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Leitura, literatura e redes sociais: a formação do leitor na era digital
Juliana A. B. Menezes (Doutoranda, UNESP, Assis)
Everton L. P. Vinha (Graduando, UEM, Maringá)
"Concordo plenamente com você", disse a Duquesa; "e a moral disso é ‘Seja
o que você parece ser’… ou, trocando em miúdos, ‘Nunca imagine que você
mesma não é outra coisa senão o que poderia parecer a outros do que o que
você fosse ou poderia ter sido não fosse senão o que você tivesse sido teria
parecido a eles ser de outra maneira’. (CARROLL, 2009, p.106)
Resumo: Discutir o percurso que vai do consumo e da construção da imagem via redes sociais
até as leituras mais desafiadoras como o conto Alguma Coisa Urgentemente (1997), de João
Gilberto Noll constitui-se na proposta deste artigo. Tal propósito fundamenta-se em dois
expoentes da Estética da Recepção: Wolfgang Iser (1999) e Hans Robert Jauss (1994), além
do apoio das reflexões de Adorno (2000) e de Walter Benjamin (2000) com seus estudos sobre
o mercado da arte na era moderna. Centramos a abordagem nas questões fundamentais que
envolvem a construção da imagem dos sujeitos-personagens, ditos, pós-modernos, na rede
social. Escolhemos assim, aleatoriamente, um perfil de Facebook e analisamos como o usuário
cria o seu discurso e constrói uma imagem que se revela, na prática, permeada por vazios.
Paralelamente, analisamos o percurso da personagem central do conto de Noll (1980) e
cruzamos os dados para concluir como a temática da aparência se revela nesses dois objetos de
estudo. Discutimos neste texto, ademais, o papel desempenhado pelo Facebook na divulgação
de modos de leitura e na reprodução de figuras ideais, como uma alternativa de aproximar o
repertório do aluno com o texto literário, bem como o universo social.
Palavras-chave: Leitura; literatura; redes sociais, formação de leitor.
Abstract: The paper aims to discuss the route from consumption and the construction of the
image trough social networks up to further challenging readings, such as the tale Alguma coisa
urgentemente (1980), by João Gilberto Noll. The proposal is based on two exponents of the
Reception Theory: Wolfgang Iser (1999) and Hans Robert Jauss (1994); and also, the
reflections of Adorno (2000) and Walter Benjamin (2000) around the art market in the modern
era. The study focuses on the approach that involves fundamental questions toward the
construction of the subjects-characters’ image on social medias. Randomly a Facebook profile
was picked and analysed how the user elaborates its speech and construct its image that reveals
itself, in practical matters, full of emptiness. At the same time, it was analyzed the course taken
by the main character of Noll’s tale (1980),and also, it was crossed the date to conclude how
the theme such as appearance reveals itself in these two objects of study. After all, it was
debated on this paperwork the role played by Facebook, concerning the promotion of ways of
reading and the reproducing of ideal figures, as an alternative way to relate the student’s
background with the literary text and the social context.
Keywords: reading; literature; social network; readers formation.
1. O esvaziamento do sujeito midiático: um personagem “pós-moderno”
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O sujeito esvaziado, o sujeito cindido, as múltiplas identidades do sujeito, a narrativa
de si, o limiar tênue entre a essência e a aparência dos sujeitos, todos esses são temas afins que
parecem ter emergido nos estudos das ciências sociais inseridas no contexto de uma sociedade
pós-moderna. Desde Benjamin a Hall, passando por Adorno, a crise na qual o sujeito “pós-
moderno” encontra-se para definir a si e/em relação ao outro é palpável inclusive nos domínios
mais "banais" do cotidiano. Carroll (2009), entretanto, ainda antes desses três autores
previamente citados, já se colocava frente à questão, como exemplificado no trecho retirado da
obra Alice no País das Maravilhas.
No precedente excerto da obra nada infantil (considerando a carga negativa e discutível
que o termo empregado remete) e permeada por questionamentos existencialistas, a
personagem Duquesa, em um diálogo que brinca com a referencialidade, a relação
hiperônimo/hipônimo e a lógica da linguagem, diz a Alice que essa deveria "ser o que parecia
ser". O jogo de palavras que se segue a essa afirmação reforça o ponto de vista da personagem
para quem a simplicidade da aparência latente é mais valorosa do que a complexidade de uma
patente essência. Contemporaneamente, as construções identitárias digitais das redes sociais só
fazem ecoar esse mesmo ponto de vista, expresso por uma personagem em uma obra literária
do século XIX tida como infantil.
Benjamin (1975), no egrégio ensaio A obra de arte na época de suas técnicas de
reprodução, indiretamente adentra a problemática dos sujeitos modernos ao tratar da massa
enquanto consumidora da obra de arte em uma época que a reconfigurou e a destituiu do que o
autor chama de aura. Em citação direta à Duhamel (1930, p.52 apud Benjamin, 1975, p.31),
apresenta o pensamento do espectador, portanto sujeito das novas massas, diante da
manifestação artística cinematográfica: "Já não posso meditar no que vejo. As imagens em
movimento substituem meu próprio pensamento". E não é assim que os sujeitos
contemporâneos se colocam diante do uso das redes sociais, espectadores passivos e inertes
das imagens tomando-lhe o espaço da reflexão, curtidas e compartilhamentos substituindo o
ato de pensar?
Ainda sobre as massas, Benjamin (1975, p.31-32) assevera que a suas necessidades
passaram a determinar a produção artística de modo que a "quantidade tornou-se a qualidade",
uma vez que as massas "procuram a diversão", fim contraditório ao das artes, que exigem ser
contempladas e refletidas. Apesar de não adotar tom acusatório, afirma ele mesmo que essa
proposição não é inédita, mas que pertence ao senso comum. Tal senso comum que ainda hoje
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mantém a diferenciação entre o consumo da arte e o consumo daquilo que se define por não
sê-la, seja no campo da arte massificada ou mesmo daquilo que consome-se diária e
compulsivamente nas redes sociais: obras de artes reproduzidas e ressignificadas na forma do
gênero meme, textos críticos-opinativos de autoria não mais especializada, músicas parodiadas,
cenas descontextualizadas e deslocadas do todo de sua obra, a nova era dos autorretratos com
as selfies.
O que percebe-se quanto aos sujeitos em sua relação com a reprodutibilidade das obras
de arte, sobretudo nas redes sociais como grupos de WhatsApp ou perfis do Facebook é que
aproxima-se cada vez mais do que antes era um tido como um agouro da “pós-modernidade” e
da era digital: a concentração e a capacidade reflexiva de que o sujeito antes demandava para
analisar uma pintura, uma sinfonia ou um texto literário está em vias de extinguir-se, se não já
extinta, sobretudo nos sujeitos que compõem as massas. Embora Benjamin não demonize esse
novo modus operandi do consumo de arte, no âmbito acadêmico, mormente na área do ensino
e aprendizagem, a ausência de capacidade analítica é uma inquietação.
Horkheimer e Adorno (2002), que junto de Benjamin constituem a "tríade do pensar
sobre a Indústria Cultural", aprofundam-se ao tratar das massas e da sua alienação, fruto das
novas técnicas de reprodução da indústria cultural. Se Benjamin (opus cit.) aponta para a cada
vez mais desnecessária reflexão por parte dos espectadores, ora lidos de modo mais amplo
como consumidores das obras de arte, Horkheimer e Adorno (opus cit.) asseveram
categoricamente que a Indústria Cultural é responsável pela alienação, homogeneização e
artificialidade das massas.
Para os autores, em análise da perspectiva da indústria cultural, a sociedade é
responsável pelo sua autoalienação, enquanto as massas são homogeneizadas conforme os
produtos da indústria cultural deixam de considerar os consumidores na sua posição de sujeito
(HORKHEIMER; ADORNO, 2002, p. 170). Mais à frente, trata da artificialidade com que as
diferenças são tratadas e aponta para o que chama de "atrofia da imaginação e da
espontaneidade" (HORKHEIMER; ADORNO, 2002, p. 73).
A atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural de hoje
não tem necessidade de ser explicada em termos psicológicos.[...] (Os
produtos) Eles são feitos de modo que sua apreensão adequada (...) é feita de
modo a vetar, de fato, a atividade mental do espectador, se ele não quiser perder
os fatos que, rapidamente, se desenrolam à sua frente." (HORKHEIMER;
ADORNO, 2002, p. 73).
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O contexto histórico em que os dois autores estão situados é décadas anterior à Era
Digital, ligados a relação dos consumidores com o rádio e o telefone, mas ainda assim suas
palavras nunca foram mais atuais. Não só isso, o diálogo entre esse excerto e a proposição de
Benjamin (op. cit.) de que o cinema reduz em muito a necessidade de reflexão é incontestável.
As idiossincrasias dos sujeitos sofrem um apagamento ao serem massificados em um bloco
uniforme de consumidores dessa indústria. Ademais, há o apagamento também de qualquer
"senso crítico", colocando os indivíduos em um estado de conformismo (HORKHEIMER;
ADORNO, 2002, p. 177).
Esse esvaziamento dos sujeitos se dá ainda por outros fatores. Os filósofos falam ainda
em "negação do estilo" (HORKHEIMER; ADORNO, 2002, p. 175), em que os produtos da
indústria cultural primem pela imitação e, talvez o apontamento mais pertinente e mais próximo
ao foco da análise ser empreendida, nas relações da indústria cultura com o divertimento, o
sexo e o belo. Para Horkheimer e Adorno (2002, p.179), "a indústria cultural permanece a
indústria do divertimento" e "só aceita a ausência de significado". Não só destituído de vontade
própria e com seu interesse de consumo engendrado pela própria indústria, os sujeitos da e na
indústria cultural vivem a necessidade da felicidade sem qualquer significado, da qual são
imbuídos pelos produtos culturais de massa. "Na falsa sociedade, o riso golpeou a felicidade
como uma lebre e a arrasta na sua totalidade insignificante" (HORKHEIMER; ADORNO,
2002, p. 181).
O sujeito até então homogeneizado em suas necessidades e em sua essência não mais
relevante, prescindido em significados em detrimento ao "diabólico do falso riso", é também
dividido: "(A cultura industrializada) Esta sobrevive ao alinhamento organizado dos costumes,
nos choques dos homens divididos, nos alegres filmes por eles produzidos, sobrevive, por fim,
na realidade" (HORKHEIMER; ADORNO, 2002, p.182). Vive-se uma época em que o limiar
entre a realidade e a tela, o ficcional, o aparelho, é cada vez menos discernível; uma época em
que os embates entre os sujeitos é cada vez mais frequente, sujeitos esses que, em sua maioria,
recorrem a esse "alinhamento organizado dos costumes" para identificar-se e resguardar-se.
Essa visão do sujeito esvaziado e dividido, que busca para si uma identidade pela
identificação múltipla, é o que Hall (2005), ao tratar da identidade na pós-modernidade, chama
de sujeito pós-moderno. Sofrido todas as reviravoltas da modernidade das quais a indústria
cultural é grande responsável, o sujeito pós-moderno deixa de apresentar uma identidade "fixa,
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essencial ou permanente" (HALL, 2005, p.12) e, devido a constante mudança do que chama de
modernidade tardia, passa por um processo de identificação (in)constante conforme suas
relações com os sistemas culturais. A imagem de uma identidade plena resiste, no entanto, no
que Hall (1990apud HALL, 2005, p. 13) chama de "narrativa do eu".
"A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma
fantasia. Ao invés disso, a medida que os sistemas de significação e
representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma
multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis (...)."
(HALL, 2005, p.13).
O sujeito “pós-moderno”, percebe-se, define-se múltiplo, identificando-se a diversos
grupos mas construindo para si próprio uma imagem de identidade plena na chamada "narrativa
do eu". Essa identificação é concebida por uma falsa ideia de originalidade e poder de escolha,
como propõem Horkheimer e Adorno (2002), fruto da Indústria Cultural que homogeneíza os
consumidores, criando neles necessidades a serem supridas pelos produtos da própria indústria,
indústria essa transformada pela reprodutibilidade técnica proposta por Benjamin (1975). Tal
indústria reafirma o ideal de belo esvaziado de qualquer sentido e vende a alegria inalcançável
e superficial.
Em busca de identificar essas interpelações da indústria cultural e da modernidade
tardia na constituição da identidade do sujeito, sujeito esse esvaziado e assujeitado à cultura do
belo e da felicidade desprovidos de significado, dedicou-se a análise dessa constituição na rede
social Facebook. Isso porque, quando se levanta termos como "artificialidade" e "narrativa do
eu", sobretudo correlacionados, não há como não se remeter aos perfis dessa rede social.
Extensa lista de amigos, fotos, vídeos, músicas, textos, notícias, avaliações, check-ins, curtidas
e compartilhamentos,tudo no Facebook parece fazer eco as teorias levantadas.
Para tanto, escolheu-se aleatoriamente um perfil na rede social de um jovem abaixo dos
18 anos que servisse de corpus para a análise. Após a busca, o perfil escolhido foi o de uma
jovem de uma cidade do interior do noroeste do Paraná, com menos de 18 anos. O objetivo foi
perceber qual a natureza do conteúdo circulado no perfil dessa jovem, de que maneira ela
constrói sua imagem, narra sua identidade, no perfil da rede social, tendo em vista as asserções
teóricas e o perfil traçado do personagem do conto de Noll.
A começar pelas fotos de perfil e de capa,que são as duas imagens que o usuário da rede
social tem acesso e primeiro faz a leitura ao acessar o perfil. A foto de capa, a primeira imagem
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verticalmente no perfil, traz a jovem acompanhada de uma senhora idosa, possivelmente uma
pessoa da família ou alguém por quem a usuária tem grande apreço, dada a posição de destaque
reservada a imagem. Nela, ambas sorriem para a câmera, posicionada em frente às duas. Ao
clicar na imagem, vê-se que essa foi publicada em 6 de abril sem nenhuma legenda, mas, ao
ler os comentários, tem-se a confirmação de que se trata da avó da jovem. Para essa foto foram
58 curtidas e reações, além de 3 comentários.
A segunda foto em destaque é a de perfil, uma imagem frontal da jovem visivelmente
bem vestida e maquiada, no ângulo conhecido nas redes sociais como selfie. Nota-se clara
diferença entre a jovem nas duas imagens: na primeira, não há maquiagem, os cabelos estão
soltos com aparência de não terem recebido nenhum tipo de tratamento; na segunda imagem,
a maquiagem, roupa e cabelos arrumados expõem uma aparência bastante distinta da jovem.
Enquanto a foto de capa do perfil contabilizava 58 curtidas e reações, a foto de perfil atingiu
130, mais que o dobro. O número de comentários, 7, todos tecendo elogios, também aumentou.
Além disso, a jovem adicionou a seguinte legenda à foto"Quem diria a alegria é a melhor
vingança…" seguida por quatro emojis. A menção à palavra "alegria" e à "vingança"
constroem, nesse enunciado, um sentido muito claro de felicidade, força e superioridade, em
suma, uma imagem forte e positiva.
Em seguida, no lado esquerdo da página, vê-se uma coluna de apresentação em que o
usuário pode expor informações como escolaridade, local de trabalho, status de
relacionamento, um trecho escrito descrevendo-se, data de aniversário, dentre outras
informações. Nesse perfil, a jovem limitou-se a duas informações: a primeira delas, uma
descrição com mais três emojis, um deles chorando de gargalhar, e, a segunda delas, seu status
de relacionamento sério. Enquanto a descrição traz pouco sobre a personalidade ou a vida da
usuária, o status de relacionamento em destaque indica para mais um aspecto da construção da
identidade da jovem. Tendo em vista a relevância dos relacionamentos para a estrutura social,
sobretudo onde mulheres são pressionadas pelo sistema a relacionar-se para afirmar seu valor
na sociedade, essa informação não só tem a função de atribuir valor como também age em
favor da construção de um figura até então autoafirmada pela felicidade.
Abaixo da descrição e do status, segue-se uma coletânea de cinco imagens que o usuário
escolhe para por em evidência. Das cinco, três das fotos trazem a jovem acompanhada e duas
a jovem sozinha novamente no ângulo selfie. Das três imagens acompanhada, uma delas é pela
mesma senhora da foto de capa e as outras duas por outras jovens. A diferença entre a foto de
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perfil e a foto de capa se mantém nessa coletânea: a jovem aparece bem arrumada, maquiada,
com roupas curtas e poses nas duas fotos sozinha e nas duas acompanhada por outras jovens
enquanto que a imagem singela construída na foto de capa se mantém apenas na foto em que a
senhora idosa acompanha a jovem, sentada em seu colo.
Das 50 publicações analisadas, publicadas entre 21 de junho de 2017 e 25 de abril de
2017, 18 delas são fotografias. Dessas, em nenhuma delas a jovem aparece acompanhada
novamente da senhora. A única referência possível a essa senhora foi o compartilhamento de
um vídeo amor de uma senhora de idade já bastante avançada conversando com a pessoa que
segura a câmera. Em comemoração ao Dia das Mães, há uma foto da jovem e sua mãe, mas
essa é única referência, nas 50 postagens, à família. O restante das fotos traz ou a jovem sozinha
(as 3 publicações com mais "curtidas") ou a jovem acompanhada de amigos (11, sendo que em
6 dessas os integrantes da imagem estão consumindo algum tipo de bebida alcoólica) ou do
namorado (3 fotos). Há publicações variadas sobre eventos (6, 2 envolvendo bares ou festas),
entretenimento (15 publicações de teor humorístico ou sobre uma única série de televisão norte-
americana) e uma única publicação com caráter crítico: uma frase evocando o humor
"politicamente correto", respeitando as diferenças. Grande parte das publicações (18 delas)
foram feitas por outras pessoas no perfil da jovem e nenhuma delas apresenta qualquer
referência às belas artes, questões sociais, políticas ou históricas.
Diante desses dados, comparados às discussões previamente levantadas acerca da
identidade e da sociedade na pós-modernidade, acreditamos que o poder de escolha na
construção da sua identidade na rede social Facebook permite a essa jovem contar-se, como se
construísse a si mesma enquanto personagem protagonista da própria narrativa. Nessa narração,
os traços e a identidade apresentada não revelam muito acerca do ser por trás desse perfil –
somente as informações limitadas que é decido pela jovem usuária da rede mostrar. Essa
narração de si nas mídias sociais permite pensarmos em um padrão de "personagem pós-
moderno" dos jovens que, não por coincidência, ocupam as carteiras das aulas de literatura e
que, a exemplo do perfil analisado, constroem-se para e diante dos olhos dos outros jovens
personagens espectadores.
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2. Do esvaziamento do sujeito midiático ao esvaziamento do sujeito de Alguma coisa
urgentemente
João Gilberto Noll nasceu em Porto Alegre (RS), em 15 de abril de 1946, trabalhou
como jornalista nos jornais Última Hora e Folha da Manhã, no Rio, para onde se mudou em
1969. Estreou como escritor com um conto na antologia Roda de fogo, organizada por Carlos
Jorge Appel, de Porto Alegre. Em 1980, publicou o livro de contos O Cego e a Dançarina,
pelo qual recebeu diversos prêmios, tais como revelação do ano, da Associação Paulista de
Críticos de Arte (APCA), ficção do ano, do Instituto Nacional do Livro, e o Prêmio Jabuti,
da Câmara Brasileira do Livro. O conto Alguma coisa urgentemente, foi adaptado
pelo cinema brasileiro sob o título Nunca fomos tão felizes, em 1983. O autor também foi
selecionado para figurar no livro Os cem melhores contos brasileiros do século, em 2000.
O enredo traz a construção de uma vida despedaçada que nos é apresentada sob o olhar
de um jovem que fora abandonado pela mãe e pelo pai. “Eu, no começo, achava meu pai tão-
só um homem amargurado por ter sido abandonado por minha mãe quando eu era de colo”
(p. 11). O rapaz vive sozinho com o pai, que nos é apresentado como um homem bastante
misterioso e rotativo, uma vez que o filho não sabia nada sobre a vida desse pai, desconhecia
suas amizades, sobre o seu trabalho e o pai mudava muito de “trabalho, de mulher e de
cidade”(p.11).Existe entre pai e filho uma relação de distanciamento marcadas por profundas
ausências. Em 1969, o pai foi preso no Paraná, por ter repassado armas a um grupo
desconhecido. “Tinha na época uma casa de caça e pesca em Ponta Grossa e já não me levava
a passear” (p.12).Depois disso, o jovem foi colocado num colégio interno em São Paulo. Nesse
local, o rapaz aprendeu ”a jogar futebol, a me masturbar e a roubar a comida dos
padres”(p.12). Quando cresceu, o pai foi buscá-lo e encontrava-se sem um dos braços, quando
então foram morar no Rio de Janeiro. “No Rio fomos para um apartamento na Avenida
Atlântica. De amigos, ele comentou. Mas embora o apartamento fosse bem mobiliado, ele vivia
vazio” (p.13). O rapaz queria saber sobre a vida do pai, mas esse considerava melhor que “ele
não soubesse de nada, pode ser perigoso” (p.13). Quando o pai sumiu de novo e o filho ficou
sem dinheiro, vendo-se impelido a se prostituir.
Ele abriu a porta e disse entra, o carro subiu a Niemeyer, não havia ninguém
no morro em que o homem parou. Uma fita tocava acho que uma música
clássica e o homem me disse que era de São Paulo. Me ofereceu cigarro,
chiclete e começou a tirar a minha roupa. Eu pedi antes o dinheiro. Ele me
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deu as três notas de cem abertas, novinhas. E eu nu e o homem começando a
pegar em mim, me mordia de ficar marca, quase me tira um pedaço da boca.
Eu tinha um bom físico e isso excitava ele, deixava o homem louco. A fita
tinha terminado e só se ouvia um grilo.
—Vamos— disse o homem ligando o carro.
Eu tinha gozado e precisei me limpar com a sunga. (NOLL, 1980, p.15).
No dia seguinte, o pai reaparece, sem dois dentes, e aconselha o filho a ter uma vida
diferente da que ele teve, avisa para que não fale nada à polícia e não tenha medo da tortura,
pois o Estado tinha interesse em evitar escandâlos. Tal cenário gera no rapaz um desejo de
fazer Alguma coisa urgentementenuma tentativa de salvar ao pai e a ele.
Então pensei em denunciar meu pai para a polícia para ser recebido pelos
jornais e ganhar casa e comida em algum orfanato, ou na casa de alguma
família. Mas não, isso eu não fiz porque gostava do meu pai e não estava
interessado em morar em orfanato ou com alguma família, e eu tinha pena do
meu pai deitado ali no sofá, dormindo de tão fraco. Mas precisava me
comunicar com alguém, contar o que estava acontecendo. Mas para quem?”
(NOLL, 1980, p.16).
A história termina com o a morte do pai e o frequente desejo do narrador-personagem
em fazer alguma coisa.
(...) Era a primeira vez que meu pai me chamava pelo nome, eu mesmo levei
um susto em ouvir meu pai me chamar pelo meu nome, e me levantei meio
apavorado porque não queria que ninguém soubesse do meu pai, do meu
segredo, da minha vida, eu queria que o Alfredinho fosse embora e que não
voltasse nunca mais, então eu me levantei e disse que tinha que fazer uns
negócios, e ele foi caminhando de costas em direção à porta, como se eu
estivesse com medo de mim, e eu dizendo que amanhã eu vou aparecer no
colégio (...) e fui correndo pro quarto e vi que o meu pai estava com os olhos
duros olhando para mim, e eu fiquei parado na porta do quarto pensando que
eu precisava fazer alguma coisa urgentemente. (NOLL, 1980, p.19).
A impotência ante o desafio social, o vazio interior e a busca do encontro do ser na
autoafirmação (sexo, dinheiro e obscuridade), o mascaramento, o fingimento e a constatação
da impotência diante do inexorável são marcas dessa história. A representação do pai, como
um ser fragilizado, moribundo vai na contramão do herói revolucionário contestador do regime
ditatorial. A violência da matéria narrada, as atitudes agressivas, a linguagem direta, seca e
objetiva e a imagem desse pai como um fardo a ser carregado no fim da vida são permeados
por diálogos sempre interditados, resquícios da ditadura. Além disso, constatamos as fronteiras
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entre a afirmação da masculinidade e a prática homossexual, desvelando o desmoronamento
da hegemonia masculina.
Segundo Chiarelli (2007, p. 30), o ponto fundamental de sua reflexão é trabalhar com
o conceito de que a identidade não é fixa, e menos ainda homogênea. Trata-se de uma
construção e, como tal, traz a marca da instabilidade, da contradição e do inacabado. Esse ponto
humaniza tais personagens, ou seja, é na contradição que os sujeitos “pós-modernos” se fazem
humanos.
A excessiva preocupação do jovem narrador em “mascarar” sua real condição aparece,
obviamente, em virtude do contexto em que fora educado, isto é, um não falar, um
silenciamento sobre o que o pai fazia, no que trabalhava. Porém, o pai ,ao agir assim, pretendia
proteger seu filho das torturas daquele período ditatorial no país. O filho acreditava que deveria
se proteger e também proteger o pai, essa angústia é traduzida pelo termo “eu tenho que fazer
alguma coisa urgentemente”, mas como mediante o inexorável, logo sentia-se impotente,
frágil, sozinho e construiu uma vida de aparência baseada num vazio e numa solidão intensas.
Conforme observamos o personagem do conto é movido também pela construção de
uma aparência, porém, aqui, num texto que é ficcional verificamos um grau máximo de
humanização, ao contrário, da vida real construída nas imagens do belo da rede social.
3. Da literatura à rede social: dois hemisférios de um mesmo vazio
Na análise do perfil da jovem, percebemos que as publicações e interações no perfil
denotam o golpe do riso e o apreço ao belo, sem aprofundamento crítico ou existencial em
questões de interesse filosófico, histórico, político, ideológico em qualquer nível. O perfil
traçado é o da representação que a jovem narra sobre si em suas postagens, deixando
transparecer pouco ou quase nada acerca de si mesma além da superfície do que pode ser visto
e percebido cotidianamente. É interessante pensar se o que é narrado na rede social é um retrato
da vida real da jovem ou, o que parece mais acertado em pensar, se essa narrativa acaba por
tornar-se essa realidade, se o vazio que se depreende da análise é um eco dos vazios que
constituem esse sujeito. Nesse ponto, não se é capaz de dissociar o sujeito da rede social e o
sujeito que a manipula, confluindo a leitura desse sujeito com aquela do sujeito-personagem
do conto de Noll.
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O jovem personagem é narrado por Noll com profundidade nas questões de ordem
social e familiar que o constituíram enquanto sujeito. Sujeito esse marcado pelo vazio
existencial que o personagem busca preencher sem sucesso. As idas e vindas entre pai e filho
são sempre marcadas pela ausência e pelo vazio: inicialmente, a presença do pai, na infância,
do Rio Grande do Sul; seguido do abandono do pai no interior do Paraná; a vida completamente
solitária do jovem em São Paulo; o retorno do pai e o abandono do pai no Rio de Janeiro com
o seu retorno para morrer.
Noll apresenta, através do personagem-narrador, o surgimento de uma geração
abandonada, a dos filhos ainda durante a ditadura, dos guerrilheiros mortos pelo Estado. Além
disso aponta a fragilidade das instituições, que se espelham nos laços muito fracos que suas
personagens instalam com o mundo externo. Sobram pessoas sozinhas, gerações fraturadas e
afetos sufocados, enfim, almas despedaçadas diante o inexorável.
Nesse sentido, podemos pensar nesses dois personagens – o digital e o literário - como
opostos complementares de uma esfera. Enquanto o personagem de Noll é narrado em seus
vazios, com uma breve e falha tentativa de narrar a si mesmo de outra forma, a fim de esconder
sua existência física e psicológica desestabilizada, a personagem da rede social é o
embaçamento do eu que narra a si mesmo, superficialmente, levando à opacidade de si.
Opacidade porque, na busca por fotografar a sua existência no melhor ângulo, tudo aquilo que
não foi enquadrado, todo o vazio inerente ao ser, revela-se pela ausência.Embora o personagem
plenamente fictício seja o do conto, esse é o mais humano por ter sua existência desvelada
inteiramente pelo narrador, enquanto que a figura da jovem, retrato autodiegético de uma
narradora que é também autora, essa que deveria ser real, concreta, profunda, "redonda", é
planificada pela sua própria autoria.
Portanto, observamos o papel desempenhado pelo Facebook na divulgação de modos
de leitura superficiais e na reprodução de figuras ideais, como uma alternativa de aproximar o
repertório do aluno com o texto literário, bem como o universo social. Conforme Jauss (1994,
p.28):
A obra que surge não se apresenta como novidade absoluta num espaço vazio,
mas, por intermédio de avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços familiares
ou indicações implícitas, predispõe seu público para recebê-la de uma
maneira bastante definida. Ela desperta a lembrança do já lido, enseja logo de
início expectativas quanto a “meio e fim”, conduz o leitor a determinada
postura emocional e, com tudo isso, antecipa um horizonte geral da
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compreensão vinculado, ao qual se pode, então – e não antes disso –, colocar
a questão acerca da subjetividade da interpretação e do gosto dos diversos
leitores ou camadas de leitores. (JAUSS, 1994, p. 28).
O diálogo entre a obra e um leitor depende de fatores determinados pelo horizonte de
expectativas responsável pela primeira reação do leitor à obra. Todo leitor dispõe de um
horizonte de expectativas, resultado de inúmeras motivações. Jauss considera este horizonte de
expectativas como um dos postulados mais importantes da sua teoria.
Afinal, o vazio apresentado por pessoas reais apresentados nas imagens por eles
construídas se aproximam do vazio do personagem-narrador de Noll, porém lá o vazio sinaliza
para a figuração de personagem, embora real parece ficção; aqui, embora seja ficção, o
personagem se mostra humano, contraditório, indefeso e frágil, um vazio existencial que se
esforça de algum modo em fazer Alguma coisa urgentemente, mas não consegue. A imagem
da destruição, da contradição, da angustia são para além da aparência. Ambos se aproximam
da necessidade em “esconder” quem são por necessidade de criar uma aparência de que esteja
tudo bem, porém quando analisamos mais devagar verificamos a fragilidade desses sujeitos,
ditos “pós-modernos”. O termo aqui, encontra-se aspado, pois não estamos interessados na
discussão da existência ou não da pós-modernidade, mas sim, nas mudanças apresentadas
socialmente.
Referências Bibliográficas
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CHIARELLI, Stefânia. Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum.
São Paulo: AnnaBlume, 2007.
BANJAMIN, W. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. P.55-95. In:
GRUNNEWALD, J. L. A ideia do cinema. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,
1969, 152p.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 10ªed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
102p.
HORKHEIMER, M. & ADORNO, T. A indústria cultural: o iluminismo como mistificação de
massas. P.169-2014. In: LIMA, L.C. Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra,
2002, 364p.
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ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes
Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1999, 2 v.
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad.
Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. (Série Temas, v.36)
NOLL, João Gilberto. O cego e a dançarina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
WHITAKER, D. C. A. O idoso na contemporaneidade: a necessidade de se educar a sociedade
para as exigências desse novo ator social, titular de direitos. Cadernos CEDES. Centro de
Estudos Educação e Sociedade, v. 30, n. 81, p. 179-188, 2010. Disponível em:
<http://hdl.handle.net/11449/28264>.