kierkegaard, soren - matrimônio

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    O MATRIMNIO

    Sren Kierkegaard

    Editorial Psy II1994

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    O matrimnioSren Kierkegaard

    Conselho editorial

    Jos Carlos Vitor GomesMaria Aparecida Lovo

    Capa

    Osny Marino

    Reviso de textos

    Vera Luciana Morandim

    Composio

    Micro Laser Comercial Ltda. - ME

    Coordenao editorial

    Luclia Caravieri Temple

    ISBN: 85-85480-68-8

    Direitos reservados para lngua portuguesa:WORKSHOPSY - Livraria, Editora e Promotora de Eventos

    Fone: (0192) 31.9955Caixa Postal 691CEP: 13020-40

    Campinas - So Paulo - Brasil

    Proibida a reproduo total ou parcial por qualquer meio deimpresso em forma idntica, resumida ou modificada, em

    lngua portuguesa ou qualquer outro idioma.

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    Captulo I OS LIMITES DO AMOR ROMNTICO...................................... 6

    1. Das agresses da literatura contra o amor............................................... 15

    2. Apologia (e nostalgia) do amor romntico.............................................. 17

    3. Melancolia e libertinagem....................................................................... 20

    4. Sobre o "casamento de razo"................................................................. 21

    5. De como o matrimnio salva o amor do ceticismo................................. 25

    Captulo II EXAME DO MATRIMNIO CRISTO................................... 27

    1. A resignao, elemento tico e religioso do matrimnio ........................ 29

    2. A paixo como momento da "coisa primeira" ........................................ 31

    3. Liberdade e necessidade do amor ........................................................... 35

    4. O carter ertico e religioso cio matrimnio........................................... 37

    5. Entreato do noivo implacveI ................................................................. 42

    Captulo III OS PORQUS DO MATRIMNIO .......................................... 48

    1. Necessidade tica de que a paixo seja eterna ........................................ 48

    2. Os que se casam para afirmar seu carter ............................................... 52

    3. Os que se casam para ter filhos............................................................... 57

    4. Os que se casam para escapar solido.................................................. 63

    Captulo IV O MISTRIO DO MATRIMNIO............................................ 73

    1. O valor da bno nupcial....................................................................... 74

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    2. Digresso sobre a dvida ........................................................................ 77

    3. A superioridade da resoluo.................................................................. 79

    4. Escrpulos contra a publicidade do vnculo............................................ 82

    5. A medida necessria de mistrio............................................................. 86

    Captulo V O MATRIMNIO, CATEGORIA ESTTICA DO AMOR ...... 93

    1. O princpio vital do "bom entendimento" entre os esposos .................... 93

    2. Das dificuldades que o amor conjugal tem que enfrentar ....................... 98

    3. A propsito da conquista e da posse ..................................................... 104

    4. Excelncia do cotidiano familiar........................................................... 108

    5. Conciliao da esttica e da vida matrimonial...................................... 111

    6. Por que o dever no inimigo do amor ................................................ 118

    7. Remessa ................................................................................................ 122

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    Meu amigo:

    Estas linhas, as primeiras a cair sob o exame dos teus olhos, so asltimas que escrevi, e procuram, mais uma vez, servir-se do gnero

    epistolar para um estudo prolixo como o que aqui te envio.Correspondem-se, portanto, com minhas ltimas cartas, e tm uma relaoformal com elas, que manifesta assim, exteriormente, aquilo de que ocontedo queria convencer-te com argumentos to diversos, sabendo quels realmente uma carta. No quis renncias idia de uma missivadirigida a ti, porque a falta de tempo no me permitiu consagrar redaoo empenho que exigiria um tratado. E, por outro lado, dominou-me oescrpulo de no perder a ocasio de conversar contigo no tom

    admonitrio, prprio do gnero epistolar. s versado demais na arte deconversar sobre tudo, em geral, sem ser tocado pessoalmente pelo tema,para que te oferea esta tentao de liberar teu vigor polmico. J sabescomo procedeu o profeta Nathan com o rei David, quando este procurando

    penetrar na parbola que o homem de Deus lhe havia proposto, no quisver o que nela lhe dizia respeito. Nathan particularizou, acrescentando:"s este homem, oh rei!" Do mesmo modo, quis recordar-teincessantemente que se trata de ti, e que a ti me dirijo. No duvido,

    portanto, de forma alguma que, no curso da leitura, ters a sensao de leruma carta, apesar do formato do papel. Como sou funcionrio pblico,estou acostumado a encher toda a folha, e talvez este hbito tenha suavantagem, se, aos teus olhos, d um certo carter oficial minha epistola. to extensa que seria onerosa na balana do correio; sem dvida, para a

    balana de preciso da crtica sutil seria bem mais leve. favor usar tantouma como outra, tanto a do Correio, j que no recebes minha carta parareexpedi-la, como a da crtica, porque seria uma pena ver-te cometer umerro to grosseiro e que provaria tanta falta de simpatia.

    Se outro, no tu, visse este estudo, ach-lo-ia talvez muito singulare, sem dvida, suprfluo. Se casado, exclamaria com a jovialidade do pai

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    de famlia: " claro, o matrimnio a beleza da vida." Se homem jovem ede pensamento algo confuso e irreflexivo exclamaria: "No, a beleza davida o amor." Porm, nenhum dos dois conceberia, como me aconteceu,

    pensar em salvar o crdito esttico do matrimnio. E at mesmo em lugarde ser simptico aos olhos dos esposos, atuais ou futuros, talvez suspeitem

    de mim, porque defender acusar e eu deveria agradecer-te, nunca oduvidei. Tu, a quem quero, apesar de todas as tuas extravagncias, comoum filho, como um irmo, como um amigo, com amor, porque talvezconsigas um dia achar o centro de teus movimentos excntricos. Tu, aquem amo por tua vivacidade, tuas paixes, tuas debilidades. Tu, a quemquero no temor e no tremor do amor religioso, porque sei de teus extraviose porque s para mim muito mais do que um fenmeno. Na verdade,quando te vejo corcovear como um cavalo selvagem, quando te vejo cair

    para tornar a saltar, ento me abstenho de todas as tolices da pedagogia.Penso, porm, no indomado cavalo de corridas, vejo a mo que segura asrdeas, que levanta sobre tua cabea o ltego de um rude destino. E,contudo, quando finalmente este estudo chegar s tuas mos, dirsseguramente: "Imps-se uma tarefa imensa; mas, vejamos como acumpriu."

    possvel que te fale com excessiva doura, que seja demasiadopaciente contigo. Talvez fizesse melhor em recorrer autoridade que,

    apesar de teu orgulho, conservo sobre ti; ou valeria mais, em nossasprticas, deixar a questo do matrimnio margem, completamente delado. Porque s, sob muitos aspectos, pernicioso: quanto mais se falacontigo, mais se dissipa a conversa. Sem seres hostil ao casamento,abusas, para mofar dele, de tua ironia e de teu sarcasmo. Teus golpes noso vos, reconheo. Seguramente acertas no alvo, e possuis grandetalento na observao. Acrescento, porm, que este talvez teu pontofraco. Porque tua vida transcorrer em puras veleidades de viver. Mais

    vale isso, replicars sem dvida, do que seguir os caminhos datrivialidade, do que desaparecer no formigueiro da vida social. No sepode dizer, repito, que abominas o matrimnio: nunca o abordaste demodo srio, mas apenas para escandalizar-te com ele, e, espero, confessar-me-s que no te aprofundaste na questo. Os casos de amor so o que teinteressa. Sabes submergir, sabes embrenhar-te na clarividncia desonhador, inebriado de amor. Pode-se dizer que te envolves com a maisfina teia de aranha, para logo ficares espreita. Como no s uma criana,de conscincia apenas desperta, teu exame descobre algo mais; e, noentanto, conformas-te com este estado. O que amas o inesperado. Osorriso de uma mulher bonita em -urna situao picante, um olhar que

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    sarcsticas a ateno que merecem. Assim espero livrar-me dos tributosexigidos pelos estados brbaros, para me encontrar ento aprazivelmenteem meu papel; porque estou em meu papel, sendo casado e combatendo

    pelo matrimnio, pro anis et focis. Acredita: tanto me importa estaquesto que, apesar de minha repugnncia por escrever livros, quase tenho

    vontade de faz-lo, se posso salvar uma s unio do inferno em quemergulhar, ou tornar dois esposos mais aptos para cumprir a mais bela dasmisses que foi proposta ao ser humano.

    Como medida de prudncia, deverei talvez me referir minhamulher e nossa vida em comum, no porque tenha a ousadia de propornossa vida como exemplo e regra, mas vou invoc-la porque a viso dos

    poetas, geralmente, infundida, e no possui fora de prova, e a mimimporta mostrar que mesmo na vida diria possvel ser fiel esttica.

    Conheces-me h muito tempo e a minha esposa h cinco anos. Julgas queela formosa e, sobretudo, amvel; e eu tambm. No entanto, sei-o bem,no to formosa pela manh quanto o noite; somente durante o diadesaparece nela certo elemento de melancolia quase doentia; noite,quando este elemento desapareceu, ento ela pode realmente aspirar

    parecer bem. Tambm sei que seu nariz no uma beleza perfeita: pequeno demais. Entretanto, volta-se para o mundo com ar rebelde, e, porhaver motivado brincadeiras to agradveis, no o desejaria mais belo se

    tivesse o poder de transform-lo. H na vida, como vs, uma contingnciamuito mais importante que aquela a que te dedicas. Da minha parte, dougraas a Deus por todos esses bens, e esqueo suas pequenasdesvantagens. Alm disso, essas coisas so secundrias. Mas h algo, verdade, pelo que dou graas a Deus com toda a minha alma: o fato deminha mulher ser meu primeiro e nico amor, e outra coisa que peo aDeus com todo o meu corao a fora de no desejar outro amor. Esse um culto domstico do qual participa Igualmente minha esposa; porque

    cada um dos meus sentimentos, cada uma das minhas aspiraes de almaficam enobrecidos quando os reparto com ela. Mesmo os sentimentos emunssono: diante de minha mulher sou ao mesmo tempo o pastor e a grei.E se por acaso fosse eu to desumano a ponto de esquecer esta aventura,se incorresse na ingratido de no dar graas por ela, minha mulher mefaria lembr-la. Vs, meu jovem amigo, no se trata dos melindres dos

    primeiros dias de paixo, nem de experincias erticas por realizar, comoacontece com quase todos os namorados quando iniciam o noivado,

    perguntando ele se ela j teve outra paixo, ela se ele amou outra mulher.No, aqui estamos realmente envolvidos no que h de grave na vida, e, noentanto, no esto excludos nem o calor nem a beleza, nem o ertico nem

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    a poesia. Na verdade, importa-me muito que ela me ame realmente, bemcomo retribuir-lhe este amor. No porque tema que nossa unio alcance,no transcurso dos anos, esta solidez que vemos na maior parte das demais,mas alegra-me rejuvenescer constantemente nosso amor do primeiro dia,dando-lhe um valor religioso e esttico. Porque Deus, para mim, no um

    ser supra-humano a ponto de desinteressar-se pelo pacto que ele mesmoinstituiu entre o homem e a mulher, nem sou eu mesmo um ser toespiritual que desdenhe o aspecto terreno da vida. E toda a beleza doerotismo pago conserva seu valor no cristianismo, na medida em que compatvel com o matrimnio. Esse rejuvenescimento de nossa paixo no nem o simples olhar ao passado do melanclico, nem a potica evocaodo vivido a que terminamos por nos limitar. Tudo isso enfraquece, e orejuvenescimento de que falo um ato. Muito depressa chega o momento

    em que preciso resignar-se a somente recordar, de modo que devemos,por mais tempo possvel, conservar viva a fresca fonte da vida.

    Porm, tu vives de verdadeiros atos de banditismo. Deslizasfurtivamente, cais sobre o prximo e arrebatas-lhe seu mais belo momentode felicidade; pes esta sombra no teu bolso como o grande indivduo dePeter Scheemil e te retiras segundo teu capricho. certo, dizes, que nada

    perdem os interessados, e que eles freqentemente ignoram inclusive seumomento mais belo; mas ainda pretendes que te fiquem agradecidos por

    ter-lhes mostrado, graas a teus jogos de luzes e tuas frmulas mgicas,transfigurados e elevados ao prmio sobrenatural deste momento deexaltao. Talvez no percam nada, na verdade; no teu modo de ver, tudoisto te mortifica, porque perdes teu tempo, tua tranqilidade e a pacinciade que necessitas para viver; porm sabes muito bem que precisamentetudo isto o que te falta: acaso no me escreves, um dia, que a pacincianecessria para suportar o peso da vida deve ser uma virtudeextraordinria, e que sentias possuir sequer a necessria para atrever-te a

    viver? J. vs que tua vida se resume em simples episdios, nos quaisbuscas apenas o interessante... Se, ao menos, se pudesse esperar? Que aenergia que te inflama nestes instantes tomasse forma em ti, coordenassetua vida e a ampliasse, farias certamente grandes coisas. Porque, ento, tetransfiguras. H em ti uma inquietude sobre a qual flutua, sem dvida, aclara luz da inteligncia; tua alma se concentra inteiramente no nico

    ponto que te ocupa; tua razo traa cem projetos; tudo dispes para oataque. Sofres um fracasso numa direo? Instantaneamente tua dialticaquase diablica se pe a explicar o fracasso, usando-o para uma novattica. Planejas constantemente acima de ti mesmo, e se bem que cada umde teus esforos seja, no mnimo, igualmente decisivo, te reservas, sem

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    dvida, uma faculdade de interpretao que com uma palavra pode alter-la toda.

    Junta-se a isso a efervescncia do sentimento que te anima. Teusolhos lanam centelhas, ou melhor, pareces ter cem olhos que brilham,

    todos eles espreita; um rubor fugitivo passa por teu rosto; te apiasfirmemente em teus clculos e sem dvida esperas com terrvelimpacincia. Creio meu querido amigo, que, em definitivo, te enganas, eque ao imaginar, como dizes, que "captas" a um homem em sua horaafortunada, apenas te encarregas de tua prpria exaltao. Tens tantaenergia concentrada que chegas a ser criador dela. Tenho admitido, poressa razo, que tua conduta no to perniciosa para o prximo, porm,em compensao, totalmente funesta para ti. E no repousa, por acaso,sobre uma maldade monstruosa? Pouco te importa, dizes, o juzo dos

    homens, que alm disso, deveriam ser agradecidos a ti, por notransform-los em porcos com um golpe de vara de condo como Circe,seno que os transformas, de porcos, em heris. Agirias de mododiferente, dizes tambm, se eles confiassem verdadeiramente em ti; pormno encontraste tal confidente. Teu corao est comovido e secretamentete enternece a idia de sacrificar-se pelo outro. J vs que no te negotampouco certo esprito de bondade e caridade; teu modo de socorrer osinfelizes verdadeiramente belo e a humanidade que demonstras no

    carece de nobreza; porm, creio tambm, ver nela um resduo de orgulho.No te lembrarei tal ou qual manifestao excntrica de tuas inclinaes;seria mau obscurecer, de todo, o bem que possa haver em ti; porm, deixa-me, em troca, evocar um pequeno incidente de tua vida que porventuraconvm recordar-te.

    Um dia, me contaste que, voltando de um passeio, seguias duasmulheres pobres. Minha narrao no ter agora, sem dvida, a vivacidadeda tua, quando subiste minhas escadas de quatro em quatro degraus

    pensando em tua aventura. Eram duas empregadas de granja.Provavelmente haviam conhecido dias melhores, j esquecidos, e oestbulo no precisamente um lugar onde se abrigue a esperana de um

    porvir mais feliz. Uma delas deseja uma tragada e, mostrando a tabaqueira sua amiga, disse: "Se eu tivesse cinco rixdals..." talvez espantada pelatemeridade desse de- seio, que se perdeu no pramo, sem. esperanas.Porm te apresentaste: j havias apanhado a carteira e retirado cincorixdals, antes de dar o passo decisivo, para conservar, na situao, a

    elasticidade conveniente e para evitar na desditosa mulher uma suspeitaprematura. Avana com uma cortesia quase humilde que se coaduna comum esprito caritativo: deste os cinco rixdals e desapareceste. No te

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    alegrou o efeito que havias produzido seno que te perguntavas se ela, emlugar de ver nesse fato um socorro providencial, no se rebelaria, induzida

    por grandes sentimentos, contra a Divina Providncia, que aqui se reduziaao azar! O que te induzia a examinar se a satisfao fortuita de um desejo,formulado por causalidade, no consumiria provavelmente o homem na

    desesperana posto que a realidade da vida se encontra ali negada em suasrazes mais profundas. Empenhavas-te, pois, em assumir o papel dedestino e tua satisfao provinha da quantidade de reflexes que poderiasdeduzir daquilo. Admito de bom grado que tens excelentes aptides paraesse papel, se associamos palavra destino a idia da total inconstncia do

    puro capricho; de minha parte, na vida, me conformo com um papel maismodesto. Esse caso, alm disso, pode porvir para mostrar-te como, comtuas experincias, exerces uma influncia funesta sobre as pessoas. Saste

    ganhando porque deste cinco rixdals a essa pobre mulher, satisfizeste seumaior desejo; sem dvida, tu o reconheces, tua boa ao poderia fazertambm com que esta desgraada maldissesse a Deus como a Jaconselhou sua mulher. Alegars que tais eventualidades no dependemde ti; e que se se devesse medir a tal ponto as conseqncias, no se

    poderia fazer nada. Porm, eu respondo que se pode. Se houvesse dado oscinco rixdals, saberia de certo que no me havia entregado a umaexperincia; estaria convencido de que a Divina Providncia, instrumentodo qual me havia servido, fazia as coisas segundo corresponde, e que paratanto, eu no teria nada que me reprovasse. At que ponto flutua, indecisa,tua vida, podes tambm descobrir se pensares em tua completa incerteza,diante do temor de sentir um dia a alma prostrada e a de ver como tuasargcias sutis de hipocondraco te lanam num crculo mgico deconseqncias, do qual lutarias em vo por sair. No ests seguro de, umdia, remover cus e terras para reencontrar a necessitada, observar o efeitodo teu gesto, e "a forma como produziu efeito sobre ela." Porque serssempre o mesmo incorrigvel; apaixonado como s, talvez chegues a

    esquecer teus grandes planos, teus estudos e, em suma, todas essasbagatelas, para encontrar esta desgraada, que talvez tenha morrido htempo. Eis a como tratas de reparar teus erros e, corno, desse modo, amisso de tua vida venha a ser to discutvel... Pode-se dizer que queresser, ao mesmo tempo, o destino e a Providncia, misso que o Senhormesmo no pode desempenhar, porque somente uma dessas coisas. Ocu que desdobras pode merecer elogios, porm no vs, dize-me, se cadavez est mais claro que o que te falta, e totalmente, a f?

    Em vez de salvar tua alma, entregando-te a Deus em cada coisa, emvez de tomar este atalho, te comprazes em desvios sem fim que te

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    conduziro a parte alguma. Dir-me-s que. desse modo, no se precisaagir! Sim, respondo-te, precisa-se, posto que s consciente de ocupar nomundo um lugar que teu, no qual deves concentrar toda a tua atividade.O que ocorre que tua maneira de agir chega s raias da loucura. Dir-me-s tambm que se houvesses cruzado os braos deixando a Deus o cuidado

    de intervir, talvez essa pobre mulher no houvesse recebido socorroalgum. possvel, porm tu, sim, terias recebido a ajuda de Deus einclusive ela tambm teria confiado em Deus. E no vs que se agoratomares realmente tuas botas de viagem para correr mundo, e perder teutempo e tuas foras, te subtrarias a toda a atividade, expondo-te talvez anovos tormentos no futuro? Essa existncia caprichosa, repito, no umaespcie de traio. No caso de que compreendesses a volta ao mundo paraachar de novo essa indigente, isso provaria, sem dvida, uma fidelidade

    extraordinria, inaudita, posto que no te haveria impulsionado nenhummotivo egosta e no partiria como um amante em busca de sua amada esim agirias por pura simpatia. Porm, respondo: evita falar de egosmo,no se trata desse sentimento, e sim, de teu habitual impudor de rebelde.Como desprezas todas as prescries da lei divina e humana, para livrar-tedelas te aferras ao azar, que, nesse caso, uma mendiga que desconheces.E, devido tua simpatia ela deve estar, toda ela, a servio de tuasexperincias. Esqueces sempre que tua existncia neste mundo no podeestar fundada unicamente no azar e que, quando fazes dele o essencial,

    perdes completamente de vista o que deves a teu prximo. J sei que note faltaro sofismas guisa de paliativos nem uma irnica flexibilidade

    para diminuir as exigncias. Assim, por exemplo, objetar-me-s no seresto tolo para imaginar-te o homem que deveria trabalhar em tudo aquiloque entregas, ao contrrio, aos espritos eminentes, e que te conformas emdedicar-te somente a uma tarefa regular. Porm, no fundo, essa umaenorme mentira porque tu no queres absolutamente nada, seno entregar-te a tuas experincias e essa a posio da qual consideras todas as

    coisas, freqentemente, com no pouca insolncia, e sempre zombas daatividade como aquela vez em que o fizeste de um homem que haviaencontrado um fim ridculo. Por muitos dias te regozijaste, dizendo que,se bem que nada se sabia dos servios que esse homem havia prestado emvida s grandes idias, e a tudo mais, agora se podia, ao menos se afirmarque na verdade no havia vivido em vo... porque te divertia.

    J te disse: o que pretendes ser o Destino. Oh, espera um instante!No tenho o propsito de passar-te um sermo, porm, existem as coisassrias para as quais, eu o sei, tens um extraordinrio e profundo respeito.Se se capaz de suscit-las em ti ou se se confia bastante em ti para

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    deix-la aparecer em tua alma, ento se descobre um homem muitodiferente. Imagina para tomar o caso supremo, imagina que apraza ao

    princpio Todo Poderoso do mundo, ao Deus do Cu, apresentar-se comoenigma ao gnero humano e deix-lo nesta cruel incerteza. No sentirs

    palpitar em ti a revolta? Poderias em certos momentos suportar essa

    tortura ou obrigar teu pensamento a medir esse espanto? E sem dvida,quem melhor que Ele pode, se me atrevo a diz-lo, pronunciar estas

    palavras soberbas: "Que me importam os homens." Claro que no assime quando declaro que Deus incompreensvel, minha alma se eleva aoTodo Poderoso, e o afirmo nos momentos de felicidade suprema, postoque incompreensvel, porque o seu amor, e porque seu amor excede atodo o entendimento. Aplicada a Deus, essa palavra. incompreensvel,designa a perfeio suprema; ao contrrio, se a aplicamos ao homem

    revela sempre um defeito, e, s vezes, um pecado. E Cristo noconsiderava como uma usurpao ser semelhante a Deus e sem dvida sehumilhava; enquanto que tu mostras como a uma botina os dons deinteligncia que recebeste.

    Reflete: tua vida corre, e tambm, para ti, chegar o dia em quevers tua carreira concluda, e j no ters, para viver, outro recurso senorecordar. No esta ou aquela recordao que te encanta em sua mistura defico e realidade, e sim uma grave evocao da conscincia, uma

    evocao fidelssima. Toma cuidado para que, ento, no estendas anteteus olhos uma lista, no direi de crimes, mas sim, de possibilidadesfrustradas que no poders expulsar. Ainda s jovem, a dutilidadeintelectual que ostentas convm tua idade, e distrai um momento a quemte escuta. Assombra-nos ver um destes palhaos de articulaes toflexveis que suprimem, de fato, todas as leis a que esto submetidas amarcha e a estatura do homem: o mesmo ocorre, em ti, com as coisas doesprito. Podes apoiar-te tanto sobre a cabea corno sobre os ps: tudo te

    possvel e essa faculdade te permite surpreender aos outros e a ti mesmo;porm uma arte prejudicial, e rogo, por tua tranqilidade: cuida que teuprivilgio no se converta, no final, em uma maldio. Um homem deconvices no pode, a seu capricho, entregar-se a semelhantemalabarismo com seu prprio ser. Ponho-te em guarda, no contra omundo, porm, contra ti mesmo, assim como ponho o mundo sem guardacontra ti.

    Se tivesse uma filha em idade de sofrer tua influncia, j a

    advertiria eu, sobretudo se fosse inteligente. Como no faz-lo quando eu,que creio poder medir-me contigo, seno pela sutileza, pela versatilidade epelo brilho das teorias, pelo menos pela solidez dos princpios, no deixo

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    de sentir realmente, s vezes, e para pesar meu, a seduo de tuaspalavras, de sentir o contgio de teu esprito endiabrado cheio dessamalcia de aparncia benvola com que te enganas totalmente fazendo-mecompartilhar dessa ebriedade de intelectual e de esteta, que teuelemento? Vejo muito bem a incerteza de minha conduta para contigo, ora

    demasiado severa, ora por demais complacente, e no h nisso nada deassombroso, porque s um resumo de todas as possibilidades e precisover em ti de pronto tanto a de tua runa como a de tua salvao. Levas aseu extremo todo o pensamento, todo o sentimento bom ou mal, triste oualegre, e isso de maneira abstrata, mais que concreta, de sorte que essa

    busca mais uma simples deposio da alma da qual nada resulta, seno aconscincia que assumes disso. Porm, no chegas, contudo, a achar nissoum obstculo ou uma ajuda quando confias de novo no mesmo

    sentimento, porque sempre te reservas a possibilidade de faz-lo. Pode-se,pois, reprovar-te qualquer coisa sem interpretar-te nada, porque tudo seencontra em ti sem estar realmente. Confessas, segundo o caso, haverexperimentado tal sentimento e escapas a toda a incriminao; o queImporta haver conhecido este sentimento na plenitude de sua patticaverdade.

    1.

    Queria, pois, falar do calor esttico do matrimnio. Questo quepode parecer suprflua, posto que esse valor reconhecido por todosdepois de tantos exemplos cavalheirescos, e dos heris de aventuras que,h sculos, se expem a incrveis vicissitudes para entrar finalmente no

    porto tranqilo de um matrimnio feliz. Acaso, durante sculos os leitoresde novelas no sofreram, volume aps volume, para chegar concluso de

    uma unio agradvel, e as geraes no suportaram uma aps outra,conscienciosamente, quatro atos de intrigas e contratempos, com a dbilperspectiva de um himeneu no quinto? Entretanto, esses esforosdesmedidos no lograram apenas louvar o matrimnio e muito temo que aleitura de tais obras no haja deixado em ningum a sensao de ser apto

    para a misso a que se props, ou de ter uma orientao na vida, porque odefeito funesto dessas histrias o de terminar onde deveriam comear.Depois de haver triunfado em tantas ciladas da sorte, os amantes selanam, por fim, um nos braos do outro; cai o pano, est terminado olivro, porm, o leitor no ganha nada. Porque no se necessita realmentede muita arte para chegar at a, uma vez que crepitam as primeiras

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    chamas do amor; basta a coragem e a habilidade suficiente para ganhar,lutando, o objetivo considerado como o nico bem. Em troca, se requerreflexo, sabedoria, pacincia para desafiar o fastio que acompanha,comumente, a satisfao do desejo. muito natural que, em seu inicio, oamor no apresente dificuldade posse de seu objeto, e que, na falta de

    obstculos, os suscite, inclusive com o fim nico de triunfar sobre eles.Toda a ateno destes autores est dirigida para tal fim: eliminados os

    perigos, o diretor de cena j sabe o que deve fazer. Por isso raro, ver noteatro ou em um livro celebrar-se uma matrimnio sem que a pera ou o

    bal aproveitem esse momento para o palavrrio das tiradas dramticas, oscortejos suntuosos, a troca de anis, a gesticulao imponente e os olharescelestiais do figurante. A parte de verdade em toda esta trama, seuelemento propriamente esttico, que assim se pe em movimento o

    amor: j o veremos abrir caminho lutando contra um meio adverso. O erro que essa luta, essa dialtica so puramente exteriores e que o amor, nofinal, continua to abstrato como no princpio. Porm, anime-se a idia dadialtica prpria do amor, a idia de sua luta patolgica apaixonada, desua relao com a tica, com o religioso e ento: j no se necessitar de

    pais insensveis, de gineceus de princesas encantadas, de ogres e monstrospara dar trabalho ao amor. Em nossos dias, no freqente encontraresses pais cruis, esses monstros ferozes e, na medida em que a novaliteratura modela sobre a antiga, faz do dinheiro, na verdade, o meioadverso em que o amor se move. E ento suportamos quatro atos, quandoh boas possibilidades de que o tio, dono da herana, morra no quinto.

    Sem dvida, as peas desse gnero no so freqentes. Geralmente,a nova literatura opta por cobrir de ridculo o amor, visto na imediatezabstrata em que o situava a novela. Se examinarmos, por exemplo, o teatrode Scribe, vemos que um de seus temas favoritos consiste em conceber oamor como uma iluso. Basta-me recordar-te, porque s um adepto de

    Scribe e de sua polmica: creio ao menos que no obstante ser umpaladino de suas opinies, diante de todos e contra todos, tu, em troca, tereservars o amor cavalheiresco. Porque, longe de no teres umsentimento, s, nesse assunto, o mais obstinado dos homens que conheo.Lembro-me que um dia me enviaste uma pequena crtica de Os pequenosamores, de Scribe, escrita com um entusiasmo quase desesperado. Diziasque essa pea era a melhor que seu autor havia composto e que, bemcompreendida, bastava para dar-lhe a imortalidade. Quero citar-te outraque, a meu ver, revela o defeito de tudo que faz esse autor. Intitula-se

    Para sempre e ironiza os casos de paixo. Graas s argcias de uma mepreventiva, apesar de mulher do mundo, um homem sente uma nova

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    paixo que sua me cr definitiva; porm o espectador, desgostoso ante aarbitrariedade completa com que o autor ps aqui ponto final, compreendefacilmente que nada se ope a uma terceira aventura. assombroso, poroutro lado, observar at que ponto a poesia nova est a consumir-se: faztempo vivia do amor. Nossa poca lembra a decadncia grega: tudo

    subsiste, porm ningum cr mais nas velhas formas. Desapareceram osvnculos espirituais que as legitimaram, e toda a poca se nos parecetragicmica: trgica porque sombria, cmica porque ainda subsiste. Pois o

    perecvel sempre, em suma, o suporte do imperecvel, e o espiritual domaterial. E se pudssemos imaginar que um corpo, privado de sua alma,

    pudesse ainda cumprir suas funes habituais, isso tambm seriatragicmico. Porm, deixemos o tempo cumprir sua obra de destruio:quanto mais consuma a substncia de que feito o amor romntico, mais

    tremendo ser o dia em que esta consumio termine, o sobressalto emque tomaremos conscincia da perda sofrida e ento sentiremos nossadesdita na desesperana.

    2. ( )

    Vejamos agora em que medida conseguiu nossa poca substituir o

    amor romntico que destruiu por algo superior. Indicarei, porm, primeiro,por que sinais se reconhece esse amor. Em uma palavra, podemos dizerque imediato: v-la e am-la uma coisa; e ela, mesmo quesimplesmente o entreveja de seu quarto de donzela por uma abertura deuma janela semi-fechada, ela o ama tambm, e s a ele em todo o mundo.Como conviemos aqui, deveria eu intercalar algumas descargas polmicas,

    para provocar em ti a secreo de biles que se exige para uma s esaudvel assimilao de meus argumentos. Porm, no me resolvo a isso

    por duas razes: Primeiro, porque esse procedimento hoje muito comum,e para falar francamente, no se pode conceber que tu sigas aqui acorrente contra a qual te levantas em todas as circunstncias. Segundo,

    porque conservo certa f na verdade do amor romntico, certo respeito ecerta melancolia quando penso nele. Contentar-me-ei, pois, em recordarteus sentimentos e idias quando sais a lutar contra essa concepo, equando encontro no ttulo de um pequeno tratado que escrevestes: "Asafinidades eletivas e incompreensveis, ou harmonia praestabilita de doiscoraes." Falo aqui da atrao que Goethe, o primeiro, em suas

    Afinidades eletivas das quais se aclara uma arte to consumada, nos fezsuspeitar no simbolismo da natureza, para logo lev-la ao mundo do

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    esprito. Porm, Goethe, para justificar essa atrao, empenhou-se emmostrar-nos uma sucesso de momentos (talvez para indicar a diferenaentre a vida da Natureza e a do esprito), sem assinalar a prontido comque os fatores se conjugam, a impacincia e a preciso caractersticas cioamor. No belo pensar que dois seres esto desta sorte destinados um ao

    outro? Quantas vezes sente-se a necessidade de cruzar os umbrais dahistria, a saudade nostlgica do bosque virgem que deixamos para trs? Eesse desejo no adquire uma dupla significao quando se lhe associa aidia de outro ser para quem essas regies so sua ptria? Toda unio,apesar de concluda aps reflexo madura, sente, ao menos em certosmomentos, a necessidade de representar-se num plano desse tipo. E que

    boa coisa pensar que Deus, sendo esprito, ame, por sua vez, o amorterrestre! Admito que haja nisso muito de engano, entre a multido de

    cnjuges, e tambm reconheo que tuas observaes sobre esse ponto metenham regozijado s vezes, porm, no devemos esquecer a parte deverdade. Este ou aquele pensam, acaso, que mais vale ter uma liberdade

    plena na eleio da "companheira de sua vida", porm, essa opinio revelauma estreiteza pouco vulgar, uma suficincia miservel de esprito, porqueno adivinha que o amor romntico livre em sua genialidade e que essaespontaneidade faz sua grandeza.

    A imediatez do amor romntico mostra-se na necessidade natural

    sobre a qual repousa unicamente. Fundamenta-se na beleza: por um lado,a beleza sensvel: por outro, a que, podendo manifestar-se no sensvel ecom o sensvel, no se deixa examinar e apesar de estar constantemente a

    ponto de manifestar-se, s se mostra por momentos. Apesar de fundadoessencialmente no sensvel, esse amor tem sua nobreza, pois implica certaconscincia da eternidade; porque o selo da eternidade o que distingue oamor da voluptuosidade. Os amantes esto profundamente convencidos deque formam um todo perfeito, a salvo de toda mudana, para sempre.

    Porm, como essa segurana repousa na ordem natural daquelasafinidades, o eterno se v assim fundado no temporal e com isso se anula asi mesmo. Com essa segurana no sofreu nenhum contraste, nemencontrou fundamento mais slido, se rev-la como uma iluso: da queseja to fcil ridiculariz-la. Porm, no deveramos nos apressar tanto, ena verdade repugna ver esses intrigantes na nova comdia, to sensveis,ao parecer precavidos contra a iluso do amor. A mim, nada repugna maisque uma mulher assim, e nenhum desmando me inspira tanto desgosto,nada me irrita tanto como ver uma donzela enamorada, a braos desemelhante situao: realmente menos terrvel imagin-la merc de umgrupo de sedutores. triste ver um homem desiludido de tudo que a vida

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    oferece de substancial, porm, muito mais cruel ver esse extravio numamulher. Sem dvida, j o disse, o amor romntico tem uma analogia com aordem moral, na presumvel eternidade que o enobrece e o salva da purasensualidade. O sensual , com efeito, coisa de momento. Busca umasatisfao instantnea, e quanto mais afinado, mais sabe fazer do instante

    de gozo uma pequena eternidade. A verdadeira eternidade do amor, que a verdadeira moralidade, tem, por primeiro efeito, pois, salv-lo dosensvel. Porm, se h de se produzir essa eternidade verdadeira, precisoque intervenha a vontade. Voltarei a falar sobre este assunto.

    Nossa poca viu, muito bem, o lado fraco do amor romntico: osataques irnicos que lhe dirige so, s vezes, muito divertidos. Veremos,

    porm, se corrigiu seus defeitos e o que props em seu lugar. Pode-sedizer que seguiu dois caminhos: um deles se apresenta falso ao primeiro

    olhar: falso, quer dizer, imoral. O segundo, mais respeitvel, deixa delado, sem dvida, o elemento profundo do amor. Pois se o amor repousasobre o sensvel, claramente se v aquela cavalheiresca fidelidade, que,segundo o imediato, uma loucura. Por que, pois, admirar-se de que amulher reclame sua emancipao, um dos numerosos e terrveisfenmenos de nossos tempos, de que os homens so responsveis? Oeterno que o amor implica, se converte em objeto de escrnio: o que seretm do amor o aspecto temporal, porm, quintessenciado na eternidade

    sensvel, no instante eterno do abrao. Minhas palavras no se aplicamsomente a tal ou qual sedutor, que ronda pelo mundo, como uma ave derapina: no, seno que tambm se referem a um numeroso coro deespritos dos mais distintos, e Byron no o nico que declara o amor um

    paraso e o casamento um inferno. Claramente se v aqui intervir areflexo, da qual est desprovido o amor romntico, que se acomodava de

    bom grado ao matrimnio e aceitava a bno da igreja, como uma belasolenidade, que sem dvida, no adquire uma particular importncia no

    amor romntico como tal. Ao intervir a reflexo, o amor romntico, com aimpassividade e um endurecimento terrveis da razo, encontrou uma novadefinio do amor desventurado, que consiste em ser amado, quando jno se ama, e no em amar, apesar de o prprio amor no sercorrespondido. Na verdade, se esses tericos se dessem conta de toda a

    profundidade de suas palavras, retrocederiam com espanto; porque, parteda soma de experincias, habilidade e refinamento que implicam, deixamtambm suspeitar a presena da conscincia. De sorte que o momento vema ser o principal. Quantas vezes no escutamos estas palavrasdespudoradas de um amante animado deste esprito, infeliz moa, capazde um s amor "No peo tanto, me conformo com menos: longe de mim a

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    idia de exigir que me ames por toda a eternidade; basta que me ames nomomento em que desejo." Esses amantes sabem muito bem que o sensvel

    perece; porm sabem, tambm, que o momento mais belo, e isso lhesbasta. Desde logo, uma tal corrente revela uma imoralidade absoluta;porm, em troca, segundo essa idia, constitui, em certo sentido, um

    progresso para nosso objetivo, na medida em que apresenta uma dennciaformal contra o matrimnio. Porm, quando essa concepo trata de cobrirsua sensualidade com uma vestimenta mais decente, ento no se limita aum instante isolado, e sim o faz durar no tempo, de tal modo, sem dvida,que tome conscincia no do eterno mas do temporal, se bem que se aferrea essa oposio do eterno, representando-se por uma mudana sensvel notempo. Julga que pode bem suportar a vida em comum por certo tempo,

    porm, se reserva uma sada para o caso de que se apresente uma escolha

    melhor, que, ento no vacilaria em efetuar. Faz do casamento umainstituio civil: basta apresentar-se diante de um magistrado para que aunio se dissolva, e que se contraia outra, como se anuncia uma mudanade residncia. No me interessa se o Estado encontra nisso uma vantagem;

    para o indivduo , na verdade, uma situao singular. Da que nunca avemos realizada de fato, porm, o tempo nos traz sua contnua ameaa.

    Necessitar-se-ia tambm de uma boa dose de impudiccia, e no creio seressa palavra demasiado forte; alm disso, uma associao desse tipodemonstraria, sobretudo no contratante feminino, uma leviandade que seaproxima da depravao.

    3.

    H outra disposio de esprito muito diferente apesar do ponto devista anlogo, e se dela falo, ser, sobretudo, porque muito caracterstica

    de nosso tempo. Vejamos: um plano deste pode repousar sobre umamelancolia de tendncia egostica ou simptica. J se falou bastante darapidez da poca atual, porm creio ser agora oportuno falar um pouco desua melancolia, e espero que isso aclare toda a questo. No amelancolia um defeito de nossos dias? No encontrada mesmo nasrisadas despreocupadas? No foi ela que nos tirou o valor de mandar, ovalor de obedecer, a confiana indispensvel para esperar? Quando bonsfilsofos fazem tudo para tornar tangvel a realidade, ela no nosconfunde, a ponto de sentirmo-nos sufocados? Tudo passa para umsegundo plano, exceto o presente. Perdemos muito dele, na perptuaangstia de que nos escape. certo que no devemos dissipar-nos numa

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    esperana fugitiva, e no assim que devemos nos elevar s nuvens;porm gozar verdadeiramente, se precisa de ar, e se aos dias de tristezaconvm os cus abertos, tambm importa abrir a porta de par em par sobreos amplos horizontes dos dias de jbilo. Sem dvida, o gozo perde nisso,aparentemente, certo grau da intensidade que tem, nos limites que o

    encerra a angstia: porm a perda no ser grande, pois esse gozo muitose assemelha intensa voluptuosidade que custa a vida dos gansos deEstrasburgo. possvel que no concordes comigo facilmente; em troca,no necessito insistir sobre a importncia da intensidade que se obtm daoutra maneira. s, nesse sentido, um virtuoso; tu, qui di dererunt formar,divitias, altemque fuendi. Se o gozo fosse essencial vida, eu me achariaa teus ps como discpulo, posto que s um mestre nessa arte: envelhecesdepressa por aspirar a plenos pulmes, graas ao canal das recordaes e

    logo voltas primeira juventude, brio de esperana. Teu gozo to virilquanto afeminado; s imediatista, ou submetido a uma reflexo que seexerce at sobre o gozo de outrem, ou que te aconselha a abster-se do

    prazer. Ou ento te entregas, a alma aberta e acessvel como uma cidadeque acaba de capitular, e ento fazes calar a reflexo, porque cada passodos estrangeiros ressoa nas ruas desertas. Porm, sempre conservas um

    pequeno posto avanado de reflexo. Ou se tua alma se fecha, voltas aosrefgios escarpados e inacessveis. Assim s. Reconhece o egosmo de teugozo; nunca te abandonas, nunca deixas que os outros se riam de ti. Se

    bem que te ris, com razo, dos que se consomem em voluptuosidade,como os libertinos de corao depravado; em troca, sabes muito bem aarte do galanteio, de tal forma que unia pequena paixo reala tua

    personalidade. No ignoras que o gozo mais intenso o que prolongamossabendo que talvez se desvanea no prximo instante. Explica-se da porque o final de Dom Juan te agrada tanto. Perseguido pela policia, pelomundo inteiro, pelos vivos e pelos mortos, sozinho em um quarto isolado,recolhe uma vez mais toda a energia de sua alma, levanta mais uma vez a

    taa, e alegra pela ltima vez seu esprito com o som da msica.

    4. " "

    Voltando ao que te dizia, essa concepo pode resultar damelancolia de carter, ser egosta ou simptica. A primeira temenaturalmente por si mesma e como toda a melancolia vida de gozo.Tem um horror secreto por toda a unio contrada por toda a vida. "Comoestar certo, se tudo pode mudar? Esta criatura que adoro pode transformar-

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    se; o destino pode pr-me mais tarde frente outra em quem encontrareiverdadeiramente o ideal dos meus sonhos." Como toda a melancolia obstinada, e o sabe. 'Talvez, diz-se, uns vnculos indissolveis tenham porefeito fazer-me insuportvel a esta criatura a quem sem eles, eu amariacom toda a minha alma; talvez, talvez etc." Enquanto a melancolia

    simptica mais dolorosa e tambm um pouco mais nobre, porquedesconfia de si mesma por considerao outra parte. "Quem est segurode no mudar?" Pode ser que o que hoje considero bom em mimdesaparea amanh; pode ser que os dons, graas aos quais cativo agora aminha amada, e que desejo conservar para ela, eu os perca, e que ela seveja ento enganada, defraudada; talvez a tentasse ento um partido mais

    brilhante e fosse incapaz de resistir e, meu Deus, eu teria essa infidelidadesobre a minha conscincia. Nada teria a lhe reprovar, seria eu que teria

    mudado, perdoar-lhe-ia tudo contanto que ela tambm perdoasse minhaimprudncia de hav-la conduzido a um ato to decisivo. Saberia, em sconscincia, que em vez de seduzi-la, a pus em guarda contra mim, e queela seguiu sua livre resoluo; porm, talvez, justamente essa advertnciafosse o que a induziu tentao, mostrando, em mim, um homem melhordo que realmente sou etc. "Bem se v que essa maneira de pensar no sesatisfaz mais com uma unio de dez anos que com uma de cinco, nem comum pacto como o que Saladino fez com os cristos por dez anos, dezmeses, dez semanas, dez dias, dez minutos nem que tampouco uma uniodesse tipo satisfaa mais que uma contrada por toda a vida." tambmevidente que essa concepo conhece demasiado bem o sentido daqueleditado: "A cada dia, o seu mal." A gente se esfora por viver como se cadadia fosse decisivo, dia de prova. De modo que quando nossa poca semostra to inclinada a "neutralizar" o matrimnio, a razo no queachemos maior perfeio no celibato, como na Idade Mdia, e sem acovardia, a avidez do gozo. Do que se deduz, tambm, que os matrimnioscontratados por um determinado tempo no oferecem vantagem alguma,

    posto que comportam as mesmas dificuldades dos contratados por toda avida; e to possvel que brindem aos interessados a fora necessria paraviver, como que desgastem, por outro lado, as energias profundas da unioconjugal, relaxem a tenso da vontade e diminuam a confiana, essa

    bno do matrimnio. Alm do mais, j est claro, e o veremos aindamelhor mais adiante, que esta classe de associaes no alcanou aconscincia de eternidade que caracteriza a moralidade, e que necessria

    para a unio em um matrimnio. Tu o admitirs sem reserva: quantas

    vezes e com quanta segurana tu analisaste com argcia essa classe desentimentos (lembra "os azares do amor ou o amor ao infinito") pelosquais um jovem, encostado janela de sua noiva, v uma moa passar na

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    esquina, sente a "flechada" e se lana em seu encalo. Porm, logo tropeacom outra e assim tudo se repete.

    A segunda corrente observada em nossa poca para substituir oamor romntico respeita os convencionalismos e preconiza o marriage de

    raison. J o termo demonstra que nos achamos no terreno da reflexo.Alguns, por exemplo, se assombram ao ouvir falar do matrimnio assimconcebido, intermedirio do amor imediato e a razo pensante, porque

    para respeitar o idioma, deveriam cham-lo "matrimnio raciocinado."*Gostas, sobretudo, sempre com muito engano, de apresentar "os prejuzos"como o slido fundamento do amor conjugal. Nossa poca mostra quoinfluente a reflexo quando necessita recorrer a um expediente tal comoo matrimnio de convenincia em que renuncia ao amor propriamentedito, porm, tambm mostra como isso no resolve a questo. Um

    "matrimnio raciocinado" deve ser considerado, pois, como uma espciede capitulao, inevitvel pelas complicaes da vida. Porm, que triste ver que, por assim dizer, o nico consolo da poesia de hoje. O nicoconsolo: o do desespero.

    Porque o desespero, claramente, o que faz algum aceitarsemelhante unio. Contraem-na livremente pessoas que perderam hmuito tempo a ingenuidade da infncia; sabem que o amor propriamentedito uma iluso, e que sua realizao em todo caso um piumdesiderium. O ponto de vista que ento se adota o da prpria vida, dodinheiro, da classe social etc. A unio parece moral na medida em queneutraliza a face "sensvel" do matrimnio; porm, resta saber se essaneutralizao no ser to contrria tica como esttica. Inclusive seno se elimina completamente o elemento ertico, atuam friasconsideraes sobre a necessidade de ser prudente, de no gostar de outrolago, porque a vida nunca nos traz o ideal, e afinal de contas, trata-se do

    partido realmente conveniente... O eterno que, como j vimos, faz parte de

    todo o matrimnio, na realidade, aqui no aparece, porque a razo calculasempre com base no temporal. Em suma, uma unio contrada nessascondies imoral e frgil. Porm, o matrimnio de convenincia podealcanar certa beleza quando determinado por um motivo superior,estranho unio mesma; por exemplo, quando uma donzela, por amor sua famlia, casa-se com um homem capaz de dar a esta certo amparo.Porm, essa finalidade, totalmente exterior, demonstra muito bem que no

    podemos encontrar ai a soluo do problema. Caberia examinar talvez as

    * () .

    (), , , (. .)

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    muitas razes que se invocam para casar-se; porm, justamente essasconsideraes pertencem esfera da razo.

    Vimos que o amor romntico baseia-se em uma iluso, e suaeternidade no tempo; que se bem que se esteja intimamente convencido da

    constncia absoluta de seu sentimento, o cavalheiro do amor romnticono tem, a seu respeito, nenhuma certeza, porque at agora o buscou nasvicissitudes de um meio totalmente exterior. O amor romntico, animado

    por bonita piedade, pode igualmente aceitar o matrimnio, sem transmitir-lhe, por isso, uma significao profunda. Vimos como esse amor imediato,no sem beleza, porm, com certa pobreza intelectual, expe-se fatalmente ironia e zombaria de uma poca de reflexo que o submete crtica, evimos, tambm, o que semelhante poca pode alcanar em lugar daquele.Entregando-se crtica do matrimnio, nossa poca declara-se a favor do

    amor excluindo o matrimnio, e, por outro lado, admite o matrimnio,excluindo o amor. Assim vimos, num drama moderno, uma costureirinha

    pensar e formular esta sbia observao acerca destes senhores: "Amam-nos, porm no se casam conosco; no desejam as mulheres de seumundo, porm casam-se com elas."

    Meu rpido exame (vejo-me obrigado a chamar assim estas linhasno obstante meu desejo primitivo fosse de escrever somente uma longacarta), meu rpido exame chega assim a um ponto em que o matrimnioaparecer plena luz. Que corresponda essencialmente ao cristianismo,que as naes pags no o tenham conhecido em sua forma perfeita,apesar da sensualidade do Oriente e de todo o sentido esttico da Grcia;que o prprio judasmo no o tenha levado perfeio, apesar de seuinegvel sentimento do edlico, tudo isso o admitirs sem obrigar-me ainsistir. Sobretudo porque, e bastar simplesmente record-la, emnenhuma parte a oposio dos sexos foi submetida a uma reflexo to

    profunda de tal modo que "o outro sexo" tenha recebido plena justia.

    Porm, tambm no cristianismo, o amor sofreu no poucas vicissitudesantes de que se pudessem ver a profundidade, a beleza e a verdade domatrimnio. Sem dvida, como a gerao precedente e em parte a nossacaracterizam-se pela reflexo, no fcil de demonstrar o que sustenho; ecomo encontrei em ti um virtuoso na arte de encontrar os pontos fracos, atarefa a que me propus, a de converter-te se possvel, complica-seduplamente. Confesso, sem dvida, minha gratido por tuas objees.Quando resumo os argumentos que expuseste, numerosos e isolados, e os

    considero em conjunto, encontro tanto talento e gnio, que vem a ser umexcelente guia para quem pretende responder-te; teus ataques no so tosuperficiais que no contenham tambm algo de verdade quando discutes

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    com algum, apesar de que nem esta pessoa, nem tu mesmo o adivinhemneste instante.

    5.

    Ao amor romntico, falta reflexo e tal seu defeito. De modo queseria bom mtodo o de submeter o verdadeiro amor conjugal a umaespcie de dvida prvia, o que pareceria to mais necessrio quandoverificamos que aqui chegamos com base na reflexo. No nego demaneira alguma que o matrimnio seja artificialmente realizvel,

    baseando-se nesta dvida; trata-se porm, de saber se nesse caso, no sealtera sua natureza, posto que se abriga a idia de um divrcio entre oamor e o matrimnio. Trata-se de saber, pois, se faz parte da essncia domatrimnio destruir a paixo, quando se duvida da possibilidade de lev-la a cabo, e com essa destruio fazer possvel e real o amor conjugal. Demodo que o matrimnio de Ado e Eva foi propriamente o nico em queeste conservou-se intacto e isso sobretudo pela razo que Misaeus expscom tanta graa: a saber, que no era possvel amar a ningum mais.Trata-se de saber se a paixo, passando a uma imediatez concntricasuperior, no estar a salvo deste ceticismo, de modo que o amor conjugal

    no tenha necessidade de sepultar as belas esperanas da paixo. Omatrimnio no seria outra coisa que a paixo enriquecida de condiesque, longe de diminu-la, a enobrecem. A exposio desse problema difcil, porm, de extrema importncia, se no queremos encontrar, naesfera do tico, um abismo anlogo ao que, na esfera do intelectual, separaa cincia da f. E tu no me contradirs, meu caro amigo, (porque teucorao encerra tambm o sentimento do amor, e teu crebro conhecedemasiado a dvida). Oxal o cristo pudesse chamar a Deus o Deus do

    Amor, pondo nesse termo uma indizvel felicidade, esse poder eterno nomundo que o amor terrestre! Se bem tenho caracterizado anteriormente oamor romntico e o amor reflexivo como pontos de vista discursivos, aquiver-se- com clareza em que medida a unidade superior uma volta aoimediato, e em que medida subsiste nela a parte do que mais possa conter,o que se encontrava no estgio anterior. No cabe dvida de que o amorreflexivo consome-se sem cessar, e que se extingue, com arbitrariedadecompleta, num ponto ou noutro; nem que aspira a superar-se numa esferamais alta. Trata-se, porm, de saber se esta no pode, por si mesma, entrarem relao com a paixo. Essa esfera mais alta a da religio, na qualterminam a reflexo e a razo e assim como nada impossvel a Deus,

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    tampouco nada impossvel ao indivduo religioso. Na esfera doreligioso, o amor recupera o infinito que buscou em vo no amorreflexivo. Porm, se o religioso, superior a tudo que terreno, ao mesmotempo, e igualmente, excntrico, apesar de concntrico ao amor imediato,a unidade pode estabelecer-se sem que seja necessria a dor, que a religio

    pode, sem dvida, curar, porm, que nem por isso ser menos profunda. muito raro que se descubra esta questo: os que tm o sentido do amorromntico no se ocupam do matrimnio, e muitos matrimnios sorealizados, infelizmente, sem esse profundo sentimento do ertico, que

    por certo o que h de mais belo na existncia do homem. O cristianismotende insistentemente ao matrimnio. Se, pois, o amor conjugal no

    pudesse conter todo o ertico que h na paixo, o cristianismo no seriaconsiderado o que h de mais supremo na evoluo da humanidade. E ,

    certamente, um secreto temor de tal desacordo a causa principal dodesespero que existe no novo lirismo, em verso ou em prosa.

    Como vs, a tarefa a que me propus consiste em mostrar que o amorromntico compatvel com o matrimnio e pode substituir nele; maisainda, que o matrimnio a verdadeira glorificao desse amor. No

    pretendo com isso lanar sombras sobre os matrimnios que se amparamna reflexo e se salvam de naufrgio; no nego que se possa fazer muitocom este, nem careo de simpatia a ponto de recusar-lhe minha admirao.

    No esqueo, em suma, que a corrente de toda a nossa poca podefreqentemente fazer desse passo uma triste necessidade. Convm, porm,recordar que todo o indivduo de qualquer gerao recomea, em certamedida, sua vida, e que cada um tem a possibilidade de evitar, pois, esseabismo. Convm tambm recordar que a gerao se instrui na precedente eque portanto uma gerao entregue a esse drama to triste da reflexo

    pode dar perspectivas mais felizes posterior. E por mais numerosas erduas que sejam as complicaes que a vida possa ainda reservar-me,

    imponho-me tambm a tarefa, para muitos insignificante, porm, a meusolhos a mais importante, de mostrar que minha modesta unio serviu aessa transformao e para encontrar a fora e o valor com que cumprirconstantemente aquele outro desgnio inicial.

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    Uma vez mais, no posso deixar de me regozijar de escrever para ti,porque se bem que certo que eu no queria falar a ningum mais deminha vida conjugal, tambm o que me abro a ti com uma alegria

    confiante. s vezes, quando se acalma o tumulto de teus pensamentos, teutrabalho e tua luta, quando se apaga o rumor desse formidvel mecanismode teu crebro, chegam momentos de calma cujo silncio, quaseangustiante no princpio, exerce logo sua ao verdadeiramente benfica.Espero que este estudo te encontre em um desses momentos; e se te podeconfiar sem temor qualquer pensamento, enquanto esta mquina esttrabalhando, pois a no escutas nada, tambm se te pode dizer tudo semestar-se tua merc, quando tua alma acha-se mergulhada nessa pazsolene. De modo que falarei tambm daquela de quem s falo com asilenciosa natureza, para escutar-me somente a mim; aquela a quem devotanto, e entre outras coisas, esta coragem com que ouso defender a causada paixo e do matrimnio; porque, apesar de todo o meu amor e todo omeu esforo, que poderia eu se ela no viesse em meu auxlio? Que

    poderia eu se ela no me infundisse entusiasmo e vontade? Sem dvida,sei muito bem que se eu lhe dissesse isso, no me acreditaria; e talvez eufizesse mal, porque correria o risco de agitar e turvar a profundidade e a

    pureza de sua alma. Meu primeiro cuidado ser orientar-me, e sobretudo

    guiar-te at a definio da natureza do matrimnio. Seu primeiroconstituinte, sua substncia, evidentemente o amor, ou se te empenhasem especificar, o Eros. Se eliminarmos esse elemento, a vida em comum ou bem pura e simples satisfao do apetite sensual, ou bem umaassociao, uma sociedade para alcanar tal ou qual objetivo; porm oamor leva justamente o selo da eternidade, tanto quando se trata do amorsupersticioso, aventureiro, cavalheiresco, como do amor religioso,impregnado de profunda moralidade e animado de uma herana forte e

    profunda.Como toda condio, o matrimnio tem tambm seus traidores. No

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    penso, naturalmente, nos sedutores, porque no entraram na santacondio do matrimnio (espero que estas pginas te cheguem s mosestando em um estado de esprito em que este termo no te faa sorrir).

    Nem penso nos esposos divorciados, porque no tm, finalmente, acoragem de lanar-se a uma revolta aberta. No, eu penso naqueles que s

    se rebelam em pensamento, sem ousar passar ao; nesses miserveisesposos que suspiram pelo amor desvanecido h tempo; cada um em suacela conjugal aferrando-se a grades de ferro e recitando suas asneirassobre a doura do noivado e a amarga decepo do matrimnio. Seguindotua justa observao, so aqueles que formulam suas felicitaes a todorecm-casado com uma espcie de alegria perversa. No saberia dizer-tequo desprezveis os acho e como me alegra quando um deles te toma porconfidente, e derrama toda sua blis, e conta todas as suas mentiras sobre a

    felicidade dos primeiros amores, e ento lhe diriges, com teu ar maligno:"Deus me livre de aventurar-me neste pramo terrvel!" E assim vejoredobrar a amargura daquele que no pode arrastar-te ao communenaufragium! A pessoas assim, referes-te quando falas de um terno pai e deseus quatro filhos-modelo os quais, de bom grado, mandaria ao diabo.

    Se suas expresses tivessem algum fundamento, deveramos admitira separao entre o amor e o matrimnio, referindo-se cada um a ummomento do tempo, porm ambos incompatveis. Ento, descobriramos

    imediatamente qual , dos dois, o momento do amor: o do noivado, porsuposto, o tempo do noivado, cujo encanto celebram por qualquerpretexto, e com uma emoo e transportes de cmica vulgaridade. Nunca,confesso-te, apreciei muito essas baboseiras do noivado; e mais se insistesobre este perodo, mais se me faz pensar no tempo que demoram certas

    pessoas para lanar-se na gua quando vo e vm na ponte flutuante eexperimentam a gua com as mos e os ps, e encontram-na, orademasiado fria, ora demasiado quente. Se fosse certo que o tempo de

    noivado o mais belo, no vejo realmente porque essas pessoas se casam.Sem dvida se casam, seguindo o protocolo burgus mais restrito, quandotias, primos e vizinhos o acham oportuno, com um convencionalismo emque encontramos a mesma letrgica indolncia que na concepo donoivado como o mais belo momento da vida. Em todo o caso, prefiro-osaos outros, os temerrios, que s encontram prazer no arrojar-se na gua:sempre algo, apesar de o gesto no ter nunca tanta grandeza, oestremecimento da conscincia, to bela virtude, nem a reao da vontade,tanta energia, como quando um brao viril e poderoso estreita a amadacom terna firmeza, com uma fora que lhe infunde, sem dvida, osentimento da liberdade, com o qual ela pode precipitar-se ante Deus no

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    oceano da vida.

    Se essa separao do matrimnio e do amor tivesse alguma validez,salvo em alguns miserveis sem senso, quase monstros, to poucoinformados da natureza do amor como da natureza do amor conjugal, seria

    uma m posio a defesa do matrimnio e vo o meu projeto de explicarseu valor esttico, de explicar o que a harmonia esttica do amor. Porm,que razo invocar para justificar essa separao? Talvez fosse necessrioalegar que o amor est condenado a desaparecer. Aqui vemos, uma vezmais, a desconfiana e a covardia de que nossa poca oferece tantosexemplos; uma e outra caracterizadas pela crena de que a evoluo regresso e destruio. Admito de bom grado que um amor to mesquinhoe dbil, nem masculino nem feminino, (um amor de dois centavos, comodirias com tua habitual irreverncia), no pode, realmente, resistir a um s

    golpe de vento, nas tempestades da vida. Porm, no poderamos dizer omesmo em relao ao amor e ao matrimnio, quando um e outro se achamem seu estado natural e sadio. Ou ento, haveria de alegar, o tico e oreligioso, que surgem do matrimnio, mostram uma natureza to distintado amor que no podem unir-se, portanto. De sorte que o amor no

    poderia empreender na vida uma luta vitoriosa a menos que pudessefundir-se e contar unicamente consigo. Essa maneira de ver levaria aquesto, seja ao pathos inexperimentado do amor imediato, seja ao

    capricho ou arbtrio de qualquer indivduo que se sinta capaz de terminar acarreira com suas prprias foras. Essa ltima concepo, segundo a qualo tico e o religioso exerceriam sobre o matrimnio um efeito destrutivo,apresenta certa vitalidade, que facilmente se impe em uma observaorpida; e apesar de seus erros, comporta uma sublimidade bem diferentede toda a misria da primeira. Voltarei a falar sobre isso, tanto maisquanto muito me engana meu olhar de inquisidor se no vejo em ti umherege impregnado desse erro, em certa medida.

    1. ,

    O amor a substncia do matrimnio. Porm, qual o primeiro? Oamor precede ou se segue ao casamento? Essa ltima concepo goza demuito apoio entre os espritos limitados, e tem sido defendida pelos pais

    avisados e mes mais prudentes que por haverem feito essa experincia,ao que supem, vingam-se pretendendo imp-la sem rplica a seus filhos.

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    Esse o sbio procedimento dos vendedores de pombas que encerram emuma pequena gaiola dois desses pssaros sem a menor simpatia recproca,os quais, pensa-se, terminaro por entender-se. Essa teoria ,naturalmente, de tal pobreza que s desejo mencion-la, e tambm,recordar tuas stiras sobre esse ponto. O amor , pois, o elemento

    primeiro. Alm disso, e segundo entendo, de essncia to sutil, e apesar de natural to pouco natural, e to delicado, que no pode demaneira alguma suportar o contato com a realidade. Eis-me aquinovamente no ponto em que estvamos h pouco: o noivado parecerecobrar toda sua importncia. Porm o que o noivado seno um amorirreal que se nutre desse suave e sutil elemento que a possibilidade?Ignora a realidade, move-se no vazio, e persevera na prtica dos mesmosgestos, apaixonados, porm, insignificantes. E quanto mais fora da

    realidade estejam os enamorados, mais esforos lhes custam essesmovimentos fictcios e que os esgotam, mais sentem a necessidade defugir da grave realidade do matrimnio. O noivado parece no comportarnenhuma realidade que resulte necessariamente dele; um magnficoexpediente para aqueles que no tm a coragem de contrair a unio. Anteesse passo decisivo, experimentam, sem dvida, e provavelmente comgrande acuidade, a necessidade de buscar ajuda num poder superior, etransigem duplamente: consigo mesmos, iniciando um noivado com osriscos conseqentes, e com esse poder, posto que no renunciam bnoda Igreja, bno a qual, em meio a sua enorme superstio, valorizam emdemasiado. De modo que temos novamente, em sua pior forma, a maiscovarde e menos viril, uma cisma entre o amor e o matrimnio. Semdvida, essa concepo hbrida no pode extraviar-nos: ali, o amor notem o carter do amor, falta-lhe o aspecto sensvel, que no matrimnioacha sua expresso moral. Essa concepo neutraliza o ertico, a ponto deo noivado poder ser contratado entre pessoas do mesmo sexo. Em troca, sereivindica a parte sensvel, porm, mantendo-se essa distino se

    submerge ao mesmo tempo em uma das direes que indiqueianteriormente. Noivados, assim, so desprovidos de beleza, qualquer queseja o aspecto pelo qual os consideremos: mesmo do ponto de vistareligioso, porque so uma tentativa de enganar a Deus, de alcanar comastcia uma finalidade para a qual no se cr precisar de Seu concurso,embora apele para Ele quando sente o inconveniente de proceder de outramaneira.

    O matrimnio no deve, pois, conduzir ao amor; pelo contrrio opressupe, e no como um passado, e sim como um presente. Porm, omatrimnio comporta um momento tico e religioso que o amor no tem:

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    de modo que se funda na resignao, coisa que o amor no faz. Seadmitirmos agora que todo o homem segue em sua vida um duplomovimento, primeiro o movimento pago, no qual triunfa o amor, e logo ocristo, em que expresso o matrimnio, e se no admitirmos que o amor(Eros) deva ser excludo do cristianismo, preciso demonstrar ento que

    compatvel com o matrimnio. Imagino que se um profano lesse estaspaginas, muito lhe surpreenderia ver que uma questo to simples possacustar-me tanto empenho. Porm, escrevo para ti somente, e tuaintelectualidade te permite compreender muito bem as dificuldades.

    Comecemos, pois, por examinar o amor. Adoto aqui um termo que,apesar de tuas zombarias e das de todo o mundo, sempre teve para mimuma bela significao: a da paixo (e creia-me, no cederei se por ele se

    produz uma disputa em nossa correspondncia... como no ceders

    tampouco). Ao pronunciar essa palavra, penso no que h de mais formosona vida. Em tua boca, descarregas em toda a linha o fogo de tuasobservaes malvolas; porm, para mim no tem nada de risvel, e, naverdade, me exponho a teu ataque com desdm, no encontrando nela amelancolia que pode despertar em certas pessoas. Essa melancolia no forosamente mrbida; mrbido somente o falso e enganoso. Depois deum amor desventurado e da experincia dessa dolorosa decepo, belo, sadio manter-se fiel a um sentimento, e conservar, apesar de tudo, a f na

    paixo, emoo primeira do amor. E quando, no curso dos anos, aorecordamos s vezes de uma maneira vivida, embora a alma tenha tidotanta sade que deixou esse gnero de vida e consagrou-se a um objetosuperior, bom recordar com melancolia a paixo como algo que no era,sem dvida, a perfeio, porm, que tinha uma rara beleza. E quanto maiss, mais bela e mais nobre essa melancolia que o prosaico raciocnio,livre de todas estas puerilidades, que esta diablica sabedoria, como a domestre Baslio, que presume ser sade, porm, que a mais profunda

    enfermidade consuntiva. Porque, de que serviria a um homem ganhar omundo inteiro se perdesse sua alma? Para mim, o termo "paixo" no temsombra de melancolia: comporta talvez um ligeiro tom de tristeza; meugrito de guerra, e mesmo casado h vrios anos, ainda tenho a honra decombater sob a bandeira vitoriosa da paixo, ou se preferes, do amor-instinto.

    2. " "

    Para ti, sem dvida, essa idia de "primeira" um valor suscetvel

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    de altos e baixos. a teus olhos um enigma, como o movimento dasondas. s vezes, toda a "coisa primeira" te entusiasma. Ests tocarregado da energia concentrada nela que no queres outra coisa.Inflamado de amor, submerso em profundos sonhos, como uma nuvem dechuva que se precipita, e suave como uma brisa de vero representas

    Jpiter quando visitava sua amada em forma de nuvem e chuva. O passadose desvanece, todas as fronteiras se desvanecem. Tu te dilatas, sentes umasuave desenvoltura invadir teus membros todos, e teus ossos setransformam em msculos flexveis: assim o gladiador se estira e estendeseu corpo para ser o amo desse corpo. Dir-se-ia que assim se despoja desua fora: porm, essa voluptuosa tortura por certo a condio do justoemprego de seu vigor. Ento te achas em um estado em que gozas da puravoluptuosidade da receptividade perfeita. Basta o mais ligeiro contato para

    estremecer este corpo espiritualizado, imensamente distendido e invisvel.H um animal ante o qual fico freqentemente pensativo: a medusa.Observaste que essa massa gelatinosa pode estender-se na superfcie elogo submergir lentamente, ou ento subir, to tranqila e to firme que

    poder-se-ia crer poder sustentar-se sobre ela? Porm, a medusa vaproximar-se sua presa: Ento adota a forma de um saco, e se afundarapidamente nas profundidades, arrastando nesse movimento sua vtima,no nesse saco, pois no o tem, e sim nela mesma, porque ela um saco enada mais. Ento, pode contrair-se a tal ponto que j no se compreendecomo pode distender-se. O mesmo ocorre, mais ou menos contigo: perdoa-me se no encontro um animal mais nobre para comparar-te, sorris de timesmo idia de que s um saco. s, nestes momentos em que persegues"a coisa primeira", e somente queres essa coisa, sem suspeitar dacontradio que h, em querer constantemente a mesma coisa, pois logoser necessrio ou que nunca a tenhas alcanado, ou que a tenhasrealmente possudo. E sem pensar tampouco que o objeto de tuacontemplao, de teu gozo, no seno um reflexo da coisa primeira. E

    repare tambm teu erro quando crs que a coisa primeira deveria estarinteiramente presente em outra coisa distinta, e pr-se vista contandoque saibamos busc-la. Repare, alm disso, que na medida em que invocastua experincia, voltas a equivocar-te, porque, nunca seguiste a boadireo. Em outros momentos, ao contrrio, s frio, incisivo e mordazcomo o servo, frio como a geada, transparente em teu pensamento como oar quando se renova. s seco e estril to encerrado em teu egosmo comoseja possvel. Se, quando te achas nesse estado, algum te fala porventura

    na coisa primeira, e da beleza que h nela, e talvez te conte de seuprimeiro amor, ento pe-te francamente bilioso. A "coisa primeira" ento a mais ridcula e a mais miservel de todas, uma dessas mentiras

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    que as geraes transmitem, aferrando-se cada vez mais a elas. Em tuafria, massacras como Herodes, um aps outro, os inocentes. Emdiscursos interminveis, sustens que uma covardia indigna do homemaferrar-se assim "coisa primeira", que a verdade est no que conquista, eno no j dado. Recordo que um dia vieste visitar-me nesse estado. Depois

    de haveres enchido teu copo, como de costume, te instalaste no sof maisconfortvel, jogaste tuas pernas sobre uma cadeira, te puseste a remexermeus papis (recordo inclusive, que os arranquei), e logo te lanaste a umelogio irnico do amor primeira vista, e de tudo que primeiro,inclusive "os primeiros safanes que levamos na escola". E acrescentaste, guisa de comentrio, que tu podias falar com autoridade, pois teu mestreera, ao que sabias, o nico que sabia aplic-los com fora. E logo paraterminar, assobiaste unia cano daqueles tempos, atiraste ao outro

    extremo do quarto a cadeira onde havias apoiado teus ps, e saste. intil, pois, buscar contigo o esclarecimento do mistrio que se

    esconde por trs desta palavra "primeiro", que cumpriu e cumprir sempreum imenso papel no mundo. Seu valor realmente decisivo para o estadoespiritual do indivduo; e, se este no o sente assim, isso basta parademonstrar que sua alma no est pronta a vibrar ao contato com as coisassuperiores. Em troca, dois caminhos se apresentam quele que reconheceua importncia da "coisa primeira." Ora, contm, a promessa do porvir, o

    motor que arrasta para frente, o impulso infinito: tal o caso dasindividualidades felizes, para quem a coisa primeira no mais que opresente, porm, o presente feito dessa coisa que se desdobra erejuvenesce sem cessar. Ou bem a coisa primeira no move nem anima, noindivduo, o indivduo: a fora que contm no para ele uma fora deimpulso e sim de repulso. Assim ocorre com as individualidadesinfelizes que se afastam sempre mais do "primeiro"; porm, se subentendeque isso no pode produzir-se seno em parte, por sua prpria culpa.

    A esse termo "primeiro", todos os que conhecem o contato com suaidia lhe associam uma nobre significao, e somente quando aplicado aelementos das esferas inferiores tem a acepo mais baixa. No te faltaroexemplos desta classe: as primeiras provas de um livro, a primeira vez quese experimenta uma roupa etc. Quanto mais possibilidades haja de queuma coisa se repita, menos tem valor seu carter primeiro. E o inverso:quanto maior seja a importncia da coisa que aparece pela primeira vez,em seu carter primeiro, menos possibilidades h de que essa coisa se

    repita. Tratando-se de algo eterno, ento desaparece toda a possibilidadede repetio. Dai que quando, com uma gravidade impregnada demelancolia, se fala das primeiras emoes de um amor como se no

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    devessem repetir-se nunca, no se desdenha o amor de modo algum; pelocontrrio, se lhe dispensa o elogio mais profundo, posto que se v nele o

    poder eterno. Assim consentindo uma pequena digresso filosfica, no minha pena, mas ao meu pensamento, Deus se encarnou somente uma vez,e seria vo esperar que esse fato se repetisse. Podia faz-lo

    freqentemente no paganismo, precisamente porque no se tratava entode uma verdadeira encarnao. Do mesmo modo, o homem s nasce umavez, sem possibilidade alguma de repetio, e a metempsicose ignora essevalor do nascimento. Aclararei meu pensamento com alguns exemplos:saudamos com certa sensao de solenidade a primeira folha, a primeiraandorinha. Assim sentimos pela idia que isso suscita em ns. Aqui, o quese oferece em seu carter primeiro no o primeiro em si, ou seja, a

    primeira andorinha tomada isoladamente. Uma gravura representa Caim

    matando Abel: ao fundo vemos Ado e Eva. E no me resolvo dizer se agravura valiosa, porm, a legenda explicativa sempre me interessou:prima caedes, primi parentes, primus luctus: o primeiro homicdio, osprimeiros pais, a primeira dor. Aqui, a coisa primeira apresenta novamenteuma significao profunda: nossa reflexo versa sobre a coisa em si,apesar de dizer respeito mais ao tempo que ao sujeito, pois no se v acontinuidade que, com a coisa primeira, estabelece o todo. O todoentende-se naturalmente como o pecado que se transmite na espcie. O

    primeiro pecado, concebido com a queda de Ado e Eva, orienta melhor opensamento para o contnuo, porm a natureza do mal no tercontinuidade, (compreendes facilmente porque no tomo este exemplo).Vejamos, porm, outros. Como se sabe, vrias seitas muito estritas daCristandade tomaram as palavras da Epstola aos Hebreus sobre aimpossibilidade, para os que um dia viram a luz, de converter-senovamente, se caem em apostasia, e as invocaram para mostrar que agraa de Deus tem seus limites. Aqui, se reconhece o valor da "coisa

    primeira": a vida crist aparece em toda a sua profundidade, e quem se

    engana uma vez est perdido. Apesar de, nessa concepo, o elementoestar demasiado circunscrito s condies do temporal, o exemplo podeservir-nos para compreender como a "coisa primeira" o todo, asubstncia integral. Porm, se o que se d a conhecer na "coisa primeira"depende de uma sntese do temporal e do eterno, todas as minhas anlisesanteriores parecem, desde logo, conservar seu valor. A "coisa primeira"contm implcita e secretamente a totalidade. E portanto no meenvergonho de referir-me s primeiras emoes de um amor. Para os

    felizes, esse primeiro instante , ao mesmo tempo, o segundo. o terceiro, oltimo, porque aqui determinao de eternidade; e para os desventurados o momento, e se converte em uma determinao da temporalidade. uma

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    vez dado, para uns um presente e para outros um passado. E na medidaem que a reflexo atua sobre os primeiros, fortifica o amor, atendendo aoeterno que este comporta, enquanto o que o destruir se atende a seuaspecto temporal. Assim, para aquele em que a reflexo se exerce segundoo tempo, o primeiro beijo, por exemplo, ser um passado (como o provou

    Byron em um pequeno poema); e para aquele em quem se exerce, segundoa eternidade, uma possibilidade eterna.

    3.

    Tudo isso se refere ao predicado de primeiro, que aplicamos aoamor. Levarei a cabo agora um exame mais detido dessa paixo quechamei tambm de amor-instinto. Recorda antes, porm, te peo, a

    pequena contradio a que chegamos quando eu dizia que a paixo possuia substncia integral: no ser mais inteligente provar dela um pedao e, aseguir, passar a uma segunda emoo do amor? Porm, isso seria brincarcom a paixo: no s se desvanece, como tampouco teremos o momentoseguinte. Porm, se refere substncia, o s na medida em que sejamosfiis; e se assim , no resulta de uma segunda emoo do amor? No,

    porque por essa mesma persistncia, acaba por ser a primeira quando a

    reflexo se refere eternidade.Salta vista que certos filisteus, presumindo estar na idade em que

    convm procurar uma companheira (talvez pelos apelos matrimoniais dealguma revista), excluam a paixo de uma vez por todas, e que essamesquinha condio burguesa no pode ser considerada como antecedentedo amor. No h dvida. Eros poderia compadecer-se o suficiente desseshomens para faz-los enamorarem-se. Bastante compaixo, digo, porquese necessita de uma dose extraordinria para despertar no homem, o mais

    sublime dos bens terrestres, como o sempre a paixo, mesmoinfortunada. Porm, o infeliz ento se converte sempre em uma exceo etampouco seu estado anterior nos instrui. Se acreditamos nos sacerdotesda msica mais dignos de f nesse setor, e nos detemos, por exemplo emMozart, descrevemos melhor o estado que precede o amor, porque o amorcega as pessoas. Quem o sente, perde, por assim dizer, a capacidade dever. Eis o que observamos em sua pessoa: se interioriza, contempla suaviso interna, ao mesmo tempo em que se esfora constantemente por

    voltar os olhos para o mundo que o cegou, e sobre o qual fixa suas vistas. um estado de sono, e sem dvida de busca, que Mozart mostrou comtanta sensualidade como espiritualidade no jovem pajem de Fgaro. O

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    amor, ao contrrio, est perfeitamente desperto, tem uma viso absoluta, e preciso que reparemos nele se no queremos maltrat-lo. Volta-se paraum objeto real, nico e preciso, que s para ele existe, com excluso detodo o resto. Esse objeto nico no existe dentro de contornos imprecisos; um ser vivente e determinado. Esse amor imediato comporta um

    momento de sensualidade, de beleza, embora esteja longe de serunicamente sensvel. Essa a parte de necessidade implicada na paixo.Como tudo que eterno, comporta uma dualidade, posto que toda aeternidade, olhando-se para trs a pressupe, assim como para o futuro.Tal a parte de verdade que os poetas expressam to a mido com to

    belos acentos; parece aos enamorados que se amam h muito tempo, e tmessa sensao desde o instante em que se vem pela primeira vez. E tal a

    parte de verdade contida na inviolvel fidelidade cavalheiresca, que nada

    teme, nem conhece a angstia de pensar em algum poder capaz de separar.Porm, todo o amor , por natureza, uma sntese de liberdade e denecessidade; e aqui o igualmente. O Indivduo se sente livre dentrodessa necessidade em que pe em jogo toda a sua energia pessoal e sesente possuidor de tudo que existe. O modo que podemos, sem risco deerro, observar se um homem realmente ama: porque esse estado comportauma transfigurao, uma divinizao que dura toda a vida. Todos oselementos de discrdia vibram ento em unssono: em um instante, nosfazemos mais jovens e mais idosos que de costume, somos homens feitos,e no obstante, adolescentes, quase crianas; fortes e sem dvida fracos;somos, repito, uma harmonia cujos tons ressoam por toda a vida. Querocelebrar a paixo como uma das mais belas coisas do mundo, porm, nem

    por isso me faltar a coragem de ir mais longe e de v-la em dificuldades.

    Entretanto, temos primeiro outra tarefa. Aqui apresenta-se j umadvida semelhante que veremos aparecer na relao entre a paixo e omatrimnio. Um esprito religioso desenvolvido tem o hbito de dirigi-lo

    todo a Deus, de penetrar e fecundar com esse pensamento toda acircunstncia finita, a qual, assim, enobrece e santifica. Parece grave, pois,nessas condies, deixar que tais sentimentos surjam na conscincia sem

    pedir conselho a Deus; porm, na medida em que lho pedimos, a situaofica alterada. Pois prprio da paixo tomar a pessoa de surpresa, e comoo resultado da surpresa involuntrio, no se v como seria possvelaconselhar-se com Deus. Tudo que se poderia alegar referiria-se .

    persistncia nesse sentimento; j o veremos mais adiante. Porm, no serpossvel ter um conhecimento antecipado da paixo na medida em que ,como tal, ignorante de Deus?

    Dedicarei agora algumas palavras ao matrimnio cujo carter

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    decisivo , no para tal indivduo, e sim em relao outra pessoa ou outra coisa, e no qual o indivduo no alcanou a liberdade. Essa a tristeforma que achamos no caso em que o indivduo tenta suscitar no objeto deseu amor, por meio da magia, ou por outros artifcios semelhantes, que o

    pem em relao com as foras da natureza. Uma forma mais nobre

    aparece no que poderamos chamar o matrimnio puramente religioso. (Naverdade, o matrimnio no est naturalmente desprovido do elementoreligioso, porm, comporta por sua vez o elemento ertico.) Quando, porexemplo, Isaac pergunta a Deus, com toda a confiana e humildade, qual a mulher que deve escolher; quando, pondo sua esperana em Deus, enviaum servo para busc-la, em vez de ir ele prprio, porque seu destino estentregue nas mos de Deus, essa conduta certamente bela, porm, nooutorga ao ertico o que lhe devido. Recordemos tambm que o Deus

    dos judeus, apesar de toda a sua abstrao, estava em todas ascircunstncias da vida de seu povo, muito prximo, e sobretudo prximo aseus eleitos, e que se bem que fosse esprito, sua espiritualidade no eratal que no se preocupasse com as coisas terrestres. Isaac podia, pois, atcerto ponto, esperar com certeza que Deus escolheria uma mulher jovem,

    bela, honrada entre o povo e amvel em todos os sentidos; sem dvida,aqui falta o elemento ertico, mesmo admitindo que Isaac amasse a noiva,eleita por Deus; com toda a paixo da juventude. Faltou, entretanto, oelemento liberdade.

    4.

    Vemos s vezes, no cristianismo, uma mistura vaga, ainda quesedutora por essa impreciso e ambigidade, do ertico e do religioso.Impregnam-na, em grau igual, o desembarao travesso e a piedade

    ingnua, encontramo-la, sobretudo, no catolicismo, e entre ns, numestado mais puro, no povo. Imagina (e o fazes com prazer, estou certoporque uma situao interessante), imagina uma alde provocante,dissimulada, sem dvida em seus olhares, semelhante a uma flor s efresca, porm, cuja tez esconde algo que se assemelha, no a uma certamorbidez, porm, a uma sade mais bela. Imagina essa jovem, na noite de

    Natal, s cai sua alcova, mais de meia-noite, porm, o sono que lhe vemcomumente regular, se lhe escapa, e ela experimenta o encanto de umadoce inquietao. Entreabrindo a janela, contempla o espao infinito, emsua solido povoada de estrelas silenciosas; um ligeiro suspiro alivia suaalma, fecha a janela, e em tom grave, apesar de pronto a subir, eleva sua

  • 8/12/2019 Kierkegaard, Soren - Matrimnio

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    splica:

    Oh! Santos Reis, os trsmostrem-me esta mesma noitea quem servirei a mesa

    e prepararei a cama,cuja esposa serei,cujo nome levarei.

    E ento, sadia e alegre, deita-se. Verdadeiramente, os Santos Reisenvergonhar-se-iam se no a atendessem; e pouco importa dizer-te queno sabemos em quem pensa. Sabemos muito bem; pelo menos se todos osaugrios da natividade no so um embuste, ela o sabe suficientemente.

    Voltaremos, porm, paixo. a sntese da liberdade e danecessidade; o indivduo sente-se atrado para o outro por uma forairresistvel; porm encontra justamente nisso sua liberdade. Esse amor tambm a sntese do geral e do particular, e contm a um e outro se bemque dentro dos limites da sorte. E no tem todos esses caracteres comoconseqncia da reflexo: tem-nos de uma maneira imediata. Nestesentido, quanto mais precisa e deprimida seja a paixo, mais possibilidadetem de ser realmente amor-instinto. Os enamorados so atrados um para ooutro por uma fora irresistvel, e sem dvida, gozam disso com toda aliberdade. J nada podem os pais insensveis, nem as esfinges que tenhamque vencer primeiro, e eu sou suficientemente rico para prover-lhes de umdote (alm disso a tal no me propus, como os novelistas e dramaturgos,tomar todo o tempo, para tormento de todos: amantes, leitores eespectadores). Portanto, em nome de Deus, deixemos que se unam. J vsque fao o papel de pai generoso, papel magnfico se no o tivssemosridicularizado to freqentemente. Observaste a expresso "em nome de

    Deus" que minha linguagem paternal emprega; podes aceit-la em umancio que talvez nunca tenha sabido o que a paixo ou que a tenhaesquecido h muito tempo. Porm, quando um homem, ainda jovem, ecom entusiasmo no amor, se permite utilizar essa expresso, tens direitode admirar-se.

    A paixo comporta toda a segurana de imediato, do espontneo;no teme perigo algum, desafia o mundo inteiro, e somente deseja queencontre sempre as coisas to fceis, porque no coloco nenhum obstculo

    em seu caminho. Pode ser que, ao proceder assim, no lhe preste nenhumauxlio e que observando bem, o torne desgraado por esse mesmomotivo. Na paixo, o indivduo dispe de uni enorme poder, e a falta de

  • 8/12/2019 Kierkegaard, Soren - Matrimnio

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    obstculos lhe desagradvel como seria para um audaz cavalheiro, donode uma espada capaz de fender rochas, ver-se transportado a um desertode areia, onde no houvesse um ramo sequer para cortar. A paixo suficientemente firme; no necessita apoio e se algum fosse requerido, ocavalheiro diria que no se trata de paixo. Isso parece claro, porm,

    tambm evidente, que me encontro em um crculo. Vimos anteriormenteque o erro do amor romntico consiste em conceber o amor como um an-

    sich abstrato, como uma entidade, e que todos os perigos que v e desejaso, em seu carter estritamente exterior, completamente estranhos aoamor mesmo. Recordamos que a questo se complica quando os perigosvm de fora. Ao que o cavalheiro no deixaria de replicar: sim, porm,como seria possvel? No caso afirmativo, no se trataria de paixo. Comovs, o problema no fcil. Poderia recordar que nos enganamos se

    atribuirmos reflexo um papel simplesmente destrutivo; tambmsaudvel. Porm, como minha tarefa principal mostrar que a paixo podesubsistir ao matrimnio, vou desenvolver um ponto que indiquei maisacima: mostrarei que se pode passar a uma concentricidade superior, e que

    para isso no se necessita da dvida. Logo mostrarei que cabeessencialmente paixo chegar a ser histrica, e que o matrimnio

    precisamente a condio para isso, enquanto que o amor, segundo oentende o romantismo, no tem tal carter histrico, por mais capazes quesejamos de acreditar infolio nas faanhas do cavalheiro romntico.

    A paixo tem a segurana do imediato; porm, os indivduos tm, aomesmo tempo, um ser religioso. meu direito, e mesmo diria meu dever,

    pressup-lo, posto que minha tarefa mostrar que a paixo e omatrimnio so compatveis. A questo , pois, naturalmente distintaquando uma paixo desventurada