lazer como obra de arte e a autoformaÇÃo … · diz que a visão científica e a visão poética...
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Animador Sociocultural: Revista Iberoamericana vol.1, n.2, mai.2007/set.2007 Lazer e autoformação do animador sociocultural Cavalcanti
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LAZER COMO OBRA DE ARTE E A AUTOFORMAÇÃO
HUMANESCENTE DO ANIMADOR SOCIOCULTURAL
Profa. Dra. Katia Brandão Cavalcanti
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Brasil
Recebido em 3 de abril de 2007
Aprovado em 18 de abril de 2007
Resumo
O que significa fazer do lazer uma obra de arte? Este estudo, de natureza filosófica, considera como pressuposto fenomenológico a Vida como Obra de Arte, apresentando o lazer com o mesmo sentido estético atribuído à Arte e à Vida. Partindo da metáfora da obra de arte, foram concebidos alguns desenhos coreográficos para a composição de uma Dança Humanescente da Autoformação do Animador Sociocultural: 1.Simplicidade; 2.Confiança; 3.Alegria; 4.Coragem; 5.Persistência; 6.Serenidade; 7.Autotranscendência. Esses desenhos ou momentos coreográficos existenciais foram associados a sete hexagramas do I Ching respectivamente, para configurar a presença da luminosidade nas diferentes estruturas hexagramáticas que revelam conteúdos ontológicos específicos, necessários à Autoformação do Animador Sociocultural. Palavras-chave: Lazer, Autoformação Leisure as a work of art and the humanescent selformation of the sociocultural animator
What is the meaning of transforming leisure into art? This philosophically-oriented study is based on the phenomenological assumption that life is comparable to a work of art, and it presents leisure with the same aesthetical sense attributed to Art and to Life. Some choreographic sketches based on the work of art metaphor were created for a Humanescent Dance of Self-Formation of the Socio-Cultural Entertainer: 1. Simplicity; 2. Confidence; 3. Joy; 4. Courage; 5. Persistence; 6. Serenity; 7.Self-Transcendence. These sketches or existential choreographic moments were respectively associated with seven I Ching hexagrams in order to frame the presence of luminosity in different hexagramatic structures that reveal specific ontological content, necessary to the Self-Formation of the Sociocultural Animator. Keywords: Leisure, Selfformation
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“A arte da vida consiste em
fazer da vida uma obra de arte”.
Ghandi
LAZER COMO OBRA DE ARTE E A AUTOFORMAÇÃO HUMANESCENTE DO ANIMADOR SOCIOCULTURAL
Katia Brandão Cavalcanti
O que significa fazer do Lazer uma Obra de Arte? Este estudo filosófico e epistemológico considera como pressuposto fenomenológico a Vida como Obra de Arte, apresentando o lazer com o mesmo sentido estético atribuído à Arte e à Vida. Partindo da metáfora da Obra de Arte, foram concebidos alguns desenhos coreográficos para a composição de uma Dança Humanescente da Autoformação do Animador Sociocultural: 1.Simplicidade; 2.Confiança; 3.Alegria; 4.Coragem; 5.Persistência; 6.Serenidade; 7.Autotranscendência. Esses desenhos ou momentos coreográficos existenciais foram associados a sete hexagramas do I Ching respectivamente, para configurar a presença da luminosidade nas diferentes estruturas hexagramáticas que revelam conteúdos ontológicos específicos, necessários à Autoformação do Animador Sociocultural.
LEISURE AS A WORK OF ART AND THE HUMANESCENT SELFORMATION OF THE SOCIOCULTURAL ANIMATOR
What is the meaning of transforming leisure into work of art? This philosophically-oriented study is based on the phenomenological assumption that life is comparable to a work of art, and it presents leisure with the same aesthetical sense attributed to Art and to Life. Some choreographic sketches based on the work of art metaphor were created for a Humanescent Dance of Self-Formation of the Sociocultural Animator: 1. Simplicity; 2. Confidence; 3. Joy; 4. Courage; 5. Persistence; 6. Serenity; 7.Self-Transcendence. These sketches or existential choreographic moments were respectively associated with seven I Ching hexagrams in order to frame the presence of luminosity in different hexagramatic structures that reveal specific ontological content, necessary to the Self-Formation of the Sociocultural Animator.
“A arte da vida consiste em
fazer da vida uma obra de arte”.
Ghandi
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Fluindo com a metáfora da “Vida como uma Obra de Arte” e permitindo-
nos mergulhar nas profundezas das nossas emoções e sentimentos quando dançamos,
podemos reconhecer também com a lição de Mahatma Gandhi que a Arte do Lazer
consiste em fazer do Lazer Uma Obra de Arte.
O que significa fazer da Vida uma Obra de Arte? O que significa fazer
do Lazer uma Obra de Arte? Aprendemos com o sociólogo francês Joffre Dumazedier,
no início dos nossos estudos de pós-graduação na área do lazer, em 19751, que as
hipóteses científicas podem ter uma roupagem poética. Naquela época, Dumazedier nos
falava do lazer como se fosse uma flor que desabrochasse subitamente, podendo estar
envenenada ou plena de felicidade2. O rigor do seu espírito científico não impedia o uso
de metáforas e da linguagem poética para as suas explicações sociológicas sobre o lazer.
Tendo estudado com afinco as lições da Formação do Espírito Científico com um
Mestre como Bachelard, Dumazedier vivia profundamente a ciência como a “estética da
inteligência”3. Somente um profundo amor à ciência é capaz de fazer compreender e
praticar sistematicamente uma “catarse intelectual e afetiva” tão necessária ao avanço
do conhecimento para poder oferecer à razão “razões para evoluir”4.
Aprendemos também com Dumazedier a utilizar a licença poética tão
necessária à concretização de uma Imaginação Sociológica para fazer o campo
epistemológico do lazer florescer e frutificar. Às vésperas da celebração das Bodas de
Ouro da obra de Wright Mills5, é uma grande honra poder conceber e ensaiar alguns
desenhos coreográficos para uma Dança Humanescente da Autoformação do Animador
Sociocultural,6 com a mesma confiança do astrônomo-poeta Hubert Reeves quando nos
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diz que a visão científica e a visão poética do mundo, longe de se excluírem, se
associam para nos fazer perceber o mundo na sua verdadeira riqueza.7
Como fazer brotar uma epistemologia do lazer centrada na emoção da
vida, no sentimento da Alegria de Viver? Como adubar cientificamente as sementes
humanescentes do lazer para poder florescer nos novos jardins das Ciências Humanas?
Um epistemólogo-poeta como Bachelard dirá: É preciso sonhar os sonhos dos poetas!
Somente sonhando com a beleza dos novos jardins floridos, os cientistas-poetas, como
floricultores, poderão vislumbrar novas formas de preparo da terra para acolher as
sementes da vivência humanescente do lazer nos campos epistemológicos das
Humanidades que valorizam o pulsar da Vida como Obra de Arte.
Uma Epistemologia Humanescente do Lazer8 deve ser sonhada. Deve ser
desejada... Deve florescer na imaginação dos cientistas-poetas para depois ser cultivada
amorosamente pelos Animadores Socioculturais. Como artistas da Alegria de Viver,
esses animadores devem aprender a trilhar com alegria pelos desafiantes percursos que a
vida nos oferece para sermos felizes. Qualquer que seja a formação institucionalizada
do Animador Sociocultural9 não é possível prescindir de uma autoformação
humanescente permanente10.
Ser Animador é assumir a responsabilidade de tornar-se fonte geradora
de alegria. Ser Animador é Ser Luminescente, capaz de irradiar luminosidade sobre si
mesmo e ao seu redor, emitindo ondas luminescentes de alegria para além do ambiente
circundante. Sua presença irradiante no mundo viaja nas emoções e sentimentos,
tornando-se memória-viva no arquivo existencial daqueles que compartilham de sua
alegria. Ser Animador é ousar fazer de sua Vida uma Obra de Arte para com a sua
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beleza encantar o mundo. Como um artista dedicado, a sua tarefa estética humanescente
para consigo mesmo deverá ser permanente.
Tomamos como referências epistêmicas estruturais a Galáxia da
Autoformação apresentada pelo GRAF – Groupe de Recherche sur L’Autoformation en
France11 – e a Teia da Corporeidade que encontra-se em desenvolvimento pela
BACOR – Base de Pesquisa Corporeidade e Educação da UFRN/Brasil12. Por se tratar
de um estudo de natureza filosófico-epistemológica, optamos por estabelecer como
pressuposto fenomenológico a Vida como Obra de Arte, apresentando o lazer com o
mesmo sentido estético atribuído à Arte e à Vida. Partindo da metáfora da Obra de
Arte, foram concebidos alguns desenhos coreográficos para a composição de uma
Dança Humanescente da Autoformação do Animador Sociocultural13. Apresentamos
um conjunto de sete categorias de aprendizagem vivencial em valores humanos que,
como numa estrutura galáxica devem girar em torno de uma Fonte Luminosa, o Ser
Luminescente: 1. Simplicidade; 2. Confiança; 3. Alegria; 4. Coragem; 5. Persistência; 6.
Serenidade; 7. Autotranscendência. Esses desenhos ou momentos coreográficos
existenciais foram associados a sete hexagramas do I Ching respectivamente para
configurar a presença da luminosidade nas diferentes estruturas hexagramáticas que
revelam conteúdos ontológicos específicos, necessários à Autoformação do Animador
Sociocultural.14
A estrutura coreográfica da Dança Humanescente da Autoformação do
Animador Sociocultural foi inspirada na Dança Cósmica de um sistema planetário, no
qual os planetas giram em torno de um sol. Como corpos celestes, essas sete categorias
de aprendizagens humanescentes exercem influência recíproca simultaneamente,
formando uma corrente de energia em constante fluxo e evolução. No centro dessa
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movimentação cósmica, está o Ser Luminescente que é pura energia ontológica.
Conforme evolui cada orbe de aprendizagem humanescente, torna-se capaz de irradiar
luminosidade para o conjunto do sistema. À semelhança das cores do espectro solar, a
vibração provocada pelos movimentos dançantes dessa coreografia humanescente
produzirão a luz branca do Amor, e sua intensidade dependerá da harmonia vibratória
entre os componentes do sistema.15
Para descrever e interpretar a estrutura e a dinâmica de cada componente
coreográfico dessa dança humanescente necessária à autoformação do Animador
Sociocultural, buscamos estabelecer associações específicas com sete hexagramas do I
Ching, O Livro das Mutações16. Nesta obra milenar da sabedoria oriental encontram-se
fundamentos éticos essenciais para orientar a existência humana. Com dois elementos
gráficos que representam a energia forte – Yang e a energia fraca – Yin, oito trigramas
básicos são formados, dando origem aos 64 hexagramas que constituem representações
da vida. A energia forte, luminosa, Yang é representada por uma linha contínua. A
energia fraca, ambígua, Yin é representada por uma linha fragmentada17.
Ao considerarmos o Lazer Uma Obra de Arte e o Animador
Sociocultural aquele que faz de sua Vida Uma Obra de Arte, o artista capaz de irradiar a
luminosidade da alegria para si mesmo e por uma intencionalidade humanescente,
precisamos reconhecer a Beleza como fundamental. Com Schiller aprendemos que a
“tarefa da educação estética é fazer das belezas a beleza”.18 Assim, podemos dizer que a
tarefa do Animador Sociocultural é fazer dos lazeres o lazer. Fazer do Lazer Uma Obra
de Arte!
Ter como pressuposto fenomenológico a Vida como Obra de Arte,
obriga-nos a reconhecer a Arte da Vida e a Vida da Arte, assim como a Beleza da Vida e
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a Vida da Beleza. Tomamos o hexagrama 22, a Graciosidade, a Beleza, para representar
a nossa concepção da musicalidade dessa dança autoformativa do Animador
Sociocultural que bem caracteriza o Espírito da Arte, o Espírito da Alegria de Viver.
A Beleza Humanescente
Hexagrama 22 – PI
Graciosidade (Beleza)
O princípio da Beleza Humanescente representado pelo hexagrama 22,
denominado Graciosidade, Beleza, é constituído pelo trigrama do fogo abaixo e pelo
trigrama da montanha acima. Abaixo, duas linhas contínuas, fortes, envolvem uma linha
fragmentada, fraca que se posiciona no centro desse trigrama. Acima, duas linhas fracas
têm uma linha forte fazendo a ligação na terceira posição. Este hexagrama mostra um
fogo que irrompe das profundezas da terra e cujas chamas ascendem iluminando e
embelezando a montanha. A beleza da forma é necessária em todo tipo de relação entre
os seres para que a vida se realize de modo harmonioso e não desordenado ou caótico.
Trazendo esta representação do fogo que irrompe das profundezas da
terra, procurando iluminar e embelezar a montanha para a nossa interpretação da Vida
do Animador Sociocultural como Obra de Arte, podemos dizer que esta força luminosa
que irrompe do interior mais profundo do Ser é a força do amor, do afeto, das paixões,
como tão bem definiu Spinoza19 em sua Ética, no século XVII, para ser confirmado pela
Biologia do Amor com Maturana e Varela20 e pela Ciência dos Sentimentos com
Damásio21 na contemporaneidade. O Ser Luminescente que está no centro da estrutura
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galáxica, em torno do qual dançam os planetas da autoformação humanescente, ao
buscar das profundezas da alma essa chama do amor, ilumina-se, irradiando
luminosidade e beleza capaz de harmonizar o ambiente a sua volta.
No trigrama fogo, a chama está representada por uma linha fraca que
movimenta-se suavemente entre as duas linhas fortes, embelezando a sua essência
forte. No trigrama montanha, a força na terceira posição significa liderança. Na
natureza, observamos que a luz forte do sol, da qual depende a vida na Terra, modifica-
se com a beleza dos movimentos da lua e das estrelas. Na vida humana, essa luz interior
suave do amor manifesta-se através da solidez dos nossos corpos e ações, expressando
emoções e sentimentos que harmonizam e embelezam o espaço-tempo de nossa
existência no mundo e com o mundo.
Para o Animador Sociocultural, é fundamental aprender a cultivar as
sementes dessa beleza interior para fazê-la brotar nos imensos jardins floridos do lazer,
onde pessoas do mundo inteiro buscam encontrar uma nova musicalidade para as suas
vidas. Esta é a primeira exigência que irá se configurar como a estrutura energética
primordial para que a Vida como Uma Obra de Arte se faça com autenticidade. Somente
vivenciando esta dinâmica estética na sua própria vida, o Animador Sociocultural será
capaz de abraçar com amor o desafio da tarefa coletiva de trabalhar para a construção de
uma Obra de Arte Aberta como é a Alegria de Viver.
A Simplicidade Humanescente
Hexagrama 61 – CHUNG FU
Verdade Interior
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A Simplicidade como vivência humanescente proposta para a
autoformação do Animador Sociocultural está representada pelo hexagrama 61,
Verdade Interior, que é constituído pelo trigrama do lago abaixo e pelo trigrama do
vento acima. O lago representa a alegria e o vento representa a suavidade. Esse
hexagrama sugere a imagem do vento que sopra sobre o lago, produzindo movimentos
na superfície da água. Assim, o invisível manifesta-se em efeitos visíveis. Este
hexagrama constituído por dois trigramas que se sobrepõem de modo inverso, deixa um
espaço no centro formado por duas linhas suaves que se abrem à verdade do Ser. Esta
configuração indica a movimentação de um coração livre de preconceitos,
verdadeiramente puro em sua intencionalidade mais profunda. Ambos os trigramas
possuem uma linha forte, luminosa no meio, indicando a força da Verdade Interior.
Seus atributos são a alegria para reconhecer os propósitos existenciais mais elevados e a
suavidade para aceitar as fragilidades humanas. Para a filosofia chinesa, o ideograma Fu
– Verdade, simboliza a pata de uma ave sobre o filhote, sugerindo a idéia de chocar.
Assim, o poder vivificante do luminoso deve agir do exterior, mas é necessário que haja
um núcleo de vida no seu interior para que esta vida possa ser despertada.
A autoformação permanente do Animador Sociocultural, no que se refere
à simplicidade, significa abrir-se cada vez mais à renovação da consciência de si
mesmo. Empenhar-se cada vez mais no desapego à artificialidade da vida para valorizar
sobretudo a essência luminescente que existe em si mesmo e nos outros.
A orientação existencial implicada neste hexagrama nos conduz para
refletirmos sobre a necessidade de desenvolvermos esta força da Verdade Interior para
podermos exercer o nosso papel de Animadores Socioculturais com uma ética
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humanescente. Assim, os contatos que se realizarão com os outros Seres Luminescentes
serão contatos de coração para coração, conectando-se energeticamente às essências e
não mais às aparências. Isto fortalece não só as próprias fontes luminescentes como a
própria conexão se tornará mais resistente, exatamente por sua maleabilidade
energética. Este é o poder da Simplicidade Humanescente, da Verdade Interior, que fará
desaparecer obstáculos intransponíveis nas relações entre os seres da Terra. Isto porque
será fortalecida a solidariedade luminescente da Alegria de Viver entre todos aqueles
envolvidos nessa busca de harmonia para si e para o planeta.
A Confiança Humanescente
Hexagrama 16 – YU
Entusiasmo
A Confiança como vivência humanescente necessária à autoformação
permanente do Animador Sociocultural está representada pelo hexagrama 16,
Entusiasmo, que é constituído pelo trigrama terra abaixo e pelo trigrama trovão acima,
simbolizando, respectivamente, o receptivo e o incitar. Este hexagrama é formado por
cinco linhas fragmentadas, fracas e apenas uma linha contínua, forte, representando a
possibilidade e firmeza para seguir. O trigrama abaixo, totalmente aberto, simboliza o
acolhimento da Terra aos seus filhos. O trigrama acima, com a base contínua,
representando o trovão, indica a firmeza interior necessária para que possamos nos abrir
aos mais elevados propósitos humanescentes. Abaixo está a devoção, acima está o
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movimento, representando no seu conjunto a devoção ao movimento. Para a nossa vida,
isto significa o necessário envolvimento com a nossa própria humanescência.
A autoformação permanente do Animador Sociocultural através de vivências
humanescentes de Entusiasmo deve considerar as emoções que brotam das profundezas
do Ser Luminescente e que possuem uma musicalidade peculiar. Quando o Entusiasmo
canta, traz consigo a intencionalidade do compartilhar. É da própria natureza do
Entusiasmo o desejo do solidarizar-se. O irromper que produz essa canção da Vida por
mais Vida, quer celebrar a Felicidade, a Alegria de Viver!
Animar-se, antes de pretender animar qualquer ambiente ou situação, é um
grande desafio para o Animador Sociocultural. Entusiasmar-se com a Vida para tornar-
se autoconfiante do seu papel na sociedade. A tarefa de despertar o Entusiasmo, de criar
um ambiente harmonioso, pleno de Vida, começa por si mesmo. É preciso confiar na
Vida, na sua generosidade. A Vida sempre retribui cantando as nossas canções. Assim,
devemos procurar cantar com mais beleza, para que sejamos retribuídos com as mais
belas canções que a Vida pode nos oferecer.
Ao Animador Sociocultural que cabe a tarefa de entusiasmar-se com os
outros para poder gerar mais Entusiasmo para o mundo, cabe também assumir o desafio
da autoconfiança humanescente na autoprodução do seu próprio entusiasmo pela Vida.
Confiança e Entusiasmo formam um dueto que cantam e dançam as emoções e os
sentimentos da Alegria de Viver.
A Alegria Humanescente
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Hexagrama 58 – TUI
Alegria (Lago)
A Alegria como uma vivência humanescente que deve compor o processo da
autoformação permanente do Animador Sociocultural está representada pelo hexagrama
58, também identificado no I Ching por Alegria, sendo constituído pelo trigrama do
lago abaixo e acima, formando assim dois lagos sobrepostos. Tui significa filha mais
nova, tendo como símbolo um lago sorridente e como atributo a alegria. Essa
jovialidade não se origina na maleabilidade das duas linhas Yin que se apresentam na
última posição de cada trigrama. A alegria se configura pelo fato de haver duas linhas
fortes no interior de cada trigrama que se expressam através da suavidade e da gentileza.
A autoformação permanente do Animador Sociocultural deve privilegiar a
vivência humanescente da alegria, como uma emoção, como um sentimento que brota
do cultivo da harmonia interior, capaz de envolver a própria fonte com ternura,
irradiando intensa beleza a sua volta. Tui é o lago que alegra e refresca todos os seres.
Tui é também a boca que comunica os sentimentos de alegria do Universo. Nessa
perspectiva, o Animador Sociocultural deve ter presente cada vez mais em sua
consciência, em seu coração, a sua função como fonte geradora de beleza que irradia o
sentimento da Alegria de Viver.
Sendo alegria um estado de ânimo contagiante, promove a realização, o
êxito. No entanto, devemos considerar como referência fenomenológica primordial, a
serenidade própria da imagética do lago para que este estado de vibração prazerosa não
se degenere em euforia sem sentido. A verdade e a força devem ser cultivadas nas
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profundezas do coração para que a suavidade possa desabrochar alegremente nas
relações do Ser Luminescente consigo mesmo, com o outro, com a natureza e com o
mundo. O poder da alegria como uma vivência humanescente é o poder de fazer vibrar
o nosso mais puro sentimento de amor à vida.
A imagem do hexagrama da Alegria, lagos que repousam um sobre o outro,
representa também a sociabilidade e a busca do conhecer e do sentir. Um lago pode se
evaporar aos poucos até se esgotar. Mas, quando dois lagos estão unidos, não secam tão
facilmente porque um alimenta o outro. Para a autoformação humanescente do
Animador Sociocultural, esta imagem sugere que no campo do conhecimento de si, este
saber deve se transformar em força renovadora e vitalizadora, sendo possível quando se
propicia um ambiente criativo com pessoas abertas às novas experiências com o outro
para conhecer e sentir as novas verdades da vida. Assim, o autoconhecimento se amplia
incorporando múltiplas perspectivas, tornando-se mais leve e jovial, portanto, mais
lúdico. Toda a simbologia implicada na imagem da união dos lagos, traduz o sentimento
de alegria cultivado na plenitude do coração que desabrocha para encantar-se cada vez
mais com a vida.
A Coragem Humanescente
Hexagrama 51 – CHÊN
O Incitar (Comoção, Trovão)
A Coragem na autoformação humanescente do Animador Sociocultural
está representada pelo hexagrama 51, o Incitar – Comoção, Trovão, sendo constituído
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pelo trigrama trovão, tanto abaixo como acima. A imagem de um trovão seguido de
outro, desencadeando um contínuo trovejar é algo ameaçador. O trigrama trovão é
formado por uma linha Yang, forte abaixo de duas linhas Yin, fracas, elevando-se com
bastante vigor num movimento tão violento que provoca terror. Nesta simbologia, o
trovão irrompe da terra causando com seu impacto temor e tremor. Quando o Ser
Luminescente, das profundezas de sua alma, compreende o significado de temor e
tremor, torna-se livre de qualquer medo provocado por condições externas.
O que significa a vivência humanescente da coragem na autoformação
permanente do Animador Sociocultural? A coragem não é um saber que se adquire
conhecendo episódios heróicos da vida das pessoas. Coragem é uma expressão humana
de firmeza diante dos enfrentamentos adversos da vida. Coragem implica atitude diante
dos desafios que a vida oferece para crescermos, para Humanescermos. É preciso
coragem para que possamos nos reconhecer como Seres Luminescentes, geradores de
luz que ilumina não só a própria caminhada, mas também compartilha intencionalmente
ou não, com a sua irradiação luminosa, da caminhada do outro.
A coragem de se afirmar como um Ser Luminescente num contexto
imagético em que o eclodir dos trovões de forma contínua, atingindo grandes distâncias,
espalha temor a milhares de pessoas, somente um espírito autoconfiante e entusiasmado
com a tarefa da construção de sua Obra de Arte Ontológica, poderá seguir sua
caminhada sem se abalar interiormente porque já compreendeu as conexões cósmicas
do seu existir, implicadas na sua corporeidade.
A imagem de tremor e temor trazida pelo hexagrama do Incitar, refere-se à
necessidade de se aprender a lidar com a perplexidade e com as perdas. Para enfrentar
tais situações de perigo, é preciso ter agilidade para saber tomar decisões de impacto
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que repercutem no próprio projeto de vida. Aprender a enfrentar situações de risco, não
só corporais mas também espirituais, eis a proposta para o Animador Sociocultural
incluir na sua autoformação permanente.
A Persistência Humanescente
Hexagrama 53 – CHIEN
Desenvolvimento (Progresso Gradual)
A Persistência como vivência humanescente na autoformação permanente
do Animador Sociocultural está representada pelo hexagrama 53 do I Ching,
denominado Desenvolvimento – Progresso Gradual, sendo constituído pelo trigrama
Quietude – Montanha abaixo e pelo trigrama Suavidade – Vento – Madeira acima. O
hexagrama 53 traz a imagem de uma árvore que se desenvolve lentamente na montanha,
mantendo-se firmemente enraizada. Esta representação sugere a idéia de um
desenvolvimento que avança gradualmente, passo a passo. Os atributos constituintes
dos trigramas indicam a tranqüilidade interior como proteção para evitar atitudes
precipitadas e o poder penetrante da suavidade que possibilita o desenvolvimento e o
progresso.
Vivenciar a Persistência Humanescente no decorrer do processo de
autoformação permanente do Animador Sociocultural significa exercitar continuamente
pequenas mudanças na estrutura do seu Ser Luminescente como a sutileza de detalhes
que fazem a diferença numa Obra de Arte. Como as formalidades que devem ser
cumpridas para que uma cerimônia de casamento se realize, as aprendizagens vivenciais
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de Persistência exige constante aprimoramento moral. É importante saber fluir, porque a
precipitação não contribui para resultados humanescentes duradouros. A tranqüilidade
interior deve manifestar-se exteriormente como suavidade, capaz de adaptar-se a
diferentes situações desafiantes da vida, ao mesmo tempo que sabe ser penetrante. Para
o Animador Sociocultural, trata-se de um aprendizado que precisa constantemente
mobilizar nas suas ações para fazer fluir a Alegria de Viver.
A Persistência Humanescente como uma árvore que cresce sobre a
montanha, pode ser vista de longe, e o seu desenvolvimento exerce uma influência
positiva na paisagem do local. Não podendo crescer rapidamente como as plantas do
pântano, o seu desenvolvimento é gradual. Assim, para que o Ser Luminescente exerça
uma influência positiva sobre o mundo, é necessário que a sua personalidade adquira
autoridade pelo exemplo de aperfeiçoamento moral que se alcança no decorrer de um
longo percurso de vida.
A Serenidade Humanescente
Hexagrama 57 – SUN
A Suavidade (O Penetrante, O Vento)
A Serenidade como uma vivência humanescente da autoformação do
Animador Sociocultural, está representada pelo hexagrama 57 – SUN, que significa a
Suavidade, o Penetrante, o Vento. Este hexagrama é constituído pelo trigrama Vento,
Suavidade, Madeira, tanto abaixo como acima. Como atributo desse hexagrama, a
suavidade é tão penetrante como o vento ou como a madeira através de suas raízes.
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Assim, o princípio da escuridão é dissolvido pelo penetrante princípio do luminoso,
como o vento dispersa as nuvens acumuladas no céu, deixando-o claro e sereno. Na
autoformação humanescente do Animador Sociocultural, a viagem interior para a sua
contínua autotransformação como Ser Luminescente vai removendo as sombras no seu
coração, tornando os seus sentimentos cada vez mais irradiantes da luz da Alegria de
Viver. Para a sua tarefa de animação, esta irradiação de alegria é como o vento,
penetrando suavemente nos corações e despertando emoções que passam a vibrar com
mais harmonia e beleza.
O aprendizado permanente da Serenidade Humanescente pelo Animador
Sociocultural é algo extremamente necessário para que a sua intervenção na sociedade
não se confunda com a simples movimentação ou agitação de pessoas e grupos com
aparência de alegria. A sua penetrante clareza da perspectiva humanescente do lazer
poderá dissolver muitas das sombrias expectativas artificiais criadas pela cultura de
consumo. A sua serena personalidade contribuirá para elevar o valor ético da Alegria de
Viver plenamente humanescente.
A suavidade penetrante produz efeitos graduais e imperceptíveis. Para isso, é
preciso ter clareza de propósitos, de modo que a ação constante na mesma direção possa
favorecer a obtenção de resultados humanescentes esperados. Aprender com a
suavidade do vento a serenar o coração, para que este possa então irradiar sentimentos
de Serenidade para acolher corações aflitos que perderam o verdadeiro sentido da vida e
da Alegria de Viver.
A Serenidade Humanescente na Vida do Animador Sociocultural é uma
conquista de elevado valor ontológico. A sua harmonização interior é fundamental para
que possa fluir suavemente com a diversidade cultural dos ventos que sopram no campo
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das vivências do lazer. Tal como um artista, a sua tarefa estética é fazer das alegrias da
vida a Alegria de Viver.
A Autotranscendência Humanescente
Hexagrama 10 – Lu A Conduta (Trilhar)
A Autotranscendência Humanescente como vivência da autoformação
permanente do Animador Sociocultural está representada pelo hexagrama 10 – LU,
denominado de A Conduta – Trilhar, sendo constituído pelo trigrama Alegria abaixo e
pelo trigrama O Criativo acima. O significado desse hexagrama refere-se ao modo ético
de se comportar em sociedade. Acima o céu, o pai e abaixo o lago, a filha mais moça.
Os dois trigramas realizam movimentos ascendentes.
Para o Animador Sociocultural, a vivência de autotranscendência
humanescente na sua autoformação permanente significa a manutenção do contínuo
diálogo entre o poder da alegria e o poder do criativo. Como ambos se abrem à
verticalidade, dependendo da intensidade do movimento de cada um e do momento em
que se encontram, definem um tipo de envolvimento específico entre os dois. Nessa
dança entre a alegria e o criativo, é a alegria que impulsiona o criativo para ir mais
além. Há, portanto, uma direcionalidade ascendente que busca o céu, o infinito.
Na Dança Humanescente da Autoformação do Animador Sociocultural, a
coreografia do trilhar entre a alegria e o criativo tem um valor ontológico peculiar por
conduzir o Ser Luminescente ao encontro com o Infinito Espiritual, com a Obra de Arte
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Maior. A alegria que é vivenciada com a totalidade do nosso Ser Luminescente é capaz
de produzir um determinado padrão vibratório de harmonia cósmica nos conduzindo
naturalmente a autotranscendência, a auto-iluminação da nossa própria Obra de Arte
Ontológica.
Para dar vida a esta concepção de autotranscendência humanescente que
celebra com Dionísio o encontro da Alegria e do Criativo para além das culminâncias
montanhosas, trazemos Nietzsche que tão bem soube esculpir com sangue o sonho de
Viver a Vida como Uma Obra de Arte.
Em janeiro de 1882, após conceber inicialmente o personagem Zaratustra
para a sua futura obra-prima, e estando envolvido com a criação do livro “A Gaia
Ciência”, Nietzsche refletia sobre sua época em que todos se permitiam expressar os
seus mais elevados desejos e pensamentos e então ele gostaria também de revelar o que
mais desejava e qual tinha sido o primeiro pensamento a brotar do seu coração naquele
início de ano. Pensamento que deveria tornar-se razão, garantindo a doçura de toda a
existência que acreditava ainda ter, expressando-se assim: “Desejo aprender cada vez
mais a ver o belo na necessidade das coisas: É assim que serei sempre daqueles que
tornam as coisas belas. Amor fati (amor ao destino): seja assim, de agora em diante, o
meu amor”22. Explicava o seu pensamento, afirmando que não pretendia fazer guerra ao
que fosse feio, nem acusar, mesmo os acusadores. Sua atitude implicava em desviar o
olhar como única forma de negação. A partir daquele momento pretendia se tornar
simplesmente uma pessoa que dizia Sim à Vida.
Um filósofo, um poeta, um educador que disse sim à vida, que compôs um
Hino à Vida, que concebeu sua obra-prima Zaratustra como um Musical da Vida para a
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Vida, tornou-se um símbolo extraordinário de autotranscendência, tendo demonstrado
com a própria vida o profundo significado da sua “vontade de potência”.
A Alegria de Viver e o Animador Sociocultural:
Para Fazer da Vida Uma Obra de Arte
Fazer da Vida uma Obra de Arte! Convidamos Nietzsche para ser o nosso
guia nessa aventura epistemológica que busca configurar o Lazer como Obra de Arte e
propor uma autoformação humanescente para o Animador Sociocultural, de modo que
este possa corajosamente desbravar as trilhas sinuosas da Alegria de Viver e assim
poder contribuir para transformar a enorme diversidade cultural de vivências do lazer
em autênticas Obras de Arte da Vida.
Nietzsche é um filósofo-poeta da Vida. O seu filosofar existencial sobre a
vida humana não pode ser separado de uma compreensão da história, da cultura e da
política,23 mas sob um novo paradigma estético. O ser humano ressurge como “Obra de
Arte da Vida”, contrapondo-se a “um logocentrismo dogmático do princípio da razão”,
que o afastou da relação com o seu ser interior, ou seja, que o distanciou das
profundezas da sua natureza.24 Para Nietzsche, “só como fenômeno estético podem a
existência e o mundo justificar-se eternamente”25. Sobre a essência da arte, expressava-
se assim o filósofo-poeta:
Somente na medida em que o gênio, no ato da procriação artística, se funde com o artista primordial do mundo, é que ele sabe a respeito da perene essência da arte; pois naquele estado assemelha-se, miraculosamente, à estranha imagem do conto de fadas, que é capaz de revirar os olhos e contemplar-se a si mesma; agora ele é ao mesmo tempo sujeito e objeto, ao mesmo tempo poeta, ator e espectador26.
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Para Nietzsche, só uma revolução dionisíaca da existência humana na
contemporaneidade faria emergir uma nova cultura do vivido, onde a arte retornaria às
fontes do seu impulso metafísico, podendo “reassumir o seu papel no jogo estético da
existência”, e o ser humano retomaria “o poder de vivenciar-se e mirar-se na plenitude
de seu ser e seu devir”. A Obra de Arte do futuro deveria adquirir “o sentido de uma
totalização utópica da Vida pela Arte, com o espetáculo de sua celebração...”27.
“Humano, Demasiado Humano” não é apenas o título de uma obra filosófica
de Nietzsche, mas simboliza a sua “vontade de potência” para a autotranscendência: “é
o monumento comemorativo de uma crise”. Um livro dedicado aos “espíritos livres”28.
Declara o filósofo-poeta que nunca foi mais feliz do que no período em que sua saúde
esteve gravemente ameaçada por doenças. Só assim pôde compreender o retorno a si
mesmo: “uma forma superior de cura! A outra cura foi uma conseqüência dessa”.29
Um filósofo que passou e volta a passar por numerosos estados de saúde, passa igualmente por outras tantas filosofias: não pode fazer, de cada vez, outra coisa senão espiritualizar seu estado. [...] Viver é para nós transformar em luz e flama tudo aquilo que somos e também tudo aquilo que nos atinge; não podemos agir de outra maneira [...] Duvido que semelhante sofrimento nos aperfeiçoe... mas sei que nos torna mais profundos [...] Ainda lhe é possível amar a vida; apenas de modo diferente [...] Conhece-se uma felicidade nova...30
Fazer da Vida uma Obra de Arte! Eis o princípio norteador para a aventura
epistemológica nos terrenos montanhosos do Lazer. Um convite aos animadores-poetas
que desejam mais Vida para as suas Vidas, mais Vida para a Animação Sociocultural.
Imaginar e vivenciar as emoções mais profundas do Ser Luminescente no
topo da montanha! É uma aventura para aqueles que sabem sonhar o sonho dos
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desbravadores. A metáfora da altura é por excelência uma metáfora axiomática. Aos
Animadores Socioculturais:
Não se pode dispensar o eixo vertical para exprimir os valores morais. Quando tivermos compreendido melhor a importância de uma física da poesia e de uma física da moral, chegaremos a esta convicção: toda valorização é verticalização. [...] É na viagem para cima que o impulso vital é o impulso hominizante.31
Nietzsche é o filósofo que bem representa o complexo da altura. Na
dinâmica simbólica da ascensão, com muita naturalidade, o gênio uniu o pensamento à
imaginação para produzir mais pensamento. Bachelard traz a expressão de Milosz,
“Superior, ele sobrepuja”, para reverenciá-lo: “Ele nos ajuda a sobrepujar porque
obedece com maravilhosa fidelidade à imaginação dinâmica da altura”.32
Subir a montanha para epistemologizar o Lazer como Obra de Arte!
Montanha que simboliza transcendência, encontro cósmico entre o céu e a terra. Subida
rumo ao desconhecido, ao inusitado. É preciso desapegar-se de idéias e sentimentos
pesados. Escalar a montanha da Epistemologia da Vida pressupõe leveza de corpo e
alma. Desejo de transmutar valores que envolvem o Ser Luminescente na sua totalidade.
A nossa imaginação nos conduziu ao topo da montanha. Aqui, Ciência,
Filosofia, Arte e Espiritualidade se misturam como realidade e virtualidade. Juntamente
com outros animadores-desbravadores, estamos prontos para a tarefa epistemológica
que aceitamos como desafio.
Na montanha da Beleza representada pelo hexagrama 22 do I Ching, é o
fogo que a ilumina, que a embeleza e que simboliza a Vida. Estando no alto da
montanha, sentimos o poder dessa luminosidade que irrompe das profundezas da Terra.
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Como seres da Natureza que somos, temos plena consciência do poder da nossa chama
interior, mas ainda não sabemos mobilizá-la adequadamente para um Bem Maior.
Com Nietzsche, aprendemos que aqueles que pensam sobre a vida como
filósofos deveriam ser os mais importantes Animadores da Vida, da Vontade da Vida,
devendo mostrar sua Vida concretamente vivida como exemplo de sua Filosofia de
Vida. Assim, a Filosofia e a Vida de um pensador deveriam ser apreciadas como Obra
de Arte, por sua beleza e por servir como modelo de uma “bela possibilidade de vida”.
Animadores Socioculturais, como os filósofos de Nietzsche, deveriam se
aprimorar na Arte da Alegria de Viver para assim poderem exibir com dignidade a sua
autêntica Obra de Arte Viva, corporalizada no seu existir humanescente.33
Referências
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SCHILLER, Friedrich. 1995. A educação estética do homem, numa série de cartas. 3ª ed. Trad.: Roberto Schwartz, Márcio Suzuki. São Paulo : Iluminuras. SPINOZA, Baruch. 2003. Ética, demonstrada à maneira dos geômetras. São Paulo: Martin Claret. WILHELM, Richard. 1991. A sabedoria do I Ching. Mutação e permanência. São Paulo: pensamento. WRIGHT MILLS, Charles. 1975. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar
Dados da autora
Licenciada em Educação Física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1974, fez Especialização em Lazer e Recreação na PUC do Rio Grande do Sul em 1976; Mestrado em Educação Física na UFRJ em 1982; Doutorado em Filosofia na UGF em 1984; Pós-Doutorado em Motricidade Humana na Universidade Técnica de Lisboa em 1994. Coordena a Linha de Pesquisa Corporeidade e Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRN, Brasil, desde 1996. É Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (2003-2007). E-mail para contato: [email protected]
Notas
1 Curso de Especialização em Lazer e Recreação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 2 Concepção publicada no livro Questionamento Teórico do Lazer que resumiu as palestras proferidas no Curso de Especialização em Lazer e Recreação, em 1975. 3 Para Bachelard, “no estado de pureza alcançado por uma psicanálise do conhecimento objetivo, a ciência é a estética da inteligência” (Bachelard, 1996, p. 13, publicado em 1938). 4 ibid, p. 24: “colocar a cultura científica em estado de mobilização permanente, substituir o saber fechado e estático por um conhecimento aberto e dinâmico, dialetizar todas as variáveis experimentais, oferecer enfim à razão razões para evoluir”. 5 A Imaginação Sociológica de Wright Mills publicada em 1958. 6 A metáfora da Dança Humanescente da Autoformação do Animador Sociocultural envolve três conceitos fundamentais: Dança, Humanescência e Autoformação. Esses conceitos são expressões da Vida que se articulam em torno da Humanescência, que se refere ao processo de desenvolvimento do Ser através da mobilização de sua energia luminescente. Escolhemos a dança por representar uma estrutura estética fluida de manifestação da Vida, como tão bem demonstrou Isadora Duncan. A Autoformação como uma dança humanescente pretende captar o sentido atribuído por Joffre Dumazedier ao longo de toda sua militância política, científica e educativa quando destacava o papel da autoformação como lazer e vice-e-versa. Ver Penser l’autoformation: société d’aujourd’hui et pratiques d’autoformation. 7 Hubert Reeves em Malicorne: reflexões de um observador da natureza. Na apresentação de sua obra dedicada aos enamorados da Ciência e da Poesia, Reeves ressalta que ao longo de todo o livro a noção do jogo se faz muito presente na elaboração da complexidade cósmica. Denomina de “espaços de liberdade”, onde esses jogos podem ser jogados, tanto na dimensão cósmica como na dimensão humana. 8 Para sonhar uma Epistemologia Humanescente do Lazer, Dumazedier nos deixou inúmeras pistas. Uma obra recente, organizada por Georges Le Meur, vários pesquisadores que conviveram com Dumazedier apresentam depoimentos emocionantes sobre sua marcante personalidade como Homem e Pesquisador do Humano. 9 Ver Le métier d’animateur e Guide de l’animateur socio-culturel.
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10 A Autoformação Permanente do Educador e do Animador Sociocultural sempre foi uma preocupação de Dumazedier que complementava os seus estudos da Sociologia do Lazer. Na sua obra La Leçon de Condorcet, fruto de uma jornada acadêmica para celebrar os duzentos anos do Rapport Condorcet (1792-1992), pode-se encontrar essas reflexões ao longo das suas exposições e comentários. 11 A Galáxia da Autoformação é uma estrutura conceitual adotada pelo GRAF, sendo constituída por um núcleo central que representa a Autoformação por Si Mesmo, e mais cinco categorias específicas que giram em torno desse núcleo central: Autodidaxia (apropriação dos saberes fora dos sistemas educativos); Autoformação Cognitiva (aprender a aprender); Autoformação Educativa (aprender nos dispositivos abertos); Autoformação Social (aprender no e para o grupo social); Autoformação Existencial (aprender a ser). 12 A Teia da Corporeidade é uma metáfora epistemológica que encontra-se em desenvolvimento pelo Grupo BACOR/UFRN/Brasil, articulando princípios como a ludicidade, a criatividade, a sensibilidade, a reflexividade para a construção de saberes e sentimentos humanescentes. 13 A Dança Humanescente concebida para representar epistemologicamente a Autoformação do Animador Sociocultural foi inspirada em Isadora Duncan que fez da Dança sua Vida, sua Obra de Arte. Uma composição coreográfica com oito estruturas corpóreas em movimento contínuo que giram em torno de uma estrutura luminescente primordial, interagindo reciprocamente. 14 Para cada componente da Galáxia da Autoformação Humanescente foi associado um hexagrama do I Ching como metáfora para caracterizar poeticamente aquele princípio humanescente. Para o núcleo central que traz condensada a energia da Beleza Humanescente da Obra de Arte, associamos o hexagrama 22, Graciosidade (Beleza). Para a Simplicidade Humanescente – o hexagrama 61, Verdade Interior; para a Confiança Humanescente – o hexagrama 16, Entusiasmo; para a Alegria Humanescente – o hexagrama 58, Alegria (Lago); para a Coragem Humanescente – o hexagrama 51, O Incitar (Comoção, Trovão); para a Persistência Humanescente – o hexagrama 53, Desenvolvimento (Progresso Gradual); para a Serenidade Humanescente – o hexagrama 57, A Suavidade (O Penetrante, O Vento); para a Autotranscendência Humanescente – o hexagrama 10, A Conduta (O Trilhar). 15 A intensidade do brilho do Ser Luminescente depende, portanto, da harmonia de cada estrutura de autoformação humanescente como da beleza do seu conjunto. 16 Richard Wilhelm inicia a introdução de sua tradução do I Ching com essas palavras: “É sem dúvida, uma das mais importantes obras da literatura mundial. Sua origem remonta a uma antiguidade mítica, tendo atraído a atenção dos mais eminentes eruditos chineses até os nossos dias. Tudo o que existiu de grandioso e significativo nos três mil anos de historia cultural da China ou inspirou-se nesse livro ou exerceu alguma influência na exegese do seu texto” (Wilhelm, 1989). 17 De acordo com Richard Wilhelm (1991), o fator decisivo no pensamento chinês é o reconhecimento da mutação como essência primordial. Esta concepção se coloca numa posição intermediária entre o Budismo e a Filosofia Existencial Ocidental: oposição e união são geradas em conjunto no tempo. Para se encontrar a harmonia entre o interior e o exterior é necessário encontrar o posicionamento devido e este está no centro. 18 Em A Educação Estética do Homem, Schiller vai afirmar que “não errará jamais quem buscar o ideal de beleza de um homem pela mesma via em que ele satisfaz seu impulso lúdico”. Buscando inspiração em Vênus, Juno e Apolo, Schiller vai trazer a razão para anunciar com ela: “o homem deve somente jogar com a beleza e somente com a beleza deve jogar”. E tendo a beleza como aliada da razão, Schiller vai esculpir para a eternidade um pensamento lapidar: “o homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra, e somente é homem pleno quando joga”. O seu entusiasmo pela Beleza Ideal era tão presente na sua vida, manifestando-se com clareza nesta afirmação: “o belo ideal, embora indivisível e simples, em contextos diversos apresenta tanto uma propriedade suavizante quanto uma enérgica; na sua experiência existe uma beleza suavizante e outra enérgica. Isso é e será assim sempre que o absoluto seja posto nos limites do tempo e as Idéias da razão devam ser realizadas na humanidade”. E assim para Schiller, “a tarefa da educação estética é fazer das belezas a beleza”. 19 Spinoza usa o termo “afecções” para tratar da vida das emoções. Iniciando a discussão sobre a origem e natureza das emoções na parte III da Ética, o filósofo afirma categoricamente que: “a maior parte daqueles que escrevem sobre as afecções e a maneira de viver dos homens parecem ter tratado, não das coisas naturais que seguem as leis comuns da Natureza, mas de coisas que estão fora da Natureza”. A sua definição de emoção aceita hoje pela Neurociência, traz também a noção da “potência de agir” que aumenta ou diminui conforme a natureza positiva ou negativa da emoção. 20 Maria Cândida Moraes, na sua obra Educar na Biologia do Amor e da Solidariedade desenvolve conceitos da teoria de Maturana e Varela para o campo da educação. Ao apresentar a sua obra, destaca
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que: “educar e aprender são fenômenos biológicos fundamentais que envolvem todas as dimensões do ser humano, em total integração do corpo e do espírito, e do ser com o fazer”. Acrescenta ainda que “educar na biologia do amor e da solidariedade implica a integração entre o sentir, o pensar e o agir, a integração entre razão e emoção, o resgate do sentimento como expressão da nossa verdade interior”. 21 António Damásio tratou das emoções em três obras que se complementam: O Erro de Descartes, O Sentimento de Si e Em Busca de Espinosa. Nesta última, o autor focaliza especificamente os sentimentos, o que são e o que fazem, procurando descrever o progresso que se tem feito no entendimento da natureza e significado humano dos sentimentos como neurologista e neurocientista. 22 Nietzsche, 2004a, A Gaia Ciência, p. 143 23 Ansell-Pearson, 1997, p. 17. 24 Guinsburg, 2003, p. 156. 25 Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, p. 47. 26 ibid, p. 48. 27 A Vida pela Arte (o grifo é nosso) Guinsburg, op. cit., pp. 170-171. 28 Nietzsche em Humano Demasiado Humano faz uma representação da Filosofia como o “desmancha-prazeres da ciência”: “A filosofia se divorciou da ciência ao indagar com qual conhecimento da vida e do mundo o homem vive mais feliz. Isso aconteceu nas escolas socráticas: tomando o ponto de vista da felicidade, pôs-se uma ligadura nas veias da investigação científica - o que se faz até hoje”. 29 Nietzsche, 2004b, p. 89. 30 Nietzsche, 2004a, pp. 16-17. 31 Bachelard, 2001, p. 11. Para o autor, “o dinamismo positivo da verticalização é tão nítido que se pode anunciar este aforismo: quem não sobe, cai”. 32 ibid, pp. 16-17. 33 Sobre a temática da corporeidade, humanescência e lazer, ver artigo publicado pela Associação de Estudos do Lazer – LSA, março, 2007.