koyrÉ, alexandre. galileu e platão

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    PANFLETOS GRADIVA1. H. Shelman

    A From;:o antes da Revo/w;aoMichael Mullett

    A Comra-ReformoMarlin BlinkhornMussofini e 0 iloNa Fascisla

    David Arnold A Epoca dos Descobrimenlos / 1400-/600

    Conceiyiio Coelho Ferreira Natercia Neves Simoes

    A Evo/urao do PensamenlO GeograflcoAlexatldre KoyreGafileu e Pta/ao

    A PUBLICARP. M. Harman

    A Revofuriio Cien/fjica

    I II

    Alexandre Koyr';

    Galileu e PlataoeDo Mundo do mais ou menos)}ao Universo da Precisao

    Tradmrao revista por JOSE TR1NDADE SANTOS, da Faculdade de Letras da Universidade Classica de Lisboa

    grodil.O

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    T r a d u ~ o Maria Teffsa Bri/o CliradoRevisao do te,'Cto: Manuef Joaqulm VieiroFOlocomposiliio: D ilor GUe"l"iro Rosor/oImp ressao e BcabBmento: Gr4flca BarbfJsa & Somos, L. t",Cab(!fo de MontachiqlJeGradi va - Publicao;5es, L.dRua 1. de Maio, 134, 3,, esq . - Telef. 6472 99HOi LisboQCodex

    NOTAOs dais estudos ora apresentados aos lei/ores

    de lingua portuguesa Joram origina/mente publicados em 1943 e 1948. Polemicamente inovadores,as pontos de vista que deJendem opunham-se ascon-entes da epistern%gia e his/aria das c i ~ n c i a s da ~ p o c a , Jorlemente marcadas por tendenciasempiristas e positivislas. Contra eslas. Koyre sustenta duas teses capitais. A primeira deJende queas conquistas do pensamenta antigo devem serexaminadas a luz das categorias do tempo emque surgiram. e nao segundo os pontos de vislaactuais. A segunda aparece-nos como uma apaixonada deJesa da ideia: uma rec/amardo dos direiLOs da i m a g i n a ~ a o leon'ca contra os da realizartlo pratica.

    As /eses de Koyre anunciavam hd meio s ~ c u / o o estilo que as investigariJes em epistem%gia,hist6ria e filosofia das ciencias viriam a apresenlar nas decadas de 60 e 70 , sobretudo a partir de duas obras de enorme projeerdo: The Logic7

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    of Scientific Discovery, de Karl Popper, e Structureof Scientific Revolutions, de Thomas Kuhn'.Mas, para alem da mensagem)) de Koyre,hd ainda a clareza, a frescura da sua exposifiioe a agi/idade do discurso. Aspectos ainda maisvalorizados hoje pela circunstdncia de a p o s i ~ d o de Koyre ir no sentido das c o n c e p ~ 6 e s mais divulgadas na actualidade. Parranto - e mesmo quenao houvesse oUlras raz6es -, estas ja seriambastantes para enal/eeer os meri/os destes daispequenos mas importantes eSlUdos, cuja oportunidade e sobremaneira evidente. Sublinha-se aindao interesse destes lex/os como indispensQvel instrumento de apoio a estudantes e professores deFiloso./ia no ensino secundario.

    Jose Trindade Santos

    Originalmente publicada em 1934, a Logik der Forschung s6 veio a torn3:r-se urna das obras rnais importantesda epistemologia actual ap6s a sua tradulflo em ingles, em1959. Pelo seu lado, a Structure of Scientific Revolutionsaparece em 1962, como segundo vo lume da InternationalEnciclopedia of Unified Science, publicada pela University of Chicago Press . Mas a vigencia destas obras prolonga-se ainda para atem da decada de 70.8

    I,

    Galileu e Platao

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    j

    o nome de Galileo Galilei eneontra-se indissoluvelmente Jigado A r e v o l u ~ a o cientifiea do secufaxVl; wna das mais profundas, se nAo a maisprofunda revolu,ao do pensamento humano depois da descoberta do cosmo pelo pensamento grego:urns r e v o l u ~ 4 o que impliea uma mutaI;8o inteleetual radical, de que a cieneia fisiea modem ,ao mesmo tempo, expressao e fruto I .Esta revolulf30 e por vezes caracterizada e explicada simultaneamente por uma especie de revolta espiritual, por urns t r a n s f o r m a ~ i ! o completade tods s stitude fundamental do espirito humano,tomando a vida activa, vita acliva , 0 lugar da theo na, vita contemplativa , que ate entao havia sideconsiderada a sua forma mais elevada. 0 homem

    I Cf. 1. H. Randall, Jr., The Making 0/ {he ModernMind, BOston, 1926. pp. 220 e segs . e 231 e segs.; cr. tam bem A. N. Whitehead , Science and the Modem World,Nova Iorque, 1925.11

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    modemo procura dominar a natureza, aD passo queo homem medieval ou antigo se esfon;ava, antesde mais, por a eontempiar. Deve, pois, explicar-sea tendimcia meeanista da fisica classica - fisicade Galileu, de Descartes, de Hobbes, scientia activa,operativQ - , que devia tomar homem dono esenhor da natureza, por este desejo de dominar,de agir. Deve-se considera-Ia como decorrente muitosimplesmente desta atitude, como aplica,Ao a natureza das categorias do pensamento do Homo faber',A ciencia de Descartes - afor/ion, a de Galileu nAo e mais (como ja foi dito) do que a ciencia doartesao ou do engenheiro) .

    Esta explica,Ao nAo me parece, devo confessai o , inteiramente satisfat6ria. E verdade, bern en tendido, que a filosofia modem a, tal como a eticae a religiilo modemas, pOe a t6nica na ac,ilo, n.

    praxis, bern mais do que 0 faziam 0 pensamentoantigo e medieval. 0 mesmo e verdade aeerca eaciencia modems: penso na fisica cartesians, nassuas comparsc;oes com roldanas, eordas e alavancas , Contudo, a atitude que acabilmos de descrever e muito rnais a de Bacon - cujo papel fia historia das ciencias nao e da mesma ordem _ quea de Galileu ou de Descartes , A ciencia destes niloe de engenheiros ou anesaos, mas de homens cujaJ E preciso nl o confundir esta c o n c e ~ a o largamente

    difundida com a de Bergson, para quem 100a a fisica , quer aaristotelica, quer a newtoniana , e, em Ultima analise, obrado Homo faber.) Cf. L. Laberthonniere, Eludes sur Descartes >Paris,1935, II, pp. 288 e segs., 297 e 304: (Physique de \'expUcitation des chases.Bacon e a arauto, 0 buccinator da ci!ncia modema,e nilo urn dos seus criadores.12

    obra raramente ultrapassou a ordem da teona 5.A nova balistica foi elaborada, nao por arHficesou srtilheiros, mas contra eles. E GaJileu nao aprendeu 0 seu oficio com aqueles que se atarefavamnos arsenais e estaleiros navais de Venez8 . Muitopelo contrArio: ensinou-lhes 0 dele.r: 6 . Alem di sso,\i J A ciencia de Descartes e de Galileu foi, bern entendido, exttemamente importante para a engenheiro e 0 tecnico;cia provocau, finalmeote, uma r e v o l u ~ i tecnica. Todavia ,nAa foi criada e desenvolvida par engenheiros e t t ~ c n i c o s , mas sim por te6ricos e fil6sofos.

    6 ( Descartes artesio e a c o n c e p ~ A o de cartesianismoque Leroy deseovolveu no seu Descartes Social, Paris, 1931 ,e P. Borkenau levou 80 absurdo no seu livro Der Ob ergongvorn jeudalen zum burgerlichen Weltbild, Paris, 1934.Borkenau explica 0 nascimento da filosofia e da ciencia cartesianas por uma nova forma de empreendirneoto econ6mico,isto e, a manufactura. Cr. a critica do livre de Borkenau, critica muito mais interessante e instrutiva que 0 prOprio Iivro,feita por H. Grossman, Die gese\JschafUichen Grundlagender mechanistischen Philosophie und die Manufaktun), inZe;lschrift fUr Sozial/orschung, Paris, 1935.

    Quanto a Galileu, encontra-se ligado as tradiy6es desan.esAos , consttutores, engenheiros, etc ., do Renascimentopor L. Olschki. Galileo und seine Zeit , Halle, 1927, e maisrecentemente por E. Zilsel , The sociological rools off: science, in The American Journal 0/ Sociology, xLvn,1942. Zilsel sublinha 0 papel desenvolv ido pelos arteslosqualificados do Renascimento na expansao da modemamentalidade cientlfica. Como e sabido, e verdade que os ar tistas, engenheiros, arquitectos, etc., do Renascimento tiveram urn papel importante na luta contra a tradi9Ao aristotelica e que alguns deles - como Leonardo da Vinci e Benedetti - procuraram mesmo desenvolver urna dinAmlca nova,antiaristoti:lica; todavia, esta dinimica , como 0 mostrou demodo concludente Duhem, era, nos seus aspectos principais ,ados nominalistas parisienses, a dinAmica do impetus deJean Buridan e de Nicolau Oresme. E, se Benedetti, de longe

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    esta teoria explica demasiado e demasiado poueo.Expliea 0 prodigioso desenvolvimento da cienciado scculo xvn pelo da tecnologia . Todavia, esteultimo e muito menos marc ante que 0 primeiro.Por Dutro lado, esquece as conquistas tecnicas daIdade Media . Negligencia 0 apetite de poder e deriqueza que inspirou a alquimia 80 longo de todaa sua hist6ria.

    Quiros eru

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    A dissoluc;ao do cosmo signilica a destruic;aode uma ideia: a de urn rnundo de estrutura finita.hierarquicamente ordenado, de Urn mundo qualitativamente diferenciado do ponto de vista ontolo_gico. Esta esubstituida pela de urn universo aberto,indetinido e meSrno ate infinito, que as rnesmasleis universais unificarn e governpm. Urn universono qual todas as coisas pertencem ao mesmo nivelde Ser, ao contrario da c o n c e ~ ~ o tradicional, quedistinguia e opunha as dais mundos do ceu e daTerra. As leis do ceu e as da Terra sao, a partirde agora, fundidas em conjunto. A astronomia e aEisiea tornam-se interdependentes, e rnesmo unificadas e unidas 1) , Is50 impliea a d e s a p a r i ~ a o , daperspectiv8 cientifica, de todas as c o n s i d e r a ~ 6 e s baseadas no valor, na p e r f e i ~ i i o . na harmonia, nasignific8y80 e no designio I", que desaparecem no

    espat;o infinito do novo universo. E neste novo uni verso, oeste novo mundo duma geometria tomadareal, que as leis da ffsica classica encontram valore aplica,iio.I ) Como procurei mostrar nootro lado (Etudes gaJiMennes, fII , Galile et fa tof d'inelTie, Pari s, J940), a ci!ncia modema resulta desta unific8vlo da astronomia e da fisica, que Ihe permi(e aplic8r os metodos de pesquisa matematica , utiJizados ate entAo no estudo dos fen6menos celestes, ao estudo

    dos fenomenos do mundo subJunar. I< cr. E. Brehier, Histo;re de laphilosophie . t. IT. CascoJ,Paris, 1929, p. 95 : (( Descartes liberta a fisica do domlnio

    do COsmo nelenico, isto e, da imagem de um certo estadoprivilegiado de coisas que salisfaz as nossas necesSidadesesteticas ... NAo ha estado privilegiado, uma vez que todosas estados sAo equivalentes. Nllo ha, portanto , lugar emfisica para a procura das causas finais e a c o n s i d e r a ~ l 1 o domelhor.

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    A dissolwyao do cosmo, repito-o, eis 0 que mepurece se r a revoluc;ao mais profunda realizada ausofrid8 pelo espirito humane depois da invenc;Aodo cos mo pelos Gregos. E uma revoluc;ao tao profunda . de ccnsequencias tilo longinquas . que , durRn te steulos, as homens - com raras except;oes,entre as quais Pascal - nac se apercebe.ram dose u alcance e sentido; e ainda agora e frequentemente subestimada e mal cornpreendida.o que os fundadores da ciencia modema, eentre eles Galileu, deviam entAo fazer nao eracritical' e combater certas teorias erradas , para assubstituir por outras melhores. Deviam fazer algocompJetamente diferente: destruir urn mundo esubstituf-Io por outro, refonnar a propria es!rutur.da nossa inteligencia, fannular de novo e rever osseus conceitos. conceber 0 SeT de wna nova maneira,claborar urn novo conceito de conhecimento, urnnovo conceito de ciencia - e mesmo ate substituirurn ponto de vista bastante natural, 0 do senso comum.por urn outro que 0 nt\o e de modo algum u.Isto explica por que razlio a descoberta de co i50S. de leis, que parecem hoje tao simples e facelsque 8S ens in amos as criant;as - l e i s do movimento,lei da quoda dos corpas - exigiu urn esforc;o taolongo, tao .rduo, frequentemente vao, de alguns dos

    I, cr. P. Tannery. GaiMe et les principes de 18 dynamlquc)). in Mcmoires scienti/iques, VI, Paris, 1926 , p. 399:~ ( S e . pIlI&. julgannos 0 sistema dinamico de AristOteles, absIJllirmos os preconceitos que decorrem da nossa edUC88.0modema, se procurarmos colocar-nos no estado de espiritoque podia ler um pensador independente do c o m e ~ o do seculo xvn, e diflcil nao reconhecer que esse sistema est!muito mais de acordo com a o b s e r v a l r ~ o imediata dos factosque 0 nosso.

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    maiores gentos da humanidade, urn Galileu . urnDescartes 16 . Este facto, por seu lado, p a r e c erefutar as tentativas modemas de minimizar, oumesmo negar, a originalidade do pensarnento deGali1eu , au, pelo menos, 0 seu caracter r e v o l u c i o ~ nario; e torna igualmente manifesto que a aparentecontinuidade no desenvolvimento da fisica, da IdadeMedia aos tempos modernos (continuidade queCavern! e Duhem tao energicamente sublinharam),e ifus6ria 11. E verdade, bern entendido, que uma

    16 Cf. os me us Etudes gali/eennes, n, La fo j de 10 chutedes corps, Paris, 1940.n Cf. Cavern i, Stan'a del metodo sperimenla le il / Itafio > 5 vol s. , Firenze, 1891-96. em particular os vol s. IVe v; P. Duhem, Le Mauvement obsofu et Ie mouvemenr

    relo/if, Paris, 1905 ; (De l'acceleratiOD produite par unerorce constante )) , in Congres inrernaHonal de l'His/oire desSCiences, 3.- sessAo, Geoebra, 1906 ; Etudes Sur Leonardde V;nci: Ceux qu 'iJ a fus et ceux qui rom Ju . 3 vol s. ,Paris, 1909-13, em particular 0 vo l. Il l Les precurseursparisiens de Galilee . Muito recentemente, a lese da continuidade foi defendida por J. H. Randall, Jr ., no seu brilhanteartigo ( Scientific method in the school of Padua) , in Journalof the History of Ideas , I, 1940; Randal! mostra de modocon vincente a e l a b o r a ~ A o progressiva do metodo de resoluc;ao e c o r n p o s i ~ 4 o no ensino dos grandes IOgieos do Renascimento. Contudo, 0 proprio Randall declara que

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    nao corresponde senao muito grosseiramente a estadi visao. poderiamos distinguir grosso modo a hi stDria do pensamento cientifico em tres eta pas auepocas, que correspondem, por sua vez, a tres ti pos diferentes de pensamento : a risica aristotelica,primeiro em seguida , a fisica do impetus>saida ,como tudo 0 mais , do pensamento gregG e elaborada no decurso do seculo X IV' pelos nominalistasparisienses; fmaimente , a fisica modema, matematica, do tipo da de Arquimedes ou de Galileu.Estas eta pas podem ser encontradas nas obrasdo jovem Galileu : nao s6 nos informam em celac;ao it hist6ria - au a pre-hist6ria - do seu pensamento, ace rca dos mobiles e motivos que 0 dominacam e inspiraram , mas tamoom nos ofere cern.ao mesmo tempo, compilado e, por assim dizer,clarificado pela admiravel inteligencia do seu autor,urn quadro notavel e profundamente instrutivo detoda a hist6ria da fisica pre-galilaica. Recordemosrapidamente esta hist6ria, comec;:ando pel a fisicade Aristoteles.A fisica de Arist6teles e fal sa, bern entendido,e cornpletamenle ultrapassada. Todavia , euma i sica , quer dizer, urna cimcia altarnenle elaborada,ainda que 0 nAo seja matematicamente 21. Nao see Le Sys(eme du monde, 5 vols. , Paris. 1913- 17) e aDs deLynn Thorndike; cf. a sua monumental History of Magicand Experimental Science, 6 vo ls., No va torque, 1923-4l.Cf. igualmeme F . J. Dijksterhuis. Waf eft Warp , Groninga ,1924.

    11 A fisica aristoteliea e, por essencia, nao maternatiea.ApresenU.-la , como 0 fal Duhern (De J'acceltrarion produitepar ufte force cons(aftte, p. 859), como simplesmente fundada sobre urna outra f6rmula 'malematlea que nAo a nossae urn erro.

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    trata de urn imagin ario pueril ou de urn enunciadologomaquico grosseiro do senso comum, mas deuma teoria, isto e, de uma doutrina que, partindonaturalmente dos dados do sensa comum. os submete 8 urn tratamento coerente e sistematico 12.Os faclOs , ou dados, que servern de fundamentoa esta elaboraf1ao teorica sao Jnuito simples e, napratic3, admitimo-Ios exactamente como 0 faziaArist6teles. Achamos todos (matural ver 4m corppesado cair ((para baixo, Exactamente como Arist6teles , ou Sao Tomas, ficariamos profundarnenteespantados ao ver urn grave - pedra ou touroelevar-se livremente no ar. Isso parecer-nos-ia muitocontra natura e procurariamos explica-Io por qualquer mecanismo oculto.

    Do mesrno modo, achamos sempre naturalver a chama de urn f6sforo dirigir-se para 0 altoe colocar as nossas panelas sabre 0 fogo. Ficanamos surpreendidos e procurariamos urna explic a ~ a o se vissemos, por exemplo, a chama virar-see apontar para baixo), Considerariamos esta conc e ~ A o ou, melbor, esta atitude, como pueril esimplista? Talvez. Podemos mesmo assinalar que,segundo A r i s t 6 t e l e s a ciencia o m e ~ a precisamentequando tentamos explicar 8S coisas que parecemnaturais . Contudo, quando a tennodinamica enuncia como urn principio que 0 calof passa de urncorpo quente a urn corpo frio, mas nAo de urn corpofrio a urn corpo quente, nao traduz simplesmentea intuityao do senso comum de que urn corpo quentese torna naturaimente)) frio, mas urn corpo frio nao

    n Frequentemente. 0 historiador modemo do pensamenta cieniJfico nso aprecia devidamente 0 caracter sistematico da fisica aristotClica.23

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    se torna naturalmente quente? E , quando declaramos que 0 centro de gravidade de urn sistematende a tomar a p o s i ~ a o mais baixa e nao se elevapor 5i s6, nao estaremos simplesmente a traduzirum a intuic:;ao do sensa comum, aqueJa mesma quea fisica ari5toteIica exprime ao distinguir 0 movimente natura \ do movimento violento ? 2)AM m disso, a fisica aristote!ica, tal como a termodinArnic3, nao se satisfaz com exprimir simplesmente na sua linguagem 0 facto do senso comumQue acabamos de mencionar, mas transp6e-no.A distiny80 entre movimentos natura is e movimentos violentos situa-se numa c o n c e ~ a o deconjunto da realidade fisica, concep

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    repouso no centro do mundo. Pela mesma razao ,e evidente que 0 movimento e necessariamente urnestado transitorio: urn movimento natural acabanaturalmente quando atinge 0 seu ftm. Quanto aomovimento violento, Arist6teles e demasiado optimista para adrnitir que este estado anormal possadurar ; atem disso, 0 movimento viotento e urnadesordem que gera desordem e acimitir que pudessedurar indefinidamente signiBcaria, de facto, aban donar a propria ideia de urn cosmo bern ordenado.Arisw teles mantem, pOrtanto, a creD

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    ferenda em r e l a ao qua] a coisa movida mudao sell ser ou rela9Ao; 0 que impliea - se exami nannos 0 movimento toeaJ _ .\0 a existencia dumponto fixo em relayao ao qual 0 movido se move,urn ponto fixe imutAvel ; 0 qual, evidentemente,nao pode ser senao 0 centro do universo. Por outrolado, 0 facto de cada mudanl(a, cada processo,ter necessidade, para se explicar, de uma causa implica que cada movimento necessita de urn motorque 0 produza, motor que 0 mantem em movimentodurante tanto tempo quanto 0 movimento dure.o movimento, com efeito, nao se mantem como 0repouso. 0 repouso - estado de privayao - naoprecisa da a"930 de uma qualquer causa para explicar a sua persistencia. 0 movimento, a mudan9a,qualquer processo de actualizayao ou de enfraquecimento e mesmo de aetualiza9ao au enfraquecimento continuo, n40 pede passar sem urna ta1 ae98o.Retirai a causa, e 0 movimento cessara. Cessantecausa cessat effectus 31,

    No caso do movimento natural)), esta causa,este motor e a pr6pria natureza do corpo, a suaformS)) , que procura r e e o n d u z i ~ l o ao seu lugar eque conserva, pois, 0 movirnento. Vice-versa, 0rnovimento que e contra naturam ex ige, duranteJD 0 movimento local - deslocamento _ nao e sen40

    uma especie, ainda que part.iculannente importante, de rna vimento ( k i n ~ s i s movimento no dominio do parcontraste com a al terar.;:!o . movim ento no dominio da qualidade, e a e r r u ~ a o movim ento no dominio do ser .]I Arist6teles tern perfeitamente. ralaa. Nenhum pro.cesso de m u d a n ~ a ou de devir se pode produzir sem causa.Se 0 movimento, na fis ica modema, persiste por si pr6prio,e porque nAo e mais do que urn processo.

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    toda a sua pennanencia, a aCC;ao continua de ummotor externo junto do eorpo movido . Retirai 0motor, e a movimento cessara . Separai-o do corpomovido, e 0 movimento paranl tambern . Arist6te les, a b e m o bern , nao admite a aC9ao a distAncia l ; cada transmissao de movirnento impliea, segundo ete, urn eontscto. Nao ha, portanto, senaodois generos de transmissao: a pressAo e a tracyao.Para fazer mexer urn corpo e neeess8rio empurra-io ou puxa-io . Nao hA outros meios. A fisica aristotelica fonna, assim, urna adminivel teoria coerente que, a bern dizer, nao apresenta senAo um defeito (para .iem de ser faisa) : 0 defeitode ser desmentida pelo facto quotidiano do I.ny. mento. Mas urn te6rico que se preza oao se deixaperturbar por uma objecyao extraida do sensocomHrn , Se eocootra urn facto que nao se quadra com a sua teoria, nega-the a t ~ n c j a . Se naoo pode negar, explica-o. E na e x p l i c a ~ A o deste factoquotidiano, do lanc;amento, rnovimento que continu a apes ar da a u s ~ n c i a de urn motor, facto aparent.emente incompativel com a sua teoria, queArist6teles noS da a medida do seu genio. A suaresposta consiste em explicar 0 movimento do projectil, aparentemente sem motor , pela reacy80 domeio ambiente, ar ou agua}) , A teona e urn golpede gonio. Infelizmente (para alem de ser falsa) , eabsolutamente impossivel do ponto de vista do senso

    comum. Niio e, portanto, de admirar que a crlticaII 0 corpO tende para 0 stu lugar natural, mas nAo e

    Ofrafdo por ele,l) cr. Arist6teles, Fisico , TV, 8, 215 a ; VIII , 10 , 267 a:Do Ct u, 111 , 2, 301 b. E . Meyerson, ldentile el rea ite , p. 84.

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    it dinamica aristorelica regresse sempre a mesmaquestio disputata: a que moveantur projecta?II

    Voltaremos dentro em pouco a esta questio ,mas devemos antes examinar urn outro detalhe dadinamica aristotelica: a negayao de tOOo 0 vazioe do movimento num vazio. Com ereito, nesta dinamica, urn vazio nao pennite ao movimento produzir-se mais facilmente; pelo contrario, toma-ocompletamente impossivel, e isto por raz6es muitoprofundas .Dissemos ja que, oa dinamica aristotelica, cadacorpo e coocebido como seodo dotado de urna tendcncia a encontrar-se no seu tugar natura) e a regre!:sar ao mesmO quando dele afastado por violencia. Esta tendencia explica 0 movimento naturalde urn corpo: movimento que a leva ao seu lugarnatural pelo caminho mais curto e mais nipido.Re sulta dai que todo 0 movimento natural se processa em linha recta e que cada corpo caminha emdirecc;ao ao seu lugar natural tao depressa quantopassivel; isto e, tao depress a quanto 0 seu meio,que resiste ao seu movimento e se the opCie, Ihopermite fazer. Se, por conseguinte, nAo houvesseo que quer que fosse que 0 detivesse, se 0 meioambiente nao opusesse qualquer resistencia ao movimento que 0 atravessa (caso do movimento numvazio), 0 corpo cncaminhar-se-ia para 0 seulugar com urna velocidade infinita 34. Mas tal mo-

    H cr. Arist6teles, Fisico, VII. 5, 249 b, 250 a ; Do Ceu ,m, 2, 301 e.30

    vimento seria instantaneo, 0 que - justamente pa risso - pareee absolutamente impossivel a Arist6teles. A eonclusao e evidente : urn movimento (natural) nao pode produzir-se no vazio. Quanto aDmovimento violento, por exemplo 0 de lanyar: urnrnovimento no vazio equivaleria a urn movimentosem motor; e evidente que 0 vazio nao e urn meiofisico e nao pode receber, transmitir e manter urnmovimento. Alem disso, no vazio (como no espa'1oda geometria euclidiana) nao hA lugares privilegiados ou direc90es. No vazio nao M, e nao podehaver, lugares naturais. Por conseguinte , urn corp

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    ceptiveis: quero dizer, os corpos da nossa experienciaquotidiana. 0 vazio e urn sem sentido J1 ; colocaras coisas num tal sem sentido eabsurdo n. Apenasos corpos geometricos podem se r colocados numespa90 georneUico.o fisico exam.ina coisas reais, 0 geometra raz6es a prop6sito de a b s t r a c ~ 6 e s Por conseguinte.defende Aristoteles, nada poderia ser rnais perigoso do que roisturar georneUia e fisica e apliearurn metodo e urn raciocinio puramente geometricosao estudo da realidade fisica .

    II IAssinalei ja que a dinlunica aristotelica, ape sar, au talvez por causa, da sua perfeic;ao teoriea,

    apresentava urn inconveniente grave: 0 de ser absolutamente nAo plausfvel, completamente incrfvel einaceitavel pelo bom senso e, evidentemente, emcontradic;ao com a e x p e r h ~ n c i a quotidiana maiscomurn. Na o admira, pois, que ela nunea tenhagozado de urn reeonhecirnento universal e que oscriticos e adversarios da dinarnica de Arist6telesIbe lenham sempre oposto a observa9ao de bornsenso de que urn movimento prossegue ainda queseparado do seu motor originArio. Os exemplosclassieos de tal movimento, rotalf3.0 persistente daroda, voo da fiecha, lan9amento de urna pedra,foram sempre invoeados para a eontrariar, desdeHiparco a Joao Fil6pono, de Jollo Buridan e Ni

    31 Kant chamava ao espa90 vazio uma Unding.11 Tal era, como sabemos. a opiniio de Descartes e deEspinosa.

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    colau Oresme a Leonardo da Vinci, Benedetti eGalileu ".Nao e minha inten9ao analisar aqui os argumentoS tradicionais que, desde Joao Fil6pon040,tern si do repet idos pelos adeptos da sua dinAmica.E posslvel classifica-Ios grosso modo em dois grupas: a) os primeirOS argwnentos sao de ordem ma terial e sublinharn ate que ponto e improvavel asupo si9ao segundo a qual um corpo grande e pesado _ bala , ma que rada , flecha que voa contrao vento _ possa ser movido pel a reacc;ao do ar ;

    )' Para a hist6ria da critica medieval de Arist6teles cf.as obras ciladas anterionnente (na nota 17) e B. Jansen eOlivi. c([)e r alteste scholastische Vertreter des heutigenBewegungsbegriffes . in Philosophisches Jahrbllch (1920);K.Michalsky , liLa Physique nouvelle et les difTerents couranlSphilosophiques au Xlveme s i e c l e ~ ) . in Bullerin internationalde l'Acadbr.ie polonaise des sciences et des {eUres (Crac6via , 1927); S. Moser, Grundbegrif1e der Naturphilosophiebei Wilhelm von Occam (Innsbruck, 193 2); E. Borchert,D ie Lehre von der Bewegllng bei Nicolaus Oresme (Munster.19 34) ; R. Marcolongo

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    b) os outros sao de ordem formal e assinalam 0ca racter contradit6rio da atribuiyao aD ar de urnduplo papel - 0 da resistencia e 0 de motor- ,bern como 0 caracter, i1us6rio de toda a teoria: estanao faz mais que deslocar 0 problema do corpopara 0 ar e encontra-se, por isso, obrigada a atribuir aD ar 0 que recusa a outros corpos: a capacidade de manter urn movimento separado da suacausa externa . Se e assim, pergunta-se: por querazao nao supor que 0 motor transmite ao corpomovido, ou th e imprime, qualquer coisa que 0 tornacapaz de se mover - qualquer coisa chamada dyna mis, virtus mOliva . virtus impressa, impetus.petus impressus, por Yezes [arza ou mesmo matia,e que e se mpre represe ntada como uma quaIquerespecie de poder ou de forya que pass a do motorao m6bil , e continua entao 0 movi mento ou , me lhor, produz 0 rnovimento como sua causa?E evidente, como 0 pr6prio Duhern reconheceu,que regressamos ao born senso. Os adeptos da fisicado impetus pensarn em termos de experiencia quotidiana. Nao e entao certo que necessitamos defazeT urn e s f o ~ o , de desenvolver e gastar f o r ~ a para move r urn corpa, por exemplo para empurrarurn carro, lanc;:ar urna pedra ou distender urn arco ?Nao e evidente que est a for

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    para saltar urn obstaculo e necessaria tamar ba Ilan90); que urn carro qu e Se empurra au puxa partelentamente e adquire velocidade a pouco e pouco;tambem ele toma balanl10 e adquire a sua forcaviva; do mesmo modo que cada urn - ate mesmauma crianc;a que atira uma bola - sabe que, paraatingir 0 objectivo com forl18, e necessaria colocar-se a uma certa distancia, nao demasiado perta , afim de permitir iI bola tomar veloeidade. A fisieado impetus nao tern dificuldade em explicar estefenomeno; do seu ponto de vista , e perfeitamentenatural que seja necessario algum tempo ao impe tus para se apropriar do mobil- exactarnente comoo calor, par exemplo, precisa de tempo para alastrar por urn corpo. A eoneeP9ao do movimento que fundamenta eapoia a fisica do impetus e cornpletamente diferente da da teoria aristotelica. 0 mo vimento ji l nao i'e interpretado como urn processo de actualizacrao.Contudo, e sempre urna mudan9a e, como tal, enecessario explica-lo pela aC9ao de uma for9a oude urna causa determinada. 0 impetus e precisamente essa causa imanente que produz 0 movimento,O qual e. converso modo, 0 efcito produzidopor cia. De ste modo, 0 impetus impressus produzo movimento; ele move 0 corpo. Mas, ao mesmotempo. desempenha urn outro papel muito impor

    depressa do que se a muralha estivesse menos pro:tima. Contudo, cabe a experiencia determinar se esta diferenya e , senslvel e duvido muho de todas as que eu proprio n40 fiz . \\Pelo contra rio, amigo de Descartes, Beeckman, nega peremptoriamente a possibilidade de uma aceler8yAo do pro Iectil e escreve (Beeckman e Mersenne. 30 de Abril 1630.cr. Correspondonce du P. Mersellne. Paris, 1936, IT, p. 457).

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    lante: ultrapassa r a resistencia que 0 meio opoeao movimento.Dado 0 caracter confuso e ambiguo da concep

    ~ a o de impelus, e muito natural que os seus doisaspectos e funltOe s devam fundir-se e que certosadeptos da dinamica do impetus cheguem a conclusao de que, pelo menos em deterrninados casosparticulares, tais como 0 mo vimento cirClllar dasesferas celestes OU , mais geralmente, 0 rolar de urncorpo circular sobre urna superffcie plana, ou ainda,em termos mais gerais, em todos os casos em quenao hit resistencia externa ao movimento. como novacuum, 0 impetus nao e n f r a q u e ~ a e permanec;aimortah). Esta visao de conjunto parece muitoproxima da lei da inercia e e, pais , particularmenteinteressante e importante notar que 0 proprio Galileu - que no seu De Motu nos da urna das meIhores exposi90es da dinarnica do impetus - negaresolutamente a validade de urna tal suposi9B.O eafuma com vigor a natureza essencialmente pereeivel do impetus.Evidenternente que Galileu tern razao. Se secompreende 0 movirnento como 0 efeito do impetusconsiderado como sua causa - uma causa imanente, mas nao intern a, a maneirn de urna natureza-, e impensavel e absurdo nao admitir quea causa ou forc;a que 0 produz deva, necessa riamente, gastar-se e consumir-se finalmente ne staproduc;iio. Nao pode permaneeer sem mudam;a durante dois momentos consecutivos , pelo que 0 movimento que produz deve necessariamente abrandare extinguir-se 42 . 0 jovem Galileu da-nos. assim,

    41 Cf. Galileo Galilei. De Motu , Opere. e d i ~ A o Nacional, I, pp. 324 e segs.37

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    uma liyao muito importante . Ensina-nos que a fl sica do impetus , ainda que co mpativel com 0 movimenta num vacuum , f , como a de Ari st6teles,illcompatfvel com 0 principio de inerda. Nao eesta a unica Iicrao que Galileu nos da a respeitoda Ci sic. do impetus . A segunda e, pelo menos,tao preciosa Como a primeira. ~ s t r a que, comoa de Arist6teles, a dinamica do impetus e incompativel corn urn metoda matem

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    Qualquer coisa que m10 afecta , de modo algum,o corpo dele dotado: estar em movirnento au estarem repouso e indiferente ' ao corpo em movimentoou em repouso, nao Ihe traz quaJquer mudan

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    corpos reais, que se de slocam num espa

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    reu por varias vezes, a tim de exp licar misteriosfisicos. Ma s Ari st6 teles defendia urn ponto de vistar\

    completarnente diferente e explicava as CITOS dePlatao pela importancia excessiva que aqueJe atribuia as matematicas n.Vemos que, para a consciencia cienttfica e filo s6fica da epees - Buonamici e Mazzoni mais naofazem do que exprimir a communis opinio , oposicrao , OU, melhoT, a linha de d e m a r c a ~ i i o entreo aristotelico e 0 plat6nico, e perfeitamente clara.Se reivindicais para as matematicas urn estatutosuperior, se, alem disso, ainda Ihes atribuis urnvalor real e uma p o s i ~ a o decisiva em fisiea , entaasois platonico. Se, pelo contrario, vedes nas matematicas urna c i t ~ n c i a abstracta , portanto de menorvalor do que as eutras - a riska e a metafisica, que tratarn do ser real se, em especial , sustentaisque a fisica nao necessita de qualquer outro fundamento senao a experiencia e deve edificar-sedirectamente sobre a perceP9ao, que as maternaticas devem conteotar-se em desempenhar 0 papelsecundario e subsidiario de urn simples auxiliar,e n t a ~ sois aristotelico.o que esta em causa aqui nao ea eerteza - nenhum aristotelico pas alguma vez em duvida a eertez. das proposi90es ou demonstra90es geometricas -, mas 0 e nem sequer 0 emprego dasmatemAtic as em fisiea - nenhum aristotelieo negou,

    $J Jacobi Mazzoni, Caesenatis, em Alma GymnasioPisano Aristotelem ordinarie Platonem vero ordinem profitentis)" in U"h'ersam Platon is ef Ansiotefis PhilosophiamPraeludia, sive de comparalione Pla/onis et Aris(o(elis.Veneza, 1597, pp . l 87 e segs.44

    jamais, 0 nosso direito a medir 0 que e mensunivele a eontar 0 que e contavel-, mas a estrutura daci encia e, portaoto, a estrutura do Ser.Tais sao as discussoes a que Galileu faz continuamente alusAo no decurno deste Did/ogo. Assim,logo no inieio, Simplicio, 0 aris.totclieo, sublinhaque, no que respeita as eoisas naturais, nao necessitamos sempre de procurar a necessidade das demonstrayoes matem:iticas j4 . Ao que Sagredo, quese concede 0 prazer de nao eompreender Simplicio,replica: Naturalmente, quando nao a podeis atingir. Mas , se vos for passivel, porque nao ?) Naturalmente. Se e passive!, nas questOes relativas ascoisas da natureza, atingjr uma d e m o n s t r a ~ a o dotada de rigor matematico . por que razao nao deveri amos tentar faze-Io ? Mas sera que isso e possiyeP Eis exactamente 0 problema. E Galileu, a margem do livro , resume a discussao e exprime verdadeiro pensamento do aristotelico: Na s demonstrayees relativas it natureza , diz ele, nao devemos procurar a exactidao matematica .)) NAo devemos . Porque? Porque e imposs(vel. /Porque a natureza do seT fisieo equalitativa e vaga.Nao se confonna com a rigidez e a precisao dosconceitos matematieos. E sempre mais ou menos. Portanto. como aristotelieo nos explicaramais tarde, a filosofia, que e a ciencia do real , naoprecisa de examinar os detalhes nem de reeorreras detenninayoes numericas para formular as suasteona s sobre 0 movimento; tudo 0 que deve fazere eournerar-lhe as principais categorias (natural,

    ,. Cf. Galileo Galiiei, Dialogo sopro i due Massim iSfstem; del Mondo, Opere . e d i ~ A o Nacional , Vll, 38 . p. 256.45

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    vioiemo, rectilinio, circular) e descrever-Ihe asHtrac;os gerais, qualitativos e abstractos ,o leitor modemo esta provavelmente lange dese sentir convencido por esta p l c a ~ a o e acha di ficil admitir que a filosofia tenha devido contentar-se com uma generaliza,ao abstracta e vaga enao tenha tentada estabe lecer leis universais pre

    cisas e concretas. 0 leitor moderno nao conhecea verdadeira razao desta ne cessidade, mas as ca n temporaneos de Galileu conheciam-na mu ito bern.Sabiam que a qualidade, tal como a forma, sendopor natureza nao matematica, nao podia ser ana lisada em termos maternaticos. A fisica nao e geometria aplicada. A materia terrcstre nao pode mostrar fonnas matematicas exactas: as foemas nuneaa inforrnam completa e perfeitarnente. Subsistese mpre um a distanci a. Nos c"us, be rn entendido,as eoisas passam-se de out ra maneira; par conseguinte, a astronomia matematica epossivel. Mas aastronomia nao e a fisica . Que isto tenha escapadoa PIa tao, eis prccisamente a seu crro e 0 dos seusadeptos. t inutil tentar edificar uma filosofia matematica da natureza. 0 empreendirnento esta condenado ainda antes de come,ar. Nao conduz ave rdade, mas ao eITo.({Todas estas subtilezas matematicas, explicaSimplicio, (SaO verdade iras in abstracto . Mas, aplicadas amateria sensivei e fisica , nao funcionam .n'6

    Na verdadeira nature za nao ha nem circulos, nemtrianguios, nem linhas Teetas , E, portanto, inu tilaprender a linguagem das figuras matematicas : naoH Cf. Dia/ogo, p. 242 , " [bid" pp . 229 e 423 .

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    Ie nelas que esta escrito, a despeito de Galileu ede PlatAo, 0 livro da natureza . Com efeit o, issonao e somente inutil, e perigoso : quanta mais urnespirito esta acostumado a precisao e a rigidez dopensamento geometrico, menos capaz sera deapreender a dive rsidade m6vel, mutavel , qualitativamente detenninada. do Ser.

    \ Esta atitude do aristotelico nada tern de ridfcula ~ Para mim, pelo menos. parece perfeitamentesensata . Nao podeis estabelecer uma teoria matematica da qualidade, objecta Arist6te les a PlatAo;e nem sequeT do movimento . N ao hA movim entonos numeros. Mas ignorato motu ignoratur natura.o aristotelico do tempo de Galileu podia acrescentar ainda que 0 maior dos plat6nicos, 0 divinoArquimedes ele pr6prio 58. nunca p6de elaborarI, mais do que uma estAtica. nao urna dimimica. Urnateorla do repauso, e nao do movim(;nto.o aristotelico tinha perfeitamente razao. E im passivel fomecer uma dedu(fao matemAtica da qua ,.j .{>.J Ilid.d e. Sabemos bern que Galileu, como Descartes,urn pouco rnais tarde e pela mesma razao, foi obrigado a suprimir a noc;ao de qualidade, a declanl-Ia subjectiva . a bani-Ia do dominic da natureza St.o que impliea, ao mesmo tempo, teTside obrigadof a suprimir a percepyao dos sentidos como fonte11 de conhecimento e a declarar que 0 conhecimento" intelectual e ate mesmo a pn'on" e 0 nosso unicD., meio de apreender a do real.\

    '1 Como e sabido, foi a de Pascal e mesmo a de Leibni1..,. Vale talve:z. a pena notar que , para toda a t r a d j ~ A o doxografica, Arquimedes e urn philosoph us plaronicus.'9 Cf. E. A. Burtt, Th e Metaphysical Fotlndariolls 0/Modern Physical Science, Londres e Nova lorque, 1925 .

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    Quanto a dinamica e as leis do movimento,o posse na e deve sec pro vado senao pelo esse,'para mostrar que e possivel estabelecer as leismatematicas da natureza e necessaria faze-la oNa o" ba Dutro meio e GaJileu tern disso plena consciencia .E, pois, ao dar solu90es matematicas a problemasfisicos concretos - 0 da queda dos corpas e domovimento de um projectil - que ele lev" Simplicia a confessar que querer estudar problemasda natureza sem matem:Hica e tentae Eazer qualquercaisa que naD pode seT feita )).

    Paeece-me que podemos agora compreender 0sentido deste texto significativD de Cavalieri , queem 1630 escreve no seu Specchio Ustorio: Tudoo que contribui pa ra (acrescenta) 0 conhecimentodas ciencias matematica s. que as celebres escolasdos pitag6ricos e platonicos consideravam Supremamente necessario a compreensa.o da s caisas fisieas, aparecera claramente em breve , assim 0espero, Com a publicay30 da nova ciencia do rnovimento, prometida por esse maraviJhoso verificadorda nature28 Galileo GaWei. 60Compreendemos tambem 0 orgulho do platonico GaliJeu quando anuncia nos seus Discursose D e m o n s l r a ~ 6 que va i promover uma ciencia

    60 Buonaventura Cavalieri, Lo Specchio Uston'o overo traualo Delle SelflOnt' Coniche e alcum' loro mirabili e.Delli infOnto al Lume , etc" BoJonha, 1632, pp . 152 e segs .: Ma qu anto vi aggiu nga la cognitione delle scienze Mathematiche,giudicate da queUe famosissime scuo Je de 'PilhagoriCi' et de )' Platonic;', somrnamen te necessarie per intender Ie coseF isiche. spero in breve sara manifesto, per la nuova dottrinadel moto promessaci dall'esquisitissimo Saggiatore della Natura, dico dal Sig. Galileo GaliJei . ne'suoi DiaJoghi ... l

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    completamente nova a prop6sito de urn problemamuito antigo e que provara algo que nunca, ateentao, foi provado, isto e, que 0 movimento daqueda dos corpas esta sujeito a lei dos numeros 6J o movimento governado pelos numeros; a objec98oaristotelica estava finalmente refutada.E evidente que, para os discipulos de Galileu,tal como para os seus contempotaneos e maiores,matemAtica significa platonismo. Por conseguinte,quando Torricelli nos diz que, entre as artes Iiberais, s6 a geometria exercita e aguya 0 espiritoe 0 toma capaz de ser um omarnento da Cidadeem tempo de paz e de a defender em tempo deguerra e que , caereris pan'bus, urn espfrito habituado a gin"stic. geometrica edotado de urna for9"particular e viri/ ~ l , n40 se mostra apenas urndiscipulo autentico de Platao, reconhece-se eproclama-se como tal. Ao faze-Io, permanece urndiscipulo fiel do seu mestre Galileu , que na sua Resposta aos Exercicios FilosOficos. de Antonio Rocco,se dirige a este Ultimo para Ihe pedir que ajuize por si

    6l GaJileo Galilei. Discorsi e dimostrazioni mathema fiche inlOrno a due nuove scienze, Opere , edi9iio Nacional,VTIl , p. 190: cc Nullus enim, quod sci am, demonstravit , aptiaa mobile descedente ex quiete peracta in lemporibus aequalibus , earn inter se retinere rationem, quam habent numeriUnoares ab un.itate consequentes. }}'1 Evengelista Tonicelli , Opera Ge ometrica, Floren98,1644, II, p. 7: Sola enim Geometria inter Iiberales disciplinas acnter exacuit ingenium, idoneumque reddit ad civitatesadomandas in pace et in bello dedendendas : caeteris enimparibus. ingeniurn quod exercitatum sit in Geometrica palestra, peculiare quoddam et virile robur habere solet : praestabilque sempre et anleceLlet, circa studia ATchilecrurae, reibeUicae, nauticaeque, etc.

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    proprio 0 valor dos dois metodos rivais - 0 metodo puramente fisico e empirico e 0 da maternatica - e acrescenta: Decidi ao mesmo tempoquem raciocinou melhor: se Platao, que diz quesem matematica mio seria possivei aprender filosofia, se Arist6teles , que acusou este mesmo Plataode ter estudado demasiadamente a m e t r i a . ~ ) 63Acabo de chamar platonico a Galileu . Creioque ninguelTI pon\ em duvida que 0 seja 6 . Alias,

    6 3 Galileo Galilei , Esercitazioni filoso/iche di AntonioRocco. Opere, e d i ~ A o Nacional. VJl , p. 744 .6 . 0 pJatonismo de Galileu foi mais ou menos reconhe cido por certos histo riado re s modernos das ciencias e da mosofia. Assim, 0 autor da tradu.;Ao alema do Dialogo sublinhaa influencia platonica (doulrina da reminisce ncia) sabre apropria forma do livra (cf. Ga lileu GalileL Dialog fiber diebeiden hauptsachlichsten Welrsysteme, aus dem italienischenubersetzt und er/duter von E. Strauss, Lipsia, 189 1, p. XLIX):E. Cassirer (Das Erkennrnisproblem in de r Philosophieund Wissenscha/t der neuereh Ze it , ed. Beriim, 1911 . I ,pp. 389 e segs.) insiste no platanismo de Galileu no seu idealde conhecimento; L. Olschki (Galileo und seine Zeit, Lipsia.1927) fala da visao plat6nica da natureza de Ga lileu, etc.E E. Burtt (The Metaphysical Foundations of ModernPhysical Science, Nova Iorque, 1925) quem me parece termethor exposto 0 plano de fundo metafisico da ciencia mo

    dema (0 matematismo pJawnico). Infelizmcntc, Burtt naosoube reconheeer a existencia de duas (e nao uma) tradir;6espJatonicas, a da especula (f:lo mi stica aeeTea dos numeros e ada ciencia matematica. 0 me smo erro, pecado venial no easode Burtt, foi feito pelo seu critica, E. W. Strong (Proceduresand Metaphysics. Berkeley. Cal , 1936 ), e no seu easo foiurn pecado mortal. Sabre a distint;aa dos dais platonismos,cf. L. Brunschvieg, Les Etapes de fa philosophie marhemo tique , Pans, 1922, pp . 69 e segs., e Le Progres de la co ns cience dans la philosophie occidentale, Pan s, 1937, pp. 37e segs.

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    ele proprio 0 afirma. Nas primeiras paginas doDid/ogo, Simplicio observa que Golileu, por sermatematico, experimenta provavelmente simpatiapelas especula,oes numericas dos pitagoricos. Istopermite a Galileu declarar que as considera totalmente desprovidas de sentido e dizer ao mesmotempo: Sei perfeitamente bern que os pitagoricostinharn a mais alta estima pels ciencia dos numerose que 0 proprio PlatAo admitia a inteligencia dohomem e acreditava que este participa da divindadepela unica razao de ser capaz de compreender a -natureza dos numeros. Eu pr6prio me sinto inclinado a produzir 0 mesmo juizo,)} 65

    Como poderia ter opiniao diferente aquele queacreditava que, no conhecimento matematico, 0espirito humano atinge a propria perfeic;ao do entendimento divino? Nao afinna ele que, sob a rela

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    xtodas mas , quanta ao pequeno numero que 0 espirito humane compreende, creio que 0 nosso conhe

    '\, cimento iguala 0 conhecimento divino em certezaobjectiva, porque consegue compreender a suanecessidade, para alem da qual nilo pareee podereiistir certeza maior 66.Galileu tena podido acrescentar que 0 entendimento humane e urna obra de Deus tao perfeitaque ab initio esUi de posse destas ideias claras e

    , , simples, cuja propna simplicidade e garanlia de" verdade, e que Ihe basta voltar-se para si proprio" para encontrar na sua memoria)) os verdadeirosfundamenlOs da ciencia e do conhecimento, 0 alfabeta, isto e, os elementos da Iinguagem - a linguagem matematica - que a natureza eriada porDeus fala. E necessaria encontrar 0 verdadeirofundamento de uma ciencia real, uma ciencia do.. , mundo real, naD de uma ciencia que atinja apenasa verdade puramente fonnal. a verdade intrinsecado raciocinio e da dedwyao matematica, umaverdade que nao seja afectada pela nilo existencians natureza dos objectos que estuda; e evidenteque GaJi1eu , tal como Descartes, se eonsideraria"insatisfeito com ta) ersatz de eiencia e conhecimento reais.E aeeTea desta ciencia, 0 verdadeiro conhecimento filosofico , que Ii conhecimento da pr6" pria ~ s s ~ n c i a do SeT, que Galileu proclama: E eudigo-vos que, se alguem nao conhece a verdade porsi proprio, e impossivel a quem quer que seja dar-Ihe esse conhecimento, Com efeito, Ii possivelensinar eoisas que nao sao nem verdadeiras nern

    Dialogo. pp. 128 e segs.52

    falsas; mas as verdadeiras - au seja, as necessarias -, isto e, as que nao podem ser de Dutra maneira, au qualquer espfrite medio as conhece parsi me sma, au naD pode jamais compreende-Ias.)) 67 l:' "Certamente, Urn platonico nilo pode ter opiniilodiferente, dado que, para ele, conhecer e com- ;'preender.N as ahras de GaIi1eu, as alusoes tao numerosasa Plamo e a men

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    ..SIMPLiCIO - Fui muitas vezes surpreendido pelo , cam-nos a maneira de a interrogar, isto e, a teoria /yassa maneira de raciocinar, que me faz , desta experimenta

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    lDo Mundo do mais ou menosao Universo da Precisao*

    [f C r i r i q u ~ . n ,O 28 , 1948 (8 propOsito das obras: Lewis

    Mumford, Technics and Civilisation. 4,- ed., Nova Iorque ,Harcourt, 1946 ; Willis L. Milham, Time and Timekeepers ,Nova lorque, MacMillan, 1945 ; L. Defossez, Les Savantsdu XVlft siecle et ta mt$ure du temps. Lausana. ed. doJournal suisse d'Hor/ogen'e et de Bijouterie, 1946 ; LucienFebvre, Le ProbMme de l'incroyance au XVIe siede,2. ed ., Albin Michel. col. (fL'Evolution de l"Humanite )),1946).

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    Nu m artigo publicado na Critique l afirmei queo problema da origem do mecanicismo, consideradono seu duplo aspecto, a saber: a) por que razao 0mecanicismo nasceu no seculo XVtI e b) por que motivo Olio nasceu vinte seculos mais cedo, nomeadamente na Grecia, nac tern uma 501w;30 satisfatoria,ista e, uma solm;ao que nao nos remets simplesmente para 0 facto (duvido, alias, que em hist6riase possa alguma vez eliminar 0 facto) . Mas , emcontrapartida , e possivel, pareee-me, e s b o ~ a r - l h e uma 501u

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    Podemos, sem duvida. interrogar-nos por querazao a antiguidade nao produziu urn Galileu ...Mas isso equivale a retomar 0 problema da paragem, tao brusca, do magnifico Impeto da cienciagrega: por que motivo cessou 0 seu desenvolvimento ? Por causa da ruina da polis? Da conquistaromana? Da influencia crista? Talvez. Tedavia,nesse intervale. Euclidcs e Ptolomeu puderam muitebern viver e trabalhar no Egipto. Realmente , nadase opee a que Copemico e Galileu Ihes tivessemsucedido directamente.Mas regressemos ao nosso problema. A cienciagrega, como ja disse, nAo constituiu uma verdadeirat.cnologia " porque nao elaborou uma fisica . Maspor que m o t i v ~ , mais uma vez, 0 nao fez? Segundotoda a aparencia, porque nAe procurou faze-Io.E isso, sem duvida, porque acreditava que tal naoera realizavel.

    Com efeito, fazer [isiea no nosso sentido dotenno - e nao naquele dado a esse vocAbulo porArist6teles - quer dizer aplicar ao real as nOl'6esrigidas, exactas e precisas das matematicas e, antesde mais, da geometria. Urn empreendirnento paradoxal, se fosse levado a cabo, porque a realidade, ada vida quotidiana, no meio da qual vivemos eestamos, nao ematematica. Nem mesmo matematizave l. E do dominio do mutAvel, do impreciso, do(rna is ou menas, do aproxirnadamente . Ora,1 A ciencia grega l a n ~ o u por certo, no seu estudo dos(ci nco p o d e r e s ~ ) (as maquinas simples), as bases da tecnologia. Nunca a desenvolveu. Portanto, a tecnica antiga permaneceu no estadio pre-tecnoI6gico, pre-cientifico, apesarda incorporayAo de numerosos elementos da cif!ncia geometriea e mecimica (estitica) na technl.

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    na pratiea, importa muito poueo saber se - comono-10 diz Platao, ao fazer da matemAtica a c i ~ n c i a por excelencia - os objectos da geometria possuemurna realidade rnais elevada do que ados objectosdo mundo sensivel; ou se - como no-l0 ensinaArist6teles, para quem a rnatemAtica nao e senaouma ciencia secundaria e abstracta - eles nAotern mats do que urn ser a b s t . r a ~ ) ) , de objectosdo pensamento: em ambos as cases, entre a matematics e a realidade fisica existe urn abismo. Dai'resulta que. querer aplicar a maternatica ao estudoda natureza e cometer urn erro e urn contra-senso. N ao ha na natureza circulos, elipses eulinhas rectas. E ridiculo querer medir com exactidaoas dimensoes de urn ser natural: 0 cavalo e, semdtivida, maior que 0 cao e mais pequeno do queo elefante, mas nem 0 cAo, nem 0 cavalo. nem elefante tern dimensoes estrita e rigidamente determinadas: ha, por t o d ~ 0 lado, uma margem deimprecisao, de ~ o g O ) ) , de mais ou menOS)) e deaproximadamente J.Eis as ideias (ou as atitudes) as quais 0 pensamento grego permaneceu obstinadamente fiel , quaisquer que fossem as filosofias de onde as deduzia.

    I ) Que foi assim, nAo somente no dominio das cienciasI biol6gicas , mas tambem no da fisica, fo i, como sabemos, aopinilo de Leibniz (

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    Nunca quis admitir que a exactidao pudesse ser N ada me pareee revelar de modo mais marcanteIeste mundo, que a materia deste mundo, do nosso a oposi

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    dentes de que 0 pensamento ttcnico do sensocomum nito depende do pensamento cientifico, 0qual pode, contudo, absorver os elementos, incorporando-os no senso comum'; que pode desen volver, inventar e adaptar descobertas antigas anecessidades novas e ate mesmo fazer Dutras ; que,guiado e estimulado pela experiencia e pela a c ~ i t opelos sucessos e pelos f a h a n ~ s pode transformaras regras da t e c h n ~ que pode ate criar e desenvolver quer utensilios, quer maquinas ; que, cornmeios frequentemente rudimentares e servido pelahabilidade dos que os empregam, pode criar obrascuja p e t f e i ~ A o (sem falar da beleza) ultrapassa delonge ados produtos da toenica cientitica (sobretudo no seu eome90). Com efeito, como no-Io dizLucien Febvre num trabalho que , ainda que apenaso fa9a de passagem, me parece de uma importancia capital para a hist6ria da tecnic. 7: Ia nAofalamos, hoje em dia, da Noito da Idade Media, eisso de ha uns tempos para ea, nem do Renascimento, que na postura do arqueiro vencedor Ihedissipou as tre vas para sempre. E isto porque,tendo prevalecido 0 born sen so, jii nso seriamoscapazes de acreditar realmente nessas ferias totais

    6 0 sensa comum nAo e a1go de absolutamente constante: n6s ja oao vemos a ab6bada celeste . 0 mesmo se passacom 0 pensamento tecnico tradic ional . as regras das profissOes : a techne pode absorver - e fa-10 no decurso da sua hist60a - as elementos do saber cientifico. Hi muito de geometria (e urn pouco de mecanica) na techlll de Vitruvio; tambern existe outto tanto, ou quase, nos mecanicos, nos construtores, nos engenheiros enos arquitectos medievais. Semfalar dos d,o E,enascimento ., L. Febvre, Le Probteme de l'incroyance au XYle siee/e,2.1 ed., Paris. 1946.

    de que antes nos ralavam : ferias da curiosidadehumana. ferias do espirito de observa,iio e, se assimo quisennos, da invenptaram e implantaram na nossa civiliza,iio do Ocidente 0 arreio dos cavalos pelo amez, as ferragens,o estribo, 0 botao, 0 moinho de agua e de vento,a plaina. aroda dentada, a bussola, a p6lvora, 0papel . a imprensa, etc . - esses homens merecerambern se r considerados com espirito de inven,Ao ehumanidade.))Ora os hom ens dos seculos xv e XVI que inventaram 0 numerador e a rada de escape, qu e aperf e i ~ a r a m as anes do fogo - e as armas de fogo-,que obrigararn a metalurgia e a constru98o navala fa zer progressos enonnes e Hipidos, que descobriram 0 carvao e subjugaram a iigua, segundo asnecessidades da sua industria , nAo foram , e bornque se diga, inferiores aos seus predecessores. E 0espeetAculo deste progresso, deste acumular de in

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    ven

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    meios que convidam positivamente ao calculo foram concebidas e executadas 3 olho, por estimativa. Todas pertencem ao mundo do aproximadamente. Eis a razao por que as opera90es maisgrosseiras da industria, tais como bombear a agua,moer 0 trigo, prensar a la, accionar os foles dasfOljas . podem ser conliadas a maquinas. As opera'1oes mais finas nao se executam senao com amao do homem. E com 3 sua for'13.Acabei de dizer que as maquinas eotecnicasnao eram calculadas. E co mo poderiam se-Io?Nao esquec;amos, OU, melhor, demo-nos conta deque 0 homem do Renascimento, 0 homem da IdadeMedia (e 0 me smo pode ser dilo do homem antigo),nao sabiam calcular. Nao estavam habitu ados a faze-10. Nao tinham meios para 0 fazeT. Sem duvida sabiam I I muito bern executar caJculos astronomicos ,dado que a ciencia antiga elaborara e tlesenvolvera osmetodos e os meios apropriados; mas 12 nao sabiam- uma vez que a ciencia antiga pouco ou nadase importara com isso - executar calculos numericos I) . Tal como no-l0 re corda L. Febvre , naodispunham de qualquer especie de linguagem algebrica )). Nem sequer de linguagem aritmetica, comod a, regular e mode rn a. 0 uso dos algarismos aque chamamos arabes porque sAo indianos - 0 usados algarisl)1os Gob ar. que vie ram de Espanha ou

    II Os astr6nomos sabiam-no. u 0 comum dos mortais. Mesmo as pessoas instruidas. I) A ciencia grega nao desenvolveu a logistica. 0 quenao impediu que Arquimedes calcuJasse 0 numero de 11" comuma aproxima9aO de uma precisao surpreendente. Mas tralav8-se de matemAticos. E os calculos tin ham um valor cientifico. Para as usos da .vid a quotidiana era -se menos exi gente : calculava-s e com fichas.

    oR

    I

    ! I I I I

    da Barbarie, na Europa ocidental estava longe dese r geral, ainda que os mercadores italianos delestivessem conhecimento desde 0 seculo XlII ou XIV.Se 0 uso destes simbolos cOmodos se expandiurapidamente nos calend arios p3;ra eclesiasticos enos almanaques para astr61ogos e medi cos, deparou-se-Ihe, na vida corrente, uma viva re sistenciados algarisrnos rornanos, minusculos. ligei ra me ntemodificados, a que se chamava aigarismos de flnam;a. Apareciam agrupados em categorias separadas por pontos: dezenas ou vintenas encabeyadas por dois XX , centenas por urn C e mi lharespor urn M : tudo tao mal feito quanto possive l, mas,rne smo assim, perrnitindo proceder a um a qu alqueropera'1ao aritmetica elernentar.Tambem nada de operayOes a mao, ope ra'1oesque nos parl:!cem tao c6modas e simples e que aoshomens do seculo XV [ pareciam ainda monstruosamente dificeis e boas apenas para a elite maternatica. Ant es de sorrirmos, lembremos que Pascal,em 1645 ( .. ], insislia, na dedicat6ria da sua ma quina de calcular ao chanceler Seguier, na extremadificuldade das operaQoes feitas it ma o. Nao 50mente obrigam permanentemente 'a conservar oupedir as somas ne cessarias', donde decorrem inumeros erros ( .. , mas, alem disso, exigem do infeliz calculador 'uma a l e n ~ i i o profunda , que fatigao espirito em pouco tempo '. Com efeito , no tempode Rabelais contava-se, antes de mais e quase exclusivarnente, com a ajuda dessas letras do tesouroque deixaram do outro lado da Mancha 0 se u nomeaos ministros do Tesouro e com as fichas que 0Antigo Regime manipulou, com maior ou menordestreza, ate ao seu declinio.))Os c"lculos sao certamente dificeis. Portanlo,

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    "j

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    ninguem os faz. Ou, peto menos , fazem-se taopoucos quanta possive!. E os enganos sao frequentes, ninguem se preocupando muito com eles. Urnpouco mais, urn pouco menos, que importancia ternisso? Nenhuma, geralmente, nilq ha que duvidar.Entre a mentalidade do homem da Idade Media(e, em geral, do homem do aproxirnadamente)))e a nossa ha uma diferencya fundamental. Citemosde novo L. Febvre: 0 homem que nao caleula, quev ive num mundo em que as matematicas sao aindaelementares. nao tern a razao form ada da me smamane ira que 0 homem me smo igJ.)orante, mesmoincapaz de, JX>r si proprio, re solver uma e q u a ~ i ! o au de fazer urn problema mais ou menos complicado, ma s que vive numa sociedade subordinada,no seu conjunto. ao rigor dos modos de raciociniomate matico, a precisao dos modos de caleular, acorrecCY30 elegante das maneiras de demonstrarn.Toda a nossa vida modema esta como que impregnada de matematica. Os aetas quotidianos e asconstrucyoes dos homens trazem-lhe a marca - enem sequer as nossas alegrias artisticas e a nossavida moral escapam it sua influencia. Nenhumhomem do seculo XVI poderia subscrever estas verifica90eS de Paul Mantel. Elas nilo nos admiram,mas te-Io-iam, com razao, deixado totalmente incredulo.Coisa curiosa: dois mil anos antes, Pitilgorasproclamara que 0 mimero e a pr6pria essencia das

    coisas; e a Bfblia ensinara que Deus fundara 0mundo sabre {{ Q mimero, 0 peso, a m e d i d a Todoso repetiram - mas ninguem 0 acreditou. Pel0 menoSninguem , ate Galileu, 0 tomau' a serio. Ninguemtentou detenninar estes numeros, estes pesos eestas medidas. Ninguem se deu 80 !rabalho de70

    III I II

    1I I 1

    contar, de pesar e de medir. Ou , mais exactamenT,e,nunca ninguem procurou ultrapassar 0 uso praticodo numero, do peso, da medida, na imprecisao davida quotidian a - contar os meses e os animais,medir as distancias e os campos, pesar 0 ouro auo trigo - , para fazer dele um elemento do saberexacto.ereio que nao chega dizer, com L. Febvre , que,para 0 fazer, 0 homem da ldade Media e 0 do Renascimento nao possuiam os in strumentos materiais ementais . E sem duvida verdade, e de uma importancia capital, que {{a utili za

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    A falta da ideia tarnbem nao quer dizer insu , hornem que usava, os 6culos nao

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    ficiencia cientifica. Sem duvida, a optica medieval(tal como a 6ptica grega) - se bern que AI-Hazene Witelio a tivessem obrigado a fazer progressossignificativos - conhecia 0 [aclo da refrac,ilo daluz, embora nao lhe conhecesse as leis: nao e senaocom Kepler e De scartes que a optica fisica nasceverdadeiramente . Ma s, a bern dizer. Galileu naosabia muito rn ais que W itello; apenas urn pOllcomais para , tendo concebido a ideia, ser eapaz de arealizar .Alem disso, oada ha. mais simples que urn telescopio, ou, pelo menos, que urn oculo de longoakance 16. Para as canstruir nao e necessariaciencia , nem lentes especiais, nao sendo precisaportanlO uma t n i c a dese nvolvida : duas lentesde oc utos, co locadas uma apos outra - c cis urnOcula de longo alcance. Ora, por mais estranho einacreditavel que pareimensidade do ceu.Os oculistas holandeses nao fizeram nada desernelhante , porque , justamente, nao tinham a ideiado instrumento que inspirava e guiava Ga1ileu.Oes te modo, a finalidade precurada - e atingida por ele e por aqueles era inteiramente diferente.A luneta holandesa e urn aparelho com urn sentidopnitieo : permite-nos ver, a uma distancia que u1tra

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    Ipassa a da vista humana, 0 qu e Ihe e acessivel a

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    Ima distancia menor. Nclo vai mais longe, nAopretende ir mais atem - e nao roi por acaso quenem as inventores, nem os utentes da luneta holandesa se serviram del a para observar 0 ceu. Pelocontrario, roi para re sponder a necessidades puramente teoricas, para atingiro quelldo ca; n"a a l ~ a d a dos nossos sentidos, para ver 0 que ninguem jamaisviu, que Galileu construiu os seus instrumentos:o telescopio e depois 0 microsc6pio, Para el e, 0 usopratico dos aparelhos que encantaram os burguesese os patricios de Veneza e de Roma nao e rnaisque urn subproduto. Ora, por ricochete, a pesquisadeste fim puramente teorieo produziu resultados deimportancia dec isiva para 0 nascimento da tecnieamodema, da tecniea de precisao. Pois, para fazeraparelhos opticos e necessaria nao apenas melhorara qualidade dos vid ros que se empregam , comodetenninar-Ihe s - isto e, medir primeiro e ca lculardepois - os imgu los de e r a c ~ E preciso me Ihorar ainda 0 se'u corte, iSLO e, saber dar-Ihes umafonna precisa, uma /o rma geometrica exactamentedefinida; e. para 0 fazer, e necessario construirmaquinas cada vez mais precisas, maquinas rna:tematicas , que , tal como os proprios in strumentos,pressupOem a t i l u i no espirito dos seusinventores , do unive rse do aproximadamente npelo uni ve rso da precisao. Por conseguinte, nao

    11 Foi eom a inven'Yilo dos instrumentos c ientificos - eo seu fabrieo - que se realizou 0 progresso teenico e teenologico que precedeu, e tomou passivel. a revoluyao. Aeercado fabneo de instrumentos cientificos cf. Daumas, Les Ins truments scienrifiques all:< XVIle et XVIIle siec/es , Pari s, 1953.

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    foi de modo algum por acaso que 0 primeiro instrumento 6ptico foi inventado por Galileu e a primeira rnaquina modema destinada a talhar vidrosparab6licos por Descartes .Ora, se e na e pela i n v e n ~ a o do instrumento6ptico que se efectua a n e t r ~ y i i o e se estabeIeee a i n t e r c m u n i c a ~ a o entre os dois mundos - amundo da precisao astral e 0 do aproximadamentedo mundo ca de baixo-, se e por esse canal quese opera a fusao da fisica celeste com a fisica terrestre, e por outro angulo que a n ~ a o de precisaoacaba por se introduzir na vida qu otidiana, se incorpora nas relacroes sociais e transforma, ou pelomenos moditica, a estrutura do proprio sensocomurn : refiro-me ao cron6metro - 0 instrumentode medir 0 tempo.Os aparelhos de medir 0 tempo nao aparecemsenio muito tarde na histOna da humanidade II .E isso compreende-se porque , 80 contralio doesp8

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    entre a erguer e a pOr do Sol, com 0 meio-dia comoponto de di visao. Urn quarto de hora, au mesmowna hora a mais ou a menos nao mudam absolutamente nada. E apenas a civilizayao urbana, evoluida e complexa, que, por exigencias precisas dasua vida publica e religios3, pode. vir a sentir anecess id ade de saber a hora, de medir urn intervalode tempo. E so entAo que surgem os rel6gios. Ora,mesmo nessa al tura, na Grecia como ern Roma, avida quotidian a escapa aprecisao - muito relativa.alias - dos relogios. A vida quotidiana move-seno aproximadamente do tempo vivido.o mesmo se passe na Idade Media e rnais tardeainda. Sem duvida, a sociedade medieval tern sobrea antiga a insigne vantagem de haver abandonadoa hora variavel e de a ter substituido por uma horade valor constante. Mas nao sente grande necessidade de conhecer melhor esta hora. Perpetua, comomuito bern no-l0 diz L. Febvre, os habitos de umasociedade de camponeses, que aceitam nunea sabera hora eerta senao quando 0 sino toca (supondo-obern regulado) e que para 0 resta se Iimitam aobservar as plantas e os animais, a voo de eertopassa ro e a canto de lal outro). Cerea do nascerdo So]) , ou entaO cerca do pOr do Sol.A vida quotidiana esta dominada pelos fenomenos naturais, pelo nascer e por do Sol -levan tam-se eedo e nAo se deitam tarde - ", e 0 dia e

    marcado, mais que medido, pelo toque do s sinosque anunciam as horas )) - as horas dos serviyosreligiosos rnuito mais do que as do rel6gio.Certos historiadores, e nao dos menores, insis19 As pessoas n.ao sabem iluminar-se.

    regular dos aetas e cerim6nias. da vida religiosa.que, sobretudo nos conventos, submetia a vida aoritrno rigido do culto catolieo ; ritmo que requeria,e exigia mesmo. a divisao do tempo em intervalosestritamente determinados e qu e, portanto, irnplicava a sua medida . Foi nos mosteiros, e por necessidades do culto, que terao nascido e se terao propagado os relogios, e tenl sido este habito da vidamonastica, 0 habito de se confonnar com a hora,que, difundindo-s e em redor da muralha conventual,impregnou e informou a vida citadina, fazend o-apassar do plano do tempo vivido ao do tempomedido.Ha, sem duvida, alga de veridico no que aeabode expor, bern como na farnosa boulade do abadede Theleme : As horas sao feitas para 0 homem,e nao 0 homem para as horas. citada. muito ai prop6sito. por L. Febvre . Sentimos aqui perpassaro vento da revolta do homern natural contra a imposi9ao da ordem e a escravatura da regra. E. todavia,nao nos deixemos laborar ern eITO: a 'ordem e 0ritmo nao sao a medida, 0 tempo marcado nAo eo .tempo mediao . Continuamos aind a no aproximadamente, no mais ou menos ; estamos a eaminho,mas apenas a eaminho do universo da precisao.Com efeito, os relogios medievais , os re16giosde pesos. cuja i n v e n ~ a o constitui uma das grandesglorias do pensamento tecnico da Idade Media , neoeram propriamente precisos, muito menos, em todoo caso, que os relogios de agua da antiguidade,pelo menos na epoea imperial. Eram - e eevidenteque isto se apliea muito rna is aos re16gios dos conventos do que aos das cidade - maquinas robustas e rudimentares a que era necessario dar

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    corda varias vezes nas vinte e quatro horas e que estes continuum a se r objectos de luxe - ate mesmo

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    era preciso cuidar e vigiar constantementc. N uncaindicavam as subdivisoes da hora, e mcsmo ashoras indicavam-n:as com uma margem de eITO quetomava 0 seu uso praticamente sem valor, mesmapara as pessoas da epoca. pOlieo exigentes namateria. Portanto, nao !lnham, ,de modo algum,suplantado aparelhos mais a n t i g o ~ . Em grandemlmero de casos [as horas I nilo eram

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    Ihomens que nao conhecem nem 0 valor nem a medida do tempo.Acabo de dizer: peto menos na primeira metadedo seculo XVI, porque, na segw>da, a situa,ao semodifica de modo sensivel. A imprecisao e a aproximadamente reinam, sem duvjda, ainda. Mas,paralelamente ao crescimento das cidades e dariqueza urbana, OU, se 0 preferinnos, paralelamentea vit6ria da cidade e da vida urbana sobre a campoe a vida carnpestre , a usa dos re16gias espalha-secada vez mais. Sao pec;as sempre muito beias, muitotrabalhadas, muito cinzeladas , muHo caras. Mas janao sao muito raras, OU, mais exactamente, tornam-se cada vez menos raras. E no seculo XVII deixarao completamente de 0 ser.Par Outro lado, 0 relogio evolui, melhora, transforma-se. A maravilhosa habilidade e engenhosidade

    nac menas surpreendente dos relojoeiros (constituidos , a partir de entao, numa guilda independentee poderosa), a substitui,ao da roda reguladora pelojoliot, a inven,ao do stack/reed e do fuso que igualizam e uniformizam a aC9ao da mola, fazem deurn puro objeeto de luxo urn objeeto de utilidadepratica capaz de indicar as horas de uma mane iraquase precisa.Nilo foi , todavia, do relogio dos relojoeirosque saiu finalmente 0 relogio de precisao. 0 relogia dos reiojoeiros nunca ultrapassou - e nuncapoderia faze-Io - 0 estAdia do quase) eo mvel doaproxirnadamente. 0 rel6gio de precisao, 0 relogia cronometrico, tern uma origem completamentediferente. Nao e, de modo algum, urna promo,ao dorelogio de uso pnitico. E urn instrumento, querdizer, uma criac;ao do pensarnento cientifico. au,

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    E certo que, urna vez reaHzado, urn objecto teoricose pode tornar urn objecto pnitieo de usa correntee quotidiano. E certo tambem que eonsidera,oespnHicas - no caso que nos interessa, 0 problemada determina,ao das longitudes, que a extensaoda n a v e g a ~ a o tomava cada vez mais urgente podem inspirar 0 pensamento te6rico. Mas nao e autiJiza,ilo de urn objecto que the determina a natureza: e a estrutura ; urn cron6metro pennaneceurn cronometro mesmo se forem os marinhelTO s autiliza-Io. Isto explica-nos por que razao nolo e aosrelojoeiros, mas aos sabios, nao a lost Burgi e aIsaak Thurel, mas a Galileu e a Huygens (e a Robert Hook tambem), que remontam as gran des inveoyoes decisivas a que devemos 0 relogio de pendulo e 0 relogio de espiral reguladora. Tal comomulto hem 0 diz lacquerod , no seu prefacio aoexcelente trabalho que L. Defossez 2 1 recentementeconsagrou a historia da cronologia (trabalha cujomenta consiste em recolocar a historia da cronologia oa historia gerai do pensamento cientifico eque tern 0 titulo caracteristico de Os Sdbios (e naoOs Relojoeiros do Seculo XVII e a Medida doTempo): Os tecnicos ficarao talvez surpreendidos,mesmo desiludidos. ao verificarem 0 pequeno papeldesempenhado nesta historia pelos relojoeiros pralieos, comparado com a imensa importancia daspesquisas dos sabios. Sem duvida, as realiza,6essao , em geral, obra de relojoeiros; mas as ideias ,as invenc;6es, germinam frequentemente no cerebrodos homens de ciencia e varios dentre eles nao

    :1 L. Defossez,Les Savants du XVlIe siecie et la mesuredu temps. Lausana, 1946.

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    receiam por as maos ao trabalho e construir, eles levar consigo essa hora, conserva -Ia preciosamente .

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    proprios, os aparelhos, os di sposit ivos que imaginaram. Este facto. que pede parecer paradoxal,e explicado, segundo Jacquerod e, bern entendido,por Defossez, por uma razao muito precisa e , emcerta medida, dupla, que faz compreender ao mesmotempo a razAo pel a qual nos seculos seguintes as t u a ~ a o foi por vezes invertida) ):

    Em primeiro lugar, esla razao consiste no factode a medida exacta do tempo ser muito mais umanecessidade capital para a ciencia, a aSlronomiae a fisica do que para as actividades quotidianase as r e l a ~ 6 e S sociais. Se os quadrantes solares eos relogios de /o/iol eram, no seculo XYlJ, largamente suficientes para 0 grande publico, ja para ossabios 0 nAo e r a m . Era-lhes necessaria descobriruma medida exacta. Ora as processos empfricoseram impotentes para esta descoberta e apenas oste6ricos, aqueles que precisamente nesta epocaelabaravam as teorias e estabeleciarn as leis damecanica racional, eram capazes de a fazer. Po rtanto, os fisicos, os mecanicos, os astroDomos, 5 0 bretudo os maiores dentre eles, preocuparam-secom 0 problema a resolver pela simples razao deserem os primeiros interessados .0 segundo lado da questAo, de urna importancia ainda maior, deve ser procurado nas necessidadesda navegal'ao r...J No mar, a determinal'ao dascoordenadas geograticas, a determina9ao do 'ponto',e fundamental e sem ela nenhurna viagem longedas costas pode ser empreendida com aiguma seguran,a. Se a determina,ao da latitude e facilitadapela observal'ao do Sol ou da Polar, a da longitude e muito mais dificil r...J exige 0 conhecimentoda hora do meridiana de origem. E e necessario

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    E, pois, preciso possuir 'urn guarda-tempo ' em quese possa confiar.) Os do is problemas, da medidae da conservalYao do tempo, estao naturalmenteligados de modo intimo. 0 primeiro [oi resolvidopor Galileu e Huygens atraves da utiliza,ao dopendulo. 0 segundo, bern mais dificil [ ... J recebeuuma soluyao petfeita - pelo menos em principia com a inven9ao, de vida a Huygens, do sistema baianceiro-espiral. ))Durante os dois secu)os seguintes, apenashouve aperfei,oarnentos de pormenor [ ..J masnlio mais descobertas fundamentais [ ...J E cre-seque entao 0 papel dos tecnicos r... J se tenha tornado preponderante .Estou mais ou menos de acordo com Jacquerode Decossez no que respeita a explical'ao do papeldesempenhado pela ciencia te6rica na inven9ao docronometro , e foi por issa qu e os citei tao longamente; por issa, e tambem porque e muito raro encontrar urn ffsico e urn tecnico - Defossez e urntecnico de reiojoaria - nao infectados pelo virusda epistemoiogia empirista e positivista, que fez, efaz ainda, tantas devastaC;6es entre os historiadoresdo pensamento cientifico. Todavia, nao estou intei ramente de accrdo com eles. Particularrnente , naoacredito no papel preponderante do problema daslongitudes ; creio que Huygens teria empreendido econtinuado as suas pesquisas sobre 0 movimentopendular e 0 movimento circular, 0 isocronismo e afor,a centrifuga, ainda que nao tivesse sido estimulado pela esperan,a de ganhar 10 000 Iibras(que, alias, nao ganhou), simplesmente porqueeram problemas que se impunham a ciencia doseu tempo .

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    Pais, Se pensannos que , para deterrninar 0 valor

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    da acelera9ao, Galileu, quando das suas famosasexperiencias do corpo rolando sobre urn planoinclinado, fai obrigado a ernpregar urna ciepsidrade agua, clepsidra muito rnais primitiva na Sua estrutura que a de Ctesibio e que, por esse motivo , obtivera mimeros completamente fal sQs), e que Riccioli,em 1647, para estudar a a c e l e r a ~ a o dos corpos emqueda livre, fora obrigado a montar urn relOgiahll.mano J2 , dar-nos-emos conta da impropriedadedos rel6gios usuais no emprego cientifico e daurgencia absoJuta , para a mecanica fisica, de de scobrir urn meio de medir 0 tempo. Portanto, e per feitamente compreensivel que GaIileu se tenhapreocupado COm a questao: para que, com efeito,po ssuir fonnulas que pennitem detenninar a veJo cidade de urn corpo a cada instante da sua quedaem fun,ao da acelera,ao e do tempo decorrido,se na.o e passiveI medir nem a primeira nem 0segundo ?

    Oro, para medir 0 tempo - ja que nao epossivel faze-Io directamente - e indispensavel utilizar urn fenom eno qu e 0 encama de urna maneira apro priada; 0 que signjfica quer urn processo que se desenrola de urna maneira unifonne (velocidade constante), quer urn fen6meno que , nao sendo ele mesmo unifonne, se reproduz periodicamente na Sua identidade (repeti,iio is6crona). Foi para a primejra s o l u ~ a o qu e se onentou CteSibio, 80 manter COnstanle 0 nivel da agua num dos recipientes da Sua

    11 Cf. os meus artigos ((Galileu e a e x p e r i ~ n c j a de Pisa,in Anna/es de r U n i " ' e r s i ( ~ de Pads, 1936, e An experimentin measuremenh), in American Philosophical Society. Pro ceedings, 1952.

    clepsidra, de oode. por este motivo, ela escorria parao outro com uma velocidade constanle; roi para asegunda que se orientou Galileu (e Huygens) aodescobrir nas oscilayoes do pendulo urn fenomenoque se reproduz eternarnente.Mas e evidente - OU, peto n:tenos, deveria serevidente - que uma ta l descoberta nao pode seTfruto do empirismo. E claro que nem Ctesibio,nem Galileu - que os historiadores de cienc iascoiocam, todavia, entre os empiristas , ao lou va~ I o s por terem estabelecido, atraves de experiencias,alguma cois. que nao podia ser esrabelecida porelas - puderam estabelecer, quer a constancia dofluxo, quer 0 isocronismo da oscilacyao atraves demedidas empiricas. Quando mais nao fosse, pelarazao muito simples - ma s inteiram ente su fi ciente - de Ihes faltar precisa mente aquilo com queteriam podido medi-las ; por outras palavras, 0 instrumento de medida que a constancia do esvaz.iamento ou 0 isocronismo do pendulo iam justamente permitir realizar.Nao foi por ver b a l a n ~ a r 0 grande candelabroda Catedral de Pisa que Galileu descobriu 0 isocronismo do pendulo, urna vez que esse ca ndelabronao fo i af coloeado senao ap6s a sua partida dacidade natal- mas e inteiramente possivel quetenha sido urn espectaculo deste genero que 0 tenbaincitado a meditar sobre a estrutura pr6pria dovaivem: as lend as contem quase sem pre urn elemente de verdade - neste caso, 0 estudar matematicamente, a partir das leis do rnovimenlo acelerado,que tinha estabelecido por meio de urna d e d u ~ a o racional , a queda dos corpos graves ao longodo s cordas de urn circulo coloeado verticalmente.Ora foi apenas entao , isto e, depois da dedu,ao

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    vez, explica que os tecnicos, os relojoeiros do

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    teoriea, que eIe pOde pensar numa verificarraoexperimental (cuja finalidade OlIo era de modoalgum confirmar esta , mas descobrir de que maneiraessa queda se realiza in rerum natura, isto e, comose comportam os pendulos reais e materiais queosci lam , nao no e s p a ~ puro da ffsica, ma s sabre aterra e no ar) e, realizada a experiencia com su eesso, tentar eonstruir urn instrumento que pennitisse utiIizar , na pnitica, a propriedade mecanica domovimento pendular.Foi e x a c t a m e n t ~ da me sma maneira , isto e,atraves de wn estudo puramente teorieo, queHuygens descobriu 0 erro da exlrapola,ao galilaicae demonstrou que 0 isoeronismo se reaIiza, naosegundo 0 circulo, mas segundo a cicl6ide ; Coramconsidcracr6es puramente geometrieas que 1hemitiram encontrar 0 meio de reaIizar - em teoria o movimento cicJoidal. E foi nesse momento quese lhe pOs - tal como 0 que se tinh. passado comGalileu - 0 problema tecnico, ou , mais exactamente, teen%gieo, da realizayao efectiva, isto e,da execu