesmo nota que usa os termos em dois sentidos De longe o significado mais comum e geral eacute de epieikeia como simplesmente excelecircncia ou bondade A Eacutetica a Nicocircmaco
80
aplica mais tipicamente neste sentido Em uma passagem Aristoacuteteles diz que do ponto de vista da Justiccedila na rectificaccedilatildeo eacute indiferente se um homem bom tem defraudado um mau homem ou vice-versa a palavra para bom eacute epieikeis contrastava com phaulos para o mal Em trecircs passagens no entanto Aristoacuteteles usa os termos para se referir a uma virtude especiacutefica comumente dito ser a virtude da equidade um tipo particular de excelecircncia Aristoacuteteles caracteriza em verdade epieikeia no sentido especiacutefico como um epanorthoma nomou hei elleipei dia de katholou uma correccedilatildeo da lei onde a lei estaacute aqueacutem por causa de sua universalidade Na Retoacuterica descreve a justa quanto ao Paraacute para gegrammenon nomon δικαιον II que a justiccedila que se encontra aleacutem a lei escrita (SHINER 1994 p 1247 traduccedilatildeo nossa)
60
Ao tratar do assunto o Estagirita distingue a justiccedila e o justo pelas
quantificadoras universal e particular Quando aponta o sentido universal estaacute
referido agrave accedilatildeo como virtuosa ou natildeo Quando aponta o sentido particular diz que
estaacute relacionada ao prazer do ganho Eis a distinccedilatildeo ldquoEntretanto enquanto a
injusticcedila no sentido particular tange agrave honra ao dinheiro ou agrave seguranccedila ou seja laacute
qual for o termo que pudeacutessemos utilizar para englobar todas essas coisas seu
motivo sendo o prazer do ganho a injusticcedila no sentido universal tange a todas as
coisas que constituem a esfera da virtuderdquo (EN V 2 1130b1) Conclui na sequecircncia
que em sentido universal o justo eacute legal e em sentido particular o justo eacute igual ou
equitativo
O exame da natureza da equidade e do equitativo se daacute em sentido anaacutelogo
pois ldquo[] (nem tudo que eacute ilegal eacute natildeo equitativo ao passo que tudo que eacute natildeo
equitativo eacute ilegal) assim tambeacutem o injusto e a injusticcedila no sentido particular satildeo o
mesmo que o injusto e a injusticcedila no sentido universal mas destes distintos e a eles
relacionados como a parte do todordquo (EN V 2 1130b10)
60 The terms in Aristotles Greek standardly translated equity and equitable are epieikeia and
epiekis respectively He uses them frequently throughout the Nicomachean Ethics and often in the Rhetoric and Politics too As he himself notes he uses the terms in two senses By far the most common meaning is the general one-epieikeia means simply excellence or goodness The Nicomachean Ethics illustrates typically this sense In one passage Aristotle says that from the point of view of justice in rectification it is indifferent whether a good man has defrauded a bad man or vice versa the word for good is epieikeis contrasted with phaulos for bad In three passages however Aristotle uses the terms to refer to a specific virtue commonly said to be the virtue of equity a particular kind of excellence Aristotle pithily characterizes epieikeia in the specific sense as an epanorthoma nomou hei elleipei dia to katholou a correction of law where law falls short because of its universality The Rhetoric describes the equitable as to para to gegrammenon nomon dikaionII that justice which lies beyond the written law (SHINER 1994 p 1247 traduccedilatildeo nossa)
81
Justo eacute um adjetivo que se predica em uma determinada pessoa comportamento ou situaccedilatildeo atraveacutes da atribuiccedilatildeo a todas essas coisas da capacidade de justiccedila abstrata E assim o justo consiste em realizar o objeto principal da justiccedila a concretizaccedilatildeo da justiccedila ao niacutevel do caso concreto tem em primeiro plano de referecircncia o justo legal e na epikeia a concretizaccedilatildeo do justo em respeito a um comportamento que eacute completamente determinado que resulte excepcional frente ao primeiro plano de referecircncia E por justiccedila entendia o Estagirita Esti de dikaiosunh men areth di hv ta autwn ekastoi exousi kai wz o nomo z adikia de di hn ta allotpia oux wz o nomoz 61 58 en tanto los romanos la definiacutean como ldquoConstans er perpetua voluntas jus summ cuique tribuendi
62rdquo
o bien Est autem a iustitia appellantum nam ut eleganter Celsus definit ius est ars boni et aequi
63 (SCHIAVO 2013 p3)
64
Quanto agrave equidade e ao equitativo Aristoacuteteles retoma o assunto no capiacutetulo
10 do Livro V da Eacutetica a Nicocircmaco De acordo com ele a equidade e o equitativo se
relacionam com a justiccedila e com o justo respectivamente pois quando examinadas
afigura-se que justiccedila e equidade natildeo satildeo nem absolutamente idecircnticas nem
genericamente diferentes
Aqui uma nova referecircncia ao duplo sentido do termo equidade65 uma de
uso popular e outra de emprego teacutecnico Vejamos
Por vezes eacute verdade que louvamos a equidade e o homem equitativo a tal ponto que chegamos a empregar a palavra equitativo como um termo
61
Ret I 9 1367a 5-7 ldquoaquilo que fazemos por nossos benfeitores por forccedila da justiccedila disto e os serviccedilos prestados em geral pois o proveito que deles se extrai natildeo se dirige ao seu agenterdquo (ARISTOacuteTELES 2011 p 83 traduccedilatildeo Edson Bini) 62
Constante e perpeacutetua vontade de cumprir os deveres (traduccedilatildeo nossa) 63
E eacute chamada assim de justiccedila pela elegante definiccedilatildeo de Celso eacute a arte do bom e do equitativo (traduccedilatildeo nossa) 64
Justo es un adjetivo que se predica en concreto de una persona de una conducta o de una situacioacuten por el que se asigna a todas estas cosas la capacidad abstracta de justicia Y en tanto lo justo consiste en realizar el bien comuacuten como objeto principal de la justicia la concrecioacuten de la justicia a nivel del caso o del conflicto tiene un primer plano de referencia en la justicia legal y en la epiqueya la concrecioacuten de lo justo respecto de una conducta completamente determinada que resulta excepcional frente aquel primer plano de referencia Y por justicia el Estagirita entendiacutea Esti de dikaiosunh men areth di hv ta autwn ekastoi exousi kai wz o nomo z adikia de di hn ta allotpia oux wz o nomoz en tanto los romanos la definiacutean como ldquoConstans er perpetua voluntas jus summ cuique
tribuendi rdquo o bien Est autem a iustitia appellantum nam ut eleganter Celsus definit ius est ars boni et aequi (SCHIAVO 2013 p3) 65
Ao que tratamos no iniacutecio deste capiacutetulo
82
de aprovaccedilatildeo de outras coisas aleacutem do que eacute justo e a empregamos como equivalente de bom querendo dizer com mais equitativo meramente uma coisa eacute melhor Em outras oportunidades todavia quando submetemos a palavra efetivamente ao crivo da razatildeo nos parece estranho que o equitativo devesse ser louvaacutevel uma vez ser ele algo distinto do justo (ENV 10 1137b1)
Aristoacuteteles instala entatildeo certa dificuldade que nos parece proveniente da
loacutegica De acordo com ele ldquoSe satildeo diferentes [um deles] o justo ou o equitativo natildeo
eacute bom se ambos satildeo bons satildeo a mesma coisardquo (ENV 10 1137b1)
A soluccedilatildeo dada eacute que a equidade natildeo eacute diferente da justiccedila como um todo
mas diferente de uma parte dela a justiccedila legal Natildeo bastasse diferente Aristoacuteteles
ainda afirma ser a equidade superior uma vez que a equidade eacute a retificaccedilatildeo da
justiccedila legal
62 Justiccedila como equidade66
Talvez uma dificuldade na compreensatildeo da equidade aristoteacutelica esteja
associada a uma terceira concepccedilatildeo vigente em sua Eacutetica Tal concepccedilatildeo foi fruto
da investigaccedilatildeo tomista e permeia a ideia de equidade se sobrepondo por vezes agraves
duas primeiras concepccedilotildees apresentadas quais sejam a lato e a stricto
A questatildeo estaacute mais uma vez na proacutepria terminologia Sem precisar das
origens etimoloacutegicas da palavra justiccedila e da palavra equidade podemos estabelecer
um padratildeo como constante em ambos os conceitos
A palavra justiccedila nos remete agrave justeza agravequilo que estaacute conformado ou em
conformidade justificado assentado ajustado etc A palavra equidade por sua
vez nos remete agrave equalizado equiparado razoado etc
Numa primeira acepccedilatildeo a palavra equumlidade significa etimologicamente retidatildeo e justiccedila Numa segunda acepccedilatildeo poreacutem corresponde a
66
Aqui natildeo fazemos referecircncia a obra Justice as fairness do filoacutesofo John Rawls Sobre este assunto vide PINTO G A GONCcedilALVES A L GONCcedilALVEZ V D C O problema da traduccedilatildeo do termo fairness na obra de John Rawls Belo Horizonte Editora Puc Minas 2009
83
moderaccedilatildeo correccedilatildeo benignidade piedade coincidindo nesse sentido com a ideacuteia aristoteacutelica de epikeya que eacute o conveniente ou o que se ajusta ou melhor norma que se adapta a uma determinada relaccedilatildeo por corresponder agrave natureza essencial desta A equumlidade complementa a justiccedila corrigindo a lei pelas caracteriacutesticas concretas e muitas vezes imprevistas que as realizadas sociais apresentam e que natildeo satildeo passiacuteveis de enquadramento nos ditamentes da justiccedila geral A lei como natildeo pode deixar de ser regula as relaccedilotildees humanas de caraacuteter juriacutedico sob um acircngulo de todo geral e abstrato A equumlidade ao contraacuterio por sua proacutepria natureza visa a corrigir a lei quando esta como anota Aristoacuteteles se demonstra incompleta para abarcar o caso especial e concreto que foge agrave aplicaccedilatildeo geneacuterica (PAUPEacuteRIO 2003 p 67)
Parece que ambos os termos remetem a uma adaptaccedilatildeo que tem por fim
tornar igual ou ao menos fazer com que a medida estabelecida conheccedila seu objeto
Neste sentido instalador da ambiguidade eacute que muitos autores fazem
referecircncia agrave equidade como sendo a proacutepria justiccedila natural ou ao menos a parte
dela que nos toca
[] o termo ldquoequumlidaderdquo natildeo eacute uniacutevoco pois natildeo se aplica a uma soacute realidade nem tampouco equiacutevoco jaacute que natildeo designa duas ou mais realidades desconexas mas sim anaacutelogo pois se refere a realidades conexas ou relacionadas entre si
De maneira que a ldquoequumlidaderdquo tem sido de certa forma entendida como um direito natural em suas vaacuterias concepccedilotildees (DINIZ 242)
Palpeacuterio destaca que ldquoNo fundo como anotam alguns autores a equumlidade eacute
o proacuteprio direito natural natildeo propriamente em seus princiacutepios mas em sua
aplicaccedilatildeo e acomodaccedilatildeo aos casos concretosrdquo67 (PALPEacuteRIO p 69)
De acordoacute com Recasegraves Siches ldquola equidad es la expresioacuten de lo justo
natural en relacioacuten com el caso concreto Es decir la equidad es lo justo pero no lo
67
Na sequencia podemos encontrar o Autor dizendo que a justiccedila se difere da equidade contudo parece-nos que o conceito de justiccedila trabalhado neste ponto eacute o conceito de justo poliacutetico natildeo alcanccedilando a latitude aparente do texto que por referir apenas agrave justiccedila poderia nos sugerir seu sentido amplo vejamos ldquoNatildeo se confundindo com a clemecircncia que segundo Secircneca eacute a moderaccedilatildeo do acircnimo no poder de castigar a equumlidade distingue-se da proacutepria justiccedila porque enquanto esta corresponde agrave aspiraccedilatildeo do legislador aquela corresponde agrave do juizrdquo (p 69)
84
justo legal tal y como se desprenderiacutea de latildes palabras de la ley sino lo
auteacutenticamente justo respecto del caso particularrdquo (SICHES 2008 p 656)
Portanto tanto a justiccedila quanto a equidade parecem procurar acomodar a
medida constante das regras gerais e abstratas agraves realidades inconstantes em suas
singularidades e concretude Tal acomodaccedilatildeo procura estabelecer ou reestabelecer
certo paracircmetro de igualdade que nos parece aspiraccedilatildeo natural agrave justiccedila grega
621 Justiccedila e igualdade
A noccedilatildeo de justiccedila estaacute intimamente relacionada com a noccedilatildeo de
igualdade68 Da mesma forma em que a injusticcedila estaacute relacionada com a noccedilatildeo de
desigualdade Nuno Manoel M dos S Coelho em seu verbete Igualdade explica
que o desenvolvimento do ldquoconceito juriacutedico-filosoacutefico de igualdade no centro da
concepccedilatildeo de justiccedila como virtude diante do outro eu reconheccedilo como igual na
medida em que natildeo posso reivindicar tudo para mim mas devo dar a cada um o
seurdquo (COELHO 2011 p 215)
A igualdade eacute elemento essencial e baacutesico ldquoA justiccedila eacute uma igualdade e a injusticcedila uma desigualdaderdquo afirmou Aristoacuteteles ldquoA essecircncia da justiccedila eacute a igualdaderdquo acrescenta S Tomaacutes E mestre em tirar das palavras o que elas encerram mostra que a noccedilatildeo de igualdade estaacute contida no proacuteprio nome dessa virtude pois das coisas que estatildeo adequadas ou igualadas dizemos comumente que estatildeo ldquoajustadasrdquo (MONTORO 2009 p 170)
68
Podemos observar que a preocupaccedilatildeo com a igualdade e a tensatildeo existente entre igualdade material e igualdade formal aparece ateacute mesmo no contexto positivista como um problema a ser resolvido Tambeacutem daqui resulta que eacute errado considerar a regra que manda tratar os que satildeo iguais de forma igual como aplicaccedilatildeo do princiacutepio de justiccedila da igualdade A uacutenica norma que pode valer como princiacutepio de justiccedila da igualdade eacute a norma segundo a qual todos os homens devem ser igualmente tratados segundo a qual nenhuma das desigualdades que efetivamente existem entre eles deve ser tomada em consideraccedilatildeo (KELSEN 1998 p 55-56) Podemos ainda encontra tal preocupaccedilatildeo no liberalismo de pensadores como John Rawls vide Uma teoria da Justiccedila (2008)
85
A justiccedila em Aristoacuteteles faz necessaacuteria referecircncia agrave igualdade em seu
sentido material Tanto o eacute que a medida enquanto referecircncia da mediania eacute o
fundamento de sua eacutetica
Sobre a justiccedila enquanto igualdade Andreacute Franco Montoro desdobra acerca
da foacutermula tomista Ratio justitiae in hoc consistit quod alteri reddatur quod ei
debentur secundum aequalitatem69
[] em sentido estrito e proacuteprio a justiccedila designa uma virtude com objeto especial Nesse sentido ldquoa essecircncia da justiccedila consiste em dar a outrem o que lhe eacute devido sendo uma igualdaderdquo (simples ou proporcional) conforme a definiccedilatildeo de S Tomaacutes Soacute eacute justiccedila propriamente dita a relaccedilatildeo que tem por objeto - dar a outrem - o que lhe eacute devido - segundo uma igualdade A essas trecircs notas correspondem agraves caracteriacutesticas essenciais da justiccedila em sentido estrito - a alteridade ou pluralidade de pessoas (alteras de alter) - o devido (debitum) - a igualdade (aequalitas) (MONTORO 2009 p 165 - 166)
Ainda de acordo com Montoro a igualdade eacute estabelecida atraveacutes de
criteacuterios quantitativos
Duas realidades satildeo idecircnticas quando tecircm a mesma essecircncia Semelhantes quando tecircm as mesmas qualidades Iguais quando tecircm a mesma quantidade ldquoidem est unum in substancia siacutemile unum in qualitate aequale vero unum in quantitaterdquo Um homem eacute ldquoidecircnticordquo apenas a si mesmo De duas pessoas que tecircm os mesmos traccedilos dizemos que satildeo ldquosemelhantesrdquo Vinte eacute igual a 10 mais 10
A igualdade eacute pois uma equivalecircncia de quantidades Na justiccedila de forma analoacutegica e adaptada agrave natureza moral das relaccedilotildees humanas e essa tambeacutem a significaccedilatildeo de igualdade
Com razatildeo observou Recaseacutens Siches na justiccedila natildeo se trata de estabelecer ldquoidentidaderdquo como seria o caso de entregar um objeto e receber o mesmo objeto Isso natildeo teria sentido Natildeo se trata tambeacutem de receber um objeto ldquosemelhanterdquo ou parecido Mas de estabelecer uma equivalecircncia ou ldquoigualdaderdquo (MONTORO 2009 p171)
69
A justa razatildeo consiste em dar ao outro o que lhe eacute devido de acordo com a igualdade (traduccedilatildeo nossa)
86
Aristoacuteteles apresenta duas foacutermulas para que a igualdade seja alcanccedilada
uma ele denominou aritmeacutetica (conhecida como igualdade simples) e a outra
geomeacutetrica (conhecida como igualdade proporcional)
Desta forma a ldquoigualdade da justiccedila pode realizar-se de duas formas
distintasrdquo
a) igualdade simples ou absoluta eacute a equivalecircncia entre dois objetos que se verifica nas relaccedilotildees de troca o comprador de um objeto que vale 1000 dever efetuar um pagamento de igual valor (1000 = 1000) b) igualdade proporcional ou relativa eacute a que se realiza na distribuiccedilatildeo dos benefiacutecios e encargos entre os membros de uma comunidade se A que contribui com 50 recebe 5 B que contribui com 80 receberaacute 8 (550 = 880) Aristoacuteteles chamou a primeira igualdade ldquoaritmeacuteticardquo e a segunda ldquogeomeacutetricardquo Em qualquer caso a justiccedila procura realizar uma igualdade nas relaccedilotildees entre os homens Ou como diz Lachance na justiccedila devemos nos igualar ao proacuteximo por seu ato (MONTORO 2009 p 172)
A justiccedila portanto soacute pode ser compreendida a partir de seu princiacutepio de
igualdade Ainda sobre este ponto Aristoacuteteles apresenta dois importantes temas que
foram objeto de estudo dos itens 531 e 532 A justiccedila distributiva e a justiccedila
corretiva Natildeo obstante jaacute terem sido objeto de nosso estudo eacute necessaacuterio
revisitarmos tais conceitos em face da noccedilatildeo de igualdade
Assim pode-se dizer que haacute duas formas de justiccedila uma particular cujo
objeto eacute o bem particular e outra geral tambeacutem chamada legal ou social cujo objeto
eacute o bem comum A justiccedila particular realiza-se de duas formas justiccedila comutativa
quando um particular daacute a outro particular o bem que lhe eacute devido e justiccedila
distributiva quando a sociedade daacute a cada particular o bem que lhe eacute devido
Receber o devido e portanto natildeo tomar maior parcela dos bens desejados
e nem a menor parcela dos bens indesejados seja na relaccedilatildeo particular ou sobre
aquilo que eacute o bem comum parece-nos o criteacuterio da igualdade
63 Equidade melhor que um tipo de justiccedila
87
De acordo com Aristoacuteteles a equidade eacute melhor que um tipo de justiccedila Ele
estaacute se referindo agrave justiccedila legal pois
[] a equidade embora superior a uma espeacutecie de justiccedila eacute ela mesma justa natildeo eacute superior agrave justiccedila ao ser genericamente distinta dela Justiccedila e equidade satildeo portanto a mesma coisa sendo ambas boas ainda que a equidade seja melhor
A origem da dificuldade eacute que ldquoa equidade embora justa natildeo eacute justiccedila legal poreacutem retificaccedilatildeo desta (EN V 10 1137b10)
O que Aristoacuteteles parece querer dizer eacute que a justiccedila em todas as suas
acepccedilotildees compreende a equidade como seu princiacutepio No entanto a acepccedilatildeo de
justiccedila legal em sua rigidez e generalidade pode objetivamente ferir o justo razatildeo
pela qual a equidade enquanto princiacutepio da justiccedila eacute melhor Afinal eacute ela que natildeo
permite que uma das espeacutecies de justiccedila aquela que eacute convencionada pelo homem
seja aplicada de forma a causar injusticcedila
Eduardo Bittar explica como Aristoacuteteles desconstitui a aparente
ambiguidade da temaacutetica
o eacutequo sendo melhor que uma forma de justo ndash e aqui se percebe nitidamente qual a estrita relaccedilatildeo entre o eacutequo e uma forma especiacutefica de justo o justo legal ndash natildeo deixa de ser justo poreacutem natildeo simplesmente pelo fato de constituir um gecircnero diferente representa algo a mais que o justo Em verdade satildeo a mesma coisa o justo e o eacutequo (tautograven aacutera diacutekaion kaigrave epieikegraves) de maneira que assim sendo o eacutequo eacute melhor e mais desejaacutevel que o justo Se eacutequo e justo se equivalem nesta medida e da forma indicada segundo o gecircnero natildeo eacute verdade que o eacutequo seja o justo segundo a lei (ou tograve katagrave noacutemon deacute) de acordo com o que estaacute consignado no corpo legislativo e foi posto pela vontade humana como vinculativo da conduta social mas sim um corretivo do justo legal (epanothoma nomiacutemou diacutekaion) (BITTAR 2005 p163)
Portanto a equidade corresponde ao justo presente na concepccedilatildeo de justiccedila
para Aristoacuteteles poreacutem eacute melhor que o justo legal por ser o princiacutepio corretor do
mesmo
64 Natureza essencial do equitativo a retificaccedilatildeo do justo legal
88
O que encontramos no capiacutetulo 10 do Livro V da Eacutetica a Nicocircmaco satildeo duas
aplicaccedilotildees da equidade enquanto retificaccedilatildeo do justo legal A primeira que
examinaremos neste item 64 diz respeito ao rigor do justo legal e a segunda que
examinaremos no item 65 diz respeito agrave existecircncia de casos que o legislador natildeo
pode prever
Em verdade estas duas aplicaccedilotildees da equidade satildeo consequecircncia de uma
soacute coisa o caraacuteter geral da norma Se de um lado o rigor da norma que exige do
equacircnime a acomodaccedilatildeo do direito se daacute pela generalidade da norma de outro a
generalidade parece insuficiente para conhecer todos os casos o que oportuna o
surgimento das lacunas
641 A metaacutefora da reacutegua de chumbo
Aristoacuteteles para explicar melhor em que consiste a equidade ilustra sua
exposiccedilatildeo fazendo uma analogia das regras do direito com as reacuteguas empregadas
por pedreiros em lavras
Os construtores da ilha de Leacutesbos utilizavam em seus afazeres um
instrumento que chamou a atenccedilatildeo do Estagirita esse instrumento nada mais era do
que uma reacutegua feita de chumbo
A funccedilatildeo de tal reacutegua era manter a medida certa ainda que seu objeto
assumisse formas diversas Assim inobstante as irregularidades na forma das
pedras poderia graccedilas agrave maleabilidade da reacutegua ajustaacute-la ao objeto apurando
assim a medida certa
Com efeito essa eacute a razatildeo porque natildeo satildeo todas as coisas determinadas pela lei pelo fato de haver alguns casos [e situaccedilotildees] em relaccedilatildeo aos quais eacute impossiacutevel estabelecer uma lei eacute necessaacuteria a existecircncia de um decreto especial pois aquilo que eacute ele proacuteprio indefinido soacute pode ser medido por um padratildeo indefinido como a reacutegua pluacutembea usada pelos construtores de Lesbos tal como essa reacutegua natildeo eacute riacutegida podendo ser flexibilizada ao formato da pedra um decreto
89
especial eacute feito para se ajustar agraves circunstacircncias do caso (EN V 10 1137b30)
Desprende-se do texto que a medida que eacute ali buscada ldquo[] se assemelha
agraves diversas situaccedilotildees que se encadeiam na etapa de aplicaccedilatildeo da norma juriacutedica
mormente a interpretaccedilatildeo do fato e do comando legal que o atinge em foco de
incidecircncia Assim se veria a norma geral como medida e a situaccedilatildeo da vida erigida
em controveacutersia como a pedrardquo (LOPES 1993 p 46)
O conceito de equidade muito bem explicado pela metaacutefora da reacutegua de
chumbo na passagem 1137b30 da Eacutetica a Nicocircmaco segundo Javier Hervada
(2008) ldquoabranda o dever e acomoda o direitordquo (HERVADA 2008 p 171) ldquoO
equumlitativo soacute se daacute quando a reacutegua consegue captar todas as microscoacutepicas
reentracircncias do cenaacuterio multiforme que lhe cabe medirrdquo (LOPES 2007 p 77)
A lei eacute considerada aqui como um sumaacuterio de decisotildees saacutebias Eacute por conseguinte apropriado complementaacute-la com novas decisotildees saacutebias tomadas na situaccedilatildeo presente e eacute tambeacutem apropriado corrigi-la nos pontos em que natildeo resume corretamente o que um bom juiz faria O bom juiacutezo mais uma vez proporciona tanto uma concretude superior como uma superior sensibilidade ou flexibilidade
A exigecircncia de flexibilidade tatildeo importante para o nosso entendimento da concepccedilatildeo aristoteacutelica natildeo cientiacutefica de escolha eacute descrita pois em uma viacutevida metaacutefora Aristoacuteteles nos diz que uma pessoa que tenta tomar todas as decisotildees recorrendo a algum princiacutepio geral antecedente sustentando como firme e inflexiacutevel para a ocasiatildeo eacute como um arquiteto que procura usar uma reacutegua reta sobre as curvas intricadas de uma coluna canelada O bom arquiteto ao contraacuterio mediraacute como fazem os construtores de Lesbos com um tira flexiacutevel de metal que ldquose inclina arqueada para ajustar-se agrave forma da rocha que eacute natildeo eacute fixardquo (1137b30-2) A boa deliberaccedilatildeo tal como essa regra se acomoda ao que encontra de maneira sensiacutevel e com respeito pela complexidade Natildeo assume que a forma da regra governa as aparecircncias permite que as aparecircncias governem a si mesmas e sejam normativas para a correccedilatildeo da regra (NUSSBAUM 2009 p 263)
Portanto a metaacutefora revela uma equidade que eacute em si uma regra mas uma
regra cuja forma eacute capaz de moldar-se agraves nuanccedilas proacuteprias da mateacuteria
642 A retificaccedilatildeo do justo legal
90
Aristoacuteteles define equidade70 como sendo a retificaccedilatildeo do justo legal A lei
natildeo por um erro da parte do legislador mas pela sua proacutepria generalidade pode
criar se aplicada de modo inflexiacutevel agrave multiplicidade dos casos singulares
especiacuteficos o efeito oposto para o qual foi originalmente estabelecida Ou seja
sendo ldquoinfinita a mateacuteria sobre a qual se deve legislar e sendo necessaacuterio apesar
de tudo estabelecer leis eacute forccediloso falar em geralrdquo (Ret I 13 1374a30) A equidade
seraacute o mecanismo que coloca nas matildeos do aacuterbitro discricionariedade suficiente para
aplicar a norma de modo a natildeo causar uma injusticcedila por meio do proacuteprio justo legal
A necessidade da aplicaccedilatildeo da equumlidade decorre do fato de que as leis dizem genericamente e para todos sem diferenciar todas as nuanccedilas que possam existir na esfera dos fenocircmenos de modo que surgem casos para os quais se aplicada a lei (noacutemos) em sua generalidade (kathoacutelou) estar-se-aacute a causar uma injusticcedila por meio do proacuteprio justo legal Exatamente para superar os problemas decorrentes da impossibilidade de haver uma legislaccedilatildeo minimamente detalhista e futurista eacute que existe o eacutequo []
Se a lei eacute neste ponto e para estes fins falha isto natildeo se deve nem ao conteuacutedo da lei em si nem ao legislador natildeo se trata de um erro legislativo mas sim de um problema oriundo da proacutepria peculiar conformaccedilatildeo das coisas como satildeo praticamente Cada caso eacute um caso e demanda uma atenccedilatildeo especial e especiacutefica absolutamente focalizada sobre os seus traccedilos e as suas caracteriacutesticas de modo que nenhuma legislaccedilatildeo poder-se-ia aplicar a esta dimensatildeo dos fatos (BITTAR 2005 p164 - 165)
A equidade aristoteacutelica eacute portanto ldquoa correccedilatildeo dos rigores da leirdquo (BITTAR
2002 p 116)
[hellip] no tocante aos erros legislativos e demais hipoacuteteses de produccedilatildeo de injusticcedila decorrente da generalidade no preceito legal aplicado agrave realidade faacutetica Aristoacuteteles aponta a utilizaccedilatildeo do recurso da epieacuteikeia ou seja da equidade forma de modelagem dos princiacutepios legais para serem aplicados a sujeitos concretos frente agrave problemaacutetica fenomecircnica a ser resolvida pelo juiz (dikasteacutes) (BITTAR 2003 p 1056-
1057)
70
No original ἐπιείκεια (epieiacutekeia)
91
Aristoacuteteles percebe como o perceberia Hans Kelsen dois milecircnios depois71
que na passagem de uma norma mais geral ndash a lei por exemplo ndash para uma norma
mais concreta ndash como a sentenccedila judicial ndash sempre restaraacute uma margem de escolha
que caberaacute agrave prudecircncia72 do inteacuterprete-aplicador preencher
Na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles problematiza a relaccedilatildeo entre a norma e o
caso concreto explicando que ldquoA origem da dificuldade eacute que a equidade embora
justa natildeo eacute justiccedila legal poreacutem a retificaccedilatildeo desta A razatildeo para isso eacute que a lei eacute
sempre geral entretanto haacute casos que natildeo satildeo abrangidos pelo texto geral da leirdquo
(EN V 1137b12) Nesse sentido a equidade seria a virtude destinada a solucionar
os casos em que a lei natildeo alcanccedila a concretizaccedilatildeo da justiccedila
Aristoacuteteles eacute o primeiro doutrinador das ciecircncias juriacutedicas Ele diz muito antes de Larenz ldquoCada regulamento legal ou do direito estaacute para o caso isolado na mesma relaccedilatildeo que o geral estaacute para o indiviacuteduordquo (1135a)
O que aqui eacute descoberto e expressado com autoridade loacutegica natildeo eacute menos que o princiacutepio fundamental da subsunccedilatildeo juriacutedica a imputaccedilatildeo do fato agrave lei escrita (ldquoao conceito legal do direitordquo 1135a)
Aristoacuteteles nos fornece aqui muito antes de Esser e Wiacker uma teoria das claacuteusulas gerais sejam elas inseridas de fora na lei como o Princiacutepio da Relaccedilatildeo (uso de medidas adequadas em relaccedilatildeo ao desejado fim) no Art 12 GG (Constituiccedilatildeo Alematilde) ou estejam elas jaacute consolidadas na lei como o Princiacutepio da boa-feacuterdquo no sect 242 BGB (pois sua positivaccedilatildeo eacute supeacuterflua o conteuacutedo normativo de tal paraacutegrafo eacute tatildeo pequeno o quatildeo grande eacute seu caraacuteter de advertecircncia) O princiacutepio geral vaacutelido da equumlidade []
Se tiveacutessemos percebido em tempo esta vaacutelida opiniatildeo de Aristoacuteteles entatildeo natildeo teria surgido de forma alguma nos nossos anos 60 a ilusatildeo de que toda aplicaccedilatildeo da lei pode ser formalizada e com isso computadorizada pois o computador pode ateacute realizar algo nas futuras ldquogeraccedilotildees inteligentesrdquo ou muito inteligentes mas nunca epieikeia Um pensador loacutegico eacute soacute entatildeo loacutegico quando conhece e reconhece os limites da loacutegica (ADOMEIT 2000 p138 - 140)
A liccedilatildeo de Teacutercio Sampaio Ferraz Jr evidencia a equidade enquanto
princiacutepio que estabelece razoaacutevel elo entre a norma e agrave especificidade da situaccedilatildeo
71
Veja-se a esse respeito o capiacutetulo VIII da Teoria pura do direito kelseniana 72
E eacute neste ponto que os neoaristoteacutelicos divergem de Kelsen uma vez que para este natildeo eacute necessariamente a prudecircncia mas juiacutezos poliacuteticos de conveniecircncia ndash fundados no poder e natildeo na razatildeo ndash que orientaratildeo a escolha do julgador Para uma anaacutelise mais aprofundada e criacutetica desse ponto veja-se Ferraz Juacutenior 1994 p 260-346 (Capiacutetulos 5 e 6)
92
Por uacuteltimo no conjunto da razatildeo juriacutedica costuma-se mencionar a equumlidade Aristoacuteteles eacute responsaacutevel por sua definiccedilatildeo como a justiccedila do caso concreto A soluccedilatildeo de litiacutegios por equumlidade eacute a que se obteacutem pela consideraccedilatildeo harmocircnica das circunstacircncias concretas do que pode resultar um ajuste da norma agrave especificidade da situaccedilatildeo a fim de que a soluccedilatildeo seja justa Pois como diziam os romanos summum jus summa injuria
73 Natildeo se trata de um princiacutepio que se oponha agrave justiccedila mas que a
completa a torna plena
Da mesma forma que os princiacutepios gerais a equumlidade tem no sistema dinacircmico funccedilatildeo metalinguumliacutestica Ela responde pela estrutura de concretizaccedilatildeo do direito Natildeo eacute fonte pois no mesmo sentido das demais (FERRAZ JUNIOR 2011 p 213)
Ferraz Junior em seu capiacutetulo sobre a Dogmaacutetica Hermenecircutica destaca ao
menos quatro desdobramentos possiacuteveis na integraccedilatildeo por equidade Satildeo eles
expandir uma obrigaccedilatildeo limitar o exerciacutecio de direitos criar regras para situaccedilotildees
que se alteram ou que natildeo foram previstas vejamos
[] Fala-se aqui no sentimento do justo concreto em harmonia com as circunstacircncias e adequado ao caso O juiacutezo por equumlidade na falta de norma positiva eacute o recurso a uma espeacutecie de intuiccedilatildeo no concreto das exigecircncias da justiccedila enquanto igualdade proporcional O inteacuterprete deve poreacutem sempre buscar uma racionalizaccedilatildeo dessa intuiccedilatildeo mediante uma analise das consideraccedilotildees praacuteticas dos efeitos presumiacuteveis das soluccedilotildees encontradas o que exige juiacutezos empiacutericos e de valor os quais aparecem fundidos na expressatildeo juiacutezo por equumlidade A equumlidade pode integrar o direito de diferentes modos Por exemplo por seu intermeacutedio podemos expandir uma obrigaccedilatildeo criando deveres adicionais para aleacutem dos que constam de um contrato ou decorrem expressamente de lei podemos ainda limitar o exerciacutecio de direitos para prevenir abusos podemos tambeacutem criar regras para situaccedilotildees que se alteram desde seu regulamento ou que nele natildeo foram previstas Em todo caso o juiacutezo equumlitativo de um lado apesar das consideraccedilotildees dos efeitos presumiacuteveis eacute sempre um juiacutezo jungido ao particular sem preocupaccedilotildees generalizantes Natildeo gera assim uma compulsatildeo para que outros casos semelhantes sejam interpretados e decididos do mesmo modo Por isso natildeo eacute propriamente fonte do direito mas meio de integraccedilatildeo De outro lado poreacutem pela consideraccedilatildeo dos efeitos presumiacuteveis tambeacutem natildeo aparece como arbitraacuterio mas sim representando o sentido que seja juriacutedico no contexto social em que se aplica (FERRAZ JUNIOR 2011 p 281 negrito nosso)
Interessante notar que Ferraz Junior aponta que essa proximidade do juiacutezo
ao particular natildeo eacute uma arbitrariedade mas uma representaccedilatildeo juriacutedica no contexto
em que determinada norma incide
73
Brocardo de Ciacutecero que quer dizer Supremo direito suprema injusticcedila (De Officiis I 10 33)
93
Enquanto a justiccedila eacute de ordem geral e natildeo se preocupa senatildeo com princiacutepios a equumlidade contrariamente perquire as circunstacircncias peculiares ao caso e submete a regra abstrata agraves razotildees derivadas da espeacutecie Em certos casos impotildee-se abandonar a letra da lei para acompanhar os ditames da razatildeo e da justiccedila Nisso se cifra a equumlidade que tempera e abranda o rigor legal Natildeo foi agrave-toa que se referiu Ciacutecero baseado em Terecircncio ao brocardo summum jus summa injuria que daacute ecircnfase agrave ideacuteia de que o rigor da aplicaccedilatildeo inflexiacutevel da lei pode muitas vezes quando natildeo abrandado pela equumlidade acarretar dureza demasiada ou mesmo extrema injusticcedila (PAUPEacuteRIO 2003 p68)
Cabe agora examinarmos a equidade como recurso dado por Aristoacuteteles
para os casos natildeo abarcados pela legislaccedilatildeo
65 Equidade e lacuna
A compreensatildeo do sentido stricto de equidade ou seja enquanto correccedilatildeo
do justo legal tem por pressuposto a generalidade da norma Natildeo obstante tal
generalidade existem casos que natildeo satildeo abrangidos pela lei Surge assim a
dificuldade cuja equidade mais uma vez eacute a soluccedilatildeo dada pelo Estagirita De acordo
com ele
A razatildeo para isso eacute que a lei eacute sempre geral entretanto haacute casos que natildeo satildeo abrangidos pelo texto geral da lei [ou por esta ou aquela regra legal geral] Em mateacuterias portanto nas quais embora seja necessaacuterio discursar em termos gerais natildeo eacute possiacutevel fazecirc-lo corretamente a lei toma em consideraccedilatildeo a maioria dos casos embora natildeo esteja insciente do erro que tal coisa acarreta (EN V 10 1137b12)
74
Natildeo obstante o legislador ter a generalidade como instrumento de ampliaccedilatildeo
de incidecircncia da norma esta natildeo eacute geral suficientemente para abarcar em
completude as indeterminaacuteveis possibilidades proacuteprias ao acircmbito particular
74
Conforme jaacute citado
94
Sobre lacunas adverte Kelsen
Como poreacutem o Direito vigente eacute sempre aplicaacutevel pois natildeo haacute ldquolacunasrdquo neste sentido esta foacutermula quando se penetre o seu caraacuteter fictiacutecio natildeo opera a pretendida limitaccedilatildeo do poder atribuiacutedo ao tribunal mas a auto-anulaccedilatildeo da mesma Se poreacutem o tribunal tambeacutem aceita a ideacuteia de que haacute lacunas no Direito entatildeo esta ficccedilatildeo teoreticamente inaceitaacutevel realiza o efeito pretendido Com efeito o juiz - e especialmente o juiz de carreira que estaacute sob o controle de um tribunal superior - que natildeo se sente facilmente inclinado a tomar sobre si a responsabilidade de uma criaccedilatildeo do Direito ex novo soacute muito excepcionalmente aceitaraacute a existecircncia de uma lacuna no Direito e por isso soacute raramente faraacute uso do poder que lhe eacute conferido de assumir o lugar do legislador (KELSEN 1999 p 185)
Aristoacuteteles esclarece que as lacunas podem existir pela vontade do
legislador ou contra a vontade deste
O problema legislativo que com maior frequumlecircncia ocorre eacute causado pela abstraccedilatildeo e universalidade do preceito legal De fato a lei escrita eacute um imperativo que se formula impessoalmente abarcando sob sua tutela a pluralidade de cidadatildeos aos quais se dirige e a multiplicidade de casos que surgem na vida concreta da poacutelis Lacunas aparecem em todo sistema legislativo escrito e estas podem existir por vontade do legislador de que existam ou mesmo contra a vontade deste Assim contra a sua vontade existiratildeo ldquoquando o fato lhe passa despercebidordquo e por vontade do legislador ldquoquando natildeo podendo precisar tudo eles tecircm de estatuir princiacutepios gerais que natildeo satildeo aplicaacuteveis sempre mas soacute as mais das vezes (Ret I 1375b)
Assim quando a lacuna existe pela vontade do legislador eacute porque o
mesmo percebendo que natildeo pode precisar toda mateacuteria ele estabelece um princiacutepio
geral que natildeo pode sempre ser aplicado agrave mateacuteria Por outro lado quando a lacuna
existe contra a vontade do legislador eacute porque o fato passou-lhe despercebido
Neste sentido a equidade possibilita ao juiz julgar ainda que natildeo conheccedila no
direito norma objetivamente correspondente de acordo com Machado Paupeacuterio []
ao juiz caberia em tais circunstacircncias reconhecer por equumlidade a exceccedilatildeo agrave
norma legal jaacute que se tivesse sido dado ao legislador prever a tal hipoacutetese ele
95
mesmo teria admitido que em tais condiccedilotildees devessem ser abertos os portotildees75
(2003 p 69)
De acordo com Aristoacuteteles
Essa eacute a razatildeo porque quando ocorrem disputas os indiviacuteduos recorrem a um juiz Dirigir-se a um juiz eacute dirigir-se agrave justiccedila pois o juiz ideal eacute por assim dizer a justiccedila personificada E tambeacutem os homens necessitam de um juiz para que este seja um elemento mediano pelo que efetivamente em alguns lugares ele eacute chamado de mediador pois pensam que se ele atinge a mediania atinge o que eacute justo Assim o justo eacute uma espeacutecie de mediania na medida em que o juiz eacute um meio (intermediaacuterio) entre os litigantes (EN V 4 1132a20)
Eacute importante destacar a observaccedilatildeo feita por Maria Helena Diniz em sua
obra Lacunas no Direito ela propotildee a existecircncia de certa dificuldade no emprego da
equidade
A equumlidade eacute teoricamente uma virtude de que deve lanccedilar matildeo o aplicador para temperar os rigores de uma foacutermula demasiado geneacuterica fazendo com que essa natildeo contrarie os reclamos da justiccedila Considera portanto a equumlidade como uma virtude informada pela justiccedila
Todavia Aristoacuteteles na praacutetica preconizava a absoluta submissatildeo do magistrado agrave lei porque entendia ser perigoso decidir por equumlidade no ambiente de corrupccedilatildeo que reinava nos Estados-cidades helecircnicos e nos tribunais corroiacutedos ateacute agrave medula pelas paixotildees poliacuteticas e pelas facccedilotildees Recomenda o mestre Estagira o juiacutezo arbitral para decisotildees de equumlidade (DINIZ 2002 p 242-243)
Essa uacuteltima observaccedilatildeo a que se refere agrave abstenccedilatildeo do emprego de juiacutezos
por equidade aparece na Retoacuterica ao que natildeo poderiacuteamos deixar de fazer
referecircncia ldquo[] preferimos uma arbitragem a um litiacutegio jaacute que o aacuterbitro leva em
conta a equidade ao passo que o juiz leva em conta a lei A arbitragem foi criada
com o propoacutesito expresso de garantir espaccedilo total para a equidaderdquo (Ret I 13
1374b20)
75
Paupeacuterio estaacute se referindo ao exemplo de Santo Tomaacutes sobre um vilarejo onde uma regra
determinasse que os portotildees permanecessem fechados durante a noite sendo que em determinada noite parte da populaccedilatildeo fosse acossada por inimigos e recorressem aos portotildees para se protegerem a questatildeo eacute deveria os guardas desobedecer a regra abrindo os portotildees com o escopo de proteger os habitantes
96
Na anaacutelise das condiccedilotildees que permitem a aplicaccedilatildeo da epiqueacuteia (III 15 e ss em especial 20) explicamos que uma delas devia ser ldquoextraordinaacuteriardquo De caso que a previsatildeo normativa deve ao seu tempo considerar o curso ordinaacuterio das coisas Pois quando nos permitimos expor uma questatildeo (ou nova condiccedilatildeo) do procedimento ldquoem regra epiqueacuteia eacute de aplicaccedilatildeo exceccedilatildeo e restritiva para os juiacutezesrdquo (SHIAVO 2013 p 27
traduccedilatildeo nossa)76
De acordo com HOumlFF (2003 p 68) ldquoVisto as regras de um modo geral
prejudicarem a justiccedila do caso individual poderiacuteamos querer abrir matildeo delas e
confiar integralmente na faculdade de juiacutezo de pessoas Mas leis satildeo melhores agrave
medida que diferentemente de pessoas satildeo de todo isentas de paixotildeesrdquo
Natildeo aparece em qualquer outra parte do texto referecircncia ao natildeo emprego
da equidade O Filoacutesofo por certo natildeo eacute da posiccedilatildeo de que os juiacutezos devem ser
concretizados pela abstenccedilatildeo legal Muito pelo contraacuterio o que vemos eacute que o justo
de modo geral eacute o justo legal afinal como jaacute esclarecido a lei promulgada da forma
correta representa o bem da comunidade A questatildeo eacute que como criteacuterio do justo a
equidade permanece como condiccedilatildeo necessaacuteria para acomodaccedilatildeo do direito e
concretizaccedilatildeo da justiccedila uma vez que o bem geral natildeo pretende causar prejuiacutezos
aos particulares Destarte eacute certo que a pretensatildeo aristoteacutelica eacute que a equidade seja
paracircmetro de formulaccedilatildeo do ldquodecreto especialrdquo ao caso concreto para que este ao
aplicar a lei ou na ausecircncia desta natildeo se afaste do real fim a que se propotildeem os
legisladores
Portanto podemos dizer que a problemaacutetica acerca da natureza essencial
do equitativo eacute dupla Se de um lado o justo legal em sua generalidade pode causar
injusticcedila pela aplicaccedilatildeo insensiacutevel da norma ao caso concreto de outro a
generalidade natildeo eacute suficiente para compreender ainda que em sua insensibilidade
para com o particular uma totalidade normativa isenta de lacunas
76
En el anaacutelisis de las condiciones que permiten la aplicacioacuten de la epiqueya (ut supra III 15 y ss en especial 20) explicamos que una de aquellas debiacutea ser lo ldquoextraordinariordquo del caso frente a lo cual la previsioacuten normativa debioacute a su tiempo considerar el curso ordinario de las cosas Pues ahora nos permitimos exponer una cuestioacuten (o nueva condicioacuten) de procedimiento ldquola regla de la epiqueya es de aplicacioacuten excepcional y restrictiva para los juecesrdquo (SHIAVO 2013 p 27 traduccedilatildeo nossa)
97
66 O homem equitativo
Por certo o equacircnime eacute tambeacutem um homem de prudecircncia pois procura
dentro daquilo que lhe eacute permitido escolher o melhor possiacutevel Shiner ao referir agrave
metaacutefora da reacutegua pluacutembea define o artiacutefice de Lesbos ldquoNenhum artesatildeo eacute perfeito
mas isso eacute em parte porque os materiais contecircm imperfeiccedilotildees Alguns artesatildeos satildeo
o melhor que podem ser - ou seja o melhorrdquo (SHINER 1994 p 1257 traduccedilatildeo
nossa77)
Aristoacuteteles daacute a definiccedilatildeo do homem equitativo
[] ele eacute algueacutem que por escolha e haacutebito faz o que eacute equitativo e que natildeo eacute inflexiacutevel quanto aos seus direitos se contentando em receber uma porccedilatildeo menor mesmo que tenha a lei ao seu lado Eacute a disposiccedilatildeo correspondente eacute a equidade a qual eacute um tipo especial de justiccedila e de modo algum uma qualidade diferente (EN V 10 1138a)
Analisemos este conceito
ldquoEle eacute algueacutem que por escolha e haacutebito faz o que eacute equitatitivordquo
Escolha segundo o Estagirita eacute ldquoum desejo deliberado de coisas em nosso
poderrdquo (EN III 3 1113a10) Em Da Alma esclarece que o desejo eacute a fonte do
movimento78 ldquoO desejo [] eacute capaz de gerar movimento independentemente do
caacutelculo ou raciociacutenio porque o apetite eacute uma forma de desejo Eacute de se notar
entretanto que enquanto o intelecto eacute sempre correto o desejo e a imaginaccedilatildeo
podem ser tanto corretos quanto incorretosrdquo (DA III 10 433a20) Sobre a
deliberaccedilatildeo esclarece que ldquoA deliberaccedilatildeo portanto eacute empregada em mateacuterias que
embora sujeitas a regras que geralmente satildeo para o bem satildeo incertas quanto aos
seus resultados ou consequecircncias ou nas quais resultados ou consequecircncias satildeo
indeterminados [] Aleacutem disso natildeo deliberamos acerca de fins mas acerca de
meiosrdquo (EN III 3 1112b10) Ainda sobre a deliberaccedilatildeo Aristoacuteteles deixa uma
importante observaccedilatildeo Eacute a de que soacute podemos deliberar acerca daquilo que estaacute
77 No craftsman is perfect but that is in part because the materials contain imperfections Some
craftsmen are the best they can be-that is to say the best 78
Assunto tratado no item 22 O Movimento da potecircncia para o ato
98
em nosso poder ldquotem que ser um bem passiacutevel de vir a ser pela accedilatildeo e apenas o
que pode ser diferente de como eacute pode de tal modo vir a serrdquo (DA III 10 433a30)
Acerca do haacutebito esclarece Pierre Pelegrin A virtude eacutetica eacute com efeito um
ldquoestadordquo do sujeito que eacute de certo modo a cristalizaccedilatildeo de bons haacutebitos que se
implantam tanto melhor no indiviacuteduo quanto mais cedo ele os adquire na vida (2010
p28)
Sobre o equitativo Aristoacuteteles apresenta o conceito quando trata do justo e
injusto79 De acordo com esta concepccedilatildeo pode-se ser justo ou injusto de duas
formas a primeira com relaccedilatildeo a observacircncia ou transgressatildeo da lei e a segunda
relacionada ao criteacuterio de igualdade Esta uacuteltima com relaccedilatildeo agrave igualdade Aristoacuteteles
nomina ldquojusto equitativordquo
Pode-se ferir o equitativo por excesso ou deficiecircncia Por excesso quando
reteacutem maior parcela do bem desejaacutevel e por deficiecircncia quando toma para si menor
parcela daquilo que natildeo eacute desejaacutevel80 Assim como na relaccedilatildeo entre perda e ganho
obtenho ganho quando adquiro mais ldquobemrdquo e menos ldquomalrdquo e obtenho perda quando
adquiro menos ldquobemrdquo e mais ldquomalrdquo (EN V 4 1132a5-15)
ldquoe que natildeo eacute inflexiacutevel quanto aos seus direitos se contentando em receber
uma porccedilatildeo menor mesmo que tenha a lei ao seu ladordquo
Este aspecto do homem equitativo parece fazer referecircncia ao sentido lato de
equidade onde ldquoser equitativo eacute mostrar indulgecircnciardquo (Ret I 13 1374b10) O
equacircnime eacute justo e ainda melhor porque ateacute em receber o que lhe eacute devido
apresenta moderaccedilatildeo Natildeo ser inflexiacutevel quanto aos seus direitos demonstra que o
equacircnime estaacute fundido com seu princiacutepio de justiccedila a equidade Pois eacute ele mesmo a
ldquojusticcedila personificadardquo81 Eacute a virtude paradigmaticamente do juiz e dos outros por
extensatildeo (SHINER 1994 p 1251-1252 traduccedilatildeo nossa)82
79
EN V 2 1130b10 80
Aristoacuteteles define a deficiecircncia como a parcela menor recebida pela viacutetima Parece-nos que deixou de desenvolver o conceito nessas linhas Mas podemos visualizar esse desdobramento pouco mais adiante quando trata do ganho e da perda Vide (EN V 4 1132a5-15) 81 EN V 4 1132a20 82
It is a virtue paradigmatically of the judge and of others by extension (SHINER 1994 p 1251-1252)
99
ldquoEacute a disposiccedilatildeo correspondente a equidade a qual eacute um tipo especial de
justiccedila e de modo algum uma qualidade diferenterdquo
Nesta uacuteltima sentenccedila ele enquanto justo age pela equidade seja por natildeo
ser inflexiacutevel com o direito ao aplicaacute-lo a si ou a outrem ou seja pela capacidade de
conhecer o princiacutepio da justiccedila onde natildeo foi convencionada regra alguma ldquoEacute a
marca de um homem educado Aristoacuteteles no diz em uma famosa passagem olhar
com precisatildeo para cada classe de coisas apenas como o permite a natureza do
assuntordquo (SHINER 1994 p 1257 traduccedilatildeo nossa)
67 Equidade e Prudecircncia
Entendendo que o uso da equidade busca uma interpretaccedilatildeo razoaacutevel
(interpretarla razonablemente) da lei Recasens Siches (2008) nos ensina a
equidade eacute a expressatildeo do justo natural em relaccedilatildeo ao caso concreto Em outras
palavras a equidade eacute o justo mas natildeo o justo legal tal como se desprende das
palavras da lei mas autenticamente sobre o caso particular (SICHES 2008 p 656
traduccedilatildeo nossa)83 Portanto ldquopode-se dizer que tanto a reacutegua de Lesbos quanto a
pedra a que ela se amolda para medir manteacutem iacutentegra a sua natureza ndash reacutegua
como reacutegua pedra como pedra ambas submetidas ao criteacuterio apreciador daquele
que se incumbe de definiccedilatildeo da medidardquo (LOPES 1993 p 46)
Tomaacutes de Aquino (1225-1274) em sua Suma Teoloacutegica procura a
compreensatildeo do que seja a equidade observando a inexistecircncia de termo correlato
na liacutengua latina da palavra grega ἐπιείκεια (epieiacutekeia)84 acaba por deixar expliacutecita a
popularidade dessa virtude entre os medievais
Os atos humanos ndash sobre os quais incidem as leis ndash satildeo singulares e contingentes e portanto podem se dar com uma infinita variedade de modos
Daiacute que natildeo seja possiacutevel estabelecer uma lei que natildeo falhe em algum caso concreto[]
84
Et ad hoc ordinatur epicheia quae apud nos dicitur aequitas E isso eacute a epiqueacuteia que entre noacutes diz-se aequitas (traduccedilatildeo nossa)
100
Nesses casos e em casos semelhantes eacute mau seguir o que estaacute estabelecido pela lei e pelo contraacuterio eacute bom passar por cima da letra da lei e seguir o que pede pelo espiacuterito de justiccedila e utilidade comum E eacute isso que faz a epiqueacuteia que entre noacutes se chama equumlidade Fica assim evidente que a epiqueacuteia eacute virtude (Sum II-II 1201)
Nesse sentido a prudecircncia e a equidade apontam para questotildees relativas agrave
deliberaccedilatildeo mais especificamente sobre como agir de acordo com o bem Ambas
parecem obrar no espaccedilo existente entre o particular e o universal Destarte eacute
preciso perceber que
[] a existecircncia insuperaacutevel de um obstaacuteculo ontoloacutegico entre a regra e sua aplicaccedilatildeo entre o universal e o particular Taylor chama esse obstaacuteculo ontoloacutegico de ldquohiato froneacuteticordquo (phronetic gap) em referecircncia direta agrave sua matriz aristoteacutelica Aristoacuteteles como Aubenque (2003 p 75) observa natildeo tem a expectativa platocircnica de poder deduzir o particular do universal Aristoacuteteles natildeo culpa a ignoracircncia dos homens por essa incapacidade Natildeo se trata para Aristoacuteteles de uma fraqueza psicoloacutegica algo que portanto pudesse ser superado pelo Rei-Filoacutesofo de Platatildeo ou pelo Juiz Heacutercules de Dworkin A impossibilidade de deduzir o particular do universal decorre da proacutepria realidade e nesse sentido natildeo pode ser superada por uma ciecircncia A aplicaccedilatildeo das regras eacute antes de tudo uma questatildeo de prudecircncia (phronesis) (OLIVEIRA 2009 p 24 negrito nosso)
Essa limitaccedilatildeo da ciecircncia eacute objeto da exposiccedilatildeo acerca da prudecircncia (ENVI
5 1140a30) O fato eacute que o conhecimento cientiacutefico envolve demonstraccedilatildeo ou seja
diz respeito agraves coisas imutaacuteveis necessaacuterias Por outro lado a prudecircncia cuida de
assuntos relacionados agrave conduta admitindo assim a variaccedilatildeo ldquoPara que seja objeto
do conhecimento cientiacutefico uma verdade tem que ser demonstrada pelo processo
dedutivo a partir de outras verdades ao passo que a arte e a prudecircncia (sabedoria
praacutetica) se referem somente a coisas mutaacuteveisrdquo (EN VI 6 1141a1)
O caraacuteter praacutetico isto eacute concernente agrave accedilatildeo proacuteprio da phroacutenesis exige portanto que ela possua o conhecimento dos casos individuais pois a accedilatildeo se produz sempre em situaccedilotildees individuais por isso a phroacutenesis requer certa experiecircncia que eacute justamente o conhecimento dos particulares A phroacutenesis contudo inclui em alguma medida tambeacutem o conhecimento do universal no sentido de que deve saber aplicar ao caso individual uma caracteriacutestica geral como mostra o exemplo dado por Aristoacuteteles Natildeo basta para produzir sauacutede (accedilatildeo) saber que as carnes leves satildeo saudaacuteveis (caracteriacutestica universal) caso natildeo se saiba
101
que a carne de galinha eacute leve (caso individual ou particular) e portanto que a carne de galinha eacute saudaacutevel (aplicaccedilatildeo do universal ao particular)
Martha C Nussbaum explica que Aristoacuteteles aponta trecircs traccedilos da mateacuteria
praacutetica que demonstram porque as escolhas praacuteticas natildeo podem mesmo em
princiacutepio ser adequadas e completamente assimiladas em um sistema de regras
universais Satildeo esses traccedilos a mutabilidade a indeterminaccedilatildeo e a particularidade
(NUSSABAUM 2009 p 263)
Eacutemile Boutroux sustenta que pelo princiacutepio da irredutibilidade essa
especulaccedilatildeo abstrata ndash a do conhecimento cientiacutefico ndash ldquoseraacute impotente para nos
fazer conhecer a natureza aiacute seraacute necessaacuteria a experiecircncia E na ordem moral as
leis seratildeo insuficientes para fazer reinar a justiccedila seraacute preciso acrescentar-lhes o
magistrado encarregado de aplicar judiciosamente as regras gerais agrave diversidade
dos casos individuaisrdquo (2006 p 127)
No mesmo sentido Pierre Aubenque direciona a relaccedilatildeo entre a prudecircncia e
a equidade sintetizando os principais toacutepicos de nossa exposiccedilatildeo Tal siacutentese tem
por base o julgamento eacutetico proacuteprio agrave Eacutetica a Nicocircmaco onde o prudente natildeo teraacute
mais por analogia o saber do geocircmetra mas o engenho do carpinteiro
[] Enquanto Platatildeo natildeo parece ter posto em duacutevida que um saber suficientemente transcendente poderia abranger a totalidade dos casos particulares Aristoacuteteles nunca espera poder deduzir o particular do universal ldquoa falta nos diz ele natildeo estaacute na lei nem no legislador mas na natureza da coisa em th fnsei ton prgmatojrdquo Onde Platatildeo via uma
fraqueza psicoloacutegica devido a ignoracircncia dos homens Aristoacuteteles reconhece como faz habitualmente um obstaacuteculo ontoloacutegico um hiato que afeta a proacutepria realidade e que nenhuma ciecircncia poderaacute superar [] se a indeterminaccedilatildeo eacute ontoloacutegica a lei soacute pode depender de uma regra ela proacutepria indeterminada tou gar aoristou aoristin tal como a reacutegua
de chumbo de lesbos cuja a inexatidatildeo permite adaptar-se adequadamente aos contornos da pedra [] Para Aristoacuteteles ao contraacuterio de uma justiccedila abstrata cientiacutefica via sua sorte ligada a da lei eacute pois a justiccedila mesma que necessita ser corrigida pela virtude da equidade [] Percebe-se o paralelismo dessa problemaacutetica com a da prudecircncia ou antes o encavalamento de ambas se a prudecircncia eacute a virtude intelectual que permite a cada vez definir a norma o equacircnime deveraacute possuir no mais alto grau a virtude da prudecircncia para aplica-la em seu domiacutenio proacuteprio [] (AUBENQUE 2008 73-76 negrito nosso)
102
Portanto a prudecircncia e equidade produzem seus efeitos no acircmbito da razatildeo
praacutetica especificamente no que concerne a aplicaccedilatildeo da norma em sua
generalidade e abstraccedilatildeo ao caso concreto que transcorre num mundo
contingencial
O equacircnime eacute antes de qualquer coisa um prudente ou seja a virtude da
prudecircncia eacute um pressuposto para o exerciacutecio da equidade Isso fica evidenciado
pelo proacuteprio papel da prudecircncia qual seja guiar e orientar as escolhas para a
concretizaccedilatildeo das demais virtudes Ademais ambos possuem como faculdade
central a disposiccedilatildeo para o bem escolher de forma acomodar o bem absoluto85 ao
melhor possiacutevel86
85
Aspecto formal da regra enquanto forma e universalidade 86
Aspecto material da accedilatildeo enquanto mateacuteria e singularidade
103
7 CONCLUSAtildeO
Foi objeto do presente trabalho uma anaacutelise das formulaccedilotildees aristoteacutelicas
acerca do conceito de prudecircncia e equidade anaacutelise essa que deveria sustentar-se
sob a eacutegide de uma inter-relaccedilatildeo entre tais conceitos
Para alcanccedilar tal objetivo propomos no capiacutetulo 2 que a contingecircncia eacute algo
que se encontra em comum na atividade de ambos os conceitos como condiccedilatildeo
necessaacuteria agrave compreensatildeo dos mesmos Por isso o que a pouco chamamos de
hiato froneacutetico natildeo eacute outra coisa senatildeo a distacircncia entre o ldquoparticularrdquo e o
ldquouniversalrdquo entre a ldquopotecircnciardquo e o ldquoatordquo e entre o ldquomelhor que posso fazerrdquo e o ldquobem
absolutordquo
No capiacutetulo 3 intitulado Eacutetica das Virtudes procuramos clarear o liame entre
as virtudes e a necessidade de accedilatildeo caracteriacutestica inerente ao mundo contingencial
Nele introduzimos no que eacute pertinente agrave nossa proposta a teoria geral das virtudes
em Aristoacuteteles estabelecendo sua relaccedilatildeo com as partes da alma e diferenciado em
morais e intelectuais Neste sentido a relaccedilatildeo entre prudecircncia e equidade parece
distanciar-se devido a prudecircncia estar situada na faculdade cientiacutefica da alma
enquanto a equidade estaacute inserida na faculdade calculadora Tal problema eacute
solucionado pelo proacuteprio Aristoacuteteles afinal a prudecircncia como ordenadora das accedilotildees
virtuosas eacute o ponto de contato entre aquilo que estaacute e aquilo que natildeo estaacute ao
alcance do homem ou seja ela age como princiacutepio informativo entre a faculdade
calculadora e a faculdade cientiacutefica da parte racional da alma Por fim foi feita uma
exposiccedilatildeo acerca da mediania como paracircmetro da razatildeo praacutetica seguida de uma
exposiccedilatildeo sobre as accedilotildees voluntaacuterias e involuntaacuterias
A partir do capitulo 4 procuramos analisar a proposta aristoteacutelica do que
seja a prudecircncia Assim concluiacutemos ser a prudecircncia uma virtude intelectual situada
na parte racional da alma mais precisamente na parte que forma opiniotildees por ser
seu objeto a especulaccedilatildeo das coisas que admite variaccedilotildees e portanto satildeo
trabalhadas pela faculdade calculadora Nesse sentido eacute a qualidade racional de
consecuccedilatildeo da verdade capaz de bem deliberar em geral
104
No capiacutetulo 5 a justiccedila foi delineada como sendo uma virtude Tal virtude eacute
dita a mais perfeita pois segundo o Estagirita nela se encontra somada todas as
virtudes O que ele quer dizer com isso eacute que o fato de natildeo se observar qualquer
uma das virtudes eacute um ato de injusticcedila Neste sentido vimos a produccedilatildeo legislativa
como uma ramificaccedilatildeo da prudecircncia nomeada por Aristoacuteteles como ciecircncia
legislativa por desempenhar um duplo papel controlador e diretivo ndash no sentido de
educar para a virtude A outra ramificaccedilatildeo eacute a ciecircncia poliacutetica que diz respeito agrave
deliberaccedilatildeo a qual divide em processo deliberativo e processo judiciaacuterio Apoacutes
visualizarmos os conceitos proacuteprios agrave teoria da justiccedila de Aristoacuteteles concluiacutemos ser
ela uma virtude moral sendo ela mesma uma mediania que faz realizar agir e
desejar o que eacute o justo A justiccedila de modo geral ganha trecircs sentidos quais sejam
legal igual e equitativo
Por fim no capiacutetulo 6 procuramos analisar o conceito de equidade
Inicialmente apresentamos seu conceito lato e stricto Em seguida procuramos
compreender a ambiguidade apresentada por Aristoacuteteles acerca do tema
Apresentamos a justiccedila enquanto equidade compreendendo natildeo ser a equidade
diferente da justiccedila mas apenas melhor que uma de suas espeacutecies Procuramos
compreender a justiccedila enquanto estabelecimento da igualdade A natureza essencial
da equidade foi estudada enquanto retificaccedilatildeo do justo legal De acordo com isso
estaacute para noacutes a metaacutefora da reacutegua de chumbo que encontra a medida justa em sua
flexibilidade uma vez que em rigidez natildeo poderia conhecer as muacuteltiplas e possiacuteveis
formas na qual flutua a contingecircncia material Uma uacuteltima anaacutelise abordou a relaccedilatildeo
entre a prudecircncia e a equidade concluindo por uma relaccedilatildeo de gecircnero e espeacutecie
uma vez que a equidade eacute uma qualidade do prudente e que possuem como
principal ponto em comum a contingecircncia enquanto condiccedilatildeo para accedilatildeo
Eacute na pergunta que fizemos na introduccedilatildeo que concluiacutemos estar a chave para
a compreensatildeo dos conceitos formulados Qual a relaccedilatildeo entre a prudecircncia e a
equidade aristoteacutelica A reposta dada pelos comentadores no capiacutetulo 6 em
especial Pierre Aubenque aponta para noacutes uma relaccedilatildeo que comporta em sua
estrutura conceitual uma interdependecircncia Nesse sentido natildeo podemos
compreender o conceito de equidade sem compreender o conceito de prudecircncia
105
Essa relaccedilatildeo pode ser travada porque ambas lidam com situaccedilotildees em
comum Elas estatildeo para o homem como soluccedilatildeo naquilo em que a Providecircncia
falha Suas funccedilotildees trabalham para indicar a melhor decisatildeo quando se tem que
escolher entre dois males Elas procuram sanar a distacircncia entre os princiacutepios gerais
e a realidade em particular Elas satildeo as articulaccedilotildees que permitem ao homem fazer
a escolha pelo melhor possiacutevel uma vez que na fraacutegil condiccedilatildeo parece tatildeo distante
do bem absoluto quanto o homem de Deus
106
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RESUMO
Esta dissertaccedilatildeo realizou um estudo acerca da concepccedilatildeo aristoteacutelica dos conceitos
de prudecircncia e equidade Seu objetivo foi analisar os conceitos de prudecircncia e
equidade e estabelecer as possiacuteveis relaccedilotildees inerentes a tais conceitos
Primeiramente procurou-se compreender a noccedilatildeo de contingecircncia verificando que
tal noccedilatildeo estaacute estritamente relacionada agrave possibilidade de accedilatildeo e portanto agrave
questotildees de razatildeo praacutetica Em seguida realizou-se uma abordagem acerca da eacutetica
das virtudes objetivando contextualizar os conceitos estudados Realizada uma
exposiccedilatildeo sobre a prudecircncia procurou-se estabelecer em linhas gerais a concepccedilatildeo
aristoteacutelica de justiccedila Por fim foi realizada uma tentativa de reconstruccedilatildeo dos
conceitos de prudecircncia e de equidade A conclusatildeo que se chegou foi a de que tanto
o conceito de prudecircncia quanto o de equidade estatildeo relacionados agrave questotildees de
razatildeo praacutetica A principal relaccedilatildeo estabelecida entre tais conceitos eacute a de que ambos
lidam com situaccedilotildees contingenciais o que evidencia a distacircncia entre o universal e o
particular que ao final chamamos de hiato-froneacutetico
Palavras-chave Aristoacuteteles Prudecircncia Equidade
ABSTRACT
This work conducted a study on the Aristotelian conception of the concepts of
prudence and equity His goal was to analyze the concepts of prudence and equity
and establish possible relationships inherent in such concepts First we sought to
understand the notion of contingency noting that such a notion is closely related to
the possibility of action and therefore the issues of practical reason Then took place
about an approach of virtue ethics aiming to contextualize the concepts studied An
exhibition about prudence sought to establish a broadly Aristotelian conception of
justice Finally an attempt was made to reconstruct concepts of prudence and equity
The conclusion reached was that both the concepts of prudence and equity are
related to issues of practical reason The main relationship between these concepts
is to both deal with contingency situations which shows the distance between the
universal and the particular which we call the phronetic gap
Key-words Aristotle Prudence Equity
LISTA DE ABREVIATURAS
AA ndash Analiacuteticos Anteriores
DA ndash Da Alma
DI ndash Da Interpretaccedilatildeo
EE ndash Eacutetica a Eudemo
EN ndash Eacutetica a Nicocircmaco
Fiacutes - Fiacutesica
Met ndash Metafiacutesica
MM ndash Magna Moralia
Pol ndash Poliacutetica
Ret - Retoacuterica
SUMAacuteRIO 1 INTRODUCcedilAtildeO12 2 A CONTINGEcircNCIA16 21 A Loacutegica16 22 O Movimento da potecircncia para o ato21 23 Indeterminismo e a eacutetica das virtudes26 231 Primeira concepccedilatildeo de acaso A boa fortuna26 232 Segunda concepccedilatildeo de acaso Acidente28 233 Terceira concepccedilatildeo de acaso contingecircncia30 2331 Trageacutedia32 3 EacuteTICA DAS VIRTUDES35 31 Eacutetica a Nicocircmaco36 32 Partes da Alma39 33 Virtudes Morais43 331 Doutrina da Mediana45 34 Accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria47 35 Virtudes Intelectuais51 4 PRUDEcircNCIA54 41 Conceito54 42 Prudecircncia e liberdade56 43 Arte e prudecircncia57 44 Deliberaccedilatildeo e Escolha58 45 O prudente61 5 JUSTICcedilA COMO VIRTUDE67 51 Justo e injusto68 52 Justo universal69 53 Justo particular71 531 Justiccedila distributiva71 532 Justiccedila corretiva72 54 Justo domeacutestico73 55 Justo poliacutetico74 551 Justo natural75 552 Justo legal (convencional)75 6 A EQUIDADE78 61 Justiccedila e equidade ambiguidade do tema79 62 Justiccedila como equidade82 621 Justiccedila e igualdade84 63 Equidade melhor que um tipo de justiccedila86 64 Natureza essencial do equitativo a retificaccedilatildeo do justo legal87 641 A metaacutefora da reacutegua de chumbo88 642 A retificaccedilatildeo do justo legal89 65 Equidade e lacuna93 66 O homem equitativo97
67 Equidade e Prudecircncia99 7 CONCLUSAtildeO103 REFEREcircNCIAS106
12
1 INTRODUCcedilAtildeO
Com o surgimento da modernidade originou-se uma ruptura nos
fundamentos da filosofia moral claacutessica Dessa forma conceitos basilares da
filosofia moral perderam os seus significados restando para o mundo
contemporacircneo apenas fragmentos de suas antigas concepccedilotildees Conforme propotildee
Alasdair MacIntyre (2001 p 15) em sua obra Depois da virtude o que possuiacutemos
satildeo apenas fragmentos de um esquema conceitual fragmentos hoje distantes de
seu contexto semacircntico o que quer dizer que utilizamos apenas os simulacros de
tais conceitos
Desse modo o significado claacutessico das virtudes da forma como
estabelecido por Aristoacuteteles foi alterado tornando-se inacessiacuteveis agrave nossa
compreensatildeo o sentido atribuiacutedo por Aristoacuteteles aos conceitos de prudecircncia e de
equidade
O conceito de prudecircncia1 apresenta significativas transformaccedilotildees
semacircnticas o que obscurece e compromete a compreensatildeo do seu significado
claacutessico Eacute o que Jean Lauand veio a perceber quando traduziu as questotildees 47-46
da Segunda Parte da Segunda Parte da Suma Teoloacutegica de Tomaacutes de Aquino
[] prudentia eacute uma daquelas tantas palavras fundamentais que sofreram desastrosas transformaccedilotildees semacircnticas com o passar do tempo
A proximidade entre nossa liacutengua e o latim de Tomaacutes natildeo nos deve enganar ocorre como diziacuteamos um conhecido fenocircmeno de alteraccedilatildeo do sentido das palavras que se manifesta muitas vezes quando lemos um autor de outra eacutepoca E natildeo soacute alteraccedilatildeo como mostra C S Lewis daacute-se frequumlentemente sobretudo no campo da eacutetica uma autecircntica inversatildeo de polaridade aquela palavra que originalmente designava uma qualidade positiva esvazia-se de seu sentido inicial ou passa a designar uma qualidade negativa
1 Optamos por escrever no termo utilizado usualmente pelos autores da liacutengua portuguesa Contudo
conforme consta desta introduccedilatildeo os conceitos proacuteprios agrave tradiccedilatildeo das virtudes perderam sua inteligibilidade restando para noacutes apenas simulacros do que um dia corresponderam De acordo com HERMANN (2007) ldquoO termo phronesis natildeo tem uma traduccedilatildeo que expresse de forma satisfatoacuteria o espectro semacircntico que possuiacutea para o mundo grego Habitualmente traduzido por prudecircncia o uso do termo descolou-se do contexto de origem e perdeu seu enraizamento eacuteticordquo O mesmo acontece com o termo Epeiqueia
13
Foi o que aconteceu entre outras com as palavras ldquoprudenterdquo e ldquoprudecircnciardquo []
Se hoje a palavra prudecircncia tornou-se aquela egoiacutesta cautela da indecisatildeo (em cima do muro) em Tomaacutes ao contraacuterio prudentia expressa exatamente o oposto eacute a arte de decidir corretamente [] virtude do liacutempido conhecimento do ser (LUAND 2005 p7-10)
O conceito de equidade igualmente nos parece de difiacutecil compreensatildeo O
dicionaacuterio grego-portuguecircs de Isidro Pereira registra as seguintes traduccedilotildees para
ἐπιείκεια conveniecircncia moderaccedilatildeo equidade epiqueia doccedilura bondade (cf
PEREIRA 1998 p 210 [verbete ἐπιείκεια]) Registrando a presenccedila de uma
traduccedilatildeo ainda mais proacutexima do termo grego epieiacutekeia menos usada contudo em
nosso vocabulaacuterio epiqueia2 Disso podemos constatar que embora a equidade
goze de grande popularidade no meio juriacutedico seu emprego por vezes varia ainda
que ligeiramente do conceito elaborado pelo Estagirita3
Portanto diante de tais dificuldades questionamos O que seria a prudecircncia
e a equidade na tradiccedilatildeo aristoteacutelica Tal questionamento nos levou a procurar nos
textos do proacuteprio Aristoacuteteles e seus comentadores os indiacutecios das formulaccedilotildees
originaacuterias Por ora o que podemos levantar eacute que ambos os conceitos satildeo
visualizados em situaccedilotildees muito aproximadas O que nos leva agrave possiblidade de
existir entre ambos uma relaccedilatildeo de interdependecircncia conceitual Talvez seja por isso
que quando Aristoacuteteles aborda as virtudes morais deixa a equidade como uacuteltimo
assunto antes de tratar da virtude intelectual da prudecircncia
Neste sentido o trabalho foi elaborado traccedilando um percurso entre as
condiccedilotildees necessaacuterias ao exerciacutecio das virtudes para em seguida procurarmos
contextualizar a teoria das virtudes como um todo e por fim conhecermos a virtude
da prudecircncia No momento subsequente realizamos uma exposiccedilatildeo da virtude da
justiccedila Apoacutes esses passos entendemos ser possiacutevel a formulaccedilatildeo das concepccedilotildees
aristoteacutelicas dos conceitos de prudecircncia e equidade
2 Abbagnano registra epiqueia como sendo sinocircnimo de equidade (1999 p 338 [verbete epiqueia])
Em seu verbete epiqueia Aureacutelio Buarque de Holanda embora natildeo a coloque como sinocircnimo de equidade registra ldquoepiqueia Sf 1 Interpretaccedilatildeo razoaacutevel de lei ou preceito 2 Fig Meio-termo moderaccedilatildeordquo Entendimento que nos parece mais proacuteximo agrave proposta Aristoteacutelica 3 Referecircncia agrave Aristoacuteteles por ser natural de Estagira uma antiga cidade da Macedocircnia situada hoje
na Greacutecia na regiatildeo de Calciacutedica
14
Dentro desse esquema o segundo capiacutetulo tem por objetivo analisar a
contingecircncia caracterizada pela indeterminaccedilatildeo objetiva na relaccedilatildeo entre o universal
e o particular como condiccedilatildeo para o exerciacutecio da razatildeo praacutetica4 Neste sentido
iremos buscar na loacutegica de Aristoacuteteles os elementos necessaacuterios para a sua
compreensatildeo
Uma concepccedilatildeo um tanto popular quando se trata de Aristoacuteteles eacute da
potecircncia e do ato A pretensatildeo eacute revisitar esse conceito com foco na relaccedilatildeo
contingencial que existe no movimento entre a potecircncia e o ato O objetivo do
capiacutetulo alcanccedila pouso numa concepccedilatildeo de contingecircncia proacutepria agrave eacutetica das
virtudes O que segue eacute a proposta de Pierre Aubenque (2008) em fazer uma
exposiccedilatildeo da contingecircncia nas concepccedilotildees de acaso Por fim eacute na trageacutedia grega
que Aubenque (2008) mostra as condiccedilotildees necessaacuterias ao exerciacutecio das virtudes
O terceiro capiacutetulo tem por objetivo trazer uma exposiccedilatildeo que contextualize
na tradiccedilatildeo aristoteacutelica das virtudes os conceitos que seratildeo estudados Neste
sentido eacute realizada inicialmente uma leitura acerca da teoria geral das virtudes na
Eacutetica a Nicocircmaco Observando as partes da alma e suas qualidades como racional e
irracional dividindo assim as virtudes em intelectuais e morais respectivamente
O quarto capiacutetulo procura reconstruir o conceito de prudecircncia relacionando-
o com a liberdade e a arte As temaacuteticas da deliberaccedilatildeo e da escolha satildeo neste
ponto inseridas como elementos indispensaacuteveis agrave anaacutelise do conceito de prudecircncia
O quinto capiacutetulo pretende oferecer uma visatildeo geral da teoria da justiccedila de
Aristoacuteteles como tambeacutem considerar o fato de Aristoacuteteles ter inserido sua exposiccedilatildeo
da equidade no livro V em relaccedilatildeo com o conceito de justiccedila objeto especiacutefico de
investigaccedilatildeo do livro mencionado
Por uacuteltimo procuramos o conceito de equidade Essa uacuteltima exposiccedilatildeo tem
por objetivo delinear a pretensatildeo de Aristoacuteteles com tal formulaccedilatildeo Nele natildeo
inserimos pretensotildees complexas acerca de teorias especiacuteficas e contemporacircneas
mas tatildeo somente a despretensiosa e sofisticada elaboraccedilatildeo aristoteacutelica do assunto
4 Sobre razatildeo praacutetica vide LACERDA Bruno Amaro O raciociacutenio juriacutedico uma visatildeo aristoteacutelica Belo
Horizonte Movimento Editorial da Faculdade de Direito da UFMG 2005
15
Eacute neste sentido que ao explicar o desdobramento da razatildeo praacutetica ele
abandona o modelo oferecido pela geometria buscando na carpintaria um novo
modelo (fiel no entanto agrave tradiccedilatildeo das virtudes) Por fim procuramos no conceito
de equidade traccedilos pertinentes agraves virtudes em geral e em especial agrave virtude da
prudecircncia
Para a conclusatildeo reservamos a tarefa de responder a seguinte questatildeo que
se impotildee apoacutes o estudo simultacircneo desses dois conceitos existe uma relaccedilatildeo
conceitual entre os conceitos de prudecircncia e equidade
16
2 A CONTINGEcircNCIA
A prudecircncia e a equidade estatildeo condicionadas ao campo da accedilatildeo Contudo
parece que ambas soacute podem se manifestar no acircmbito do contingente Sendo
portanto a contingecircncia nosso ponto de partida
Parece ser a contingecircncia um dos fenocircmenos mais intrigantes a se tratar por
uma dupla razatildeo A contingecircncia consegue ao mesmo tempo nos desmotivar por
nos ensinar a liccedilatildeo de que natildeo podemos tudo conter e que a nossa pretensiosa
construccedilatildeo cotidiana deve estar sempre alerta para as incontaacuteveis possibilidades a
qual o mundo nos submete Por outro lado e concomitantemente eacute ela quem nos
motiva que nos convida agrave accedilatildeo Pois assim como o vento escolhe seu caminho eacute
ela que tem o poder de inserir em nossas vidas as mudanccedilas pelas quais devemos
lutar para moldarmos nossos objetivos e possibilidades um ao outro
Eacute nesse sentido que nos parece liacutecita a crenccedila em uma possiacutevel
reintegraccedilatildeo do homem com a sua natureza divina pois estatildeo nas vicissitudes da
vida as liccedilotildees praacuteticas nas quais os homens podem dar o melhor de si em busca de
um aperfeiccediloamento moral
21 A Loacutegica5
Eacute no estudo da loacutegica que pretendemos encontrar nossa primeira referecircncia
sobre o que seja a contingecircncia Tradicionalmente entende-se por loacutegica o estudo
dos raciociacutenios que pretendem atraveacutes de regras proacuteprias concluiacuterem por
resultados verdadeiros Desnudando assim os raciociacutenios que se vestem com
aparente validade mas que ocultam viacutecios que os falseiam
Tais viacutecios satildeo comumente apontados como tendo duas fontes sendo uma
relacionada aos fundamentos do raciociacutenio e outra ao nexo que se estabelece entre
5 A loacutegica normalmente eacute classificada como pertencente agrave razatildeo especulativa Nosso estudo situa-se
no acircmbito da razatildeo praacutetica Natildeo obstante parece-nos que a compreensatildeo do pensamento de Aristoacuteteles daacute-se atraveacutes da compreensatildeo de seu meacutetodo que eacute abordado na loacutegica Por outro lado quando descreve o prudente Aristoacuteteles sempre faz menccedilatildeo de que ele natildeo versa apenas sobre questotildees da razatildeo especulativa mas tambeacutem questotildees de razatildeo praacutetica Portanto o conhecimento especulativo eacute pertinente ao agente da razatildeo praacutetica Vide EN VI 7 1141b15
17
eles e a conclusatildeo Nesse sentido a loacutegica aristoteacutelica eacute estudada em dois ramos
sendo eles conhecidos como Loacutegica Maior (ou material) e Loacutegica Menor (ou formal)
Comecemos pela Loacutegica Menor De acordo com o ensino tradicional de
loacutegica as proposiccedilotildees podem ser classificadas pela qualidade e pela quantidade ou
seja como afirmativas ou negativas e universais ou particulares respectivamente
Daacute-se agraves combinaccedilotildees possiacuteveis a seguinte notaccedilatildeo Se a proposiccedilatildeo for uma
universal afirmativa por exemplo Todo S eacute P6 (Todo homem eacute mortal) entatildeo temos
uma proposiccedilatildeo ldquoArdquo Se a proposiccedilatildeo for particular afirmativa por exemplo Alguns S
satildeo P (Alguns homens satildeo brancos) entatildeo temos uma proposiccedilatildeo ldquoIrdquo Se a
proposiccedilatildeo for uma universal negativa por exemplo Nenhum ldquoSrdquo eacute ldquoPrdquo (Nenhum
homem eacute mortal) entatildeo temos uma proposiccedilatildeo ldquoErdquo Se a proposiccedilatildeo for particular
negativa por exemplo Alguns S natildeo satildeo P (Alguns poliacuteticos natildeo satildeo corruptos)
entatildeo temos uma proposiccedilatildeo ldquoOrdquo
Eacute importante notar que nessa primeira classificaccedilatildeo o que se procura
evidenciar eacute a relaccedilatildeo entre o sujeito S e o predicado P sendo que pode estar-se
afirmando ou negando algo ao particular ou ao universal
Parece-nos que os termos empregados por perspicaacutecia ou feliz
coincidecircncia daacute-nos uma importante pista acerca do domiacutenio do contingente Pois eacute
justamente na tensatildeo existente entre o universal e o particular que noacutes podemos
extrair parte do conceito entatildeo estudado
Em sua liccedilatildeo sobre loacutegica Jacques Maritain (2001 p 106) explica essa
tensatildeo expondo brevemente sobre o modo como conhecemos as coisas De acordo
com ele as coisas se apresentam de duas maneiras por uma ideia ou por uma
representaccedilatildeo sensiacutevel As ideias estatildeo relacionadas como o que conhecemos por
universal ou seja lsquoaquilo que se encontra sempre idecircntico em uma multidatildeo de
indiviacuteduos um em muitos ldquounum in multisrdquorsquo
Precisando acerca do particular7 extrai-se da mesma liccedilatildeo
Aleacutem disso se examinarmos com cuidado as diversas ciecircncias isto eacute os diversos sistemas de ideacuteias pelos quais conhecemos o real constatamos que nenhuma delas tem por objeto o individual como tal [] Eacute preciso
6 ldquoSrdquo para sujeito e ldquoPrdquo para predicado
7 Maritain aborda o tema nominando o universal por ideia e o particular por representaccedilatildeo
18
que assim seja porque o individual como tal natildeo eacute explicativo (representando somente a si mesmo natildeo pode evidentemente dar a razatildeo de outra coisa) (MARITAIN 2001 p 105)
Ainda comparando os extremos da tensatildeo Jaques Maritain facilita a
compreensatildeo ldquoOra esta ideia e esta representaccedilatildeo satildeo bem diferentes a prova eacute
que posso fazer variar a segunda de muitas maneiras (o desenho que imagino pode
ser maior ou menor branco vermelho amarelo etc) sem que a primeira varie por
causa dissordquo (MARITAIN 2001 p 103)
Aiacute estaacute nossa primeira pista pois eacute no acircmbito do particular onde ldquopode-se
fazer variarrdquo ou seja onde existe uma dificuldade em predominar o certo o
determinado o evidente o necessaacuterio eacute que chamamos o domiacutenio do contingente
Aleacutem da classificaccedilatildeo pela qualidade e quantidade temos outra importante
classificaccedilatildeo que eacute pela modalidade Nesta podemos encontrar as proposiccedilotildees
como Verdadeiras Falsas8 Necessaacuterias Possiacuteveis Impossiacuteveis e Contingentes
Nas necessaacuterias9 o predicado decorre do sujeito sendo a compreensatildeo de um
indissociaacutevel da compreensatildeo do outro
Quanto agraves proposiccedilotildees possiacuteveis satildeo aquelas em que o predicado pode ser
ou natildeo ser atribuiacutedo ao sujeito Alguns filoacutesofos se restringem a essas duas
modalidades assim a compreensatildeo da contingecircncia fica embutida na modalidade
possiacutevel em outras palavras aquilo que pode ou natildeo pode ser Essa compreensatildeo
aparece na Eacutetica a Nicocircmaco (EN VI 5 1140b1 negrito nosso) ldquouma vez que natildeo
se pode deliberar sobre coisas que estatildeo no acircmbito da necessidade conclui-se que
8 Aristoacuteteles apresenta seis modalidades Os manuais de loacutegica em sua maioria apresentam apenas
quatro modalidades de proposiccedilotildees quais sejam as necessaacuterias possiacuteveis impossiacuteveis e contingentes As modalidades de proposiccedilotildees verdadeiras e falsas satildeo tratadas como valores por decorrerem do emprego das demais
9 Na Metafiacutesica Aristoacuteteles explica a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio e as demais modalidades As
foacutermulas satildeo e natildeo satildeo independentemente da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo pois foi mostrado que ningueacutem as gera ou cria Eacute por esta razatildeo tambeacutem que natildeo haacute definiccedilatildeo ou demonstraccedilatildeo de coisas individuais sensiacuteveis porque contecircm mateacuteria cuja a natureza eacute tal que pode tanto existir quanto natildeo existir Consequentemente todos os exemplos individuais delas satildeo pereciacuteveis E se entatildeo a demonstraccedilatildeo e a definiccedilatildeo de verdades necessaacuterias requerem conhecimento cientiacutefico e se tal como conhecimento natildeo poder ser agraves vez conhecimento e agraves vezes ignoracircncia (eacute a opiniatildeo que possui esta natureza) do mesmo modo tambeacutem demonstraccedilatildeo e a definiccedilatildeo natildeo satildeo passiacuteveis de variaccedilatildeo (eacute a opiniatildeo que se ocupa com aquilo que pode ser de outra maneira do que eacute) (Met 1039b25 - 1040a1)
19
a prudecircncia (sabedoria praacutetica) natildeo eacute o mesmo que conhecimento cientiacutefico porque
os assuntos relacionados agrave conduta admitem mutaccedilatildeordquo
Mais claramente Santo Tomaacutes discorre na segunda parte da Segunda
Parte Questatildeo 47 artigo 5 da Suma Teoloacutegica
Consequumlentemente se diraacute que a prudecircncia estando na razatildeo como jaacute foi dito distingue-se das outras virtudes intelectuais segundo a diversidade material de objetos Pois a sabedoria a ciecircncia e o intelecto tecircm como objetos coisas necessaacuterias a arte e a prudecircncia coisas contingentes [] (AQUINO 2004 p 593 negrito nosso)
Parece-nos importante o desdobramento nas quatro modalidades pois o
possiacutevel e contingente natildeo parecem sinocircnimos O principal argumento estaacute no fato
de que na noccedilatildeo de possiacutevel estaacute impliacutecito o seu contraacuterio ou seja o Impossiacutevel
hipoacutetese em que o predicado natildeo decorre do sujeito Por sua vez a noccedilatildeo de
contingecircncia natildeo compreende o incontingente
Em seu Dicionaacuterio de Filosofia Nicola Abbagnano expotildee no verbete
Contingente a diferenccedila entre contingecircncia e possiacutevel jaacute exposta por Boeacutecio
ldquopossibuumlerdquo e contingens significam a mesma coisa salvo talvez pelo fato de natildeo
existir o negativo de contingens que deveria ser incontingens assim como existe o
negativo de possibuumle que eacute iacutempossiacutebilerdquo (ABBAGNANO 2007 p 200)
Sendo portanto quatro as classificaccedilotildees das modalidades Necessaacuterio ou ldquoeacute
necessaacuterio que S seja Prdquo Possiacutevel ou ldquoeacute possiacutevel que S seja Prdquo Impossiacutevel ou ldquoeacute
impossiacutevel que S seja Prdquo e Contingente ou ldquoeacute contingente que S seja Prdquo
Assim as proposiccedilotildees sempre recebem o valor de verdadeiras quando
pertencem agrave modalidade Necessaacuterio recebem o valor de falsas quando pertencem agrave
modalidade Impossiacutevel recebem o valor de verdadeiras ou falsas quando pertencem
agrave modalidade Possiacutevel
Quando as proposiccedilotildees pertencem agrave modalidade Contingente natildeo podem
ser dotadas de valoraccedilatildeo uma vez que natildeo se pode decidir se satildeo verdadeiras ou
falsas Isso na loacutegica eacute conhecido como acidentes10 ou aquilo que estaacute presente e
ausente ainda que natildeo haja corrupccedilatildeo do sujeito Por isso quando se fala em
10
Retomaremos acerca dos acidentes quando estudarmos o acaso
20
contingecircncia soacute pode estar-se referindo ao momento presente ou futuro mas nunca
ao passado Satildeo nesses momentos em que impera o indeterminado que se
encontra a contingecircncia
Natildeo obstante a correta formulaccedilatildeo de um raciociacutenio eacute possiacutevel que
obtenhamos conclusotildees erradas hipoacutetese essa em que as premissas natildeo satildeo
verdadeiras Destarte diferente da loacutegica menor que se preocupa com a
conformidade das conclusotildees com as premissas a loacutegica maior preocupa-se com a
veracidade
Para que possamos compreender melhor o objeto da loacutegica maior eacute preciso
conceituar o que seja a verdade em mateacuteria de loacutegica assim valhamo-nos das
liccedilotildees de Manoel Correia de Barros (1945)
Jaacute vimos que pelo processo de abstracccedilatildeo a forma do objeto que conhecemos adquire na nossa inteligecircncia uma modalidade de existecircncia completamente diferente da que tem na realidade No objecto eacute concreta individual na inteligecircncia eacute universal abstracta A verdade do nosso conhecimento tem portanto outro significado Consiste simplesmente em natildeo atribuirmos ao objeto nenhuma nota que natildeo lhe pertenccedila na realidade Eacute o caso de analogia A relaccedilatildeo que o nosso espiacuterito estabelece entre dois conceitos deve ser idecircntica a uma relaccedilatildeo existente de facto entre os dois objetos que eles representam para que o nosso conhecimento seja verdadeiro Natildeo eacute necessaacuterio que conheccedilamos todas as relaccedilotildees entre os dois objectos e muito menos todas as relaccedilotildees de que um decircles pode ser termo para ser verdadeiro o conhecimento natildeo precisa ser exaustivo basta que a nota que afirmamos pertencer ao obejcto lhe pertenccedila realmente Assim falamos verdade quando dizemos que a neve eacute branca embora agravececircrca da neve haja muitas coisas mais a dizer e a saber
Natildeo haacute que saber duma ideia isolada se eacute verdadeira ou natildeo A questatildeo natildeo se potildee dado que a verdade eacute igualdade de relaccedilotildees que exigem claro estaacute dois termos []
Soacute pode ser verdadeiro ou falso o juiacutezo que se exprime pela proposiccedilatildeo e relaciona entre si um sujeito e um predicado Ecircsse sim se o predicado que atribuiacutemos ao sujeito lhe convecircm na realidade eacute verdadeiro se lhe natildeo conveacutem eacute falso (BARROS 1945 p 329-330)
Dessa forma para o estabelecimento da verdade eacute necessaacuterio que natildeo haja
nada de estranho ao objeto ou em outras palavras o predicado deve decorrer do
sujeito natildeo lhe dando qualquer nota que natildeo lhe pertenccedila Por isso afirma Maritain
(2001) que a verdade de nosso espiacuterito consiste em sua conformidade com a coisa
21
Nesse sentido eacute que podemos compreender o que afirmamos quando
falaacutevamos da loacutegica menor em que natildeo podemos atribuir o incerto ao passado
Pois por oacutebvio qualquer nota que natildeo lhe tenha ocorrido natildeo lhe pertence
[] os futuros contingentes natildeo existem no passado nem mesmo como verdades futuras Ontem por exemplo natildeo era uma verdade que ia hoje sair um determinado nuacutemero na lotaria porque natildeo existia ontem nenhum facto em que essa consequumlecircncia estivesse contida de modo necessaacuterio com o qual a proposiccedilatildeo em causa pudesse concordar (BARROS 1945 p 331)
Portanto como estaacute relacionado agrave coisa futura o contingente encontra-se
latente num estado de porvir Por isso eacute que estabelecemos nossa proacutexima
referecircncia acerca da contingecircncia no movimento
22 O Movimento11 da potecircncia para o ato
Eacute interessante notar que o momento propiacutecio agrave decisatildeo eacute um momento de
passagem ou em melhor termo um momento de movimento Natildeo eacute em vatildeo que
Pierre Aubenque (2008) em seu livro A Prudecircncia em Aristoacuteteles dedica boa parte
do capiacutetulo Cosmologia da Prudecircncia ndash o mesmo capiacutetulo no qual faz uma
abordagem sobre contingecircncia ndash ao tema O tempo oportuno (καιρος)
Nesse sentido estaacute [] a moral aristoteacutelica nos convidando a realizar nossa
excelecircncia neste mundo Natildeo podendo desconhecer que o mundo dura e muda no
tempo que eacute o ldquonuacutemerordquo de seu movimento (Aubenque 2008 p156)
Dessa forma eacute preciso compreender o movimento principalmente na tatildeo
conhecida passagem da Potecircncia para o Ato Como bem assinala Tomaacutes de Aquino
no artigo 5 da questatildeo 47 que estatildeo sob os auspiacutecios da contingencia tanto a
prudecircncia quanto a arte12 isso porque ambas ldquoestatildeo para serrdquo a prudecircncia para o
agir e arte para produzir13
11
Aristoacuteteles faz uma grande abordagem acerca do movimento de acordo com RUSSEL (2001) existem trecircs espeacutecies de movimento Movimento enquanto qualidade quantidade e mudanccedila de lugar REALE (1990) apresenta uma quarta divisatildeo enquanto substacircncia Dessa forma nomina o movimento entre a potecircncia e o ato como movimento enquanto qualidade proposta do presente item 12
Jaacute citado e referenciado no item 21 Esse assunto ainda seraacute tratado no item 43 Arte e prudecircncia 13
Sobre o movimento e a relaccedilatildeo entre a lei e o fato assina-la Carnelutti Assim aflora no discurso a conversatildeo do movimento na imobilidade E assim opotildee-se agrave lei ao direito O eterno contraste entre o
22
Ateacute Aristoacuteteles a concepccedilatildeo filosoacutefica acerca do movimento esteve
vinculada a duas teorias uma negava o movimento e outra o afirmava A corrente
que afirmava o movimento era liderada por Heraacuteclito de Eacutefeso (+- 540 aC)
Heraacuteclito afirmava que as coisas mudavam permanentemente em outras
palavras ele afirmava a inconstacircncia das coisas nesse sentido eacute atribuiacuteda a ele a
frase ldquoEntramos e natildeo entramos no mesmo rio Somos e natildeo somosrdquo Portanto o
movimento estaacute presente em todas as coisas agraves vezes afirmando que as coisas
ldquosatildeordquo e que ldquonatildeo satildeordquo ao mesmo tempo sendo como mais tarde diria Platatildeo ldquoO
nosso ser eacute um perpeacutetuo devirrdquo
Ao contraacuterio do que afirmava Heraacuteclito Parmecircnides de Eleia (+- 521 aC)
liderava a corrente que negava o movimento Assim Parmecircnides simplesmente
afirma que ldquoeacuterdquo Seu argumento eacute sustentado pela afirmaccedilatildeo de que aquilo que ldquonatildeo
eacuterdquo natildeo pode sequer ser imaginado pois natildeo se pode imaginar o nada Seu
pensamento culmina numa representaccedilatildeo do mundo como ldquouma esfera material
uniforme soacutelida e finita sem tempo movimento nem mudanccedilardquo (RUSSELL 2001 p
29-38)
De acordo com Parmecircnides os sentidos natildeo seriam instrumentos adequados
ao conhecimento verdadeiro sendo o conhecimento verdadeiro revelado pela razatildeo
Assim a verdade eacute apenas aquilo que eacute produzido pelo pensamento e portanto o
pensar eacute verdadeiramente ldquoserrdquo Eacute nesse sentido que afirma ser o movimento
impossiacutevel pois natildeo admite a passagem do ldquonatildeo serrdquo para o ldquoserrdquo uma vez que o
ldquonatildeo serrdquo eacute nada e natildeo pode ser inteligiacutevel
Ao contraacuterio de seus predecessores Aristoacuteteles inova conciliando ambas as
teorias Pois natildeo nega o que ldquoestaacute por virrdquo de Heraacuteclito e nem o ldquoserrdquo de
Parmecircnides
Aristoacuteteles natildeo nega o vir-a-ser de Heraacuteclito nem o ser de Parmecircnides mas une-os em uma siacutentese conclusiva jaacute iniciada pelos uacuteltimos preacute-socraacuteticos e grandemente aperfeiccediloada por Demoacutecrito e Platatildeo Segundo Aristoacuteteles a mudanccedila que eacute intuitiva pressupotildee uma realidade imutaacutevel que eacute de duas espeacutecies Um substrato comum elemento
ser e o mover-se apresenta-se tambeacutem ao jurista sub specie da oposiccedilatildeo do fato agrave lei A lei estaacute o fato move-se A lei eacute um estado o fato um desenvolvimento A lei eacute o presente o fato natildeo pode ser mais do que passado ou futuro A lei estaacute fora do tempo o fato estaacute dentro (CARNELUTTI 2003 p 40)
23
imutaacutevel da mudanccedila em que a mudanccedila se realiza e as determinaccedilotildees que se realizam nesse substrato a essecircncia a natureza que ele assume Essa contradiccedilatildeo Aristoacuteteles pretende evitar atraveacutes da interpretaccedilatildeo analoacutegica da noccedilatildeo de ser que lhe permite fazer uma distinccedilatildeo fundamental ser natildeo eacute apenas o que jaacute existe em ato ser eacute tambeacutem o que pode ser a virtualidade a potecircncia Assim sem contrariar qualquer princiacutepio loacutegico poder-se-ia compreender que uma substacircncia apresenta-se num dado momento certas caracteriacutesticas e noutra ocasiatildeo manifestasse caracteriacutesticas diferentes se uma folha verde torna-se amarela eacute porque verde e amarelo satildeo acidentes da folha (que eacute sempre folha independente de sua coloraccedilatildeo) A qualidade amarelo eacute uma virtualidade da folha que num certo momento se atualiza E essa passagem da potecircncia ao ato eacute que constitui segundo a teoria de Aristoacuteteles o movimento O termo movimento tem frequentemente a
mesma significaccedilatildeo que os vocaacutebulos mudanccedila e devir (ORIOLO
2009)
A compreensatildeo do ldquoserrdquo14 eacute explicada detalhadamente no Livro VII da
Metafiacutesica (Met VII 1 1028a10) Na passagem 1039b20 descreve a substacircncia
como sendo de dois tipos uma vez que o primeiro tipo seria uma combinaccedilatildeo de
foacutermula com a mateacuteria e o segundo tipo como sendo a forma em seu sentido pleno
Sendo a forma uma constante inadmitindo acidentes ao contraacuterio da foacutermula com a
mateacuteria que eacute passiacutevel de geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo
Portanto a mudanccedila parece compreender como predicados ato e potecircncia
pois natildeo seria possiacutevel movimento enquanto ato uma vez que neste a causa final
jaacute fora atingida nem enquanto soacute potecircncia uma vez que algo pode permanecer
nesse estado sem que haja qualquer mudanccedila Nesse sentido o movimento eacute
potecircncia e ato
Para Aristoacuteteles o movimento eacute a a realizaccedilatildeo15 daquilo que estaacute em
potecircncia (Fiacutes III 1 201 a 10) Ou seja o movimento eacute a passagem da potecircncia
para o ato Um dos exemplos citados na Fiacutesica eacute o crescimento como sendo a
realizaccedilatildeo a passagem da potecircncia para o ato16 De acordo com Russell (2001)
14
Sobre o ser vide AUBENQUE (2012) 15
έντελέχεια (enteleacutekheia) 16
Y puesto que distinguimos en cada geacutenero lo actual y lo potencial el movimiento es la actualidad de lo potencial en cuanto a tal por ejemplo la actualidad de lo alterable en tanto que alterable es la alteracioacuten la de lo susceptible de aumento y la de su contrario lo susceptible de disminucioacuten mdash no hay nombre comuacuten para ambos mdash es el aumento y la disminucioacuten la de lo generable y lo destructible es la gene- racioacuten y la destruccioacuten la de lo desplazable es el desplazamiento en tanto que decimos que es tal estaacute en actualidad entonces estaacute siendo construido tal es el proceso de construccioacuten y lo mismo en el caso de la instruccioacuten la medicacioacuten la rotacioacuten el salto la maduracioacuten y el envejecimiento (Fiacutes III 1 201 a 16)
24
Se um frasco de oacuteleo comeccedila a queimar podemos dizer que eacute assim porque jaacute o era potencialmente mesmo antes Poreacutem evidentemente isto natildeo eacute uma explicaccedilatildeo Na verdade por motivos deste tipo algumas escolas filosoacuteficas negaram que se pudesse dizer qualquer coisa uacutetil sobre o assunto Antiacutestenes de Megara foi um deles como veremos adiante Segundo este ponto de vista uma coisa eacute de um determinado tipo ou natildeo e qualquer coisa aleacutem disto eacute tolice Mas eacute claro que fazemos afirmaccedilotildees como ldquoo oacuteleo eacute inflamaacutevelrdquo e elas fazem perfeito sentido A anaacutelise de Aristoacuteteles fornece a resposta correta Ao dizermos que uma coisa eacute potencialmente A queremos dizer que sob certas condiccedilotildees seraacute de fato assim [] As condiccedilotildees em questatildeo eacute claro devem ser tais que possam de fato ocorrer quer dizer ser atuais Neste sentido o atual eacute logicamente anterior ao potencial Agora pode-se dar uma explicaccedilatildeo da mudanccedila em virtude de uma substacircncia que eacute portadora potencial de uma seacuterie de qualidades que nela se tornam sucessivamente atuais (RUSSELL 2001 p 113)
Assim poderiacuteamos dizer que o hilemorfismo eacute o locus onde Aristoacuteteles
ensaia a teoria do movimento pois eacute da realidade sensiacutevel constituiacuteda de mateacuteria17 e
forma que podemos imaginar o salto e os possiacuteveis acidentes entre a potecircncia e o
ato ldquo[] parece que para a mesma coisa eacute possiacutevel tanto ser como natildeo ser Assim
por exemplo tudo aquilo que pode caminhar ou ser cortado pode natildeo caminhar ou
natildeo ser cortado E a razatildeo disso eacute que essas coisas que satildeo desta maneira em
potecircncia nem sempre satildeo em atordquo (Da Int 21b10) Essa postura apresentada em
Da Interpretaccedilatildeo pode ser contemplada tambeacutem na Metafiacutesica ldquo[] a mesma coisa
pois pode ser potencialmente ao mesmo tempo dois contraacuterios mas natildeo pode ser
atualmenterdquo (Met IV 5 1009b34-36)
No estudo das causas18 Aristoacuteteles as classifica em quatro quais sejam
causa formal causa material causa eficiente e causa final Considerar apenas a
forma e a mateacuteria natildeo eacute suficiente pois teriacuteamos uma teoria estaacutetica Como estamos
tratando de uma realidade dinacircmica eacute necessaacuterio portanto que consideremos a
existecircncia de um agente e seu objetivo
Assim a mateacuteria eacute potecircncia por estar apta a receber a forma e
consequentemente alcanccedilar o ato Tal como o bloco de granito estaacute apto a tornar-se
a Vecircnus de Milo
17
ύλη (hyle) 18
Sobre as quatro causas Giovanni Reale explica sua relaccedilatildeo com a Fiacutesica em especial no que
concerne ao movimento vide (REALE 2001 p 57)
25
Em De Anima (432a15 - 433b) Aristoacuteteles descreve o movimento como
pertencente agrave razatildeo praacutetica De acordo com o texto o intelecto ou a razatildeo
especulativa nada pensa na esfera do praacutetico nem delibera acerca dos objetos a
serem evitados ou buscados enquanto o movimento local diz respeito sempre ao
evitar ou ao buscar de algum objeto
Nesse importante trecho estatildeo inseridas as bases do silogismo praacutetico19
destarte a assertiva que segue o trecho eacute a seguinte ldquoe o ponto final do processo
de raciocinar constitui o ponto de partida da accedilatildeo Eacute por boa razatildeo que esses dois
nomeadamente o desejo e o intelecto praacutetico satildeo considerados fonte do
movimentordquo (DA 432a17)
Em sua Metafiacutesica (1046b5) afirma que toda potecircncia racional admite
resultados contraacuterios diferente das potecircncias irracionais onde o resultado eacute
necessaacuterio O exemplo utilizado eacute o do calor e o da medicina o calor soacute pode
produzir calor enquanto a medicina pode produzir sauacutede e doenccedila
Portanto o movimento pertencente agrave razatildeo praacutetica eacute para noacutes a passagem
da potecircncia para o ato Em tal passagem podemos constatar a presenccedila de
resultados contraacuterios ou seja aquilo que eacute em potecircncia natildeo o seraacute
19
Sobre ldquosilogismo praacuteticordquo vide Pierre Aubenque (2008 p 52) ldquologo entre a teoria e a praacutetica e
finalmente entre a ciecircncia e a prudecircncia esta uacuteltima relativa menos agrave ldquodeduccedilatildeordquo que desce do
princiacutepio agrave aplicaccedilatildeo do que a um ldquoempirismordquo que se esforccedila bem ou mal por se orientar no acircmago
mesmo do particularrdquo Neste trecho parece afastar-se da loacutegica Mais adiante na p 254 aborda
novamente o tema e conclui por uma perspectiva conciliadora ou seja apresenta duas foacutermulas para
a deliberaccedilatildeo uma a do silogismo praacutetico como aplicaccedilatildeo do universal ao particular e a outra que diz
respeito agrave escolha judiciosa dos meios Em sua Histoacuteria da Eacutetica Alasdair MacIntyre (1991 p 76 -
77) ldquoAristoacuteteles caracteriza la forma de deliberacioacuten implicada como un silogismo praacutectico La
premisa mayor de un silogismo semejante es un principio de accioacuten en el sentido de que cierta clase
de cosas es buena conviene o satisface a cierta clase de personas La premisa mayor es la
afirmacioacuten garantizada por la percepcioacuten de que hay un ejemplo de que aunque misterioso en su
contenido aclara la forma del silogismo praacutectico La premisa mayor indica que el alimento seco es
bueno para el hombre la premisa menor sentildeala la presencia de ese tipo de alimento y la conclusioacuten
es que el agente lo ingiere Que la conclusioacuten es una accioacuten pone de manifiesto que el silogismo
praacutectico es un modelo de razonamiento por parte del agente y no un modelo de razonamiento ajeno
sobre lo que el agente deberiacutea hacer (por eso una segunda premisa menor que indicara por ejemplo
la presencia de un en cuanto nos alejariacutea de la cuestioacuten) Ni tampoco es un modelo de confundirse
con aquellos silogismos muy comunes cuya conclusioacuten es una afirmacioacuten de este tipo Toda su
finalidad reside en indagar el sentido en que una accioacuten puede ser la resultante de un razonamientordquo
26
necessariamente em ato Da admissatildeo de tais resultados decorre a indeterminaccedilatildeo
Eacute justamente essa indeterminaccedilatildeo que justifica a deliberaccedilatildeo
23 Indeterminismo e a eacutetica das virtudes
Iniciamos o segundo capiacutetulo afirmando que tanto a prudecircncia quanto a
equidade pertencem ao campo da accedilatildeo e que ambas se manifestam nas situaccedilotildees
contingentes20 Revisitando os conceitos da loacutegica foi possiacutevel identificar a natureza
da contingecircncia como pertencente agraves modalidades Por fim identificamos que o
movimento entre a potecircncia e o ato eacute uma fonte contingencial uma vez que a
potecircncia admite atualizaccedilotildees contraacuterias evidenciando o que chamamos de
indeterminaccedilatildeo21
Neste item pretendemos compreender a natureza da indeterminaccedilatildeo como
um chamamento para accedilatildeo asseverando as diferentes concepccedilotildees da noccedilatildeo de
acaso nas obras de Aristoacuteteles
Pierre Aubenque (2008) em seu livro A prudecircncia em Aristoacuteteles faz uma
profunda leitura das obras do Estagirita evidenciando trecircs distintas concepccedilotildees de
acaso Na primeira delas uma leitura da Eacutetica Eudecircmia onde o acaso aparece sob a
forma de ldquofortunardquo Na segunda uma leitura da Fiacutesica esboccedilando o acaso como
inserto em sua teoria da causalidade E na terceira e uacuteltima uma leitura da Eacutetica a
Nicocircmaco o acaso enquanto indeterminaccedilatildeo objetiva isto eacute contingecircncia As trecircs
concepccedilotildees satildeo detalhadamente explicadas por Pierre Aubenque (2008 p 117-
130)
231 Primeira concepccedilatildeo de acaso A boa fortuna
20
Parece que a contingecircncia se manifesta de diversa forma em cada uma das virtudes situaccedilatildeo que seraacute analisada mais detidamente no estudo de cada uma delas 21
Aqui o emprego da expressatildeo ldquoindeterminaccedilatildeordquo refere-se a admissatildeo da existecircncia do acaso em verdade natildeo eacute nossa intenccedilatildeo trabalhar a dicotomia ldquodeterminismo-indeterminismordquo
27
Na Eacutetica Eudecircmica Aristoacuteteles procura mostrar que a boa fortuna22 natildeo se
deve ao exerciacutecio das virtudes morais ou intelectuais mas ao bom nascimento
desse modo a boa fortuna eacute algo irasciacutevel
O questionamento eacute formulado Se a boa fortuna natildeo eacute produto da razatildeo
entatildeo eacute um presente de deus ou uma causa natural
As objeccedilotildees seguem no sentido de que o bom nascimento natildeo se explica
pela proteccedilatildeo divina pois seria indigno dos deuses dispensarem favores aos maus
Da mesma forma natildeo seria pela natureza uma vez que ldquoa natureza eacute causa do que
eacute sempre uniforme ou do que acontece frequentemente e o acaso eacute o oposto dissordquo
(EE VII 14 1247a14-31)
Pierre Aubenque (2008) nos daacute a seguinte soluccedilatildeo
Tal objeccedilatildeo no entanto natildeo repousaria sobre uma concepccedilatildeo errocircnea do acaso Aristoacuteteles o pergunta para sugerir uma teoria segundo a qual ldquoeacute preciso rejeitar inteiramente o acaso e dizer que nada acontece por acaso pois quando dizemos que o acaso eacute uma causa haacute na realidade uma outra causa poreacutem ocultada para noacutes Eacute por isso que quando se define o acaso o tomamos como uma causa impenetraacutevel ao raciociacutenio humano (aitian alogon anqrwpinw logismw) como se se
tratasse de uma certa naturezardquo [] essa causa oculta ao entendimento humano que se chama impropriamente acaso eacute num certo sentido uma causa natural ndash e nesse sentido eacute verdadeiro dizer que os homens afortunados o satildeo por natureza Natureza poreacutem que natildeo deve ser entendida no sentido dos fiacutesicos eacute a boa ou maacute natureza o bom ou mau nascimento que eacute um dom dos deuses natildeo para recompensar nossos meacuteritos ou para complementaacute-los mas o dom inicial constitutivo de nosso quinhatildeo que natildeo eacute pois uma consequumlecircncia mas a fonte de nossos meacuteritos ou demeacuteritos (2008 p 119)
Portanto o acaso enquanto boa fortuna parece tanto um presente de Deus
por constituir o quinhatildeo inicial quanto uma causa natural pois os afortunados o satildeo
por natureza (EE VII 14 1247b28)23
Contudo Aubenque (2008) deixa em aberto uma seacuterie de questionamentos a
essas possiacuteveis soluccedilotildees o que nos parece liacutecito uma vez que para nosso objetivo
basta compreender as consequecircncias da boa fortuna no campo da razatildeo praacutetica
Vejamos a exposiccedilatildeo 22
eutuxia 23
Natildeo obstante a essa aparente soluccedilatildeo Pierre Aubenque (2008) natildeo a daacute por resolvida o que percebemos eacute uma questatildeo que tende agrave teologia provavelmente pretende uma soluccedilatildeo no acircmbito de outra obra
28
Mas a concepccedilatildeo de acaso sugerida pelo texto natildeo eacute nem tatildeo clara nem tatildeo isenta de dificuldades como poderia parecer agrave primeira vista Pois jaacute apresenta ao lado da noccedilatildeo religiosa de acaso ndash Forccedila oculta que a tudo dirige ndash uma outra concepccedilatildeo que liga o acaso natildeo mais a transcendecircncia insondaacutevel da divindade mas agraves falhas de sua accedilatildeo Vimos nesses textos que o acaso eacute oposto agrave natureza como excepcional ao uniforme Um pouco mais longe Aristoacuteteles esclarece que o acontecimento casual eacute aquele que certamente deriva das causas embora indefinidas e indeterminadas (apeirwn kai aoristwn) ou seja
do gecircnero de causas do qual natildeo pode haver ciecircncia Sem duacutevida o sentido geral do texto permite entender que Aristoacuteteles toma facilmente o partido da impossibilidade de uma ciecircncia do acaso visto haver algo superior agrave ciecircncia que eacute Deus (AUBENQUE 2008 p 126)
As conclusotildees que se seguem satildeo consequecircncia desta O sentido eacute o de
que o acaso eacute aparente pois seria Deus o primeiro motor Assim o sendo natildeo haacute
que se falar em deliberaccedilatildeo uma vez que a inteligecircncia Divina jaacute a teria previamente
realizado A denominaccedilatildeo ldquoacasordquo eacute funccedilatildeo de nossa ignoracircncia agrave Causa das
causas ou seja Deus
A consequecircncia que estrai Aristoacuteteles eacute que os homens afortunados natildeo devem sua fortuna agrave sua inteligecircncia nem mais particularmente agrave sua capacidade de deliberaccedilatildeo ldquopara qualquer lado que se lanccedilam triunfam sem reflexatildeo (alogoi ontej) deliberar natildeo lhes serve para nada pois
tem neles um princiacutepio que eacute melhor que o intelecto e a deliberaccedilatildeo enquanto os outros tecircm apenas raciociacutenio os afortunados natildeo o tem mas satildeo habitados pelo deusrdquo
24 (AUBENQUE 2008 p 121)
Assim para os afortunados o exerciacutecio das virtudes eacute inuacutetil uma vez que jaacute
possuem os bens necessaacuterios para alcanccedilarem a felicidade Ao contraacuterio dos
afortunados tal exerciacutecio eacute para os virtuosos o caminho alternativo para se
alcanccedilar aquilo que natildeo receberam da natureza ou da Providecircncia Divina
232 Segunda concepccedilatildeo de acaso Acidente
Na Fiacutesica eacute apresentada uma teoria da causalidade que atinge tanto os
seres dotados de escolha quanto os seres natildeo dotados Pierre Aubenque (2008)
24
EE VII 14 1248a29-33
29
explica que o acaso natildeo eacute o encontro de duas seacuteries causais mas o encontro de
uma seacuterie causal real dotada de uma certa finalidade com uma finalidade
imaginaacuteria de modo que tal encontro poderia ser retrospectivamente reconstruiacutedo a
partir do resultado
O exemplo extraiacutedo da Fiacutesica25 eacute de um homem que ao ir ao mercado
encontra-se por acaso com um algueacutem que o deve os fatos se desenrolam como
se o motivo de tal homem estar ali fosse cobrar a diacutevida quando de fato o motivo
era outro Essa interpretaccedilatildeo do acaso agora parece evidente vejamos
[] este motivo o uacutenico real eacute pois causa por acidente de um efeito que natildeo era visado como tal o ressarcimento da diacutevida Como se vecirc uma tal concepccedilatildeo do acaso natildeo introduz nenhuma falha no encadeamento causal o acaso apenas acrescenta uma intenccedilatildeo a qual sendo imaginaacuteria de fato natildeo acrescenta nem suprime nada agrave realidade do processo natural O acaso nesse sentido eacute uma ilusatildeo retrospectiva a projeccedilatildeo de uma finalidade humana sobre uma relaccedilatildeo causal que eacute por si mesma inteiramente estranha a esta finalidade (AUBENQUE 2008 p 126)
Essa noccedilatildeo que segundo AUBENQUE (2008) soa como determinista
recebe mais adiante um desenvolvimento mais apurado O acaso eacute concebido natildeo
como causa mas sim como efeito Desta forma o acaso enquanto encontro de uma
seacuterie causal e de um fim natildeo perseguido aparece como fato excepcional e sem
causas ao menos determinaacuteveis pois suas causas sendo causas acidentais satildeo
indeterminaacuteveis ldquoa causa por si mesma eacute determinada a causa por acidente eacute
indeterminada pois a pletora de acidentes possiacuteveis de uma coisa eacute infinitardquo (Fiacutes II
5 196b27-29)26 ldquoO acaso natildeo aparece senatildeo num mundo onde o acidente ndash ou
seja o que adveacutem sumbanei a uma coisa ndash natildeo se deixa reduzir agrave essecircncia um
mundo onde nada eacute dedutiacutevel onde a infinidade de acidentes possiacuteveis de uma
coisa tornam imprevisiacuteveis as combinaccedilotildees que daiacute podem resultarrdquo (AUBENQUE
2008 p 127)
Portanto a noccedilatildeo de acaso apresentada na Fiacutesica diferencia-se da boa
fortuna apresentada na Eacutetica a Eudemo pois enquanto a boa fortuna refere-se ao
25
Fiacutes II 5 196b 33-197a5 26
Fiacutes II 5 196b27-29
30
bom nascimento o acidente na Fiacutesica refere-se a incontaacuteveis possibilidades que nos
impedem de antever os possiacuteveis resultados
233 Terceira concepccedilatildeo de acaso contingecircncia
Diferente das duas concepccedilotildees anteriores a exposiccedilatildeo da Indeterminaccedilatildeo
objetiva ou contingecircncia passa a ter um cunho teoloacutegico-antropoloacutegico Parece que
a visatildeo da Eacutetica a Nicocircmaco sobre o acaso estaacute mais direcionada ao traacutegico
Pierre Aubenque (2008 p 127-28) inicia fazendo um interessante paralelo
entre o Saacutebio e o Prudente procurando entre esses aquele que poderaacute atingir a
felicidade A conclusatildeo como eacute de se esperar27 indica o prudente como aquele que
poderaacute um dia ser chamado feliz
Contudo o referido autor natildeo negligencia as aparentes objeccedilotildees ateacute mesmo
porque Aristoacuteteles natildeo as negligenciou Muito pelo contraacuterio ainda que de forma
bem tiacutemida Aristoacuteteles fez breve passagem expondo a grandeza da vida
contemplativa
A argumentaccedilatildeo apresentada por comentadores28 pode ser resumida da
seguinte forma Se o que o homem tem de mais proacuteximo a Deus eacute o intelecto entatildeo
Deus quer bem os saacutebios portanto os saacutebios satildeo felizes Nesse sentido a noccedilatildeo
temporal de felicidade inexiste pois basta o exerciacutecio das faculdades intelectivas
para alcanccedilar o estado de felicidade (AUBENQUE 2008)
A objeccedilatildeo apresentada por Pierre Aubenque (2008 p128) eacute clara De
acordo com ele eacute nesse ponto que Aristoacuteteles se afasta de toda a tradiccedilatildeo socraacutetica
pois no pensamento aristoteacutelico a virtude ainda que natildeo suficiente eacute condiccedilatildeo
necessaacuteria da felicidade
Ainda de acordo com essa objeccedilatildeo estaacute que a definiccedilatildeo de felicidade eacute
composta pela virtude e pelos bens exteriores e bens do corpo Por oacutebvio esses
dois uacuteltimos bens ldquonatildeo podem ser adquiridos pelo exerciacutecio ou meacuterito eles
dependem da boa fortunardquo (AUBENQUE 2008 p 129)
27
Afinal este eacute o tema desta dissertaccedilatildeo 28
Comentadores citados por AUBENQUE (2008) ZELLER Die Philosophie der Griechen II 2 1921 4ordf DIRLMEIER F Magna Moralia 1958
31
Destarte o primeiro desses bens a virtude natildeo pode ser compreendida sem
ter por referencial a contingecircncia Pois como jaacute exposto para ser feliz eacute preciso ser
virtuoso para ser virtuoso eacute preciso ter condiccedilotildees externas para exercitar as
virtudes
[] inicialmente porque a virtude necessita de uma mateacuteria para se exercer e como vimos de um ldquomundordquo ou seja necessita de condiccedilotildees que natildeo dependem de noacutes como amigos dinheiro um certo poder poliacutetico e tambeacutem de ocasiotildees as quais natildeo se oferecem a todos (Heacutercules teve a oportunidade de encontrar o leatildeo de Nemeacuteia e a hidra de Lerna Mas num segundo sentido natildeo pode haver felicidade completa sem a plenitude da vida (bioj teleioj) o que supotildee sem
duacutevida uma duraccedilatildeo optima mas tambeacutem a integridade do corpo e a prosperidade de nossos empreendimentos o que os gregos resumem em uma palavra eupraia (AUBENQUE 2008 p129)
Para encerrar a questatildeo entre o saacutebio e o prudente eacute exposta uma seacuterie de
argumentos que pretendem demonstrar a fragilidade dos argumentos socraacuteticos por
exemplo que enquanto Deus basta a si mesmo o homem precisa ter amigos ou
que o saacutebio necessita do oacutecio Enfim tantas satildeo as condiccedilotildees externas que natildeo
parece o saacutebio poder ser tatildeo autaacuterquico quanto pretende a visatildeo socraacutetica para ser
feliz
Mas a concepccedilatildeo perseguida em A Prudecircncia em Aristoacuteteles eacute a do fracasso
da Providecircncia Divina Isso quer dizer que a ldquovirtude depende do mundo tanto
quanto de suas condiccedilotildees de existecircncia e este mundo natildeo depende de noacutes Eis o
virtuoso de Aristoacuteteles e mesmo o contemplativo ndash os quais satildeo menos duas
personagens distintas do que a mesma personagem em niacuteveis diferentes de
excelecircnciardquo (AUBENQUE 2008 p 135) ambos condicionados agrave heteronomia e agrave
relaccedilatildeo de ldquoacasordquo Haacute algo de traacutegico na vida moral decorrente da uniatildeo entre a
felicidade e a virtude que natildeo eacute por assim dizer analiacutetica como acreditavam os
socraacuteticos mas sempre sinteacutetica porque depende numa proporccedilatildeo irredutiacutevel do
acasordquo (AUBENQUE 2008 p 135)
[] o ideal de Aristoacuteteles natildeo pode consistir numa assimilaccedilatildeo ao mundo em seu conjunto visto que este soacute eacute racional em suas partes superiores mas somente na imitaccedilatildeo da ordem que nelas reina O conhecimento dessa ordem que natildeo pode ser procurado na fiacutesica como para os estoacuteicos mas na teologia eacute o que Aristoacuteteles nomeia sabedoria Mas a
32
vida segundo a sabedoria natildeo eacute imediatamente acessiacutevel ao homem por uma ascese interior pois ela depende tambeacutem em suas condiccedilotildees de realizaccedilatildeo das circunstacircncias exteriores as quais natildeo satildeo nem na aparecircncia nem profundamente inteiramente racionais O reino da sabedoria exige pois um domiacutenio preacutevio das circunstacircncias domiacutenio que natildeo pode ser adquirido senatildeo por uma accedilatildeo teacutecnica sobre o mundo Se para os estoacuteicos a indiferenccedila em relaccedilatildeo agraves circunstacircncias se justificaraacute em uacuteltima anaacutelise pela crenccedila na Providecircncia e na convicccedilatildeo correlata de que todo real eacute racional o homem de Aristoacuteteles natildeo saberaacute fingir indiferenccedila a respeito de um mundo cuja indeterminaccedilatildeo eacute a forma propriamente aristoteacutelica do mal Poreacutem aqui se opera uma inversatildeo que forneceraacute o domiacutenio e no sentido mais forte do termo a ldquochancerdquo da accedilatildeo moral se a contingecircncia eacute a fonte do mal ela torna possiacutevel as iniciativas humanas em vista do bem a indeterminaccedilatildeo signo da impotecircncia da razatildeo universal eacute ao mesmo tempo abertura agrave accedilatildeo racional do homem [] O homem de Aristoacuteteles natildeo pode se tornar indiferente agraves circunstacircncias mas lhe eacute permitido na medida em que satildeo moldaacuteveis para moldaacute-las humanamente e se natildeo eacute convidado a mudar antes seus desejos do que a ordem do mundo eacute porque Aristoacuteteles conta com o desejo racional para terminar de ordenar o mundo tomando o lugar de uma Providecircncia faliacutevel (2008 p143-145 negrito nosso)
Dessa forma natildeo depende dos homens apenas moldar seus proacuteprios
desejos mas tambeacutem o mundo por ser somente ordenado de modo geral Dessa
forma a contingecircncia eacute o mal e o remeacutedio de acordo com o desejo29 do homem Eacute
nesse sentido que devemos abordar um tema que eacute corrente entre os
comentadores30 de Aristoacuteteles a trageacutedia
2331 Trageacutedia31
O elemento traacutegico heranccedila da mais alta literatura e ao mesmo tempo do
conhecimento popular do homem grego estaacute presente na obra do Estagirita Eacute
nesse sentido que os traccedilos mais marcantes de sua filosofia estatildeo inflados com a
nossa fraacutegil condiccedilatildeo humana
29
Sobre ldquodesejordquo eacute interessante notar que eacute a fonte do movimento e tambeacutem da escolha racional Para tanto consulte De Anima e a Eacutetica a Nicocircmaco 30
Sobre ldquotrageacutediardquo Vide AUBENQUE (2008) LOPES (2007) NUSSBAUM (2009) Martha Nussbaum (2009) faz uma detalhada exposiccedilatildeo acerca do elemento traacutegico Mocircnica Sette Lopes (2007 p 51) expotildee igualmente sobre o gecircnero literaacuterio ldquoA poesia traacutegica assemelha-se a uma escultura maleaacutevel e dinacircmica que visa agrave educaccedilatildeo da alma humana pelo exemplordquo Aqui optamos pelos aspectos expostos por Pierre Aubenque uma vez que esta em concordacircncia com sua exposiccedilatildeo sobre a contingecircncia 31
Vide item 44 Deliberaccedilatildeo e Escolha
33
O que parece ser o centro de toda sua eacutetica a felicidade estaacute mediada por
uma seacuterie de condiccedilotildees que natildeo depende de noacutes conforme jaacute citamos ldquoHaacute algo de
traacutegico na vida moral [] mas sempre sinteacutetica porque depende numa proporccedilatildeo
irredutiacutevel do acasordquo (AUBENQUE 2008 p 135)
O traacutegico eacute apresentado por Aristoacuteteles com um sentido mais humanizado
que divinizado ao contraacuterio de uma trageacutedia onde os heroacuteis satildeo imortalizados por
seus feitos o Estagirita apresenta um homem que faz o melhor que pode vejamos
Se esse traccedilo natildeo surpreendeu os comentadores eacute porque o traacutegico tem em Aristoacuteteles um aspecto residual de modo que se pocircde ver nele a sobrevivecircncia de uma prudecircncia popular ndash nada aleacutem do que natildeo ser preciso desafiar os deuses proclamando em alto e bom som a autarquia e a ldquoimortalidaderdquo do homem ndash da qual Aristoacuteteles natildeo teria inteiramente se libertado ou simplesmente uma concessatildeo puramente formal a esta mentalidade [] Em Aristoacuteteles o traacutegico eacute residual poreacutem em sentido ontoloacutegico no sentido de uma distacircncia sempre estreitaacutevel mas insuprimiacutevel que separa o homem da felicidade ou mesmo separa a felicidade do homem tout court e faz com que os homens possam ser felizes mas ldquocomo os homens podem secirc-lordquo (AUBENQUE 2008 p 136)
Dessa forma a accedilatildeo humana estaacute numa aacuterea entre o melhor possiacutevel e o
bem absoluto sendo o ponto final de nossa busca o modelo inacessiacutevel ou
superlativo absoluto
Eacute dentro dessa fronteira onde falha a Providecircncia e o traacutegico mostra um
homem que age e age o melhor possiacutevel dentro de suas possibilidades que
podemos compreender os contornos que liga a contingecircncia agrave eacutetica aristoteacutelica
Portanto Pierre Aubenque (2008 p 110-112) esclarece acerca da atuaccedilatildeo
da prudecircncia no campo da contingecircncia que agir e produzir satildeo de alguma forma
se inserir na ordem do mundo para modifica-lo eacute supor que este mundo que
oferece tal latitude comporta certo jogo certa indeterminaccedilatildeo certo inacabamento
Tanto o objeto da accedilatildeo (a prudecircncia) quanto o da produccedilatildeo (a arte) pertencem pois
ao domiacutenio daquilo que pode ser diferente Ora se a disposiccedilatildeo para produzir
acompanhada de regra chama-se arte a disposiccedilatildeo para agir acompanhada de
regra chama-se prudecircncia Por isso a accedilatildeo imanente agrave praacutexis tem menos por objeto
a natureza do que suas falhas ou inacabamentos Esta indeterminaccedilatildeo eacute
34
precisamente o que permite a Aristoacuteteles classificar os processos naturais no
domiacutenio da contingecircncia
Se for pois o homem prudente aquele que estaacute apto agrave accedilatildeo moral a
decisatildeo correta e portanto ao elo que pode ligar o conhecimento geral ao
particular32 tentaremos entendecirc-lo por sua virtude a Prudecircncia Antes poreacutem para
podermos compreender tal virtude bem como na sequecircncia seu conceito de justiccedila
e de equidade devemos fazer uma passagem pela teoria geral das virtudes
32
Essa distacircncia seraacute mais bem abordada em momento oportuno ndash quando tratarmos de prudecircncia e de equidade Aubenque reporta esse assunto em sua obra O problema do ser em Aristoacuteteles (2012 p 63)
35
3 EacuteTICA DAS VIRTUDES
No quarto capiacutetulo de seus Escritos de filosofia II Henrique C de Lima Vaz
faz uma interessante abordagem acerca da eacutetica A ilustraccedilatildeo eacute dada pelo proacuteprio
tiacutetulo Do ethos agrave sociedade Poliacutetica A gecircnese do direito
A proposta do referido capiacutetulo eacute demonstrar que o direito surge com a
relaccedilatildeo eacutetica que soacute pode ser vivenciada na poacutelis ldquoO aparecimento e
desenvolvimento da sociedade poliacutetica caminham em estreita inter-relaccedilatildeo com a
formaccedilatildeo da ciecircncia do ethosrdquo (VAZ 2000 p135) Assim podemos dizer que o
estudo da eacutetica surge e se desenvolve com o surgimento e desenvolvimento da
poacutelis
Neste sentido a lei aparece revelando ter como funccedilotildees educar o indiviacuteduo
agrave vida na cidade ao mesmo tempo em que repara os conflitos onde as virtudes natildeo
satildeo observadas33
A matriz conceptual eacute representada pela ideacuteia de lei (noacutemos) que deve permitir o estabelecimento de uma proporccedilatildeo ou correspondecircncia (analogiacutea) entre a lei ou medida (meacutetron) interior que rege a praxis do indiviacuteduo e a lei da cidade que eacute propriamente o noacutemos e deve assegurar a participaccedilatildeo equumlitativa (eunomiacutea) dos indiviacuteduos no bem que eacute comum a todos e que eacute primeiramente o proacuteprio viver-em-comum De um lado a explicitaccedilatildeo da racionalidade imanente do ethos se constitui como teoria da praxis individual e assume a forma de uma doutrina da virtude (areteacute) ou da Eacutetica no sentido estrito O ethos eacute entatildeo conceptualizado fundamentalmente como haacutebito (hexis) De outro a razatildeo do ethos iraacute exprimir-se na forma de uma teoria do existir e do agir em comum e se apresentaraacute como doutrina da lei justa (politeia) O ethos eacute entatildeo conceptualizado fundamentalmente como costume A ciecircncia da politeia ou a Poliacutetica eacute assim a outra face da Eacutetica (VAZ 2000
p135)
Portanto a eacutetica pretende orientar as relaccedilotildees humanas ordenando as
accedilotildees para o bem comum
33
Voltaremos a falar sobre o assunto quando tratarmos da Justiccedila como Virtude
36
[] as virtudes natildeo encontram seu lugar na vida do indiviacuteduo mas tambeacutem na vida da cidade e que o indiviacuteduo soacute eacute de fato inteligiacutevel como um politikon zocircon
Esse uacuteltimo comentaacuterio sugere que um modo de elucidar o relacionamento entre as virtudes e a moralidade das leis eacute pensar no que consistiria em qualquer eacutepoca fundar uma comunidade para realizar um projeto comum realizar algum bem reconhecido como bem comum por todos os participantes do projeto (MACINTYRE 2001 p 256-257)
Estabelecida a relaccedilatildeo entre a eacutetica e o direito devemos agora procurar os
fundamentos da eacutetica aristoteacutelica para entatildeo verificarmos o comportamento das
virtudes da Prudecircncia da Justiccedila e da Equidade no acircmbito da justiccedila aristoteacutelica
31 Eacutetica a Nicocircmaco
Na forma que comporta o tiacutetulo deste item passaremos a tratar algumas
questotildees pertinentes ao conteuacutedo da obra Eacutetica a Nicocircmaco a fim de contextualizar
o objeto deste trabalho
Os principais escritos de Aristoacuteteles sobre eacutetica que chegaram a noacutes satildeo
Eacutetica a Nicocircmaco Eacutetica a Eudemo e a Eacutetica Maior esta uacuteltima tambeacutem conhecida
como Magna Moraacutelia Os escritos sobre eacutetica em especial a Eacutetica a Nicocircmaco e a
Eacutetica a Eudemo comportam caracteriacutesticas de notas tomadas por disciacutepulos tendo
por base os ensinamentos passados pelo Estagirita (RUSSELL 2001 p 109)
Por ser uma obra mais amplamente aceita tomaremos a Eacutetica a Nicocircmaco
como principal referecircncia aristoteacutelica para a Eacutetica das Virtudes sem contudo
ignorar algum detalhe que possa elucidar aspectos pertinentes agrave nossa pretensatildeo e
presente nas outras duas obras citadas Nesse sentido comenta Eduardo Bittar
A Ethica Nicomachea recebeu amplo tratamento devido ao interesse que desperta dos modernos comentadores da obra o mesmo natildeo sucede com as duas outras obras dedicadas agrave temaacutetica Aliaacutes a trilogia natildeo parece gerar uniformidade no corpo dos eruditos pois a recepccedilatildeo de uma (EE ou MM) ou de ambas (EE e MM) natildeo tem sido paciacutefica questionando-se natildeo soacute acerca da pertinecircncia e da originalidade destas obras mas tambeacutem acerca da cumulaccedilatildeo tautoloacutegica de escritos para o tratamento de um mesmo problema o que seria assimeacutetrico na obra aristoteacutelica onde parece ser a regra a existecircncia de uma uacutenica obra para
37
a investigaccedilatildeo de uma problemaacutetica determinada (BITTAR 2003 p992)
A Eacutetica a Nicocircmaco inicia-se traccedilando questionamentos acerca do que seja
o bem Parte-se da ideia de que o indiviacuteduo suas accedilotildees e escolhas estatildeo voltadas
a um bem Este bem eacute aquilo a que todas as coisas possuem certa tendecircncia
Assim o fim de todas as accedilotildees humanas eacute o sumo bem (EN I 1 1094a) O
conhecimento deste fim conduz agrave determinaccedilatildeo da ciecircncia cujo bem supremo eacute o
objeto
Essa ciecircncia cujo estudo caberaacute agrave Eacutetica eacute a ciecircncia mestra isto eacute a
Poliacutetica As accedilotildees por si mesmas boas e justas podem admitir uma ampla variedade
de opiniotildees e neste sentido podem ter sua existecircncia devida agraves convenccedilotildees e natildeo
naturalmente Daiacute portanto constituem objeto da poliacutetica Assim visa-se a accedilatildeo do
bem mas o seu conhecimento natildeo eacute proveitoso a todos Agravequeles que desejam e
agem conforme um princiacutepio racional isso seraacute uacutetil por outro lado natildeo teraacute utilidade
para o jovem sem experiecircncias dos fatos da vida o qual segue tatildeo somente suas
paixotildees (ENI 3 1095a)
Essa interessante passagem revela ser o objeto das deliberaccedilotildees da poacutelis
temas como o ldquobomrdquo e o ldquojustordquo Aristoacuteteles natildeo ignora o fato de que o bom e o justo
admitem uma gama de opiniotildees por isso tais temas estatildeo na pauta das
convenccedilotildees
Aristoacuteteles argumenta que o sumo bem o bem perseguido por todos natildeo
pode ser o prazer a honra ou a riqueza Sobre o prazer argumenta que natildeo pode
se identificar com o sumo bem pois o prazer e o gozo satildeo proacuteprios agrave vida levada
pelos animais inferiores34
34
Interessante nota do tradutor quando Aristoacuteteles justifica a conduta de tais pessoas por se
espelhares em pessoas de alta posiccedilatildeo como Sardanaacutepalo De acordo com a nota de nuacutemero 08 ldquoSardanaacutepalo monarca assiacuterio sem consistecircncia histoacuterica de caraacuteter miacutetico O sofista tardio Ateneu de Naucraacutetis (circa 215 AD) atriui uma espeacutecie de maacutexima a Sardanaacutepalo que eacute esthie pine paize os talla touumltouuml ouumlk axia touuml apokrotematos (esthie pine paize os talla touumltouuml ouumlk axia touuml
apokrotematos) ou seja ldquoCome bebe diverte-te visto que tudo o mais natildeo vale um estalo dos dedosrdquo lhe atribui tambeacutem um trecho de um desabafo que assim finaliza kein ekho oss efagon kai efuumlbrisa kai met eroacutetos terpn epathon ta de polla kai olbia panta leluumltaiefagon kai efuumlbrisa kai met eroacutetos terpn epathon ta de polla kai olbia panta leluumltai) quer dizer ldquoeu tenho o que comi e ainda os voluptuosos atos de ultraje e amor carnal que realizei e experimentei ao passo que minha riqueza se foirdquo (BINI 2009 p 42)
38
Ora se todo o conhecimento e todo o trabalho visam a algum bem pode-se
afirmar que o fim seraacute a felicidade (RUSSELL 2001 p127) ndash objeto final da vida
fruto de atividade conforme a mais alta de todas as formas de excelecircncia (EN X 7
1177a)
Destarte faz-se necessaacuterio buscar o bem e conhecer o que ele eacute pois a
finalidade para tudo que se faz eacute o bem A vida ativa que possui um princiacutepio
racional eacute a melhor funccedilatildeo do homem Os bens satildeo as atividades da alma e
portanto parece que a felicidade se identifica com a virtude Por conseguinte agrave
virtude cabe a atividade virtuosa Entretanto o sumo bem estaacute em ato uma vez que
pode haver um estado de acircnimo sem gerar resultado positivo
[] pois pode existir o estado de espiacuterito sem que ele produza qualquer
resultado bom como no caso de uma pessoa adormecida ou inativa por
outra razatildeo mas natildeo pode ocorrer o mesmo com a atividade conforme agrave
excelecircncia de qualquer maneira ela se manifestaraacute e bem Da mesma
forma que nos jogos oliacutempicos os coroados natildeo satildeo os homens mais
fortes e belos e sim os que competem (alguns destes seratildeo os
vitoriosos) quem age conquista e justamente as coisas boas da vida
(EN I 8 1099a)
De acordo com Aristoacuteteles a mais apraziacutevel melhor e mais nobre coisa do
mundo eacute a felicidade pois a felicidade eacute uma atividade da alma de acordo com a
virtude e natildeo sendo necessariamente esta mesma felicidade a riqueza prazer ou
honra e outros mais Constata-se assim que estes bens exteriores satildeo necessaacuterios
agrave felicidade uma vez que natildeo se podem realizar atos nobres sem os meios (EN I
8 1099b)
Questiona-se se a felicidade eacute adquirida atraveacutes da aprendizagem do
haacutebito ou se eacute uma daacutediva da Providecircncia Divina ou eacute simples produto do acaso35
Sendo a felicidade a melhor coisa do mundo entatildeo seguramente seraacute uma daacutediva
divina ainda que resulte da virtude pela aprendizagem ou adestramento Portanto
natildeo se deve confiar ao simples acaso aquilo que eacute o melhor (EN I 9 1099b)
Esse ponto sem duacutevida eacute o convite agrave accedilatildeo humana e a admissatildeo do que
denominamos fracasso da Providecircncia Uma vez que ao homem em sua condiccedilatildeo
35
Voltaremos a este ponto quando tratarmos das virtudes morais e intelectuais
39
de mortal e natildeo-Deus natildeo eacute permitido se dar ao luxo de esperar uma soluccedilatildeo vinda
dos ceacuteus Pelo contraacuterio o melhor emprego que ele pode fazer eacute agir modificando e
adaptando seus desejos e possibilidades
Sobre as virtudes afirma o Filoacutesofo que existem as virtudes intelectuais as
que resultam do ensino e necessitam de experiecircncia e tempo e as virtudes morais
as quais satildeo adquiridas atraveacutes do haacutebito e pelo exerciacutecio como neste exemplo
[] os homens se tornam construtores construindo e se tornam citaristas tocando ciacutetara da mesma forma tornamo-os justos praticando atos justos moderados agindo moderadamente e corajosos agindo corajosamente (EN II 1103b1)
Portanto eacute atraveacutes da praacutetica reiterada que pode o homem moldar seu
caraacuteter sendo o homem virtuoso resultado de uma vida guiada pela reta razatildeo
32 Partes da Alma
Como exposto eacute ldquoo bem a finalidade de todas as coisasrdquo (EN I 1 1094a1)
sendo a felicidade o bem maior a ser alcanccedilado Nesse sentido podemos afirmar
que a accedilatildeo eacute uma ldquocerta atividade da alma em conformidade com a virtude perfeitardquo
(EN I 13 1102a5)
Aristoacuteteles divide a alma em partes de acordo com as atividades inerentes a
cada uma A primeira divisatildeo comporta duas partes sendo uma irracional e outra
dotada de razatildeo
No que se refere agrave psicologia algum ensino corrente em discursos externos eacute satisfatoacuterio e pode ser aqui adotado a saber que a alma eacute bipartida uma parte sendo irracional e a outra capacitada de razatildeo (Se essas duas partes satildeo realmente distintas no sentido que o satildeo as partes do corpo ou de qualquer outro conjunto divisiacutevel ou se embora distinguiacuteveis no pensamento como duas satildeo na realidade inseparaacuteveis como os lados convexo e cocircncavo de uma curva eacute uma questatildeo que carece de importacircncia para o assunto em pauta) (EN I 13 1102a27)
40
A segunda divisatildeo refere-se agrave parte irracional da alma Tal parte comporta a
funccedilatildeo vegetativa comum a todas as coisas vivas que diz respeito agrave nutriccedilatildeo e ao
crescimento e agrave funccedilatildeo sensitiva Sobre a parte vegetativa eacute interessante notar que
natildeo obstante ser comum a todos os seres vivos sua virtude natildeo eacute caracteriacutestica
dos seres humanos Vejamos
Considera-se ademais que na parte irracional da alma haacute uma divisatildeo que parece ser comum a todas as coisas vivas possuindo natureza vegetativa Refiro-me agrave divisatildeo que produz nutriccedilatildeo e crescimento pois eacute forccediloso supormos que uma faculdade vital dessa natureza existe em todas as coisas que assimilam alimento inclusive os embriotildees sendo que a mesma faculdade estaacute presente tambeacutem no organismo totalmente desenvolvido (o que eacute mais razoaacutevel do que supor uma faculdade nutritiva distinta no uacuteltimo) A virtude dessa faculdade parece portanto ser comum a todas as coisas animadas e natildeo caracteriacutestica do ser humano pois acredita-se que essa faculdade ou parte da alma eacute mais atuante durante o sono [enquanto a bondade e a maldade se manifestam minimamente durante o sono] natildeo podendo se distinguir um homem bom de um mau (e daiacute o adaacutegio segundo o qual durante metade de suas vidas natildeo haacute diferenccedila entre o feliz e o infeliz) Isso constitui um efeito natural do fato de o sono ser uma cessaccedilatildeo das atividades da alma das quais depende sua bondade ou maldade ndash exceto pelo fato de ser possiacutevel em algum modesto grau certas impressotildees sensoriais atingirem a alma durante o sono fazendo com que os sonhos dos bons sejam melhores do que aqueles dos homens comuns (EN I 13 1102b11)
Aristoacuteteles afirma que a parte relacionada aos apetites e desejos em geral ndash
a alma sensitiva ndash comum aos animais participa de algum modo do princiacutepio
racional Portanto ainda que tal parte esteja alojada na parte irracional ela manteacutem
em certa medida relaccedilotildees com o princiacutepio racional ldquoPois aprovamos a razatildeo do
indiviacuteduo continente tanto quanto o incontinente e a parte de suas almas que eacute
racional porque os induz na senda correta e os exorta para o curso mais excelenterdquo
(EN I 13 1102b15)
Sobre essa relaccedilatildeo da parte irracional da alma com o princiacutepio racional
Aristoacuteteles afirma que ldquonatildeo se pode duvidar de que tambeacutem na alma existe um
elemento distinto do princiacutepio [racional] que a ele se opotildee e lhe resisterdquo (EN I 13
1102b20-25) Para resolver essa aparente contradiccedilatildeo Aristoacuteteles mantecircm sua
teacutecnica de citar exemplos invocando aqui o exemplo do homem continente
argumentando no sentido do paraacutegrafo supra que ldquoesse segundo elemento como
mencionamos participa do princiacutepio racional Ao menos no homem continente ele
41
acata o comando do princiacutepio e eacute incontestaacutevel que no homem moderado e
corajoso ele eacute ainda mais submisso considerando-se que todas as artes da
natureza desse [tipo de] homem se harmonizam com o princiacutepiordquo (EN I 13
1102b25-30)
Destarte parece ser o princiacutepio racional capaz em alguma medida de
acessar essa parte irracional ldquo[] esse princiacutepio racional eacute capaz de algum modo
de recorrer agrave parte irracional eacute indicado por nossa praacutetica de advertir pelo emprego
que fazemos da censura e da exortaccedilatildeo em geralrdquo (EN I 13 1102b30)
Tal parte eacute responsaacutevel pelo movimento36 essa conclusatildeo eacute desdobrada no
De Anima
Ao menos o seguinte estaacute claro desde de que tenhamos a imaginaccedilatildeo na conta de uma espeacutecie de intelecccedilatildeo haacute duas fontes do movimento local nomeadamente o desejo e o intelecto [] A conclusatildeo eacute que estes dois satildeo fontes do movimento local o intelecto e o desejo entendendo eu aqui o intelecto que calcula ou raciocina em vista de um objetivo isto eacute o intelecto praacutetico o qual difere do intelecto teoacuterico (especulativo) em funccedilatildeo do caraacuteter de seu fim Por sua vez o desejo constantemente persegue um objetivo sendo que o proacuteprio objeto do desejo torna-se princiacutepio do intelecto praacutetico e o ponto final do processo de raciocinar constitui o ponto de partida da accedilatildeo (DA III 10 433a10-20)
Dessa forma tanto a parte irracional quanto a alma como um todo eacute dupla
Sendo que sua parte vegetativa natildeo toma parte do princiacutepio racional a outra
poreacutem que compreende os apetites e o desejo em geral participa de certo modo
do princiacutepio racional sendo obediente e submissa a ele que eacute o sentido que
emprestamos ao acatamento do ldquoracionalrdquo quando falamos em dar atenccedilatildeo ao
proacuteprio pai ou aos proacuteprios amigos e natildeo aquele que atribuiacutemos ao ldquoracionalrdquo nas
matemaacuteticas (EN I 13 1102b30)
Ora a virtude tambeacutem eacute diferenciada em consonacircncia com essa divisatildeo da alma Algumas formas de virtude satildeo chamadas de virtudes intelectuais e outras de virtudes morais A sabedoria e o entendimento e a prudecircncia satildeo virtudes intelectuais a generosidade e a temperanccedila satildeo virtudes morais Ao descrevermos o caraacuteter moral de algueacutem natildeo
36
Vide o item 22 Movimento da potecircncia para o ato
42
dizemos que se trata de algueacutem saacutebio ou capaz de entendimento mas que eacute uma pessoa moderada ou soacutebria Mas um homem saacutebio tambeacutem eacute louvado por sua disposiccedilatildeo e chamamos de virtudes as disposiccedilotildees dignas de louvor (EN I 13 1103a5)
Aristoacuteteles apresenta a parte racional da alma como dotada de duas
faculdades a faculdade cientiacutefica e a faculdade calculadora (EN VI 1 1139a15)
A primeira parte eacute dita ldquocientiacuteficardquo (epistemonikoacuten) enquanto a segunda ldquocalculadorardquo (logistikoacuten) Eacute evidente que na primeira entram todas as ciecircncias teoreacuteticas seja a matemaacutetica cujos objetos satildeo necessaacuterios seja a fiacutesica e a metafiacutesica cujos objetos tecircm ao menos princiacutepios necessaacuterios mas nela entram tambeacutem as ciecircncias praacuteticas ndash cujos objetos isto eacute os bens tecircm princiacutepios como vimos ao menos ldquogeralmenterdquo necessaacuterios ndash que portanto do ponto de vista epistemoloacutegico satildeo equiparaacuteveis agravequelas que tecircm princiacutepios necessaacuterios Na segunda entram ao contraacuterio todas as atividades que tecircm por objeto realidades independentes da ldquodeliberaccedilatildeordquo humana porque ndash diz Aristoacuteteles ndash deliberar e calcular satildeo a mesma coisa e ningueacutem delibera sobre as coisas que natildeo podem ser diferentemente (BERTI 1998 p 144)
Sobre essa divisatildeo explica Giovanni Reale
E posto que sejam duas as partes ou funccedilotildees da alma racional uma a que conhece as coisas contingentes e variaacuteveis e outra que conhece as coisas necessaacuterias e imutaacuteveis eacute natural que haja uma perfeiccedilatildeo ou virtude da primeira funccedilatildeo e uma perfeiccedilatildeo ou virtude da segunda funccedilatildeo da alma racional Estas duas partes da alma racional satildeo basicamente a razatildeo praacutetica e a razatildeo teoreacutetica e as respectivas virtudes satildeo as formas perfeitas com as quais se apreende a verdade praacutetica e a teoreacutetica (REALE 1985 p 106 traduccedilatildeo nossa)
37
Conforme vimos existe uma relaccedilatildeo entre a parte racional e a parte
irracional A parte apetitiva da alma irracional tem certa subordinaccedilatildeo agrave parte
37
Y puesto que son dos las partes o funciones del alma racional una la que conoce las cosas contingentes y variables la otra la que conoce las cosas necesarias e inmutables es natural que haya una perfeccioacuten o virtud de la primera funcioacuten y una perfeccioacuten o virtud de la segunda funcioacuten del alma racional Estas dos partes del alma racional son baacutesicamente la razoacuten praacutectica y la razoacuten teoreacutetica y las respectivas ldquovirtudesrdquo son las formas perfectas con las que se aprehende la verdad praacutectica y la teoreacutetica (REALE 1985 p 106 traduccedilatildeo nossa)
43
racional De acordo com o Estagirita eacute a faculdade calculadora que controla os
desejos proacuteprios da parte apetitiva vejamos
A virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo que diz respeito agrave escolha e escolha eacute desejo deliberado conclui-se que se a escolha deve ser boa tanto a razatildeo precisa ser verdadeira quanto o desejo correto e que o desejo tem que buscar as mesmas coisas afirmadas pela razatildeo Estamos nos referindo aqui ao raciociacutenio praacutetico e ao atingimento da verdade relativamente agrave accedilatildeo no que tange ao pensamento especulativo que natildeo concerne agrave accedilatildeo ou produccedilatildeo a funccedilatildeo certa e errada consiste na consecuccedilatildeo da verdade e falsidade respectivamente O atingir da verdade eacute efetivamente a funccedilatildeo de toda parte do intelecto mas a da inteligecircncia praacutetica eacute o atingimento da verdade correspondente ao correto desejo (EN VI 2 1139a25 negrito nosso)
Compreendidas as partes da alma na forma pertinente agrave eacutetica aristoteacutelica
torna-se necessaacuterio o estudo das virtudes em conformidade com tais partes
33 Virtudes Morais
O livro II da Eacutetica a Nicocircmaco faz uma exposiccedilatildeo geral acerca das virtudes
morais Essas virtudes pertencem ao acircmbito da parte irracional da alma mais
especificamente na parte dos desejos e apetites
De acordo com o Estagirita ldquoa virtude moral ou eacutetica eacute o produto do haacutebito
[] E portanto fica evidente que nenhuma das virtudes morais eacute em noacutes
engendrada pela natureza uma vez que nenhuma propriedade natural eacute passiacutevel de
ser alterada pelo haacutebitordquo (EN II 1 1103a15)
Em seu Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Tomaacutes de Aquino esclarece que
Em contraste a virtude eacute gerada pelo costume moral A Virtude moral estaacute na parte apetitiva portanto eacute uma inclinaccedilatildeo para algo apetitivo Esta inclinaccedilatildeo ou eacute por natureza que volta para o que estaacute em conformidade ou eacute pelo haacutebito que se volta para a natureza Assim o nome Virtude moral eacute retirado do haacutebitual com poucas alteraccedilotildees Porque escrever em grego ethos com uma letra e breve designa o caraacuteter ou virtude moral Mas ythos escrito com a letra g que eacute como
44
uma larga h que significa costume Como tambeacutem entre noacutes a palavra moral as vezes significa costumes e as vezes designa o que pertence ao viacutecio ou a virtude (AQUINO 2010 p130 traduccedilatildeo nossa)
38
Aristoacuteteles compara por analogia as virtudes morais com as artes por
ambas serem adquiridas pela reiteraccedilatildeo dos atos que lhes satildeo proacuteprios Admite a
impossibilidade de prescrever com exatidatildeo tais atos contudo descreve uma
foacutermula que pretende direcionar os atos no acircmbito das virtudes Tal foacutermula consiste
em agir de acordo com a justa razatildeo39
Dessa forma o muacutesico se torna bom muacutesico executando reiteradamente
sua(s) especialidade(s) musical (ais) assim como os homens se tornam justos
praticando atos de justos e corajosos realizando atos corajosos
Nessa altura do livro II Aristoacuteteles revela uma das funccedilotildees da lei educar
Vejamos suas palavras ldquo[] legisladores tornam os cidadatildeos bons treinando-os em
haacutebitos de accedilatildeo correta o que eacute a meta de toda a legislaccedilatildeo que se falhar no seu
atingimento seraacute um fracasso [tarefa] no que se distingue a boa constituiccedilatildeo da
maacuterdquo (EN II 1 1103b1-5)
Mas no que consistiria essa boa educaccedilatildeo A resposta dada eacute gostar e natildeo
gostar das coisas apropriadas Assim eacute desenvolvida a teoria geral das virtudes ou
doutrina da mediania pois assim como acontece no que diz respeito agrave sauacutede
acontece com as virtudes ambas satildeo afetadas pelo excesso e pela deficiecircncia
Uma indicaccedilatildeo de nossas disposiccedilotildees eacute fornecida pelo prazer ou pela dor que acompanha nossas accedilotildees []
Na verdade a virtude moral concerne a prazeres e dores pois o prazer nos leva a realizar as accedilotildees vis e a dor nos leva a deixar de realizar accedilotildees nobres []
Ademais se as virtudes tecircm a ver com accedilotildees e paixotildees e toda paixatildeo e toda accedilatildeo satildeo acompanhadas por prazer e dor isso constitui uma demonstraccedilatildeo adicional de que a virtude diz respeito ao prazer e agrave dor[]
38
En cambio la virtude se genera por la costumbre moral La virtud moral estaacute en la parte apetitiva por eso supone cierta inclinacioacuten a algo apetecible Esta inclinacioacuten o es por naturaleza la cual inclina a lo que le es conforme o es por la costumbre que se vuelca hacia la naturaleza Por eso el nombre de la virtude moral estaacute tomado de la costumbre con poco cambio Porque em grego ethos escrito com a letra e breve designa el caraacutecter o virtude moral Pero ythos escrito com la g que es
como uma N larga significa costumbre como tambieacuten entre nosotros la palabra moral a veces significa costumbre y a veces designa lo que pertenece al vicio o a la virtud (AQUINO 2010 p130) 39
Conforme formulaccedilatildeo tomista recta ratio agibilium
45
Mas os seres humanos se corrompem atraveacutes de prazeres e dores a saber quer perseguindo e evitando os prazeres e dores equiacutevocos quer os perseguindo e evitando no momento equiacutevoco ou da maneira equiacutevoca ou em um dos meios equiacutevocos [] (EN II 3 1104b)
Destarte a virtude moral eacute a qualidade segundo a qual se age da ldquomelhor
formardquo40 em relaccedilatildeo aos prazeres e dores sendo o viacutecio o oposto As virtudes satildeo
definidas por Aristoacuteteles como ldquoa disposiccedilatildeo que o torna um bom ser humano e
tambeacutem o que o faraacute desempenhar sua funccedilatildeo bemrdquo (EN II 6 1106a22)
Nesse sentindo a virtude natildeo eacute nem uma paixatildeo nem uma faculdade mas
um estado de caraacuteter O que a torna distinta eacute o fato de consistir na disposiccedilatildeo de
escolher o meio-termo
331 Doutrina da Mediania
Os atos praticados pelos homens em suas muacuteltiplas relaccedilotildees eacute que os
tornam justos ou injustos Explica o Filoacutesofo41 que eacute necessaacuterio cultivar o haacutebito de
praticar atos virtuosos desde a juventude Nesse sentido
[] a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia e pelo excesso tal como vemos acontecer com o vigor e a sauacutede (temos de explicar o invisiacutevel recorrendo a evidencia do visiacutevel) os exerciacutecios excessivos ou deficientes destroem igualmente o vigor e de maneira idecircntica as bebidas e os alimentos de mais ou menos destroem a sauacutede ao passo que seu uso em proporccedilotildees adequadas produz aumenta e conserva aquele e esta (EN II 2 1104a)
Sendo a virtude mais exata do que toda e qualquer arte e por possuir como
atributo o meio-termo o excesso ou a falta podem ser-lhe destrutivos Tanto o
excesso quanto a carecircncia satildeo graves formas de erro Entretanto o meio-termo
mostra-se como uma forma digna de louvor fazendo da virtude uma mediania Mas
ressalte-se que se trata de meio termo entre dois viacutecios Contudo nem toda accedilatildeo e
40
Vide o item 2331 Trageacutedia 41
Como Aristoacuteteles era referenciado por Tomaacutes de Aquino
46
nem toda paixatildeo admitem meio termo eacute o que observa ROSS (1957 p 231)42
ldquoPorque a mediania eacute num certo sentido um extremo []rdquo (EN II 6 1107a25)
Portanto do excesso ou da falta natildeo existe meio termo
[] se a virtude como a natureza eacute mais exata e melhor do que qualquer forma de arte se concluiraacute que a virtude deteacutem a qualidade de visar a mediania Eu me refiro agrave virtude moral
43 pois esta concerne agraves
paixotildees e accedilotildees nas quais se pode dispor de excesso ou deficiecircncia ou da devida mediania Por exemplo algueacutem pode estar receoso ou confiante sentir desejo ira ou compaixatildeo e experimentar prazer e dor em geral seja em excesso ou deficientemente e em ambos os casos indevidamente ao passo que experimentar esses sentimentos na ocasiatildeo certa oportunamente em relaccedilatildeo agraves pessoas certas para o propoacutesito certo e da maneira certa corresponde a sentir a medida melhor deles a qual eacute a quantidade meacutedia sendo que a melhor medida ou quantidade eacute evidentemente a marca da virtude Analogamente pode haver excesso deficiecircncia e a devida mediania nas accedilotildees (EN II 6 1106b20)
A virtude eacute entatildeo uma disposiccedilatildeo estabelecida que leva agrave escolha de accedilotildees
e paixotildees e que consiste essencialmente na observacircncia da mediania relativa a noacutes
sendo isso determinado pela razatildeo isto eacute como o homem prudente o determina
(EN II 6 1107a) As conclusotildees do Livro II apontam o quatildeo eacute difiacutecil atingir o meio-
termo uma vez que o mesmo natildeo eacute apreendido pelo raciociacutenio e sim pela
percepccedilatildeo Ele aponta trecircs regras como orientaccedilatildeo
A primeira regra eacute evitar o extremo que mais se opotildee agrave mediania Para natildeo
abandonar o estilo o Estagirita cita o conselho de Calipso personagem de a
Odisseacuteia ldquoPilota o navio o mantendo longe do borrifo e das vagasrdquo E continua
explicando ldquoPois dos dois extremos um deles constitui erro mais grave do que o
outro Por conseguinte porquanto atingir a mediania eacute extremamente difiacutecil a
42 Aristoteles luego nos previene contra un equivoco posible senalando queentre los sentimientos y
las acciones que se pueden nombrar no todos admiten un justo medio los nombres mismos de algunos de ellos tales como la desverguenza la envidia el adulterio el robo el asesinato implican su maldad Es decir que estos nombres no se aplican a los sentimientos moralmente indiferentes que son asunto de la virtud sino a un exceso vituperable de estos sentimientos no a las acciones que se relacionan con cierta clase de objeto sino a las acciones inicuas que se relacionan con este objeto La desverguenza es una incorrecta falta de verguenza el robo es un incorrecto exceso en la adquisicion de la riqueza El justo medio se opone al exceso y al defecto y por consecuencia no hay justo medio del exceso o del defecto como no existe exceso o defecto del justo medio (ROSS 1957 p 231)
43
Nota do tradutor de nuacutemero 48 Ou seja a teoria da mediania natildeo eacute aplicaacutevel agraves virtudes intelectuais (BINI 2009 p 77)
47
segunda melhor forma de navegar como indica o proveacuterbio eacute assumir o menor dos
males e a melhor maneira de fazecirc-lo seraacute a maneira que descrevemosrdquo (EN II 9
1109a30)
A segunda regra valendo-se do exemplo do carpinteiro em seu meacutetodo para
endireitar a madeira empenada consiste em observar os erros a que estamos mais
propensos de acordo com quais prazeres e dores experimentamos De posse de tal
observaccedilatildeo devemo-nos afastar do erro costumeiro estabelecendo assim um curso
mediano (EN II 9 1109b1)
Por fim o terceiro exemplo invocando Helena personagem de a Iliacuteada de
Homero
ldquo[] temos que em tudo que estar mais do que qualquer outra coisa de guarda contra o que eacute prazeroso e contra o prazer porque quando este estaacute em julgamento natildeo somos juiacutezes imparciais O procedimento correto eacute portanto encarar o prazer como os anciotildees do povo encaravam Helena e empregar (ou repetir) o discurso que dirigiram a ela em todas as ocasiotildees pois se assim o descartarmos teremos menos probabilidade de nos extraviar (EN II 9 1109b1)
Portanto podemos chamar de accedilatildeo virtuosa aquela que eacute direcionada pela
mediania que se projeta na melhor quantidade medida ocasiatildeo oportunidade e em
relaccedilatildeo agraves pessoas certas O acircmbito da accedilatildeo comporta uma biparticcedilatildeo que deve ser
considerada em se tratando de virtude a saber accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria
34 Accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria
Embora a virtude esteja relacionada com paixotildees e accedilotildees um sentimento ou
uma accedilatildeo pode ser algo voluntaacuterio ou involuntaacuterio Louvor e censura agraves paixotildees e
accedilotildees voluntaacuterias e perdatildeo e piedade agraves involuntaacuterias (EN III 1 1109b30)
Para Aristoacuteteles voluntaacuterio eacute o ato de escolher Mas eacute preciso fazer certas
ressalvas neste sentido Ora o que se pratica sob o impulso do momento pode ser
voluntaacuterio mas natildeo escolhido pois a escolha natildeo eacute comum aos seres irracionais
Escolher envolve um princiacutepio racional bem como o pensamento O objeto da
48
escolha apresenta-se ao alcance e o mesmo eacute desejado apoacutes uma deliberaccedilatildeo
Assim escolha eacute um desejo deliberado (EN III 1112a - 1113a) O fim eacute aquilo que
se deseja jaacute o meio eacute aquilo que eacute deliberado e escolhido e assim as accedilotildees devem
concordar com as escolhas e estas devem ser voluntaacuterias Com isso afirma o
Estagirita que a virtude estaacute ao poder de escolha do homem porque o exerciacutecio da
virtude diz respeito aos meios Aquilo cujo motor estaacute no agente que possui
conhecimento das circunstacircncias particulares do ato parece ser o que eacute voluntaacuterio
Involuntaacuterio segundo Aristoacuteteles eacute o que acontece sob compulsatildeo e
ignoracircncia em que o princiacutepio motor encontra-se externo ao indiviacuteduo e para o que
em nada contribui ou influi o indiviacuteduo que age ou sente a paixatildeo (EN III 1111b)
Assim atos encontram-se no homem e devem estar em seu poder e serem
voluntaacuterios Atraveacutes do exerciacutecio de atividades sobre os objetos particulares formam-
se as disposiccedilotildees de caraacuteter
[] um homem doente natildeo ficaraacute bom desta maneira embora possa acontecer que sua doenccedila seja voluntaacuteria no sentido de ser o resultado de sua vida de dissipaccedilatildeo e de sua desobediecircncia aos meacutedicos Neste caso de iniacutecio teria dependido dele natildeo ficar doente mas natildeo agora que ele desperdiccedilou sua oportunidade da mesma forma que depois de atirar uma pedra natildeo eacute possiacutevel fazecirc-la voltar atraacutes natildeo obstante a pessoa que atirou a pedra eacute responsaacutevel por havecirc-la apanhado e lanccedilado pois a origem do ato estava nesta pessoa (EN III 5 1114a)
Constata-se vaacuterias vezes a afirmaccedilatildeo da responsabilidade do homem diante
de suas accedilotildees Eacute importante observarmos assim como Pierre Aubenque (2008) o
fez que o homem natildeo eacute responsaacutevel por sua vontade mas por suas escolhas de
acordo com Aubenque (2008 p 222) ldquoNa perspectiva de Aristoacuteteles e dos gregos
a vontade natildeo eacute responsaacutevel pelo mal Ao contraacuterio o mal eacute o responsaacutevel pela maacute
qualidade da vontade [] Pois um homem nunca quer o mal enquanto tal pode
querer mal o bem e querendo o bem em geral escolher cada vez mais o menor
bemrdquo
49
Duas pressuposiccedilotildees fundamentam como princiacutepio da responsabilidade A
realidade eacute contingente44 e depende do indiviacuteduo que age Para que uma accedilatildeo seja
considerada virtuosa devem estar presentes estas duas exigecircncias uma vez que
[] onde estaacute ao nosso alcance agir tambeacutem estaacute ano nosso alcance
natildeo agir e onde somos capazes de dizer ldquonatildeordquo tambeacutem somos capazes
de dizer ldquosimrdquo consequumlentemente se agir quando agir eacute nobilitante
estaacute ao nosso alcance natildeo agir que seraacute ignoacutebil tambeacutem estaraacute ao
nosso alcance Se estaacute ao nosso alcance entatildeo praticar atos
nobilitantes ou ignoacutebeis e se isto era o que significava ser bom ou mau
estaacute igualmente ao nosso alcance ser moralmente excelentes ou
deficientes (EN III 5 1113b)
Para Aristoacuteteles o caraacuteter eacute resultado dos atos humanos conforme
argumenta a Eacutetica a Nicocircmaco Assim agindo desta ou daquela maneira adquire-se
uma ou outra disposiccedilatildeo eacutetica A realizaccedilatildeo de coisas justas resultaraacute em bons
haacutebitos e tornaraacute o caraacuteter justo (EN II 4 1105b) Ao agir de modo intemperante
adquire o haacutebito de ceder tatildeo somente aos desejos que conduz agrave intemperanccedila O
caraacuteter eacute assim o produto dos atos de seu autor e natildeo algo advindo da educaccedilatildeo
da condiccedilatildeo social ou da natureza
Assim os viacutecios e as virtudes possuem significado moral e natildeo satildeo somente
traccedilos psicoloacutegicos adquiridos Isto se daacute uma vez que pertencem ao campo daquilo
que depende do homem Ao agir o ser humano natildeo faz algo ao qual teraacute que
responder mais tarde como tambeacutem estaacute escolhendo o que seraacute Por isso ao agir
contra a regra que conhece estaacute consentindo em se tornar cego agrave lei e em natildeo
saber mais onde estaacute o bem Neste sentido a lei pune com maior severidade o
intemperante por ele deliberar em vista de um fim mau mesmo que possua a
capacidade de deliberar para o fim beniacutefico A ignoracircncia da regra pelo adulto
acresce a culpabilidade quando eacute produto de uma vida intemperante (EN III 5
1114a)
[] somente uma pessoa totalmente insensata poderia deixar de perceber que as disposiccedilotildees de nosso caraacuteter satildeo o resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injusto ou um homem que age
44
Veja o segundo capiacutetulo Contingecircncia
50
concupiscentimente natildeo deseje ser concupiscente Mas se uma pessoa pratica accedilotildees que a torna injusta sem ser ignorante ela seraacute injusta voluntariamente Disto natildeo resulta poreacutem que se ela quiser deixaraacute de
ser injusta e passaraacute a ser justa da mesma forma (EN III 5 1114a)
Ao abordar a responsabilidade humana Aristoacuteteles destaca que as
disposiccedilotildees satildeo voluntaacuterias de modos distintos
[] as accedilotildees e disposiccedilotildees natildeo satildeo voluntaacuterias de maneira idecircntica pois somos senhores de nossas accedilotildees do principio ao fim se conhecemos os fatos particulares mas embora tenhamos o controle da fase inicial de nossas disposiccedilotildees a evoluccedilatildeo de cada estaacutegio das mesmas natildeo eacute perceptiacutevel tal como acontece nas doenccedilas mas jaacute que a maneira de agir dependia de noacutes as disposiccedilotildees morais satildeo voluntaacuterias (EN III 5 1114a30)
O ato depende do ser humano em sua inteligibilidade porque o ser humano
possui um domiacutenio sobre as consequecircncias diretas do mesmo Por outro lado o ser
humano natildeo pode antecipar todas as consequecircncias advindas indiretamente dos
haacutebitos que ele assume O caraacuteter eacute imputaacutevel ao ser humano uma vez que agindo
ele tambeacutem estaacute forjando os seus haacutebitos
Embora o ser humano seja senhor de seus atos a cada instante ele natildeo
pode modificar o seu caraacuteter quando bem quer sendo que isso equivaleria a dizer
que o ser humano natildeo tem caraacuteter Assim apoacutes certo tempo o caraacuteter parece que
ficou tatildeo marcado que se torna impossiacutevel transformaacute-lo Resulta entatildeo o problema
da perfectibilidade do caraacuteter (EN III 5 1114a)
Ora cada ser humano eacute autor de seus atos enquanto eacute agente o que se
determina a um fim Sendo a escolha intencional dirigida pelo caraacuteter pode-se
afirmar que o ser o homem eacute causa de seus atos enquanto agente que consente
Assim de fato natildeo eacute o seu caraacuteter o determinante de sua decisatildeo (EN III 4 1113a)
Para Aristoacuteteles o caraacuteter comeccedila sua formaccedilatildeo durante a infacircncia Segundo
ele o jovem age para formar o seu caraacuteter enquanto que o adulto age a partir de seu
caraacuteter tendo a intenccedilatildeo de ser feliz Entretanto como os fins visados dependem do
caraacuteter as decisotildees do adulto apresentam-se como determinadas pelo seu
condicionamento educativo o qual ocorreu na infacircncia
51
O Estagirita afirma que o caraacuteter do jovem o qual eacute formado a partir dos
haacutebitos e da educaccedilatildeo que recebe ainda natildeo eacute nem vicioso e nem virtuoso Pode-
se prefigurar a virtude futura pelo amor ao belo pela justiccedila do gosto ou a nobreza
das paixotildees Tanto a virtude quanto o viacutecio somente se desenvolvem atraveacutes dos
atos dos quais somente o adulto eacute capaz uma vez que se realizam notadamente no
acircmbito da vida ciacutevica e militar A entrada na vida adulta quando satildeo tomadas as
primeiras decisotildees eacute quando se realizam os primeiros atos verdadeiros Natildeo se
pode negar entatildeo a influecircncia do caraacuteter adquirido pela educaccedilatildeo Assim o homem
comeccedila ao entrar na vida adulta a realizar alguma coisa que propotildee e visa fins ou
seja ele se torna o verdadeiro autor de seus atos e eacute responsaacutevel por aquilo que faz
e por aquilo que eacute Nesse momento eacute pela docilidade ou pela rebeliatildeo que o jovem
adquire boas ou maacutes disposiccedilotildees diante das paixotildees Por outro lado o adulto
adquire viacutecio ou virtude ou seja um caraacuteter moral atraveacutes de suas decisotildees
Assim com o passar do tempo um haacutebito tende a se repetir isto eacute ele
amplifica o que se comeccedilou melhorando sempre mais ou dirigindo-se cada vez mais
agrave decadecircncia Para o homem se tornar bom a exigecircncia eacutetica estaria reservada
agravequeles que tivessem comeccedilado bem aos demais soacute seria possiacutevel constatar seus
viacutecios e incoerecircncias Desta forma pode-se concluir que a eacutetica aristoteacutelica estaria
reservada somente a uns eleitos bem educados e aos outros ela condenaria a um
encadeamento fatiacutedico resultado de uma maacute educaccedilatildeo e consequente praacutetica
reiterada de viacutecios
Tendo revisitado as virtudes pertinentes agrave parte irracional da alma
passaremos a estudar as virtudes pertinentes agrave parte racional da alma que satildeo as
virtudes intelectuais
35 Virtudes Intelectuais
As virtudes como vimos satildeo de dois tipos a intelectual e a moral As
virtudes intelectuais satildeo majoritariamente tanto produzidas quanto ampliadas pela
instruccedilatildeo o que por certo exige experiecircncia e tempo (EN II 1 1103a15) As
virtudes intelectuais satildeo o objeto do livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco
52
Ao abordar tais virtudes Aristoacuteteles reapresenta a foacutermula da reta razatildeo ldquoJaacute
vimos que eacute certo escolher a mediania e evitar o excesso e a deficiecircncia e que a
mediania eacute fixada pela justa razatildeordquo (EN 1138b20)
Toda via estando algueacutem de posse dessa verdade isso natildeo o tornaraacute mais saacutebio do que antes queremos dizer por exemplo que tal pessoa natildeo saberaacute que medicamentos tomar pelo mero fato de lhe terem dito para tomar tudo que a arte a medicina ou um doutor em medicina lhe indicar Consequentemente no que toca agraves qualidades da alma igualmente natildeo bastaraacute meramente estabelecer a verdade da foacutermula acima Teremos aleacutem disso que definir com exatidatildeo qual eacute a justa razatildeo e qual eacute o padratildeo que a determina (EN 1138b20)
Aristoacuteteles define as partes da alma atribuindo agrave parte racional duas
faculdades a saber a faculdade cientiacutefica e a faculdade calculadora Enquanto o
objeto da faculdade cientiacutefica eacute aquele que se ocupa em especular as coisas cujos
primeiros princiacutepios satildeo invariaacuteveis a faculdade calculadora tem por objeto as
coisas que admitem variaccedilatildeo A definiccedilatildeo de caacutelculo eacute dada por Aristoacuteteles ldquoeacute o
mesmo que deliberaccedilatildeo e esta jamais eacute exercida sobre coisas invariaacuteveis
[entendemos] que a parte calculadora constitui uma parte independente da metade
irracional da alma (EN VI 1 1139a15)
Destaca trecircs elementos existentes na alma que controlam a accedilatildeo e o
atingimento da verdade a sensaccedilatildeo o intelecto e o desejo A sensaccedilatildeo natildeo gera
accedilatildeo pois a accedilatildeo eacute proacutepria ao homem enquanto a sensaccedilatildeo estaacute presente tanto na
alma do homem quanto na alma do animal Assim os movimentos dos animais satildeo
gerados pelos estiacutemulos sensoriais enquanto os movimentos proacuteprios ao homem a
praacutexis satildeo uma accedilatildeo guiada pelo intelecto e pelo desejo45
O pensamento especulativo desenvolvido pela faculdade cientiacutefica natildeo diz
respeito agrave accedilatildeo e ou agrave produccedilatildeo Ele se ocupa em elaborar juiacutezos de verdadeiro ou
falso
45
Conforme jaacute salientamos no capiacutetulo 2 O Movimento
53
Por outro lado o raciociacutenio praacutetico46 diz respeito ao que devemos buscar e
evitar no sentido de orientar as virtudes morais Eacute a partir dele que realizamos as
escolas entendendo por escolha o desejo deliberado (BERTI 1998 p 117)
Por conseguinte a escolha pode ser qualificada como o pensamento
relacionado ao desejo ou o desejo relacionado ao pensamento e o ser humano
como gerador da accedilatildeo eacute uma uniatildeo de desejo e intelecto (EN 1139b5)
46
Sobre razatildeo praacutetica vide LACERDA (2005)
54
4 PRUDEcircNCIA
41 Conceito
Aristoacuteteles na passagem 1140b do Livro VI da Eacutetica a Nicocircmaco define a
prudecircncia como uma capacidade verdadeira e racional de agir sobre as coisas que
satildeo boas ou maacutes para o homem
De acordo com Enrico Berti a phroacutenesis ldquopara Aristoacuteteles eacute uma virtude ou
melhor a mais elevada virtude da parte calculadora da alma racional isto eacute a razatildeo
praacutetica Ela com efeito eacute por ele concebida como a capacidade de deliberar bem
ou seja de calcular os meios necessaacuterios para alcanccedilar um fim bomrdquo (BERTI 1998
p 146)
Por sua vez Tomaacutes de Aquino discorre sobre a prudecircncia na parte II-II
questotildees 47 a 56 em sua obra de referecircncia a Suma Teoloacutegica Tomaacutes eacute haacutebil na
leitura aristoteacutelica da prudecircncia e pode-se encontrar em sua obra uma foacutermula
sinteacutetica do que ele entende por prudecircncia reta razatildeo aplicada ao agir47 Portanto eacute
com fundamento em questotildees de razatildeo praacutetica que Tomaacutes define a prudecircncia ldquoE
este eacute o papel da prudecircncia aplicar os princiacutepios universais agraves conclusotildees
particulares do acircmbito do agir E assim natildeo compete agrave prudecircncia indicar o fim das
virtudes morais mas somente lidar com os meios para atingir o fimrdquo (II-II 476
negrito nosso)
Pierre Aubenque (2008) sonda pormenorizadamente os vaacuterios aspectos
apresentados pelo Estagirita do que seria a prudecircncia e de sua leitura agraves obras de
Aristoacuteteles extraiacutemos
[] a definiccedilatildeo dada por Aristoacuteteles no livro VI da Eacutetica Nicomaqueacuteia apresenta um caraacuteter demasiado elaborado ou se se prefere demasiado teacutecnico para poder conhecer a mesma fortuna Ali a prudecircncia eacute definida como uma ldquodisposiccedilatildeo praacutetica acompanhada de regra verdadeira concernente ao que eacute bom ou mau para o homemrdquo Conforme ao meacutetodo familiar a Aristoacuteteles essa definiccedilatildeo eacute apresentada como resultado de um processo ao mesmo tempo indutivo e regressivo Parte-se do uso comum constata-se que eacute chamado phronimos o
homem capaz de deliberaccedilatildeo (AUBENQUE 2008 p 60-61)
47 recta ratio agibilium
55
Ainda nessa direccedilatildeo Aubenque (2008) a distingue das outras virtudes em
particular das virtudes morais
[] enquanto a virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo (praacutetica) que concerne agrave
escolha ) a prudecircncia eacute uma disposiccedilatildeo praacutetica que
concerne agrave regra da escolha Natildeo se trata da retidatildeo da accedilatildeo mas da correccedilatildeo do criteacuterio razatildeo pela qual a prudecircncia eacute uma disposiccedilatildeo praacutetica acompanhada de uma regra verdadeira (AUBENQUE 2008 p61)
Alasdair Macintyre (2001) discorre sobre a prudecircncia como sendo a virtude
intelectual sem a qual natildeo se pode exercer nenhuma virtude de caraacuteter48
A virtude principal eacute portanto phronecircsis Phronecircsis assim como socircphrosunecirc eacute originariamente um termo aristocraacutetico de louvor Caracteriza algueacutem que sabe o que lhe eacute devido que se orgulha de reivindicar seus direitos Significa de maneira mais geneacuterica algueacutem que sabe como julgar em casos especiacuteficos Phronecircsis eacute a virtude intelectual mas eacute a virtude intelectual sem a qual natildeo se pode exercer nenhuma das virtudes de caraacuteter (MACINTYRE 2001 p15)
Javier Hervada (2008) em sua obra Liccedilotildees propedecircuticas de filosofia do
direito destaca o caraacuteter praacutetico e a inclinaccedilatildeo que a prudecircncia tem para com o
direito salientando suas caracteriacutesticas claacutessicas
A prudecircncia eacute de fato uma virtude intelectual ou dianoeacutetica a virtude do correto agir moral o que estaacute relacionado com a justiccedila que tambeacutem eacute virtude moral Isso salienta que a atividade juriacutedica depende de duas virtudes que satildeo a base do ofiacutecio de jurista a justiccedila e a prudecircncia (HERVADA 2008 p 58)
48
A interpretaccedilatildeo de MacIntyre sobre a singularidade da prudecircncia parece-nos extraiacuteda tanto de Tomaacutes quando se refere a ela como matildee das virtudes (III Sent d 33 q 2 a 5 c) quanto de Aristoacuteteles que nos ensina em sua Eacutetica a Nicocircmaco ldquoA prudecircncia proporciona todas as virtudes Ela fornece os meios de produzi-lasrdquo (VI 1145a)
56
Pierre Aubenque (2008) parece desembaraccedilar de forma haacutebil o que seria a
prudecircncia despindo dos textos de Aristoacuteteles a compreensatildeo de uma das questotildees
mais iacutentimas da filosofia grega e eacute nesse sentido que ele desenvolve sua conclusatildeo
O Estagirita encontraria aiacute a velha inquietude grega diante da imprevisibilidade do futuro e a precariedade das coisas humanas Se ele foi moderno isso se deve ao fato de natildeo ter querido dominar o acaso com preces Se a accedilatildeo sobre o acaso natildeo podia ser cientificamente determinada ndash visto que ldquodo acaso natildeo haacute ciecircnciardquo ndash natildeo seria tampouco improvisada e sem princiacutepios Natildeo retornaremos agrave soluccedilatildeo que ele deu a este problema e nomeou prudecircncia (AUBENQUE 2008 p 278)
A adoccedilatildeo do traacutegico em face ao fracasso da Providecircncia ou em outras
palavras uma vez que o futuro eacute indeterminado a escolha entre dois males faz-se
procurando o menor entre eles A accedilatildeo nesse sentido compreendendo natildeo poder
alcanccedilar o bem em absoluto o faz da melhor maneira que pode
42 Prudecircncia e liberdade
De acordo com Aubenque (2008 p 149) a liberdade do homem natildeo estaacute
ligada agrave contingecircncia muito pelo contraacuterio se opotildee a ela A metaacutefora da casa
trazida no livro da Metafiacutesica retrata uma situaccedilatildeo onde o universo eacute comparado a
uma casa onde os homens livres representam os astros porque ldquolhes eacute menos liacutecito
agir ao acasordquo tendo suas accedilotildees orientadas por regras enquanto ldquoos escravos e os
animaisrdquo cujas ldquoaccedilotildees satildeo raramente ordenadas ao bem comum mas ao contraacuterio
satildeo frequentemente abandonadas ao acasordquo representam o mundo sublunar Nessa
acepccedilatildeo os escravos eacute que satildeo ldquolivresrdquo no sentido moderno do termo porque natildeo
sabem o que fazem ldquoenquanto a liberdade do homem grego e sua perfeiccedilatildeo se
medem pela maior ou menor determinaccedilatildeo de suas accedilotildeesrdquo
A prudecircncia eacute o substituto propriamente humano de uma Providecircncia que falha [] A prudecircncia eacute tambeacutem a previdecircncia que preserva os indiviacuteduos dos perigos [] ela eacute tambeacutem virtude na medida em que realiza no mundo sublunar um pouco do Bem que a divindade foi impotente para introduzir aqui [] Mas se o mundo fosse inteiramente
57
perfeito natildeo restaria nada a fazer ora eacute no fazer ou agir e natildeo na imobilidade estranhamente comum agraves plantas e a Deus que o homem
realiza sua sua excelecircncia propriamente humana Saber nos desviaria do fazer dispensando-nos de escolher (AUBENQUE 2008 p 155)
A prudecircncia seraacute a virtude dos homens voltados agrave deliberaccedilatildeo num mundo
obscuro e difiacutecil cujo inacabamento eacute um convite ao que decerto eacute preciso nomear
como sua liberdade A prudecircncia diraacute a Magna Moralia eacute uma ldquodisposiccedilatildeo para
escolher e agir concernindo ao que estaacute em nosso poder fazer e natildeo fazerrdquo
(AUBENQUE 2008 p 155)
Por isso homens como Peacutericles satildeo julgados prudentes porque possuem uma faculdade de discernir que coisas satildeo boas para mesmos e para os seres humanos E eacute isso que coincide com nosso entendimento do que seja algueacutem conhecedor da administraccedilatildeo domeacutestica ou
49 administraccedilatildeo
poliacuteticardquo (EN VI 5 1140B10)
Santo Tomaacutes em seus Comentaacuterios agrave Eacutetica a Nicocircmaco conclui acerca da
prudecircncia ldquoDe que la prudecircncia no sea ciencia haacutebito demonstrativo acerca de lo
necesario y no sea arte haacutebito productivo con razoacuten se segue que la prudencia es
un haacutebito activo con razoacuten verdadera que no versa sobre lo producio que estaacute fuera
del hombre sino sobre el bien y el mal del hombre mesmordquo (AQUINO 2010 p 363-
364)50
43 Arte e Prudecircncia
Conforme explicado na definiccedilatildeo tomista enquanto a atividade proacutepria agrave arte
eacute a produccedilatildeo a atividade proacutepria agrave prudecircncia eacute a accedilatildeo
49
εἶναι δὲ τοιούτους ἡγούμεθα τοὺς οἰκονομικοὺς καὶ τοὺς πολιτικούς Algueacutem conhecedor da
administraccedilatildeo domeacutestica e poliacutetica [(EN VI 5 1140B10) texto original disponiacutevel no site PERSEUS DIGITAL LIBRARY traduccedilatildeo nossa] 50
De que a prudecircncia natildeo eacute ciecircncia que procura mostrar o que eacute necessaacuterio e tambeacutem natildeo eacute arte o haacutebito produtivo com o emprego da razatildeo segue que a prudecircncia eacute um habito segundo o qual se age com a razatildeo verdadeira que natildeo versa sobre o produto que estaacute fora de homem mas sobre o bem e o mal do proacuteprio homem (AQUINO 2010 p 363-364)
58
Destarte para o Estagirita a arte eacute o conhecimento teacutecnico de como fazer
as coisas Enquanto a prudecircncia eacute o conhecimento de como agir para assegurar os
fins da vida do ser humano Vejamos o texto de Aristoacuteteles
Toda arte se ocupa em trazer alguma coisa agrave existecircncia e dedicar-se a uma arte significa estudar como trazer ao existir uma coisa que eacute possiacutevel existir ou natildeo a causa eficiente da qual estando no criador e natildeo na coisa criada pois a arte natildeo se ocupa com coisas que existem ou passam a existir (vecircm a ser) necessariamente ou pela natureza uma vez que essas coisas possuem suas causas eficientes em si mesmas Mas como o criar e o fazer satildeo distintos infere-se que a arte sendo concernente ao criar natildeo concerne ao fazer E num certo sentido a arte se ocupa dos mesmos objetivos da sorte como diz Agaton A sorte eacute aficionada da arte e a arte da sorte (EN VI 4 1140a10-20)
Para Enrico Berti a arte
[] concerne a objetos que podem ser diferentemente do que satildeo ou seja contingentes por isso estaacute entre as virtudes da parte ldquocalculadorardquo da razatildeo a mesma que compreende a phroacutenesis A diferenccedila entre arte e phroacutenesis repousa no fato de que esta uacuteltima ocupa-se como vimos do que pode ser ldquopraticadordquo (to praktoacuten) das accedilotildees enquanto a arte se ocupa da produccedilatildeo de objetos A distinccedilatildeo entre ldquoaccedilatildeordquo (praacutexis) e ldquoproduccedilatildeordquo (poiacuteesis) eacute dada por Aristoacuteteles quase sempre por evidente e consiste no fato de que a accedilatildeo natildeo produz nenhum objeto diferente dela mesma isto eacute termina em si que eacute o produto (BERTI 1998 p 157)
Portanto a arte eacute como dissemos uma qualidade racional concernente ao
criar de acordo com um processo verdadeiro de raciociacutenio Em oposiccedilatildeo a lacuna
da arte eacute uma qualidade racional concernente ao criar que envolve um processo
falso de raciociacutenio Ambas lidam com aquilo que admite variaccedilatildeo (EN VI 4
1140a10-20)
44 Deliberaccedilatildeo e Escolha
Ao definir a accedilatildeo voluntaacuteria Aristoacuteteles diz que a escolha pertence ao seu
gecircnero mas que no entanto nem todo ato voluntaacuterio eacute escolhido O que ele
pretende com essa argumentaccedilatildeo e evidenciar a diferenccedila entre a escolha e a
deliberaccedilatildeo
59
Nesse sentido esclarece que a deliberaccedilatildeo eacute ldquo[] empregada em mateacuterias
que embora sujeitas a regras que geralmente satildeo para o bem satildeo incertas quanto
aos seus resultados e consequecircncias ou nas quais resultados e consequecircncias satildeo
indeterminados []rdquo (EN III 3 1112b10)
Aristoacuteteles em vaacuterias passagens insiste em indicar um ponto especiacutefico
acerca da deliberaccedilatildeo Segundo ele natildeo deliberamos a respeito dos fins mas a
respeito dos meios Daiacute a analogia ldquo[No exerciacutecio de uma arte] a questatildeo num
momento eacute saber quais ferramentas usar e num outro como usaacute-las similarmente
em outras esferas temos que considerar por vezes que meios empregar e outras
vezes como exatamente determinarmos os meios que devem ser empregadordquo (EN
III 3 1112b30) Dessa forma Aristoacuteteles afirma que o ser humano eacute princiacutepio-
fundamento de suas proacuteprias accedilotildees e que eacute proacutepria agrave deliberaccedilatildeo apontar as accedilotildees
possiacuteveis de serem realizadas pelo agente sendo que todas as accedilotildees tecircm em vista
algum fim que natildeo elas mesmas
Portanto natildeo se delibera sobre o que natildeo estaacute em nosso poder A
deliberaccedilatildeo estaacute condicionada ao que podemos Por isso mais uma vez afirmamos
que a accedilatildeo virtuosa dirige-se para o melhor possiacutevel Isso eacute esclarecido por Pierre
Aubenque (2008) quando aborda a trageacutedia grega
ldquoA trageacutedia grega natildeo dizia outra coisa e antes dela a poesia de Hesiacuteodo ou Teoacutenis Por mais que Aristoacuteteles tenha restringido o traacutegico natildeo o eliminou inteiramente eacute a distacircncia que separa oi polloi de
pantej o wj epi to polu de aei o melhor possiacutevel do bem absoluto[]rdquo
(2008 p 138)
Destarte de posse da deliberaccedilatildeo cujo objeto estaacute sob nosso poder poder-
se-aacute escolher Pois a escolha eacute o desejo deliberado de coisas em nosso poder
Aristoacuteteles (1113a13) estabelece a seguinte ordem ldquoprimeiramente deliberamos em
seguida selecionamos e finalmente fixamos nosso desejo de acordo com o
resultado de nossa deliberaccedilatildeordquo
Sobre a escolha Aristoacuteteles esclarece que ela natildeo eacute o mesmo que a
vontade pois enquanto a vontade visa o fim a escolha concerne aos meios Neste
60
sentido a escolha se opotildee agrave vontade afinal ao homem eacute permitido querer o bem
mas escolher o melhor possiacutevel51
Aristoacuteteles apresenta pela primeira vez o problema da dissonacircncia possiacutevel entre o fim e os meios e enfatiza ao mesmo tempo que a qualidade da accedilatildeo eacute medida natildeo somente pela retidatildeo da intenccedilatildeo (como acreditava Platatildeo) mas tambeacutem pela conveniecircncia dos meios (AUBENQUE 2008 p 218)
Uma outra importante observaccedilatildeo eacute feita por Aubenque (2008 p 227) Ele
encontra no texto de Aristoacuteteles duas foacutermulas comuns agrave prudecircncia A primeira eacute
esta que acabamos de descrever qual seja a capacidade de escolha judiciosa dos
meios
A segunda foacutermula eacute pertinente agrave capacidade de aplicar o universal ao
particular O que vemos eacute que o prudente deve ser capaz de operar com uma com
duas ou com ambas se eacute que eacute possiacutevel estabelecer fundada diferenccedila entre elas
que natildeo seja meramente teoacuterica
Natildeo haacute portanto nenhuma ldquocontradiccedilatildeordquo entre as duas descriccedilotildees da accedilatildeo dadas por Aristoacuteteles Pois uma vez reconhecido o particular se o universal a ele se aplica necessariamente eacute preciso inicialmente reconhecer o particular o que se deduz silogisticamente eacute a propriedade do particular de ser desejaacutevel mas natildeo a existecircncia do particular Natildeo eacute difiacutecil saber que eacute preciso ser corajoso nem decidir que o que foi reconhecido como corajoso dever ser cumprido Mas onde estaacute a coragem hic et nunc Eacute na bravata ou no sangue frio Na aventura ou na abstenccedilatildeo No combate sem esperanccedila ou na fuga que garante o futuro Eacute na infinita distacircncia entre os princiacutepios demasiado gerais e a variedade inacessiacutevel ao pensamento racional A distacircncia eacute igualmente infinita entre a eficaacutecia real do meio e a realizaccedilatildeo esperada do fim Eacute este infinito que Aristoacuteteles pede que a prudecircncia preencha por mediaccedilotildees laboriosas e incertas Mas esse infinito este aoristou que
afeta uma mateacuteria sempre mais ou menos reativa agrave determinaccedilatildeo e em geral um mundo que nunca acolhe inteiramente a ordem noacutes jaacute conhecemos o seu nome a contingecircncia (AUBENQUE 2008 p 228)
Antes de encerrar este assunto parece oportuno levantarmos uma questatildeo
que segue o acima exposto Pierre Aubenque (2008) na introduccedilatildeo ao capiacutetulo
intitulado Antropologia da prudecircncia nos fornece uma importante justificativa acerca
51
Sobre a responsabilidade pela accedilatildeo vide o item 35 Accedilatildeo voluntaacuteria e involuntaacuteria
61
da ordem temaacutetica proposta no presente trabalho A questatildeo que pretendemos
levantar eacute por que tomamos como ponto de partida a contingecircncia
Mostramos ateacute aqui que a prudecircncia soacute teria razatildeo de ser num mundo contingente Ora se a encaramos natildeo mais de um ponto de vista coacutesmico mas humano a contingecircncia nos aparece como abertura agrave atividade dos homens ao mesmo tempo arriscada e eficaz Sem a contingecircncia a accedilatildeo dos homens natildeo seria apenas impossiacutevel seria tambeacutem inuacutetil Eacute tal accedilatildeo ao mesmo tempo permitida e requerida pela contingecircncia em suas relaccedilotildees com a prudecircncia que guia que se trata de analisar agora
Natildeo surpreenderaacute que encontremos aqui em termos ldquosubjetivosrdquo o que tentamos extrair acima em termos ldquoobjetivosrdquo A teoria da contingecircncia e a da accedilatildeo reta satildeo apenas o direito e o avesso de uma mesma doutrina eacute a indeterminaccedilatildeo dos futuros que faz do homem princiacutepio o inacabamento do mundo eacute o nascimento do homem (AUBENQUE 2008 p 173 negrito nosso)
Assim a deliberaccedilatildeo eacute pertinente agravequilo que podemos modificar Seja qual
for o meacutetodo adotado o problema a ser enfrentado eacute o mesmo as incontaacuteveis
possibilidades a que estamos submetidos sendo a escolha o ato intriacutenseco agrave
deliberaccedilatildeo o momento oportuno para escolher o melhor possiacutevel
De acordo com Hermann (2007) a prudecircncia proposta por Aristoacuteteles na
Eacutetica a Nicocircmaco eacute mais precisamente
[] a possibilidade de articular a relaccedilatildeo entre o universal e o particular ou ainda a aplicaccedilatildeo de princiacutepios gerais em casos particulares Inserindo no mundo o comportamento eacutetico interpotildee a individualidade de um eu entretecido em formas histoacutericas de vida com um ethos comum Assim o agir moral natildeo estaacute voltado para um bem transcendente mas realizado em accedilotildees concretas (HERMANN 2007 p 366)
Assim com o escopo de compreendermos melhor passaremos a analisar a
figura do prudente
45 O prudente
A virtude da prudecircncia eacute tratada no capiacutetulo 5 do livro VI da Eacutetica a
Nicocircmaco Aristoacuteteles para explicaacute-la toma emprestado exemplo de pessoas
62
consideradas prudentes De acordo com ele eacute caracteriacutestico do homem prudente
ser capaz de bem deliberar sobre o que eacute bom e proveitoso para si mesmo natildeo de
maneira particular mas sobre o que eacute bom e vantajoso para o bem-estar em geral
Assim o homem prudente em geral eacute aquele capaz de bem deliberar de modo
geral
Poderiacuteamos afirmar que o sistema moral de Aristoacuteteles estaacute centrado em
sua maior parte no indiviacuteduo Aleacutem dos dois livros VIII e IX que satildeo dedicados agrave
amizade pouco se diz sobre ela na totalidade da eacutetica Pouco se sugere que o ser
humano deve ter um interesse caloroso e pessoal pelas outras pessoas e o
altruiacutesmo parece-nos ausente Mesmo sobre a amizade encontram-se traccedilos de um
ponto de vista deveras egoiacutesta jaacute que a mesma natildeo constitui uma benevolecircncia
mas exige certa reciprocidade
Mas tais afirmaccedilotildees natildeo parecem prosperar Sua eacutetica esta pautada no
conceito de felicidade Tal conceito soacute pode ser compreendido no acircmbito da poacutelis e
em relaccedilatildeo ao outro Ou seja para sermos felizes devemos optar por uma vida
virtuosa e para uma vida virtuosa devemos praticar as virtudes torna-se evidente
que sua teoria natildeo soacute considera mas tem como fundamento a relaccedilatildeo muacutetua entre
os homens ou melhor entre os animais poliacuteticos Vejamos a explicaccedilatildeo de Tomaacutes
de Aquino [] compete agrave razatildeo deliberar acertadamente julgar e preceituar naquilo
que se chega ao fim devido Estaacute claro que a prudecircncia visa natildeo somente o bem
particular de um soacute mas tambeacutem o bem comum da multidatildeo (AQUINO 2004 p
602) Estabelecendo uma relaccedilatildeo com a virtude moral expotildee
[] como toda virtude moral que se refere ao bem comum se chama justiccedila legal assim a prudecircncia referida ao bem comum se chama ldquopoliacuteticardquo de modo que a poliacutetica se relaciona com a justiccedila legal da mesma forma que a prudecircncia simplesmente dita agrave virtude moral (AQUINO 2004 p 602)
Portanto podemos concluir que o prudente eacute aquele que sabe o que eacute bom
para si de um modo geral e tambeacutem para sua comunidade Tambeacutem podemos
afirmar que ele bem delibera Assim na linguagem atual prudente tem um certo
sabor daquele que calcula com vistas no interesse proacuteprio (MACINTYRE 1991 p
63
80) e consequentemente da comunidade Resta-nos entatildeo examinar sobre o que o
prudente delibera
Vimos que natildeo eacute objeto de deliberaccedilatildeo as coisas das quais natildeo podemos
deliberar ou seja as coisas que estatildeo no acircmbito do necessaacuterio Conclui-se disto
que
[] a prudecircncia (sabedoria praacutetica) natildeo eacute o mesmo que conhecimento cientiacutefico como tatildeo pouco pode ser o mesmo que a arte Natildeo eacute conhecimento cientiacutefico porque assuntos relacionados agrave conduta admitem mutaccedilatildeo e natildeo pode ser arte porque o criar e o fazer satildeo genericamente diferentes posto que o criar visa um fim que eacute distinto do ato de criar enquanto no fazer o fim natildeo pode ser outro senatildeo o proacuteprio ato ou seja fazer bem eacute em si mesmo um fim Insiste-se portanto que a prudecircncia eacute uma qualidade racional de consecuccedilatildeo da verdade que concerne agrave accedilatildeo relativamente a coisas que satildeo boas e maacutes aos seres humanos (EN VI 5 1140b1-5)
Na sequecircncia Aristoacuteteles cita Peacutericles como sendo um exemplo de homem
prudente Em suas palavras ldquoPor ter a capacidade de discernir que coisas satildeo boas
para si mesmo e para os seres humanos E eacute isso que coincide com nosso
entendimento do que seja algueacutem conhecedor da administraccedilatildeo domeacutestica ou
administraccedilatildeo poliacuteticardquo (EN VI 5 1140b1-5)
Como modelo de phroacutenimos (quem possui a phroacutenesis) isto eacute de ldquosaacutebiordquo ou ldquoprudenterdquo Aristoacuteteles indica Peacutericles (1140 b 8) o grande liacuteder poliacutetico que governa Atenas certamente natildeo um filoacutesofo de profissatildeo com o qual discutir de igual para igual talvez para dissentir Aristoacuteteles indica Soacutecrates (13 1144 b 18 28) certamente natildeo um liacuteder poliacutetico nem nunca um governador de sua cidade tambeacutem daiacute resulta a diferenccedila por ele estabelecida entre a phroacutenesis e a filosofia praacutetica
Com mais forte razatildeo a phroacutenesis difere da sabedoria a primeira efetivamente ocupa-se o homem isto eacute das realidades humanas enquanto a segunda como vimos ocupa-se das realidades mais elevadas que o homem das realidades divinas Se o modelo da phroacutenesis como vimos eacute Peacutericles os modelos de sabedoria indicados por Aristoacuteteles satildeo Tales e Anaxaacutegoras alhures considerados fiacutesicos mas aqui apresentados como investigadores de realidades divinas (os princiacutepios supremos) (BERTI 1998 p 146-147)
Em contraste agrave filosofia platocircnica o Estagirita aborda a temaacutetica acerca da
sabedoria teoacuteretica e da sabedoria praacutetica A sabedoria teoreacutetica estaacute em grau de
64
superioridade em relaccedilatildeo agrave praacutetica sendo que ao menos uma parte do valor desta
uacuteltima consiste na ajuda que daacute a produccedilatildeo da primeira
Entatildeo a felicidade chega apenas ateacute onde haacute contemplaccedilatildeo e as pessoas mais capazes de exercerem a atividade contemplativa fruem mais intensamente a felicidade natildeo como um acessoacuterio da contemplaccedilatildeo mas como algo inerente a ela pois a contemplaccedilatildeo eacute preciosa por si mesma A felicidade portanto deve ser alguma forma de contemplaccedilatildeo
Mas sendo criaturas humanas necessitamos tambeacutem de bem estar exterior pois nossa natureza natildeo eacute suficiente por si mesma para o exerciacutecio da atividade contemplativa Nosso corpo deve ser tambeacutem saudaacutevel e deve receber boa alimentaccedilatildeo e outros cuidados Nem por isso poreacutem devemos pensar que as nossas pessoas necessitam de muitas e grandes coisas para ser felizes simplesmente porque natildeo podem ser sumamente felizes sem bens exteriores com efeito a auto-suficiecircncia e a accedilatildeo natildeo pressupotildeem excessos e podemos praticar accedilotildees nobilitantes sem dominar a terra e o mar porquanto mesmo com recursos moderados eacute possiacutevel agir de conformidade com excelecircncia (isto eacute bastante evidente pois se pensa que os simples cidadatildeos praticam atos meritoacuterios natildeo menos que os detentores do poder ndash na verdade os praticam ainda mais) basta dispormos de recursos moderados pois a vida das pessoas que agem de conformidade com a excelecircncia seraacute feliz (EN X 9 1179a1)
Destarte a contemplaccedilatildeo constitui o ingrediente fundamental da felicidade
para Aristoacuteteles Eacute esta a melhor atividade de que o homem eacute capaz haja vista que
eacute o exerciacutecio do melhor do indiviacuteduo sobre o melhor de todos os objetos os quais
satildeo eternos e imutaacuteveis Por consistir naquilo que o homem pode fazer com maior
continuidade acarretar prazer puro e estaacutevel ser menos dependente dos outros
homens Em suma consiste no gecircnero de vida que se deve atribuir aos deuses jaacute
que seria absurdo atribuir-lhes vida moral
Entretanto a vida contemplativa eacute extremamente elevada para o homem
Enquanto seres humanos compostos de corpo de alma irracional e de razatildeo
homem natildeo a podem vivecirc-la Hipoteticamente poderaacute vivecirc-la somente em virtude do
elemento divino presente nele Todavia o homem natildeo deve seguir aqueles que
afirmam que pelo homem ser homem deve limitar o seu pensamento agraves coisas
humanas Ora ldquona medida do possiacutevelrdquo o homem deve apoderar-se da vida eterna
vivendo a vida desta parte de si mesmo pois eacute esta que constitui a melhor e mais
verdadeira parte de si mesmo O homem que vive assim eacute feliz
65
Entatildeo a phroacutenesis no sentido jaacute plenamente definido de sabedoria praacutetica iraacute constituir-se como virtude dianoeacutetica entre as virtudes eacuteticas de um lado e a filosofia (ou sophiacutea) como haacutebito contemplativo de outro A phroacutenesis aristoteacutelica encontra assim o seu lugar no centro dessa estrutura de uma teoria da praxis como teoria praacutetica que seraacute finalmente a alternativa aristoteacutelica agrave ontologia platocircnica do Bem (VAZ 2000 p 102)
Ainda sobre o prudente podemos extrair dos valiosos ensinamentos de
Henrique C de Lima Vaz
A phroacutenesis como virtude da razatildeo reta (orthoacutes loacutegos) ou da razatildeo que iraacute estabelecer a meacutedia razoaacutevel entre os extremos para as virtudes eacuteticas eacute a primeira das virtudes dianoeacuteticas e assinala justamente a presenccedila do logos regulador e ordenador no fluxo contingente das accedilotildees singulares Ao apontar no homem saacutebio (phroacutenimos) a norma existencial e concreta da phroacutenesis Aristoacuteteles torna patente na realidade viva as ldquocoisas humanasrdquo a dialeacutetica que se estabelece entre o impliacutecito vivido do ethos e o expliacutecito vivido pensado da Eacutetica ou ciecircncia praacutetica Essa dialeacutetica vem romper exatamente com o ciacuterculo vicioso que parece opor logo nos primeiros passos do pensamento eacutetico a praacutetica e a definiccedilatildeo das virtudes e do qual nasce a aporia inicial dos chamados diaacutelogos ldquosocraacuteticosrdquo de Platatildeo a praacutetica da virtude verdadeira conteacutem o saber da sua definiccedilatildeo e a definiccedilatildeo da virtude natildeo eacute senatildeo a abstraccedilatildeo da sua praacutetica Eacute necessaacuterio praticar a virtude para poder defini-la e eacute necessaacuterio defini-la para bem pratica-la A Eacutetica como ciecircncia se propotildee justamente instaurar um tipo de reflexatildeo que permita a ruptura deste ciacuterculo entre o abstrato e o concreto estabelecendo um fundamento racional e uma medida para o agir (VAZ 2000 p 103-104 negrito nosso)
De acordo com Werner Jaeger a prudecircncia eacute a virtude que relaciona o
conhecimento mais elevado com as coisas da vida praacutetica
A phroacutenesis eacute o transformador que converte o conhecimento eterno de Deus no movimento eacutetico da vontade e o aplica agraves particularidades da praacutetica Na Eacutetica a Nicocircmaco eacute o ldquoestado de capacidade de trabalharrdquo e nenhum homem jamais atua sem ela O conhecimento filosoacutefico de Deus natildeo eacute sua condiccedilatildeo essencial
52 (JAEGER 1963 p 265 traduccedilatildeo
nossa)
52
La phroacutenesis es el transformador que convierte el conoci-miento del Dios eterno en el movimiento
eacutetico de la voluntad y lo aplica a los detalles de la praacutecticaEn la Etica Nicomaquea es el estado de capacidad de obrar y ninguacuten hombre actuacutea jamaacutes sin ella El conocimiento filosoacutefico de Dios ya no es su condicioacuten esencial (JAEGER 1963 p 275 traduccedilatildeo nossa)
66
Eacute desse hiato entre o universal e o particular que cuida o prudente Eacute ele
quem delibera sobre o momento as circunstacircncias e a maneira como a accedilatildeo deve
ser deflagrada para que possa ser considera virtuosa
Feita essa exposiccedilatildeo geral da eacutetica contingecircncia eacutetica das virtudes e
prudecircncia noacutes acreditamos ao menos em parte estar aptos a abordar um assunto
que assume papel central na filosofia grega a justiccedila
67
5 JUSTICcedilA COMO VIRTUDE
Abordar a justiccedila ndash ou qualquer outra virtude ndash no pensamento aristoteacutelico eacute
uma tarefa aacuterdua e sinuosa A coerecircncia do pensamento de Aristoacuteteles como um
todo e ao mesmo tempo a especificaccedilatildeo das particularidades de cada mateacuteria a ser
estudada daacute agrave abordagem uma dupla sensaccedilatildeo De um lado certa seguranccedila
relacionada ao fato de sua coerecircncia nos impulsionar ainda que de forma intuitiva
agraves significacircncias de seus dizeres Por outro lado a preocupaccedilatildeo com a seguranccedila
da informaccedilatildeo a ser tratada bem como com as alteraccedilotildees semacircnticas que tornam-
se significativas principalmente com a transiccedilatildeo para modernidade53
Eacute importante observarmos que o tratamento dado agrave justiccedila por Aristoacuteteles
emprega instrumentos pouco convencionais ateacute mesmo para a eacutepoca De acordo
com Eduardo C B Bittar (2005)
A siacutentese operada pelo pensador permitiu por meio de seus textos que se congregassem inuacutemeros elementos doutrinaacuterios reunidos ao longo dos seacuteculos pelos quais se espalharam os conhecimentos gregos anteriores a ele (preacute-socraacuteticos socratismo sofistas platonismo) Eacute da reuniatildeo das opiniotildees dos saacutebios da opiniatildeo do povo da experiecircncia praacutetica analisados e avaliados criticamente dentro da visatildeo de todo o problema (justiccedila da cidade justiccedila domeacutestica justiccedila senhorial) que surgiu uma concepccedilatildeo propriamente aristoteacutelica (BITTAR 2005 p 90-91)
Tal concepccedilatildeo daacute a justiccedila um caraacuteter eacutetico pois insere a mesma entre as
virtudes Dessa forma as regras gerais aplicadas agraves virtudes em particular satildeo
igualmente aplicadas agrave justiccedila Sendo a prudecircncia como mais tarde diria Tomaacutes de
Aquino genitrix virtut e auriga virtut54 parece-nos ser conceito aristoteacutelico de justiccedila
vitalmente ligado ao conceito de prudecircncia ao passo que a prudecircncia realiza suas
accedilotildees assim como a justiccedila no espaccedilo pertinente agrave accedilatildeo racional qual seja o
domiacutenio do contingente Assim esclarece Juacutelio Aguiar de Oliveira (2011)
53
Tema amplamente abordado em por MACINTYRE (2001) 54
Matildee da virtude (III Sent d 33 q 2 a 5 c) e guia da virtude (IV Sent d 17 q 2 a 2 dco) Traduccedilatildeo nossa
68
Na medida em que se trata de uma questatildeo referente agrave accedilatildeo humana sua atuaccedilatildeo se daacute no domiacutenio do contingente Eacute por isso que a virtude da justiccedila (como todas as outras virtudes eacuteticas) depende da virtude da prudecircncia Se a accedilatildeo humana se desenrolasse no domiacutenio do necessaacuterio os preceitos da lei natural poderiam ser deduzidos do primeiro princiacutepio por meio da ciecircncia (deduccedilatildeo matemaacutetica) No entanto uma vez que a accedilatildeo humana se aacute no domiacutenio do contingente a virtude necessaacuteria para a boa deliberaccedilatildeo eacute a virtude da prudecircncia (OLIVEIRA 2011 p121)
Portanto a justiccedila em sentido amplo eacute uma virtude que ldquo[] natildeo comporta
uma compreensatildeo geneacuterica e indiferente agraves qualidade especiacuteficas dos indiviacuteduos eacute
pelo contraacuterio sensiacutevel dentro das ambiccedilotildees teoacutericas de Aristoacuteteles agrave dimensatildeo
individualrdquo (BITTAR 2005 p 93) O conceito dado eacute o seguinte [] a justiccedila eacute a
virtude perfeita por ser ela a praacutetica da virtude perfeita aleacutem do que eacute perfeita num
grau especial porque seu possuidor pode praticar sua virtude dirigindo-a aos outros
e natildeo apenas sozinho [] (ENV 1 1129b30)
Nesse sentido Alexandre Travessoni Gomes em sua obra O fundamento da
validade do direito Kant e Kelsen conclui
A justiccedila soacute eacute possiacutevel numa relaccedilatildeo com o outro Aristoacuteteles chega mesmo a afirmar que dentre as virtudes somente a justiccedila eacute o bem do outro Tanto no sentido universal quanto no particular natildeo haacute justiccedila de um indiviacuteduo consigo mesmo visto que a justiccedila e a virtude que se relaciona com o nosso proacuteximo seja ele governante ou associado[]
Soacute haacute ato justo ou injusto uma vez que algueacutem o queira O que eacute justo ou injusto eacute caracterizado pela lei mas o ato justo ou injusto pressupotildee a vontade O ato injusto eacute portanto o ato voluntaacuterio em que se conhece tanto a pessoa a quem atine quanto o ato como instrumento de justiccedila ou injusticcedila (GOMES 2004 p 61)
Destarte eacute ato justo ou injusto eacute o ato possiacutevel voluntaacuterio e direcionado ao
semelhante
51 Justo e injusto
69
O livro V da Eacutetica a Nicocircmaco trata sobre a justiccedila De acordo com o estilo
de oposiccedilatildeo frequentemente empregado pelo Estagirita a noccedilatildeo de Justo eacute
contraposta agrave noccedilatildeo do injusto
Podemos sintetizar a anaacutelise inserta na passagem 1129b1-10 nos seguintes
termos O injusto eacute de duas espeacutecies injusto legal e injusto desigual
O injusto legal eacute aquele que transgride a lei em outras palavras aquele que
age orientado pela ilegalidade
O injusto desigual por sua vez eacute aquele que toma mais do que lhe eacute devido
Aristoacuteteles eacute muito preciso nesse trecho ao indicar que o injusto desigual eacute tambeacutem
aquele que toma a menor parte das coisas indesejadas Ou seja tomar tanto
demasiado as coisas boas quanto menos as coisas maacutes55
A noccedilatildeo de justo toma parte na argumentaccedilatildeo expondo por oacutebvio que o
justo igual (ou equitativo) eacute aquele que toma a parte que lhe eacute devida
O justo legal por seu turno eacute aquele que age de acordo com as leis Nesse
sentido eacute importante destacar o caraacuteter das leis no pensamento de Aristoacuteteles As
leis satildeo produzidas pelos legisladores de acordo com as virtudes portanto elas
orientam as accedilotildees reiterando o haacutebito e consequentemente educando para a
virtude Esse eacute o fim da atividade poliacutetica A felicidade de cada um em particular e da
poacutelis como um todo
Nesse sentido o termo justo eacute aplicado agrave qualquer coisa que possa produzir
e preservar a felicidade ou as partes componentes da felicidade da comunidade
poliacutetica
Aristoacuteteles destaca que existe uma relaccedilatildeo de gecircnero e espeacutecie entre o justo
legal e o justo igual sendo o justo legal o gecircnero da qual o justo igual eacute espeacutecie A
conclusatildeo eacute a seguinte Eacute possiacutevel ser injusto legal sem ser injusto igual mas natildeo eacute
possiacutevel ser injusto igual sem ser injusto legal
52 Justo universal
55
Parte-se do pressuposto de que as pessoas desejam as coisas boas
70
O justo universal eacute o gecircnero o sentido mais amplo que se pode atribuir ao
termo justo Pode-se dizer que a justiccedila universal consiste na observacircncia da lei no
que diz respeito agravequilo que eacute legiacutetimo e que vige para o bem da comunidade
Assim a define HOumlFF (2003)
A justiccedila como virtude completa denominada justiccedila universal (iustitia universalis) por Santo Tomaacutes de Aquino significa para Aristoacuteteles com vistas ao outro a virtude perfeita ainda mais reluzente do que a estrela vespertina e matutina Consiste na atitude de cumprir voluntariamente tudo o que a lei e os costumes exigem A justiccedila universal denota uma integridade abrangente Dela fazem parte eg tambeacutem as obras da coragem e da prudecircncia a que Aristoacuteteles no entanto alude modestamente apenas com interdiccedilotildees a coragem proiacutebe cometer adulteacuterio e tornar-se violento (HOumlFF 2003 p 24 e 25)
Eduardo Bittar (2005) observa que
A accedilatildeo que se vincula agrave legalidade obedece a uma norma que a todos e para o bem de todos eacute dirigida como tal essa accedilatildeo deve corresponder a um justo legal e a forma de justiccedila que lhe eacute por consequumlecircncia eacute aqui chamada justiccedila legal Aquele que observa os conteuacutedos legais pode ser chamado de justo nesse sentido O mesmo a contrariu sensu a respeito do injusto que lhe corresponde (BITTAR 2005 p 96)
Outro ponto que parece importante nas observaccedilotildees de Eduardo C Bittar eacute
acerca da funccedilatildeo do legislador de acordo com ele a produccedilatildeo normativa da poacutelis eacute
um exerciacutecio da prudecircncia Eacute o mesmo que encontramos na passagem 1141b25
Nessa passagem Aristoacuteteles divide a prudecircncia em duas espeacutecies uma relativa agraves
coisas particulares que recebe o nome de ciecircncia poliacutetica e outra relativa agraves coisas
concernentes ao Estado que nomina ciecircncia legislativa
[] pois as accedilotildees que nascem da virtude em geral satildeo fundamentalmente idecircnticas agraves accedilotildees que estatildeo de acordo com a lei uma vez que a lei prescreve a conduta que exibe as vaacuterias virtudes particulares e proiacutebe a conduta que exibe os vaacuterios viacutecios particulares
71
Igualmente as regras estabelecidas para a educaccedilatildeo particulares (EN V 2 1130b20-25)
A conclusatildeo eacute que a injusticcedila no sentido universal tange todas as coisas que
constituem a esfera da virtude ou seja que as leis prescrevem os comportamentos
virtuosos Mas eacute possiacutevel afirmar que existe algum ato que seja injusto e que natildeo
obstante esteja em conformidade com a virtude Por certo que natildeo Apenas o fato
de um ato ser injusto por si mesmo constitui uma violaccedilatildeo agrave virtude Pois ldquoNa
Justiccedila se encontra toda a Virtude somadardquo (1129b30)56 e por isso a Justiccedila eacute a
virtude perfeita
53 Justo particular
Natildeo obstante a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos ser injustos sem nos afastar
da esfera da virtude Aristoacuteteles nos apresenta uma particcedilatildeo particularizada quanto
em relaccedilatildeo ao injusto no sentido universal
Enquanto uma parte a mais abrangente (injusticcedila universal) versa sobre a
transgressatildeo das normas a outra diz respeito particularmente agrave injusticcedila que visa o
lucro e a injusticcedila movida pelo desejo A essas duas uacuteltimas injusticcedilas ele daacute o
sentido de particular
A que visa o lucro estaacute claro que diz respeito a accedilatildeo de tomar mais do que
lhe eacute devido ela se comporta de um modo bem peculiar por que natildeo viola outra
virtude que natildeo seja a proacutepria Justiccedila A que eacute movida pelo desejo eacute descrita pelo
comportamento desregrado e natildeo por tomar mais do que lhe eacute devido
Tais manifestaccedilotildees particulares satildeo divididas em duas importantes classes
para a teoria da justiccedila aristoteacutelica a saber a justiccedila distributiva e a justiccedila corretiva
531 Justiccedila distributiva
56
De acordo com nota de nuacutemero 123 do tradutor essa maacutexima eacute atribuiacuteda a Teoacutegnis
72
A justiccedila distributiva diz respeito agrave distribuiccedilatildeo proporcional ao meacuterito de
cada pessoa de bens honra riqueza e demais ativos divisiacuteveis da comunidade
Desta forma considera o justo como o igual e o injusto como o desigual admitindo a
igualdade como uma mediania o que pressupotildee ao menos dois termos
Dado o acima podemos admitir que a justiccedila pressupotildee pelo menos quatro
termos sendo que dois deles referem-se agraves medidas e ou outros dois aos indiviacuteduos
a que agraves medidas predicam
A formulaccedilatildeo de Aristoacuteteles acerca da justiccedila distributiva eacute a conjunccedilatildeo do
primeiro termo de uma proporccedilatildeo com o terceiro e do segundo com o quarto e o
justo nesse sentido eacute uma mediania entre os extremos que satildeo desproporcionais
uma vez que a proporccedilatildeo eacute uma mediania e o justo eacute o proporcional (EN V 3
1131b10)
Eacute isso que os matemaacuteticos chamam de proporccedilatildeo geomeacutetrica aquela na
qual soma do primeiro e terceiro termos apresentaraacute a mesma relaccedilatildeo com a soma
do segundo e quarto A observaccedilatildeo que segue eacute a seguinte A justiccedila distributiva
natildeo eacute uma proporccedilatildeo contiacutenua pois seus segundo e terceiro termos um indiviacuteduo e
uma porccedilatildeo natildeo constituem um termo singular (EN V 3 1131a15)
Assim o justo eacute o proporcional e o injusto o que transgride a proporccedilatildeo O
injusto pode assim incorrer no excesso ou na deficiecircncia Isso [] porque um mal
menor comparado a um maior eacute tido como um bem porquanto o menor de dois
males eacute desejaacutevel do que o maior entretanto o que eacute [efetivamente] desejaacutevel eacute
bom e quanto mais desejaacutevel for maior o bem seraacute (EN V 3 1131a20)
532 Justiccedila corretiva
A justiccedila corretiva estaacute direcionada com as relaccedilotildees de acircmbito privado Esta
ao contraacuterio da distributiva natildeo eacute guiada pela proporccedilatildeo geomeacutetrica e sim pela
aritmeacutetica Aqui a lei leva em conta apenas a natureza do dano pois considera as
73
partes iguais seu objeto eacute identificar o sujeito que causou o dano e a quem o dano
fora causado
Elas satildeo distribuiacutedas em duas categorias voluntaacuterias e involuntaacuterias As
voluntaacuterias satildeo aquelas decorrentes da accedilatildeo volitiva entre os sujeitos O exemplo
mais utilizado para ilustrar eacute o de uma relaccedilatildeo de compra e venda
Aristoacuteteles traz para a relaccedilatildeo entre os particulares o problema que contorna
a teoria da justiccedila que eacute dar a cada um o que lhe cabe Dessa forma utiliza dos
termos ldquoperdardquo e ldquoganhordquo para as operaccedilotildees de permuta voluntaacuteria ldquoNesse contexto
ter mais do que lhe cabe eacute chamado de ganho e ter menos do que se tinha no iniacutecio
eacute chamado de perda como por exemplo comprar e vender e todas as transaccedilotildees
que recebem a imunidade da leirdquo (EN V 3 1132a15)
A justiccedila corretiva no sentido involuntaacuterio diz respeito a accedilatildeo decorrente da
vontade de apenas um dos sujeitos O Estagirita divide as do tipo involuntaacuterio em
duas espeacutecies sendo elas furtivas e violentas Ele as explica dando os seguintes
exemplos As furtivas deteacutem o furto o adulteacuterio o envenenamento a prostituiccedilatildeo a
seduccedilatildeo ou incitaccedilatildeo de escravos o assassinato agrave traiccedilatildeo o falso testemunho
Quanto agraves violentas deteacutem o assalto o aprisionamento o crime de morte o roubo
mediante violecircncia a mutilaccedilatildeo a linguagem abusiva o insulto
54 Justo domeacutestico
No trecho 1134 da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles apresenta mais duas
acepccedilotildees de justiccedila A justiccedila poliacutetica e a justiccedila domeacutestica Se avanccedilarmos mais
uma vez no texto e adentrarmos na temaacutetica prudecircncia vamos encontrar duas
figuras ou uma figura com duas caracteriacutesticas semelhantes agrave essas formas de
justiccedila Estamos referindo agrave figura do prudente como bom administrador domeacutestico
e ou bom administrador poliacutetico Proacutexima a essa mesma passagem do livro VI
encontramos uma nova referecircncia que diz respeito agrave duas manifestaccedilotildees
especiacuteficas da prudecircncia uma relativa ao Estado e outra relativa aos particulares Agrave
prudecircncia que concerne agraves coisas proacuteprias ao Estado Aristoacuteteles chama de Ciecircncia
74
Legislativa Agrave prudecircncia que concerne agraves coisas proacuteprias aos particulares ele chama
de Ciecircncia Poliacutetica
A justiccedila domeacutestica eacute aquela compreendida pelas relaccedilotildees que se
estabelecem entre marido e mulher pai e filho e senhor e escravo A mulher o filho
menor e o escravo natildeo participam ativamente das decisotildees da poacutelis o que os
isentam do conceito de justo poliacutetico Apesar da mulher natildeo participar das decisotildees
da poacutelis ela participa das decisotildees do lar o que a diferencia do escravo e do filho
Contra estes uacuteltimos natildeo se pode dizer que o senhorpai possa cometer injusticcedila
uma vez que satildeo considerados como parte do senhorpai sendo que ningueacutem pode
cometer injusticcedila contra si mesmo (BITTAR 2005 p 107)
55 Justo poliacutetico
Como jaacute referimos a compreensatildeo de justiccedila necessariamente
compreende dois termos-sujeito Essa implicaccedilatildeo natildeo eacute meramente loacutegica ela eacute
consequecircncia da teleologia que permeia toda a eacutetica aristoteacutelica Entretanto o justo
poliacutetico em especial refere-se a um grupo de pessoas que possuem a qualidade de
cidadatildeo Isso se deve principalmente por ser um pressuposto da justiccedila poliacutetica a
qualidade de participante ativo dos processos deliberativos proacuteprios agrave poacutelis
Feitas essas observaccedilotildees preliminares podemos agora procurar conceituar
o que seja a justiccedila poliacutetica De acordo com Eduardo C B Bittar
O justo poliacutetico consiste na aplicaccedilatildeo da justiccedila na cidade na poacutelis ou seja trata-se de algo que pertine ao corpo ciacutevico Assim existente no meio social eacute a justiccedila eu organiza um modo de vida que tende agrave auto-suficiecircncia da vida comunitaacuteria (autaacuterkeian) vigente entre os homens que partilham de um espaccedilo comum dividindo atividades segundo a multiplicidade de aptidotildees e necessidades de cada qual formando uma comunidade que tem por fim a eudaimoniacutea e a plena realizaccedilatildeo das
potencialidades humanas (BITTAR 2005 p 106)
75
A definiccedilatildeo dada pelo Estagirita eacute a seguinte ldquoJusticcedila poliacutetica quer dizer
justiccedila entre as pessoas livres e (real ou proporcionalmente) iguais que vivem uma
vida comum com a finalidade de satisfazer suas necessidadesrdquo (1134a25) O que
parece dizer que soacute podem agir justa ou injustamente aqueles que satildeo considerados
cidadatildeos
Aristoacuteteles divide a justiccedila poliacutetica em duas partes sendo uma a justiccedila
natural e outra a justiccedila convencional Comecemos pela natural
551 Justiccedila natural
O Estagirita explica que a justiccedila natural eacute aquela que possui idecircntica
validade em todos os lugares e natildeo depende de nossa aceitaccedilatildeo ou natildeo aceitaccedilatildeo
ldquoO justo natural (diacutekaion phyacutesikon) eacute aquele eu por si proacuteprio por todas as
partes possui a mesma potecircncia (dyacutenamis) e que natildeo depende para sua existecircncia
de qualquer decisatildeo de qualquer ato de positividade de qualquer opiniatildeo ou
conceito O que eacute por natureza eacute tal qual eacute []rdquo (BITTAR 2005) Continua definindo
A justiccedila natural eacute parte da justiccedila poliacutetica que visa permitir a realizaccedilatildeo plena do ser humano inserido na estrutura social do conviacutevio Sendo naturalmente um ser poliacutetico (zwon politikoacuten) a plena realizaccedilatildeo do animal racional estaacute condicionada agrave proacutepria natureza que o engendra o eu equivale a dizer que agrave sociabilidade agrave politicidade agrave autoridade ao relacionamento agrave reciprocidade estaacute o homem intestinamente ligado Reger-se sob o signo de sua natureza para o homem significa estar sob o governo da razatildeo o que se traduz no acircmbito social como estar sob o governo das leis que satildeo ldquoa razatildeo sem paixatildeordquo (BITTAR 2005 p 109)
552 Justo legal (convencional)
Aristoacuteteles define a justiccedila legal como aquela que em primeira instacircncia
pode ser estabelecida de um modo ou outro Isso quer dizer que a justiccedila legal eacute
76
composta pelas disposiccedilotildees definidas de um ou outro modo pela vontade do
legislador
A lei possui forccedila natildeo natural mas fundada na convenccedilatildeo Tendo vaacuterias formas de se estabelecer determinado princiacutepio como conteuacutedo da lei a opccedilatildeo eacute feita pelo legislador passando assim aquilo que a priori era indiferente que fosse de tal ou de qual maneira a ser vinculado a todos os cidadatildeos que a ela se subordinam
Tambeacutem eacute a esse tipo de justiccedila que se agregam as medias legais de caraacuteter particular os decretos e as sentenccedilas As leis em sua maior
parte dirigem-se genericamente a um grupo de cidadatildeos [] Os
decretos as decisotildees emanadas do poder administrativo do governante assim como as sentenccedilas judiciais a aplicaccedilatildeo concreta da generalidade abstrata das disposiccedilotildees legais
57 estatildeo tambeacutem atreladas ao justo
legal como parte da justiccedila poliacutetica que se realiza na vida ciacutevica (BITTAR 2005 p 110)
Dessa forma e imediatamente o fundamento de validade da disposiccedilatildeo natildeo
estaacute na justiccedila natural e sim na convenccedilatildeo orientada pela vontade do legislador
Porque ldquo[] enquanto uma lei da natureza eacute imutaacutevel e tem a mesma validade em
todos os lugares como o fogo que queima na Peacutersia observa-se que as regras da
justiccedila variam (EN V 6 1134a30)
Werner Jaeger em sua Paideia exprime a importacircncia do justo legal para o
povo grego
Acontece o mesmo na Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Anota um nuacutemero muito maior de Aretai que Platatildeo mas ao falar da justiccedila distingue um duplo conceito desta virtude existe uma justiccedila em sentido estrito juriacutedico e outra num sentido mais geral que engloba a totalidade das normas morais e poliacuteticas Reconhecemos nesta uacuteltima sem dificuldade o conceito de justiccedila do antigo Estado constitucional helecircnico Aristoacuteteles invoca expressamente o verso acima referido que inclui na justiccedila todas as virtudes A lei regula pelos seus preceitos as relaccedilotildees dos cidadatildeos com os deuses do Estado com os outros concidadatildeos e com os inimigos da Paacutetria[]
Como suma da comunidade citadina a poacutelis oferece muito Em contrapartida pode exigir ao maacuteximo Impotildee-se aos indiviacuteduos de modo vigoroso e implacaacutevel e neles imprime seu caraacuteter Eacute fonte de todas normas de vida vaacutelidas para os indiviacuteduos O valor do homem e de sua conduta mede-se exclusivamente pelo bem ou pelo mal que acarretam agrave cidade (JAEGER 1995 139-142 negrito nosso)
57
Sobre a aplicaccedilatildeo da lei geral ao caso concreto vide o capiacutetulo 5 A equidade
77
Em sua Retoacuterica Aristoacuteteles define e diferencia invocando a trageacutedia
Antiacutegona
Quando falo de dois tipos de direito ou lei refiro-me agrave lei particular e agrave lei comum A primeira varia segundo cada povo sendo parcialmente escrita a lei comum eacute a lei natural visto que haacute de fato uma justiccedila e uma injusticcedila das quais todos tecircm de alguma maneira a intuiccedilatildeo e que satildeo naturalmente comuns a todos independentemente de todo Estado e de toda convenccedilatildeo reciacuteproca Eacute isso que Antiacutegona de Soacutefocles expressa com clareza ao declarar que o sepultamento de Polinices fora um ato justo a despeito da proibiccedilatildeo ela quer dizer que fora um ato justo por ser o direito natural
Natildeo eacute de hoje ou de ontem
Mas vive eternamente ningueacutem podendo indicar sua origem (Ret I 13
1373b1-15)
Vimos o justo natural como algo imutaacutevel e com regras aplicaacuteveis agraves
diversas localidades Tambeacutem revisitamos o conceito de justo legal estabelecendo
que seu criteacuterio de validade esteja na vontade uma vez que eacute fruto de convenccedilatildeo
Agora restam-nos compreender como aproximar os princiacutepios gerais as leis
abstratas das contingecircncias que imprime em noacutes a incerta condiccedilatildeo humana
78
6 A EQUIDADE
Tanto em sua Eacutetica a Nicocircmaco quanto em sua Retoacuterica Aristoacuteteles utiliza o
termo equidade58 epieikeia em dois sentidos Num sentido lato significa benignidade
e indulgecircncia No sentido stricto eacute a correccedilatildeo da lei
ldquoSer equitativo eacute mostrar indulgecircncia ante as fraquezas humanas eacute tambeacutem
levar em conta menos a lei do que o legislador considerar natildeo a letra da lei mas a
intenccedilatildeo do legisladorrdquo (Ret I 13 1374b10)
ldquoE [tambeacutem] daqui se pode concluir claramente quem eacute o homem equitativo
ele eacute algueacutem que por escolha e haacutebito faz o que eacute equitativo e que natildeo eacute inflexiacutevel
quanto aos seus direitos se contentando em receber uma porccedilatildeo menor mesmo que
tenha a lei do seu ladordquo (EN V 10 1138a)
Sobre o sentido lato Carlos Alberto Schiavo
Por outro lado alguns autores entendem que o uso que os gregos ndash Platatildeo inclusive ndash davam para a palavra epieikeia era em um sentido vulgar de benignidade e indulgecircncia ateacute mesmo porque quando querem atribuir agrave Platatildeo um espiacuterito de rigidez na aplicaccedilatildeo da lei em atenccedilatildeo agrave supremacia que o filoacutesofo assinalava do Estado sobre o indiviacuteduo em seus ensinamentos acerca do justo (SCHIAVO 2013 p 6-7 traduccedilatildeo nossa)
59
Assim o conceito de equidade pode ser compreendido como o exerciacutecio do
justo e do bem atraveacutes da benignidade e da indulgecircncia Aqui a comunidade se
beneficia uma vez que o equacircnime alcanccedile seu bem atraveacutes de deliberaccedilotildees que
natildeo pretendem prover apenas o acircmbito individual
58
Equidade eacute a traduccedilatildeo romacircnica de aequitas e natildeo do grego epieiacutekeia Para uma traduccedilatildeo direta do grego a correspondente em liacutengua portuguesa eacute epiqueia que de acordo com Aureacutelio Buarque de Holanda ldquoepiqueia SF 1 Interpretaccedilatildeo razoaacutevel de lei ou preceito 2 Fig Meio-termo moderaccedilatildeordquo Vide PINTO G A GONCcedilALVES A L GONCcedilALVEZ V D C O problema da traduccedilatildeo do termo fairness na obra de John Rawls Belo Horizonte Editora Puc Minas 2009 59
Por otra parte algunos autores entienden que el uso que los griegos -Platon inclusive- daban a la palabra epieikeia era en un sentido vulgar de benignidad e indulgencia aun cuando hay quienes atribuyen a Platon un espiacuteritu de rigidez en la aplicacioacuten de la ley en atencioacuten a la supremaciacutea que el filosofo le asignaba al Estado sobre el individuo y a su idea respecto de persuadir de como es por naturaleza lo justo (SCHIAVO p6-7 traduccedilatildeo nossa)
59
79
Sobre o sentido stricto Aristoacuteteles afirma que a natureza essencial do
equitativo eacute uma retificaccedilatildeo da lei onde a lei eacute lacunar em funccedilatildeo de sua
generalidade
Este sentido pretende conhecer o ponto de colisatildeo entre a norma em sua
generalidade e a fraacutegil condiccedilatildeo humana em sua singularidade Em outras palavras
neste sentido Aristoacuteteles nos diz que por ser a lei geral e abstrata instala-se uma
distacircncia entre ela e seu objeto uma vez que as relaccedilotildees humanas satildeo contingentes
e portanto de difiacutecil determinaccedilatildeo
Esta distacircncia dificulta a aplicaccedilatildeo da norma podendo por vezes causar
injusticcedila Para evitar a injusticcedila proveniente da aplicaccedilatildeo do justo legal eacute necessaacuterio
acomodar este uacuteltimo agrave realidade do mundo fatiacutedico essa acomodaccedilatildeo eacute a equidade
em seu sentido stricto
61 Justiccedila e equidade ambiguidade do tema
Aristoacuteteles ao tratar da equidade comeccedila fazendo uma exposiccedilatildeo sobre a
ambiguidade terminoloacutegica entre justiccedila e equidade e o justo e o equitativo De
acordo com Eduardo Bittar
[] o uso dos termos se aproxima tamanhamente que ora chamamos de eacutequa uma situaccedilatildeo de justiccedila ora de justa uma situaccedilatildeo eacutequa De fato todos reconhecem que os termos natildeo se equivalem perfeitamente e neste caso o uso de um pelo outro conduz a equiacutevocos notoacuterios de modo que sendo semelhantes poreacutem natildeo idecircnticos devem ser distinguidos naquilo que lhes peculiariza Eacute no gecircnero (eacuteteron tocirc geacutenei) que se dizem aproximados os conceitos de ambos os termos O uso ainda mais esta a indicar a relativa e frequumlente coincidecircncia dos campos semacircmticos de ambos os significantes pois verdadeiramente se satildeo diversos ou o justo natildeo eacute bom ou o eacutequo natildeo o eacute (BITTAR 2005 p163)
Os termos no Grego de Aristoacuteteles satildeo canonicamente traduzidos por equidade e equitativo satildeo epieikeia e epiekis respectivamente Ele usa-os com muita frequecircncia na Eacutetica a Nicocircmaco e muita vezes em sua Retoacuterica e sua Poliacutetica Como ele mesmo nota que usa os termos em dois sentidos De longe o significado mais comum e geral eacute de epieikeia como simplesmente excelecircncia ou bondade A Eacutetica a Nicocircmaco
80
aplica mais tipicamente neste sentido Em uma passagem Aristoacuteteles diz que do ponto de vista da Justiccedila na rectificaccedilatildeo eacute indiferente se um homem bom tem defraudado um mau homem ou vice-versa a palavra para bom eacute epieikeis contrastava com phaulos para o mal Em trecircs passagens no entanto Aristoacuteteles usa os termos para se referir a uma virtude especiacutefica comumente dito ser a virtude da equidade um tipo particular de excelecircncia Aristoacuteteles caracteriza em verdade epieikeia no sentido especiacutefico como um epanorthoma nomou hei elleipei dia de katholou uma correccedilatildeo da lei onde a lei estaacute aqueacutem por causa de sua universalidade Na Retoacuterica descreve a justa quanto ao Paraacute para gegrammenon nomon δικαιον II que a justiccedila que se encontra aleacutem a lei escrita (SHINER 1994 p 1247 traduccedilatildeo nossa)
60
Ao tratar do assunto o Estagirita distingue a justiccedila e o justo pelas
quantificadoras universal e particular Quando aponta o sentido universal estaacute
referido agrave accedilatildeo como virtuosa ou natildeo Quando aponta o sentido particular diz que
estaacute relacionada ao prazer do ganho Eis a distinccedilatildeo ldquoEntretanto enquanto a
injusticcedila no sentido particular tange agrave honra ao dinheiro ou agrave seguranccedila ou seja laacute
qual for o termo que pudeacutessemos utilizar para englobar todas essas coisas seu
motivo sendo o prazer do ganho a injusticcedila no sentido universal tange a todas as
coisas que constituem a esfera da virtuderdquo (EN V 2 1130b1) Conclui na sequecircncia
que em sentido universal o justo eacute legal e em sentido particular o justo eacute igual ou
equitativo
O exame da natureza da equidade e do equitativo se daacute em sentido anaacutelogo
pois ldquo[] (nem tudo que eacute ilegal eacute natildeo equitativo ao passo que tudo que eacute natildeo
equitativo eacute ilegal) assim tambeacutem o injusto e a injusticcedila no sentido particular satildeo o
mesmo que o injusto e a injusticcedila no sentido universal mas destes distintos e a eles
relacionados como a parte do todordquo (EN V 2 1130b10)
60 The terms in Aristotles Greek standardly translated equity and equitable are epieikeia and
epiekis respectively He uses them frequently throughout the Nicomachean Ethics and often in the Rhetoric and Politics too As he himself notes he uses the terms in two senses By far the most common meaning is the general one-epieikeia means simply excellence or goodness The Nicomachean Ethics illustrates typically this sense In one passage Aristotle says that from the point of view of justice in rectification it is indifferent whether a good man has defrauded a bad man or vice versa the word for good is epieikeis contrasted with phaulos for bad In three passages however Aristotle uses the terms to refer to a specific virtue commonly said to be the virtue of equity a particular kind of excellence Aristotle pithily characterizes epieikeia in the specific sense as an epanorthoma nomou hei elleipei dia to katholou a correction of law where law falls short because of its universality The Rhetoric describes the equitable as to para to gegrammenon nomon dikaionII that justice which lies beyond the written law (SHINER 1994 p 1247 traduccedilatildeo nossa)
81
Justo eacute um adjetivo que se predica em uma determinada pessoa comportamento ou situaccedilatildeo atraveacutes da atribuiccedilatildeo a todas essas coisas da capacidade de justiccedila abstrata E assim o justo consiste em realizar o objeto principal da justiccedila a concretizaccedilatildeo da justiccedila ao niacutevel do caso concreto tem em primeiro plano de referecircncia o justo legal e na epikeia a concretizaccedilatildeo do justo em respeito a um comportamento que eacute completamente determinado que resulte excepcional frente ao primeiro plano de referecircncia E por justiccedila entendia o Estagirita Esti de dikaiosunh men areth di hv ta autwn ekastoi exousi kai wz o nomo z adikia de di hn ta allotpia oux wz o nomoz 61 58 en tanto los romanos la definiacutean como ldquoConstans er perpetua voluntas jus summ cuique tribuendi
62rdquo
o bien Est autem a iustitia appellantum nam ut eleganter Celsus definit ius est ars boni et aequi
63 (SCHIAVO 2013 p3)
64
Quanto agrave equidade e ao equitativo Aristoacuteteles retoma o assunto no capiacutetulo
10 do Livro V da Eacutetica a Nicocircmaco De acordo com ele a equidade e o equitativo se
relacionam com a justiccedila e com o justo respectivamente pois quando examinadas
afigura-se que justiccedila e equidade natildeo satildeo nem absolutamente idecircnticas nem
genericamente diferentes
Aqui uma nova referecircncia ao duplo sentido do termo equidade65 uma de
uso popular e outra de emprego teacutecnico Vejamos
Por vezes eacute verdade que louvamos a equidade e o homem equitativo a tal ponto que chegamos a empregar a palavra equitativo como um termo
61
Ret I 9 1367a 5-7 ldquoaquilo que fazemos por nossos benfeitores por forccedila da justiccedila disto e os serviccedilos prestados em geral pois o proveito que deles se extrai natildeo se dirige ao seu agenterdquo (ARISTOacuteTELES 2011 p 83 traduccedilatildeo Edson Bini) 62
Constante e perpeacutetua vontade de cumprir os deveres (traduccedilatildeo nossa) 63
E eacute chamada assim de justiccedila pela elegante definiccedilatildeo de Celso eacute a arte do bom e do equitativo (traduccedilatildeo nossa) 64
Justo es un adjetivo que se predica en concreto de una persona de una conducta o de una situacioacuten por el que se asigna a todas estas cosas la capacidad abstracta de justicia Y en tanto lo justo consiste en realizar el bien comuacuten como objeto principal de la justicia la concrecioacuten de la justicia a nivel del caso o del conflicto tiene un primer plano de referencia en la justicia legal y en la epiqueya la concrecioacuten de lo justo respecto de una conducta completamente determinada que resulta excepcional frente aquel primer plano de referencia Y por justicia el Estagirita entendiacutea Esti de dikaiosunh men areth di hv ta autwn ekastoi exousi kai wz o nomo z adikia de di hn ta allotpia oux wz o nomoz en tanto los romanos la definiacutean como ldquoConstans er perpetua voluntas jus summ cuique
tribuendi rdquo o bien Est autem a iustitia appellantum nam ut eleganter Celsus definit ius est ars boni et aequi (SCHIAVO 2013 p3) 65
Ao que tratamos no iniacutecio deste capiacutetulo
82
de aprovaccedilatildeo de outras coisas aleacutem do que eacute justo e a empregamos como equivalente de bom querendo dizer com mais equitativo meramente uma coisa eacute melhor Em outras oportunidades todavia quando submetemos a palavra efetivamente ao crivo da razatildeo nos parece estranho que o equitativo devesse ser louvaacutevel uma vez ser ele algo distinto do justo (ENV 10 1137b1)
Aristoacuteteles instala entatildeo certa dificuldade que nos parece proveniente da
loacutegica De acordo com ele ldquoSe satildeo diferentes [um deles] o justo ou o equitativo natildeo
eacute bom se ambos satildeo bons satildeo a mesma coisardquo (ENV 10 1137b1)
A soluccedilatildeo dada eacute que a equidade natildeo eacute diferente da justiccedila como um todo
mas diferente de uma parte dela a justiccedila legal Natildeo bastasse diferente Aristoacuteteles
ainda afirma ser a equidade superior uma vez que a equidade eacute a retificaccedilatildeo da
justiccedila legal
62 Justiccedila como equidade66
Talvez uma dificuldade na compreensatildeo da equidade aristoteacutelica esteja
associada a uma terceira concepccedilatildeo vigente em sua Eacutetica Tal concepccedilatildeo foi fruto
da investigaccedilatildeo tomista e permeia a ideia de equidade se sobrepondo por vezes agraves
duas primeiras concepccedilotildees apresentadas quais sejam a lato e a stricto
A questatildeo estaacute mais uma vez na proacutepria terminologia Sem precisar das
origens etimoloacutegicas da palavra justiccedila e da palavra equidade podemos estabelecer
um padratildeo como constante em ambos os conceitos
A palavra justiccedila nos remete agrave justeza agravequilo que estaacute conformado ou em
conformidade justificado assentado ajustado etc A palavra equidade por sua
vez nos remete agrave equalizado equiparado razoado etc
Numa primeira acepccedilatildeo a palavra equumlidade significa etimologicamente retidatildeo e justiccedila Numa segunda acepccedilatildeo poreacutem corresponde a
66
Aqui natildeo fazemos referecircncia a obra Justice as fairness do filoacutesofo John Rawls Sobre este assunto vide PINTO G A GONCcedilALVES A L GONCcedilALVEZ V D C O problema da traduccedilatildeo do termo fairness na obra de John Rawls Belo Horizonte Editora Puc Minas 2009
83
moderaccedilatildeo correccedilatildeo benignidade piedade coincidindo nesse sentido com a ideacuteia aristoteacutelica de epikeya que eacute o conveniente ou o que se ajusta ou melhor norma que se adapta a uma determinada relaccedilatildeo por corresponder agrave natureza essencial desta A equumlidade complementa a justiccedila corrigindo a lei pelas caracteriacutesticas concretas e muitas vezes imprevistas que as realizadas sociais apresentam e que natildeo satildeo passiacuteveis de enquadramento nos ditamentes da justiccedila geral A lei como natildeo pode deixar de ser regula as relaccedilotildees humanas de caraacuteter juriacutedico sob um acircngulo de todo geral e abstrato A equumlidade ao contraacuterio por sua proacutepria natureza visa a corrigir a lei quando esta como anota Aristoacuteteles se demonstra incompleta para abarcar o caso especial e concreto que foge agrave aplicaccedilatildeo geneacuterica (PAUPEacuteRIO 2003 p 67)
Parece que ambos os termos remetem a uma adaptaccedilatildeo que tem por fim
tornar igual ou ao menos fazer com que a medida estabelecida conheccedila seu objeto
Neste sentido instalador da ambiguidade eacute que muitos autores fazem
referecircncia agrave equidade como sendo a proacutepria justiccedila natural ou ao menos a parte
dela que nos toca
[] o termo ldquoequumlidaderdquo natildeo eacute uniacutevoco pois natildeo se aplica a uma soacute realidade nem tampouco equiacutevoco jaacute que natildeo designa duas ou mais realidades desconexas mas sim anaacutelogo pois se refere a realidades conexas ou relacionadas entre si
De maneira que a ldquoequumlidaderdquo tem sido de certa forma entendida como um direito natural em suas vaacuterias concepccedilotildees (DINIZ 242)
Palpeacuterio destaca que ldquoNo fundo como anotam alguns autores a equumlidade eacute
o proacuteprio direito natural natildeo propriamente em seus princiacutepios mas em sua
aplicaccedilatildeo e acomodaccedilatildeo aos casos concretosrdquo67 (PALPEacuteRIO p 69)
De acordoacute com Recasegraves Siches ldquola equidad es la expresioacuten de lo justo
natural en relacioacuten com el caso concreto Es decir la equidad es lo justo pero no lo
67
Na sequencia podemos encontrar o Autor dizendo que a justiccedila se difere da equidade contudo parece-nos que o conceito de justiccedila trabalhado neste ponto eacute o conceito de justo poliacutetico natildeo alcanccedilando a latitude aparente do texto que por referir apenas agrave justiccedila poderia nos sugerir seu sentido amplo vejamos ldquoNatildeo se confundindo com a clemecircncia que segundo Secircneca eacute a moderaccedilatildeo do acircnimo no poder de castigar a equumlidade distingue-se da proacutepria justiccedila porque enquanto esta corresponde agrave aspiraccedilatildeo do legislador aquela corresponde agrave do juizrdquo (p 69)
84
justo legal tal y como se desprenderiacutea de latildes palabras de la ley sino lo
auteacutenticamente justo respecto del caso particularrdquo (SICHES 2008 p 656)
Portanto tanto a justiccedila quanto a equidade parecem procurar acomodar a
medida constante das regras gerais e abstratas agraves realidades inconstantes em suas
singularidades e concretude Tal acomodaccedilatildeo procura estabelecer ou reestabelecer
certo paracircmetro de igualdade que nos parece aspiraccedilatildeo natural agrave justiccedila grega
621 Justiccedila e igualdade
A noccedilatildeo de justiccedila estaacute intimamente relacionada com a noccedilatildeo de
igualdade68 Da mesma forma em que a injusticcedila estaacute relacionada com a noccedilatildeo de
desigualdade Nuno Manoel M dos S Coelho em seu verbete Igualdade explica
que o desenvolvimento do ldquoconceito juriacutedico-filosoacutefico de igualdade no centro da
concepccedilatildeo de justiccedila como virtude diante do outro eu reconheccedilo como igual na
medida em que natildeo posso reivindicar tudo para mim mas devo dar a cada um o
seurdquo (COELHO 2011 p 215)
A igualdade eacute elemento essencial e baacutesico ldquoA justiccedila eacute uma igualdade e a injusticcedila uma desigualdaderdquo afirmou Aristoacuteteles ldquoA essecircncia da justiccedila eacute a igualdaderdquo acrescenta S Tomaacutes E mestre em tirar das palavras o que elas encerram mostra que a noccedilatildeo de igualdade estaacute contida no proacuteprio nome dessa virtude pois das coisas que estatildeo adequadas ou igualadas dizemos comumente que estatildeo ldquoajustadasrdquo (MONTORO 2009 p 170)
68
Podemos observar que a preocupaccedilatildeo com a igualdade e a tensatildeo existente entre igualdade material e igualdade formal aparece ateacute mesmo no contexto positivista como um problema a ser resolvido Tambeacutem daqui resulta que eacute errado considerar a regra que manda tratar os que satildeo iguais de forma igual como aplicaccedilatildeo do princiacutepio de justiccedila da igualdade A uacutenica norma que pode valer como princiacutepio de justiccedila da igualdade eacute a norma segundo a qual todos os homens devem ser igualmente tratados segundo a qual nenhuma das desigualdades que efetivamente existem entre eles deve ser tomada em consideraccedilatildeo (KELSEN 1998 p 55-56) Podemos ainda encontra tal preocupaccedilatildeo no liberalismo de pensadores como John Rawls vide Uma teoria da Justiccedila (2008)
85
A justiccedila em Aristoacuteteles faz necessaacuteria referecircncia agrave igualdade em seu
sentido material Tanto o eacute que a medida enquanto referecircncia da mediania eacute o
fundamento de sua eacutetica
Sobre a justiccedila enquanto igualdade Andreacute Franco Montoro desdobra acerca
da foacutermula tomista Ratio justitiae in hoc consistit quod alteri reddatur quod ei
debentur secundum aequalitatem69
[] em sentido estrito e proacuteprio a justiccedila designa uma virtude com objeto especial Nesse sentido ldquoa essecircncia da justiccedila consiste em dar a outrem o que lhe eacute devido sendo uma igualdaderdquo (simples ou proporcional) conforme a definiccedilatildeo de S Tomaacutes Soacute eacute justiccedila propriamente dita a relaccedilatildeo que tem por objeto - dar a outrem - o que lhe eacute devido - segundo uma igualdade A essas trecircs notas correspondem agraves caracteriacutesticas essenciais da justiccedila em sentido estrito - a alteridade ou pluralidade de pessoas (alteras de alter) - o devido (debitum) - a igualdade (aequalitas) (MONTORO 2009 p 165 - 166)
Ainda de acordo com Montoro a igualdade eacute estabelecida atraveacutes de
criteacuterios quantitativos
Duas realidades satildeo idecircnticas quando tecircm a mesma essecircncia Semelhantes quando tecircm as mesmas qualidades Iguais quando tecircm a mesma quantidade ldquoidem est unum in substancia siacutemile unum in qualitate aequale vero unum in quantitaterdquo Um homem eacute ldquoidecircnticordquo apenas a si mesmo De duas pessoas que tecircm os mesmos traccedilos dizemos que satildeo ldquosemelhantesrdquo Vinte eacute igual a 10 mais 10
A igualdade eacute pois uma equivalecircncia de quantidades Na justiccedila de forma analoacutegica e adaptada agrave natureza moral das relaccedilotildees humanas e essa tambeacutem a significaccedilatildeo de igualdade
Com razatildeo observou Recaseacutens Siches na justiccedila natildeo se trata de estabelecer ldquoidentidaderdquo como seria o caso de entregar um objeto e receber o mesmo objeto Isso natildeo teria sentido Natildeo se trata tambeacutem de receber um objeto ldquosemelhanterdquo ou parecido Mas de estabelecer uma equivalecircncia ou ldquoigualdaderdquo (MONTORO 2009 p171)
69
A justa razatildeo consiste em dar ao outro o que lhe eacute devido de acordo com a igualdade (traduccedilatildeo nossa)
86
Aristoacuteteles apresenta duas foacutermulas para que a igualdade seja alcanccedilada
uma ele denominou aritmeacutetica (conhecida como igualdade simples) e a outra
geomeacutetrica (conhecida como igualdade proporcional)
Desta forma a ldquoigualdade da justiccedila pode realizar-se de duas formas
distintasrdquo
a) igualdade simples ou absoluta eacute a equivalecircncia entre dois objetos que se verifica nas relaccedilotildees de troca o comprador de um objeto que vale 1000 dever efetuar um pagamento de igual valor (1000 = 1000) b) igualdade proporcional ou relativa eacute a que se realiza na distribuiccedilatildeo dos benefiacutecios e encargos entre os membros de uma comunidade se A que contribui com 50 recebe 5 B que contribui com 80 receberaacute 8 (550 = 880) Aristoacuteteles chamou a primeira igualdade ldquoaritmeacuteticardquo e a segunda ldquogeomeacutetricardquo Em qualquer caso a justiccedila procura realizar uma igualdade nas relaccedilotildees entre os homens Ou como diz Lachance na justiccedila devemos nos igualar ao proacuteximo por seu ato (MONTORO 2009 p 172)
A justiccedila portanto soacute pode ser compreendida a partir de seu princiacutepio de
igualdade Ainda sobre este ponto Aristoacuteteles apresenta dois importantes temas que
foram objeto de estudo dos itens 531 e 532 A justiccedila distributiva e a justiccedila
corretiva Natildeo obstante jaacute terem sido objeto de nosso estudo eacute necessaacuterio
revisitarmos tais conceitos em face da noccedilatildeo de igualdade
Assim pode-se dizer que haacute duas formas de justiccedila uma particular cujo
objeto eacute o bem particular e outra geral tambeacutem chamada legal ou social cujo objeto
eacute o bem comum A justiccedila particular realiza-se de duas formas justiccedila comutativa
quando um particular daacute a outro particular o bem que lhe eacute devido e justiccedila
distributiva quando a sociedade daacute a cada particular o bem que lhe eacute devido
Receber o devido e portanto natildeo tomar maior parcela dos bens desejados
e nem a menor parcela dos bens indesejados seja na relaccedilatildeo particular ou sobre
aquilo que eacute o bem comum parece-nos o criteacuterio da igualdade
63 Equidade melhor que um tipo de justiccedila
87
De acordo com Aristoacuteteles a equidade eacute melhor que um tipo de justiccedila Ele
estaacute se referindo agrave justiccedila legal pois
[] a equidade embora superior a uma espeacutecie de justiccedila eacute ela mesma justa natildeo eacute superior agrave justiccedila ao ser genericamente distinta dela Justiccedila e equidade satildeo portanto a mesma coisa sendo ambas boas ainda que a equidade seja melhor
A origem da dificuldade eacute que ldquoa equidade embora justa natildeo eacute justiccedila legal poreacutem retificaccedilatildeo desta (EN V 10 1137b10)
O que Aristoacuteteles parece querer dizer eacute que a justiccedila em todas as suas
acepccedilotildees compreende a equidade como seu princiacutepio No entanto a acepccedilatildeo de
justiccedila legal em sua rigidez e generalidade pode objetivamente ferir o justo razatildeo
pela qual a equidade enquanto princiacutepio da justiccedila eacute melhor Afinal eacute ela que natildeo
permite que uma das espeacutecies de justiccedila aquela que eacute convencionada pelo homem
seja aplicada de forma a causar injusticcedila
Eduardo Bittar explica como Aristoacuteteles desconstitui a aparente
ambiguidade da temaacutetica
o eacutequo sendo melhor que uma forma de justo ndash e aqui se percebe nitidamente qual a estrita relaccedilatildeo entre o eacutequo e uma forma especiacutefica de justo o justo legal ndash natildeo deixa de ser justo poreacutem natildeo simplesmente pelo fato de constituir um gecircnero diferente representa algo a mais que o justo Em verdade satildeo a mesma coisa o justo e o eacutequo (tautograven aacutera diacutekaion kaigrave epieikegraves) de maneira que assim sendo o eacutequo eacute melhor e mais desejaacutevel que o justo Se eacutequo e justo se equivalem nesta medida e da forma indicada segundo o gecircnero natildeo eacute verdade que o eacutequo seja o justo segundo a lei (ou tograve katagrave noacutemon deacute) de acordo com o que estaacute consignado no corpo legislativo e foi posto pela vontade humana como vinculativo da conduta social mas sim um corretivo do justo legal (epanothoma nomiacutemou diacutekaion) (BITTAR 2005 p163)
Portanto a equidade corresponde ao justo presente na concepccedilatildeo de justiccedila
para Aristoacuteteles poreacutem eacute melhor que o justo legal por ser o princiacutepio corretor do
mesmo
64 Natureza essencial do equitativo a retificaccedilatildeo do justo legal
88
O que encontramos no capiacutetulo 10 do Livro V da Eacutetica a Nicocircmaco satildeo duas
aplicaccedilotildees da equidade enquanto retificaccedilatildeo do justo legal A primeira que
examinaremos neste item 64 diz respeito ao rigor do justo legal e a segunda que
examinaremos no item 65 diz respeito agrave existecircncia de casos que o legislador natildeo
pode prever
Em verdade estas duas aplicaccedilotildees da equidade satildeo consequecircncia de uma
soacute coisa o caraacuteter geral da norma Se de um lado o rigor da norma que exige do
equacircnime a acomodaccedilatildeo do direito se daacute pela generalidade da norma de outro a
generalidade parece insuficiente para conhecer todos os casos o que oportuna o
surgimento das lacunas
641 A metaacutefora da reacutegua de chumbo
Aristoacuteteles para explicar melhor em que consiste a equidade ilustra sua
exposiccedilatildeo fazendo uma analogia das regras do direito com as reacuteguas empregadas
por pedreiros em lavras
Os construtores da ilha de Leacutesbos utilizavam em seus afazeres um
instrumento que chamou a atenccedilatildeo do Estagirita esse instrumento nada mais era do
que uma reacutegua feita de chumbo
A funccedilatildeo de tal reacutegua era manter a medida certa ainda que seu objeto
assumisse formas diversas Assim inobstante as irregularidades na forma das
pedras poderia graccedilas agrave maleabilidade da reacutegua ajustaacute-la ao objeto apurando
assim a medida certa
Com efeito essa eacute a razatildeo porque natildeo satildeo todas as coisas determinadas pela lei pelo fato de haver alguns casos [e situaccedilotildees] em relaccedilatildeo aos quais eacute impossiacutevel estabelecer uma lei eacute necessaacuteria a existecircncia de um decreto especial pois aquilo que eacute ele proacuteprio indefinido soacute pode ser medido por um padratildeo indefinido como a reacutegua pluacutembea usada pelos construtores de Lesbos tal como essa reacutegua natildeo eacute riacutegida podendo ser flexibilizada ao formato da pedra um decreto
89
especial eacute feito para se ajustar agraves circunstacircncias do caso (EN V 10 1137b30)
Desprende-se do texto que a medida que eacute ali buscada ldquo[] se assemelha
agraves diversas situaccedilotildees que se encadeiam na etapa de aplicaccedilatildeo da norma juriacutedica
mormente a interpretaccedilatildeo do fato e do comando legal que o atinge em foco de
incidecircncia Assim se veria a norma geral como medida e a situaccedilatildeo da vida erigida
em controveacutersia como a pedrardquo (LOPES 1993 p 46)
O conceito de equidade muito bem explicado pela metaacutefora da reacutegua de
chumbo na passagem 1137b30 da Eacutetica a Nicocircmaco segundo Javier Hervada
(2008) ldquoabranda o dever e acomoda o direitordquo (HERVADA 2008 p 171) ldquoO
equumlitativo soacute se daacute quando a reacutegua consegue captar todas as microscoacutepicas
reentracircncias do cenaacuterio multiforme que lhe cabe medirrdquo (LOPES 2007 p 77)
A lei eacute considerada aqui como um sumaacuterio de decisotildees saacutebias Eacute por conseguinte apropriado complementaacute-la com novas decisotildees saacutebias tomadas na situaccedilatildeo presente e eacute tambeacutem apropriado corrigi-la nos pontos em que natildeo resume corretamente o que um bom juiz faria O bom juiacutezo mais uma vez proporciona tanto uma concretude superior como uma superior sensibilidade ou flexibilidade
A exigecircncia de flexibilidade tatildeo importante para o nosso entendimento da concepccedilatildeo aristoteacutelica natildeo cientiacutefica de escolha eacute descrita pois em uma viacutevida metaacutefora Aristoacuteteles nos diz que uma pessoa que tenta tomar todas as decisotildees recorrendo a algum princiacutepio geral antecedente sustentando como firme e inflexiacutevel para a ocasiatildeo eacute como um arquiteto que procura usar uma reacutegua reta sobre as curvas intricadas de uma coluna canelada O bom arquiteto ao contraacuterio mediraacute como fazem os construtores de Lesbos com um tira flexiacutevel de metal que ldquose inclina arqueada para ajustar-se agrave forma da rocha que eacute natildeo eacute fixardquo (1137b30-2) A boa deliberaccedilatildeo tal como essa regra se acomoda ao que encontra de maneira sensiacutevel e com respeito pela complexidade Natildeo assume que a forma da regra governa as aparecircncias permite que as aparecircncias governem a si mesmas e sejam normativas para a correccedilatildeo da regra (NUSSBAUM 2009 p 263)
Portanto a metaacutefora revela uma equidade que eacute em si uma regra mas uma
regra cuja forma eacute capaz de moldar-se agraves nuanccedilas proacuteprias da mateacuteria
642 A retificaccedilatildeo do justo legal
90
Aristoacuteteles define equidade70 como sendo a retificaccedilatildeo do justo legal A lei
natildeo por um erro da parte do legislador mas pela sua proacutepria generalidade pode
criar se aplicada de modo inflexiacutevel agrave multiplicidade dos casos singulares
especiacuteficos o efeito oposto para o qual foi originalmente estabelecida Ou seja
sendo ldquoinfinita a mateacuteria sobre a qual se deve legislar e sendo necessaacuterio apesar
de tudo estabelecer leis eacute forccediloso falar em geralrdquo (Ret I 13 1374a30) A equidade
seraacute o mecanismo que coloca nas matildeos do aacuterbitro discricionariedade suficiente para
aplicar a norma de modo a natildeo causar uma injusticcedila por meio do proacuteprio justo legal
A necessidade da aplicaccedilatildeo da equumlidade decorre do fato de que as leis dizem genericamente e para todos sem diferenciar todas as nuanccedilas que possam existir na esfera dos fenocircmenos de modo que surgem casos para os quais se aplicada a lei (noacutemos) em sua generalidade (kathoacutelou) estar-se-aacute a causar uma injusticcedila por meio do proacuteprio justo legal Exatamente para superar os problemas decorrentes da impossibilidade de haver uma legislaccedilatildeo minimamente detalhista e futurista eacute que existe o eacutequo []
Se a lei eacute neste ponto e para estes fins falha isto natildeo se deve nem ao conteuacutedo da lei em si nem ao legislador natildeo se trata de um erro legislativo mas sim de um problema oriundo da proacutepria peculiar conformaccedilatildeo das coisas como satildeo praticamente Cada caso eacute um caso e demanda uma atenccedilatildeo especial e especiacutefica absolutamente focalizada sobre os seus traccedilos e as suas caracteriacutesticas de modo que nenhuma legislaccedilatildeo poder-se-ia aplicar a esta dimensatildeo dos fatos (BITTAR 2005 p164 - 165)
A equidade aristoteacutelica eacute portanto ldquoa correccedilatildeo dos rigores da leirdquo (BITTAR
2002 p 116)
[hellip] no tocante aos erros legislativos e demais hipoacuteteses de produccedilatildeo de injusticcedila decorrente da generalidade no preceito legal aplicado agrave realidade faacutetica Aristoacuteteles aponta a utilizaccedilatildeo do recurso da epieacuteikeia ou seja da equidade forma de modelagem dos princiacutepios legais para serem aplicados a sujeitos concretos frente agrave problemaacutetica fenomecircnica a ser resolvida pelo juiz (dikasteacutes) (BITTAR 2003 p 1056-
1057)
70
No original ἐπιείκεια (epieiacutekeia)
91
Aristoacuteteles percebe como o perceberia Hans Kelsen dois milecircnios depois71
que na passagem de uma norma mais geral ndash a lei por exemplo ndash para uma norma
mais concreta ndash como a sentenccedila judicial ndash sempre restaraacute uma margem de escolha
que caberaacute agrave prudecircncia72 do inteacuterprete-aplicador preencher
Na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles problematiza a relaccedilatildeo entre a norma e o
caso concreto explicando que ldquoA origem da dificuldade eacute que a equidade embora
justa natildeo eacute justiccedila legal poreacutem a retificaccedilatildeo desta A razatildeo para isso eacute que a lei eacute
sempre geral entretanto haacute casos que natildeo satildeo abrangidos pelo texto geral da leirdquo
(EN V 1137b12) Nesse sentido a equidade seria a virtude destinada a solucionar
os casos em que a lei natildeo alcanccedila a concretizaccedilatildeo da justiccedila
Aristoacuteteles eacute o primeiro doutrinador das ciecircncias juriacutedicas Ele diz muito antes de Larenz ldquoCada regulamento legal ou do direito estaacute para o caso isolado na mesma relaccedilatildeo que o geral estaacute para o indiviacuteduordquo (1135a)
O que aqui eacute descoberto e expressado com autoridade loacutegica natildeo eacute menos que o princiacutepio fundamental da subsunccedilatildeo juriacutedica a imputaccedilatildeo do fato agrave lei escrita (ldquoao conceito legal do direitordquo 1135a)
Aristoacuteteles nos fornece aqui muito antes de Esser e Wiacker uma teoria das claacuteusulas gerais sejam elas inseridas de fora na lei como o Princiacutepio da Relaccedilatildeo (uso de medidas adequadas em relaccedilatildeo ao desejado fim) no Art 12 GG (Constituiccedilatildeo Alematilde) ou estejam elas jaacute consolidadas na lei como o Princiacutepio da boa-feacuterdquo no sect 242 BGB (pois sua positivaccedilatildeo eacute supeacuterflua o conteuacutedo normativo de tal paraacutegrafo eacute tatildeo pequeno o quatildeo grande eacute seu caraacuteter de advertecircncia) O princiacutepio geral vaacutelido da equumlidade []
Se tiveacutessemos percebido em tempo esta vaacutelida opiniatildeo de Aristoacuteteles entatildeo natildeo teria surgido de forma alguma nos nossos anos 60 a ilusatildeo de que toda aplicaccedilatildeo da lei pode ser formalizada e com isso computadorizada pois o computador pode ateacute realizar algo nas futuras ldquogeraccedilotildees inteligentesrdquo ou muito inteligentes mas nunca epieikeia Um pensador loacutegico eacute soacute entatildeo loacutegico quando conhece e reconhece os limites da loacutegica (ADOMEIT 2000 p138 - 140)
A liccedilatildeo de Teacutercio Sampaio Ferraz Jr evidencia a equidade enquanto
princiacutepio que estabelece razoaacutevel elo entre a norma e agrave especificidade da situaccedilatildeo
71
Veja-se a esse respeito o capiacutetulo VIII da Teoria pura do direito kelseniana 72
E eacute neste ponto que os neoaristoteacutelicos divergem de Kelsen uma vez que para este natildeo eacute necessariamente a prudecircncia mas juiacutezos poliacuteticos de conveniecircncia ndash fundados no poder e natildeo na razatildeo ndash que orientaratildeo a escolha do julgador Para uma anaacutelise mais aprofundada e criacutetica desse ponto veja-se Ferraz Juacutenior 1994 p 260-346 (Capiacutetulos 5 e 6)
92
Por uacuteltimo no conjunto da razatildeo juriacutedica costuma-se mencionar a equumlidade Aristoacuteteles eacute responsaacutevel por sua definiccedilatildeo como a justiccedila do caso concreto A soluccedilatildeo de litiacutegios por equumlidade eacute a que se obteacutem pela consideraccedilatildeo harmocircnica das circunstacircncias concretas do que pode resultar um ajuste da norma agrave especificidade da situaccedilatildeo a fim de que a soluccedilatildeo seja justa Pois como diziam os romanos summum jus summa injuria
73 Natildeo se trata de um princiacutepio que se oponha agrave justiccedila mas que a
completa a torna plena
Da mesma forma que os princiacutepios gerais a equumlidade tem no sistema dinacircmico funccedilatildeo metalinguumliacutestica Ela responde pela estrutura de concretizaccedilatildeo do direito Natildeo eacute fonte pois no mesmo sentido das demais (FERRAZ JUNIOR 2011 p 213)
Ferraz Junior em seu capiacutetulo sobre a Dogmaacutetica Hermenecircutica destaca ao
menos quatro desdobramentos possiacuteveis na integraccedilatildeo por equidade Satildeo eles
expandir uma obrigaccedilatildeo limitar o exerciacutecio de direitos criar regras para situaccedilotildees
que se alteram ou que natildeo foram previstas vejamos
[] Fala-se aqui no sentimento do justo concreto em harmonia com as circunstacircncias e adequado ao caso O juiacutezo por equumlidade na falta de norma positiva eacute o recurso a uma espeacutecie de intuiccedilatildeo no concreto das exigecircncias da justiccedila enquanto igualdade proporcional O inteacuterprete deve poreacutem sempre buscar uma racionalizaccedilatildeo dessa intuiccedilatildeo mediante uma analise das consideraccedilotildees praacuteticas dos efeitos presumiacuteveis das soluccedilotildees encontradas o que exige juiacutezos empiacutericos e de valor os quais aparecem fundidos na expressatildeo juiacutezo por equumlidade A equumlidade pode integrar o direito de diferentes modos Por exemplo por seu intermeacutedio podemos expandir uma obrigaccedilatildeo criando deveres adicionais para aleacutem dos que constam de um contrato ou decorrem expressamente de lei podemos ainda limitar o exerciacutecio de direitos para prevenir abusos podemos tambeacutem criar regras para situaccedilotildees que se alteram desde seu regulamento ou que nele natildeo foram previstas Em todo caso o juiacutezo equumlitativo de um lado apesar das consideraccedilotildees dos efeitos presumiacuteveis eacute sempre um juiacutezo jungido ao particular sem preocupaccedilotildees generalizantes Natildeo gera assim uma compulsatildeo para que outros casos semelhantes sejam interpretados e decididos do mesmo modo Por isso natildeo eacute propriamente fonte do direito mas meio de integraccedilatildeo De outro lado poreacutem pela consideraccedilatildeo dos efeitos presumiacuteveis tambeacutem natildeo aparece como arbitraacuterio mas sim representando o sentido que seja juriacutedico no contexto social em que se aplica (FERRAZ JUNIOR 2011 p 281 negrito nosso)
Interessante notar que Ferraz Junior aponta que essa proximidade do juiacutezo
ao particular natildeo eacute uma arbitrariedade mas uma representaccedilatildeo juriacutedica no contexto
em que determinada norma incide
73
Brocardo de Ciacutecero que quer dizer Supremo direito suprema injusticcedila (De Officiis I 10 33)
93
Enquanto a justiccedila eacute de ordem geral e natildeo se preocupa senatildeo com princiacutepios a equumlidade contrariamente perquire as circunstacircncias peculiares ao caso e submete a regra abstrata agraves razotildees derivadas da espeacutecie Em certos casos impotildee-se abandonar a letra da lei para acompanhar os ditames da razatildeo e da justiccedila Nisso se cifra a equumlidade que tempera e abranda o rigor legal Natildeo foi agrave-toa que se referiu Ciacutecero baseado em Terecircncio ao brocardo summum jus summa injuria que daacute ecircnfase agrave ideacuteia de que o rigor da aplicaccedilatildeo inflexiacutevel da lei pode muitas vezes quando natildeo abrandado pela equumlidade acarretar dureza demasiada ou mesmo extrema injusticcedila (PAUPEacuteRIO 2003 p68)
Cabe agora examinarmos a equidade como recurso dado por Aristoacuteteles
para os casos natildeo abarcados pela legislaccedilatildeo
65 Equidade e lacuna
A compreensatildeo do sentido stricto de equidade ou seja enquanto correccedilatildeo
do justo legal tem por pressuposto a generalidade da norma Natildeo obstante tal
generalidade existem casos que natildeo satildeo abrangidos pela lei Surge assim a
dificuldade cuja equidade mais uma vez eacute a soluccedilatildeo dada pelo Estagirita De acordo
com ele
A razatildeo para isso eacute que a lei eacute sempre geral entretanto haacute casos que natildeo satildeo abrangidos pelo texto geral da lei [ou por esta ou aquela regra legal geral] Em mateacuterias portanto nas quais embora seja necessaacuterio discursar em termos gerais natildeo eacute possiacutevel fazecirc-lo corretamente a lei toma em consideraccedilatildeo a maioria dos casos embora natildeo esteja insciente do erro que tal coisa acarreta (EN V 10 1137b12)
74
Natildeo obstante o legislador ter a generalidade como instrumento de ampliaccedilatildeo
de incidecircncia da norma esta natildeo eacute geral suficientemente para abarcar em
completude as indeterminaacuteveis possibilidades proacuteprias ao acircmbito particular
74
Conforme jaacute citado
94
Sobre lacunas adverte Kelsen
Como poreacutem o Direito vigente eacute sempre aplicaacutevel pois natildeo haacute ldquolacunasrdquo neste sentido esta foacutermula quando se penetre o seu caraacuteter fictiacutecio natildeo opera a pretendida limitaccedilatildeo do poder atribuiacutedo ao tribunal mas a auto-anulaccedilatildeo da mesma Se poreacutem o tribunal tambeacutem aceita a ideacuteia de que haacute lacunas no Direito entatildeo esta ficccedilatildeo teoreticamente inaceitaacutevel realiza o efeito pretendido Com efeito o juiz - e especialmente o juiz de carreira que estaacute sob o controle de um tribunal superior - que natildeo se sente facilmente inclinado a tomar sobre si a responsabilidade de uma criaccedilatildeo do Direito ex novo soacute muito excepcionalmente aceitaraacute a existecircncia de uma lacuna no Direito e por isso soacute raramente faraacute uso do poder que lhe eacute conferido de assumir o lugar do legislador (KELSEN 1999 p 185)
Aristoacuteteles esclarece que as lacunas podem existir pela vontade do
legislador ou contra a vontade deste
O problema legislativo que com maior frequumlecircncia ocorre eacute causado pela abstraccedilatildeo e universalidade do preceito legal De fato a lei escrita eacute um imperativo que se formula impessoalmente abarcando sob sua tutela a pluralidade de cidadatildeos aos quais se dirige e a multiplicidade de casos que surgem na vida concreta da poacutelis Lacunas aparecem em todo sistema legislativo escrito e estas podem existir por vontade do legislador de que existam ou mesmo contra a vontade deste Assim contra a sua vontade existiratildeo ldquoquando o fato lhe passa despercebidordquo e por vontade do legislador ldquoquando natildeo podendo precisar tudo eles tecircm de estatuir princiacutepios gerais que natildeo satildeo aplicaacuteveis sempre mas soacute as mais das vezes (Ret I 1375b)
Assim quando a lacuna existe pela vontade do legislador eacute porque o
mesmo percebendo que natildeo pode precisar toda mateacuteria ele estabelece um princiacutepio
geral que natildeo pode sempre ser aplicado agrave mateacuteria Por outro lado quando a lacuna
existe contra a vontade do legislador eacute porque o fato passou-lhe despercebido
Neste sentido a equidade possibilita ao juiz julgar ainda que natildeo conheccedila no
direito norma objetivamente correspondente de acordo com Machado Paupeacuterio []
ao juiz caberia em tais circunstacircncias reconhecer por equumlidade a exceccedilatildeo agrave
norma legal jaacute que se tivesse sido dado ao legislador prever a tal hipoacutetese ele
95
mesmo teria admitido que em tais condiccedilotildees devessem ser abertos os portotildees75
(2003 p 69)
De acordo com Aristoacuteteles
Essa eacute a razatildeo porque quando ocorrem disputas os indiviacuteduos recorrem a um juiz Dirigir-se a um juiz eacute dirigir-se agrave justiccedila pois o juiz ideal eacute por assim dizer a justiccedila personificada E tambeacutem os homens necessitam de um juiz para que este seja um elemento mediano pelo que efetivamente em alguns lugares ele eacute chamado de mediador pois pensam que se ele atinge a mediania atinge o que eacute justo Assim o justo eacute uma espeacutecie de mediania na medida em que o juiz eacute um meio (intermediaacuterio) entre os litigantes (EN V 4 1132a20)
Eacute importante destacar a observaccedilatildeo feita por Maria Helena Diniz em sua
obra Lacunas no Direito ela propotildee a existecircncia de certa dificuldade no emprego da
equidade
A equumlidade eacute teoricamente uma virtude de que deve lanccedilar matildeo o aplicador para temperar os rigores de uma foacutermula demasiado geneacuterica fazendo com que essa natildeo contrarie os reclamos da justiccedila Considera portanto a equumlidade como uma virtude informada pela justiccedila
Todavia Aristoacuteteles na praacutetica preconizava a absoluta submissatildeo do magistrado agrave lei porque entendia ser perigoso decidir por equumlidade no ambiente de corrupccedilatildeo que reinava nos Estados-cidades helecircnicos e nos tribunais corroiacutedos ateacute agrave medula pelas paixotildees poliacuteticas e pelas facccedilotildees Recomenda o mestre Estagira o juiacutezo arbitral para decisotildees de equumlidade (DINIZ 2002 p 242-243)
Essa uacuteltima observaccedilatildeo a que se refere agrave abstenccedilatildeo do emprego de juiacutezos
por equidade aparece na Retoacuterica ao que natildeo poderiacuteamos deixar de fazer
referecircncia ldquo[] preferimos uma arbitragem a um litiacutegio jaacute que o aacuterbitro leva em
conta a equidade ao passo que o juiz leva em conta a lei A arbitragem foi criada
com o propoacutesito expresso de garantir espaccedilo total para a equidaderdquo (Ret I 13
1374b20)
75
Paupeacuterio estaacute se referindo ao exemplo de Santo Tomaacutes sobre um vilarejo onde uma regra
determinasse que os portotildees permanecessem fechados durante a noite sendo que em determinada noite parte da populaccedilatildeo fosse acossada por inimigos e recorressem aos portotildees para se protegerem a questatildeo eacute deveria os guardas desobedecer a regra abrindo os portotildees com o escopo de proteger os habitantes
96
Na anaacutelise das condiccedilotildees que permitem a aplicaccedilatildeo da epiqueacuteia (III 15 e ss em especial 20) explicamos que uma delas devia ser ldquoextraordinaacuteriardquo De caso que a previsatildeo normativa deve ao seu tempo considerar o curso ordinaacuterio das coisas Pois quando nos permitimos expor uma questatildeo (ou nova condiccedilatildeo) do procedimento ldquoem regra epiqueacuteia eacute de aplicaccedilatildeo exceccedilatildeo e restritiva para os juiacutezesrdquo (SHIAVO 2013 p 27
traduccedilatildeo nossa)76
De acordo com HOumlFF (2003 p 68) ldquoVisto as regras de um modo geral
prejudicarem a justiccedila do caso individual poderiacuteamos querer abrir matildeo delas e
confiar integralmente na faculdade de juiacutezo de pessoas Mas leis satildeo melhores agrave
medida que diferentemente de pessoas satildeo de todo isentas de paixotildeesrdquo
Natildeo aparece em qualquer outra parte do texto referecircncia ao natildeo emprego
da equidade O Filoacutesofo por certo natildeo eacute da posiccedilatildeo de que os juiacutezos devem ser
concretizados pela abstenccedilatildeo legal Muito pelo contraacuterio o que vemos eacute que o justo
de modo geral eacute o justo legal afinal como jaacute esclarecido a lei promulgada da forma
correta representa o bem da comunidade A questatildeo eacute que como criteacuterio do justo a
equidade permanece como condiccedilatildeo necessaacuteria para acomodaccedilatildeo do direito e
concretizaccedilatildeo da justiccedila uma vez que o bem geral natildeo pretende causar prejuiacutezos
aos particulares Destarte eacute certo que a pretensatildeo aristoteacutelica eacute que a equidade seja
paracircmetro de formulaccedilatildeo do ldquodecreto especialrdquo ao caso concreto para que este ao
aplicar a lei ou na ausecircncia desta natildeo se afaste do real fim a que se propotildeem os
legisladores
Portanto podemos dizer que a problemaacutetica acerca da natureza essencial
do equitativo eacute dupla Se de um lado o justo legal em sua generalidade pode causar
injusticcedila pela aplicaccedilatildeo insensiacutevel da norma ao caso concreto de outro a
generalidade natildeo eacute suficiente para compreender ainda que em sua insensibilidade
para com o particular uma totalidade normativa isenta de lacunas
76
En el anaacutelisis de las condiciones que permiten la aplicacioacuten de la epiqueya (ut supra III 15 y ss en especial 20) explicamos que una de aquellas debiacutea ser lo ldquoextraordinariordquo del caso frente a lo cual la previsioacuten normativa debioacute a su tiempo considerar el curso ordinario de las cosas Pues ahora nos permitimos exponer una cuestioacuten (o nueva condicioacuten) de procedimiento ldquola regla de la epiqueya es de aplicacioacuten excepcional y restrictiva para los juecesrdquo (SHIAVO 2013 p 27 traduccedilatildeo nossa)
97
66 O homem equitativo
Por certo o equacircnime eacute tambeacutem um homem de prudecircncia pois procura
dentro daquilo que lhe eacute permitido escolher o melhor possiacutevel Shiner ao referir agrave
metaacutefora da reacutegua pluacutembea define o artiacutefice de Lesbos ldquoNenhum artesatildeo eacute perfeito
mas isso eacute em parte porque os materiais contecircm imperfeiccedilotildees Alguns artesatildeos satildeo
o melhor que podem ser - ou seja o melhorrdquo (SHINER 1994 p 1257 traduccedilatildeo
nossa77)
Aristoacuteteles daacute a definiccedilatildeo do homem equitativo
[] ele eacute algueacutem que por escolha e haacutebito faz o que eacute equitativo e que natildeo eacute inflexiacutevel quanto aos seus direitos se contentando em receber uma porccedilatildeo menor mesmo que tenha a lei ao seu lado Eacute a disposiccedilatildeo correspondente eacute a equidade a qual eacute um tipo especial de justiccedila e de modo algum uma qualidade diferente (EN V 10 1138a)
Analisemos este conceito
ldquoEle eacute algueacutem que por escolha e haacutebito faz o que eacute equitatitivordquo
Escolha segundo o Estagirita eacute ldquoum desejo deliberado de coisas em nosso
poderrdquo (EN III 3 1113a10) Em Da Alma esclarece que o desejo eacute a fonte do
movimento78 ldquoO desejo [] eacute capaz de gerar movimento independentemente do
caacutelculo ou raciociacutenio porque o apetite eacute uma forma de desejo Eacute de se notar
entretanto que enquanto o intelecto eacute sempre correto o desejo e a imaginaccedilatildeo
podem ser tanto corretos quanto incorretosrdquo (DA III 10 433a20) Sobre a
deliberaccedilatildeo esclarece que ldquoA deliberaccedilatildeo portanto eacute empregada em mateacuterias que
embora sujeitas a regras que geralmente satildeo para o bem satildeo incertas quanto aos
seus resultados ou consequecircncias ou nas quais resultados ou consequecircncias satildeo
indeterminados [] Aleacutem disso natildeo deliberamos acerca de fins mas acerca de
meiosrdquo (EN III 3 1112b10) Ainda sobre a deliberaccedilatildeo Aristoacuteteles deixa uma
importante observaccedilatildeo Eacute a de que soacute podemos deliberar acerca daquilo que estaacute
77 No craftsman is perfect but that is in part because the materials contain imperfections Some
craftsmen are the best they can be-that is to say the best 78
Assunto tratado no item 22 O Movimento da potecircncia para o ato
98
em nosso poder ldquotem que ser um bem passiacutevel de vir a ser pela accedilatildeo e apenas o
que pode ser diferente de como eacute pode de tal modo vir a serrdquo (DA III 10 433a30)
Acerca do haacutebito esclarece Pierre Pelegrin A virtude eacutetica eacute com efeito um
ldquoestadordquo do sujeito que eacute de certo modo a cristalizaccedilatildeo de bons haacutebitos que se
implantam tanto melhor no indiviacuteduo quanto mais cedo ele os adquire na vida (2010
p28)
Sobre o equitativo Aristoacuteteles apresenta o conceito quando trata do justo e
injusto79 De acordo com esta concepccedilatildeo pode-se ser justo ou injusto de duas
formas a primeira com relaccedilatildeo a observacircncia ou transgressatildeo da lei e a segunda
relacionada ao criteacuterio de igualdade Esta uacuteltima com relaccedilatildeo agrave igualdade Aristoacuteteles
nomina ldquojusto equitativordquo
Pode-se ferir o equitativo por excesso ou deficiecircncia Por excesso quando
reteacutem maior parcela do bem desejaacutevel e por deficiecircncia quando toma para si menor
parcela daquilo que natildeo eacute desejaacutevel80 Assim como na relaccedilatildeo entre perda e ganho
obtenho ganho quando adquiro mais ldquobemrdquo e menos ldquomalrdquo e obtenho perda quando
adquiro menos ldquobemrdquo e mais ldquomalrdquo (EN V 4 1132a5-15)
ldquoe que natildeo eacute inflexiacutevel quanto aos seus direitos se contentando em receber
uma porccedilatildeo menor mesmo que tenha a lei ao seu ladordquo
Este aspecto do homem equitativo parece fazer referecircncia ao sentido lato de
equidade onde ldquoser equitativo eacute mostrar indulgecircnciardquo (Ret I 13 1374b10) O
equacircnime eacute justo e ainda melhor porque ateacute em receber o que lhe eacute devido
apresenta moderaccedilatildeo Natildeo ser inflexiacutevel quanto aos seus direitos demonstra que o
equacircnime estaacute fundido com seu princiacutepio de justiccedila a equidade Pois eacute ele mesmo a
ldquojusticcedila personificadardquo81 Eacute a virtude paradigmaticamente do juiz e dos outros por
extensatildeo (SHINER 1994 p 1251-1252 traduccedilatildeo nossa)82
79
EN V 2 1130b10 80
Aristoacuteteles define a deficiecircncia como a parcela menor recebida pela viacutetima Parece-nos que deixou de desenvolver o conceito nessas linhas Mas podemos visualizar esse desdobramento pouco mais adiante quando trata do ganho e da perda Vide (EN V 4 1132a5-15) 81 EN V 4 1132a20 82
It is a virtue paradigmatically of the judge and of others by extension (SHINER 1994 p 1251-1252)
99
ldquoEacute a disposiccedilatildeo correspondente a equidade a qual eacute um tipo especial de
justiccedila e de modo algum uma qualidade diferenterdquo
Nesta uacuteltima sentenccedila ele enquanto justo age pela equidade seja por natildeo
ser inflexiacutevel com o direito ao aplicaacute-lo a si ou a outrem ou seja pela capacidade de
conhecer o princiacutepio da justiccedila onde natildeo foi convencionada regra alguma ldquoEacute a
marca de um homem educado Aristoacuteteles no diz em uma famosa passagem olhar
com precisatildeo para cada classe de coisas apenas como o permite a natureza do
assuntordquo (SHINER 1994 p 1257 traduccedilatildeo nossa)
67 Equidade e Prudecircncia
Entendendo que o uso da equidade busca uma interpretaccedilatildeo razoaacutevel
(interpretarla razonablemente) da lei Recasens Siches (2008) nos ensina a
equidade eacute a expressatildeo do justo natural em relaccedilatildeo ao caso concreto Em outras
palavras a equidade eacute o justo mas natildeo o justo legal tal como se desprende das
palavras da lei mas autenticamente sobre o caso particular (SICHES 2008 p 656
traduccedilatildeo nossa)83 Portanto ldquopode-se dizer que tanto a reacutegua de Lesbos quanto a
pedra a que ela se amolda para medir manteacutem iacutentegra a sua natureza ndash reacutegua
como reacutegua pedra como pedra ambas submetidas ao criteacuterio apreciador daquele
que se incumbe de definiccedilatildeo da medidardquo (LOPES 1993 p 46)
Tomaacutes de Aquino (1225-1274) em sua Suma Teoloacutegica procura a
compreensatildeo do que seja a equidade observando a inexistecircncia de termo correlato
na liacutengua latina da palavra grega ἐπιείκεια (epieiacutekeia)84 acaba por deixar expliacutecita a
popularidade dessa virtude entre os medievais
Os atos humanos ndash sobre os quais incidem as leis ndash satildeo singulares e contingentes e portanto podem se dar com uma infinita variedade de modos
Daiacute que natildeo seja possiacutevel estabelecer uma lei que natildeo falhe em algum caso concreto[]
84
Et ad hoc ordinatur epicheia quae apud nos dicitur aequitas E isso eacute a epiqueacuteia que entre noacutes diz-se aequitas (traduccedilatildeo nossa)
100
Nesses casos e em casos semelhantes eacute mau seguir o que estaacute estabelecido pela lei e pelo contraacuterio eacute bom passar por cima da letra da lei e seguir o que pede pelo espiacuterito de justiccedila e utilidade comum E eacute isso que faz a epiqueacuteia que entre noacutes se chama equumlidade Fica assim evidente que a epiqueacuteia eacute virtude (Sum II-II 1201)
Nesse sentido a prudecircncia e a equidade apontam para questotildees relativas agrave
deliberaccedilatildeo mais especificamente sobre como agir de acordo com o bem Ambas
parecem obrar no espaccedilo existente entre o particular e o universal Destarte eacute
preciso perceber que
[] a existecircncia insuperaacutevel de um obstaacuteculo ontoloacutegico entre a regra e sua aplicaccedilatildeo entre o universal e o particular Taylor chama esse obstaacuteculo ontoloacutegico de ldquohiato froneacuteticordquo (phronetic gap) em referecircncia direta agrave sua matriz aristoteacutelica Aristoacuteteles como Aubenque (2003 p 75) observa natildeo tem a expectativa platocircnica de poder deduzir o particular do universal Aristoacuteteles natildeo culpa a ignoracircncia dos homens por essa incapacidade Natildeo se trata para Aristoacuteteles de uma fraqueza psicoloacutegica algo que portanto pudesse ser superado pelo Rei-Filoacutesofo de Platatildeo ou pelo Juiz Heacutercules de Dworkin A impossibilidade de deduzir o particular do universal decorre da proacutepria realidade e nesse sentido natildeo pode ser superada por uma ciecircncia A aplicaccedilatildeo das regras eacute antes de tudo uma questatildeo de prudecircncia (phronesis) (OLIVEIRA 2009 p 24 negrito nosso)
Essa limitaccedilatildeo da ciecircncia eacute objeto da exposiccedilatildeo acerca da prudecircncia (ENVI
5 1140a30) O fato eacute que o conhecimento cientiacutefico envolve demonstraccedilatildeo ou seja
diz respeito agraves coisas imutaacuteveis necessaacuterias Por outro lado a prudecircncia cuida de
assuntos relacionados agrave conduta admitindo assim a variaccedilatildeo ldquoPara que seja objeto
do conhecimento cientiacutefico uma verdade tem que ser demonstrada pelo processo
dedutivo a partir de outras verdades ao passo que a arte e a prudecircncia (sabedoria
praacutetica) se referem somente a coisas mutaacuteveisrdquo (EN VI 6 1141a1)
O caraacuteter praacutetico isto eacute concernente agrave accedilatildeo proacuteprio da phroacutenesis exige portanto que ela possua o conhecimento dos casos individuais pois a accedilatildeo se produz sempre em situaccedilotildees individuais por isso a phroacutenesis requer certa experiecircncia que eacute justamente o conhecimento dos particulares A phroacutenesis contudo inclui em alguma medida tambeacutem o conhecimento do universal no sentido de que deve saber aplicar ao caso individual uma caracteriacutestica geral como mostra o exemplo dado por Aristoacuteteles Natildeo basta para produzir sauacutede (accedilatildeo) saber que as carnes leves satildeo saudaacuteveis (caracteriacutestica universal) caso natildeo se saiba
101
que a carne de galinha eacute leve (caso individual ou particular) e portanto que a carne de galinha eacute saudaacutevel (aplicaccedilatildeo do universal ao particular)
Martha C Nussbaum explica que Aristoacuteteles aponta trecircs traccedilos da mateacuteria
praacutetica que demonstram porque as escolhas praacuteticas natildeo podem mesmo em
princiacutepio ser adequadas e completamente assimiladas em um sistema de regras
universais Satildeo esses traccedilos a mutabilidade a indeterminaccedilatildeo e a particularidade
(NUSSABAUM 2009 p 263)
Eacutemile Boutroux sustenta que pelo princiacutepio da irredutibilidade essa
especulaccedilatildeo abstrata ndash a do conhecimento cientiacutefico ndash ldquoseraacute impotente para nos
fazer conhecer a natureza aiacute seraacute necessaacuteria a experiecircncia E na ordem moral as
leis seratildeo insuficientes para fazer reinar a justiccedila seraacute preciso acrescentar-lhes o
magistrado encarregado de aplicar judiciosamente as regras gerais agrave diversidade
dos casos individuaisrdquo (2006 p 127)
No mesmo sentido Pierre Aubenque direciona a relaccedilatildeo entre a prudecircncia e
a equidade sintetizando os principais toacutepicos de nossa exposiccedilatildeo Tal siacutentese tem
por base o julgamento eacutetico proacuteprio agrave Eacutetica a Nicocircmaco onde o prudente natildeo teraacute
mais por analogia o saber do geocircmetra mas o engenho do carpinteiro
[] Enquanto Platatildeo natildeo parece ter posto em duacutevida que um saber suficientemente transcendente poderia abranger a totalidade dos casos particulares Aristoacuteteles nunca espera poder deduzir o particular do universal ldquoa falta nos diz ele natildeo estaacute na lei nem no legislador mas na natureza da coisa em th fnsei ton prgmatojrdquo Onde Platatildeo via uma
fraqueza psicoloacutegica devido a ignoracircncia dos homens Aristoacuteteles reconhece como faz habitualmente um obstaacuteculo ontoloacutegico um hiato que afeta a proacutepria realidade e que nenhuma ciecircncia poderaacute superar [] se a indeterminaccedilatildeo eacute ontoloacutegica a lei soacute pode depender de uma regra ela proacutepria indeterminada tou gar aoristou aoristin tal como a reacutegua
de chumbo de lesbos cuja a inexatidatildeo permite adaptar-se adequadamente aos contornos da pedra [] Para Aristoacuteteles ao contraacuterio de uma justiccedila abstrata cientiacutefica via sua sorte ligada a da lei eacute pois a justiccedila mesma que necessita ser corrigida pela virtude da equidade [] Percebe-se o paralelismo dessa problemaacutetica com a da prudecircncia ou antes o encavalamento de ambas se a prudecircncia eacute a virtude intelectual que permite a cada vez definir a norma o equacircnime deveraacute possuir no mais alto grau a virtude da prudecircncia para aplica-la em seu domiacutenio proacuteprio [] (AUBENQUE 2008 73-76 negrito nosso)
102
Portanto a prudecircncia e equidade produzem seus efeitos no acircmbito da razatildeo
praacutetica especificamente no que concerne a aplicaccedilatildeo da norma em sua
generalidade e abstraccedilatildeo ao caso concreto que transcorre num mundo
contingencial
O equacircnime eacute antes de qualquer coisa um prudente ou seja a virtude da
prudecircncia eacute um pressuposto para o exerciacutecio da equidade Isso fica evidenciado
pelo proacuteprio papel da prudecircncia qual seja guiar e orientar as escolhas para a
concretizaccedilatildeo das demais virtudes Ademais ambos possuem como faculdade
central a disposiccedilatildeo para o bem escolher de forma acomodar o bem absoluto85 ao
melhor possiacutevel86
85
Aspecto formal da regra enquanto forma e universalidade 86
Aspecto material da accedilatildeo enquanto mateacuteria e singularidade
103
7 CONCLUSAtildeO
Foi objeto do presente trabalho uma anaacutelise das formulaccedilotildees aristoteacutelicas
acerca do conceito de prudecircncia e equidade anaacutelise essa que deveria sustentar-se
sob a eacutegide de uma inter-relaccedilatildeo entre tais conceitos
Para alcanccedilar tal objetivo propomos no capiacutetulo 2 que a contingecircncia eacute algo
que se encontra em comum na atividade de ambos os conceitos como condiccedilatildeo
necessaacuteria agrave compreensatildeo dos mesmos Por isso o que a pouco chamamos de
hiato froneacutetico natildeo eacute outra coisa senatildeo a distacircncia entre o ldquoparticularrdquo e o
ldquouniversalrdquo entre a ldquopotecircnciardquo e o ldquoatordquo e entre o ldquomelhor que posso fazerrdquo e o ldquobem
absolutordquo
No capiacutetulo 3 intitulado Eacutetica das Virtudes procuramos clarear o liame entre
as virtudes e a necessidade de accedilatildeo caracteriacutestica inerente ao mundo contingencial
Nele introduzimos no que eacute pertinente agrave nossa proposta a teoria geral das virtudes
em Aristoacuteteles estabelecendo sua relaccedilatildeo com as partes da alma e diferenciado em
morais e intelectuais Neste sentido a relaccedilatildeo entre prudecircncia e equidade parece
distanciar-se devido a prudecircncia estar situada na faculdade cientiacutefica da alma
enquanto a equidade estaacute inserida na faculdade calculadora Tal problema eacute
solucionado pelo proacuteprio Aristoacuteteles afinal a prudecircncia como ordenadora das accedilotildees
virtuosas eacute o ponto de contato entre aquilo que estaacute e aquilo que natildeo estaacute ao
alcance do homem ou seja ela age como princiacutepio informativo entre a faculdade
calculadora e a faculdade cientiacutefica da parte racional da alma Por fim foi feita uma
exposiccedilatildeo acerca da mediania como paracircmetro da razatildeo praacutetica seguida de uma
exposiccedilatildeo sobre as accedilotildees voluntaacuterias e involuntaacuterias
A partir do capitulo 4 procuramos analisar a proposta aristoteacutelica do que
seja a prudecircncia Assim concluiacutemos ser a prudecircncia uma virtude intelectual situada
na parte racional da alma mais precisamente na parte que forma opiniotildees por ser
seu objeto a especulaccedilatildeo das coisas que admite variaccedilotildees e portanto satildeo
trabalhadas pela faculdade calculadora Nesse sentido eacute a qualidade racional de
consecuccedilatildeo da verdade capaz de bem deliberar em geral
104
No capiacutetulo 5 a justiccedila foi delineada como sendo uma virtude Tal virtude eacute
dita a mais perfeita pois segundo o Estagirita nela se encontra somada todas as
virtudes O que ele quer dizer com isso eacute que o fato de natildeo se observar qualquer
uma das virtudes eacute um ato de injusticcedila Neste sentido vimos a produccedilatildeo legislativa
como uma ramificaccedilatildeo da prudecircncia nomeada por Aristoacuteteles como ciecircncia
legislativa por desempenhar um duplo papel controlador e diretivo ndash no sentido de
educar para a virtude A outra ramificaccedilatildeo eacute a ciecircncia poliacutetica que diz respeito agrave
deliberaccedilatildeo a qual divide em processo deliberativo e processo judiciaacuterio Apoacutes
visualizarmos os conceitos proacuteprios agrave teoria da justiccedila de Aristoacuteteles concluiacutemos ser
ela uma virtude moral sendo ela mesma uma mediania que faz realizar agir e
desejar o que eacute o justo A justiccedila de modo geral ganha trecircs sentidos quais sejam
legal igual e equitativo
Por fim no capiacutetulo 6 procuramos analisar o conceito de equidade
Inicialmente apresentamos seu conceito lato e stricto Em seguida procuramos
compreender a ambiguidade apresentada por Aristoacuteteles acerca do tema
Apresentamos a justiccedila enquanto equidade compreendendo natildeo ser a equidade
diferente da justiccedila mas apenas melhor que uma de suas espeacutecies Procuramos
compreender a justiccedila enquanto estabelecimento da igualdade A natureza essencial
da equidade foi estudada enquanto retificaccedilatildeo do justo legal De acordo com isso
estaacute para noacutes a metaacutefora da reacutegua de chumbo que encontra a medida justa em sua
flexibilidade uma vez que em rigidez natildeo poderia conhecer as muacuteltiplas e possiacuteveis
formas na qual flutua a contingecircncia material Uma uacuteltima anaacutelise abordou a relaccedilatildeo
entre a prudecircncia e a equidade concluindo por uma relaccedilatildeo de gecircnero e espeacutecie
uma vez que a equidade eacute uma qualidade do prudente e que possuem como
principal ponto em comum a contingecircncia enquanto condiccedilatildeo para accedilatildeo
Eacute na pergunta que fizemos na introduccedilatildeo que concluiacutemos estar a chave para
a compreensatildeo dos conceitos formulados Qual a relaccedilatildeo entre a prudecircncia e a
equidade aristoteacutelica A reposta dada pelos comentadores no capiacutetulo 6 em
especial Pierre Aubenque aponta para noacutes uma relaccedilatildeo que comporta em sua
estrutura conceitual uma interdependecircncia Nesse sentido natildeo podemos
compreender o conceito de equidade sem compreender o conceito de prudecircncia
105
Essa relaccedilatildeo pode ser travada porque ambas lidam com situaccedilotildees em
comum Elas estatildeo para o homem como soluccedilatildeo naquilo em que a Providecircncia
falha Suas funccedilotildees trabalham para indicar a melhor decisatildeo quando se tem que
escolher entre dois males Elas procuram sanar a distacircncia entre os princiacutepios gerais
e a realidade em particular Elas satildeo as articulaccedilotildees que permitem ao homem fazer
a escolha pelo melhor possiacutevel uma vez que na fraacutegil condiccedilatildeo parece tatildeo distante
do bem absoluto quanto o homem de Deus
106
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