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ONDE A AURORA É CREPÚSCULO: MODERNIDADE COM TRADIÇÃO NA POESIA DOS ANOS 1940-50 Luciano Rosa da Cruz Santos Rio de Janeiro Fevereiro de 2013 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira). Orientador: Prof. Dr. Antonio Carlos Secchin

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ONDE A AURORA É CREPÚSCULO: MODERNIDADE COM TRADIÇÃO

NA POESIA DOS ANOS 1940-50

Luciano Rosa da Cruz Santos

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2013

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).

Orientador: Prof. Dr. Antonio Carlos Secchin

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Santos, Luciano Rosa da Cruz.

Onde a aurora é crepúsculo: modernidade com tradição na poesia dos anos 1940-50/ Luciano Rosa da Cruz Santos – Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2013.

viii, 186f; 31cm. Orientador: Antonio Carlos Secchin Tese (doutorado) – UFRJ, Faculdade de Letras, Programa de Pós-

Graduação em Letras Vernáculas, 2013. Referências bibliográficas: f.195-205. 1. Poesia brasileira. 2. Décadas de 1940/1950. I. Secchin, Antonio Carlos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. III.Título.

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Para Vivi

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Agradecimentos

A Antonio Carlos Secchin, mestre e amigo, orientador de toda minha trajetória

acadêmica: a palavra que inspira, o incentivo que açula, a confiança que encoraja.

A Vivi, inefável – e este silêncio eloquente.

A Josélia, companheira das sendas literárias, a amizade sempiterna, a

disponibilidade irrestrita, a ajuda precisa e providencial.

A Georgina, as palavras doces em momento amargo, gesto amigo e acolhedor.

A Gilberto, que possibilitou meu encontro com a Obra perdida de A. Facó, volume

difícil de achar.

Aos companheiros do Ministério da Fazenda – Edina, Júlia, Maurício, Susana,

Valter –, a torcida e o apoio. A Denise, minha especial gratidão pelo “mecenato

administrativo”, determinante para a conclusão deste trabalho.

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“O pai me disse que a tradição é lanterna,

vem do ancestral, é moderna

bem mais que o modernoso.”

Aldir Blanc, Luiz Carlos da Vila, Moacyr Luz,

em “Cabô, meu pai”

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SANTOS, Luciano Rosa da Cruz. “Onde a aurora é crepúsculo”: modernidade com tradição na poesia dos anos 1940-50. Rio de Janeiro, FL/UFRJ, 2013.

RESUMO

Nos estudos da arte e da literatura, o binômio tradição e modernidade é frequentemente evocado na análise da dinâmica que inter-relaciona as formas de expressão que se sucedem no sistema histórico-cultural. No extenso e complexo processo de transformações que a expressão literária, destacadamente a poesia, vem experimentando ao longo do tempo, as relações com o legado da tradição é fator decisivo para a fixação das bases estéticas que singularizam cada período, em especial a partir do Romantismo. No século XX, a maior ou menor adesão a modelos e valores tradicionais ou, ao revés, o ímpeto de recusa, em maior ou menor grau, diante das matrizes da tradição definem em grande medida o cariz de cada fase, escola ou movimento estético-literário. Após rastrear duas linhas de força (uma tendente a aderir à tradição, outra a rejeitá-la) na poesia brasileira desde fins do século XIX, postulamos que a tensão dialética entre essas duas vertentes seminais atinge o apogeu no complexo poético das décadas de 1940-50. À luz de tais considerações, examinamos o reprocessamento das matrizes estéticas tradicionais levado a efeito nesse complexo poético – em meio, portanto, à irrevogável modernidade do século XX. Na sequência analisamos três obras que participam desse estado poético singular: Poesias (1948), de Dante Milano; Poesia perdida (1951), de Américo Facó; e O homem e sua hora (1955), de Mário Faustino. Trata-se dos únicos volumes de poemas destes autores, que não se vinculam a grupos ou movimentos em voga no período (como a Geração de 45). Nestes livros manifesta-se de forma sui generis a dialética tradição-modernidade.

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SANTOS, Luciano Rosa da Cruz. “Onde a aurora é crepúsculo”: modernidade com tradição na poesia dos anos 1940-50. Rio de Janeiro, FL/UFRJ, 2013.

ABSTRACT

In studies of art and literature, the binomial tradition and modernity is often mentioned in the analysis of the dynamics that interrelates the forms of expression that succeed each other in the historical-cultural system. In the long and complex process of transformations that literary expression, notably poetry, has been going through over time, relations with the legacy of tradition are decisive factors for setting the aesthetic foundations that individualize each period, especially from Romanticism on. In the twentieth century, a greater or lesser adherence to traditional values and models or, in reverse, the momentum of refusal, to a greater or lesser degree, in face of such matrices, define in a large extent the nature of each phase, school or literary-aesthetic movement. After tracing two lines of force (one tending to adhere to tradition, another to reject it) in brazilian poetry since the late nineteenth century, we postulate that the dialectical tension between these two seminal paths hits its peak in the poetic complex of the 1940s -50 (more specifically between 1945 and 1955). Considering these factors, we examine the reprocessing of the traditional aesthetic matrices carried out in this poetic complex in theirrevocable modernity of the twentieth century. In sequence we analyze three works that take part in this unique poetic state: Poesias (1948) by Dante Milano; Poesia perdida (1951) by Américo Facó; and O homem e sua hora (1955) by Mário Faustino. These are the only two volumes of poems of these authors, who are not tied to groups or movements in vogue in the period (such as the 45´s generation). In these books the tradition-modernity dialectic manifests itself in a sui generis form.

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SUMÁRIO

1. Introdução...................................................................................................9

1.1. Ajustando o foco.............................................................................. 9

1.2. O corpus......................................................................................... 14

2. Tradição e modernidade...........................................................................19

3. 1922: século XX, ano I............................................................................. 38

4. A década de 1930......................................................................................55

5. A década de 1940......................................................................................70

5.1. A Geração de 45............................................................................75

5.2. Modernidade: contradição............................................................85

6. “Qualquer coisa de agora, mas de eterno”:

Poesias, de Dante Milano.......................................................................108

7. “Que fixa o tempo eternamente,/ E faz presente do passado”:

Poesia perdida, de Américo Facó..........................................................134

8. “Contrafação de canto e eternidade”:

O homem e sua hora, de Mário Faustino.............................................163

9. Conclusão................................................................................................190

10. Referências..............................................................................................195

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1. Introdução

1.1 Ajustando o foco

Se pudéssemos sintetizar em brevíssimas palavras o impulso essencial deste

estudo, diríamos tratar-se de um exercício do olhar. Procurando dar conta do caráter

especulativo que baliza toda atividade de pesquisa, a metáfora pouco original funda-se

na visão, sentido que, norteado pelo interesse específico de quem o consagra a dado

objeto de análise, pode percorrer as mais amplas latitudes e imiscuir-se em diferentes

níveis de profundidade. Desse cruzamento – entre latitude e profundidade – resulta a

mirada peculiar por meio da qual o estudioso detecta e revela aspectos que lhe parecem

particularmente significativos na matéria a que se dedica.

Na órbita deste trabalho, tais variáveis podem ser definidas a partir da seguinte

formulação: à latitude corresponde a horizontalidade da investigação levada a efeito no

recorte cronológico, vale dizer, no “âmbito largo do período, domínio próprio da

história literária”; à profundidade, a sondagem vertical no “âmbito reduzido de cada

obra, domínio da análise crítica”.1 Dessa forma, aqui se articularão duas partes

complementares: preliminarmente nos ocuparemos dos desdobres da poesia brasileira

na primeira metade do século XX, de modo a configurar, a partir da perspectiva crítico-

historiográfica, o estado poético dos anos mediais do século passado; na segunda parte, 1 CANDIDO, Antonio. Prefácio. In: LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o Modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000. p. 8.

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procederemos à análise crítica das obras que compõem o corpus deste estudo, surgidas

entre 1948 e 1955, no intuito de verificar suas relações com o complexo poético em que

atuam, bem como ressaltar a singularidade que as particulariza naquele sistema literário.

Dessa forma, historiografia literária e análise crítica nos servirão de coordenadas,

orientando o exame das três obras poéticas e de suas conexões com o período em que se

inscrevem.

Se no calendário civil o século XX se estende de 1901 a 2000, não seria

descabido avançar duas décadas para, à luz de critérios estético-literários, indicar-lhe

singular marco inicial no Brasil: o ano de 1922 figura como referência simbólica a partir

da qual se forjam as matrizes estéticas que modelam de forma decisiva a arte brasileira

ao longo do último século. Aqui, o centro de nosso interesse situa-se num intermédio

que, tomando como eixo o ano de 1950, se distende para ambas as metades do século

passado. O intervalo de 1945 a 1955 representa momento vigoroso e decisivo na lírica

brasileira, o qual, no entanto, permanece ainda pouco (ou mal) analisado. A lírica das

décadas de 1940-50 tem carecido de estudos pautados pela abordagem isenta e

comprometida com a natureza estético-literária da matéria poética, estudos que

enfrentem e esclareçam aspectos fundamentais do complexo poético do período, entre

os quais se destaca, sobranceira, a dialética entre modernidade e tradição.

A tensão entre esses dois polos é recorrente na história da literatura ocidental; na

poesia brasileira do século XX, ela aparece pela primeira vez em plenitude, de forma

manifesta e sistemática, no complexo poético dos anos 1940-50, com desdobramentos

cruciais que se distendem até a contemporaneidade. Cumpridas as experiências e

experimentações da vanguarda, a poesia brasileira passa a reconvocar, na década de

1940, valores estéticos, temas, motivos e técnicas compositivas de linhagem tipicamente

tradicional, em contraponto à inovação propriamente moderna deflagrada na década de

1920. Delineia-se assim um estado poético complexo, no qual tomam parte não apenas

jovens ingressantes no universo literário mas também poetas já alçados à consagração.

A compreensão desse estado lírico invulgar requer o exame atento da obra e dos

postulados estéticos desses poetas surgidos nos decênios de 1940-50 e de suas relações

com a poesia em curso quando de seu aparecimento. É na produção desses jovens que

ressurge com força o legado lírico da tradição, gostosamente defenestrado pela ruptura

modernista.

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A historiografia e a crítica literárias se alinham ao apontar os “altos momentos”

do período: o surgimento de A rosa do povo (1945) e Claro enigma (1951), de Carlos

Drummond de Andrade; de O engenheiro (1945), Psicologia da composição (1947) e O

cão sem plumas (1950), de João Cabral de Melo Neto; de Belo, belo (1948), de Manuel

Bandeira. A lista diminuta2 reúne títulos fundamentais de poetas consensualmente

erguidos ao topo do cânone da poesia brasileira: trata-se de livros e autores de influência

inconteste, cuja importância se grava de forma indelével em nossa história literária. O

complexo poético dos anos 1940-50, porém, ultrapassa os “altos momentos”: o entorno

desses livros-marco não se reduz, em absoluto, a um deserto sáfaro e silencioso. Como

salientamos, a lírica do período abarca considerável produção que permanece em grande

parte obliterada, muito embora tenha atuado (ainda atue) de forma efetiva num amplo

processo estético e cultural. A insistência em limitar o foco aos grandes nomes e

respectivas obras simplifica em demasia um processo naturalmente complexo, o que

encobre a coexistência de diferentes manifestações poéticas silenciadas à sombra das

expressões hegemônicas. No mais das vezes lançados na vala comum dos “poetas

menores” ou “secundários”, esses autores produziram obras, publicaram livros e,

mesmo não logrando vultosa nomeada, sua participação no processo literário nacional

não deve ser descartada, sob pena de a historiografia literária, nesse ponto mutilada e

lacunar, perpetuar um registro parcial e precário de importante período da poesia

brasileira.

Em estudo fundamental sobre o tema, o poeta e ensaísta norte-americano T. S.

Eliot alude a “alguns poetas menores cuja obra nos caberia conhecer melhor – poetas

que não figuram tão conspicuamente em nenhuma história da literatura, que possam não

ter influenciado o curso da literatura, poetas cuja obra não é fundamental para nenhum

esquema abstrato de educação literária”3, mas que, todavia, contribuíram efetivamente

para a literatura de determinado país em dado momento. O crítico Wilson Martins

acrescenta que “sem eles [os ‘poetas menores’] não haveria o ambiente intelectual e

mental de que as grandes letras necessitam para existir – e só existem na medida exata

2 Decerto há quem inclua nesse rol obras como Poemas, sonetos e baladas (1946), de Vinicius de Moraes; Invenção de Orfeu (1952), de Jorge de Lima; Romanceiro da Inconfidência (1953), de Cecília Meireles; A luta corporal (1954), de Ferreira Gullar. 3 ELIOT, T. S.. O que é poesia menor. In:____. De poesia e poetas (trad. Ivan Junqueira). São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 59.

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em que os condena a ser menores, estabelecendo fronteiras e linhas divisórias que lhes

estabelecem a excepcionalidade”.4

Acreditando que a renitente invisibilidade impingida a esses autores enseja

compreensão limitada da literatura do país, visto que suprime parcela significativa do

conjunto de forças estéticas atuantes em certo momento, temos voltado nosso olhar para

determinados desvãos da poesia brasileira que não têm figurado no mapa oficial traçado

pela historiografia literária. Neste trabalho, nosso interesse apresenta configuração

bifronte, cujas faces se articulam e se complementam. A primeira diz respeito ao exame

do complexo poético das décadas de 1940-50 e suas condicionantes, em especial no que

diz respeito à dialética tradição-modernidade, aspecto que em grande medida orienta a

lírica do período. A segunda corresponde à análise de três livros surgidos em plena

vigência desse complexo poético, de modo a investigar como a tensão tradição-

modernidade se manifesta nestas obras e, em contrapartida, como cada uma delas

concorre para o processo lírico em que atuam.

Os volumes em torno dos quais orbitará a segunda parte deste trabalho não

figuram no panteão dos livros-marco; é possível que seus autores sejam incluídos,

segundo a crítica hegemônica, na categoria de “poetas menores”. Talvez a pouca

importância atribuída a tais escritores e o apagamento sistemático (deliberado ou

involuntário) de suas obras se expliquem pela crença de que deles não adviria

contribuição relevante ao processo literário ou pela dificuldade de categorizar-lhes a

produção nos bem delimitados compartimentos da prática classificatória. Ao iluminar

tais recantos, o trabalho de pesquisa desempenha papel fundamental, pois empreende o

resgate e a reavaliação crítica desses autores e obras – e, por extensão, supre lacunas

negligenciadas ao longo do tempo.

Ressalte-se que autores “de menor vulto”, embora deixados à margem pela

historiografia e pela crítica dominantes, atraem a atenção de estudiosos de muito boa

cepa. Fausto Cunha, por exemplo, refere as palavras em tom de censura de um “amigo

intranquilo com a [sua] sobrevivência crítica”: “Você se preocupa demasiado com os

autores menores”.5 Cunha justifica o interesse salientando a importância da

“recuperação do nosso patrimônio literário”, que deve ser o intento e o resultado da

atividade de pesquisa. Não é, pois, incomum que o trabalho do pesquisador

4 MARTINS, Wilson. Vítima da História. In: “Prosa & Verso”, suplemento de O Globo. Rio de Janeiro, edição de 29.01.2005. p. 4. 5 CUNHA, Fausto. Assassinemos o poeta. In:____. A luta literária. Rio de Janeiro: Lidador, 1964. p. 156.

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gire em torno de figura desconhecida, pouco lembrada ou de fama duvidosa, o que leva certos leitores à crença de que se gastou boa cera com ruim defunto. [...] O que nos seduz é a glória de hoje, o triunfo de hoje, a derrota de hoje. É muito árida a recuperação do nosso patrimônio literário, a ressituação do nosso passado cultural, a revisão de valores subvertidos pelo silêncio ou pelos juízos até aqui não contestados. [...] A crítica envelhece rapidamente, a pesquisa fica.6

É bem verdade que nos últimos 12 ou 15 anos um certo movimento editorial tem

feito circular novamente a obra de autores pouco lembrados. No que tange a poetas que

estrearam em livro nas décadas de 1940 e 1950, tornaram às prateleiras autores como

Afonso Felix de Souza, Alphonsus de Guimaraens Filho, Helena Kolody, José Godoy

Garcia, Paulo Bomfim, Wilson Rocha, ressurgidos com o lançamento de obras

completas, de antologias ou com a republicação de títulos há tempos fora de catálogo.

Em que pese a salutar iniciativa, um sem-número de poetas ainda permanece no olvido,

à espera de um olhar que dissipe a poeira do tempo e proceda à “revisão de valores

subvertidos pelo silêncio” a que alude Fausto Cunha. Por conseguinte, a compreensão

mais ampla do processo poético em que atuam tais autores perdura prejudicada.

É também possível detectar algum interesse que escritores não canônicos têm

despertado no âmbito acadêmico, interesse frutificado em trabalhos (monografias,

dissertações, teses) de reavaliação crítica de obras e autores, estudos que acabam por

promover o reexame do complexo estético-literário de que participa essa produção.

Nosso esforço procura somar-se a essas ações. Nosso olhar busca reunir-se a outros

olhares instigados pelo inaparente, atraídos pelo exercício da redescoberta, atentos ao

que, ocultado, pode revelar-se não apenas como testemunho de uma época – o que lhe

asseguraria importância histórica – mas também como legítima expressão literária – o

que lhe garante valor estético-artístico.

6 ____. O ensaísta Eugênio Gomes. In:____. A leitura aberta: estudos de crítica literária. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1978. pp. 49-50.

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1.2. O corpus

Durante pesquisa de fôlego sobre a poesia brasileira da década de 1940, levada a

efeito para a elaboração de uma antologia do período7, analisamos de forma detida a

intervenção de um elemento não propriamente “novo”, mas sobremodo significativo, no

curso da poética da modernidade: o retorno ostensivo do legado lírico da tradição,

programaticamente banido com a irrupção do movimento modernista nos anos 1920. As

implicações dessa ocorrência são várias; buscaremos examiná-las no momento devido.

Levantado como bandeira por jovens que ingressavam na vida literária em meados do

século XX – poetas que, relegados em grosso à condição de “menores”, não raro foram

delidos da historiografia literária –, o aproveitamento sistemático das matrizes poéticas

tradicionais não se restringiu à produção dos estreantes; ao contrário, marcou a obra de

autores consagrados notadamente em volumes surgidos no complexo lírico dos anos

1940-50, como Poemas, sonetos e baladas (1946), de Vinicius de Moraes; o Livro de

sonetos (1949), de Jorge de Lima; Claro enigma (1951), de Carlos Drummond de

Andrade.

Em meio a dezenas de autores que tomaram parte na seleta, destacaram-se

determinados poetas cujas obras deveriam, a nosso olhar, não apenas estar acessíveis ao

público leitor de hoje como ser estudadas na Universidade, em trabalhos que,

beneficiados já por um razoável distanciamento temporal, procedessem ao exame dessa

produção e de sua contribuição ao processo literário brasileiro. Ademais, nelas

reverbera de forma muito peculiar a tensão tradição-modernidade dos anos 1940-50, o

que as coloca em posição de relevo na investigação no “âmbito largo do período”8, que,

como vimos frisando, é nosso interesse. Nesse sentido, este trabalho procura promover

o resgate e a reavaliação de obras que muito têm a contribuir, conforme pretendemos

demonstrar, para a compreensão do processo estético-literário do período em que

surgiram. Afora o alcance histórico, cremos que as obras escolhidas despertam interesse

em virtude do valor estético que ostentam.

7 Referimo-nos ao volume Anos 40 da Coleção Roteiro da Poesia Brasileira, publicado em 2010, que organizamos para a editora Global. 8 Cf. nota 1.

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Compõem o corpus deste trabalho três livros surgidos nos decênios de 1940-50:

Poesias (1948), de Dante Milano; Poesia perdida (1951), de Américo Facó; e O homem

e sua hora (1955), de Mário Faustino. Sustentamos que a configuração estética e o teor

poético dessas obras as singularizam no complexo lírico em que despontam, muito

embora com ele partilhem aspectos essenciais. Para além das particularidades que as

distinguem, uma peculiaridade as aproxima: o fato de serem os únicos volumes de

poemas de seus autores.

O cearense Américo Facó (1885-1953) é autor de Poesia perdida, volume

editado em 1951, cinco anos após sua estreia com Sinfonia negra. Esse primeiro livro

traz uma série de narrativas impregnadas “de uma prosa poética carregada de

inconfundível poder de sugestibilidade em suas imagens”9, segundo o crítico e poeta

Floriano Martins. Não obstante, considerado o aspecto formal do “poema em versos”,

Poesia perdida aparece na bibliografia de Facó como único livro no gênero. Em artigo

sobre o volume, o poeta-crítico Mário Faustino adverte: “É preciso conhecer melhor

este Américo Facó”.10 Adiante, Faustino se refere a Poesia perdida como um “livro que

tem todo o direito de figurar na linha evolutiva de nossa poesia”.11 A obra suscitou

ainda a crítica laudatória de Carlos Drummond de Andrade em “Poesia nobre”, artigo

coligido em Passeios na ilha (1952), no qual se lê:

Apareceu o livro raro de 1951, e raro não porque o fizeram tal os pintores de tipografia ou a limitação de tiragem, mas pela qualidade inconfundível do texto. Chama-se Poesia perdida, e seu autor é Américo Facó. [...] Em seus melhores momentos, a poesia brasileira não atingiu ainda altura superior à destas páginas, que vêm conciliar a sensibilidade moderna com o espírito clássico. ................................................................................................................ Com seu belíssimo livro, Américo Facó se incorpora à linhagem dos mais altos poetas portugueses e brasileiros.12

A admiração de Drummond – que ensejaria o poemeto “A.F.”, de Viola de bolso

(1952), e, por ocasião da morte do amigo, os belos sonetos “Viagem de Américo Facó”

e “Circulação do poeta”, incluídos em Fazendeiro do ar (1954) – serviria de mote a

9 MARTINS, Floriano. Notas de acesso a uma obra perdida. In: FACÓ, Américo. Obra perdida de Américo Facó (org. Floriano Martins, Raymundo Netto). Fortaleza: Íris, 2011. p. 20. 10 FAUSTINO, Mário. Importante poeta menor. In:____. De Anchieta aos concretos (org. Maria Eugenia Boaventura). São Paulo: Cia. das Letras, 2003. p. 299. 11 Id., ibid., p. 304. 12 ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia nobre. In:____. Passeios na ilha – divagações sobre a vida literária e outras matérias. São Paulo: Cosac Naify, 2011. pp. 147 e 152.

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Sérgio Buarque de Holanda no elogioso artigo dedicado a Poesia perdida. Escreve

Sérgio Buarque:

clássica e moderna ao mesmo tempo, esta arte já teve o privilégio de enfeitiçar aqueles, como Carlos Drummond de Andrade, que conhecem da poesia os mais íntimos segredos e, tão melhor do que eu, são capazes de julgá-la. Não seria preciso mais para reconhecer seu bom toque.13

Também o carioca Dante Milano (1899-1991) é lembrado como “poeta de único

livro”, algumas vezes reeditado. Suas Poesias vieram a lume em 1948. A segunda

edição, aumentada em 21 poemas, sairia em 1958, e a terceira, em 1971. A compilação

Poesia e prosa (1979), preparada por Virgílio Costa, foi a última edição publicada em

vida do poeta. Em 2004 a Obra reunida de Dante Milano (ABL, org. Sérgio Martagão

Gesteira) trouxe 22 textos em prosa e sete poemas inéditos, passando a ocupar o posto

de edição definitiva da obra milaniana.

Não raro vemos o autor das Poesias, assim como Facó e outros, sob a trena dos

que se ocupam em lhes aferir a estatura poética. Em artigo sobre a Obra reunida,

Wilson Martins refere-se a Milano como “excelente poeta menor”, pertencente à “legião

dos que mantêm a vida literária sem realmente acrescentar à literatura”.14 Drummond,

contudo, enxergaria nele outras medidas, chamando-lhe “grandíssimo poeta”.15 Por seu

turno, Sérgio Buarque de Holanda, ao comentar o lançamento das Poesias, declarava ser

o aparecimento do volume “um dos acontecimentos mais importantes [da] vida

literária”16 daqueles tempos. Noutra ocasião Sérgio Buarque escreveria: “o sr. Dante

Milano surpreendeu-nos [...] com um dos livros da mais genuína poesia que se tem feito

no Brasil”.17 No mesmo passo, o poeta e crítico Ivan Junqueira o situa, “ao lado de

Bandeira, Drummond, Cecília Meireles e João Cabral de Melo Neto [...], entre os

13 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Poesia perdida. In:____. O espírito e a letra (v.2): 1948-1959 (org. Antonio Arnoni Prado). São Paulo: Cia. das Letras, 1996. p. 540. 14 MARTINS, Wilson. Vítima da História. In: “Prosa & Verso”, suplemento de O Globo. Op. cit. 15 ANDRADE, Carlos Drummond de apud JUNQUEIRA, Ivan. Dante Milano: o pensamento emocionado. In: MILANO, Dante. Obra reunida (org. Sérgio Gesteira). Rio de Janeiro: ABL, 2004. p. XX. 16 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Mar enxuto. In:____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 96. 17 Id. ibid., Resenha de poesia, p. 347.

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maiores poetas brasileiros”18 do século XX, destacando que “poucos poetas brasileiros

são tão modernos quanto ele, apesar de suas raízes classicistas”.19

Já o piauiense Mário Faustino (1930-1962) é autor de O homem e sua hora

(1955), único livro de poemas desse atuante crítico literário da década de 1950. De

setembro de 1956 a janeiro de 1959, Faustino capitaneou importante veículo de análise,

discussão e divulgação da arte poética de variadas línguas e diversas épocas: a página

“Poesia-Experiência”, do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. Ivan Junqueira

salienta a verve dual de Faustino ao reputá-lo “um poeta não apenas extraordinário, mas

também [o] único entre nós que exerceu [...] uma inestimável atividade didático-

pedagógica” 20 no campo da crítica literária, referindo-se ao projeto de difusão da poesia

materializado na página do SDJB.

Conhecedor da tradição e atento à produção de sua época, Faustino pautou sua

militância crítica pelo rigor na análise e no julgamento da poesia antiga e da que lhe era

contemporânea. Maria Eugenia Boaventura – responsável pela recente reedição da

poesia e da crítica de Faustino – salienta-lhe a prática de aferir “a relação [da obra] com

seu tempo”21 e “a opção equilibrada de mesclar passado e presente no campo da arte”.22

Tais parâmetros norteiam não apenas a atividade crítica mas também a experiência

poética de Mário, a qual, segundo o crítico e filósofo Benedito Nunes, “teve mão dupla:

tradicionalista e antitradicionalista ao mesmo tempo, [...] apontando para a conciliação

entre o velho e o novo, entre o clássico e o moderno”.23

Eis, em brevíssimas linhas, os três autores cuja obra poética nada copiosa e

pouco difundida pretendemos examinar. Num primeiro momento, para que possamos

traçar com a devida fidedignidade um panorama da(s) poética(s) em vigor no Brasil nas

décadas de 1940 e 1950, examinaremos o curso da poesia brasileira desde o

Modernismo (ou mesmo de um pouco antes), de modo a compreender a procedência e

as condicionantes das vertentes que atuam no complexo lírico de meados do século XX.

Na sequência, verificaremos como cada livro do corpus se relaciona com o amálgama

estético do período, notadamente no que se refere à dialética tradição-modernidade.

18 JUNQUEIRA, Ivan. Toda a poesia. In:____. Ensaios escolhidos (v. 1): de poesia e poetas. São Paulo: A Girafa, 2005. p. 543. 19 Id. ibid., Drummond e a rima, p. 232. 20 JUNQUEIRA, Ivan. Dois poetas. In:____. Ensaios escolhidos (v. 1). Op. cit., p. 521. 21 BOAVENTURA, Maria Eugenia. Um militante da poesia. In: FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas (org. Maria Eugenia Boaventura). São Paulo: Cia. das Letras, 2002. p. 35. 22 Id. ibid., p. 41. 23 NUNES, Benedito. A poesia de meu amigo Mário. Ibid., p. 51.

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Investigando os pontos de convergência e de distanciamento entre as obras analisadas e

a poesia dos anos 1940-50, buscaremos apontar como se configura a singularidade que

acreditamos distingui-las no contexto estético-literário que as cinge. Em contrapartida

procuraremos mostrar como os traços particulares desses poetas concorrem para a

expressão plural e polifônica que se oculta sob a suposta univocidade da poesia do

período.

Cumpre ressaltar que, à luz dos objetivos deste trabalho, os livros escolhidos

encerram outro aspecto significativo, qual seja, o fato de constituírem obras

desvinculadas de movimentos estético-literários, visto que seus autores não se

enquadram facilmente em grupos ou tendências atuantes naquele complexo poético,

como a Geração de 45. Antes se aproximam dos “que se esquivam com obstinação a

tamanhos caprichos”24 do afã classificatório, como bem assinala Sérgio Buarque de

Holanda. “O número desses autores não é tão escasso que permita inscrevê-los entre

aquelas famosas exceções capazes, conforme se diz, de confirmar a regra”25, diz ainda o

crítico. A “independência” dessas obras confirma e intensifica a multiplicidade de

dicções do período, ao mesmo tempo que as insere, em contexto mais amplo, no

movimento geral de reprocessamento do legado da tradição animado pelo irrecusável

espírito da modernidade.

Desta forma, o presente trabalho – já o sinalizamos nas linhas iniciais –

enveredará pelas sendas da historiografia literária e da análise crítica, de vez que o

exame das relações de uma obra de literatura com o entorno histórico-cultural que

condiciona o seu surgimento revela importantes elementos tanto da obra quanto do

sistema literário em que ela toma parte. Antes, porém, de examinarmos o processo

poético que, partindo do decênio de 1920, desembocará no período que nos interessa de

forma específica, convém analisarmos, preliminarmente, duas categorias fundamentais

para o encaminhamento do presente estudo: a tradição e a modernidade.

24 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Poesia perdida. In:____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 538. 25 Id. ibid.

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2. Tradição e modernidade

“A verdadeira novidade que perdura é a que toma todos os fios da tradição

e os tece novamente num padrão que a tradição seria incapaz de tecer.”26

Fernando Pessoa

Nos estudos da arte e da literatura, o binômio tradição e modernidade é

frequentemente evocado na análise da dinâmica que inter-relaciona as diversas formas

de expressão que se sucedem no continuum do sistema histórico-cultural. Não raro

tomados em acepção genérica, esses termos tendem a diluir-se em certa vagueza

conceitual que, se não embota de todo a expressividade dos vocábulos, pode resvalar em

indesejável imprecisão terminológica. Convém, assim, delimitarmos a abrangência e o

significado básico que tais expressões assumirão neste trabalho.

Talvez a inespecificidade cause menos prejuízo ao conceito de tradição do que

ao de modernidade. Segundo os dicionários, o substantivo tradição abarca, entre outras,

as seguintes acepções: “ato ou efeito de transmitir ou entregar; transferência”;

“comunicação oral de fatos, lendas, ritos, usos, costumes etc. de geração para geração”;

“herança cultural, legado de crenças, técnicas etc. de uma geração para outra”;

“conjunto dos valores morais, espirituais etc., transmitidos de geração em geração”.27

Embora guardem diferenças na superfície, os significados radicam-se na mesma ideia de

transmissão ou transferência de herança (cultural, moral, espiritual) passada de geração

em geração. Este sentido fundamental, lastreado pelas noções de legado e continuidade,

26 PESSOA, Fernando. Crítica literária (org. Hélio J. S. Alves). Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2007. p .194. 27 Cf. Dicionário Houaiss Eletrônico (versão 3.0). Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

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se preserva em todas as ocorrências do termo, ainda quando empregado junto a

qualificativo que lhe restrinja o alcance, como em tradição literária ou tradição poética,

por exemplo. Porque fazem o sentido de tradição atuar no núcleo de nosso interesse (o

território eminentemente literário e/ou poético), essas duas expressões assumem

expressividade peculiar neste trabalho.

Rente às definições clássicas, o sociólogo inglês Anthony Giddens afirma que a

tradição “é uma maneira de lidar com o tempo e o espaço, que insere qualquer atividade

ou experiência particular dentro da continuidade do passado, presente e futuro”.28

Desprendendo a palavra do “estado de dicionário”, Giddens desdobra a continuidade da

tradição em ritual e memória: por meio do ritual, fundado na memória e na repetição, a

tradição se engendra e se estabiliza, adquirindo integridade e continuidade no tempo. Na

medida em que se consolida, a tradição desempenha importante papel na formação de

uma “solidariedade social”, uma vez que atua como “meio organizador da memória

coletiva”. Dessa forma, a tradição diz respeito, necessariamente, à coletividade: “Não

poderia existir uma tradição privada, como não pode existir uma linguagem privada”29,

afirma Giddens, ressaltando que a tradição, tal qual a língua, opera como mecanismo de

coesão entre indivíduos que compõem um corpo social: “a tradição é a cola que une as

ordens sociais pré-modernas”.30 No mesmo passo o historiador Eric Hobsbawm

sublinha a relação inextricável entre o indivíduo e o passado de sua comunidade,

perpetuado pela tradição: “Ser membro de uma comunidade humana é situar-se em

relação ao seu passado (ou da comunidade), ainda que apenas para rejeitá-lo. O passado

é, portanto, uma dimensão permanente da consciência humana, um componente

inevitável das instituições, valores e outros padrões da sociedade humana”.31

Embora admita que “as tradições estão sempre mudando”, Giddens lhes sublinha

“algo [...] que pressupõe persistência; se é tradicional, uma crença ou prática tem uma

28 GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade (trad. Raul Fiker). São Paulo: UNESP, 1991. p. 44. 29 ______. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Socott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna (trad. Magda Lopes). São Paulo: UNESP, 1997. p. 82. 30 Ibid., p. 80. 31 HOBSBAWM, Eric. O sentido do passado. In:____. Sobre História (trad. Cid Knipel Moreira). São Paulo: Cia. das Letras, 1998. p. 22.

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integridade e continuidade”.32 Esse caráter de permanência “diz respeito à organização

do passado em relação ao presente” – e ainda ao futuro. Giddens explica:

A tradição é uma orientação para o passado, de tal forma que o passado tem uma pesada influência, mais precisamente, é constituído para ter uma pesada influência sobre o presente. Mas a tradição também diz respeito ao futuro. [...] A repetição [...] chega a fazer o futuro voltar ao passado, enquanto também aproxima o passado para reconstruir o futuro.33

Tratando do papel da tradição nos domínios da literatura, o poeta T. S. Eliot

também fala de uma interferência recíproca entre as instâncias temporais, segundo a

qual “o passado deva ser modificado pelo presente tanto quando o presente esteja

orientado pelo passado”.34 Eliot propõe que essa “orientação para o passado” seja

encarada sob a perspectiva do “sentido histórico”, o qual

leva um homem a escrever não somente com a própria geração a que pertence em seus ossos, mas com um sentimento de que toda a literatura europeia desde Homero e, nela incluída, toda a literatura de seu próprio país têm uma existência simultânea e constituem uma ordem simultânea.35

Em que pese o reducente eurocentrismo, a consideração de Eliot reafirma, no

plano estético-literário, a proposição de Giddens: mediada pela tradição, a “organização

do passado em relação ao presente” equivale à “existência simultânea” das instâncias

cronológicas. “Esse sentido histórico”, prossegue Eliot, “é o sentido tanto do atemporal

quanto do temporal reunidos”36, isto é, a conjugação do passado (em sua dimensão

“atemporal”) com o presente (historicamente situado, específico em sua temporalidade).

Situado justo nesta confluência, o escritor imbuído de tal “sentido” (capaz, portanto, de

conceber o seu presente em perspectiva histórica) ligar-se-ia concomitantemente ao

presente e ao passado. “Esse sentido histórico [...] é que torna um escritor tradicional”

e, “ao mesmo tempo, faz com que [ele] se torne mais agudamente consciente de seu

lugar no tempo, de sua própria contemporaneidade”.37 É, pois, por intermédio da

32 GIDDENS, Anthony. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: BECK, Ulrich et alii. Modernização reflexiva. Op. cit., p. 80. 33 Ibid. 34 ELIOT, T. S. Tradição e talento individual. In:____. Ensaios (trad. Ivan Junqueira). São Paulo: Art Editora, 1989. p. 40. 35 Ibid., p. 39. 36 Ibid. 37 Ibid.

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tradição historicamente perspectivada que o escritor pode situar-se com maior

pertinência no seu presente, a partir da “percepção não apenas [...] do passado, mas de

sua presença”.38 Daí a assertiva em tom de conselho: “O fundamental consiste em

insistir que o poeta deva desenvolver ou buscar a consciência do passado e que possa

continuar a desenvolvê-la ao longo de toda a sua carreira”.39

Fundado na ideia de tradição e na tensão dialética entre passado e presente, Eliot

afirma que todo artista (toda obra de arte) está sempre em relação a uma espécie de

“acervo universal e atemporal” em que todos os criadores se inter-relacionam e se

implicam mutuamente:

Nenhum poeta, nenhum artista tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os artistas mortos. Não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo, para contraste e comparação, entre os mortos. Entendo isso como um princípio de estética, não apenas histórica, mas no sentido crítico.40

Esse princípio repercute na instigante formulação sobre a mecânica do ideado

“acervo universal e atemporal” da arte:

O que ocorre quando uma nova obra de arte aparece é, às vezes, o que ocorre simultaneamente com relação a todas as obras de arte que a precedem. Os monumentos existentes formam uma ordem ideal entre si, e esta só se modifica pelo aparecimento de uma nova (realmente nova) obra entre eles. A ordem existente é completa antes que a nova obra apareça; para que a ordem persista após a introdução da novidade, a totalidade da ordem existente deve ser, se jamais o foi sequer levemente, alterada; e desse modo as relações, proporções, valores de cada obra de arte rumo ao todo são reajustados; e aí reside a harmonia entre o antigo e o novo.41

A tradição, assim, funcionaria como pedra de toque “para contraste e

comparação” da “nova (realmente nova) obra”, que, integrada ao acervo, reajustaria “as

relações, proporções, valores de cada obra de arte”. Dessa forma, a tradição e “o novo”

(o passado e o presente) se interpenetrariam numa relação ambivalente em que são, a

um só tempo, agentes e pacientes num mesmo processo de mútua influência. A

metáfora de Eliot se aproxima do conceito enunciado pelo filósofo Hélio Salles Gentil,

para quem a tradição seria uma 38 Ibid. 39 Ibid., p.42. 40 Ibid., p. 39. 41 Ibid.

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rede de paradigmas a partir da qual são tecidas as variações, que passam então a fazer parte dessa mesma rede – sem esse terreno estabelecido, não se teria sobre o que variar, não se teria nem como compreender o que seria uma variação: eis mais uma vez a inteligibilidade formada pelo pertencimento a uma tradição, pela frequentação das obras produzidas nessa tradição, ou melhor, das obras que constituem essa tradição.42

Gentil concebe a tradição como matriz fecunda “a partir da qual são tecidas as

variações, que passam então” a integrá-la. Sem a matriz não haveria as variações (a

“obra nova” de Eliot), tampouco seria possível “compreender o que seria uma

variação”. Também aqui a tradição figura ao mesmo tempo como instrumento de

aferição do novo e como instância por ele afetada. Estabelece-se também aqui “a

harmonia entre o antigo e o novo” referida por Eliot.

Inserida na dinâmica de transmissão às gerações ulteriores, a ideia eliotiana de

tradição como “a sabedoria acumulada do tempo”43 reflete a noção usual de herança.

Todavia, Eliot refuta o sentido de “recepção passiva” – típico do que se herda – ao

afirmar que a tradição “não pode ser herdada, e, se alguém a deseja, deve conquistá-la

através de um grande esforço”.44 Giddens argumenta na mesma direção:

A tradição não é a continuidade mecânica de preceitos aceita de modo inquestionável. [...] A “integridade” da tradição não deriva do simples fato da persistência sobre o tempo, mas do “trabalho” contínuo de interpretação que é realizado para identificar os laços que ligam o presente ao passado.45

O “‘trabalho’ contínuo de interpretação” de Giddens equivale ao “grande

esforço” de Eliot. Assim, a tradição deve ser “conquistada” por meio de um processo de

apreensão crítica que se impõe na apropriação do passado. Eliot adverte que o poeta

“não deve tomar o passado por uma massa, um mingau indiscriminado, nem concebê-lo

inteiramente a partir de uma ou duas admirações particulares, nem organizá-lo

42 GENTIL, Hélio Salles. Para uma poética da modernidade. São Paulo: Loyola, 2004. p. 136. 43 ELIOT, T. S. apud REDMOND, William Valentine. In: O processo poético segundo T. S. Eliot. São Paulo: Annablume, 2000. p. 50. 44 ELIOT, T. S. Tradição e talento individual. In:____. Ensaios. Op. cit., p.38. 45 GIDDENS, Anthony. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: BECK, Ulrich et alii. Modernização reflexiva. Op. cit., pp. 80-2.

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totalmente com base num período de sua preferência”46: “a tradição implica um

significado muito mais amplo”.47

No extenso e complexo processo de transformações que a expressão literária,

destacadamente a poesia, vem experimentando ao longo do tempo, a relação de cada

etapa desta marcha com o legado da tradição é fator decisivo para a fixação das bases

estéticas que singularizam cada período, em especial a partir do Romantismo, no século

XIX. No século XX, a maior ou menor adesão aos modelos e valores tradicionais ou, ao

revés, o ímpeto de recusa, em maior ou menor grau, diante das matrizes fundadas na

tradição definem em grande medida o cariz de cada fase, escola ou movimento estético-

literário. A propósito, o crítico norte-americano Harold Bloom identifica na poesia dois

movimentos complementares, aos quais chama “contração” (baseada na “revisão” do

que já foi feito) e “expansão” (fundada na “criação” do novo). Segundo Bloom, “a

poesia é contração e expansão; pois todas as relações de revisão são movimentos de

contração, mas a criação é de expansão. A boa poesia é uma dialética de movimento

revisionário (contração) e renovadora abertura para fora”.48 A dinâmica contração–

expansão de que fala Harold Bloom se traduz nas relações entre cada contexto histórico-

cultural e a tradição, relações que se estabelecem em deslocamentos pendulares de

adesão e renúncia: ora se procede à revisão e/ou à apropriação de princípios e valores

estéticos tradicionais, ora se rejeita este legado, em nome da “renovadora abertura para

fora”, isto é, a “criação do novo”. O crítico Luís Augusto Fischer formula boa síntese

desse processo:

Desde o fim da Idade Média, isto é, desde a aurora da modernidade, a prática literária ocidental tratou de forjar modelos de inspiração: ao Renascimento conveio o recurso ao passado grosso modo clássico, de onde derivam as muitas figuras mitológicas, além do gesto racionalista e dos paradigmas épicos e líricos. Na sequência, no momento a que podemos chamar genericamente Barroco, vemos uma atenuação do rigor classicista, que contudo não foi abandonado de todo, em favor da incorporação da metafísica de fundo religioso. [...] Já o Neoclassicismo, que até no nome reconhecia sua fonte, reforçou o vínculo com a tradição: voltou à ênfase no modelo clássico, agora localizado tanto na Grécia quanto no Renascimento. Quando, contudo, põe-se em pauta a modernidade política [...] de fins do século XVIII e princípios do século XIX, já não será o clássico o modelo. Interessa agora pensar numa ordem a ser constituída [...]: a história, filtrada sob

46 ELIOT, T. S. Tradição e talento individual. In:____. Ensaios. Op. cit., p.40. 47 Id., ibid., p. 38. 48 BLOOM, Harold. A angústia da influência: uma teoria da poesia (trad. Marcos Santarrita). Rio de Janeiro: Imago, 2002. p. 143.

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a demanda da construção da nacionalidade. O desfile apanhará do passado a mitologia medieval, para quem a tiver, ou reconstruirá as origens segundo qualquer outro material disponível.49

O panorama esboçado por Luís Augusto Fischer bem ilustra os diferentes

aproveitamentos da tradição ao longo de sucessivos momentos histórico-culturais.

Anthony Giddens explica e sintetiza esse processo: “A tradição não é inteiramente

estática, porque ela tem que ser reinventada a cada nova geração conforme esta assume

sua herança cultural dos precedentes”.50

O quadro sinótico de Fischer introduz outro importante elemento neste trabalho.

Em dois momentos o crítico se refere à modernidade: ao identificar seu surgimento no

“fim da Idade Média” (por volta do século XV, portanto) e ao localizar a “modernidade

política” em “fins do século XVIII e princípios do século XIX”. A discrepância entre

datas deixa entrever algum baralhamento no emprego do vocábulo – o que não se deve,

em absoluto, à imperícia do crítico no manuseio do material histórico. Já sinalizamos, a

propósito, a tendência de os sentidos de tradição e modernidade diluírem-se em certa

vagueza conceitual, o que pode implicar indesejável imprecisão terminológica.

Frisamos também que o termo tradição, sujeito a menor grau de polissemia, mostra-se

menos suscetível a ambiguidades, embora não lhes seja imune.

De saída convém atentar na consideração do crítico belga Antoine Compagnon

quanto ao fato de que “moderno, modernidade, modernismo [...] não remetem a ideias

claras e distintas, a conceitos fechados”.51 O poeta e crítico mexicano Octavio Paz

apresenta boa justificativa para a multiplicidade de sentidos ou referenciais cronológicos

coexistentes no termo modernidade: “Há tantas modernidades como épocas históricas.

No entanto, nenhuma sociedade nem época alguma denominou-se a si mesma moderna

– salvo a nossa”.52 Na mesma esteira o poeta e ensaísta Antonio Cicero também alude à

singularidade da “era moderna” frente às épocas anteriores, nunca antes autodefinidas

em iguais termos:

49 FISCHER, Luís Augusto. Parnasianismo brasileiro: entre ressonância e dissonância. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. pp. 63-4. 50 GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade (trad. Raul Fiker). São Paulo: UNESP, 1991. p. 44. 51 COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade (trad. Cleonice P. B. Mourão et al.). Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996. p. 15. 52 PAZ, Octavio. A revolta do futuro. In:____. Os filhos do barro: do Romantismo à Vanguarda (trad. Olga Savary). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 39.

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Antes da modernidade, eram quase sempre nomes próprios, de lugares, dinastias, monarcas ou fundadores de religiões que denominavam ou demarcavam as diferentes épocas. [...] Ora, “moderno”, etimologicamente, quer dizer referente a agora ou, se quisermos, “agoral”. Modernidade, portanto, é a “agoralidade”. Isso significa que, pela primeira vez, a palavra com a qual se denomina uma época é um conceito universal. Há nisso um paradoxo. Sendo um universal, “moderno” não se reduz a coisa alguma que possa particularizar a época assim autodenominada. Em princípio, qualquer época poderia ter-se chamado “moderna” ou “agoral”. Entretanto, justamente o fato de que, apesar disso, nenhuma outra o tenha feito, constitui, para a época que o faz, uma diferença mais radical do que qualquer outra concebível.53

O teórico alemão Hans Ulrich Gumbrecht, por sua vez, chama atenção para a

“sobreposição desordenada” de conceitos diferentes em termos como modernidade ou

modernização, o que pode implicar algum desvio conceitual:

Quem opera com problemas e conceitos como os de modernidade e modernização, períodos e transições de período, progresso e estagnação – pelo menos quem o faz dentro do campo da cultura ocidental e está interessado em discutir a identidade do próprio presente histórico – não pode deixar de confrontar-se com o fato de uma sobreposição “desordenada” entre uma série de conceitos diferentes de modernidade e modernização.54

Atento às “cascatas de modernidade”, Gumbrecht estabelece uma sistematização

dos “conceitos diferentes de períodos [...] acoplados a esse único significante”55, a qual

se assenta em quatro “sentidos” (referenciais cronológicos) acionados pelo vocábulo

modernidade:

Há uma noção de início da Idade Moderna que, enfatizando acontecimentos famosos como a descoberta do Novo Mundo ou a invenção da imprensa, subsume os movimentos e as mudanças que criaram a impressão de “deixar para trás” o que fora até então chamado de “Idade das Trevas”. Se essa modernidade-Renascença foi o principal objeto de fascínio do século XIX, os historiadores atuais têm se mostrado mais preocupados, em contrapartida, em descrever um processo enormemente complexo de modernização epistemológica cujo centro eles situam entre 1750 e 1830. [...] Uma terceira noção de modernidade, frequentemente especificada como Alta Modernidade, tem um campo de aplicação muito mais estreito. Evoca uma época especificamente produtiva nas histórias ocidentais da literatura e das artes, durante as primeiras décadas do século XX, época marcada, particularmente, por programas radicais e experimentos audaciosos.

53 CICERO, Antonio. As ilusões pós-modernistas. In: “Ilustrada”, Folha de S. Paulo, edição de 24.7.2010. 54 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos (trad. Lawrence Flores Pereira). São Paulo: Ed. 34, 1998. p. 9. 55 Ibid.

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Embora possa ser verdade que o conceito de pós-modernidade surgiu, pela primeira vez, com a descrição de determinadas características estilísticas que permitiram estabelecer uma diferença entre a literatura e a arte alto-modernas, de um lado, e as do final do século XX, de outro, não há dúvida de que, nesse meio tempo, esse conceito mais recente de modernidade transformou-se no ponto focal de uma nova discussão epistemológica que busca determinar a identidade do nosso próprio final do segundo milênio, atentando especificamente para a sua condição de construtora de temporalidade.56

Década e meia antes, no já clássico Tudo que é sólido desmancha no ar, o norte-

americano Marshall Berman propôs segmentação semelhante, exceto pela cisão do

século XX em dois períodos distintos (a “alta modernidade” e a “pós-modernidade” de

que fala Gumbrecht):

Na esperança de ter algum controle sobre algo tão vasto quanto a história da modernidade, decidi dividi-la em três fases. Na primeira fase, do início do século XVI até o fim do século XVIII, as pessoas estão apenas começando a experimentar a vida moderna; mal fazem ideia do que as atingiu. [...] Nossa segunda fase começa com a grande onda revolucionária de 1790. Com a Revolução Francesa e suas reverberações, ganha vida, de maneira abrupta e dramática, um grande e moderno público. [...] No século XX, nossa terceira e última fase, o processo de modernização se expande a ponto de abarcar virtualmente o mundo todo, e a cultura mundial do modernismo em desenvolvimento atinge espetaculares triunfos na arte e no pensamento.57

Considerada, ainda que perifericamente, certa concentricidade entre esses

diferentes sentidos (ou momentos históricos), cujos “efeitos se acumulam e [se]

interferem mutuamente numa dimensão (difícil de descrever) de simultaneidade”58,

interessa mais de perto às reflexões deste trabalho a modernidade advinda na “época

especificamente produtiva nas histórias ocidentais da literatura e das artes, durante as

primeiras décadas do século XX, época marcada, particularmente, por programas

radicais e experimentos audaciosos”, em que “a cultura mundial do modernismo em

desenvolvimento atinge espetaculares triunfos na arte e no pensamento”. Eis o sentido

de modernidade que, afora emprego diverso devidamente ressalvado, terá curso no

presente trabalho.

56 Id., ibid., pp.9-10. Ressalte-se que Anthony Giddens emprega a expressão alta modernidade (ou modernidade tardia) em referência ao “nosso mundo de hoje” (deste início de século XXI), conforme consignado, por exemplo, em GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade (trad. Plínio Dentzien). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. pp.10-1. 57 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade (trad. Carlos Felipe Moisés). São Paulo: Cia. das Letras, 2007. pp. 25-6. 58 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. Op. cit., p. 9.

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A divisa por excelência desse movimento foi cunhada pelo poeta norte-

americano Ezra Pound, que, tendo colhido em Confúcio (551 – 479 a.C.) um axioma

atribuído a Tching (fundador da dinastia Shang, em 1766 a.C.), traduziu-a em “make it

new”. Incorporada ao “Canto 53” poundiano, a breve sentença em tom imperativo

alçou-se a estandarte da modernidade que se alastraria pelo século XX, conforme

registra o poeta e crítico Carlos Felipe Moisés:

Pound, [...] nas primeiras décadas do século XX, ao navegar por águas da antiga sabedoria chinesa, guiado pelas investigações de Fenollosa, Pauthier, Morrison e outros, topou com a inscrição atribuída a Tching e traduziu-a por “Make it new”. [...] Poucas frases tiveram destino tão auspicioso e ganharam tão larga popularidade quanto o brilhante achado poundiano. “Make it new”, independentemente do sentido que se lhe atribua, espalhou-se pelo mundo, tornou-se moeda franca, espécie de ícone universal, emblema da Era Moderna. Proposta desde o início como tradução da máxima confuciana, a frase foi ganhando, já a partir da primeira transposição, conotações insuspeitadas, algumas consideravelmente afastadas do sentido de origem. Mas só assim seria possível entender que o vislumbre de sabedoria lavrado por Tching, mais de 3.700 anos antes, tenha vindo a ser adotado como “definição” de modernidade, no século XX. 59

A exortação de Pound capta o “espírito moderno” e lhe imprime a fisionomia: o

novo é o selo dessa modernidade “maciça e definitivamente seduzida pelo poder

aliciante do ‘make it new’”. 60 Moisés salienta que ela começa a desenhar-se no século

anterior:

Ao traduzir “Novo Dia Dia Novo” por “Make it new”, Ezra Pound não introduziu entre nós nada que a velha realidade do Ocidente já não conhecesse e praticasse de longa data – pelo menos desde que a alma romântica, um século e meio antes, divisara o território até então inexplorado da vida interior, ao mesmo tempo que descobria o encanto da cor local e das circunstâncias singulares, vale dizer todo um mundo novo, diferente do velho mundo balizado pelas generalidades universais dos antigos. [...] Antes da reviravolta romântica, o que predomina é a aceitação de que o máximo a que o homem pode aspirar é reproduzir, pela imitação, os modelos antigos, fixando no passado o ideal a ser atingido. Os clássicos almejam quando muito a semelhança, não a diferença. [...] Mas a partir do Romantismo, o que passa a contar é exatamente a circunstância irrepetível, o momento presente, em que começa a ser escrita uma nova História, desconhecida dos antigos. A alma romântica anseia pelo novo, pelo gesto original, pelo traço distintivo, pela diferença, em suma, de modo que o ideal a ser agora atingido não se localiza mais

59 MOISÉS, Carlos Felipe. Make it new. In:____. Poesia e utopia: sobre a função social da poesia e do poeta. São Paulo: Escrituras, 2007. pp. 43-4. 60 Id., Ibid., p. 52.

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no passado, mas no porvir. O novo rumo aponta para o futuro, em permanente construção.61

Mas “será preciso aguardar até a segunda metade do século XIX para que o novo

e a originalidade se imponham enquanto foco privilegiado. [...] É então que deslancha a

modernidade”, assinala Carlos Felipe Moisés. Também Antonio Cicero identifica no

século XIX as raízes da busca da novidade, em especial no campo da poesia:

A partir do final do século XIX, difundiu-se, também no que diz respeito à poesia, a tese de que a novidade era uma das maiores – senão a maior – qualidades que esta podia ostentar. “Peçamos ao poeta novidade”, diz Rimbaud. “Faça-o novo”, diz Pound. “O poeta é aquele que inventa novas alegrias, ainda que difíceis de suportar”, diz Apollinaire.62

Característica medular das estéticas irrompidas no início do século XX, o apelo

irresistível do “novo e [d]o inaudito”63 reclama o total apagamento do passado como

pressuposto para a fundação de um presente essencialmente original, isto é,

desvinculado de toda a experiência pretérita. “A modernidade não pode e não quer

continuar a colher em outras épocas os critérios para sua orientação, ela tem de criar em

si própria as normas por que se rege”64, postula o filósofo alemão Jürgen Habermas. A

ensaísta Lúcia Ricotta, por seu turno, o contesta – “como estabelecer uma auto-

orientação sendo já a modernidade uma herdeira da História?”65 – e recorre a outro

filósofo germânico, Hans Blumenberg, que refuta a ideia de cisão entre a modernidade e

o passado, apontando-lhe contrassenso fundamental: “na idade moderna, o problema

reside latente na pretensão de levar e poder levar a cabo um corte radical com a

tradição, e na incongruência entre essa pretensão e a realidade da História, que nunca

pode começar inteiramente do zero”.66

Alheios à incongruência de que fala Blumenberg, diversos programas de

vanguarda pregam a ruptura irreversível com a tradição. Leiam-se, a propósito, “A

61 Id., ibid., pp. 52-3. 62 CICERO, Antonio. Poesia e filosofia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. p. 83. 63 EDSCHMID, Kasimir. Expressionismo na poesia (manifesto, 1918). In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 105. 64 HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. (trad. Ana Maria Bernardo et al.). Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990. p. 18. 65 RICOTTA, Lúcia. Natureza, ciência e estética em Alexander von Humboldt. Rio de Janeiro: MAUAD, 2003. p. 39. 66 BLUMENBERG, Hans apud RICOTTA, Lúcia. Ibid.

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antitradição futurista” (1913), manifesto-síntese que prega a “supressão da História”67; e

o “Manifesto do Futurismo” (1909), que propõe em tom exortativo: “E metam logo o

fogo nas prateleiras das bibliotecas! Desviem o curso dos canais para inundar as

sepulturas dos museus! Oh, que elas, as telas gloriosas, nadem à deriva! Para vocês as

picaretas e os martelos: escavem os fundamentos das cidades veneráveis!”.68 É sobre

esse processo, no qual o presente “purifica-se do passado”69, que fala o crítico

estadunidense Harold Rosenberg, quando afirma que já no século XIX “todos os

alquimistas franceses [referência a Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud] estão atrás da

mesma coisa, a realidade sempre nova, e que somente surgirá do silenciar da retórica

existente”.70

Na prática, “purificar-se do passado” significa manter-se indene à suposta

influência exercida a priori pela tradição. Rosenberg afirma que “a tradição, qual uma

filosofia, sustenta que o pensamento importante foi efetuado antes de o poeta começar a

escrever o seu poema. O poema constitui, assim, uma distração, ou uma ilustração da

convicção tradicional”.71 “Persuadidos [...] de que a verdade já possuía existência fora

do poema”72, os poetas que se acorressem à tradição estariam fadados a reproduzir

acriticamente essa verdade na escritura do poema. A potência inventiva do poeta, assim,

resultaria esvaziada, já que o produto de sua criação redundaria em nada mais que mera

transcrição previamente condicionada, extraída de um “pensamento importante” e

modelar que inapelavelmente lhe orientaria o ato criativo. Por força desse influxo

neutralizador, a tradição deveria, pois, ser recusada em nome da “realidade sempre

nova”: cinco décadas depois, Rosenberg retoma, pelo viés da negação do passado, os

programas da vanguarda do início do século XX.

Como se vê, a contenda entre o antigo e o novo (ou, nos termos em que vimos

tratando, entre tradição e modernidade) é frequentemente retomada no curso da história

da arte e da literatura. Constatando o longevo e reiterado antagonismo, Octavio Paz

alude à célebre querelle des anciens et des modernes ocorrida na Academia Francesa

67 A antitradição futurista. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro. Op. cit., p. 112. 68 Manifesto do Futurismo. Ibid., p. 87. 69 ROSENBERG, Harold. O silêncio francês e a poesia norte-americana. In:____. A tradição do novo (trad. Cesar Tozzi). São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 61. A primeira edição de The tradition of the new é de 1959. 70 Id., ibid. 71 Id., ibid., p. 63. 72 Id., ibid.

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em fins do século XVII: “Em todas as sociedades as gerações tecem uma tela feita não

só de repetições, como de variações; e em todas elas realiza-se, de um modo ou de

outro, aberta ou veladamente, a ‘querela dos antigos e dos modernos’”.73 O clássico

dissenso costuma cindir o campo estético em dois segmentos supostamente

inconciliáveis, de que derivam posicionamentos extremados: o abandono da tradição,

em consequência da adesão intransigente ao “novo”; e a negação do “novo”, resultante

do apego inflexível à tradição. Igualmente redutoras, ambas as posturas estreitam o

campo de atuação da poesia: ao criador partidário de uma ou de outra resta disponível

apenas um conjunto parcial (portanto restritivo) das potencialidades expressivas; por

conseguinte, empobrecem, no receptor, a compreensão e a fruição da experiência

poética.

No alvorecer do século XX, os movimentos de vanguarda, insuflados já de uma

nova modernidade, reeditam a “querela dos antigos e dos modernos”, buscando afirmar-

se com a recusa da tradição. Analisando tais movimentos “a partir da perspectiva

secular que hoje nos é dada”74, Antonio Cicero adensa a reflexão sobre a dialética entre

tradição e modernidade e, examinando a natureza dos procedimentos poéticos, tece

importantes considerações acerca da revolução promovida pela vanguarda, em especial

sobre a questão do “novo”:

Os poetas vanguardistas revelam [...] novos caminhos positivos para a poesia. [...] [Esses] poetas conseguiram mostrar novos caminhos quando foram capazes de escrever poemas que, embora dispensando os temas, as noções, as formas e os meios tradicionais da poesia, conseguiram produzir efeitos estéticos equivalentes àqueles que costumavam ser obtidos por poemas que empregavam tais temas, noções, formas e meios. O verso livre, por exemplo, somente se afirma quando surgem poemas em versos livres que nada ficam a dever aos poemas metrificados. [...] Ao produzir poemas que manifestam formas e empregam meios que rompem com os temas, as noções, as formas e os meios tradicionais da poesia, os poetas de vanguarda mostram, de uma vez por todas, o caráter acidental – e não essencial – desses meios, formas e noções tradicionais.75

Cicero argumenta que “a novidade não é, de modo algum, uma propriedade

estética”.76 Um poema que formalize “a novidade”, isto é, que se valha de temas,

noções, formas e meios inéditos ou inovadores, não será por isso, necessariamente, do 73 PAZ, Octavio. A revolta do futuro. In: ____. Os filhos do barro. Op. cit., p. 39. 74 CICERO, Antonio. Poesia e filosofia. Op. cit., p. 75. 75 Id., ibid. 76 Id., ibid., p. 84.

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ponto de vista estético, um “bom poema” ou um “poema melhor” que outro elaborado a

partir de técnicas e motivos consagrados pela tradição. Se assim fosse, o poema não

mais seria “bom” (ainda sob o crivo estético) tão logo a novidade que ostenta deixasse

de ser nova, ou seja, o suposto “grau de qualidade” aferido em função de sua

“inovação” decresceria à medida que outras inovações surgissem e sua novidade

envelhecesse. Da mesma forma, o fato de um poema orientar-se por princípios estéticos

da tradição não lhe assegura o status de “bom poema”.

Ainda segundo Cicero, a transformação irrompida com a vanguarda operou

efeitos muito mais significativos no plano cognitivo-conceitual do que no plano

estético-artístico, uma vez que revelou “o caráter acidental – e não essencial – dos

meios, formas e noções” empregados na escritura do poema, sejam “inovadores” ou

“tradicionais”. É sob esse prisma que a experiência da vanguarda é avaliada:

O seu feito principal não foi de natureza propriamente estética ou artística, mas de natureza puramente cognitiva e, mais precisamente, conceitual: simplesmente não há – jamais houve – condição necessária ou suficiente para a produção de um poema. [...] Não é que, a partir dessa experiência, a poesia tenha ficado melhor do que era, mas que sobre ela aprendeu-se alguma coisa que não se sabia antes. Trata-se de um aprendizado, de um descortinamento, de um processo cognitivo.77 .................................................................................................................

Se considerarmos, portanto, o efeito que a experiência dos movimentos de vanguarda teve em seu conjunto [...], devemos dizer que eles nos proporcionaram a expansão da nossa noção de poesia. [...] Demonstrou-se na prática que não é a obediência a esta ou àquela regra particular, a adoção desta ou daquela forma, a pertinência a este ou àquele gênero que garante a qualidade artística de uma obra de arte.78

Dessa forma, “o ‘novo’ foi uma categoria importante para a vanguarda porque

[...] revelou algo sobre a natureza da poesia”79, e não porque “a excelência de um poema

seja função de sua novidade”.80 Desmascarada sua natureza circunstancial, dissolve-se,

por conseguinte, a aura mítica em torno do “novo”, cultuado pela modernidade como

elemento essencial e precípuo, conforme assenta Octavio Paz:

77 Id., ibid., p. 80. 78 Id., ibid., p. 76. 79 Id., ibid., p. 83. 80 Id., ibid.

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Para nós o valor de uma obra reside em sua novidade: invenção de formas ou combinação das antigas de uma forma insólita, descoberta de mundos desconhecidos ou exploração de zonas ignoradas nos conhecidos; revelação, surpresas [...]. Desde o Romantismo a obra há de ser única e inimitável. [...] A modernidade – a ideia da criação original e única – nos nutriu.81

Se o “novo” é destituído de sua essencialidade, também os preceitos

compositivos cultivados na tradição, em contrapartida, se revelam incidentais, a partir

da constatação de “a poesia e o poético jamais existirem prêt-à-porter, à disposição do

poeta, no acervo das formas tradicionais”.82 O ensaísta Gonzalo Aguiar acrescenta que

“decisivo nesse processo é o modo como a obra de vanguarda se relaciona com a

tradição e como se postula a necessidade de suspender as regras recebidas para

pesquisar o alcance da gênese da obra de arte”.83 Abolidas as “regras recebidas” – isto é,

herdadas da tradição ou impostas pelo receituário de alguma modernidade circunstancial

–, conclui-se que a gênese da obra independe de quaisquer convenções, uma vez que

“simplesmente não há – jamais houve – condição necessária ou suficiente para a

produção de um poema”.84

A. Cicero alude à querelle des anciens et des modernes para destacar que “a

comparação entre as formas antigas e as formas modernas acaba possibilitando a

relativização desses dois conjuntos de forma”.85 O desfecho da secular contenda ratifica

tal relativização, conforme registra o crítico norte-americano Fredric Jameson:

Quando a querelle entre os antigos e os modernos, por assim dizer, se resolve e se desfaz, ambos os lados, inesperadamente, chegam às mesmas convicções, a saber, que são insatisfatórios os termos em que se deve resolver o julgamento: a superioridade ou não da antiguidade e a inferioridade ou não do presente e dos tempos modernos. A conclusão de ambos os lados é então a de que o passado e a antiguidade nem são superiores nem inferiores, mas simplesmente diferentes.86

81 PAZ, Octavio. Invenção, subdesenvolvimento, modernidade. In:____. Signos em rotação (trad. Sebastião Uchôa Leite). São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 133. 82 CICERO, Antonio. Poesia e filosofia. Op. cit., p. 79. 83 AGUIILAR, Gonzalo. Poesia concreta brasileira: as vanguardas na encruzilhada modernista. São Paulo: EdUSP, 2005. p. 38. 84 Cf. nota 77. 85 CICERO, Antonio. Poesia e filosofia. Op. cit., pp. 72-3. 86 JAMESON, Fredric. As quatro máximas da modernidade. In:____. Modernidade singular – ensaio sobre a ontologia do presente (trad. Roberto F. Valente). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 2005. pp. 32-3.

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A constatação de que a tradição e a modernidade não estatuem per se

paradigmas estético-artísticos necessários ou suficientes à práxis poética nem

representam postulados forçosamente incompatíveis ou mutuamente excludentes supera

o repisado embate entre o “antigo” e o “novo”. Com efeito, as diferenças que as

distinguem podem interpenetrar-se, dando origem a outras possibilidades estéticas.

Afirma-se, pois, não só a equipolência epistemológica entre tradição e modernidade mas

também a viabilidade da coexistência entre ambas – como, aliás, Eliot vislumbrou ao

propor a “harmonia entre o antigo e o novo” e Pound realizou ao resgatar da tradição

chinesa o milenar provérbio de Tching para transformá-lo em emblema da modernidade

do século XX.

Discutindo a questão, Carlos Felipe Moisés alude à oposição confuciana entre o

“homem adequado” (“proper man”, na tradução de Ezra Pound) e o “homem pequeno”:

“O homem adequado é inclusivo e não sectário; o homem pequeno é sectário e não

inclusivo”.87 A adjetivação indicia a desvantagem do “homem pequeno” – “o adepto

exclusivo seja do velho, seja do novo”88 – em relação ao “homem adequado” – o “que

adere ao novo mas ao mesmo tempo mantém vivo o velho”.89 Eis por que o cultivo da

dialética entre tradição e modernidade tem-se revelado mais profícuo do que a adesão

inflexível e dogmática a qualquer dessas linhas de força, adesão que em regra reduz “a

um maniqueísmo pueril a complexidade das questões envolvidas”.90 É também a visada

dialética, a propósito, que orienta o olhar de Fernando Pessoa, figura de proa do

Modernismo português, sobre a relação da “novidade” com o que a antepassa:

Deve haver, no mais pequeno poema de um poeta, qualquer coisa por onde se note que existiu Homero. A novidade, em si mesma, nada significa, se não houver nela uma relação com o que a precedeu. Nem, propriamente, há novidade sem que haja essa relação. Saibamos distinguir o novo do estranho; o que, conhecendo o conhecido, o transforma e varia, e o que aparece de fora, sem conhecimento de coisa nenhuma.91

O fragmento se articula com a epígrafe deste capítulo, também colhida em

Pessoa; cremos que ambas sintetizam com justeza o raciocínio que vimos procurando

87 MOISÉS, Carlos Felipe. Make it new. In:____. Poesia e utopia. Op. cit., p. 42. 88 Id., ibid. 89 Id., ibid., p.57. 90 Id., ibid., p. 55. 91 PESSOA, Fernando. Páginas íntimas e de autointerpretação. Lisboa: Ática, 1996. p. 390.

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encadear no sentido de introduzir a discussão sobre as relações entre tradição e

modernidade, tema capital para a compreensão da poesia brasileira no século XX.

Já referimos a atilada observação de Octavio Paz quanto ao fato de que

“nenhuma sociedade nem época alguma denominou-se a si mesma moderna – salvo a

nossa”, embora haja “tantas modernidades como épocas históricas”.92 A inédita

autoconsciência da própria condição revela o caráter definidor de uma modernidade

especialmente pujante, que se imporá como concepção hegemônica em todos os campos

do pensamento ao longo do século XX. Como salientamos, interessa-nos o que essa

modernidade traz em si de substrato estético a partir das experiências que tiveram curso

na “época especificamente produtiva nas histórias ocidentais da literatura e das artes,

durante as primeiras décadas do século XX, época marcada, particularmente, por

programas radicais e experimentos audaciosos”93, conforme anota Gumbrecht.

No Brasil, essa época corresponde ao Modernismo, cujo nascedouro simbólico

remonta a fevereiro de 1922, mês e ano da Semana de Arte Moderna. Instaura-se aí um

largo e complexo processo, crivado de contradições e ambiguidades, avanços e

retrocessos, ao longo do qual a modernidade afirma a sua primazia sem, contudo, lograr

o total apagamento da tradição, como propunham os manifestos da vanguarda.

Subjacente ao advento e à consolidação dessa modernidade autoconsciente e desejosa

de ser total, a tradição cumpre sua natureza de continuidade e permanece, não mais

como matriz única ou modelo superior a ser seguido ou imitado, porém como mais uma

fonte de recursos, experiências, técnicas, temas e motivos potencialmente disponíveis à

criação.

Na origem, a motriz que anima o movimento de 22 é a reedição da “querela dos

antigos e dos modernos”, reverberada no franco impulso antiparnasiano dos modernistas

(aqui evocado tudo o que o Parnaso ostenta de tradicional). Não obstante, é importante

destacar que, diferentemente do que fazem crer o senso comum e os manuais de

literatura, a tensão entre o “novo” e o “velho” não se resolve com o assentamento desse

“projeto de modernidade”; ela perdura, de forma não ostensiva, durante o predomínio

do Modernismo, pavimentado ao longo das décadas de 1920 a 1940. Nesse período, é

possível detectar diversos desdobramentos da relação dialética, manifestada em

diferentes graus de mútua implicação, entre a práxis modernista e o legado da tradição.

92 Cf. nota 52. 93 Cf. nota 56.

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Para melhor compreendermos essa permeabilidade, recuaremos um pouco no tempo, até

fins do século XIX e início do século seguinte, período em que se delineiam as

condicionantes do modernismo brasileiro. Numa época ainda não sacudida pela

iminente modernidade, vigora o monólito dos modelos e convenções tradicionais, em

cujas frinchas, contudo, insinuam-se discrepâncias e desarmonias de feições modernas.

Esse roçar do moderno no antigo tem sua contrapartida, após 22, nos vestígios

de tradição incrustados na recém-erigida modernidade. Num e noutro caso, instala-se

uma configuração assimétrica de forças, isto é, a precedência do “tradicional” sobre

prenúncios de modernidade (antes de 22) ou a preponderância moderna/modernista

sobre alguma renitência da tradição (após 22). Num e noutro caso há a tensão entre o

antigo e o moderno, mas a linha de força minoritária não chega a rivalizar com a

dominante.

Na década de 1940 – em plena “era modernista”, portanto – ganha corpo a

reação fundada na retomada de técnicas, temas e motivos tradicionais. O movimento

resulta de tal forma vigoroso que, pela primeira vez na vigência da autoproclamada

modernidade do século XX, a tradição, restaurada, contrapõe-se ao Modernismo no

Brasil de forma efetiva e em igualdade de forças, promovendo importante processo de

revisão crítica da poética irrompida em 22. O período de vivificação desse complexo

estético corresponde, grosso modo, aos dez anos centrais do século XX, isto é, ao

intervalo de 1945 a 1955. A este interstício se circunscreverá o presente trabalho ao

examinar as obras do corpus (publicadas entre 1948 e 1955), nas quais a dialética

tradição-modernidade desponta de forma singular.

O decênio de 1945 a 1955 guarda importantes significações para a crítica e para

a historiografia literárias. Segundo Wilson Martins, o marco inicial de nosso recorte

cronológico corresponde ao “fim definitivo da era modernista, encerrada com o

falecimento de Mário de Andrade em 1945 – o ano da Rosa do povo”.94 É também o

ano-base da Geração de 45, o grupo de jovens que propugna a reação ao Modernismo de

22. O ano final, por seu turno, põe termo a uma etapa de nosso processo poético, como

sublinha o crítico Benedito Nunes, que identifica em 1956 “o advento de uma nova

Vanguarda em poesia – a primeira depois do Modernismo”.95 A legitimação da “poesia

94 MARTINS, Wilson. Drummond no revezamento das gerações. In: “Prosa & Verso”, suplemento de O Globo, edição de 13.7.1996. 95 NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto: nota bibliográfica, introdução crítica, antologia, bibliografia. Petrópolis: Vozes, 1971. p. 34.

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concreta, ou Concretismo [...], a partir de 1956, como a expressão mais viva e atuante

da nossa vanguarda estética”96, inaugura um novo capítulo na poesia brasileira do

século XX, o que faz daquele ano, segundo Nunes, “o eixo de nossa atualidade

literária”.97

Já é possível antever que de 1945 a 1955 a poesia brasileira assume uma

configuração todo própria, na qual a tensão entre tradição e modernidade, àquela altura

atingindo o ponto culminante, atua de forma decisiva. Adiante passaremos a analisar,

preliminarmente, a marcha da poesia brasileira na primeira metade do século XX, de

modo a mapear as condicionantes que a levaram à peculiar imbricação entre o “antigo”

e o “novo” nos anos 1940-50. É de se registrar que, para além dos limites cronológicos

deste trabalho, a dialética tradição-modernidade há muito vinca a nossa literatura, e

ainda hoje representa importante elemento para a compreensão da multifacetada poesia

brasileira contemporânea.

Passemos, pois, ao exame da atuação dessas duas vertentes – a tradição e a

modernidade, aqui consideradas em suas implicações estéticas – na poesia brasileira do

último século.

96 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2001. p. 475. 97 NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto. Op. cit., p. 34.

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3. 1922: século XX, ano I

Falar sobre a literatura brasileira do século XX requer, obrigatoriamente, o

exame da revolução estética operada pelo Modernismo. O marco simbólico do

movimento é a Semana de Arte Moderna, realizada em fevereiro de 1922 na cidade de

São Paulo. A compreensão de toda a realização literária (ou, em termos mais amplos,

artística e cultural) surgida no país desde então exige a análise da inovadora plataforma

de expressão instaurada no emblemático ano de 1922. A relação umbilical entre a

Semana e o movimento modernista, cristalizada na historiografia literária, é colocada

nos seguintes termos por Alfredo Bosi:

O que a crítica nacional chama de Modernismo está condicionado por um acontecimento, isto é, por algo datado, público e clamoroso, que se impôs à atenção da nossa inteligência como um divisor de águas: a Semana de Arte Moderna, realizada em fevereiro de 1922, na cidade de São Paulo. Como os promotores da Semana traziam, de fato, ideias estéticas originais em relação às nossas últimas correntes literárias, já em agonia, o Parnasianismo e o Simbolismo, pareceu aos historiadores da cultura brasileira que modernista fosse adjetivo bastante para definir o estilo dos novos, e Modernismo tudo o que se viesse a escrever sob o signo de 22.98

No atilado ensaio “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, Antonio Candido

ratifica o liame entre a Semana e a “nova literatura” que vinha em seu bojo: “a Semana

da Arte Moderna foi realmente o catalisador da nova literatura, coordenando, graças ao

seu dinamismo e à ousadia de alguns protagonistas, as tendências mais vivas e capazes

98 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. Op. cit., p. 303.

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de renovação, na poesia, no ensaio, na música, nas artes plásticas”.99 O cunho

revolucionário e o condão de “catalisador da nova literatura” que Candido atribui à

Semana constituiriam a essência e o espírito do Modernismo (sobretudo na chamada

“fase heroica”, de 1922 a 1930), cujo caráter fundador é assinalado pelo crítico em

diversas passagens de seu estudo: “Na literatura brasileira, há dois momentos decisivos

que mudam os rumos e vitalizam toda a inteligência: o Romantismo, no século XIX

(1836-1870), e o ainda chamado Modernismo, no presente século (1922-1945)”.100

“Parece que o Modernismo (tomado o conceito no sentido amplo de movimento das

ideias, e não apenas das letras) corresponde à tendência mais autêntica da arte e do

pensamento brasileiro”.101

A avaliação de Antonio Candido sintetiza o pensamento que alinha críticos e

historiadores literários em torno da influência fundamental e irrecusável do

Modernismo, reconhecida quase em uníssono. Ainda em “Literatura e cultura de 1900 a

1945”, ao propor uma partição cronológica da literatura brasileira no século XX,

Candido reitera a noção do movimento como divisor de águas. A despeito do didatismo

um tanto simplista, a divisão assinala de forma eficaz a cronologia de nossa literatura na

primeira metade do século passado:

Convém assinalar que a literatura brasileira no século XX se divide quase naturalmente em três etapas: a primeira vai de 1900 [sic] a 1922, a segunda de 1922 a 1945 e a terceira começa em 1945. A primeira etapa pertence organicamente ao período que se poderia chamar pós-romântico e vai, grosso modo, de 1880 a 1922, enquanto as duas outras integram um período novo, em que ainda vivemos: sob este ponto de vista, o século literário começa para nós com o Modernismo. Para compreendê-lo, é necessário partir de antes, isto é, da fase 1900-1922.

102

Recuemos ainda mais. Na poesia brasileira, a fase de 1880 a 1922, ligada

“organicamente ao período que se poderia chamar pós-romântico”, segundo Candido,

corresponde ao surgimento e à consolidação da estética parnasiana, bem como da escola

simbolista. No plano da forma, o preciosismo e o rigor técnico são a tônica da dicção

hegemônica no período. Discorrendo sobre os característicos dominantes do Parnaso,

José Guilherme Merquior refere a poética de

99 CANDIDO, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945. In:____. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: ABL; Ouro sobre azul, 2010. p. 125. 100 Ibid., p. 119. O ensaio é de 1950. 101 Ibid., p. 132. 102 Ibid., p.120.

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cromos finamente cinzelados, mas inconsequentes, rematados por teatrais “chaves de ouro”. Com sua versificação “marmórea” e sua concentração em exterioridades, os parnasianos insistiram no poema oco, brilhante porém gratuito. [...] A superficialidade de todo o Parnasianismo chega a ser chocante [...]. 103

Ainda segundo Merquior, nossos parnasianos foram “hipnotizados pela ginástica

versificatória, seduzidos por uma concepção escultural do poema”104, o que não raro

redundou, sobretudo na produção dos epígonos, numa expressão anódina, esvaziada de

qualquer viço verdadeiramente poético. O apuro técnico e a tendência estetizante –

formas fixas (em especial o soneto), metrificação ortodoxa (império dos decassílabos e

dos alexandrinos), rimas ricas, lapidaria verbal – figuram como marcas ostensivas não

apenas do verso parnasiano como também da poesia simbolista, sua contemporânea,

como salienta Alfredo Bosi: “O Parnaso legou aos simbolistas a paixão do efeito

estético”.105 Tomados à herança clássica, a regularidade e o apaziguamento de formas –

sobre os quais repousa a concepção da arte poética (ou da técnica poética) como

expressão de um modelo monolítico de beleza – conformam a lírica do período, seja de

estirpe parnasiana, seja de linhagem simbolista. Antonio Candido ressalta que essa

produção “conserva e elabora os traços desenvolvidos depois do Romantismo, sem dar

origem e desenvolvimento novos; e, o que é mais interessante, parece acomodar-se com

prazer nessa conservação”.106 O resultado desse estado de coisas, segundo Candido, é

“uma literatura satisfeita, sem angústia formal, sem rebelião nem abismos. [...] Seu

esforço mais tenaz é conseguir pela cópia o equilíbrio e a harmonia, ou seja, o

academismo”.107

Contudo, sob a prevalente harmonia haurida da tradição clássica soam vozes

dissonantes. O crítico Fábio Lucas identifica na lírica brasileira de fins do século XIX e

início do século XX “traços de modernidade e de avanço” em, por exemplo, Raul

Pompeia, cujas “Canções sem metro denunciam a crise da metrificação”, e Gilka

Machado, que “outorga à mulher uma voz autônoma na poesia”.108 Se o canto feminino

é contributo que pode ser reivindicado por Francisca Júlia, Auta de Sousa e Júlia

103 MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira I. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. pp.165-6. 104 Ibid. 105 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. Op. cit., p. 263. 106 CANDIDO, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945. In:____. Literatura e sociedade. Op. cit., p. 120. 107 Ibid. 108 LUCAS, Fábio. Expressões da identidade brasileira. São Paulo: Educ, 2002. p. 16.

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Cortines, o “conteúdo abertamente erótico de alguns poemas”109 de Gilka Machado é

nota dissonora e singular no cantochão do período.

Ainda no coro dos dissonantes não se pode deixar de aludir à obra de Augusto

dos Anjos, “poeta sem paralelo na poesia brasileira”110, conforme avalia Alexei Bueno.

Apesar de moldada com o rigor das formas fixas e do verso medido, sua poética se

distingue sobremodo da lírica dominante no início do século XX, conforme assinalou

Álvaro Lins no artigo “Augusto dos Anjos, poeta moderno”, de 1951. O descompasso

entre o autor do originalíssimo Eu (1912) e a propalada placidez do Parnaso funda-se no

“espírito atormentado e convulso de Augusto dos Anjos”111 – aspas para Ivan Junqueira,

que, endossando formulação de José Paulo Paes, equipara o autor do Eu aos artistas que

“atualizaram a força de impacto do monstruoso no limiar da modernidade”.112 Também

o poeta e crítico Lêdo Ivo assinala que, “em sua majestosa e soturna integridade, o Eu,

de Augusto dos Anjos, [...] é um exemplo contundente de um modernismo ocorrido

antes da Semana de Arte Moderna”.113

O traço inovador de Augusto dos Anjos remontaria, segundo Alexei Bueno, a

Cruz e Sousa, “o primeiro poeta moderno – não modernista – do Brasil”. Bueno explica:

com o Cruz e Sousa de Faróis os aspectos considerados [...] como apoéticos da realidade entraram na poesia brasileira, levando-a finalmente à modernidade. [...] Quando Cruz e Sousa escreve um poema como “Ébrios e cegos”, o último de Faróis, inicia-se a poesia moderna no Brasil e se abre o caminho que conduzirá a Augusto dos Anjos, poeta que estaria muito mais bem colocado ao lado de seus contemporâneos germânicos ou portugueses [...] do que ao lado de seus conterrâneos de um Parnaso postiço e decadente.114

A avaliação de Alexei Bueno encontra eco nas considerações de Fabiano

Rodrigo da Silva Santos, autor de Lira dissonante115, livro que investiga as incursões de

Cruz e Sousa (e do poeta romântico Bernardo Guimarães) pelo grotesco, categoria tão

109 BUENO, Alexei. Gilka Machado. In: ____. Pré-Modernismo (Coleção Roteiro da Poesia Brasileira). São Paulo: Global, 2007. p. 116. 110 ____. Augusto dos Anjos. Ibid., p. 31. 111 JUNQUEIRA, Ivan. O excesso e suas representações. In: O fio de Dédalo. Rio de Janeiro: Record,1998. p. 230. 112 Ibid., p. 238. A formulação de José Paulo Paes está em “Uma microscopia do monstruoso”, ensaio recolhido em Armazém literário (org. Vilma Arêas). São Paulo: Cia. das Letras, 2008. p.104. 113 IVO, Lêdo. Os modernismos do século XX. In: Ajudante de mentiroso: ensaios. Rio de Janeiro: ABL; UCAM, 2009. pp. 32-3. 114 BUENO, Alexei. Pré-Modernismo (prefácio). In:____. Pré-Modernismo. Op. cit., pp. 8-9. 115 SANTOS, Fabiano Rodrigo da Silva. Lira dissonante: considerações sobre aspectos do grotesco na poesia de Bernardo Guimarães e Cruz e Sousa. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009.

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cara à estética da modernidade. Na mesma raia, Lêdo Ivo acrescenta que “o

Simbolismo, realçando a evidência de uma crise do verso (ou no verso), abriu o

caminho subterrâneo para a modernidade”.116 Por essas veredas subtérreas circulou

ainda a “poesia inovadora”117 de Pedro Kilkerry (1985-1917) e seu “simbolismo-com-

ares-de-vanguarda”, cuja produção apoucada e quase clandestina foi recolhida em 1970,

não por acaso, por Augusto de Campos, que sobre ele escreveu:

Kilkerry traz para o Simbolismo brasileiro um sentido de pesquisa que lhe era, até então, estranho, e uma concepção nova, moderníssima, da poesia como síntese, como condensação, [...] numa época em que o ornamental predominava e os adjetivos vinham de cambulhada, num borbotão sonoro-sentimental que ameaçava deteriorar os melhores poemas.118

Ainda na quadra simbolista, Marcelo Gama, “poeta moderno, [...] longe da torre

de marfim em que se deleitavam os nefelibatas”119, aparece como “legítimo precursor

do Modernismo, pela forma aberta e avançada”120 de sua poesia, crivada de “versos de

insólitas imagens e frases sarcásticas e maliciosas”.121 A dicção deste “poeta e

boêmio”122 distingue-se “pela originalidade, em parte porque sustentada em modelos

que não eram os mais citados no momento e sobretudo porque nascia duma

sensibilidade rara entre nós”123, conforme registra Massaud Moisés.

Retrocedamos ainda mais um pouco para fazer constar neste breve levantamento

de prenúncios esparsos de modernidade o veio inovador da poesia de Sousândrade,

“espírito originalíssimo para seu tempo”124, consoante anotação de Alfredo Bosi.

Surgido na segunda geração romântica, o autor de O guesa, “com assombrosa intuição

dos tempos modernos”125, trilhou caminhos insuspeitados “em relação a toda a poesia

brasileira do século XIX”126, lançando mão “de insólitos arranjos sonoros ao

116 IVO, Lêdo. Os modernismos do século XX. In:____. Ajudante de mentiroso. Op. cit., p. 28. 117 PAES, José Paulo Paes. A tradução literária no Brasil. In:____. Armazém literário (org. Vilma Arêas). São Paulo: Cia. das Letras, 2008. p.172. 118 CAMPOS, Augusto de. A harpa esquisita de Pedro Kilkerry. In:____. ReVisão de Kilkerry. São Paulo: Brasiliense, 1985 pp.28-30. 119 MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira (v.2 – Realismo e Simbolismo). São Paulo: Cultrix, 2001. pp. 322-3. 120 Id., ibid., p. 321. 121 JUNKES, Lauro. Marcelo Gama. In:____. Simbolismo (Coleção Roteiro da Poesia Brasileira). São Paulo: Global: 2006. p. 105. 122 Id., ibid. 123 MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira (v.2). Op. cit., p. 321. 124 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. Op. cit., p. 125. 125 Id., ibid., p. 126. 126 Id., ibid.

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plurilinguismo; dos mais ousados conjuntos verbais à montagem sintática”.127 Sua

originalidade levou Humberto de Campos a chamá-lo “João Batista da poesia

moderna”128, epíteto chancelado por Fausto Cunha, que escreveu: “As direções tomadas

pela poesia moderna, valorizando a criação no absurdo e a violentação do organismo

verbal, conferiram a Sousândrade o direito de figurar como um precursor”.129 No

mesmo passo, Augusto e Haroldo de Campos consignam que, “numa perspectiva

internacional [...], a obra sousandradina recua bruscamente o marco da independência

da literatura brasileira para a nossa segunda geração romântica, marco este que estaria

nominalmente com os modernistas de 22”.130

Como se vê, para além da “literatura satisfeita, sem angústia formal, sem

rebelião nem abismos” (Candido), nas fissuras da classicizante “versificação

‘marmórea’ e sua concentração em exterioridades” (Merquior), infiltram-se inflexões de

alguma modernidade ainda difusa, que se anuncia mas ainda não se faz soberana. A

detecção de vertentes diversas da poética dominante (parnasiano-simbolista, no caso)

sinaliza que o fenômeno literário, considerado em toda a sua complexidade, não se

reduz a esquematismos lineares e simplificadores. Pode-se antever desde já o

entrelaçamento de estéticas da tradição e da modernidade.

Em linhas gerais, eis a situação da poesia brasileira no período que antecede à

Semana de Arte Moderna. Esse conjunto de forças díspares, todavia, sucumbe a “uma

paisagem de fato desoladora: a do triunfo do Parnasianismo, isto é, o triunfo da fôrma

sobre a forma”131, como destaca Ivan Junqueira. O movimento modernista, assim,

desponta em manifesta oposição ao “passadismo” parnasiano, pavimentado à larga

pelos epígonos da escola. A fala de Menotti Del Picchia na segunda noite da Semana

não deixa dúvida quanto à disposição combativa do movimento e quanto ao inimigo a

ser debelado: “A nossa estética é de reação. Como tal, é guerreira. [...] Na geleira de

127 Id., ibid. 128 CAMPOS, Humberto de. In: CAMPOS, Augusto; CAMPOS, Haroldo. Sousândrade: poesia. Rio de Janeiro: Agir, 1995. p. 133. 129 CUNHA, Fausto. Sousândrade. In: COUTINHO, Afrânio (org.). A literatura no Brasil (v. 3, Romantismo). São Paulo: Global, 2001. p. 229. 130 CAMPOS, Augusto; CAMPOS, Haroldo. Sousândrade: poesia. Op. cit., p. 17. 131 JUNQUEIRA, Ivan. Modernismo: tradição e ruptura. In:____. Ensaios escolhidos (v. 2). São Paulo: A Girafa, 2005. p. 198.

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mármore de Carrara do Parnasianismo dominante, a ponta agressiva dessa proa verbal

estilhaçava como um aríete”.132

As obras fundadoras do Modernismo eclodem imbuídas desse espírito aguerrido,

buscando a renovação do repertório e da expressão poética. O cotidiano, as pequenas

manifestações da vida comum, o humor e o prosaico adquirem livre trânsito no território

da poesia, até então dominado pelos temas “nobres”, presumivelmente “poéticos”.

Prócer do movimento, Mário de Andrade trataria de abolir pré-requisitos temáticos:

“Todos os assuntos são vitais. Não há temas poéticos”.133 A expressão desta nova poesia

também deveria ser original: em lugar das formas clássicas, outras, desobrigadas de

quaisquer convenções, entram em vigor; o verso rigoroso, obediente ao metro regular e

à rima, cede passo ao verso livre, coloquial e direto, desvinculado de padrões ou

exterioridades previsíveis, sem compromisso senão com a função expressiva do poema.

Fecha-se o ciclo do neoclassicismo parnasiano, e em seu lugar sobrevém, impetuosa e

transformadora, a expressão modernista.

A fase inicial do Modernismo propunha a consolidação de uma nova inteligência

criadora, posta em prática com o desenvolvimento de possibilidades estéticas até então

inexploradas donde surgiriam formas de expressão realmente inovadoras. A análise de

Mário de Andrade evidencia a “convulsão profundíssima da realidade brasileira”

provocada pelo sismo de 22:

Embora se integrassem nele [no movimento de 22] figuras e grupos preocupados de construir, o espírito modernista que avassalou o Brasil, que deu o sentido histórico da Inteligência nacional desse período foi destruidor. Mas esta destruição não apenas continha todos os germes da atualidade como era uma convulsão profundíssima da realidade brasileira. O que caracteriza esta realidade que o movimento modernista impôs é, a meu ver, a fusão de três princípios fundamentais: o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional. 134

É de se destacar na fala de Mário de Andrade a ênfase no espírito destruidor do

primeiro modernismo, manifesto já no discurso de Menotti Del Picchia na segunda noite

da Semana. Com efeito, a instauração dos “três princípios fundamentais” do movimento

132 DEL PICCHIA, Menotti. Arte moderna. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 228. 133 ANDRADE, Mário de. A escrava que não é Isaura. São Paulo: Lealdade, 1925. p. 25. 134 Id., O movimento modernista. In:____. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1974. p.242.

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pressupunha o rompimento radical e definitivo com modelos e valores do passado: para

que o moderno se estabelecesse, era preciso que a tradição, pousada sobre os pilares

cediços de uma linguagem afetada e de uma estética anacrônica, fosse desmoralizada e

implodida. Nesse processo de ruptura, têm especial relevo os escritos de Mário de

Andrade reunidos sob o título “Mestres do passado”. Na série de sete artigos publicados

em agosto de 1921 no Jornal do Commercio de São Paulo, Mário procede ao “estudo

anatômico” de poemas da fina flor do Parnaso – a tríade Raimundo Correia, Alberto de

Oliveira e Olavo Bilac, além de Francisca Júlia e Vicente de Carvalho. São textos

pejados de ironia e mordacidade, que põem a nu os maneirismos e procedimentos

retóricos do verso parnasiano, “pomposo e vazio de sentimento”, ornado com “todos os

artifícios e perfeições” e com a “pura doiradura, da mais formosa, da mais

enganadora”.135 Apesar de abertamente desferidos contra o Parnaso, os artigos de Mário

de Andrade, ao atacarem os “mestres do passado”, parecem adquirir dimensão mais

larga e contrapor-se a um conceito mais amplo de tradição, a qual, uma vez sepultada,

teria por último monumento a cruz dos mortos, junto à qual crepitaria “a fogueira da

consagração contemporânea”. Leia-se, a propósito, um fragmento do primeiro artigo:

Ó Mestres do Passado, eu vos saúdo! Venho depor a minha coroa de gratidões votivas e de entusiasmo varonil sobre a tumba onde dormis o sono merecido! Sim: sobre a vossa tumba, porque vós todos estais mortos! E se, infelizmente para a evolução da poesia, a sombra fantasmal dalguns de vós, trêmula, se levanta ainda sobre a terra, em noites foscas de sabat, é que esses não souberam cumprir com magnificência e bizarria todo o calvário do seu dever! Deveriam morrer! Assim o conclama, na marcha fúnebre das minhas lágrimas, a severa Justiça que não vacila e com a qual vos honro e dignifico! Deveriam morrer! A vida vegetal a que se agarraram não se coaduna com o destino dos muezins duma arte do tempo incessante, dos troveiros alados, dos cortesãos da Beleza fugitiva! [...] Despejo sobre vós, ó Mestres do Passado, os aludes instrumentais do meu réquiem; e acendo junto à cruz dos vossos monumentos, sobre os vossos crânios vazios, a fogueira da consagração contemporânea!136

Inumar o velho para fazer florescer o novo: eis a dinâmica que se impunha. “Nós

somos o Alfa do novo ciclo. Queremos esfarelar os últimos destroços do Ômega do

ciclo morto, para desenvolvermos a autonomia vibrante da nossa maneira de ser no

135 Id., Mestres do passado. In: BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro: antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. p. 281. 136 Ibid., p. 254.

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tempo e no espaço”137, exclamaria Menotti Del Picchia na Semana. A supressão total da

História e a antitradição de inspiração futurista138 parecem informar, em alto grau, o

pensamento e a ação de 22; boa parte da crítica literária assenta suas análises neste

pressuposto. Tratando dos modernistas, Lêdo Ivo chama a atenção para o fato de que

“essa contestação em bloco do passado os levou a forjar um Brasil literário – aquele que

os precedera – inteiramente falso ou irreal”.139

Ocorre que “o Brasil literário que os precedera” não seria de todo apagado. Os

primeiros livros de Manuel Bandeira, Mário de Andrade (sob o pseudônimo de Mário

Sobral), Jorge de Lima, Cassiano Ricardo, Ribeiro Couto, Ronald de Carvalho ou

Guilherme de Almeida, por exemplo, registram os versos antemodernistas – simbolistas,

penumbristas ou parnasianos – que na obra dos poetas de 22 são sintomas (ou sequelas)

de uma formação essencialmente tradicional a que os futuros modernistas não puderam

fugir. O crítico e historiador José Aderaldo Castello assinala essa origem, destacando

que “o equilíbrio que aqueles poetas revelariam em última análise se dá

fundamentalmente graças ao reconhecimento que nunca deixaram de ter da importância

da experiência que receberam da tradição”.140 Castello afirma:

É sabido que os nossos primeiros grandes poetas modernistas, a serem consagrados, estão enraizados nesses antecedentes parnasianos e simbolistas, conforme seus primeiros livros. [...] Conheceram as formas tradicionais sob o esmero da linguagem parnasiana e as renovações simbolistas com a musicalidade da palavra. O estudo da obra de cada um pede de início esse equacionamento com a tradição e projeção parnasiana e simbolista dos anos 20.141

Não deixa, pois, de ser curiosa a “confissão” de Mário de Andrade quando se

refere ao impacto que em 1917 lhe causou a pintura de Anita Malfatti: ao “‘Homem

amarelo’[quadro de Anita], de formas tão inéditas então, eu dedicava um soneto de

137 DEL PICCHIA, Menotti. Arte moderna. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 229. 138 Cf. “A antitradição futurista”. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro. Op. cit., p. 112. 139 IVO, Lêdo. Os modernismos do século XX. In:____. Ajudante de mentiroso. Op. cit., p. 32. 140 CASTELLO, José Aderaldo. A literatura brasileira: origens e unidade (1500-1960). São Paulo: EdUSP, 2004. p.25. 141 Ibid.

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forma parnasianíssima”.142 No mesmo passo, em crítica literária de 1924 (quando

Oswald de Andrade pontifica, no “Manifesto da poesia pau-brasil”, “pela invenção e

pela surpresa”), o jovem Carlos Drummond de Andrade alude à “lira gloriosa de Olavo

Bilac”143, emudecida em 1918. A propósito, a biografia de Drummond assinala “seu

amor jamais abalado pelo poeta parnasiano, um amor que ele confessa ter escondido

durante os anos de Modernismo. [...] Drummond lembra que um soneto de Bilac

correspondia [...] a uma peça oracular”.144

Como se vê, sob a presumível “neurose do presente e clamorosa falta do

sentimento do passado”145, é possível identificar no palimpsesto modernista a tinta da

tradição. Na esfera extraliterária, é sintomática e reveladora a análise de Mário de

Andrade sobre o entorno social do Modernismo dos anos 1920, aninhado nos salões da

aristocracia paulistana e “estipendiado pelos barões do café”.146 Valendo-se à larga das

benesses dos quatrocentões de São Paulo (“os Prados e Penteados”, como refere Lêdo

Ivo), o movimento de 22 fermentava em ambientes de “tal imponência de riqueza e

tradição”147 que Mário de Andrade sentenciaria: “Também aí o culto da tradição era

firme, dentro do maior modernismo”.148 Parece mesmo ter razão o crítico Ítalo Moriconi

quando afirma de forma peremptória: “Apesar do seu lado vanguardista, o Modernismo

foi no Brasil um movimento profundamente comprometido com a tradição”.149

A partir da célebre viagem dos bastiões de 22 pelas cidades históricas de Minas

Gerais, o crítico Brito Broca tece argutas considerações sobre a relação ambivalente de

nosso Modernismo (ou de nossa modernidade) com a tradição, representada, no caso,

pelo Barroco mineiro. Em 1924, o grupo formado por Tarsila do Amaral, Mário de

Andrade, Oswald de Andrade e figuras da alta burguesia paulistana ciceroneia o poeta

franco-suíço Blaise Cendrars numa excursão pelas cidades coloniais de Minas,

importantes repositórios da cultura barroca no Brasil . Brito Broca analisa a viagem, em 142 ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. In:____. Aspectos da literatura brasileira. Op. cit., p. 232. 143 ANDRADE, Carlos Drummond de. As condições atuais da poesia no Brasil. In:____. Os 25 poemas da triste alegria (org. Antonio Carlos Secchin). São Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 133. 144 CANÇADO, José Maria. Os sapatos de Orfeu: biografia de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Globo, 2006. p. 40. 145 IVO, Lêdo. Epitáfio do Modernismo. In:____. Poesia observada. São Paulo: Duas Cidades, 1978. p. 146. 146 ____. Os modernismos do século XX. In:____. Ajudante de mentiroso. Op. cit., p. 33. 147 ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. In:____. Aspectos da literatura brasileira. Op. cit., p. 240. 148 Ibid., p. 239. 149 MORICONI, Ítalo. Como e por que ler a poesia brasileira do século XX. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 32.

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artigo publicado no suplemento “Letras e Artes”, de A Manhã (Rio de Janeiro), edição

de 4 de maio de 1952:

Antes de tudo, o que merece reparo nessa viagem é a atitude paradoxal dos viajantes. São todos modernistas, homens do futuro. E a um poeta de vanguarda que nos visita, escandalizando os espíritos conformistas, o que vão eles mostrar? As velhas cidades de Minas, com suas igrejas do século XVIII, seus casarões coloniais e imperiais, numa paisagem tristonha, onde tudo é evocação do passado e, em última análise, tudo sugere ruínas. [...] Mas essa excursão foi fecunda para o grupo modernista. Tarsila teria encontrado na pintura das igrejas e dos velhos casarões mineiros a inspiração de muitos dos seus painéis; Oswald de Andrade colheu o tema de várias poesias pau-brasil, e Mário de Andrade veio a escrever então seu admirável “Noturno de Belo Horizonte”.150

De fato, como salienta Brito Broca, a excursão repercutiu na obra dos

modernistas. Em Oswald de Andrade, a presença de Minas Gerais é perceptível em

diversos poemas de Pau-Brasil, publicado no ano seguinte ao da viagem. Integra o

volume a seção “Roteiro das Minas”, uma “revisitação histórica e geográfica de uma

região de tradições, arte e história entre as mais importantes e antigas do Brasil”151,

conforme anota Vera Lúcia de Oliveira. Segundo a crítica, pulsa nessa seção “a história

de Minas, suas tradições culturais, suas igrejas barrocas, as esculturas do Aleijadinho, as

procissões, as festas, o espírito bucólico e místico”152 das cidades coloniais. Em plena

ebulição modernista, também na poesia do “ponta de lança e enfant terrible”153 de 22 a

modernidade roça a tradição.

Tratando da relação ambígua entre essas duas forças que se imbricam no

Modernismo, o crítico e historiador literário Massaud Moisés põe em xeque o suposto

descarte total do passado, que, analisado na superfície, parece constituir a pedra angular

do movimento de 22. Moisés afirma:

Vista em conjunto, a nossa modernidade desenrola-se sob o signo da contradição. À semelhança do Romantismo, essa figura de linguagem constitui a base do seu pensamento e da sua produção estética. Nem sempre conscientes das motivações profundas, modernistas e modernos, aqueles, surgidos com a Semana de Arte Moderna, e esses, fora dela ou contra ela, laboravam sobre paradoxos. Se

150 BROCA, Brito. Blaise Cendrars no Brasil, em 1924. In: EULALIO, Alexandre. A aventura brasileira da Blaise Cendrars. São Paulo: EdUSP (Fapesp), 2001. p. 449. 151 OLIVEIRA, Vera Lúcia. Poesia, mito e história no Modernismo brasileiro. São Paulo: UNESP, Blumenau: FURB, 2002. p. 144. 152 Ibid. 153 GALVÃO, Walnice Nogueira. Oswald de Andrade. In:____. Modernismo (Coleção Roteiro da Poesia Brasileira). São Paulo: Global, 2007. p. 115.

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revolucionariamente modernos pelo flanco estético, e até ideológico às vezes, mostravam-se não modernos por outro. Daí que o exame dos autores de 1922 em diante os mostra hesitantes entre o vanguardismo e a reiteração de fórmulas consideradas peremptas. Modernistas e tradicionalistas a um só tempo, recusavam o velho em prol do novo, mas retomavam soluções ultrapassadas por não perceberem que as expulsavam pela porta principal e que elas retornavam pelos fundos. Nem mesmo a geração de 22 escapa dessa dicotomia, bastando, para isso, ter em mente os seus participantes um a um e a década como um todo. Afinal, quando pretendem recuperar a nossa brasilidade [...], preconizavam, posto que sob nova ótica, a volta ao passado. Havia, pois, um choque nas propostas iniciais, e a obra dos autores de 22 o patenteia.154

Massaud Moisés sublinha no Modernismo os liames entre o presente moderno

instaurado em 22 e o passado pretensamente negado em bloco pelo movimento – vale

dizer, entre modernidade e tradição. Nesse rastro parece ter razão Alfredo Bosi, quando

alerta que “o peso da tradição não se remove nem se abala com fórmulas mais ou menos

anárquicas nem com regressões literárias ao Inconsciente”.155 Conforme vimos

salientando, desde pelo menos o último quartel do século XIX é possível detectar o

entrelace de manifestações estéticas tendentes a um ou a outro polo. Mesmo num

processo de profunda experimentação calcado na insurgência iconoclasta, o qual, enfim,

resultaria na redefinição do pensamento artístico do país, modernidade e tradição não se

excluem mutuamente; antes se intersecionam, como sinaliza, aliás, ainda em 1924, o

“Manifesto da poesia pau-brasil”, no qual aparecem convocados, lado a lado, “o melhor

de nossa tradição lírica” e “o melhor de nossa demonstração moderna”.156

Em que pese a contingência histórica que o impelia a confrontar abertamente a

tradição, o movimento de 22 arremeteu, de fato, contra um passado contíguo que,

absorvido na imitação acrítica e anacrônica de formas e seduzido pelo verniz da

tradição, acabou confundido com ela. A ruptura de 22 tratou de eliminar o que havia de,

digamos, excrescente (o que não era pouco) nesse passado próximo: o oco e dogmático

beletrismo parnasiano e seu “passadismo” caduco. Isso não significou, na prática, a

negação absoluta de todo o legado cultural. Analisando o Modernismo brasileiro, o

poeta e crítico Ivan Junqueira lança luzes sobre a questão:

154 MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira (v.3 – Modernismo). São Paulo: Cultrix, 2001. p.28. 155 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. Op. cit., p. 384. 156 ANDRADE, Oswald. Manifesto da poesia pau-brasil. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro. Op. cit., p. 270.

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Sempre que se fala em tradição e ruptura, é comum ocorrer a ideia de uma fratura exposta entre aquilo que pertence ao passado, à tradição, e o que alimenta o novo, a modernidade, em nome da qual se processa tal ruptura. A noção, além de falsa, só pode ser aplicada àquela ruptura que se pratica em nome do nada. Há uma ruptura sim, e profunda, com os segmentos gastos ou gangrenados dessa mesma tradição, uma ruptura com o que há de cediço, com o que já não vive, com um passadismo cujas fôrmas, por não serem formas, já nada contêm sequer de agônico em si. [...] Ruptura não é demolição pura e simples; se assim o fosse, jamais seria possível estender-se a ponte entre o antigo e o novo. E o papel da ruptura é exatamente o de lançar essa ponte, que se resume naquele momento em que se harmoniza e articula todo um processo de transição de valores, de reavaliação estética, relativamente àquilo que não mais interessa, seja porque está morto, seja porque o mau uso o tornou imprestável.157

No artigo sobre a viagem dos modernistas de São Paulo às cidades coloniais

mineiras, Brito Broca salienta que a busca, no passado histórico, de elementos que se

pudessem incorporar à novíssima estética representa um “contrassenso apenas

aparente”. O crítico aponta “uma lógica interior no caso”:

O divórcio em que a maior parte dos nossos escritores sempre viveu da realidade brasileira fazia com que a paisagem de Minas barroca surgisse aos olhos dos modernistas como qualquer coisa de novo e original, dentro, portanto, do quadro de novidade e originalidade que eles procuravam. E não falaram, desde a primeira hora, numa volta às origens da nacionalidade, na procura do filão que conduzisse a uma arte genuinamente brasileira? Pois lá nas ruínas mineiras haviam de encontrar, certamente, as sugestões dessa arte.158

A excursão modernista de 1924 é bom exemplo de “ponte entre o antigo e o

novo” de que fala Ivan Junqueira, pela qual se processa – e se justifica – a ruptura.

Ressalta o crítico que este processo não significa “romper indiscriminadamente com

toda uma escala de valores e nada repor em lugar do que foi destruído”.159 Rompe-se

com “os segmentos gastos ou gangrenados [da] tradição”, com o que nela “há de

cediço” e “já não vive”. Àquela altura, o tradicional o Barroco mineiro, ao revés,

representava para o espírito modernista “qualquer coisa de novo e original”,

especialmente no que continha de “arte genuinamente brasileira”. O selo da

originalidade autóctone que Mário de Andrade e seus companheiros vislumbraram nas 157 JUNQUEIRA, Ivan. Modernismo: tradição e ruptura. In:____. Ensaios escolhidos (v.2). Op. cit., p. 197. 158 BROCA, Brito. Blaise Cendrars no Brasil, em 1924. In: EULALIO, Alexandre. A aventura brasileira da Blaise Cendrars. Op. cit., p. 449. 159 JUNQUEIRA, Ivan. Modernismo: tradição e ruptura. In:____. Ensaios escolhidos (v.2). Op. cit., p. 197.

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obras do Aleijadinho, na arquitetura colonial e ainda (ou sobretudo) em certa faceta –

que se articulava com tantas outras igualmente legítimas – do multiforme “homem

brasileiro”160 aderia perfeitamente ao projeto de busca (ou forjadura) de uma identidade

cultural nativa, que se impôs como uma das linhas mestras do Modernismo, em especial

na chamada fase heroica.

As relações com a tradição se insinuam nas diversas faces do Modernismo

brasileiro. No “Manifesto antropófago” (1928), a proscrição da “memória fonte do

costume” e a prescrição da “experiência pessoal renovada”161 parecem deitar raízes na

ideia mais ou menos corrente de rompimento com a tradição que o movimento de 22

teria levado a efeito. A ensaísta Susana Kampff Lages, contudo, compreende o

“conceito modernista de antropofagia como estratégia particular de leitura da

tradição”162, não como descarte acrítico do passado. Segundo Kampff,

esse conceito reflete sobretudo uma atitude diante da tradição poética tanto brasileira quanto universal, que não se deixa mais definir nos termos tradicionais de “influência”, no sentido de uma assimilação passiva de elementos externos. Trata-se de um processo de violenta apropriação, que se constitui a partir de uma releitura conscientemente seletiva do substrato literário passado e contemporâneo.163

Neste “processo de violenta apropriação [...] do substrato literário passado”, o

expediente da paródia, com seu poder de desconstrução pela via do burlesco, figura na

linha de frente do arsenal de procedimentos modernistas. O crítico Antonio Carlos

Secchin ressalta que o derruimento operado pela paródia faz subsistir, em movimento

contrário, o que se pretendia aniquilar:

Tomemos o exemplo da paródia: com ela, supõe-se demolir um edifício, quando, a rigor, ele é reconstruído de cabeça para baixo no subsolo. Numa relação algo incestuosa com a linguagem, o texto-matriz cintila sobre os escombros, pois, pretensamente aniquilado, transforma-se na grande fonte de sustentação do novo texto que o acusa. Ao fim e ao cabo, o texto paródico termina endossando, mesmo

160 A noção necessariamente multiforme de “homem brasileiro” se valida na medida em que se considera toda a diversidade “de uma Nação apenas juridicamente unificada”, conforme sublinha Alfredo Bosi no ensaio “Moderno e modernista na literatura brasileira”. In: Céu, inferno. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003. p. 212. 161 ANDRADE, Oswald. Manifesto antropófago. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro. Op. cit., p. 298. 162 LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. São Paulo: EdUSP, 2007. p. 90. 163 Id., ibid.

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às avessas, a força fecundadora daquilo que pretendeu, pela derrisão, sufocar.164

Tantas vezes empregada como artifício de deslegitimação ou

“desmascaramento” do passado literário, a paródia finda por recuperar – ou fazer resistir

–, obliquamente, a tradição que desejava liquidar.

No plano da efetiva produção literária, o redescobrimento da nacionalidade

proposto no “Manifesto da poesia pau-brasil” de Oswald de Andrade materializa-se no

Macunaíma de Mário de Andrade, no Martim Cererê de Cassiano Ricardo, no Cobra

Norato de Raul Bopp, n’Essa nega fulô de Jorge de Lima, entre outros. Essas obras

lançam a ponte na direção da cultura popular do Brasil – o manancial de folclore, lendas

e mitos gestados numa cultura basicamente iletrada, transmitida pela tradição oral ao

longo das gerações, conforme registra o sociólogo Oswaldo Elias Xidieh: “a cultura

popular [...] perpetua, por herança ou por descoberta, inúmeros de seus traços e padrões:

a tradição, a analogia, a consideração dos fatos da natureza, a disposição mágica perante

o mundo, o sentido da repetição”.165 Essa cultura popular constitui, pois, importante

esteio da nossa tradição, produto “de um país muito jovem que não tivera o tempo

necessário à consolidação de um substrato tradicional como o têm, por exemplo, os

países da Europa e da Ásia, cujos estratos culturais remontam a épocas muito

anteriores”.166 Sob a divisa do cosmopolitismo e com a intermediação da vanguarda

europeia, toma-se como essência de uma literatura distintivamente brasileira a tradição

possível a uma nação mal saída “de sua infância colonial e do parasitismo a que foi

sujeitado pelo colonizador”167, conforme destaca Ivan Junqueira.

A contraface efetivamente moderna do projeto nacionalista se manifesta no

tratamento literário a que foram submetidos os traços da “brasilidade” colhidos em

grande monta na nossa tradição. Buscando divorciar-se da sintaxe lusitana, a “língua

brasileira”, “sem arcaísmos, sem erudição, natural e neológica, como falamos, como

somos”168, impunha-se a um só tempo como emblema e como instrumento ajustado às

164 SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: marcas. In:____. Poesia e desordem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p. 74. 165 XIDIEH, Oswaldo Elias apud BOSI, Alfredo. Cultura brasileira e culturas brasileiras. In: Dialética da colonização. São Paulo: Cia. das Letras, 1992. p. 396. 166 JUNQUEIRA, Ivan. Modernismo: tradição e ruptura. In:____. Ensaios escolhidos (v.2). Op. cit., p. 204. 167 Id., ibid. 168 ANDRADE, Oswald. Manifesto da poesia pau-brasil. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro. Op. cit., p. 267.

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necessidades de expressão da nova plataforma estética e ideológica. “O estandarte mais

colorido dessa radicação à pátria foi a pesquisa da ‘língua brasileira’. [...] Não há dúvida

nenhuma de que nós hoje sentimos e pensamos o quantum satis brasileiramente”169,

ponderaria Mário de Andrade em 1942. A afirmação da nacionalidade fez-se motriz de

um “lirismo telúrico, ao mesmo tempo crítico”170, empenhado em legitimar a nossa

“originalidade nativa”.171 José Guilherme Merquior identifica nesse processo a

“saudável penetração brasileira, [a] proximidade da terra e [a] vizinhança do povo”172,

elementos que o levam a afirmar: “A conquista do Brasil se tornou uma das glórias

dessa poesia”.173

João Luiz Lafetá ressalta que a esse propósito estético corresponde um projeto

ideológico, de natureza sociopolítica, alinhado com as “transformações profundas

[ocorridas na década de 1920] tendentes a configurar um quadro econômico-estrutural

mais complexo que o sistema agrário-exportador herdado do Império”:

O “anarquismo” dos anos 1920 descobre o país, desmascara a idealização mantida pela literatura representativa das oligarquias e das estruturas tradicionais, instaura uma nova visão e uma nova linguagem, muito diferentes do “ufanismo”, mas ainda otimistas e pitorescas, pintando (como na poesia Pau-Brasil e em João Miramar, na Pauliceia desvairada e no Clã do jabuti, no Verdamarelismo) estados de ânimo vitais e eufóricos; o humorismo é a grande arma desse Modernismo e o aspecto carnavalesco, o canto largo e aberto, jovem e confiante, são sua meta e seu princípio.174

Segundo Lafetá, a “nova visão” e a “nova linguagem” correm juntas no processo

de “transformações profundas” deflagradas nos campos sociopolítico e estético-cultural.

Ao apontar a inter-relação entre esses dois planos, o crítico os aborda a partir duma

perspectiva de simetria e concentricidade, reincidindo no embate (e mútua exclusão)

169 ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. In:____. Aspectos da literatura brasileira. Op. cit., p. 244. 170 CANDIDO, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945. In:____. Literatura e sociedade. Op. cit., p. 130. 171 ANDRADE, Oswald. Manifesto da poesia pau-brasil. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro. Op. cit., p. 270. 172 MERQUIOR, José Guilherme. A poesia modernista. In:____. Razão do poema – ensaios de crítica e de estética. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p. 37. 173 Id., ibid. 174 LAFETÁ, João Luiz. Os pressupostos básicos. In:____. 1930: a crítica e o Modernismo. Op. cit., p. 29.

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entre tradicional e moderno e configurando uma cisão que não se verifica, ao menos no

plano estético-cultural, de forma tão esquemática. A “nova visão” e a “nova linguagem”

instauradas nos anos 1920 esteiam uma modernidade que, comprometida com a

“atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência

criadora nacional”, não deixou, como vimos, de dialogar com a tradição, ao contrário do

que amiúde se apregoa.

Ao longo da década de 1920, em meio à “maior orgia intelectual que a história

artística do país registra”, o Modernismo tratou de consolidar a nova linguagem e o que

entendeu por “nacionalidade brasileira”. Por volta de 1930, o movimento vai

encampando novas possibilidades, assumindo diferentes contornos, passando, enfim, a

outra etapa. É quando se inicia o que se convencionou chamar a segunda fase

modernista.

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4. A década de 1930

Arrefecida a beligerância dos anos seguintes à Semana, a poesia brasileira passa

a alargar as veredas abertas pelos primeiros modernistas. Por volta de 1930 tem início

um período de amadurecimento da expressão lírica inaugurada em 1922, no qual se

verificam a ampliação do horizonte temático e a manipulação consciente das técnicas

introduzidas pelos precursores. Alfredo Bosi afirma que o movimento iniciado em torno

de 1930 “vincou fundo a nossa literatura, lançando-a a um estado adulto e moderno

perto do qual as palavras de ordem de 22 parecem fogachos de adolescente”.175 Péricles

Eugênio da Silva Ramos anota que a partir de 1930, no Brasil, a poesia

passa a preocupar-se com o homem, em si ou como ser social, partilhada em várias diretrizes, de que aos poucos se vai excluindo o humorismo: social ou política (Carlos Drummond de Andrade), religiosa (Jorge de Lima, Murilo Mendes), de interiorização (Cecília Meireles), etc. A expressão se faz mais densa do que na primeira fase [...]. O que se procura é exprimir a verdade humana ou social de cada poeta, não se perdoando a ausência de personalidade definida.176

Esse processo de depuração e aprofundamento é também sublinhado por

Antonio Candido, que, avaliando a marcha do Modernismo, localiza no período de 1930

a 1940 “a culminância em que todos os seus frutos amadureceram”.177 Nesse sentido

Candido assevera: “o decênio mais importante é o de 1930. Na maré montante da

175 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. Op. cit., p. 383 176 RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. Prefácio. In: CAMPOS, Milton de Godoy. Antologia poética da Geração de 45. São Paulo: Clube de Poesia, 1966. p. 10. Sobre a inclusão de Cecília Meireles entre os modernistas de 30, é de se observar que sua poesia somente seria influenciada por aquele ideário estético, se é que o foi, a partir de Viagem (1939). 177 CANDIDO, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945. In:____. Literatura e sociedade. Op. cit., p. 132.

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Revolução de Outubro, que encerrava a fermentação antioligárquica [...], a literatura e o

pensamento se aparelham numa grande arrancada”.178

O aparelhamento da literatura e do pensamento e a “grande arrancada” são

facilmente identificáveis no período. Na prosa de ficção, a década de 1930 vê surgir

ficcionistas da envergadura de Érico Veríssimo, Graciliano Ramos, Jorge Amado, José

Lins do Rego, Rachel de Queiroz. No ensaio histórico-sociológico, despontam

pensadores do quilate de Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de

Holanda. A investigação do Brasil iniciada no decênio anterior se aprofunda, imbuída

de mais densa consciência crítica.

Também a poesia sofre o influxo de uma nova sensibilidade, refletida na

expressão de outro estado/estágio da modernidade alvorecida em 1922. É significativo

que no ano de 1930 – convencionalmente admitido como baliza a separar as duas

primeiras etapas do processo modernista – tenham estreado em livro dois poetas de

larga influência na lírica brasileira: Carlos Drummond de Andrade (com Alguma

poesia) e Murilo Mendes (com Poemas). É também em 1930 que vem a lume

Libertinagem, de Manuel Bandeira, título capital de nossa poesia moderna, a qual

adquire, ao longo da década, corpo mais robusto e feições mais bem definidas. A ideia

de “maturidade” é convocada amiúde para dar conta dessa transformação, como se vê

em João Luiz Lafetá:

A opinião unânime dos estudiosos do Modernismo é que o movimento atingiu, durante o decênio de 30, sua fase áurea de maturidade e equilíbrio, superando os modismos e os cacoetes dos anos 20, abandonando o que era pura contingência ou necessidade do período de combate estético. 179

A noção de amadurecimento do discurso poético estende-se ainda ao

abrandamento do radicalismo dos anos 1920, conforme avalia Gilberto Mendonça

Teles:

A segunda geração, que começou a publicar a partir de 1930, procurou inicialmente consolidar na prática as conquistas teóricas da primeira. O espírito da década ainda é o de implantação do Modernismo, que agora se alastrava pelas capitais estaduais. [...] Os temas e as formas da retórica modernista começam a ser selecionados e aprofundados,

178 Ibid., p. 131. 179 LAFETÁ, João Luiz. Os pressupostos básicos. In:____. 1930: a crítica e o Modernismo. Op. cit., p. 31.

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abrindo-se, ainda que lentamente, para certos aspectos universais da poesia que o radicalismo da primeira hora havia abandonado. 180

A abertura para “certos aspectos universais da poesia” se realiza com o

alargamento do repertório poético, até então comprometido, em grande medida, com

aspectos da identidade e da nacionalidade brasileiras. Talvez se possa mesmo falar em

superação do discurso nacionalista, na medida em que, cumprido o “processo de

conhecimento e interpretação da realidade nacional” 181, a poesia busca integrar-se num

diálogo universal em torno do “homem, em si ou como ser social”, para além do homem

brasileiro atrelado à realidade nacional. Recusando-se a aderir ao nacionalismo

programático, Drummond já sinalizava essa ampliação de foco em “Também já fui

brasileiro”, poema de seu primeiro livro, no qual se lê: “o nacionalismo é uma virtude./

Mas há uma hora em que [...]/ todas as virtudes se negam”.

No que tange à forma, o verso livre se firma como suporte adequado às novas

necessidades expressivas. No artigo “A poesia em 1930”, em que saúda a estreia de

Drummond e Murilo Mendes – e o surgimento de Libertinagem, de Bandeira, e de

Pássaro cego, de Augusto Frederico Schmidt –, Mário de Andrade avalia, já com algum

distanciamento temporal, os desdobramentos do versilibrismo:

O que logo salta aos olhos nestes poetas de 1930 é a questão do ritmo livre. Verso livre é justamente a aquisição de ritmos pessoais. Está claro que, se saímos da impersonalização das métricas tradicionais, não é pra substituir um encanto socializador por um vácuo individual. O verso livre é uma vitória do individualismo... Beneficiemo-nos ao menos dessa vitória. E é nisso que sobressaem as contribuições de Manuel Bandeira e Augusto Frederico Schmidt.182

Mário também identifica o amadurecimento do projeto modernista, afirmando

que, àquela altura, já haviam desaparecido as “inconveniências da aurora”, referência à

prática desbragada e inconsistente do verso livre. O salvo-conduto do versilibrismo teria

ensejado resultados discutíveis, conforme detectado pelo próprio Mário de Andrade:

180 TELES, Gilberto Mendonça. Para o estudo da Geração de 45. In:____. Contramargem – estudos de literatura. Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2002. p. 84. 181 LAFETÁ, João Luiz. Estética e ideologia: o Modernismo em 30. In:____. A dimensão da noite e outros ensaios (org. Antonio Arnoni Prado). São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000. p. 57. 182 ANDRADE, Mário. A poesia em 1930. In:____. Aspectos da literatura brasileira. Op. cit., p. 28.

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[Em 1930] acabaram as inconveniências da aurora. A poesia brasileira muito que tem sofrido destas inconveniências, principalmente a contemporânea, em que a licença de não metrificar botou muita gente imaginando que ninguém carece de ter ritmo mais e basta ajuntar frases fantasiosamente enfileiradas pra fazer verso livre. Os moços se aproveitaram dessa facilidade aparente, que de fato era uma dificuldade a mais [...]. O resultado dessa envolumação precipitada das inconveniências da aurora, refletindo bem, foi desastroso no movimento contemporâneo da nossa poesia. Uma desritmação boba, uma falta pavorosa de contribuição pessoal, e sobretudo a conversão contumaz a pó de traque da temática que os mais idosos estavam trabalhando em fadiga, hesitações e muitos erros.183

Não obstante o primado do verso livre, é possível vislumbrar na poesia do

período alguma relação com o verso tradicional, manifestada sobretudo na mescla de

versilibrismo e metrificação. Ainda em “A poesia em 1930”, Mário de Andrade, em

habilíssima análise sobre Alguma poesia, do então estreante Drummond, conclui: “Tem

mesmo em Carlos Drummond de Andrade um compromisso claro entre o verso livre e a

metrificação. Os seus versos curtos assumem, na infinita maioria, função de versos

medidos, contendo noções geralmente completas e acentuações tradicionais”.184 Em

recente estudo sobre a prática da polimetria nos versos drummondianos de 1930 a 1951,

Antonio Carlos Secchin desdobra a percepção de Mário de Andrade e revela que o

“compromisso claro entre o verso livre e a metrificação” em Drummond se resolve por

meio de duas modalidades principais: “ora ocorre a incrustação de um bloco de versos

regulares num conjunto de versos livres, ora se inserem unidades métricas heterogêneas

num todo textual maciçamente regular”.185 O crítico sustenta que “um ‘renitente clichê’

– o de que o discurso modernista, em nome do verso livre, fez tabula rasa dos sistemas

de metrificação que o precederam – deve, no mínimo, ser relativizado, a partir da

consideração da prática da polimetria”.186

Também Afrânio Coutinho assinala certa “preocupação maior com a forma e o

tratamento rigoroso do verbo” entre os poetas de 30, “como Drummond, Jorge de Lima,

Cassiano Ricardo, sendo assim uma característica geral da fase”.187 Gilberto Mendonça

Teles vincula esta tradicionalização rarefeita no plano formal ao alargamento do

espectro de assuntos. De acordo com o crítico, “à medida que os temas se foram 183 Id., ibid., pp. 27-8. 184 Id., ibid., p. 32. 185 SECCHIN, Antonio Carlos. Alguma polimetria. In: Cadernos de Literatura Brasileira n. 27. [s. l.], Instituto Moreira Salles, out.2012. p. 184. 186 Id., ibid. 187 COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986. pp. 294-5.

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universalizando, a retórica do primeiro tempo modernista foi-se mostrando insuficiente,

e foi preciso redescobrir e revitalizar os instrumentos tradicionais da poesia de todos os

tempos”.188 Essa revitalização parece então se originar de dois fatores: o desgaste de

alguns procedimentos poéticos de 22 (as “inconveniências da aurora”), que perderam a

contundência e a eficácia depois de amainado o “espírito destruidor” do primeiro

momento; e, como salienta Mendonça Teles, a insuficiência do aparato formal diante da

ampliação do horizonte temático promovido pela poesia da década de 1930.

A abertura a novos temas e interesses deságua na tão propalada “maturidade” do

período, cujo ponto fulcral parece assentar no que Péricles Eugenio da Silva Ramos

aponta como aprofundamento da preocupação “com o homem, em si ou como ser

social, partilhada em várias diretrizes”, num processo de adensamento da expressão

poética que, natural e gradualmente, “vai excluindo o humorismo”. Contudo, além de

assinalar esse amadurecimento convém compreendê-lo; para tanto, é necessário atentar

nas condicionantes históricas e estéticas em ação na década de 1930. São de fato

perceptíveis nos poetas de 30 novas disposição e expressão poéticas, que, esteadas nas

conquistas de 22, ensejam uma produção exuberante. Analisando o percurso da poesia

brasileira a partir de 1922, o poeta João Cabral de Melo Neto examina a questão com

acurada lucidez. Segundo Cabral, após a implosão promovida pelo primeiro

Modernismo, caberia aos poetas de 30 a criação de uma “nova sensibilidade”, que

preencheria o vazio deixado pela ação essencialmente derruidora dos anos 20:

[Os poetas de 30] encontraram o terreno mais ou menos limpo, [...] as formas velhas já desmoralizadas e nenhuma forma nova que as substituísse, [...] o que haviam de fazer era cantar, simplesmente. Não havia uma sensibilidade criada [...]. A eles é que competia criar essa sensibilidade. Eles estavam colocados numa posição especial. Naquele momento coincidia a criação de sua poesia pessoal com a criação de uma nova poesia brasileira, com suas novas formas, sua mitologia, sua sensibilidade, isto é, seu público. O que esses poetas fizeram foi tirar o máximo de partido possível das conquistas do Modernismo. Aproveitando o terreno desentulhado, puderam iniciar logo seu trabalho de criação positiva. O fato de não terem participado na primeira fila do combate dava-lhes uma vantagem inicial: um recuo, um ponto de vista de meia-isenção, suficiente para que pudessem distinguir o que naquela luta era episódico, truque, deformação exigida pela própria luta.189

188 TELES, Gilberto Mendonça. Para o estudo da geração de 45. In:____. Contramargem. Op. cit., p. 84. 189 MELO NETO, João Cabral de. A Geração de 45 (I, II). In:____. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. pp. 742-5.

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Chama a atenção na análise de Cabral o caráter “inaugural” atribuído à poesia a

ser erigida sobre o “terreno mais ou menos limpo” que se descortinava na década de

1930. Observada em perspectiva histórica, tal poética de fato se fundou nos alicerces da

modernidade instaurada em 22 e, legatária “das conquistas do Modernismo”, alçou-se a

patamares não alcançados pelos precursores. Entretanto, nem toda a lírica do período

seria ventilada por esse sopro adâmico. O decênio de fato testemunhou a criação de uma

“nova sensibilidade” plasmada no “trabalho de criação positiva” dos novos, mas é

possível detectar, como reverso desse processo, o que João Luiz Lafetá chama diluição

da inovadora estética modernista:

Se os primeiros tempos do decênio [1930] assistem à alta produção da maturidade modernista, assistem também ao início da diluição de sua estética: à medida que as revolucionárias proposições da linguagem vão sendo aceitas e praticadas (“rotinizadas”, segundo Antonio Candido), vão sendo igualmente atenuadas e diluídas, vão perdendo a contundência. 190

O conceito de diluição foi proposto por Ezra Pound, que classifica os escritores

em seis categorias dispostas do maior ao menor grau de invenção que os caracterizaria:

Se nos dispusermos a ir em busca de “elementos puros” em literatura, acabaremos concluindo que ela tem sido criada pelas seguintes classes de pessoas: 1. Inventores – homens que descobriram um novo processo ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo. 2. Mestres – homens que combinaram um certo número de tais processos e que os usaram tão bem ou melhor que os inventores. 3. Diluidores – homens que vieram depois das duas primeiras espécies de escritor e não foram capazes de realizar tão bem o trabalho. 191

Pound distribui ainda os autores em três outras classes, à medida que sua

potência inventiva perde vigor (isto é, se dilui): os “bons escritores sem qualidades

salientes”; os “beletristas” e os “lançadores de modas” . Haroldo de Campos, ao analisar

o reprocessamento do legado poético de Oswald de Andrade levado a efeito por

“epígonos nem sempre bem inspirados”, aprofunda a ideia poundiana de diluição:

190 LAFETÁ, João Luiz. Os pressupostos básicos. In:____. 1930: a crítica e o Modernismo. Op. cit., p. 33. 191 POUND, Ezra. ABC da literatura. (trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes). São Paulo: Cultrix, 2006. pp. 42-3.

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Diluição, aliás, é sequela indefectível de toda poesia de invenção. Caracteriza-se o processo diluidor pela acomodação blandiciosa do novo ao velho, sob a forma do meio-termo. Adicionando-se doses maciças de redundância ao núcleo central da informação, esta, provida de recheio expletivo, de matéria excipiente, passa a tornar-se aceitável para sensibilidades menos radicais. 192

A “acomodação do novo ao velho” apontada como característica do “processo

diluidor” recoloca, em outros termos, a tensão entre modernidade e tradição. Essa

“acomodação” traz implícito o retrocesso do “novo” (do moderno) em direção ao

passado. Para ilustrar a diluição dos procedimentos modernistas, Lafetá alude aos

“poemas prolixos e retóricos” de Augusto Frederico Schmidt:

Esse poeta, tanto como seus seguidores de menos talento e menos técnica (e que proliferaram no decênio de 30), parece-nos bom exemplo de diluição: desejando combater as exterioridades do Modernismo, o que fez na realidade foi incorporar o que havia de mais propriamente exterior no movimento (verso livre, inspiração solta, neorromantismo), esquecendo-se do que este possuía de mais contundente (coloquialismo, condensação, surpresa verbal, humor). Se Schmidt foi capaz de rotinizar, isto é, de adotar e aplicar com relativa mestria alguns processos poéticos de compor preconizados pelos modernos, foi incapaz de manter a tensão de linguagem que caracterizou a vanguarda, dissolvendo-a no condoreirismo reacionário que Mário de Andrade soube ver e denunciar. 193

O “condoreirismo reacionário” a que se refere Lafetá é tratado por Mário de

Andrade em “A volta do condor”, artigo publicado originariamente no Diário de

Notícias do Rio de Janeiro, em 30.6.1940. Mário assinala que Schmidt, depois de ter

iniciado em boa hora a “reação contra o Modernismo”, incorreu na “sistematização de

assuntos enormes” por meio de uma “nova imagística que não era mais a metáfora

eloquente, mas a substituía, com igual pobreza e igual facilidade, por um pequeno

número de imagens-símbolos enormes, enormíssimos, eloquentes e grandiloquentes”. A

crítica de Mário evidencia a distância entre a altissonante retórica schmidtiana e “a

tensão de linguagem que caracterizou a vanguarda” – “coloquialismo, condensação,

surpresa verbal, humor”, segundo Lafetá. Também Sérgio Buarque de Holanda sublinha

a dissidência entre Schmidt e a poética modernista: “Renunciando, não sei se

deliberadamente, à temática nacional e regional de alguns modernistas, à geografia, ao

192 CAMPOS, Haroldo de. Uma poética da radicalidade. In: ANDRADE, Oswald. Poesias completas. São Paulo: Civilização Brasileira, 1971. p. 47. 193 LAFETÁ, João Luiz. Os pressupostos básicos. In:____. 1930: a crítica e o Modernismo. Op. cit., p. 34.

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pitoresco, ao episódico, à ‘piada’, este poeta [Schmidt] representava, na época, uma voz

diferente e com frequência dissonante”.194 Ademais, seu pendor místico-religioso evoca

repertório temático estranho à doutrina modernista, como se depreende da análise de

Alceu Amoroso Lima, crítico que também frisa no poeta a extração romântica:

Augusto Frederico Schmidt, grande lírico de inspiração abundante e variada, que reagiu em, 1928, com o Canto do brasileiro e o Canto do liberto, contra o convencionalismo modernista e introduziu na poesia moderna uma amplitude e um lirismo românticos, [...] restaurou entre os modernos os grandes temas eternos – Deus, o Destino, o Mar, a Solidão. 195

À margem a ideia de “diluição”, fato é que a poesia de Schmidt confirma a

existência, já na década de 1920, de uma vertente lírica não tributária da estética

modernista, àquela altura impregnada do nacionalismo vazado na distensa e sintética

“língua brasileira”. O divórcio entre o poeta e o ideário vigente é referido por diversos

outros críticos. Haroldo de Campos assinala que Schmidt foi, “desde a sua estreia, em

1928, recebido como um poeta avesso ao experimentalismo de 22. Era uma espécie de

anti Oswald. Seu prestígio cresceu na década de 30. Posteriormente, na década de 40, foi

acolhido como ‘grande poeta’ na revista Clima”.196

A dissonância que Schmidt inocula na estrepitosa harmonia modernista deve-se

em parte à nota tradicional de sua lira. O crítico Sérgio Milliet aponta com propriedade

os ecos da tradição na poesia de Schmidt, em sua tentativa de “uma forma que, embora

ampla, ventilada, livre, não se afastasse em excesso da tradição, não chegasse mesmo a

quebrar todas as leis da metrificação”.197 Segundo Milliet, o poeta “fala uma linguagem

de atualidade. É certo que o grande poeta será sempre de atualidade, porquanto haverá

sempre em sua poesia uma perspectiva aberta para o eterno”.198 Examinando-lhe o

apuro técnico, o crítico frisa que Schmidt, “se não desdenha o metro, [...] não se prende

inteiramente a suas exigências”.199 A peculiar “solução rítmica” dos decassílabos e

alexandrinos indicia, no plano formal, o diálogo com a tradição já sinalizado pela

194 HOLANDA, Sérgio Buarque de. O abismo e a ponte. In:____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 256. 195 LIMA, Alceu Amoroso. Modernismo. In:____. Quadro sintético da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1969. p. 82. 196 CAMPOS, Haroldo de. A evolução da crítica oswaldiana. In: Literatura e sociedade n. 7. São Paulo, USP, 2003-2004. pp. 51-2. 197 MILLIET, Sérgio. Panorama da moderna poesia brasileira. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1952. p. 60. 198 Id., ibid., p. 61. 199 Id., ibid.

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adesão aos “grandes temas eternos” referidos por Amoroso Lima. Se os aspectos

temáticos e formais aproximam o poeta da estética romântica, “importa, sobretudo,

notar que seu descobrimento e a consequente revalorização dos nossos românticos se

terá feito através do Modernismo, e dentro dele”200, conforme salienta Sérgio Buarque

de Holanda.

Se para Lafetá a poesia de Augusto Frederico Schmidt parece “bom exemplo de

diluição”, a nossos olhos ela opera sobre a dialética entre tradição e modernidade. E

Schmidt não é o único a discrepar no processo de hegemonização modernista da década

de 1920. Em agosto de 1927 surge o número de estreia da revista carioca Festa, em

torno da qual se reúnem poetas e escritores infensos ao estatuto de 22. Capitaneada por

Tasso da Silveira e Andrade Murici e contando em seu quadro de colaboradores, entre

outros, com Adelino Magalhães, Cecília Meireles, Gilka Machado e Murilo Araújo, a

revista se firmaria como reduto da chamada “corrente espiritualista”, que, segundo

Alceu Amoroso Lima, “iria marcar profundamente a renovação das nossas letras”.201

Analisando a relação de Cecília Meireles (“cuja formação simbolista opera como

anteparo ao influxo modernista de linha oswaldiana”202) com o grupo de Festa, Valéria

Lamego define o que foi a revista:

Festa foi a revista mais importante do grupo de poetas e intelectuais católicos e “espiritualistas” no final dos anos 20 e em meados dos anos 30. [...] O projeto intelectual de Festa tinha como objetivo a divulgação de um novo conceito sobre arte moderna, que se sustentava na renovação e valorização do espírito e não na ruptura intransigente com os modelos estéticos anteriores, como previam os adeptos da Antropofagia. [...] Festa sobressaiu dentre as tantas revistas modernistas por dois motivos especiais: pela bandeira política e “renovação estética” proposta pelo grupo, mais tarde acusado de conservador, e pelo fôlego da publicação.203

O “novo conceito sobre arte moderna” oposto à “ruptura intransigente com os

modelos estéticos anteriores” coloca o grupo de Festa em divergência com duas

importantes vertentes do movimento de 22, a dos “primitivistas paulistas”, com Mário e

200 HOLANDA, Sérgio Buarque de. O abismo e a ponte. In:____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 258. 201 LIMA, Alceu Amoroso. Modernismo. In:____. Quadro sintético da literatura brasileira. Op. cit., p. 75. 202 JUNQUEIRA, Ivan. Modernismo: tradição e ruptura. In:____. Ensaios escolhidos (v.2). Op. cit., p. 199. 203 LAMEGO, Valéria. A farpa na lira: Cecilia Meireles na Revolução de 30. Rio de Janeiro: Record, 1996. pp. 46-7.

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Oswald de Andrade à frente, e a do “dinamismo objetivista” de Graça Aranha e Ronald

de Carvalho. Em artigo de janeiro de 1928, Tristão de Athayde comenta a diferença

entre as três correntes, assinalando que o grupo de Festa

foi o último que apareceu na arena, até agora, como grupo, como revista, como tendência coesa e afirmadora, combatendo de certo modo as duas outras tendências divergentes. E, entretanto, é de todos os três [...] aquele que mais conscientemente se enraíza na tradição de nossas letras e que mais coerência demonstra em seus laços com movimentos anteriores já superados.204

A análise de Athayde evidencia a proximidade do grupo de Festa com a

“tradição de nossas letras” e com “movimentos anteriores”, destacadamente o

Simbolismo. O editorial do primeiro número da revista, surgida em hora “de tumulto e

de incerteza e de confusão de valores”205, sinaliza a disposição de restabelecer “os

compassos harmoniosos [...] para a criação de um equilíbrio novo e de outra mais alta

serenidade”.206 O intuito de Tasso da Silveira e seus confrades, segundo Valéria

Lamego, era fazer de Festa “um canal de divulgação de um grupo unido em torno de

uma corrente estético-literária”207 que, dialogando com a tradição, cantasse “a realidade

total: a do corpo e a do espírito, a da natureza e a do sonho, a do homem e a de

Deus”.208 Crítico influente, Alceu Amoroso Lima (o Tristão de Athayde) era simpático a

essa diretriz, como salienta Véra Lucia dos Reis:

O que Alceu vai valorizar no grupo espiritualista é exatamente a tradição e a continuidade, [...] o que não significa, obrigatoriamente, a negação do moderno ou do novo. [...] O grupo de Festa revela não uma atitude convencional, mas, “pelo contrário, um sentimento profundo de preocupação pela vida de hoje, pela sorte do homem, pela busca de realidades novas e não do novo pelo novo”.209

A “tradição e a continuidade”, visíveis na tendência estética que a revista

propunha, levam Alceu Amoroso Lima a identificar em Festa um “Modernismo

continuador”, como registra Valéria Lamego:

204 ATHAYDE, Tristão de. Gente de amanhã. In:____. Estudos (3.ª série, v.1). Rio de Janeiro: A Ordem, 1930. p. 257. 205 Editorial de Festa n.1, publicado em 1.º de agosto de 1927. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro. Op. cit., p. 286. 206 Ibid., pp. 286-7. 207 LAMEGO, Valéria. A farpa na lira. Op. cit., p. 47. 208 Editorial de Festa n.1. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro. Op. cit., p. 288. 209 REIS, Véra Lucia dos. O perfeito escriba: política e letras em Alceu Amoroso Lima. São Paulo: Annablume, 1998. p. 188. Entre aspas, trecho de Alceu Amoroso Lima citado pela autora.

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A tradição desejada por Tristão de Athayde, e, sem dúvida, por todos os componentes da revista, previa um terceiro tipo de renovação estética, batizada pelo crítico de “Modernismo continuador”. O “Modernismo continuador” de Festa não pretendia ser uma volta ao passado, mas uma “releitura” desse passado literário. Admirador do Romantismo e dos poetas simbolistas, principalmente de Cruz e Sousa, o grupo de Festa desejava a renovação das letras a partir do estudo das correntes literárias brasileiras fundadoras de uma tradição nacional. O Simbolismo, na poesia, foi altamente valorizado pelos integrantes da revista, e sob este aspecto, o grupo parecia, realmente, coeso.210

Característica do grupo de Festa e da poesia de Augusto Frederico Schmidt, a

modernidade permeável à tradição marca outro poeta destacado, surgido no começo da

década de 1930. A poesia de Vinicius de Moraes (especialmente a produção inicial,

editada a partir de 1933) também revela liames com a tradição lírica, conquanto não

deixe de valer-se das conquistas modernistas. Veja-se, a propósito, a análise de Gilberto

Mendonça Teles:

Outro poeta de grande nome no Brasil e no estrangeiro é Vinicius de Moraes [...]. A sua obra trouxe ao Modernismo o sentido de equilíbrio entre o velho e o novo, restaurando formas como o soneto e a balada e, principalmente, dando ao verso tradicional uma nova linguagem e um ritmo novo aos versos livres.211

O “equilíbrio entre o velho e o novo” é também percebido por Sérgio Milliet,

que identifica em Vinicius o condão de “homem-ponte” a ligar passado e presente:

Vinicius de Moraes ocupa um lugar de relevo. É ele, na poesia, um homem-ponte, pois sem abandonar as inovações de 22 volta-se resolutamente para uma forma mais refletida. [...] Tem como seus predecessores e mestres o conhecimento da métrica e o virtuosismo retórico, o que lhe permite jogar com todas as soluções do passado e do presente; tem a invenção fecunda, o amor ao paradoxo, o humor e até uma dose suficiente de romantismo para que suas sínteses e suas metáforas permaneçam líricas, musicais.212

Com efeito, a noção de “homem-ponte” pode legitimamente se estender, como

vimos salientando, a Schmidt e aos articuladores de Festa, em cujas obras subjaz a

fecunda interpenetração entre tradição e modernidade. Beneficiário das “inovações de

22”, nem por isso Vinicius abdica “o conhecimento da métrica e o virtuosismo retórico”

210 LAMEGO, Valéria. A farpa na lira. Op. cit., p. 48. 211 TELES, Gilberto Mendonça. Para o estudo de Lorca no Brasil. In:____. Contramargem. Op. cit., p. 268. 212 MILLIET, Sérgio. Panorama da moderna poesia brasileira. Op. cit., p. 84.

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colhidos de “seus predecessores e mestres”. Conforme assinala Ivan Junqueira, esse

legado se manifesta claramente no primeiro Vinicius (de O caminho para a distância,

1933; Forma e exegese, 1935; Ariana, a mulher, 1936), em que sobressaem “as

preocupações transcendentais, amiúde místicas, [...] e o rigor formal que o acompanhará

vida afora”.213 Adiante, ainda tratando da fase inicial do jovem poeta, Junqueira anota:

“O que se lê então em quase todos os poemas do autor é o mesmo tom austero, quase

solene, os mesmos ritmos largos, dir-se-iam bíblicos, que encontramos na poesia de

Augusto Frederico Schmidt”.214 Na mesma raia, José Aderaldo Castello, além de

assinalar que Vinicius “coloca-se próximo de Augusto Frederico Schmidt com o uso

frequente do verso longo, discursivo”215, acrescenta que ambos também partilham o

“sentimento religioso, reflexo da tradição católica da família brasileira”.216

Os traços que aproximam Vinicius e Schmidt – e a lírica de ambos da proposta

de Festa – revelam a existência, dentro do Modernismo, de uma linha de força avessa às

palavras de ordem de 22. Relacionando-se desenvoltamente com a tradição, tal corrente

atuou de forma efetiva no complexo poético da década de 1930, sem, contudo,

reverberar as notas mais profundas do Modernismo ortodoxo e sua “clamorosa falta do

sentimento do passado”.217 Atento a essa dualidade, Antonio Carlos Secchin lança luzes

sobre a questão. Examinando o percurso de Vinicius e Schmidt, afirma que este se

destacou

como grande mentor de nova (ou nem tanto...) direção poética [...]. Os manuais literários falam de 1930 como o início do período modernista “maduro”, e para tanto citam os primeiros livros de Murilo Mendes e de Carlos Drummond de Andrade, além de Libertinagem, de Manuel Bandeira, mas tendem a omitir a figura exponencial de Schmidt, claramente em conflito com as ideias de 22. O poeta propunha uma poesia de cunho universalista, de teor filosófico, ritmos largos, longa extensão, dicção grave e visada transcendental, enquanto os modernistas lutavam por uma arte que revelasse raízes brasileiras e se expressasse no ritmo vertiginoso das elipses sintáticas, com maior coloquialidade e humor. À sombra frondosa da poética de Augusto Frederico Schmidt floresceu o jovem Vinicius de Moraes (O caminho

213 JUNQUEIRA, Ivan. Vinicius de Moraes: língua e linguagem poética. In:____. Ensaios escolhidos (v.1). Op. cit., p. 254. 214 Ibid. 215 CASTELLO, José Aderaldo. A literatura brasileira: origens e unidade (1500-1960). Op. cit., p. 264. 216 Ibid., p. 262. 217 IVO, Lêdo. Epitáfio do Modernismo. In:____. Poesia observada. Op. cit., p. 146.

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para a distância, 1933), e, de certo modo, desenhou-se o roteiro que iria desembocar na Geração de 45. 218

Secchin tornaria ao tema, problematizando-o em maior profundidade, no

posfácio elaborado para a reedição de O caminho para a distância, livro de estreia de

Vinicius de Moraes relançado em 2008. O crítico delineia o “painel mais amplo do

conceito de Modernismo em nossa poesia” e põe em xeque a continuidade unívoca e

harmônica entre a poesia de 22 e a de 30:

Afirmar que a geração de 1922 foi iconoclasta e a de 1930 representou a maturidade e a reconstrução poética significa traçar uma empobrecedora linha reta (quando a literatura é plena de sinuosidades) que parte de Mário e Oswald de Andrade e desemboca em Carlos Drummond de Andrade e no Manuel Bandeira de Libertinagem. Para além dessa versão, houve outras, dentre as quais uma que dialogou com a linhagem simbolista da modernidade (ignorada pelos modernistas de 22), e de que são exemplos as obras de Cecília Meireles e Augusto Frederico Schmidt. Cecília, a bem dizer, só passou a ser reconhecida no Brasil a partir de Viagem (1939), mas a ressonância da poesia de Schmidt foi imediata, desde seu primeiro livro, Canto do brasileiro, de 1928. Seria absurdo classificar a obra desses poetas como “amadurecimento” das propostas dos protagonistas da Semana de Arte de 22, pois, a rigor, nada devem a ela [...]. Cecília e Augusto Frederico tampouco são “antimodernistas”, a menos que “Modernismo” seja termo de uso privativo do grupo de 22; são, antes, outros modernistas. É a essa tendência que se filia o primeiro Vinicius, em 1933, com O caminho para a distância.219

Com efeito, a “linhagem simbolista da modernidade” se manifesta no grupo

“que mais conscientemente se enraíza na tradição de nossas letras”220, entre os quais

Schmidt, Cecília Meireles (e os demais partícipes de Festa), o primeiro Vinicius. O

pertencimento a esta linhagem “não significa, obrigatoriamente, a negação do

moderno”221, conforme salienta Véra Lucia dos Reis, com o endosso de Secchin, que,

afastando a pecha de “antimodernistas”, pondera com justeza que esses poetas “são,

antes, outros modernistas”, diferentes porque neles prevalece “o sentido de equilíbrio

entre o velho e o novo”222 bem assinalado por Gilberto Mendonça Teles. A detecção

dessa vertente que “não se [afasta] em excesso da tradição”, conforme anota Sérgio

Milliet, revela, na década de 1930, a atuação de correntes estéticas diversas, de que se

218 SECCHIN, Antonio Carlos. Jorge de Lima: a clausura do divino. In:____. Memórias de um leitor de poesia. Rio de Janeiro: ABL; Topbooks, 2010. pp. 142-3. 219 ____. Vinicius: os caminhos de uma estreia. Ibid., pp. 172-3. 220 Cf. nota 204. 221 Cf. nota 209. 222 Cf. nota 211.

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originam desdobramentos capitais para a poesia brasileira do século XX. Paralelamente

ao decantado “amadurecimento” da poesia “oficial” do Modernismo, deslinda-se outro

percurso, a partir do qual, consoante a aguda avaliação de Secchin, “de certo modo,

desenhou-se o roteiro que iria desembocar na Geração de 45”. Esse itinerário será

analisado mais à frente com o devido reparo.

Registremos por ora a coexistência das duas principais linhas de força que se

tensionam no complexo poético da década de 1930. Uma, em descendência direta do

movimento de 22 – a poesia “que parte de Mário e Oswald de Andrade e desemboca em

Carlos Drummond de Andrade e no Manuel Bandeira de Libertinagem” –, se tornaria

hegemônica. Trata-se da poesia fundada no “verso em plena liberdade”, surgida num

momento em que “não havia uma sensibilidade criada”, a que João Cabral de Melo

Neto atribui, como vimos, o condão de “criar essa sensibilidade” essencialmente

moderna.223 Paralela a essa poesia “inaugural”, outra, firmada ao largo da doutrina de

22, buscava na tradição elementos de sua estética, mostrando-se, contudo, permeável ao

que lhe conviesse na nova expressão.

Para além do caráter bifronte que vimos sinalizando, Lêdo Ivo aponta outras

nuanças que matizam o Modernismo sob sua aparente ortodoxia:

De 1922, ano da explosão programática e aliciatória do Modernismo e da publicação da Pauliceia desvairada, até 1945, quando se extinguem a voz e o canto de Mário de Andrade [...], o Modernismo, em sua dialética de obra e movimento, texto e direção, oferece as mais diversas estampas. Apesar da clareza ou evidência de tantos preceitos estético-literários de seus praticantes, mormente os que compeliam ao culto do verso livre ou fortuitamente desembestado ou aludiam à urgência da informação artística ou cultural e à importância da renovação da linguagem através da caça aos falares e dizeres nativos, o movimento não se esgotara nessas regras rígidas.224

Em que pese o aspecto multifário do Modernismo “em sua dialética de obra e

movimento”, interessam-nos, entre “as mais diversas estampas”, as que revelam o

diálogo que a poesia moderna estabelece com a tradição. Ao longo deste trabalho,

procuramos assinalar, na práxis dos poetas, as convergências entre o “novo” e o

“antigo”. É de se observar que essas vertentes se espraiam para além da produção

poética e chegam ao universo de leitores. Analisando um artigo de Fausto Cunha, de

223 Cf. nota 189. 224 IVO, Lêdo. Epitáfio do Modernismo. In:____. Poesia observada. Op. cit., p. 141.

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1963, é possível percebê-las em “dois públicos de poesia perfeitamente distintos”, nos

quais, ao cabo, se projetam as duas linhas de força que vimos rastreando:

No Brasil há dois públicos de poesia perfeitamente distintos: o que aderiu à poesia moderna e o que permanece fiel à poesia antiga. Então, o que acontece? A margem de cá ignora inteiramente o que se passa na margem de lá e vice-versa. Alguns poetas são suficientemente grandes para serem vistos de ambos os lados, ou pelo menos têm aspectos formais que permitem o livre trânsito [...]. Drummond, com toda a sua envergadura universal, ainda é recusado pelos que exigem rima a pau e corda.225

Esses dois polos – “o que aderiu à poesia moderna e o que permanece fiel à

poesia antiga” – sinalizam de través as correntes poéticas que, atuantes nos anos 1930

(ou desde fins dos anos 1920), se estenderão pelas décadas seguintes. É significativo

que Fausto Cunha aluda à coexistência dessas vertentes em pleno 1963; vejamos, antes,

os caminhos que ambas percorreram nos decênios de 1940 e 1950.

225 CUNHA, Fausto. O poeta se salva. In:____. A leitura aberta. Op. cit., p. 159.

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5. A década de 1940

“Aurora,

entretanto eu te diviso, ainda tímida” 226

Carlos Drummond de Andrade

“A década de 30, chegando a seu término, assiste a um quase esquecimento da

lição estética essencial do Modernismo: a ruptura da linguagem”.227 Eis o balanço de

João Luiz Lafetá. Esse “quase esquecimento” é visível na poesia “inaugural” de que fala

João Cabral de Melo Neto, produzida pelos afiliados oficiais da segunda geração

modernista – Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes, por exemplo. De início

partidários da cartilha de 22, esses poetas passam, na década de 1930, à expressão

“madura”, na qual a “ruptura da linguagem”, já legitimada e absorvida nos processos

compositivos, não mais figura, como reivindicação, na ordem do dia. No que tange à

poesia “que dialogou com a linhagem simbolista da modernidade”, em vez de “quase

esquecimento” talvez seja mais ajustado falar em quase recusa “da lição estética

essencial do Modernismo”. Conforme salientamos, houve nos anos 30 considerável

produção poética notadamente refratária ao estatuto modernista, da qual são exemplos

as obras de Augusto Frederico Schmidt e a do primeiro Vinicius de Moraes. Nas

décadas de 1940 e 1950 ocorrerá a aproximação (ou mesmo a sobreposição) dessas duas

correntes, que até então seguiam paralelas. Tornaremos a esse ponto em momento

oportuno, com o necessário vagar.

226 ANDRADE, Carlos Drummond de. A noite dissolve os homens. In: Sentimento do mundo. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 167. 227 LAFETÁ, João Luiz. Estética e ideologia: o Modernismo em 30. In:____. A dimensão da noite e outros ensaios. Op. cit., p. 66.

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O decênio de 1940 representa fase conturbada na lírica brasileira, e seu papel

nos desdobres na poesia pós-22 é controverso. O crítico Wilson Martins refere-se ao

início da década como “momento apropriadamente de crise”, “um período de balanços e

reavaliações, claro fim de uma época e território de passagem”.228 Em Fausto Cunha

encontram-se excertos que antes de se antagonizarem em discursos conflitantes dão boa

medida do complexo estado poético que, desenhando-se desde fins do decênio de 1920,

se agudizou nos anos 1940. Referindo-se à Semana de 22 como marco do primeiro

Modernismo, Cunha afirma que seu

domínio literário só se firmaria a partir da década de 40. Vinte anos depois da Semana, ainda se falava em futurismo para designar o movimento proteiforme de 22. Nos livros escolares de que dispúnhamos, os mestres ainda eram Bilac, Machado, Coelho Neto, Castro Alves, Raimundo, Alberto, alguns já incluíam Cruz e Sousa – românticos, parnasianos, simbolistas, realistas e, é claro, os clássicos. 229

Em ensaio sobre Mario Quintana, comentando a estreia do poeta com A rua dos

cataventos (1940), o crítico analisa aquele princípio de década sob a perspectiva do

movimento modernista e esboça um breve panorama do período:

O Modernismo – aquilo que não muito distintamente se chamava então de Modernismo – ganhava foros de escola oficial junto à crítica dominante. Mário de Andrade, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade sobressaíam ao lado de Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo, Guilherme de Almeida, A. F. Schmidt (Cecília Meireles ainda era um nome tímido na poesia, apesar do alto nível de Viagem, 1939, premiado pela Academia numa escolha dignificante). Desses, apenas Drummond e Schmidt publicaram obra em 1940: Drummond o Sentimento do mundo, um dos maiores livros da literatura brasileira, e Schmidt, o desigual Estrela solitária.230

Nestas páginas a década de 1940 aparece como período de afirmação do

“domínio literário” do Modernismo, mas Fausto Cunha registra importante observação:

àquela altura, o movimento “ganhava foros de escola oficial junto à crítica dominante”.

228 MARTINS, Wilson. Crítica dialética. In: “Prosa & Verso”, suplemento de O Globo, edição de 25.9.1999. A referência é em torno da publicação de A cinza do purgatório (1942) e Origens e fins (1943), volumes de ensaios de Otto Maria Carpeaux. 229 CUNHA, Fausto. Itinerário de Mauro Mota. In:____. A leitura aberta. Op. cit., p. 201. Ao aludir a “livros escolares de que dispúnhamos”, Fausto Cunha, nascido em 1928, reforça a referência ao início da década de 1940. 230 _____. Estudo crítico. Ibid., p. 218.

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De fato, a compreensão e a aceitação da nova estética se estabeleceram com maior

facilidade e rapidez no “círculo literário” (isto é, entre autores e críticos de literatura,

sobretudo nas capitais); todavia, no espectro mais amplo dos receptores (público leitor e

mesmo professores que ensinavam e difundiam literatura nas salas de aula), o primado

modernista levaria mais tempo para se firmar. Discorrendo sobre a efetiva

implementação da plataforma lançada em 22, Ivan Junqueira faz justa ressalva:

Penetrara-se a medula da criação, mas não se atingira ainda o público ao qual toda essa revolução se destinava. O leitor permanecia distante, e distante permaneceria ainda por algumas décadas. A literatura modernista não vendia livros, não conquistara o público, que continuara aferrado aos padrões vigentes antes de 1922.231

O crítico Silviano Santigo, por seu turno, aponta razões da pouca penetração do

Modernismo junto ao público leitor:

[...] pela alta taxa de analfabetismo no país e o restrito percurso escolar da minoria alfabetizada, pelo levantamento do salário médio da população e pelo rastreamento do preço proporcional do livro, pela pouca eficiência de um sistema de bibliotecas públicas e pela tropical falta de hábito de leitura – pode-se adivinhar facilmente que a circulação da obra modernista foi claudicante, não chegando a constituir o que, em termos de indústria cultural, se chamaria de um público.232

É relevante a percepção de que o Modernismo estabeleceu-se com diferentes

níveis de receptividade (e em momentos distintos), embora boa parte da crítica e da

historiografia considere o alastramento indiscriminado da influência e do prestígio do

movimento de 22, num processo coroado pela total hegemonização da escola nos anos

1940. Gilberto Mendonça Teles, por exemplo, afirma que na década de 40 o “espírito

moderno” estava firmado na “mentalidade dos leitores, dos professores e estudiosos de

poesia”:

Vinte anos depois da Semana de Arte Moderna, a poesia brasileira já havia conquistado o seu estatuto de modernidade. Foi o tempo necessário para que o “espírito moderno” deixasse o litoral (Rio e São Paulo) e se expandisse pelo interior, ganhando as capitais dos estados

231 JUNQUEIRA, Ivan. Modernismo: tradição e ruptura. In:____. Ensaios escolhidos (v.2). Op. cit., p. 216-7. 232 SANTIAGO, Silviano. História de um livro. In:____. Nas malhas da letra: ensaios. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. p. 146.

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e indo aos poucos penetrando na mentalidade dos leitores, dos professores e estudiosos de poesia.233

Parece natural que, subsequente à maturidade e à consolidação atribuídas ao

decênio anterior, a legitimação consagradora do projeto modernista, inclusive junto aos

leitores, coubesse aos anos 1940. No entanto, ainda no ensaio sobre Quintana, Fausto

Cunha assinala que a recepção à “novidade” não era total, e a presumível hegemonia da

expressão moderna não significava, na prática, influência incontornável:

No Brasil de 1940, ainda eram numerosos os poetas provincianos que faziam sonetos à moda de Bilac, de Nobre, Cruz e Sousa ou de Augusto dos Anjos, para não falar nos que ainda viviam em pleno romantismo castroalvino. É bom lembrar que, vinte anos depois da Semana de Arte Moderna, a receptividade da província aos sonetos à antiga era ainda muito maior do que a dispensada ao Modernismo, que permanecia de fora dos livros escolares e só era ensinado por professores mais avançados. Toda a reação literária a 22 estava ainda viva e atuante, confundia-se (de boa e má-fé) Modernismo com Futurismo, o poema-piada era apresentado como o protótipo da nova estética literária.234

A “reação literária” dos anos 1940 – a “receptividade da província aos sonetos à

antiga [...], muito maior do que a dispensada ao Modernismo”; a exclusão da nova

poética dos livros didáticos e das salas de aula – revela que a expansão do “espírito

moderno” pelo interior (a “província”, segundo Fausto Cunha) não foi tão abrangente e

definitiva como faz crer Mendonça Teles. Ao que parece, a penetração do Modernismo

“na mentalidade dos leitores, dos professores e estudiosos de poesia” consistiu em

processo complexo e custoso. É o que se percebe num episódio ocorrido no Rio de

Janeiro da década de 1960, narrado por Antonio Carlos Secchin em suas “Memórias de

um leitor de poesia”:

Quando cursava o antigo ginásio, uma professora de português anunciou que iria apresentar a poesia moderna, e, sem nenhuma preparação, atirou sobre a turma “No meio do caminho”, de Drummond, evidentemente para obter a gargalhada coletiva. Mas ali, em meio à quase unanimidade do escárnio, percebi um novo ritmo, uma nova tonalidade, bem diferente da velha melodia que predominava nas antologias ginasianas.235

233 TELES, Gilberto Mendonça. Para o estudo da Geração de 45. In:____. Contramargem. Op. cit., p. 85. 234 CUNHA, Fausto. Itinerário de Mauro Mota. In:____. A leitura aberta. Op. cit., p. 216. 235 SECCHIN, Antonio Carlos. Memórias de um leitor de poesia. In:____. Memórias de um leitor de poesia. Op. cit., p. 14.

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Chama a atenção a curiosa consonância entre esta passagem e a anterior (cf. nota

234), ressalvado que Fausto Cunha alude aos anos 1940. O relato autobiográfico de

Secchin denota que, fora do círculo de autores e da crítica especializada, a resistência ao

Modernismo manteve-se “viva e atuante” por mais tempo do que se supõe: quarenta

anos depois da Semana, a “cena montada para ridicularizar a poesia moderna frente aos

jovens e parnasianos ouvidos da turma”236 de ginásio corrobora o fato de que o

“domínio literário” do Modernismo não foi absoluto nem se afirmou de maneira

inequívoca na década de 1940, como registram, de forma simplificada e simplificadora,

os manuais de literatura.

A antinomia entre a afirmação do Modernismo e a resistência à nova poética põe

novamente em evidência, agora já nos anos 40, as duas linhas de força que vimos

seguindo. Em meio a essa dualidade, perceptível não apenas entre os que produziam

poesia mas também entre seus destinatários – os que militavam profissionalmente no

exame e na disseminação da literatura (críticos e historiadores literários, professores) e

o próprio público leitor –, emerge nos 40 um outro estado poético. O novo impulso

surge num período de esgotamento da estética modernista, registrado até mesmo por

figuras destacadas do movimento. Em maio de 41, Mário de Andrade publicou no

número de estreia da revista Clima237, de São Paulo, “A elegia de abril”, espécie de

balanço do Modernismo com algum laivo de mea culpa. Nesse texto, cujo caráter

lamentoso antecipa-se já no título, Mário se refere à geração de 22 como “pífia”, “de

degeneração aristocrática, amoral, gozada e, apesar da revolução modernista, não muito

distante das gerações de que ela era o ‘sorriso’ final”. A (auto)análise pouco

condescendente, perceptível ainda na célebre conferência “O movimento modernista”

proferida por Mário no Itamaraty em abril de 1942, é boa amostra do tom crepuscular

que tingia o Modernismo na década de 1940. Durante o I Congresso Paulista de Poesia

(abril/maio de 1948), Patrícia Galvão e Geraldo Ferraz, também adeptos do movimento

modernista, criticaram o “balanço precariamente feito” por Mário de Andrade. O artigo

assinado por ambos, muito embora contraposto às colocações do autor de Macunaíma,

236 Ibid. 237 Fundada por jovens intelectuais egressos das primeiras turmas da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, entre os quais Alfredo Mesquita, Antonio Candido, Décio de Almeida Prado, Gilda de Mello e Souza e Lourival Gomes Machado, a revista Clima circulou de maio de 1941 a novembro de 1944. Heloisa Pontes salienta que os colaboradores de Clima dedicavam-se à “crítica aplicada ao teatro, cinema, literatura e artes plásticas” centrada “principalmente na análise interna dos produtos culturais”. In: PONTES, Heloisa. Destinos mistos: os críticos do Grupo Clima em São Paulo. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. p.13; p.98.

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traz passagens que confirmavam a impressão de fim de ciclo: “A revolução de 22

acabou, embora até hoje o sr. Oswald de Andrade permaneça de facho em riste,

bancando o Trotski, em solilóquio com a revolução permanente”.238

5.1. A Geração de 45

A primeira metade da década de 1940 encerra significativa carga histórica. No

plano internacional, a Segunda Grande Guerra; na política intestina, o Estado Novo. O

ano central do decênio, além de marcar o fim do conflito internacional e a queda de

Vargas, sinaliza encerramento de ciclos e aprofundamento de impasses também no meio

literário. Em 1945 morre Mário de Andrade, figura central do pensamento brasileiro na

primeira metade do século XX, cuja influência se espraia para além do movimento de

22.

Críticos e historiadores literários reconhecem em meados dos anos 1940 o ocaso

da etapa modernista, ou ao menos, segundo alguns, o momento de reavaliações

profundas de sua atuação e de seu legado. Na abertura do ensaio emblematicamente

intitulado “Epitáfio do Modernismo”, Lêdo Ivo estende um arco “de 1922, ano da

explosão programática e aliciatória do Modernismo e da publicação da Pauliceia

desvairada, até 1945, quando se extinguem a voz e o canto de Mário de Andrade”239;

esses limites cronológicos são comumente adotados pela historiografia literária no que

tange à efetiva vigência da “era modernista”.

Na atmosfera difusa desse “período de balanços e reavaliações, claro fim de uma

época e território de passagem”240, começa a se desenhar uma nova disposição lírica,

238 FERRAZ, Geraldo; GALVÃO, Patricia apud CAMPOS, Haroldo de. A evolução da crítica oswaldiana. In: Literatura e sociedade n. 7. Op. cit., p. 55. 239 Cf. nota 224. 240 Cf. nota 228.

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vivificada na produção de jovens que, insatisfeitos com os desdobramentos do ideário

inaugurado em 22, propõem uma revisão da poética em voga. Quanto aos aspectos

formais, reabilitam todo um aparato técnico preterido pelo Modernismo ortodoxo:

formas fixas, isometria, esquemas rímicos, estrofações regulares retornam à lírica

brasileira como procedimentos possíveis, às vezes mesmo preferenciais, de composição.

No plano do conteúdo, a temática já não é a mesma: em vez do nacionalismo

programático dos articuladores de 22, outro repertório, mais amplo, passa a ser

explorado. A convergência estético-temática e o liame cronológico entre as obras que

materializam esse estado lírico – livros e autores surgidos nos anos 1940-50 – são os

característicos considerados para a reunião de tais escritores sob o rótulo unificante (e às

vezes um tanto simplista e superficial) que os tem designado como grupo literariamente

atuante: a Geração de 45 desempenha, nas décadas de 1940 e 50, importante papel na

poesia em curso desde 1922.

As análises sobre a Geração de 45 têm florescido em terreno movediço e

infecundo a afirmações categóricas; para que se compreenda com a devida clareza a

complexa marcha da poesia brasileira nas décadas de 1940-50, é preciso conhecê-lo e

atravessá-lo. Nesse percurso, convém desde logo sinalizar que a expressão “Geração de

45” é costumeiramente envolvida por certa imprecisão que traz a reboque implicações

importantes. Cunhada pelo poeta Domingo Carvalho da Silva241, um dos principais

articuladores deste movimento, a designação genérica “Geração de 45” tem ajuntado de

forma indistinta poetas variados, com dicções peculiares, cujos livros de estreia

surgiram nas décadas de 1940-50. Alguns desses autores partilham certos traços

estético-ideológicos que lhes conferem um caráter mais ou menos uno de geração

literária, tão caro à crítica apegada a superficialidades classificatórias. Não obstante,

sob o designativo “Geração de 45” opera-se sistematicamente um processo de

apagamento, que esmaece ou neutraliza singularidades à sombra anulatória do rótulo

simplificador. Reduzidos a “poetas de 45”, autores diversos passam a compor um

mosaico difuso, confinados numa espécie de “paisagem comunitária, universo compacto

onde as aglomerações diluem o indivíduo, omitindo os mistérios particulares”242, para

241 O poeta e crítico Péricles Eugênio da Silva Ramos, outro expoente da Geração de 45, credita aos artigos de Carvalho da Silva publicados no Correio Paulistano em 8.5 e 13.6.1948 o surgimento da expressão que nomearia o grupo, com “os poetas novos [...] passando a designar-se como ‘Geração de 45’, segundo o rótulo imaginado por Domingos Carvalho da Silva”. In: RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. Do Barroco ao Modernismo. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1979. p. 270. 242 IVO, Lêdo. A propósito de Laura Moura. In:____. Poesia observada. Op. cit., p. 54.

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nos valermos de um apontamento de Lêdo Ivo. A vinculação automática e acrítica

desses autores ao epíteto geracional está na base de um conjunto considerável de

estudos que, a nosso ver, não têm dado conta do sistema de forças em ação na poesia do

período. No âmbito de nossa investigação este é um ponto fulcral a que retornaremos de

forma detida um pouco mais à frente.

A primeira questão que se impõe na avaliação da poesia surgida nos anos 1940

diz respeito ao posicionamento estético-ideológico da Geração de 45 frente ao

Modernismo. Essa preocupação da primeira crítica se prolongou por décadas, mantendo

desviado o foco da análise para uma espécie de “investigação de paternidade” tendente

a atestar a pura linhagem ou a degenerescência desse novo estado lírico em relação ao

movimento de 22. Apesar de embotar a avaliação isenta e aprofundada das vertentes

estético-literárias surgidas no meado dos 40, o confronto entre 22 e 45 sustenta boa

parte dos estudos dedicados à poesia do período.

O texto fundador – se não o primeiro, o de maior repercussão na época – da

crítica sobre o movimento que viria a se designar “Geração de 45” é assinado por

Tristão de Athayde (pseudônimo do crítico carioca Alceu Amoroso Lima). Publicado

em julho de 1947 na revista A época e transcrito em 24 de agosto do mesmo ano no

suplemento literário do jornal A manhã (ambas publicações do Rio de Janeiro), o artigo

“O neomodernismo” noticia o surgimento de uma nova geração nas letras nacionais,

identificada como um “movimento que não vem de improviso nem se manifesta como

uma ruptura e sim como um prolongamento” das experiências modernistas. “Por isso

mesmo é que chamo ao movimento que se anuncia [...] de neomodernismo. Nele vejo

um desdobramento do próprio Modernismo”, afirma Athayde, que, entretanto, aponta

diferenças:

O Modernismo foi conformista em política e revolucionário em estética; o neomodernismo se apresenta como revolucionário em política, mas reacionário em estilo. Essa estilística reacionária se manifesta por uma volta à disciplina, às metrificações populares, aos ritmos clássicos, às rimas, a tudo o que o liberalismo-modernista parecia ter banido para sempre...

O nosso Modernismo foi, antes e acima de tudo, anti. Foi anticlássico, antirromântico, antiparnasiano, antissimbolista, antiburguês, antilusitano. Foi contra tudo que representasse uma tradição, um passado, uma permanência. Foi acima de tudo uma insurreição. Veio contra. Veio brusco. Veio violento e desabusado. Veio criando barreiras e repudiando os movimentos anteriores.

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Ora, o neomodernismo não se manifesta, ao menos por ora, por nada disso. Surge como uma prolongação do Modernismo. Não atira pedras em Manuel Bandeira, nem em Oswald de Andrade, nem em Carlos Drummond de Andrade, nem em Augusto Frederico Schmidt, nem em Murilo Mendes, nem em Vinicius de Moraes. Não renega, de modo algum, a herança modernista.243

Procurando definir a nova geração, Athayde assinala que ela surge não como

ruptura da estética fundada pelos que a antecederam, mas como resultado do

aprofundamento das experimentações anteriores. Daí a proposição do termo

“neomodernismo” para nomeá-la. À primeira vista, essa “volta à disciplina”, marcada

pela preocupação formal, faria dos novos poetas “inimigos naturais” do Modernismo de

22. Entretanto a avaliação de Athayde refuta essa expectativa ao situá-los num

“desdobramento do próprio Modernismo”, isto é, agentes de um processo natural e não

traumático de reelaboração poética operado no próprio seio modernista.

No início de 1947, meses antes do artigo de Athayde, Sérgio Milliet publicou em

O Estado de S. Paulo o artigo “Reação poética”, em que também dava conta de uma

nova geração na poesia brasileira, na qual vislumbrava uma resposta aos predecessores:

“A produção poética destes últimos anos revela uma reação, nem sempre consciente,

contra a poesia descabelada de 22”.244 Aludindo ao grupo de Péricles Eugenio da Silva

Ramos e Domingos Carvalho da Silva, que “assume francamente a ofensiva”, Milliet

assinalava a “realização de uma poesia feita de sobriedade, de nobreza, de decantação

voluntária”245 em oposição “ao jogo de palavras, ao malabarismo verbal e rítmico, de

que usaram e abusaram os revolucionários”246 de 22.

Se não chegam a contradizê-la, os novos ao menos relativizam ideia de

“continuidade natural” entre 22 e 45 aventada por Athayde. Na primavera de 1947

circula o primeiro número da revista carioca Orfeu – que se firmaria como um dos

principais porta-vozes da nova geração –, na qual se publicam poemas, contos, peças,

ensaios e artigos assinados pelos moços. No editorial do número de estreia, embora

reconheçam o valor e a importância do Modernismo, dizem-se os novos “insatisfeitos

com os que vieram antes”, deixando entrever certa descrença em relação aos caminhos

até então trilhados:

243 ATHAYDE, Tristão de. O neomodernismo. In: Revista Brasileira de Poesia n.1, São Paulo, dez. 1947. pp. 74-6. 244 MILLIET, Sérgio. Reação poética. In: Revista Brasileira de Poesia n.1. Op. cit., p. 74. 245 Id., ibid. 246 Id., ibid.

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Uma geração só começa a existir no dia em que não acredita nos que a precederam, e só existe realmente no dia em que deixam de acreditar nela. O Modernismo e o pós-Modernismo, que fixam o maior período de densidade, pesquisa e criação já atingido no Brasil, comprovam hoje a existência de um novo movimento cultural [...].

As gerações se sucedem normalmente, como os dias e as noites. Nessa encruzilhada é que nos situamos: insatisfeitos com os que vieram antes, e procurando fixar em nossa mensagem alguma coisa que é ainda intraduzível, quase informulável.247

No mesmo número, o jovem poeta Darcy Damasceno assina “Um artigo e vários

depoimentos”, em que comenta a repercussão de “O neomodernismo”, de Tristão de

Athayde. Em tom de desagravo, Damasceno faz as vezes de emissário dos novos,

incumbido de levar a público a “concordância geral” com as impressões de Amoroso

Lima, inclusive quanto à nova geração ser “um desdobramento do próprio

Modernismo”:

Tendo o Sr. Alceu Amoroso Lima publicado [...] um artigo sobre a atual geração literária, à qual chama neomodernista, numerosas vozes já se fizeram ouvir, num inquérito a respeito. Curioso é notar-se que, em geral, os escritores jovens estão de acordo quase completo com o crítico modernista. [...]

Outro ponto do artigo do Sr. Alceu Amoroso Lima e ainda com o qual há concordância geral é o que define o movimento incipiente como um prolongamento do anterior, uma renovação ditada por novas condições sociais e não por espírito de destruição.

Como vemos, o Sr. Alceu Amoroso Lima interpretou com justeza aquilo que todos os jovens ora lançando-se à aventura estética sentem e procuram expressar.

A atitude do suplemento literário, convocando os escritores novos para uma manifestação a respeito do artigo em apreço, deu ao grande crítico a oportunidade de verificar o grau de acatamento de que, a despeito das inimizades gratuitas, goza entre os nossos jovens, acima das divergências de qualquer natureza. 248

Desde a primeira hora já é possível entrever a indefinição, que se acentuaria ao

longo das décadas, dos liames entre o novo estado lírico e a matriz modernista. Se não

atiram pedras, os novos não se furtam a declarar o descontentamento com os

antecessores. Os números seguintes de Orfeu (revista “de ostensivo combate”249,

segundo Péricles Eugênio da Silva Ramos) disparariam farpas contra os poetas de 22, o

247 Editorial de Orfeu n.1, Rio de Janeiro, primavera de 1947. pp. 1-2. 248 DAMASCENO, Darcy. Um artigo e vários depoimentos. In: Orfeu n.1. Op. cit., pp. 52-3. 249 RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. O Modernismo na poesia. In: COUTINHO, Afrânio (org.). A literatura no Brasil (v. III, tomo I). Rio de Janeiro: Livraria São José, 1959. p. 654.

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que põe sob suspeita a transição harmoniosa referida por Athayde. Estava em curso um

processo de mudança, pontuado por alguns embates e conduzido de modo contínuo e

efetivo.

Outro importante veículo de propagação do pensamento e da produção da época

começa circular em dezembro de 1947, na cidade de São Paulo. A Revista Brasileira de

Poesia, capitaneada por Péricles Eugênio da Silva Ramos e Domingos Carvalho da

Silva, engrossa o coro de Orfeu, publicada na então capital da República.250 Nas

páginas da RBP, poemas compostos e traduzidos pelos novos, noticiário de eventos

literários, ensaios, artigos e editoriais espelham o clima que embala os jovens. Abrindo

o número inaugural, o artigo “O neomodernismo”, de Péricles Eugenio da Silva Ramos,

discute o texto homônimo de Tristão de Athayde publicado meses antes. Questionando

a validade do conceito “reacionário em estética” em oposição ao caráter

“revolucionário” do Modernismo, Silva Ramos recorre a Mário de Andrade, assinalando

que a preocupação formal, identificada nos novos como traço de reacionarismo, já

frequentava as reflexões do principal articulador de 22:

Se Mário foi, sob muitos aspectos, a figura principal do Modernismo, em sua obra, ao mesmo passo, se encontram as bases do neomodernismo, que, se existe, deve-o, e altamente, à pregação de O empalhador de passarinho. Para Mário de Andrade, impunha-se a preocupação da forma, pois, dizia, “não há obra de arte sem forma, e a beleza é um problema de técnica e forma”. [...]

Assim, o ritmo, corroído pelo desleixo, deveria ser mais cuidado: se haviam sido abandonados os metros tradicionais, não fora para se cair no vazio, e sim para a aquisição de ritmos pessoais. Desse modo, o reacionarismo estilístico que Tristão de Athayde observa nos novos decorre em boa parte do ensinamento de Mário.

A própria poesia de Mário de Andrade reflete um caminho semelhante [ao do próprio Modernismo]: dos poemas arlequinais e sem equilíbrio da primeira fase, passa ele, no fim de sua vida, a uma poesia descarnada, sóbria e digna, que constitui, sob muitos aspectos, um protótipo do neomodernismo.251

250 Além de Orfeu e da Revista Brasileira de Poesia, várias outras publicações veiculavam o ideário da Geração de 45: Cancial (Porto Alegre), Clã (Fortaleza), Edifício (Belo Horizonte), Joaquim (Curitiba), José (Fortaleza), Quixote (Porto Alegre), Região (Recife). 251 RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. O neomodernismo. In: Revista Brasileira de Poesia n. 1, São Paulo, dez. 1947. pp. 2-3.

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Silva Ramos conclui que “o neomodernismo [...] não é nem pode mesmo ser uma

negação do Modernismo: ao contrário, é uma resultante, um produto fundamentado de

sua evolução” 252, corroborando, neste ponto, as impressões de Athayde.

A discussão sobre a relação entre a poesia dos novos e a dos predecessores é

tema recorrente nas publicações da época. Nos números de Orfeu, por exemplo, o

indefectível debate ocupa os editoriais:

Em uma nova geração uma das coisas mais incômodas é justamente o fato de ela pretender libertar-se dos que a antecederam no momento em quem se faz herdeira intelectual destes, sofrendo-lhes a influência e guiando-se pelos seus conselhos, indicações e pelo exemplo de suas obras. [...] O que poderá diferençar-nos um dia não é a similitude nem a conexão com os nossos antecessores, antes uma diferença brutal em técnica e motivos, em julgamento de valores e em concepção da vida e do mundo. (editorial de Orfeu n.2, verão de 1948, p.1).

É nossa sede de verdade e de amor, de compreensão e de sinceridade, que nos leva a afirmar aqui: queremos julgá-los, a estes que vieram antes. Esta é a maneira de sermos julgados um dia. Além do mais, edificar uma obra artística, para um jovem, é julgar seus antecessores. (editorial de Orfeu n.3, outono de 1948, p.1).

Reconhecemos o papel histórico desempenhado pelo Modernismo. Mas com a mesma força e coragem reconhecemos a sua superação, extinta a parte perecível, evidente, digna e grandiosa a parte que ficou a testemunhar sua importância. [...] Reconhecemos que temos o Modernismo como uma encruzilhada de nossos destinos, mas naturalmente não o teremos quando começarmos a existir fora dos poemas iniciais. Uma geração que se nutre de fantasmas é uma geração morta. (editorial de Orfeu n.5, primavera de 1948, p. 2).

Nestes excertos, o dilema dos novos: o esforço para se desvencilhar da estética

modernista, sem, contudo, abdicar de seu legado, identificável, de alguma forma, na

nova poética. Gestada entre o reconhecimento das conquistas dos predecessores e a

consciência da superação de seu programa, a lírica surgida nos 40 buscará conciliar a

indeclinável influência e o “julgamento” (e inevitável reprovação, em certos aspectos)

dos antecessores, necessário à afirmação de um novo ideário e ao descarte de elementos

que não mais se justificavam.

Em meio a esse impasse, o quinto número de Orfeu promove um “encontro de

gerações”, apresentando lado a lado poemas dos três períodos (22, 30 e 44/45) de modo

a confrontar a produção dos novos com a dos “velhos”. O editorial sintetiza o dilema

252 Id., ibid.

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desses jovens ao lidarem, por vezes de forma ambígua, com o legado da geração

anterior:

Há, na história da inteligência brasileira contemporânea, três marcos vivos: 1922, 1930 e 1944, testemunhos de três movimentos, o Modernismo, o pós-Modernismo e aquele a que pertencemos, já batizado – não por nós – de “neomodernismo”. Constituem essas referências históricas três estados de espírito que se defrontam, se combatem e confluem, certo é que eles formam, vistos do alto, um complexo harmonioso que se nutre de seus próprios antagonismos. (editorial de Orfeu n.5, primavera de 1948, p.1).

Em meio a “estados de espírito que se defrontam, se combatem e confluem”,

busca-se uma expressão própria, a qual, todavia, parece inelutavelmente ligada à

experiência modernista – questionando-a, negando-a, ampliando-a, transformando-a.

Fruto do “complexo harmonioso que se nutre de seus próprios antagonismos”, a lírica

brotada na década de 40, contudo, para ser compreendida em sua real função e em sua

multiplicidade, deve ser analisada como fenômeno em si, não como mero apêndice do

Modernismo.

O confronto entre a Geração de 45 e o Modernismo não se limitou à primeira

crítica, tendo sido repisado ao longo dos anos. Beneficiadas por certo distanciamento

cronológico, as análises formuladas nas décadas seguintes atualizam a discussão sob

alguns aspectos, embora resvalem frequentemente em velhos impasses. Em 1962, o

crítico José Guilherme Merquior “acrescentou quantidades industriais de lenha a uma

fogueira já crepitante”253 ao examinar a atuação de 45, trazendo novamente à baila o

cotejo com 22. O impiedoso ataque promovido no artigo “Falência da poesia ou uma

geração enganada e enganosa: os poetas de 45” inicia-se assim:

A chamada Geração de 45 é, do ponto de vista do valor literário, uma dege(ne)ração. Do seu programa, frustrado desde a primeira hora, não ficou nenhum resultado no plano do monumento, do definitivo, do que vem para permanecer e, por isso mesmo, justifica os seus autores. Qual era esse programa? Ainda que não tenha sido formalizado, sempre consistiu num antimodernismo. Isto é: sempre foi uma reação a 22 como de resto nem mesmo no início se deixou perceber. Reação que fazia do movimento não bem um neomodernismo, como propôs Tristão de Athayde, mas antes o antimodernismo, como quis Afrânio Coutinho. Tentativa de desentender o espírito de 22: falso pudor da “bagunça”, desejo tímido de “volta à ordem”, repulsa ao grito, ao nacional, ao desparnasianizado que a nossa poesia tivesse até então

253 SEFFRIN, André. Anos 50 (prefácio). In:____. Anos 50 (Coleção Roteiro da Poesia Brasileira). São Paulo: Global: 2007. p.7.

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instituído, desde a famosa Semana libertadora. Os poetas de 45 eram comportados. Bons meninos: em nenhuma hipótese, capazes de fazer pipi na cama da literatura.254

Demolidor da primeira à última linha, o artigo de Merquior não reconhece

qualquer valor no movimento de 45. O olhar judicante do analista, ao contrário,

identifica uma série de traços desqualificadores, realçados sob a ironia cáustica da

diatribe. Para Merquior, 45 representa tão somente uma “volta à ordem” pré-22, o que

implicaria, de certo modo, um retorno ao Parnaso:

Suas imagens são “raras”, de rara anemia e abstração. Seus metros repelem a flexibilidade psicológica de 22. A poesia pôs gravata. Uma seriedade difusa se espalhou pelo verso. E uma “construção” de falso ar pensado; como se esses poetas, não tendo chegado a meditativos, ficassem apenas meditabundos. Um passadismo parnasianinho fez sua rentrée. Da necessidade da forma se deduziu, com moderada inteligência, a imposição da fôrma. E o que foi pior, sem que fosse uma ordem de escola; foi antes engano coletivo e irreparável.255

Além da animosidade, chama a atenção no desabrido artigo a franca disposição

de confrontar 22 e 45. Nesse passo é significativo que “Falência da poesia”, publicado

no volume Razão do poema, situe-se, no livro, imediatamente após “A poesia

modernista”, escrito também em 1962, em tom abertamente elogioso ao Modernismo.

Quanto a 45, o vezo sentencioso confirma-se ao final de “Falência da poesia”, quando o

crítico prolata: “por ter recusado, com dano e má fé, a audaciosa lição de 22, [...] eu

acuso a Geração de 45 [...] de ter traído a poesia, e de ter atrasado em tantos anos o

firme florescimento de uma poética de realidade brasileira”.256

Em posição diametralmente oposta, o crítico Gilberto Mendonça Teles publica,

em 1985, “Para o estudo da Geração de 45”, aprofundado ensaio em que procede a uma

investigação minuciosa da Geração a partir de abordagem histórica favorecida pelo arco

temporal mais dilatado que o de Merquior. Já de início o crítico aponta o cipoal em que

se enredam os desdobramentos da poesia brasileira a partir do Modernismo:

254 MERQUIOR, José Guilherme. Falência da poesia ou uma geração enganada e enganosa: os poetas de 45. In:____. Razão do poema. Op. cit., pp. 48-9. 255 Id., ibid., p. 51. 256 Id., ibid., p. 56.

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A prova de como a poesia brasileira da segunda metade deste século tem sido mal estudada [...] começa por uma infeliz simplificação maniqueísta: via-se, de um lado, como a melhor, a poesia que se dizia de vanguarda; e de outro, a que se contentava em renovar a tradição do discurso poético. Cometia-se um duplo erro: não se percebia a inter-relação das várias correntes vindas do Modernismo – uma saindo de dentro da outra, relacionando-se por oposição ou por complementação. [...] A crítica não soube ver no desenvolvimento modernista a pluralidade de aberturas estéticas que constituiu a essência mesma de toda a nossa modernidade. No fundo, vanguarda e não-vanguarda, experimentalismo e esteticismo, toda a poesia de 1950 para cá desenvolvia alguns dos postulados estéticos e estilísticos do Modernismo de 1922.257

No que tange ao indefectível confronto, Mendonça Teles alinha-se com Tristão

de Athayde e com os que consideram 45 um desdobramento de 22. O crítico afirma que

“a poesia da Geração de 45 situa-se perfeitamente dentro do sentido de transformação

do discurso poético do Modernismo”258, chegando a asseverar, talvez com algum

exagero, que a Geração de 45 “vai levar mais longe o projeto modernista”, de vez que

seus poetas estariam dispostos a “levar adiante alguns postulados modernistas, entre os

quais o direito à livre pesquisa e à liberdade estética do poema”.259 A afirmativa de

Mendonça Teles, descontado o traço algo hiperbólico, conduz a reflexões significativas

sobre o efetivo papel desses poetas no complexo poético dos anos 1940-50.

O dissenso entre críticos – Alceu Amoroso Lima versus Afrânio Coutinho;

Gilberto Mendonça Teles versus José Guilherme Merquior – e a consequente

contraposição semântica entre os termos “neomodernismo” e “antimodernismo” (ou

“neoparnaso” e “neoclassicismo”, equivalentes também empregados) para designar a

mesma produção poética retomam de forma oblíqua as linhas de força que vimos

rastreando. Numa era de autoconsciente e irreversível modernidade, motriz de uma

poética essencialmente moderna, como compreender, situar e classificar o advento de

uma expressão lírica fundada em temas, motivos, técnicas e formas colhidos na

tradição?

257 TELES, Gilberto Mendonça. Para o estudo da Geração de 45. In:____. Contramargem. Op. cit., p. 83. 258 Id., ibid., p. 86. 259 Id., ibid., p. 84.

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5.2. Modernidade: contradição

Embora compreensível e justificável na época, acreditamos que hoje, em

perspectiva histórica, a categorização da lírica surgida nos anos 1940-50 frente ao

movimento modernista é tarefa secundária ou mesmo inócua, de vez que não revela a

principal função dessa poesia nem o efetivo papel por ela desempenhado no complexo

estético-literário em que toma parte. O crítico Pedro Lyra tece arguta consideração

sobre a pretensa centralidade do Modernismo e a atuação supostamente periférica dos

movimentos que lhe são contíguos:

Ornar a palavra “modernismo” de prefixos (pré-, pós-, neo-, anti-) para designar os movimentos anterior e posterior, convergente ou divergente, além de denunciar uma indigência crítica/histórica/terminológica, configura uma extrapolação do seu alcance e uma exageração da sua importância, subestimando os dos outros, ao fazê-los girar em torno dele, sem identidade, como meros satélites.260

Mais significativa do que a logomaquia entre “antimodernismo” e

“neomodernismo” é a percepção de que a poesia dos anos 1940-50, à maneira da

estética de 22, reabriu caminhos interditados a certas possibilidades expressivas.

Antonio Cicero sublinha com propriedade que “o verdadeiro sentido da vanguarda não

foi o fechamento de portas abertas, mas a abertura de portas fechadas”.261 Contudo, em

certos aspectos, a abertura promovida pela vanguarda trouxe a contrapelo o fechamento

de portas ao passado literário. No Brasil, a liberdade apregoada pelo movimento de 22

manifesta-se de modo relativo, pois, à luz dos preceitos modernistas, a poesia que

dialogasse com a tradição deveria ser rechaçada como expressão inaceitável de um

“passadismo” anacrônico. Isso implica uma liberdade restrita, ou restritiva: prega-se o

verso livre, desde que comprometido com a censura ao “antigo”. Adstrita ao receituário

da escola, a “Poética” que se pretende aberta a “todas as palavras”, “todas as

260 LYRA, Pedro. As gerações da poesia brasileira no século XX. In:____. Sincretismo – a poesia da Geração 60. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. pp. 75-6. 261 CICERO, Antonio. Poesia e filosofia. Op. cit., p. 76.

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construções” e “todos os ritmos”262 não capitula ante o que quer que fosse fora de si

mesma. A propósito, Lêdo Ivo denuncia em 1967: “já não é possível esconder que a

decantada libertação do verso e a liberdade de pesquisa estética constituíram, na

verdade, inconfundível e inegável tirania”.263 Na sequência, o lúcido remate: “A

pesquisa, pela sua amplitude, requer a admissão dos contrários e a competência das

réplicas”.264

Malgrado a inadmissão dos contrários, a tradição, como se viu, resiste durante o

processo de hegemonização do Modernismo, seja sorrateiramente infiltrada na poesia de

seus partidários, seja na “reação literária a 22”, materializada, por exemplo, na

receptividade aos sonetos à antiga muito maior do que a dispensada à poética

modernista, conforme assenta Fausto Cunha.265 Presente com alguma ostensividade na

obra de Augusto Frederico Schmidt, nos primeiros livros de Vinicius de Morais ou nas

propostas do grupo da revista Festa, o legado da tradição na poesia brasileira, no

período de instalação e afirmação do postulado de 22, não chega a impor-se em

plenitude como virtualidade estética a ponto de ombrear-se com o Modernismo, que

“ganhava foros de escola oficial”.

É em meados da década de 1940 que o repositório de temas e formas

tradicionais recobra sua legitimidade e se reincorpora ao conjunto de potencialidades

expressivas, num movimento de “abertura de portas fechadas” que não mais implicaria

“o fechamento de portas abertas”. Pela primeira vez na vigência da modernidade do

século XX – “marcada por programas radicais e experimentos audaciosos”, na qual “a

cultura mundial do modernismo em desenvolvimento atinge espetaculares triunfos na

arte e no pensamento”, como pontuam Gumbrecht e Berman266 – a tradição, reabilitada

em toda a sua pujança, está franqueada à poesia brasileira, figurando em pé de igualdade

com o recém-conquistado acervo de técnicas, formas, motivos e procedimentos forjados

e validados sob o pálio da modernidade.

Antonio Cicero define o “poeta moderno” como aquele que “vive depois que a

experiência da vanguarda se cumpriu”.267 Nesta perspectiva os poetas surgidos nos

262 BANDEIRA, Manuel. Poética. In:____. Antologia poética. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 28. 263 IVO, Lêdo. Epitáfio do Modernismo. In:____. Poesia observada. Op. cit., p. 147. 264 Ibid. 265 Cf. nota 234. 266 Cf. notas 56 e 57. 267 CICERO, Antonio. Poesia e filosofia. Op. cit., p. 77.

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decênios de 1940-50 são fundamentalmente modernos, a despeito dos rótulos

“antimodernistas”, “neomodernistas” ou quaisquer outros que a crítica lhes pespegue. O

poeta moderno, como bem afirma Cicero, “é capaz de empregar as formas que bem

entender para fazer os seus poemas, mas não pode deixar de saber que constituem

apenas algumas das formas possíveis”.268 Consolidada pela experiência da vanguarda, a

consciência indeclinável de que “não há nenhum conjunto particular de formas cujo

emprego seja condição necessária para a produção de um poema”269 define a natureza

da poesia moderna e impõe-se como imperativo a partir do qual se reorientará a relação

do poeta com a expressão de sua arte.

Dessa forma, ao contrário de, simploriamente, promover a apregoada “involução

estética” que amiúde se lhe atribui, a poesia brasileira de meados do século XX surge

irremediavelmente engastada na modernidade dos tempos que a produzem, a despeito

do lastro tradicional que a conforma em grande medida. Aptos a avaliarem e escolherem

o que melhor convém à sua expressão, seus poetas dialogam com o antigo e o moderno,

deliberadamente suscetíveis a ambos os influxos, como bem sublinha a crítica Iumna

Maria Simon, segundo a qual a lírica do período, em especial a vinculada à “linhagem

dos poetas de 45”, embora tributária da tradição,

não deixava de ser moderna, inspirada em fontes de vária procedência: do Simbolismo à poesia de Rilke, Pessoa, Valéry, Eliot, Neruda, Jorge Guillén, não faltando o gosto especial por atmosferas e cadeias imagéticas de inspiração surrealista. Se os recursos e os procedimentos modernos foram traduzidos em convenção, como um padrão genérico de modernidade poética, ao mesmo tempo eles serviam, juntamente com a restauração das formas tradicionais, ao esforço de especialização literária que, na época, traduzia a necessidade de constituir um território próprio e autônomo para a expressão poética.270

Neste processo, o Modernismo “doméstico” é influência inevitável, apesar das

inevitáveis rusgas entre “novos” e “velhos”. Se o acervo da tradição, até então

interditado, retorna com fonte de recursos compositivos, não raro preferenciais, o legado

de 22 não é desconsiderado. A disposição de conciliar o “antigo” e o “novo”, sinalizada

no postulado “teórico” das diversas revistas que servem de porta-vozes aos “novos”, foi

268 Id., ibid. 269 Id., ibid. 270 SIMON, Iumna Maria. Esteticismo e participação: as vanguardas poéticas no contexto brasileiro (1954-1969). In: PIZARRO, Ana (org.). América Latina: palavra, literatura e cultura. São Paulo: Memorial da América Latina; Campinas: UNICAMP, 1993. p. 343.

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captada por vários críticos. Ainda em 1947, Tristão de Athayde consigna, com a

anuência dos jovens poetas, que a nova geração “não renega, de modo algum, a herança

modernista”.271 Glosando Athayde, Gilberto Mendonça Teles salienta que “em 45 não

se trata de afirmar o presente contra o passado. A nova geração está sob o signo da

Disciplina e da Liberdade”.272 O dístico, que aponta justo para a convergência entre o

“antigo” e o “novo”, foi desdobrado por Sérgio Buarque de Holanda em artigo de 1950,

sobre a poesia do período: “liberdade não é negação, mas condição de disciplina: da

única disciplina – voluntária e diligente, jamais preguiçosa ou passiva – que o mister da

criação artística deve impor”.273 Também Péricles Eugênio da Silva Ramos destaca

nessa “fase de ordenação [...] a reavaliação de nosso patrimônio literário [...] sem perda

nenhuma das conquistas anteriores”274, acrescentando que esses poetas “não cogitavam

de repetir modelos ultrapassados, mas de criar novas formas de expressão, embora

rigorosas”.275 Pedra angular do estado lírico brotado os anos 1940-50, a confluência

entre tradição e modernidade é igualmente registrada por Alfredo Bosi:

Renovava-se, assim, trinta anos depois, a maneira parnasiano-simbolista contra a qual reagira masculamente a Semana; mas renovava-se sob a égide da poesia existencial europeia de entreguerras, de filiação surrealista, o que lhe conferia o estatuto ambíguo de tradicionalismo e modernidade. 276

Bosi assinala com agudeza o traço que singulariza a lírica do período ante as

plataformas estéticas que até então vigoraram no século XX: “o estatuto ambíguo de

tradicionalismo e modernidade” deliberada e manifestamente adotado. O influxo “da

poesia existencial europeia de entreguerras” como dado moderno a renovar “a maneira

parnasiano-simbolista” é também destacado por Gonzalo Aguilar, que flagra na arte do

pós-guerra a aliança de “um novo humanismo” com “as formas regulares clássicas”:

Depois de terminada a Segunda Guerra Mundial, surgiu um novo humanismo que, na arte, implicou o retorno às formas regulares e clássicas e a rejeição das tentativas vanguardistas anteriores à guerra. Essa mudança, que pode ser observada em autores tão diferentes como

271 Cf. nota 243. 272 TELES, Gilberto Mendonça. Para o estudo da Geração de 45. In:____. Contramargem. Op. cit., p. 92. 273 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Amor em terra de Razam. In: ____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 170. 274 RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. Poesia moderna. In:____. Do Barroco ao Modernismo. Op. cit., p. 273. 275 Id., ibid., p. 270. 276 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. Op. cit., p. 466.

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Picasso, T.S. Eliot ou Neruda, teve como manifestações evidentes, na poesia, um retorno ao soneto e a um repertório temático idílico cujos motivos foram, com frequência, os mitos antigos. No Brasil, essa tendência foi representada pela Geração de 45 e, na Argentina, pela de 40.277

Aguilar aponta na Geração de 45 o desejo de “construir um mundo harmonioso e

humano, de lirismo pleno”, e justifica-o contrastando “essa imagem cândida, e em certo

sentido esperançosa”, com outra “um pouco menos benévola”278, colhida numa

passagem do crítico de arte britânico John Berger: “Nesses anos [do pós-guerra] muitos

artistas tornaram-se clássicos, como que para esquecer a barbárie de oito milhões de

mortos na guerra”.279 Permeada desse “sentimento do mundo”, a arte do pós-guerra

tende a se contrapor à experiência da vanguarda, identificada com “um otimismo

tecnológico e uma violência simbólica que se confundia com a atitude bélica”.280

Segundo Aguilar, “a obra, como mostra Berger com relação a Picasso, recuperou então

seus limites nítidos e auráticos e sua forma consolatória ou reconfortante”.281

No mesmo passo, Alceu Amoroso Lima identifica nos planos político e estético

uma “crise geral de liberdade” a influir diretamente na criação artística, que passa a

orientar-se por uma expressão mais disciplinada. Em estudo de 1956, o crítico analisa os

reflexos dessa nova ordem na produção artística e intelectual brasileira do período:

Há uma crise geral de liberdade no nosso século e, de modo particular, nesta sua segunda metade. [...] No próprio plano estético, a repercussão dos dogmas políticos coloca em crise a liberdade criadora dos artistas, e a politização dos intelectuais é um convite à disciplina, à obediência, à docilidade, às “linhas justas” [...]. Quanto aos intelectuais que resistem à politização, é mesmo por motivos estéticos que, também, se afastam daquele culto da liberdade que foi o clima do Modernismo. Ao contrário, o que vemos hoje é o reaparecimento do objetivismo e a apologia da disciplina.282

Como visto, esse movimento restaurador calcado na “apologia da disciplina” é

facilmente verificado na lírica brasileira irrompida nos anos 1940-50; confrangida pela

experiência da barbárie, tal poesia inscreve-se em esferas que ultrapassam o plano

estritamente estético e responde ao momento histórico com o qual se relaciona – como 277 AGUILAR, Gonzalo. Poesia concreta brasileira. Op. cit., p. 161. 278 Id., ibid. 279 BERGER, John apud AGUILAR, Gonzalo. Ibid., p. 161. 280 AGUILAR, Gonzalo. Ibid. 281 Id., ibid., p. 162. 282 LIMA, Alceu Amoroso. Neomodernismo. In:____. Quadro sintético da literatura brasileira. Op. cit., p. 121.

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de resto toda manifestação artística. Não obstante, para ser de fato compreendido, esse

processo de retradicionalização deve ser analisado na dinâmica do complexo estético-

cultural que o condiciona.

Já observamos que ao longo da história literária, notadamente a partir do

Romantismo, subseguem plataformas estéticas grosso modo opostas entre si.

Reproduzimos, a propósito, excerto de Luís Augusto Fischer283 com um panorama desse

processo. Octavio Paz reitera o raciocínio: “A história da arte e da literatura se desdobra

como uma série de movimentos antagônicos: Romantismo, Realismo, Naturalismo,

Simbolismo”284, afirma o crítico, destacando que tais movimentos não se consorciam

num continuum harmônico tangido por alguma força neutralizadora que lhes concilie as

incongruências ou anule a tensão entre eles. Acentuando o antagonismo que os articula,

Paz sublinha a dinâmica de guinadas e reorientações estéticas irrompidas cíclica e

reiteradamente neste processo, a ponto de constituírem um novo tipo de tradição no

próprio seio da modernidade. Diante da invulgar coligação que propõe, o crítico se

antecipa ao previsível questionamento: “Se o tradicional é, por excelência, o antigo,

como pode o moderno ser tradicional? Se a tradição significa continuidade do passado

no presente, como se pode falar de uma tradição sem passado e que consiste na

exaltação daquilo que o nega: a pura atualidade?”.285 O próprio Paz dissipa o suposto

paradoxo: “Tradição não é continuidade e sim ruptura, e daí que não seja inexato

chamar à tradição moderna: tradição da ruptura. [...] O que distingue a modernidade é a

crítica: o novo se opõe ao antigo, e essa oposição é a continuidade da tradição”.286 O

crítico mexicano explica a natureza e o funcionamento dessa tradição que, ao cabo,

constitui a própria modernidade que a engendra:

A modernidade é uma tradição polêmica que desaloja a tradição imperante, qualquer que seja esta; porém desaloja-a para, um instante após, ceder lugar a outra tradição, que, por sua vez, é outra manifestação momentânea da atualidade. A modernidade nunca é ela mesma: é sempre outra.287

283 Cf. nota 49. 284 PAZ, Octavio. Invenção, subdesenvolvimento, modernidade. In:____. Signos em rotação. Op. cit., pp. 133-4. 285 Id., A tradição da ruptura. In:____. Os filhos do barro. Op. cit., p. 17. 286 Id., Invenção, subdesenvolvimento, modernidade. In:____. Signos em rotação. Op. cit., p. 134. 287 Id., A tradição da ruptura. In:____. Os filhos do barro. Op. cit., p. 18.

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Discorrendo sobre o conceito de tradição na obra de Octavio Paz, a ensaísta

Maria Esther Maciel esclarece que a tradição da ruptura se configura como “uma

sucessão descontínua de tradições provisórias”, e acrescenta:

Ela ingressa no fluxo temporal ao mesmo tempo que faz a crítica da cronologia, colocando em coexistência o presente e o passado reinventado [...], evidenciando, de certa maneira, a controvertida tese de Valéry segundo a qual o poeta moderno “entra no futuro em marcha a ré”. É nessa medida que o termo paziano tradição da ruptura pode designar tanto a ruptura com o passado imediato quanto a ruptura silenciosa com os próprios valores da modernidade.288

A poesia brasileira do último século encarna a tradição da ruptura paziana na

medida em que funda “uma tradição feita de interrupções, em que cada ruptura é um

começo”.289 Nesta marcha, os “movimentos antagônicos” de que fala Paz sucedem-se

numa oscilação de estéticas que pendulam entre a adesão e a recusa, em maior ou menor

grau, aos modelos e valores da tradição “clássica”. A partir de 1922 instalam-se

“tradições provisórias”, uma desalojando a outra e fundando uma nova, cumprindo-se,

assim, o vaticínio de Paz sobre a modernidade: “nunca [ser] ela mesma: [ser] sempre

outra”.

Harold Rosenberg também reconhece uma “tradição da modernidade”,

referendando, neste aspecto, a proposição paziana: “O famoso ‘rompimento moderno’

com a tradição durou o bastante para ter produzido sua própria tradição” 290, afirma o

crítico, ressalvando que “o novo não pode tornar-se tradição sem dar lugar a

contradições singulares, mitos, disparates”.291 Por volta de 1945 o Modernismo

brasileiro, alçado à posição de “escola oficial junto à crítica dominante”, havia

consolidado a sua tradição (notadamente no “círculo literário”, isto é, entre escritores,

poetas e crítica especializada, num franco processo de hegemonização que adiante se

estenderia ao público leitor). É a “tradição curta porém viva e atuante, [...] essa tradição

de vinte anos”292 que João Cabral de Melo Neto identifica “no momento em que [os

poetas de 45] penetraram na vida literária”.293

288 MACIEL. Maria Esther. Os paradoxos do novo: sobre o conceito de tradição na obra de Octavio Paz. In: Revista de Estudos de Literatura v.3. Belo Horizonte, UFMG, out.1995. p.23. 289 ____. A tradição da ruptura. In:____. Os filhos do barro. Op. cit., p. 17. 290 ROSENBERG, Harold. A tradição do novo. Op. cit., p. XV. 291 Id., ibid. 292 MELO NETO, João Cabral de. A Geração de 45 (II). In:____. Obra completa. Op. cit., p. 744. 293 Id., ibid.

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Por esse tempo, se “o Modernismo, como ruptura com as tradições

conservadoras, estava triunfante”294, em contrapartida seu viço renovador esmaecia na

medida em que o movimento, outrora “destruidor, de fúria antiacadêmica”295, estagnava

em “um novo academismo com receitas para a poesia e a prosa”296, como ressalta

Sérgio Milliet em artigo de 1947. Alceu Amoroso Lima, por seu turno, percebendo no

meado dos anos 1940 “uma onda que vai levando os [...] náufragos do

convencionalismo modernista”297, assevera: “pois toda revolução literária se converte

um dia num academismo sem vida”.298 Na mesma esteira, referindo-se à

“institucionalização do novo a qualquer preço”, Antonio Carlos Secchin aponta a

cristalização de “vários procedimentos” modernistas em “clichês de uma discutível

tradição do contrapoético”.299 A “academização” do Modernismo, ademais, não se

circunscreve ao âmbito literário, conforme acusa Milliet em artigo de 1948. O crítico

aponta o fenômeno também nas artes plásticas:

Contra os acadêmicos de 22, que nos impunham como normas definitivas da arte os modelos premiados nos salões oficiais, erguemos o postulado da pluralidade das formas de expressão e sustentamos que a arte não estava nessas exteriorizações, porém em elementos de ordem estética intrínseca: composição, invenção, expressão, sensibilidade. Vejo com desprazer agora alguns companheiros de luta sustentarem, contra os novos, a fixação definitiva e excelente de uns tantos cânones absolutamente secundários, desmentindo-se a si próprios e restabelecendo a confusão no espírito do público.300

Estagnação, canonização, academismo. Nos anos 1940 a plataforma estética

instalada em 1922, originariamente moderna e inovadora, parece ter se rendido à

“fixação definitiva e excelente de uns tantos cânones” e se estabilizado como doutrina a

ser seguida e modelo a ser imitado. Octavio Paz analisa a questão com peculiar

sagacidade:

Se a imitação se torna simples repetição, o diálogo cessa e a tradição se petrifica; do mesmo modo, se a modernidade não faz a crítica de si mesma, se não se postula como ruptura e só como uma prolongação

294 BRITO, Mário da Silva. A revolução modernista. In: COUTINHO, Afrânio (org.). A literatura no Brasil. Op. cit., p. 476. 295 MERQUIOR, José Guilherme. Falência da poesia ou uma geração enganada e enganosa: os poetas de 45. In:____. Razão do poema. Op. cit., p. 49. 296 MILLIET, Sérgio. Melhores crônicas (org. Regina Salgado Campos). São Paulo: Global, 2006. p.74. 297 LIMA, Alceu Amoroso. Neomodernismo. In:____. Quadro sintético da literatura brasileira. Op. cit., p. 112. 298 Id., ibid. 299 SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: marcas. In:____. Poesia e desordem. Op. cit., p. 74. 300 MILLIET, Sérgio. Melhores crônicas. Op. cit., p. 86.

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do “moderno”, a tradição se imobiliza. Isto é o que sucede com grande parte da chamada “vanguarda”. A razão é clara: a ideia de modernidade começa a perder a sua vitalidade. Perde-a porque já não é uma crítica, e sim uma convenção aceita e codificada. Em lugar de ser uma heresia como no século passado [século XIX] e na primeira metade do nosso [século XX], converteu-se em artigo de fé que todos compartem. 301 .................................................................................................................

A “vanguarda” cessou de ser crítica. Sua negação se neutraliza ao ingressar no circuito de produção e consumo da sociedade industrial, seja como objeto, seja como notícia. 302

Na poesia brasileira, como vimos, esse processo tem sequência com o advento

de um novo estado lírico marcado pelo rigor das formas e pela “preocupação com a

linguagem, com a cuidadosa busca da palavra própria da imagem adequada, do ‘verso

nítido e preciso’, com a beleza formal, com a ordem e a harmonia, com a ‘arte’ e a

técnica na composição poética”.303 Detectáveis na superfície, esses traços conferem a tal

poesia a feição “neoclássica” ou “antimodernista” que Afrânio Coutinho vislumbrou.

São também esses característicos exteriores que, para José Guilherme Merquior,

evocam o suposto “passadismo parnasianinho” 304 que manaria da Geração de 45.

Postas as peças no complexo tabuleiro estético-poético do período, cumpre

analisar os diversos vetores que sobre ele atuam. Assimilada como “convenção aceita e

codificada”, a estética modernista àquela altura está, como se viu, esvaziada do tônus

inventivo e inovador que a caracterizou na origem. Segue-se a ela um “novo” estado

lírico, de feições tradicionais. Presumivelmente alinhada com o “antigo”, porque

ancorada na tradição “clássica”, essa poética irrompe, ao revés, varada por uma

modernidade medular: agente da tradição da ruptura de que fala Octavio Paz, ela surge

como crítica ao establishment modernista, reafirmando, assim, a sua irrecusável

natureza moderna (“O que distingue a modernidade é a crítica”305). Também aqui “o

301 PAZ, Octavio. Invenção, subdesenvolvimento, modernidade. In:____. Signos em rotação. Op. cit., p. 134. 302 Id., ibid., p. 136. 303 COUTINHO, Afrânio. Correntes cruzadas: questões de literatura. Rio de Janeiro: A Noite, 1953. p. 232. 304 Cf. nota 255. 305 Cf. nota 286. A assertiva de Octavio Paz – “O que distingue a modernidade é a crítica” – remonta a Kant, como observa Antonio Cicero: “Sobre a modernidade nunca é demais citar a definição lapidar de Kant, segundo a qual ela é ‘a época da crítica, à qual tudo deve submeter-se’”. In: CICERO, Antonio. Tempo e modernidade (conferência). Fragmento transcrito de exposição oral proferida na Academia Brasileira de Letras em 10.9.2012, durante o Ciclo Mutações 2012 – “O futuro não é mais o que era”. O fragmento de Kant está no “Prefácio à primeira edição (1781)” in KANT, Immanuel. Crítica da razão pura (trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. 31

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novo se opõe ao antigo”, mas as interpenetrações entre os sentidos de “novo” e “antigo”

imprimem uma fisionomia multímoda e cambiante a esse complexo poético peculiar.

No contexto sob enfoque, “o novo” apresenta-se com aparência antiga (“tradicional”),

ao passo que “o antigo” passa a projetar-se no Modernismo, identificado desde sempre

como renovação. O secular embate entre tradição e modernidade é novamente

encenado, mas agora os polos estão invertidos: o “tradicional” é “o novo”, e o outrora

moderno, agora tradicionalizado, é “o antigo”.

Octavio Paz detectou este arranjo aparentemente improvável ao enunciar: “o

novo não é necessariamente o moderno”.306 Nos termos da formulação paziana, “o

novo” coincidirá com “o moderno” se “portador da dupla carga explosiva: ser negação

do passado e ser afirmação de algo diferente”307, como ocorreu, por exemplo, com o

Modernismo em 1922. “Esse algo” – prossegue Paz – “tem mudado de nome e de forma

no correr dos dois últimos séculos [...], porém sempre tem sido o que é estranho à

tradição reinante, a heterogeneidade que irrompe no presente e desvia seu curso em

direção inesperada”.308 No complexo poético dos anos 1940-50, “o novo” apresenta-se

como “afirmação de algo diferente” perante a neutralizada estética modernista (a

“tradição reinante”), mas não se quer “negação do passado”; ao contrário, é exatamente

na reafirmação do passado (não imediato) que se funda a crítica ao simulacro de um

presente pretensamente absoluto e imprescritível entronizado no Modernismo.

Ser nova com feição antiga, moderna por ser (também) tradicional: eis a

bifrontalidade sui generis que diferencia a poesia brotada nos anos 1940-50. Aqui, “o

‘novo’ nos seduz não pela novidade, mas sim por ser diferente”309, e essa diferença é

justo “o velho”, o qual, redivivo como ruptura e como princípio de uma nova ordem,

também traz em si o poder de fascínio, como afirma Paz:

O “velho” também pode seduzir desde que represente uma ruptura. O velho de milênios também pode atingir a modernidade: basta que se apresente como uma negação da tradição e nos proponha outra. Ungido pelos mesmos poderes polêmicos do novo, o antiquíssimo não é um passado, é um começo.310

306 _____. A tradição da ruptura. In:____. Os filhos do barro. Op. cit., p. 20. 307 Id., ibid. 308 Id., ibid. 309 Id., ibid. 310 Id., ibid.

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Elemento crucial na tradição da ruptura que define a poesia brasileira do século

XX, a lírica despontada nas décadas de 1940-50 ostenta, como se vê, a ambivalência

basilar que interfere decisivamente no também ambíguo e complexo contexto histórico-

cultural que a condiciona. Lembre-se, a propósito, a observação de Wilson Martins,

segundo a qual os anos 1940 constituem “um período de balanços e reavaliações, claro

fim de uma época e território de passagem”.311 Se a referência ao “fim de uma época”

remete ao ocaso do Modernismo (movimento cujo nome parece revestido de perpétuo

alvorecer), a expressão “território de passagem” sinaliza a mudança para um novo

estado lírico (permeado pela entardecida tradição), cujo surgimento Alceu Amoroso

Lima metaforiza nas “barras rubras de uma nova aurora”312 e Sérgio Buarque de

Holanda, detectando “indício seguro de um momento novo na poesia nacional”313,

chama, em artigo de 1951, “A difícil alvorada”. Nos anos mediais do século XX, “duas

cores se procuram,/ suavemente se tocam”314 (como escreveu Drummond em livro de

1945) e tingem a poesia brasileira, a um só tempo, de tons aurorais e crepusculares,

numa espécie de lusco-fusco ou arrebol315 em que se amalgamam ocaso e amanhecer.

“A poesia de nosso tempo é fim e ao mesmo tempo início”. A frase que se

aplica com justeza à lírica brasileira dos anos 1940-50 está no prefácio da primeira

antologia de poesia expressionista, Menschheitsdämmerung (Aurora/Crepúsculo da

humanidade), publicada na Alemanha em 1919, sob organização de Kurt Pinthus. A

ambiguidade da passagem reverbera no título do volume, como explica a filósofa Aléxia

Bretas: “O duplo sentido da palavra dämmerung (aurora ou crepúsculo) aponta para

uma ambiguidade sem dúvida fundamental para a compreensão do ‘espírito’

expressionista: surgimento ou ocaso da humanidade (Menschheit)?”.316 De forma

análoga, a percepção dessa ambivalência amplia sobremodo a compreensão da poesia

311 Cf. nota 228. 312 LIMA, Alceu Amoroso. Neomodernismo. In:____. Quadro sintético da literatura brasileira. Op. cit., p. 121. 313 HOLANDA, Sérgio Buarque de. A difícil alvorada. In: ____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 389. 314 ANDRADE, Carlos Drummond de. Morte do leiteiro. In:____. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 2006. p.111. 315 É pertinente, neste ponto, salientar a ambivalência dos substantivos “lusco-fusco” e “arrebol”. Segundo o Dicionário Aurélio Eletrônico (versão 3.0), o Dicionário Houaiss Eletrônico (versão 3.0) e o Aulete Digital – Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, disponível on-line em http://aulete.uol.com.br, o verbete “lusco-fusco” encerra os seguintes significados: “1. crepúsculo vespertino; o anoitecer. 2. crepúsculo matutino; o amanhecer, o alvorecer”. Quanto a “arrebol”, o Houaiss consigna a acepção “a hora em que o sol está surgindo ou sumindo no horizonte”; do mesmo modo, o Aulete registra o significado “o amanhecer ou o pôr do sol”. 316 BRETAS, Aléxia. A constelação do sonho em Walter Benjamin. São Paulo: Humanitas, 2008. p. 158.

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brasileira de meados do último século, inscrita num “horizonte onde aurora é

crepúsculo”317, para nos valermos de uma expressão de Octavio Paz.

Para que esta manhã matizada de poente se vá tecendo e se encorpando, muitas

vozes se cruzam, como os gritos de galos do poema de João Cabral. A Geração de 45, já

o dissemos, desempenha importante papel neste processo. Também frisamos que a

designação genérica “Geração de 45”, não raro empregada ao sabor da conveniência ou

da arbitrariedade da historiografia e da crítica literárias, aparece frequentemente eivada

de imprecisão, congregando indistintamente poetas de diferentes linhagens e

proposições estéticas, o que resulta na neutralização de singularidades sob o

reducionismo (a)crítico próprio das generalizações. Em alentado estudo sobre a

intricada questão das gerações literárias, o crítico Pedro Lyra examina

pormenorizadamente, sob várias e complementares perspectivas, a amplitude e a

profundidade do conceito de “geração” em seus múltiplos aspectos e implicações –

pressupostos genealógicos e históricos, configuração, fisionomia, faixas de vigência,

etapas, presença, ação e conflitos geracionais, além de outras questões correlatas.

Baseado em acurada análise e sólida argumentação, Lyra põe a nu a ausência de

critérios na utilização costumeira do termo “geração” e a consequente variedade de

sentidos ou “impressões” que ele evoca: “A razão dessa proliferação e dessa imprecisão

é uma só: o emprego da palavra ‘geração’ sem um conceito e uma escala. Toma-se um

elemento qualquer, afetivo ou arbitrário, batiza-se com ele a ‘geração’, fora de qualquer

cadeia – eis o caos”318, afirma o crítico.

Referindo-se à zona de sombras em torno da Geração de 45, Pedro Lyra busca

definir a origem da vagueza conceitual sobre a qual se esteia o rótulo:

O fato é que a Geração [de 45] foi dominada e denominada pelo grupo formalista/esteticista que se reuniu em torno do Clube de Poesia de São Paulo e nas Edições Orfeu do Rio, ambos em 1947 [...]: ao utilizarem o termo “geração” para denominar apenas um de seus segmentos – o dominante, mas não o mais importante –, eles conseguiram fixar a imagem de que o grupo era toda a geração ou a de que a geração era apenas o grupo. Não era e não é. Atento a isso, Leodegário A. de Azevedo Filho chegou a sugerir o rótulo (que não

317 PAZ, Octavio. A tradição da ruptura. In:____. Os filhos do barro. Op. cit., p. 29. 318 LYRA, Pedro. As gerações da poesia brasileira no século XX. In:____. Sincretismo – a poesia da Geração 60. Op. cit., p. 73.

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vingou) de “Grupo de poetas de 45” no lugar de “Geração de 45” para designá-lo.319

Reconfigurando a Geração de 45 a partir de critérios objetivos (históricos e

genealógicos, conferindo-lhe a devida conformação no fluxo temporal e estabelecendo-

lhe faixas de vigência e etapas de atuação), Pedro Lyra identifica nela “uma pluralidade

de tendências” que ultrapassa “a esteticista do Clube e da Revista, dominante, logo, não

exclusiva”.320 Todavia, prossegue o crítico, “empregada para designar apenas o

segmento esteticista, a expressão ‘Geração de 45’ é uma triste redução”.321 O rótulo,

assim, assume a feição única de um “segmento”, confundindo-se com ele; ato contínuo,

em movimento análogo e complementar, ocorre a simplificação do complexo poético

dos anos 1940-50, o qual, subdimensionado e planificado, resulta circunscrito à

“Geração de 45”, por sua vez já reduzida à vertente esteticista. Daí advém a noção

corrente de que a poesia “pós-modernista”/“pré-concretista” (em grosso de 1945 a

1955) se resume ao “esteticismo da Geração de 45”, numa imprópria redução

metonímica em que a parte subsume o todo. É o que se vê, por exemplo, em recente

estudo sobre a poesia de Lêdo Ivo, surgida em livro em 1944. No preâmbulo a Quero

ser o que passa, a professora e ensaísta Luíza Nóbrega escreve: “enquanto ia lendo os

poemas iniciais de Lêdo Ivo, percebendo que adentrava um momento da história

literária brasileira classificado como Geração de 45 [...]”.322 A superposição

indiscriminada da Geração de 45 a um “um momento da história literária brasileira”

revela a confusão entre um grupo não muito bem definido de poetas reunidos sob um

designativo igualmente inexato e o complexo poético que o abarca, do qual participam,

além da corrente “esteticista”, outras manifestações líricas.

Com efeito, não é difícil deparar-se com análises críticas e recortes

historiográficos que estreitam o complexo poético dos anos 1940-50 no conceito vago

de “Geração de 45”. José Guilherme Merquior, por exemplo, penitenciando-se pela

abordagem generalizadora de suas críticas, escreveu a seguinte passagem em artigo de

1982:

Tenho fama – justificada – de detrator da Geração de 45. [...] Mas não vacilarei em fazer aqui um bocado de mea culpa, retratando-me da

319 Id., ibid., p. 69. 320 Id., ibid., p.70. 321 Id., ibid. 322 NÓBREGA, Luíza. Preâmbulo. In:____. Quero ser o que passa – a poesia de Lêdo Ivo. Rio de Janeiro: Contra Capa; Maceió: Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2012. p. 22.

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negligência, relativa ou absoluta conforme o caso, em que deixei por longo tempo valores poéticos indubitáveis [...]. Até 1974, eu ainda assinava ensaios condenando em bloco o “malsinado neoparnaso” de 45. Hoje teria que discriminar muito mais.323

A autorreconhecida “negligência” crítica de Merquior e a consequente

condenação “em bloco” do “‘malsinado neoparnaso’ de 45” confirmam o olhar

generalizante que frequentemente incidiu (e ainda incide) sobre a Geração – e por

extensão, como se viu, sobre o complexo poético das décadas de 1940-50. Ao admitir

que “teria que discriminar muito mais”, o crítico evidencia a ausência de critérios no

trato dessa poesia – falta que não lhe é exclusiva. Isso se desdobra em outros equívocos,

como a vinculação nem sempre coerente entre poetas surgidos no período e “a Geração

de 45”. Como não há (nem poderia haver) uma lista oficial de filiados, a crítica, a

historiografia e os antologistas se incumbem de elaborar o impreciso rol de autores

atrelados à Geração, o que enseja inevitáveis controvérsias em torno das relações de um

ou outro nome com o grupo ou com a plataforma estética que se lhe atribui.

O exemplo mais significativo parece ser o de João Cabral de Melo Neto. Tendo

estreado em 1942 com Pedra do sono, ao qual se seguiu O engenheiro, de 1945, Cabral

é reiteradamente associado ao “formalismo da Geração de 45”, apesar de sua poesia

pautar-se por temática e parâmetros estético-formais facilmente distinguíveis do

“esteticismo” a que se costuma reduzir a Geração. Cabral comentou suas relações com a

Geração de 45 em entrevista a Antonio Carlos Secchin: “Pertencer a uma geração é um

fenômeno biológico, não se pode mudar o ano de nascimento. Mas alguns reduzem uma

geração à ideia de escola literária; nessa perspectiva, nada tenho a ver com a escola de

45 e com seu ideário estético”.324 Pedro Lyra subscreve a negativa de Cabral,

comparando a sua situação à do poeta Moacyr Félix: “A posição de Moacyr Félix em

relação à Geração de 45 é semelhante à de João Cabral: a ela pertencem (ambos figuram

na antologia de M. Godoy) pelas faixas de nascimento e estreia, mas não pela

fisionomia. Seu núcleo renegou o Modernismo – Cabral o consolidou”.325

O divórcio em relação ao “ideário estético” da “escola de 45” não significa,

contudo, afastamento da tradição, como realça Silviano Santiago. Discorrendo sobre o

323 MERQUIOR, José Guilherme. Comportamento da musa: a poesia desde 22. In:____. O elixir do apocalipse. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. p. 172. 324 MELO NETO, João Cabral de. Entrevista. In: SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: a poesia do menos. São Paulo: Duas Cidades, 1985. p. 299. 325 LYRA, Pedro. As gerações da poesia brasileira no século XX. In:____. Sincretismo – a poesia da Geração 60. Op. cit., p. 69.

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influxo decisivo da tradição poética no complexo lírico dos anos 1940-50, o crítico

afirma: “vamos encontrar ainda o envolvimento com a tradição até mesmo em João

Cabral, quando escreve os poemas utilizando o verso retirado do romance popular ou

quando, no nível da composição, vai utilizar o auto dentro da tradição de Gil

Vicente”.326 Na mesma raia, Secchin salienta em Cabral a revivificação de “formas

arcaicas do romanceiro ibérico”327, notadamente em Morte e vida severina. Não se pode

deixar de frisar, a partir da síntese destas passagens críticas, a dialética tradição-

modernidade na poesia cabralina, a um só tempo “consolidação do Modernismo” e

tributária da tradição.

O afã classificatório produziria outras inclusões temerárias ou discutíveis na

Geração de 45 (tomada na usual compreensão de “corrente estética”), como sinalizamos

no prefácio ao volume Anos 40, da Coleção Roteiro da Poesia Brasileira:

Considerada a perspectiva histórica, não deixa de ser curiosa a presença de, além de Cabral, Décio Pignatari, Ferreira Gullar, Augusto e Haroldo de Campos na emblemática Antologia poética da Geração de 45, organizada por Milton de Godoy Campos em 1966, visto que na década de 1950 esses poetas já figuravam na proa do movimento concretista.328

O embaraçamento ainda alcança nomes supostamente incontestáveis, como Lêdo

Ivo. Estreante em 1944 com As imaginações, ao qual se seguiram Ode e elegia (1945),

Acontecimento do soneto e Ode ao crepúsculo (ambos de 1948), o poeta é presença

garantida nas principais antologias da Geração de 45, como a de Milton de Godoy

Campos e a de Fernando Ferreira de Loanda. Assíduo colaborador da revista Orfeu (de

cujo conselho consultivo chegou a participar), pronunciou em 1949, no Museu de Arte

Moderna de São Paulo, a conferência “A Geração de 1945”, dada sua efetiva

participação no movimento. Não é por outro motivo que Alceu Amoroso Lima registra

no Quadro sintético da poesia brasileira, de 1956: “A figura de Lêdo Ivo, poeta e

romancista, destaca-se como um dos chefes da geração a que chamou ele mesmo de

‘Geração de 45’”.329 Não obstante, Sérgio Buarque de Holanda percebe algum

326 SANTIAGO, Silviano. A permanência do discurso da tradição no Modernismo. In:____. Nas malhas da letra. Op. cit., p.120. 327 SECCHIN, Antonio Carlos. O enigma Cecília Meireles. In: Memórias de um leitor de poesia. Op. cit., p. 129. 328 ROSA, Luciano. Anos 40 (prefácio). In:____. Anos 40 (Coleção Roteiro da Poesia Brasileira). São Paulo: Global, 2010. p. 10. 329 LIMA, Alceu Amoroso. Neomodernismo. In:____. Quadro sintético da literatura brasileira. Op. cit., p. 131.

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descompasso entre o “chefe” e os demais integrantes do grupo, como se lê em artigo de

11.2.1951: “o caso do sr. Lêdo Ivo é excepcional, por isso particularmente significativo.

Não se assemelha ao de nenhum outro representante do chamado neomodernismo”.330

Em tempos mais recentes, Ivan Junqueira sublinha a fidelidade do poeta ao “ideário dos

formalistas de 45, dos quais Lêdo Ivo foi um dos poucos que sobreviveram”.331 O jovem

crítico Gilberto Araújo, ao revés, apresentando o volume Quero ser o que passa, da

professora Luíza Nóbrega, anota que Lêdo Ivo “é comumente apontado como integrante

da Geração de 45, juízo que, todavia, merece matizamento. Sua alegada adesão àquele

ideário se justifica mais devido à contingência cronológica do que em virtude de

congruência estética”.332 Divergências críticas que, vindas de longe, longe parecem de

consenso.

Assim como no “caso do sr. Lêdo Ivo”, Sérgio Buarque de Holanda, com a

argúcia que o distingue, soube enxergar diferenças entre os jovens poetas surgidos nos

anos 1940-50, apesar (e para além) da “tendência estetizante” costumeiramente referida

como característica geral do período. Em reiteradas circunstâncias o crítico alude à

pluralidade de vozes – ou mesmo à oposição entre elas, ou entre elas e uma “feição

dominante” do complexo lírico em que atuam – desses autores, salientando a

necessidade de “abordar mais pormenorizadamente cada um deles em separado”.333

Diversos textos do início da década de 1950 trazem passagens com as seguintes: “As

tendências do atual movimento de renovação da poesia, entre nós, ganhariam talvez em

ser abordadas por meio de estudos sistemáticos e particularizados de cada um dos seus

representantes”334 (artigo de 12.3.1950); “a poesia nova, numa plausível variedade,

reúne [...] autores de tendências por vezes contrastantes [...], alguns deles traindo

tendências que parecem contrastar vivamente com os postulados do ‘pós-

modernismo’”335 (artigo de 3.6.1951); “Essas divergências de manifestações em autores

aparentemente tão solidários significa, por si só, uma salvaguarda contra a esclerose de

que os cânones intolerantes ameaçam por vezes a poesia nova”336 (artigo de 10.6.1951).

330 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Resenha de poesia. In:____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 347. 331 JUNQUEIRA, Ivan. João Cabral, um mestre sem herdeiros. In: ____. Ensaios escolhidos (v.1). Op. cit., p. 330. 332 ARAÚJO, Gilberto. Apresentação (orelha). In: NÓBREGA, Luíza. Quero ser o que passa. Op. cit. 333 HOLANDA, Sérgio Buarque de. A poesia no país dos espelhos. In: ____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 177. 334 Id., ibid. 335 Id., ibid., Rito de outono, p. 394. 336 Id., ibid., Ritmo e compasso, p. 397.

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No mesmo diapasão, Manuel Bandeira, em sua Apresentação da poesia Brasileira,

assevera: “Não parece possível caracterizar em conjunto os poetas aparecidos a partir de

1942, alguns dos quais mais tarde a si próprios se chamaram a Geração de 45”.337

Os trechos de Sérgio Buarque e o excerto de Bandeira indicam a “polifonia

oculta sob a univocidade monocórdia amiúde apontada, de modo às vezes leviano, como

pedra de toque da poesia de 45”338, como registramos noutra ocasião. Nada obstante,

não se pode desconsiderar a existência de certos traços que aproximam esses poetas,

uma espécie de “elemento comum”, conforme detecta o próprio Sérgio Buarque em

artigo de 18.2.1951: “Para além da variedade de inspiração e de formas que parece

distinguir nossa poesia mais recente, é inegável que existe um elemento comum em sua

vontade de restauração do ‘poético’”.339 Alfredo Bosi o acompanha de perto: referindo-

se aos “poetas da década de 1940”, o crítico destaca “a chamada ‘Geração de 45’, na

qual se têm incluído nomes díspares que apresentaram em comum apenas o pendor para

certa dicção nobre e a volta, nem sempre sistemática, a metros e a formas fixas de cunho

clássico: soneto, ode, elegia...”.340 Nos termos de nossa análise, a “vontade de

restauração do ‘poético’”, materializada, no plano formal, por meio do retorno efetivo

“a metros e a formas fixas de cunho clássico”, é parte importante do processo de

retomada e aproveitamento da tradição, característica essencial do complexo poético

dos anos 1940-50. Como destacamos, é neste momento que se instaura na poesia

brasileira do século XX, de forma plena e decisiva, a dialética entre tradição e

modernidade, dialética que ainda hoje define em grande medida a poesia produzida no

Brasil.

O resgate da tradição, contudo, não se restringe aos “novos”, isto é, aos jovens

poetas surgidos nos decênios de 1940-50. Na época de florescimento da Geração de 45,

autores consagrados, oriundos do Modernismo, também beberam nas fontes “clássicas”,

intensificando o diálogo desse complexo lírico com a tradição poética. Analisando tal

processo, Péricles Eugênio da Silva Ramos comenta:

Os poetas mais velhos [...] passaram a metrificar a partir de 45, mesmo os que pouco se haviam preocupado com isso, de modo que a

337 BANDEIRA, Manuel. Apresentação da poesia Brasileira. In:____. Seleta de prosa (org. Júlio Castañon Guimarães). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 465. 338 ROSA, Luciano. Anos 40 (prefácio). In:____. Anos 40. Op. cit., p. 9. 339 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Restauração do poético? In: ____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 350. 340 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. Op. cit., p.438.

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poesia da fase, seja a praticada pela Geração de 45 ou pela de 22, é muito mais tensa, ordenada – e até sonetizada. Jorge de Lima sonetou e decassilabou torrencialmente, para citar um exemplo; até Murilo Mendes, um dos “sem ouvido” na classificação de Bandeira, fez seus decassílabos na Contemplação de Ouro Preto, embora só nos seus livros posteriores, como Siciliana, viesse a atingir mais puramente a densidade, a concentração, a limpidez de 45.341

Entre as contribuições dos modernistas ao complexo poético dos anos 1940-50,

um título figura como representante emblemático da dialética tradição-modernidade que

vinca o período. Trata-se de Claro enigma, de Carlos Drummond de Andrade.

Publicado em 1951, o livro marcaria, como salienta o crítico Italo Moriconi, o

“momento de chegada à madureza existencial e maturidade artística”342 do poeta

itabirano, que àquela altura, já reputado um dos maiores poetas modernistas (se não o

maior), abria-se de modo franco a “novas” possibilidades compositivas extraídas da

tradição. No prefácio à 16.ª edição de Claro enigma, publicada em 2006, Moriconi situa

o livro no momento singular em que vem a lume:

Claro enigma inaugura uma quadra de tal maneira canônica na poesia brasileira do século XX que talvez não seja muito ufanista pensar neste período de menos de dez anos como nosso particular “siglo de oro”, o período que podemos mais adequadamente chamar de “clássico” na língua literária brasileira, consolidada a partir do Modernismo. Confira-se a sequência de acontecimentos. Em 1951, sai a público Claro enigma. No ano seguinte, Jorge de Lima publica Invenção de Orfeu. No mesmo ano de 1952, a Academia Brasileira de Letras, por proposta de Cassiano Ricardo e Manuel Bandeira (que já era imortal desde 1940), comemora os 30 anos da Semana de Arte Moderna. Em 1953, vem a público o Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, e em 1954, Contemplação de Ouro Preto, de Murilo Mendes. [...] O momento canônico é aquele em o poeta brasileiro surgido no século XX precisa acertar-se com a tradição, tanto no sentido de tradição nacional quanto no de tradição poética.343

A passagem de Moriconi menciona títulos capitais para o período de nosso

interesse. Produzidas por modernistas consagrados, essas obras concorrem para o

complexo poético das décadas de 1940-50, participando efetivamente do diálogo entre

modernidade e tradição. À guisa de curiosidade, não deixa de ser ilustrativa, neste

contexto, a referência à comemoração, na Academia Brasileira, dos 30 anos da Semana,

341 RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. Poesia moderna. In:____. Do Barroco ao Modernismo. Op. cit., p. 270. 342 MORICONI, Italo. Um marco na poesia brasileira (prefácio). In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro enigma. 16.ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2006. p. 8 343 Id., ibid.

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seja como indício da tradicionalização do Modernismo, seja como registro do “dever

acadêmico de velar pela tradição sem voltar as costas para a modernidade”344, conforme

sublinha o crítico Antonio Arnoni Prado. Com efeito, o fragmento de Italo Moriconi

chama a atenção para o fato de, nos anos centrais do século XX, a dialética tradição-

modernidade não se circunscrever à produção dos jovens de 45.

O destaque de Claro enigma neste complexo poético deve-se, é certo, à altíssima

qualidade do livro, bem como à lucidez e à maestria com que Drummond manipula,

conjugando-os com excelência, elementos da tradição e da modernidade irrenunciável

que informa a sua poesia. Talvez o máximo exemplo dessa tensão seja o poema “A

máquina do mundo”, publicado originariamente em 1949 e incluído na última seção de

Claro enigma. Seja na elaboração formal, seja no diálogo que o poema estabelece com

pontos cardeais da poesia do Ocidente, o lastro da tradição faz-se sentir a todo instante.

Composto de 32 tercetos em versos decassilábicos, o poema evoca de pronto a

arquitetura estrófica da Divina comédia, de Dante. A opção de Drummond por versos

brancos, todavia, impõe significativa deflexão à estrutura clássica tirada ao poema

dantesco, apoiado em rigoroso esquema rímico (a terza rima). Se o decassílabo é

também o metro dos 8.816 versos de Os lusíadas, a referência ao épico camoniano é

mais eloquente na temática: a convergência se dá na própria alegoria da máquina do

mundo, “majestosa e circunspecta”, que se abre oferecendo “essa total explicação da

vida /.../ e o absurdo original e seus enigmas”, tal qual no canto X d’Os lusíadas. Na

versão drummondiana da clássica passagem, no entanto, o sujeito poético desdenha

“colher a coisa oferta”, renunciando à suposta verdade fundamental da vida. Ao mesmo

tempo que convoca a tradição, o poeta a refuta a partir de um dado epistemológico

tipicamente moderno, como esclarece Antonio Cicero:

Só os mundos pré-modernos podiam pretender uma “total explicação da vida”. Se a máquina do mundo era, na Idade Média, capaz de se abrir, é porque era fechada. Em primeiro lugar, era fechada no sentido de ser finita. [...] A máquina medieval é indubitavelmente finita, esférica e cercada por Deus. Em segundo lugar, porém, ela era fechada no sentido de possuir um princípio oculto à percepção imediata. [...] Era concebível que se descobrissem as causas, a origem e a finalidade do mundo. [...] Era concebível que a sua máquina se revelasse. O mundo moderno, por outro lado, não é fechado em nenhum dos dois sentidos em que era fechado o mundo medieval. [...] O universo que habitamos é, do ponto de vista epistemológico, infinito. [...] O

344 PRADO, Antonio Arnoni. Nacionalismo literário e cosmopolitismo. In:____. Trincheira, palco e letras: crítica, literatura e utopia no Brasil. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p. 19.

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princípio metódico de toda a nossa filosofia e ciência é, desde Descartes, um insuperável princípio negativo: a dúvida. Vivemos na época da dúvida, que é o outro nome para a época da crítica.345

No complexo poético dos anos 1940-50, o resgate da tradição, bem se vê, não se

reduz a mero “pendor para certa dicção nobre” ou ao regresso estéril “a metros e a

formas fixas de cunho clássico”, frequentemente confundido com simples “ornamento”

ou “formalismo” típico dos jovens de 45. Abrindo possibilidades compositivas,

potencializando a expressão lírica e resultando em páginas de alto rendimento estético, a

tensa imbricação da irrecusável modernidade do século XX com a tradição singulariza

os anos 1940-50 na história na lírica brasileira moderna, configurando importante ponto

de convergência entre “novos” e “velhos” na poesia de meados do século passado.

Esse ponto de convergência, a propósito, ratifica a concomitância entre

diferentes gerações, malgrado os esquematismos simplificadores que operam com a

ideia de sucessão geracional, como se não houvesse lapso em que duas ou três gerações

coexistissem em franca atividade. Silviano Santiago aborda a questão na poesia

brasileira a partir do Modernismo:

A gente conta a história do Modernismo a partir do surgimento dos grupos, a geração de 22, depois a geração de 30, depois a geração de 45, mas em 45 Drummond ainda está escrevendo. Se você lê numa história da literatura sobre 45, o que ela está nos falando? Estão falando de João Cabral de Melo Neto, de Lêdo Ivo etc. Se você passa para 58, 59 60, são os concretos. Isso não quer dizer que durante o período concreto Murilo Mendes não estivesse escrevendo. O que existe num momento em que a gente faz uma reflexão mais ampla sobre a história da literatura é que, se você faz um recorte histórico preciso, o que existe é uma coexistência de muitas coisas: a produção de um modernista como Drummond, a de uma geração de 45 como Lêdo Ivo; existe ainda a coexistência dos concretos.346

A “coexistência de muitas coisas”, como bem destaca Santiago, define a

natureza multímoda do que vimos chamando “complexo poético das décadas de 1940-

50”. Além da eclipsada pluralidade da Geração de 45, da produção regular de

modernistas, do advento dos concretistas, este complexo poético conta ainda com a

intervenção de autores que, despontados no período, situam-se à margem de “grupos

literários”. Considerado o momento crucial da publicação do livro de estreia, os anos

345 CICERO, Antonio. Drummond e a modernidade. In:____. Finalidades sem fim: ensaios sobre poesia e arte. São Paulo: Cia. das Letras, 2005. pp. 88-9. 346 SANTIAGO, Silviano. A permanência do discurso da tradição no Modernismo. In:____. Nas malhas da letra. Op. cit., p.143.

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1940-50 testemunham o surgimento de poetas que, submetidos à equação “ano de

nascimento + ano de estreia + contorno estético”, constituem casos dificultosos quanto à

classificação em gerações literárias ou correntes estéticas. É o que ocorre, por exemplo,

com Joaquim Cardozo. Nascido em 1897, “modernista mais ausente do que

participante”347, como destaca Drummond, Cardozo legou ao complexo poético dos

anos 1940-50 seu primeiro livro, Poemas (1947), no qual “reuniu 43 poesias compostas

de 1925 a essa data”348, conforme assinala Péricles Eugênio da Silva Ramos. Se sua

poesia inicial, embora apresente certos “tiques do Modernismo [...], não se erige em

simples decalque do primitivismo pau-brasil”349, tampouco se alinha à “tendência

estetizante” da época em que se lhe publicam os Poemas.

Descompasso semelhante pode ser detectado em Mario Quintana, que, nascido

em 1906, situa-se, neste aspecto, próximo dos poetas da “segunda fase modernista”,

cujos primeiros livros aparecem na década de 1930. No entanto, Quintana estreia em

1940 com um livro de sonetos (A rua dos cataventos, fortemente timbrado, diga-se de

passagem, pela dialética tradição-modernidade), mas a crítica e a historiografia não o

vinculam à Geração de 45, conforme atesta, por exemplo, sua ausência nas antologias

de Milton de Godoy Campos e de Fernando Ferreira de Loanda. A rigor, Quintana é

poeta de difícil classificação, como assenta Sérgio Buarque de Holanda em comentário

a O aprendiz de feiticeiro, publicado em 1950: “pareceria ocioso aproximar seu autor de

qualquer outro poeta, ou tentar situá-lo em alguma escola ou tendência literária

definida”.350 O próprio Quintana comenta a questão em entrevista ao crítico Ricardo

Vieira Lima:

R. V. Lima – O senhor estreou em 1940, com um livro clássico de sonetos. Entretanto, não é considerado um poeta da Geração de 45, apesar de pertencer, cronologicamente, a esse período. O senhor é um poeta sem geração?

M. Quintana – Pertencer a uma escola poética é o mesmo que embarcar num barco que pode ir ao fundo, quando esta escola sair da

347 ANDRADE, Carlos Drummond de. Prefácio a Poemas. In: CARDOZO, Joaquim. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p.36. 348 RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. O Modernismo na poesia. In: COUTINHO, Afrânio (org.). A literatura no Brasil. Op. cit., p. 606. 349 Id., ibid., p. 607. 350 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Resenha de poesia. In:___. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 346.

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moda. O melhor é seguir cada um no seu barquinho, e talvez alguns consigam chegar à outra margem. Isto é: chegar à posteridade.351

A resposta de Quintana encontra eco nas colocações do crítico Harold

Rosenberg, para quem “as gerações não são uma categoria importante”.352 Segundo

Rosenberg, “as opiniões de uma geração jamais significam mais do que uma moda [...].

As novidades de pensamento dependem do trabalho e discernimento de indivíduos e não

das preferências da massa de uma era”.353 O crítico André Seffrin referenda tal premissa

ao analisar o amálgama poético de meados do século XX: recorrendo à “expressão

afortunada” de Fausto Cunha, Seffrin observa que “esse mundo novo resultou numa

convergência estética que dependeu mais do talento de cada um que de um espírito de

geração”.354 Como se vê, muitos dos que se lançaram no correntoso complexo poético

de 1940-50 seguiram o lema de Quintana – “cada um no seu barquinho” – e navegaram

afluentes diversos. Não poucos desaguaram no estuário em que confluem tradição e

modernidade.

Entre eles estão os poetas que compõem o corpus deste trabalho – Américo

Facó, Dante Milano e Mário Faustino. Surgidos sob circunstâncias peculiares, os livros

de poemas destes autores (cada qual assina tão somente um volume de poesia)

representam manifestações líricas singulares, sobretudo quanto analisadas no contexto

estético-literário de que participam. Até este ponto, palmilhamos o curso da poesia

brasileira da primeira metade do século XX à luz da relação entre as duas vertentes que

interessam a este estudo. Postulamos que nos anos centrais do último século, isto é, em

torno do intervalo de 1945 a 1955, a dialética entre tradição e modernidade atinge o

apogeu na história da poesia brasileira moderna. Neste percurso, buscamos apontar as

linhas de força, condicionantes, confluências, correlações, dissensões, contradições,

ambiguidades – a configuração constelada e multiforme, enfim – do complexo lírico em

vigência nos anos centrais do último século, por meio de análise prismática que, ao

cabo, resultasse em visão abrangente daquele estado poético.

351 QUINTANA, Mario apud LIMA, Ricardo Vieira. Centenário do nascimento de Mario Quintana: o poeta, o poema, a obra e a entrevista. In: Revista Brasileira n. 50. Rio de Janeiro: ABL, jan./fev./mar. 2007. p.207. 352 ROSENBERG, Harold. Morte na imensidão. In:____. A tradição do novo. Op. cit., p. 179. 353 Id., ibid. 354 SEFFRIN, André. Anos 50 (prefácio). In:____. Anos 50. Op. cit., pp. 15-6. A referência a Fausto Cunha está em “Itinerário de Mauro Mota”, coligido em CUNHA, Fausto. A luta literária. Op. cit., p. 203.

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Percorrido o “âmbito largo do período, domínio próprio da história literária”,

procederemos agora à sondagem no “âmbito reduzido de cada obra, domínio da análise

crítica”, conforme assentamos nas linhas introdutórias deste trabalho, valendo-nos da

formulação modelar de Antonio Candido. Na próxima etapa, passaremos ao exame de

três volumes que, publicados entre 1948 e 1955, atuam no cerne do complexo poético

que vimos esquadrinhando. São eles: Poesias (1948), de Dante Milano; Poesia perdida

(1951), de Américo Facó; e O homem e sua hora (1955), de Mário Faustino.

Independentemente da vinculação com movimentos ou tendências literárias, essas obras

participam efetivamente do processo lírico dos anos 1940-50, incidindo, assim, na

feição múltipla que o caracteriza. Vejamos, pois, como esses livros se relacionam com a

poesia plurívoca do período – em especial como nelas se articula a dialética tradição-

modernidade.

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6. “Qualquer coisa de agora, mas de

eterno”355: Poesias, de Dante Milano

Em 6.3.1949 saiu no Diário de notícias do Rio de Janeiro o artigo “Mar enxuto”,

no qual Sérgio Buarque de Holanda comenta o surgimento do volume Poesias, de Dante

Milano, publicado no ano anterior. Apesar da extensão diminuta, o escrito encerra

penetrante análise da obra milaniana, sublinhando elementos fundamentais para a

compreensão desse universo poético singular. O texto se inicia com as seguintes

considerações:

O aparecimento, há alguns meses, do volume de Poesias, de autoria de Dante Milano, constitui provavelmente um dos acontecimentos mais importantes de nossa vida literária dos últimos tempos. Nada, nos seus versos, se assemelha profundamente ao que foi escrito entre nós nestes vinte ou trinta anos. E nada os aproxima das formas e das receitas cuja sobrevivência tornou a revolução modernista justificável. A singularidade desta obra não é, entretanto, fruto do afã de ser diferente a qualquer preço, mas descansa, por um lado, na fidelidade do autor a si mesmo, por outro na sua fidelidade a valores poéticos que, irredutíveis embora a fórmulas fixas, são contudo perenes.356

Já na abertura o texto de Sérgio Buarque tange aspectos significativos para o

encaminhamento de questões que nos interessam. De saída o crítico ressalta a

importância do surgimento do volume e destaca a singularidade da obra, que, fiel a

“valores poéticos perenes”, em nada “se assemelha profundamente ao que foi escrito

entre nós nestes vinte ou trinta anos”.

355 MILANO, Dante. Soneto III. In:____. Obra reunida. Op. cit., p. 5. 356 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Mar enxuto. In:____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 96.

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Singularidade e dessemelhança, comecemos por aí. Nascido no Rio de Janeiro

em 1899, o jovem Dante Milano viveu na então capital federal durante a eclosão e a

consolidação do Modernismo. Boa parte de sua apoucada obra poética357 foi composta

por esse tempo, quando conviveu com figuras atuantes no movimento: Manuel

Bandeira, Jaime Ovalle, Ribeiro Couto, Aníbal Machado, Murilo Mendes, Heitor Villa-

Lobos – que lhe musicou os poemas “Vida” e “Saudade da minha vida” (este seria

rebatizado “Saudade do tempo”) –, Portinari, Di Cavalcanti. Antes da Semana,

entretanto, já era autor publicado: “Lágrima negra”, seu primeiro poema dado à

estampa, saíra na revista Selecta n. 15, edição de 10 de abril de 1920. Trata-se de soneto

rimado, vazado em decassílabos heroicos (tirante o último verso, sáfico), prenúncio do

indefectível talhe clássico que em grande medida lhe conformaria a obra. Surge aí a

primeira peculiaridade dessa trajetória: muito embora contemporâneo do Modernismo e

próximo de modernistas praticantes, Milano conservou sua poesia impermeável aos

influxos do movimento. Grande admirador e conhecedor da obra de Dante Milano, de

quem se diz herdeiro e irmão, Ivan Junqueira comenta as relações do poeta com a

corrente de 22:

Dante Milano é, na verdade, anterior ao movimento modernista, do qual participou a distância e ao qual, efetivamente, jamais se filiou nem durante nem depois da festiva e turbulenta década de 1920. Não há dúvida de que apoiou o movimento, pois nele via, como todos os artistas da época, um caminho de libertação estética.358

Não raro, contudo, a crítica e a historiografia atrelam Milano ao movimento de

22: “Manuel Bandeira o situa entre as cinco principais figuras do Modernismo, apesar

de só ter publicado livro tanto tempo depois”359, registra Virgílio Costa; Alceu Amoroso

Lima o classifica, ao lado de Drummond, Jorge de Lima e Murilo Mendes, entre os

“bigs da segunda geração modernista”.360 Não obstante, em entrevista concedida em

1987 à jornalista Denira Rozário, o próprio poeta afirma seu afastamento do

357 O volume Poesias, de 1948, enfeixa 84 poemas, número que foi crescendo à medida que surgiam edições subsequentes. A Obra reunida de Dante Milano, publicada em 2004 sob a organização do professor Sérgio Martagão Gesteira, enfeixa 141 poemas (além de textos poéticos dispersos e uns poucos poemas em prosa), conjunto que corresponde à totalidade de sua poesia publicada. 358 JUNQUEIRA, Ivan. Dante Milano: o pensamento emocionado. In: MILANO, Dante. Obra reunida. Op. cit., p. XXI. 359 COSTA, Virgílio. Apresentação de Dante Milano. In: MILANO, Dante. Poesia e prosa (org. Virgílio Costa). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Núcleo Editorial da UERJ, 1979. p. 13. 360 LIMA, Alceu Amoroso. Modernismo. In:____. Quadro sintético da literatura brasileira. Op. cit., p. 129.

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Modernismo – ou admite uma espécie de adesão descompromissada, movida por

amizade ou simpatia:

Na época em que surgiu o movimento, em 22, o Rio de Janeiro foi muito influenciado por Mário de Andrade através de Manuel Bandeira, meu grande amigo. [...] Não participei do movimento abertamente, só mesmo por intermédio de Manuel Bandeira, porque eu não era modernista, não sou modernista. Mas, como fazia parte de um movimento que ficou com esse nome, acho justo que me chamem de modernista, porque pertencia a esse movimento.361

Fato é que a poesia de Milano não sofreu influência significativa da nova

estética, como sinaliza Sérgio Buarque nas linhas iniciais de seu artigo. O crítico

aprofunda a questão pouco à frente, ainda no mesmo estudo:

A verdade é que Dante Milano sempre se conservou rigorosamente à margem de inovações literárias que pouco lhe ofereciam de atraente, a ele que bebera em fontes antigas e puras. [...] Não tinha certamente o que perder, mas também não tinha o que ganhar da vizinhança imediata daqueles revolucionários. Em 1922 seria poeta formado, e se não me engano, já autor de alguma das peças que compõem o presente volume. Melhor ainda seria dizer, neste caso, que seu contato com as reformas modernistas, quando ocorreu, terá significado para ele, quando muito, um enriquecimento da expressão, jamais uma abdicação deliberada de sua modalidade originária.362

Ivan Junqueira perfilha as considerações de Sérgio Buarque:

O Modernismo pouco ou nada teria a oferecer-lhe em termos de subsídio literário ou de plataforma estética. E mais: à época da agitação modernista, o poeta Dante Milano já estava pronto, infenso, portanto, a quaisquer aquisições mais profundas e radicais do ponto de vista formal, ainda que aberto e sensível às conquistas expressionais do movimento.363

O próprio Milano dá boa demonstração da dissidência estética que o separa do

Modernismo ortodoxo. Em passagem impregnada de ironia, o poeta elabora um

inventário do léxico tipicamente “modernista”, cujo resultado é um universo verbal – e,

por extensão, um cosmo poético – em tudo oposto ao fundado por sua poesia:

361 MILANO, Dante. Entrevista. In: ROZÁRIO, Denira. Palavra de poeta: coletânea de entrevistas, antologia poética. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. p. 42. 362 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Mar enxuto. In:____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., pp. 96-7. 363 JUNQUEIRA, Ivan. Dante Milano: o pensamento emocionado. In: MILANO, Dante. Obra reunida. Op. cit., p. XXI.

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Há alguns anos era fácil improvisar-se um poeta “modernista” com o seguinte vocabulário: arranha-céu brasil café você pra gostoso bonito batuta negra mulata cidade uísque bar carnaval samba jazz batuque chope telefone edifício escritório fábrica rádio operário anúncio asfalto aeroplano vitrola motor guindaste oficina marinheiro dentista soldado hélice objetivo concreto dinâmico buzina rapazes telegrama esporte moça pneumático engrenagem clube violão cinema engraçado malandro subúrbio saxofone guarda-chuva elétrico cigarro coletivo bicicleta automóvel.364

Com efeito, haurida das “fontes antigas e puras” da tradição, a poética de

Dante Milano não se deixa seduzir pelo palavrório modernoso nem pelos símbolos

batidos do “progresso” e da “brasilidade”, tampouco sucumbe ao coloquialismo que

aglutina tais elementos nos versos libérrimos de seus coetâneos. Como destaca Ivan

Junqueira, “o chamado lirismo cotidiano, tão explorado pelos modernistas, ou o humor

pedestre do poema-piada praticamente inexiste nos versos do autor”.365 Sua alquimia é

bem outra: padrões poemáticos clássicos – há em Milano nítido predomínio de formas

fixas, versos medidos e rimados366 – nos quais ressuma a cáustica modernidade (não o

Modernismo) que confrange a primeira metade do século XX. Eis a “sua modalidade

originária” que, ao promover tal mescla de forma toda própria, revela-se também

original.

Rastreando-lhe o interesse por autores do passado, é possível recompor a

linhagem a que pertence Milano, na qual se entretecem diferentes modernidades em

franco diálogo com a tradição. Admirador de Homero – “o primeiro e o maior poeta do

mundo”367 – e Virgílio, “tradutor admirável de extensas passagens da Divina

comedia”368 e de poemas de Mallarmé e Baudelaire, Dante Milano teve sua “linguagem

poética aprimorada na familiaridade com os italianos do Trezentos e do Quinhentos,

com o lirismo camoniano, com as experiências do Simbolismo e do pós-

Simbolismo”369, como aponta Sérgio Buarque. Seus estudos sobre Giacomo Leopardi e

Augusto dos Anjos (além dos dedicados a Dante Alighieri, Mallarmé e Baudelaire) não

apenas manifestam a afeição por estes autores e a intimidade com suas obras como

364 MILANO, Dante. Anotações. In:____. Obra reunida. Op. cit., p. 361. 365 JUNQUEIRA, Ivan. Dante Milano: o pensamento emocionado. In: MILANO, Dante. Obra reunida. Op. cit., p. XXXIV. 366 Além dos 84 textos constantes da primeira edição das Poesias (1948), às quais circunscrevemos nossa análise e que, como se verá, colige considerável número de poemas vazados em versos polimétricos e livres, a obra poética de Dante Milano abrange dezenas de outras peças em que preponderam as formas fixas e a isometria. 367 MILANO, Dante. Entrevista. In: ROZÁRIO, Denira. Palavra de poeta. Op. cit., p. 50. 368 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Mar enxuto. In:____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 96. 369 Id., ibid.

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também atestam o influxo de vozes que, vindas de diversos lugares e de diferentes

momentos, ostentam cada qual a seu modo um timbre moderno. Nesta genealogia

poética o crítico Davi Arrigucci Jr. identifica “a linhagem da tradição que norteia a sua

própria tendência à poesia reflexiva, para a qual uma ideia obscura pode valer mais que

uma grande ideia clara, e a simplicidade é um fim buscado a custo”.370

Poesias

O livro único de Dante Milano é marcado de singularidades. Chama a atenção o

fato de o volume ter sido editado quase à sua revelia, quando o poeta já se avizinhava

dos 50 anos. Ivan Junqueira fala da malograda tentativa da primeira edição:

Um amigo, Queirós Lima, pediu-lhe emprestado os originais e levou-os para a Imprensa Nacional. Cerca de dois meses depois reapareceu com as provas e solicitou ao poeta que fizesse as emendas. Mas estas foram tantas que a Imprensa Nacional se recusou a publicar o volume.371

Virgílio Costa, organizador da Poesia e prosa de Milano (1979), acrescenta

detalhes da malsucedida empreitada na Imprensa Nacional e a subsequente publicação

noutra casa editora:

[Estava] o livro já para entrar em máquina, após composição trabalhadíssima. “Mas já está tudo pronto, Dante”; “Sem as emendas não sai nada”. E mais uma vez não saiu o livro. Tempo depois, seu amigo Tomás Santa Rosa, o admirável artista plástico, indo trabalhar na Imprensa Nacional, ali encontrou os originais, fez todas as

370 ARRIGUCCI JÚNIOR, Davi. A extinta música. In: ____. Outros achados e perdidos. São Paulo: Cia. das Letras, 1999. p. 186. 371 JUNQUEIRA, Ivan. Dante Milano: o pensamento emocionado. In: MILANO, Dante. Obra reunida. Op. cit., p. XIX.

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alterações que Dante queria e, finalmente, saiu o livro, com o selo da Livraria José Olympio.372

Em 1987 o poeta comentou o desinteresse pelo surgimento do volume: “Eu não

publiquei, publicaram contra a minha vontade. Não pretendia publicar livro nenhum

enquanto estivesse vivo. A popularidade me repugna”.373 Ao que parece, foi mesmo a

“ojeriza à popularidade”374 e ao “rumor de falsa glória”375 que retardou a estreia de

Milano, e não o fato de se tratar de “poeta bissexto”376, como afirmou Vinicius de

Moraes. “Dizer-se que, entre 1920 e 1948 – quando saiu a primeira edição das

Poesias –, haja ele se conservado na condição de bissexto não procede: Dante escrevia

muito – e muitíssimo destruiu do que escreveu –, conquanto nada publicasse em livro

até aquela data”377, assinala Ivan Junqueira. No mesmo passo, Virgílio Costa afirma:

“Dante escrevia, publicava colaboração nos suplementos, mas nada de livros”.378

Manuel Bandeira, que registra escassas aparições de poemas de Milano “em revistas

literárias, notadamente no Boletim de Ariel e em Autores e livros”379, desdiria o caráter

eventual da produção do poeta ao não incluí-lo na Antologia de poetas brasileiros

bissextos contemporâneos, organizada em 1946 pelo autor de Libertinagem.

Os poemas, afinal, foram editados em 1948. “Mal o volume das Poesias saiu do

prelo, um coro de louvores saudou-o”380, informa Manuel Bandeira. Exemplo da boa

acolhida está no parágrafo introdutório do artigo de Sérgio Buarque de Holanda,

reproduzido na página 108 deste trabalho. À efusiva recepção da crítica seguiu-se o

Prêmio Felipe d’Oliveira – “na época, o prêmio mais importante do Brasil”381, segundo

o próprio Milano –, láurea concedida às Poesias pela Academia Brasileira de Letras.

Esta primeira edição colige 84 poemas distribuídos em sete seções: “Sonetos e

fragmentos”, “Algumas canções”, “Reflexos”, “Distâncias”, “Terra de ninguém”,

“Paisagens submersas” e “Variantes de temas antigos”. Os segmentos apresentam, em

maior ou menor grau, traços temáticos e formais característicos, mas o que prevalece no 372 COSTA, Virgílio. Apresentação de Dante Milano. In: MILANO, Dante. Poesia e prosa. Op. cit., p. 11. 373 MILANO, Dante. Entrevista. In: ROZÁRIO, Denira. Palavra de poeta. Op. cit., p. 42. 374 Id., ibid., p. 41. 375 Id., Glória morta. In:____. Obra reunida. Op. cit., p. 45. 376 MORAES, Vinicius apud BANDEIRA, Manuel (org.). Antologia de poetas brasileiros bissextos contemporâneos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p. 7. 377 JUNQUEIRA, Ivan. Dante Milano: o pensamento emocionado. In: MILANO, Dante. Obra reunida. Op. cit., p. XXI. 378 COSTA, Virgílio. Apresentação de Dante Milano. In: MILANO, Dante. Poesia e prosa. Op. cit., p. 11. 379 BANDEIRA, Manuel. Grandes poetas do Brasil – Dante Milano. Ibid., p. 334. 380 Id., ibid. 381 MILANO, Dante. Entrevista. In: ROZÁRIO, Denira. Palavra de poeta. Op. cit., p. 42.

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volume – e de resto em toda a poesia de Dante Milano – é a “unidade de sua forma

poética de grande pureza”382, conforme salienta Vinicius de Moraes, acompanhado de

perto por Ivan Junqueira, que atesta: “O que chama logo a atenção [na obra de Milano]

é sua irrepreensível unidade – unidade de forma, de estilo, de linguagem, de abordagem

temática, de ritmo e até de vocabulário”.383

A primeira seção, “Sonetos e fragmentos”, é a mais extensa do volume.

Reunindo 20 poemas, o segmento se inicia com uma sequência de dez sonetos

monóstrofos, decassilábicos (tirante poucos versos vazados em metro próximo, como o

hendecassílabo) e rimados. Completam a série outros dez poemas igualmente

isométricos e obedientes à rima, compostos em sua maioria por estrofes regulares. O

decassílabo impera em toda a seção: definidora nos dez sonetos, a medida é quase única

nos dez outros poemas. As exceções ficam por conta de “Cantiga”, vazado em

tradicionais redondilhas maiores, e “Formato do lírio”, em que se alternam decassílabos

e hexassílabos. Saliente-se a propósito a inter-relação entre estas medidas: o hexassílabo

equivale ao primeiro hemistíquio do largamente empregado (por Milano, inclusive)

decassílabo heroico (acentuado na sexta sílaba).

Desempenhando importante papel na estrutura do livro, a configuração formal

das Poesias – e em especial a dos “Sonetos e fragmentos” – revela o influxo

fundamental da tradição na poética de Dante Milano. “Formado na dura escola de

Dante”384, como sublinha Manuel Bandeira, o poeta manipula com mestria a consagrada

técnica do verso e do poema, dela extraindo muito mais do que a previsível e

edulcorante melopeia dos metros clássicos: em Milano, os elementos formais e

estruturais se consorciam intimamente com o sentido manifestado pelo texto, o que

concorre sobremodo para a expressividade de sua poesia.

O vínculo do poeta com a tradição afirma-se, pois, já na abertura das Poesias,

seja na primazia quase absoluta dos decassílabos, seja na regularidade estrutural

(estrófica, métrica, rímica) dos poemas, seja na emblemática sequência de sonetos que

introduz o volume. A propósito, os dois últimos sonetos da série, calcados na lírica

382 MORAES, Vinicius apud BANDEIRA, Manuel (org.). Antologia de poetas brasileiros bissextos contemporâneos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p. 7. 383 JUNQUEIRA, Ivan. Dante Milano: o pensamento emocionado. In: MILANO, Dante. Obra reunida. Op. cit., p. XXIV. 384 BANDEIRA, Manuel. Grandes poetas do Brasil – Dante Milano. In: MILANO, Dante. Poesia e prosa. Op. cit., p. 334.

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amorosa camoniana, intitulam-se “Homenagem a Camões”, I e II,385 afirmando-se

assim, de forma mais ostensiva, o diálogo com as matrizes da poesia ocidental, em

particular com a lírica de língua portuguesa.

O poeta e crítico José Lino Grünewald afirma que “o soneto é a mais popular e,

agora, tradicional, das formas fixas”.386 Estudiosos indicam seu surgimento na Itália do

século XIII, sendo ainda hoje empregado como modelo compositivo. Massaud Moisés

propõe explicação para tal permanência:

Do século XVI, quando começa a sua divulgação fora da Itália, até hoje, o soneto tem estado sempre em posição de relevo. [...] Tão compacta resistência ao desgaste se deve certamente às suas características peculiares, que o individualizam e o salientam facilmente dentre as demais formas poéticas, ou seja, sua breve extensão [...] como a exigir a concentração e a economia de meios típicas das obras perfeitas: [...] a limitação material casa bem com a contenção e profundidade do pensamento poético.387

Em que pese a aura clássica que a tradição insufla no soneto, sua ocorrência na

poesia moderna não significa, em absoluto, retrocesso ou anacronismo estético.

Discorrendo sobre a prática desta forma fixa na poesia de Vinicius de Moraes, Ivan

Junqueira alude à “moderna concepção”388 que nela imprime o autor dos Poemas,

sonetos e baladas. Também Milano introduz contraponto moderno no reprocessamento

do acervo da tradição, como destaca Junqueira, para quem “a intrínseca

modernidade”389 é elemento “que esplende [...] em todos os rigorosos sonetos que nos

legou um poeta tão atual (eu diria eterno) quanto Dante Milano”.390

A conjunção entre o tradicional e o moderno, presente não apenas nos sonetos

mas em toda a poesia de Milano, parece prenunciada no título com que o poeta designa

o segmento de abertura das Poesias. A julgar pelo nome, a seção reuniria sonetos e

fragmentos poéticos – quiçá textos que, diferentemente do (ou mesmo opostos ao)

385 Na primeira edição das Poesias, os oito primeiros sonetos do segmento inicial têm por título algarismos romanos de I a VIII. Completam o grupo os sonetos “Homenagem a Camões I” e “Homenagem a Camões II”. Nas edições seguintes, ambos foram incorporados à sequência numérica, passando a figurar com os títulos “IX” e “X”, sendo que o soneto “IX” preservou o subtítulo “Homenagem a Camões”. 386 GRÜNEWALD, José Lino (org.). Grandes sonetos da nossa língua. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. p. 21. 387 MOISÉS, Massaud. A criação literária: poesia. São Paulo: Cultrix, 2003. p. 274. 388 JUNQUEIRA, Ivan. Vinicius de Moraes: língua e linguagem poética. In:____. Ensaios escolhidos (v.1). Op. cit., p. 266. 389 Id., ibid., p. 267. 390 Id., ibid.

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soneto, de alguma forma tendessem à fragmentação, fosse no plano formal ou

discursivo. No entanto, aos dez sonetos monóstrofos (caráter que lhes acentua a

unidade) seguem-se outros dez poemas perfeitos, isto é, igualmente inteiriços,

rematados, cabais. A que se deve, pois, a presença do substantivo “fragmentos” a

nomear o primeiro e mais extenso conjunto das Poesias? Talvez aí já se indicie o enlace

entre a feição tradicional (dicção austera, formas fixas, versos medidos, estrofes

regulares, esquemas rímicos rigorosos) e um certo páthos instilado pela modernidade,

marcada pelo sentimento de dilaceramento, fragmentação e dispersão do indivíduo e do

mundo que o cerca.

Sintetizando elementos basilares do universo poético de Dante Milano, o

primeiro soneto das Poesias configura uma espécie de “carta de intenções” a antecipar a

tônica do livro. Nele comparecem aspectos importantes que se desdobrarão nos demais

poemas, os quais, articulados em sua “irrepreensível unidade de forma, de estilo, de

linguagem, de abordagem temática, de ritmo e até de vocabulário”, comporão o cosmo

milaniano, clássico e moderno a um só tempo. Analisemos o soneto que abre o volume:

I 391

Horizonte cerrado, baixo muro, A névoa como uma montanha andando, O céu molhado como mar escuro. Por muito ainda tempo fiquei olhando A terra transformada num monturo. Por muito tempo ainda ficou ventando. Cravei no espaço lívido o olhar duro E vi a folha no ar gesticulando, Ainda agarrada ao galho, antes do salto No abismo, a debater-se contra o assalto Do vento que estremece o mundo e, então, Sumir-se em meio àquele sobressalto, Depois de muito sacudida no alto E de muito arrastada pelo chão...

Apesar de monóstrofo, o poema pode ser dividido, para fins de análise, em duas

partes: uma que se estende do início ao sexto verso; a outra, da sétima linha ao final. O

primeiro trecho descreve um cenário brumoso de iminente tempestade, envolto em

espesso nevoeiro, “céu molhado” e “espaço lívido” varrido pelo “vento que estremece o

mundo”. Atento à paisagem sombria, desponta o sujeito poético, e a partir de sua visada 391 MILANO, Dante. Soneto I. In:____. Obra reunida. Op. cit., p. 5.

3 6 9

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desenrola-se o segundo movimento do poema: a breve narrativa em torno de uma folha

pendida de um galho à beira do abismo, a qual, sacudida pela ventania inclemente, finda

por “sumir-se em meio àquele sobressalto”.

A ambiência soturna instaurada neste soneto envolve boa parte dos domínios

poéticos de Dante Milano. O verso inicial (que é também, frise-se, o verso de abertura

do livro) introduz a atmosfera opressiva que cingirá o poema: à noção de amplitude

comumente evocada por “horizonte”, signo assentado numa perspectiva espacial

idealmente ilimitada, justapõe-se, em contraste, o conceito restritivo do adjetivo

“cerrado”. Instala-se assim um arranjo semântico em que “horizonte” esvazia-se da

ideia de infinitude e libertação e, transmudado em elemento limitativo, passa a

circunscrever e emoldurar um quadro aflitivo e desacolhedor. O apelo restringente de

“Horizonte cerrado” se reforça e amplifica com a aposição do sintagma “baixo muro”, o

qual, acionando a imagem de “parede forte que circunda um recinto”392, agudiza o

fechamento imposto pelo sintagma anterior. Na sequência, o símile que solidifica a

inconsistente “névoa” em maciça “montanha” – e lhe converte o leve flutuar em andar

compacto e improvável – concorre para endurecer os contornos de um panorama que

resulta “vedado” pelo denso negrume de um “céu molhado como mar escuro”. O quarto

verso remata e resume de maneira definitiva o debuxo sinistro: a imagem da “terra

transformada num monturo”, fustigada “por muito tempo ainda” pelo vento atroz,

perfaz a descrição preparatória do movimento central do poema, iniciado em seguida.

O sétimo verso realça a natureza empedernida do painel explorado pelo sujeito

poético, que crava no espaço lívido o olhar duro. Considerada a solidez do cenário, o

verbo “cravar” aciona engenhosa polissemia, na qual convergem a acepção primeira

(“fixar, prender alguma coisa com pregos, cravos etc. em”) e um sentido subsidiário

(“fixar com profundidade o olhar em alguém ou algo; fitar”).393 Ao mesmo tempo que

se encrava na configuração pétrea da cena que divisa, o olhar duro do poeta revela-se

também petrificado – estupefato, tomado de espanto – diante da paisagem aterradora e

do destino inapelável da folha, cujos suplícios serão matéria do segundo movimento do

soneto.

Atraindo o olhar duro do sujeito poético, “a folha [...] ainda agarrada ao galho”

aparece no oitavo verso, mortificada pelo vendaval implacável. Estabelece-se nesta

392 Cf. Dicionário Aurélio Eletrônico (versão 3.0), op. cit. 393 Ibid.

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imagem a assimetria de forças que travarão o duelo fatal: de um lado a potência

assombrosa “do vento que estremece o mundo”; de outro, a fragilidade da folha, que

inexoravelmente sucumbe ao “assalto do vento”, “depois de muito sacudida no alto/ e

de muito arrastada pelo chão”.

A leitura superficial informa tratar-se de registro poético de cena corriqueira –

uma folha arrancada do galho pela ventania –, reelaborada de forma quase

cinematográfica em monóstrofo majoritariamente decassilábico, no qual discrepam os

hendecassílabos das linhas 4 e 6, cujo alongamento, nada gratuito, reflete-lhes o teor

semântico. Ainda à superfície, o apuro técnico, o hábil manuseio da linguagem, a

cadência envolvente, o forte apelo imagético constituiriam elementos necessários e

suficientes à eficaz mimetização no plano poético de um evento singelo extraído do real.

Contudo, sob a aparente trivialidade da cena e a técnica refinada do autor, o poema

parece ocultar bem mais do que revela à flor do texto. A detecção e compreensão do

substrato moderno que se infiltra no soneto é a senha para se acessarem sentidos latentes

nestes versos.

O descortino de outras significações reclama a leitura do poema pelo viés da

alegoria, expediente compositivo de que fala Antonio Candido em O estudo analítico do

poema:

Alegoria é a “representação corporificada (verlebendige) de um conceito abstrato” (art. “Allegorie”, Kleines Literarisches Lexikon), por meio de um signo, uma descrição, uma pequena sequência narrativa. É condição que o conceito visado esteja claramente implícito, sendo que às vezes é também expresso pelo próprio autor, como é obrigatório no caso extremo da fábula [...]. Tecnicamente poder-se-ia dizer que “a alegoria descreve conscientemente o geral e o abstrato no particular” [...]. Na alegoria há portanto: 1) um elemento narrativo embrionário; 2) uma representação descritiva, mais ou menos configurada; 3) uma certa evidência da abstração visada; 4) uma intenção consciente do poeta que se torna clara para o leitor.394

O exame do soneto à luz do que assenta Antonio Candido aponta para o caráter

alegórico que parece orientá-lo no propósito de lograr a “representação corporificada de

um conceito abstrato” num microcosmo “concreto” erigido no e pelo poema. Candido

alude a quatro componentes estruturantes da alegoria, sendo os dois primeiros “uma

representação descritiva, mais ou menos configurada”, e “um elemento narrativo

394 CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Humanitas Publicações / FFLCH/USP, 1996. pp. 79-80.

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embrionário”, elementos respectivamente dispostos, como se viu, nas duas partes em

que dividimos o soneto para fins de análise. Vejamos, pois, como se manifestam “uma

certa evidência da abstração visada” e a “intenção consciente do poeta” de amplificar o

sentido de seu texto.

A leitura pautada pela construção alegórica revela que o poema se vale da

representação simbólica da natureza para plasmar um universo torvo e tormentoso, cuja

atmosfera soturna e opressa evoca de pronto o mal-estar essencial do homem moderno,

lançado à voragem de um mundo de flagelos e impermanências, a um só tempo seu

patíbulo e seu algoz. Marshall Berman fala sobre o potencial de aniquilamento da

modernidade:

Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. A experiência ambiental da modernidade [...] nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, “tudo o que é sólido desmancha no ar”.395

Articulando, como prevê Antonio Candido, “uma descrição [e] uma pequena

sequência narrativa”, o soneto que serve de pórtico ao universo milaniano encena, pela

via da alegoria, a “experiência ambiental da modernidade” de que fala Berman. Folha

“agarrada ao galho” à beira do abismo da existência, à mercê da ingente ventania e do

fatídico destino: eis o homem moderno, impotente em meio ao “turbilhão de

permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e

angústia”. Projetada no plano alegórico, a aproximação entre folha e homem se insinua

também no estrato linguístico, por meio da arregimentação léxico-discursiva com que o

poeta anima o signo “folha”. Inerte e impassível no mundo real, a folha, no soneto de

Milano, se reveste de potência moral e vigor físico, como que personificada, assumindo

capacidade de ação: ela gesticula no ar (v.8), agarra-se ao galho (v.9), salta (em vez de

“cair”, passivamente) no abismo (v.9), debate-se contra o assalto do vento (v.10). Muito

embora baldados na peleja contra o vendaval (ou também por isso), o esforço da folha e

sua altiva resistência logram humanizá-la. O liame alegórico entre folha e homem se

mantém até o final do poema, quando, já restituída à passividade originária (“sacudida

395 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Op. cit., p. 24.

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no alto”, “arrastada no chão”), a folha inapelavelmente sucumbe ao destino fatal a que

estamos todos fadados.

A construção poética franqueia-se, assim, a outra(s) leitura(s), acionada(s) por

intermédio de procedimentos retóricos associativos. No “Soneto I”, o locus desolado

mimetiza o sentimento de precariedade e desamparo do sujeito poético – pelo qual fala,

metonímica e alegoricamente, o próprio homem da modernidade em sua “dramática

consciência agônica de si mesmo e da existência”396, tema nuclear da “dolorosa e

crispada mentação poética”397 de Dante Milano. Tratando do gênero lírico e seus traços

estilísticos fundamentais, o crítico e teórico Anatol Rosenfeld sublinha a estratégia

compositiva de promover “a fusão da alma que canta com o mundo, não havendo

distância entre sujeito e objeto”.398 Segundo Rosenfeld, neste processo “o mundo, a

natureza [...] são apenas evocados e nomeados para, com maior força, exprimir a

tristeza, a solidão ou a alegria da alma que canta”.399 É desta fusão da alma com o

mundo que fala André Gide num fragmento de suas Notes d’un Voyage en Bretagne

citado por Gaston Bachelard: “a paisagem não passava de uma emanação de mim

mesmo projetada, de uma parte de mim toda vibrante [...]; eu era a sua própria

consciência”.400

Outro aspecto que chama a atenção no soneto introdutório das Poesias é a

poderosa imagística acionada na configuração do cenário sombrio e na diminuta

narrativa desencadeada a partir da oitava linha. A engenhosa sucessão de quadros e

imagens imprime ao poema tal dinamismo que o leitor, ao correr dos versos, parece

converter-se em espectador do poema. O manejo hábil do ritmo, tanto na arquitetura do

verso (o andamento decassilábico pontuado, nas linhas 4 e 6, pelo expressivo

prolongamento do hendecassílabo) quanto na elaboração discursiva (atente-se que as

linhas 7 a 14 articulam-se em período único, cuja cadência ininterrupta subsidia

sobremodo a impressão de “movimento” a animar a breve narrativa), concorre para o

efeito cinético que embala o “Soneto I”. A propósito, em Dante Milano a consciência

rítmica exerce papel de relevo, como ressalta Sérgio Buarque de Holanda no arguto

exame das Poesias, nas quais, segundo o crítico, “o ritmo é guiado [...] não pelo ouvido 396 JUNQUEIRA, Ivan. Dante Milano: o pensamento emocionado. In: MILANO, Dante. Obra reunida. Op. cit., p. XXVI. 397 Id., ibid. 398 ROSENFELD, Anatol. A teoria dos gêneros. In: O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 1985. p.23. 399 Id., ibid. 400 GIDE, André apud BACHELARD, Gaston. In: FERREIRA, Agripina Alvarez. Dicionário de imagens, símbolos, mitos, termos e conceitos bachelardianos. Londrina: EDUEL, 2008. p. 38.

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apenas, mas também e principalmente pelo sentido”401, resultando “em verdadeiro ritmo

semântico”.402 Em seu estudo, Sérgio Buarque procede a minuciosa análise da

“expressão rítmica” (“essencial na consideração da poesia de Dante Milano”403), com

farta exemplificação, para concluir: “seria possível estender indefinidamente o exame

das variações expressivas no ritmo da poesia de Dante Milano”.404

No estudo Altas literaturas, a crítica Leyla Perrone-Moisés, alicerçada no

“consenso de uma comunidade transnacional de criadores literários, formadores de

gosto e de opinião em sua área, através de várias décadas do século XX”405, delineia “a

axiologia de uma certa modernidade literária”406, na qual figura a intensidade. De

acordo com Perrone-Moisés, “a intensidade moderna [...] é uma questão de manutenção

do ritmo pelo manejo da surpresa, do estranhamento, do humor, [o que] mantém o leitor

em alerta permanente”. Alinhada a esta “intensidade moderna”, a “expressão rítmica”

que Milano imprime nas Poesias corresponde a outra marca de modernidade em sua

obra.

A tábua de “valores modernos” proposta por Leyla Perrone-Moisés oferece

interessantes subsídios para a leitura de Dante Milano. Ostensiva no soneto inaugural e

em diversos outros textos das Poesias, a visualidade também participa do recorte

axiológico proposto em Altas literaturas. Ivan Junqueira exemplifica a plasticidade da

poética milaniana no “magistral ‘Baixo-relevo funerário’, [...] cujos versos nos induzem

antes a ver a cena ali gravada do que a ler o texto grafado”.407 O poema mencionado por

Junqueira integra a seção “Distâncias”; o intenso apelo visual que o caracteriza,

resultado de requintada elaboração imagética, constitui traço recorrente desta poesia

pródiga “em formas corpóreas e tangíveis”.408 Segundo Perrone-Moisés, “a capacidade

de evocar visões nítidas e surpreendentes é frequentemente louvada pelos escritores- 401 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Mar enxuto. In:____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 100. 402 Id., ibid. 403 Id., ibid., p. 102. 404 Id., ibid., p. 101. 405 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas literaturas: escolha e valor na obra crítica de escritores modernos. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. p. 154. Nesse estudo Leyla Perrone-Moisés funda-se na obra de escritores-críticos de diferentes nacionalidades que exerceram grande influência na literatura e na crítica literária do Ocidente ao longo do século XX: Ezra Pound, T.S. Eliot, Jorge Luis Borges, Octavio Paz, Italo Calvino, Michel Butor, Haroldo de Campos e Philippe Solers. Analisando as preferências de tais autores, Perrone-Moisés elabora uma espécie de cartografia de “valores modernos” (técnicos, estéticos, estilísticos, discursivos) definidores do que ela denomina “axiologia de uma certa modernidade literária”. 406 Id., ibid. 407 JUNQUEIRA, Ivan. Dante Milano: o pensamento emocionado. In: MILANO, Dante. Obra reunida. Op. cit., p. XLI. 408 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Mar enxuto. In:____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 97.

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críticos”409 e se legitima como “valor moderno” devido à “importância do visual na

sociedade do século XX, pelo desenvolvimento e a generalização das técnicas de

reprodução”410 de imagem, como o avanço e a popularização da fotografia e do cinema

e o advento da televisão. Isso “torna os modernos mais atentos a esse modo de

apreensão do real”.411 Em diálogo com uma cultura fortemente marcada pela presença

contínua da imagem, a visualidade insculpida nas “imagens evocadas [e] trabalhadas

dos escritores”412, como Dante Milano, insere na obra literária dado característico da

modernidade.

Além de elementos estilístico-compositivos, vetores de outra ordem participam

da “extraordinária síntese entre passado e futuro, entre classicismo e

contemporaneidade”413 realizada pela poesia milaniana. Pedra angular dessa obra, o

sentimento de desamparo e desalento que permeia o soneto de abertura das Poesias

vinca fundamente o espírito do segundo quartel do século XX. Discorrendo sobre a

poesia de Drummond na fase que se estende de A rosa do povo a Claro enigma, ou seja,

de 1945 a 1951, Alfredo Bosi esboça um sensível painel desse “tempo reificado até à

medula pela dificuldade de transcender a crise de sentido e de valor que rói a nossa

época”414, na qual se engendra uma “civilização [...] fortemente amarrada ao

neocapitalismo, à tecnocracia, às ditaduras de toda sorte”.415 Em meio ao desencanto e à

“aridez desenganada” do pós-guerra, Bosi alude a certas “linhas centrais do pensamento

moderno”416, destacando a que se esteia sobre a “abolição de toda crença, o apagar-se de

toda esperança”:

Freud, retomando uma ideia-força de Schopenhauer, afirmou, em Além do princípio do prazer: “Se, como experiência, sem exceção alguma, temos de aceitar que todo ser vivo morre por fundamentos internos, voltando ao inorgânico, poderemos dizer: o objetivo de toda vida é a morte”. [...] Outra não era a visão de Leopardi, que recebera dos Setecentos o sensismo lucreciano calcinado pelo riso de Voltaire; outra não é a moral inerente à ontologia de Heidegger, para a qual a vida autêntica é a que tem por horizonte único a certeza da morte. A abolição de toda crença, o apagar-se de toda esperança trazem consigo o autofechamento do espírito, que se crispa [...], recusando-se a operar

409 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas literaturas. Op. cit., p. 158. 410 Id., ibid. 411 Id., ibid. 412 Id., ibid. 413 JUNQUEIRA, Ivan. Dante Milano: o pensamento emocionado. In: MILANO, Dante. Obra reunida. Op. cit., p. XXXV. 414 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. Op. cit., p. 444. 415 Id., ibid., p. 441. 416 Id., ibid., p. 442.

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o salto, a ruptura, a passagem, que lhe parecem apenas como ilusões a perder.417

“Este é o universo mental onde estamos inseridos”418, e dele não escapa a poesia

milaniana. Sinalizados já no soneto de abertura, “a certeza da morte”, “a abolição de

toda crença”, “o apagar-se de toda esperança”, “o autofechamento do espírito, que se

crispa”, participam intensamente da cosmogonia deste universo poético, reino torvo a

orbitar à volta do vazio ontológico fundamental de que fala Nietzsche, quando

sentencia: “Nós, almas modernas, [...] nós mesmos somos uma espécie de caos”.419

Imersa na “atmosfera saturada de consciência crítica”420 do aturdido século XX, a

poesia de Milano frequentemente se reveste de certa aspereza que lhe confere uma

feição “antipoética”, como assinala Paulo Mendes Campos: “Dante Milano é o poeta

antipoético, o poeta do desespero”.421 Sobre as Poesias Mendes Campos afirma: “Em

todos os poemas deste livro, encontramos o mesmo timbre árido: em vez de sonho, o

pesadelo; em vez da fantasia, a angústia; em vez do amor, um arremedo de posse bruta.

[...] Esta poesia é sinistra, nua, desértica”.422 De fato, as Poesias plasmam um mundo

em que “tudo é exílio”423, assolado pelo cansaço (“Não sei de que cansaços me proveio/

O peso que carrego sobre os ombros”424), pelo tédio (“Reveste-me um falso tédio/ Que

adia o inútil suicídio”425), pela errância (“E este pressentimento indefinido/ Que causa a

impressão de andar perdido /.../ Assim percorro uma existência incerta”426), pela culpa

(“Sou um homem culpado de ser homem”427), pela desproteção (“A vida é uma batalha

e estou sem armas”428), pelo niilismo (“A vida é tempo perdido”429), pela desesperança

(“Já não acredito/ Na felicidade”430).

Em todo o primeiro bloco das Poesias se detecta facilmente esta modulação

tipicamente moderna, nota dissonante nos clássicos sonetos e demais poemas de

417 Id., ibid., p. 442-3. 418 Id., ibid., p. 439. 419 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal (trad. Paulo César de Souza). São Paulo: Cia. das Letras, 2005. p. 115 420 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. Op. cit., p. 439. 421 CAMPOS, Paulo Mendes. O antilirismo de um grande poeta brasileiro. In: MILANO, Dante. Poesia e prosa. Op. cit., p. 345. 422 Id., ibid., p. 346. 423 MILANO, Dante. Princípio da noite. In:____. Obra reunida. Op. cit., p. 46. 424 Id., ibid. Soneto VI, p. 8. 425 Id., ibid. Canção inútil, p. 27. 426 Id., ibid. Soneto III, p. 5. 427 Id., ibid. Tercetos, p. 19. 428 Id., ibid. Trégua, p. 56. 429 Id., ibid. Cantiga, p. 18. 430 Id., ibid. Saudade do tempo, p. 24.

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extração “tradicional”. Ao longo do livro, tradição e modernidade se tensionam em

diferentes graus, notadamente na conjunção entre forma e teor, o que define em grande

medida a feição específica de cada bloco de poemas. O aspecto formal desempenha,

assim, importante papel neste jogo de forças. Em “Sonetos e fragmentos”, por exemplo,

a tradição se afirma na forma austera dos poemas e no talhe preciso dos versos, que no

entanto exprimem um pensamento e uma mundividência intrinsecamente modernos. As

seções seguintes, por sua vez, revelam a atenuação paulatina da rigidez formal, o que

parece servir a um propósito estruturante na composição do livro.

À semelhança do anterior, o título do segundo segmento – “Algumas canções” –

menciona forma poemática tradicional, sendo a canção (gênero que “abrange vários

tipos de poema”431, como ensina Sânzio de Azevedo) mais dúctil que o soneto. Também

assim o segundo bloco das Poesias, que apresenta maior diversidade de formas e

metros. Nele não há o rigoroso decassílabo, dominante nos “Sonetos e fragmentos”, mas

a regularidade ainda é a tônica: sete das oito peças do conjunto se conformam em versos

metrificados. Ao lado dos heptassílabos empregados em três textos, linhas com duas,

quatro, cinco e oito sílabas modelam os outros quatro poemas isométricos. A exceção é

“Canção bêbeda”, cujo título sintomático antecipa a incidência de versos polimétricos

(os primeiros das Poesias), oscilantes em torno da redondilha maior, distribuídos por

estrofes de variada extensão.

Convém sublinhar que, no tocante à configuração formal do verso, isometria e

versilibrismo correspondem aos extremos de uma escala de “rigor compositivo”

relacionados, respectivamente, com procedimentos tradicionais e expedientes modernos

de escrita poética. Na história da poesia, a polimetria, “entendida como recurso

desviante do sistema de metrificação, que lhe serve de parâmetro”432, interpõe-se como

via de “transição entre o verso isométrico (regular) e o livre”433, no bem dizer de

Antonio Carlos Secchin. De maneira análoga, as Poesias de Dante Milano partem do

rígido formalismo dos “Sonetos e fragmentos” e, percorrendo essa “escala de rigor

compositivo”, chegam à outra extremidade.

431 AZEVEDO, Sânzio de. Tipos de poema. In:____. Para uma teoria do verso. Fortaleza: EUFC, 1997. p. 162. 432 SECCHIN, Antonio Carlos. Alguma polimetria. In: Cadernos de Literatura Brasileira n. 27. [s. l.], Instituto Moreira Salles, out.2012. p. 184. 433 Id., ibid., p. 183.

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No terceiro segmento, “Reflexos”, já se espelham isometria e polimetria,

praticamente ombreadas: cinco dos nove poemas apresentam métrica regular, sendo

polimétricos os versos das quatro peças que completam o conjunto. Na seção seguinte,

“Distâncias” – a segunda maior do livro, com 17 textos –, a dispersão rítmica, métrica e

estrófica se intensifica: esvai-se a regularidade, e o verso livre desponta pela primeira

vez nas Poesias, engastado na polimetria dominante em estrofações desuniformes.

À medida que avançam as seções, distende-se a forma poética, que aparece

ainda mais esgarçada, não por acaso, no quinto segmento, “Terra de ninguém”, ao qual

se chega depois de percorridas as “Distâncias”. Os 12 poemas deste conjunto formam

um aterrador painel de guerra, prenunciado no título da seção. Em acepção

dicionarizada, “Terra de ninguém” designa a “área situada entre dois exércitos, sobre a

qual nenhum dos dois oponentes estabeleceu controle”.434 No universo das Poesias,

entretanto, a expressão se potencializa e, para além do território bélico geograficamente

delimitável, evoca um espaço difuso e ubíquo em que, ao cabo, se dramatiza o fadário

da “terra em seu labor de guerra eterna”.435 Grassam na terra de ninguém a angústia, o

desamparo, a destruição e a morte, e nesta atmosfera de disjunção e desmantelo, em que

tudo se desagrega e se estilhaça, também a poesia tende à desolação do canto e à

dissolução da forma. Métrica variável, estrofes anômalas, inflexões rítmicas e

acentuações inortodoxas presidem os poemas desta seção, como que a ratificar no

desarranjo formal o cenário destroçado da “terra transformada num monturo”436,

imagem-síntese do “doloroso corpo do mapa-múndi”.437 “A irregularidade do ritmo

produz a desordem do espírito. [...] O verso livre é a lira partida”438, afirma Milano, que

se vale do versilibrismo e de desregramentos de toda sorte para, isomorficamente,

realçar a desarmonia intrínseca à matéria que mobiliza os textos de “Terra de ninguém”.

Discorrendo sobre as Poesias, Ricardo Vieira Lima destaca o vínculo que radica

os poemas deste bloco ao presente histórico. Segundo o crítico, eles “refletem [...] o

434 Cf. Dicionário Houaiss Eletrônico (versão 3.0), op. cit. 435 MILANO, Dante. Os trabalhos do mundo. In:____. Obra reunida. Op. cit., p. 53. (verso do primeiro poema da seção “Terra de ninguém”). 436 Cf. nota 391. 437 MILANO, Dante. Os trabalhos do mundo. In:____. Obra reunida. Op. cit., p. 53. 438 Id., ibid. Textos sobre literatura, p. 415.

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espírito da época: um mundo angustiado, dividido e em guerra (os textos foram escritos

entre 1939 e 1944)”.439 Vieira Lima prossegue:

Mudando de postura, Dante Milano compôs, naqueles anos, poemas de métrica e ritmo mais livres. Percebeu, também, que era um “animal social”, e não um indivíduo fechado em si mesmo. Aderiu, assim, ao realismo social e alcançou um alto grau de expressão. Esse compromisso com a humanidade, em seu sentido mais nobre (político e estético), equiparou Milano aos maiores poetas do período, como [...] Drummond, Pablo Neruda, Paul Éluard, Jorge Guillén ou o Murilo Mendes de Poesia liberdade (1947). Mas não fez com que o poeta abandonasse seu gosto pela tradição e pela cultura clássica.440

A análise de Ricardo Vieira Lima confirma a imbricação entre o moderno e o

tradicional na poesia de Milano, apta a refletir o espírito de seu tempo sem, contudo,

abdicar de “seu gosto pela tradição e pela cultura clássica”. Também atento à

contemporaneidade desta poética porosa à “realidade/ parida como fruto da

violência”441, Sérgio Milliet sublinha-lhe o condão de expressar o dorido e desencantado

“sentimento do mundo” que marca os anos 1940-50: “A poesia triste e recatada de

Dante Milano reflete esse estado de espírito. E é bem de nosso tempo portanto”.442

Muito embora a circunstância histórica lhes lastreie o sentido – sua escrita

remonta ao período da Segunda Guerra Mundial, como acentua Vieira Lima –, os

poemas de “Terra de ninguém”, como dissemos, extrapolam a referência concreta e

adquirem dimensão atópica e atemporal. Diferente, por exemplo, do Drummond de A

rosa do povo (1945), cujos poemas “políticos”443 exibem o selo indelével da

historicidade, Dante Milano opta por um discurso insubmisso à contingência

cronológica, o qual se impregna, assim, de uma modernidade aparentemente

imprescritível. Daí a renitente atualidade (ou eternidade, como diria Ivan Junqueira444)

desta poesia, que, conforme bem observa Sérgio Buarque de Holanda, “esquiva-se a um

condicionamento muito nítido de lugar ou tempo”.445 Poema emblemático de “Terra de

ninguém”, “Salmo perdido” traz, como os demais da série, referência a guerra, mas não,

explicitamente, ao conflito mundial de 1939 a 1945. Nele a guerra é referida como

439 LIMA, Ricardo Vieira. Dante Milano: um poeta à revelia de si mesmo. In: Revista.doc n.4. [s.l.], jul./dez. 2007. Disponível em <http://www.revistapontodoc.com/4.htm>, acesso em 9.6.2012. 440 Id., ibid. 441 MILANO, Dante. Voz de um deus. In:____. Obra reunida. Op. cit., p. 57. 442 MILLIET, Sérgio. Panorama da moderna poesia brasileira. Op. cit., p. 79. 443 Citem-se, por exemplo, “Carta a Stalingrado”, “Telegrama de Moscou” e “Com o russo em Berlim”. 444 Cf. nota 390. 445 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Resenha de poesia. In: ____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 348.

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fenômeno em si, cujo potencial destrutivo serve aos desígnios de “um deus sem

piedade” – “um deus moderno”, capaz de portentos e transformações feéricas. Leiamos

o poema:

Salmo perdido 446

Creio num deus moderno, Um deus sem piedade, Um deus moderno, deus de guerra e, não, de paz. Deus dos que matam, não dos que morrem, Dos vitoriosos, não dos vencidos. Deus da glória profana e dos falsos profetas. O mundo não é mais a paisagem antiga, A paisagem sagrada. Cidades vertiginosas, edifícios a pique, Torres, pontes, mastros, luzes, fios, apitos, sinais. Sonhamos tanto que o mundo não nos reconhece mais, As aves, os montes, as nuvens não nos reconhecem mais, Deus não nos reconhece mais.

Já de início se configura uma divindade moderna e impiedosa, em tudo oposta

ao Deus correntemente concebido, o qual, intemporal em sua asseidade, é fonte perene

de amor, bondade, justiça, perdão. O título do poema denota a ineficácia do que se vai

entoar: endereçado ao “deus moderno”, o “salmo” (oração em gênero poético) se

prenuncia “perdido”, extraviado, sem esperança de ser ouvido. “Cala, poesia,/ A dor do

homem não se pode exprimir em nenhuma língua”447 – resigna-se o poeta noutra quadra

desta “Terra de ninguém”. Indiferente a quem lhe consagre cântico ou poesia, e

desinteressado da paz, o “deus moderno” senhoreia e saboreia a guerra: instala-se aí, no

consórcio dos atributos desta deidade espúria, a conjunção de guerra com modernidade

– de alguma forma já irmanadas pelo que trazem de deletério e desagregador. Em

entrevista concedida em 1945, Drummond aponta a relação especular que revela o

convulso e desconcertado mundo moderno: “As contradições deste mundo se refletem

na própria guerra em que ele se estorce. [...] A guerra vem evidenciar a existência de

certos aspectos caducos de uma organização ou ativar a decomposição de outros”.448

446 MILANO, Dante. Salmo perdido. In:____. Obra reunida. Op. cit., p. 60. 447 Id., ibid. Vozes abafadas, p. 57. 448 ANDRADE, Carlos Drummond de apud ANDRADE Ary de. O mundo de após-guerra. In: BRAYNER, Sônia (org.). Carlos Drummond de Andrade (Coleção Fortuna Crítica). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 32.

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O deus milaniano promove o esfacelamento irreparável da idílica “paisagem

sagrada” de outrora, sorvida pelo “turbilhão de permanente desintegração e mudança, de

luta e contradição, de ambiguidade e angústia” com que Marshall Berman caracteriza a

“experiência da modernidade”.449 A terceira estrofe de “Salmo perdido” manifesta

típico sintoma deste processo, que Berman chama “mito nostálgico de um pré-moderno

Paraíso Perdido”:

O turbilhão da vida moderna [...] cria novos ambientes humanos e destrói os antigos, acelera o próprio ritmo de vida, gera novas formas de poder corporativo e de luta de classes; descomunal explosão demográfica, que penaliza milhões de pessoas arrancadas de seu habitat ancestral, empurrando-as pelos caminhos do mundo em direção a novas vidas; rápido e muitas vezes catastrófico crescimento urbano, sistemas de comunicação de massa, dinâmicos em seu desenvolvimento, que embrulham e amarram, no mesmo pacote, os mais variados indivíduos e sociedades.450 As pessoas que se encontram em meio a esse turbilhão estão aptas a sentir-se como as primeiras, e talvez as últimas, a passar por isso; tal sentimento engendrou inúmeros mitos nostálgicos de um pré-moderno Paraíso Perdido.451

Nume que transmuda a “paisagem antiga” em “cidades vertiginosas, edifícios a

pique,/ Torres, pontes, mastros, luzes, fios, apitos, sinais”, o “deus moderno” atemoriza

por ser “de guerra e, não, de paz”. Noutro poema de “Terra de ninguém”, a “Voz de um

deus”, dialogando com “Salmo perdido”, também intimida:

/.../ Frágeis edifícios, Eu vos faria, como a palácios de nuvens, Ruir sem rumor. Meu pensamento distancia o mundo E sopra no ar o pó da realidade Parida como fruto da violência, Com a força que tem a dor.”452 /.../

Prodigioso e ameaçador, esse “deus moderno” “promete aventura, poder, alegria,

crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo

tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos”453,

449 Cf. nota 395. 450 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Op. cit., p. 25. 451 Id., ibid. p. 24. 452 MILANO, Dante. Voz de um deus. In:____. Obra reunida. Op. cit., p. 57. 453 Cf. nota 395.

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como adverte Marshall Berman: “As possibilidades são ao mesmo tempo gloriosas e

deploráveis”.454 Capaz de fazer edifícios a pique, “como a palácios de nuvens, ruir sem

rumor”, o deus milaniano ratifica, no plano poético, a assertiva de Marx tomada de

empréstimo por Berman, segundo a qual, na modernidade, “tudo o que é sólido

desmancha no ar”. Instala-se assim uma “realidade esquálida”455, em que o mundo e

Deus “não nos reconhece[m] mais”.

Contíguas à “Terra de ninguém” estão as “Paisagens submersas”, sexta seção

das Poesias, ainda marcada pela maleabilidade de formas: polimetria e versilibrismo se

mesclam na composição das oito peças do conjunto, que tecem uma atmosfera de

sonho, sensualismo e desejo de morte – tríade, aliás, presente em toda a poética de

Dante Milano. Encerram o volume os dez poemas de “Variantes de temas antigos”,

segmento em que a rigidez formal se restabelece com toda pujança. À semelhança dos

“Sonetos e fragmentos”, a isometria orienta quase todas as peças, nas quais se verifica

franco predomínio do decassílabo, metro abandonado apenas em “Forma” (vazado

exclusivamente em redondilhas maiores), nalgumas linhas do polimétrico “Pastoral”

(depois renomeado “Vesperal”) e no último verso do poemeto “Novo Pigmalião”

(posteriormente rebatizado “Pigmalião”).

Consideradas na macroestrutura formal, as Poesias concluem neste ponto seu

movimento circular: como já frisamos, partem do formalismo rigoroso e aos poucos se

flexibilizam pela polimetria, que, tímida de início, gradualmente vai-se impondo, até

que as Poesias alcancem a emancipação do verso livre. Finalmente, no último conjunto,

os poemas retornam à forma austera do segmento inaugural.

Na seção derradeira, contudo, o influxo da tradição revela-se não apenas no

plano formal. Como prediz o título do segmento, temas antigos e referências clássicas

são matéria corrente dos poemas. É o caso, por exemplo, da “Elegia de Orfeu”, em que

o amor do mitológico poeta pela ninfa Eurídice é glosado em 47 parelhas decassilábicas,

ou de “Pigmalião”, poemeto alusivo ao lendário escultor que se apaixonou por sua obra

Galatea, estátua que teria adquirido vida por um sortilégio da deusa Afrodite. Em

“Pastoral” (referência à clássica composição poética com tema idílico), entrevê-se

alusão a “O nascimento de Vênus”, de Botticelli, célebre quadro da Renascença. O

soneto “Metamorfoses”, por seu turno, cujos título e tema evocam a magnum opus do

454 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Op. cit., p. 32. 455 Id., ibid. Elegia de Orfeu, p. 82.

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poeta latino Ovídio, encadeia, numa atmosfera onírica, transmutações calidoscópicas

que resultam em imagens sui generis:

Metamorfoses 456

Sonho maior que o sonho de quem dorme, Eu vi, de olhos despertos, fabulosas Metamorfoses, conexões monstruosas Entre o olhar e a aparência multiforme. Eu vi o que a luz expele e a sombra engole. Vi como na água o corpo em si se enrola, Quebra-se o torso, a perna se descola E os braços se desmancham na onda mole. Vi num espelho alguém cujo reflexo O transformava noutra criatura. E, num leito de amor, já vi perplexo Seios com olhos! e mudar-se a dura Nuca em anca, o ombro em joelho, a axila em sexo, O dorso em coxa, o ventre em fronte pura.

Clássico na forma e na evocação das “Metamorfoses” ovidianas, o poema de

Milano reivindica seu grau de modernidade sob diversos aspectos. A sugestiva

imagética acionada, por exemplo, requereria sua condição de “valor moderno” nos

termos em que Leyla Perrone-Moisés o confere à visualidade457, conforme se viu. O

nonsense da sequência pictórica – “fabulosas metamorfoses, conexões monstruosas”

engendradas em estado de “sonho maior que o sonho de quem dorme” – talvez

reclamasse filiação ao Surrealismo, muito embora a extravagância das imagens se

submeta, no que tange à construção poética, ao rigor da elaboração lúcida e

sistematizada (bem distante, portanto, do espontaneísmo e da expressão automática

preconizados pela escola de Breton). Em “Metamorfoses”, a irrupção de imagens

surpreendentes – sobrevindas de inopino, como que tangidas pelo aleatório – na forma

conscienciosa do soneto, regida por criterioso esquema formal, confere ao poema

vigoroso efeito estético. Franklin de Oliveira detecta a conjunção de maestria técnica

com impetuosa imaginação onírica na poesia de Milano, na qual, segundo o crítico, o

“ato semântico emerge das matrizes do pensamento e da emoção, da lógica e do

456 MILANO, Dante. Metamorfoses. In:____. Obra reunida. Op. cit., p. 84. 457 Cf. notas 409 e 410.

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sonho”.458 Tal aliança encontra respaldo nos “valores modernos” rastreados por Leyla

Perrone-Moisés:

Para os modernos a linguagem literária readquire seu sentido original de poiesis, arte da linguagem que exige uma technè. [...] Na poesia como na prosa, o resultado não depende apenas da inspiração mas de uma técnica que precisa ser aprendida e desenvolvida, e, a partir daí, reinventada e nova. [...] Muitos dos valores privilegiados pelos modernos são do domínio da técnica escritural. Mas, [...] contrariando a qualificação de “formalistas” que muitos deles receberam, seus valores implicam necessariamente questões de conteúdo e funções extraestéticas da literatura.459

Em Dante Milano é frequente o consórcio de sua “galáxia de recursos técnicos,

formais e estilísticos”460 (mormente de extração tradicional) com “questões de conteúdo

e funções extraestéticas da literatura” (não raro atinentes a aspectos da modernidade),

como se viu nos poemas abordados no presente estudo. Com efeito, a íntima relação

entre o que se diz e o como se diz é reiteradamente destacada pelos que se debruçam

sobre essa poesia formulada “como cosa mentale”.461 Sérgio Buarque de Holanda

afirma:

Nesta poesia – e por que não em toda poesia genuína? – a forma se associa estreitamente ao pensamento e há identidade plena entre o que ela é e o que ela diz. [...] Dante Milano está longe de ser, como se diria, um poeta de ideias, pois que suas “ideias” não sobrevivem impunemente a qualquer espécie de paráfrase em prosa. Em outras palavras, seu pensamento é de fato sua forma.462

No mesma trilha, Franklin de Oliveira consigna ser Dante Milano

perfeito pela inconsútil unidade de sua dicção, onde não há fissuras, tecido conjuntivo entre os temas e a configuração artística que os instrumentaliza. [...] Sua poesia [...] está permeada de comoção, mas emoção refeita sob a disciplina de rigorosa consciência artística, [...] governada pela inteligência, [...] reconstituída sob o império da lucidez.463

458 OLIVEIRA, Franklin de. A claridade estelar. In: MILANO, Dante. Poesia e prosa. Op. cit., p. 349. 459 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas literaturas. Op. cit., pp. 154-6. 460 JUNQUEIRA, Ivan. Dante Milano: o pensamento emocionado. In: MILANO, Dante. Obra reunida. Op. cit., p. XXXIV. 461 ARRIGUCCI JÚNIOR, Davi. A extinta música. In: ____. Outros achados e perdidos. Op. cit., p. 186. 462 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Mar enxuto. In:____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 99. 463 OLIVEIRA, Franklin de. A claridade estelar. In: MILANO, Dante. Poesia e prosa. Op. cit., p. 348.

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Dante Milano “acredita que tudo o que você leva da vida, pouco ou muito, vem

do pensamento. O que você pensar é o que você vive”464, anota Denira Rozário, na

apresentação à entrevista que lhe concedeu o poeta. A assertiva encontra total

correspondência com o atributo tantas vezes referido nas análises sobre a elaboração

poética de Milano: o primado do pensamento, a partir do qual, segundo Ivan Junqueira,

se trama “um tecido de cruezas expressionais e significações objetivas, um voto de

fidelidade à clarté cartesiana, [...] em tudo oposta à difusa deliquescência da ‘ironia

romântica’”.465 Este rigor do pensamento, avesso a excessos e afetações sentimentais,

constitui valor subjacente à intensidade, nos termos da axiologia esboçada por Leyla

Perrone-Moisés: “essa intensidade elogiada pelos modernos é alheia, e mesmo oposta, à

sentimentalidade comunicada pelos artifícios retóricos de uma poética expressiva. A

emoção passa pelo crivo do pensamento e exige a despersonalização do poeta”.466

Como se vê, sob o patente e indelével classicismo das Poesias, a irrevogável

modernidade do século XX infunde-se, derivada em aspectos diversos, na poética de

Dante Milano. À margem de grupos, escolas ou correntes estéticas – “Não tem a

preciosidade da poesia de 45 nem se incomodou demais com as múltiplas experiências

dos modernistas. Resolveu seu caso pessoal”467, como assinala com agudeza Paulo

Mendes Campos –, Milano logrou fazer das Poesias uma espécie de súmula do

momento histórico-estético em que desponta este seu livro único.

Wilson Martins afirmou certa vez que o poeta “não tinha condições [...] para ser

modernista, nem mesmo moderno, segundo a semântica do século XX, clássicas e

retóricas as raízes de sua própria poética”.468 Em que pese a opinião do crítico, seu

julgamento parece não subsistir ao exame das Poesias, que se incrustam no complexo

lírico dos anos 1940-50 como importante documento da convergência entre o

tradicional e o moderno. Mais substantivas e pertinentes têm-se mostrado as análises

que, revelando compreensão mais larga e profunda da poética milaniana, vêm

constituindo, neste particular, fortuna crítica sólida e dominante. Lembremos, a

propósito, a já referida afirmação de Ivan Junqueira sobre Milano: “poucos poetas

464 ROZÁRIO, Denira. Palavra de poeta. Op. cit., p. 41. 465 JUNQUEIRA, Ivan. Dante Milano: o pensamento emocionado. In: MILANO, Dante. Obra reunida. Op. cit., p. XXI. 466 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas literaturas. Op. cit., p. 159. 467 CAMPOS, Paulo Mendes. Lição de Dante Milano. In: Artigo definido – crônicas literárias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 124. 468 MARTINS, Wilson. Vítima da História. In: “Prosa & Verso”, suplemento de O Globo. Op. cit.

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brasileiros são tão modernos quanto ele, apesar de suas raízes classicistas”.469 Ou o

registro de Davi Arrigucci Jr.: “Sua frase límpida e por vezes de sabor clássico, imune a

cacoetes modernistas, se presta, porém, a um verso moderno, desinflado, apto para

armar equações estranhas com a visão irônica de quem repensa o mundo”.470 É justo

este “repensar o mundo” que sustém “a capacidade de Dante Milano de formular com

palavras e emoções novas angústias mais antigas”.471

Milano “é um poeta antigo e ao mesmo tempo livre”472, “cuja pequena produção

trouxe desde logo a marca da permanência”.473 Não deixa, pois, de causar estranheza

que seja sistematicamente relegada ao esquecimento, e seu autor continue “tão

injustamente ignorado”.474 Como bem alerta Arrigucci Jr., “o Brasil não pode continuar

ignorando este que é um dos seus melhores poetas modernos. É preciso ler e reler Dante

Milano. Para sempre”.475

469 JUNQUEIRA, Ivan. Drummond e a rima. In:____. Ensaios escolhidos (v. 1). Op. cit., p. 232. 470 ARRIGUCCI JÚNIOR, Davi. A extinta música. In: ____. Outros achados e perdidos. Op. cit., p. 186. 471 CAMPOS, Paulo Mendes. Lição de Dante Milano. In: Artigo definido. Op. cit., p. 124. 472 SCHMIDT, Augusto Frederico. Saudação a Dante Milano. In: MILANO, Dante. Poesia e prosa. Op. cit., p. 349. 473 MERQUIOR, José Guilherme. A poesia modernista. In:____. Razão do poema. Op. cit., p. 45. 474 LIMA, Luiz Costa. Abstração e visualidade. In:____. Intervenções. São Paulo: EdUSP, 2002. p. 177. 475 ARRIGUCCI JÚNIOR, Davi. A extinta música. In: ____. Outros achados e perdidos. Op. cit., p. 186.

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7. “Que fixa o tempo eternamente, E faz presente do passado”476:

Poesia perdida, de Américo Facó

Dante Milano escreveu certa feita que o catarinense Luiz Delfino “é um poeta

que dificilmente poderá ser catalogado numa escola qualquer do seu tempo”.477 A

assertiva – ajustada, como se viu, ao próprio Milano – aplica-se a importantes poetas

que surgem no complexo poético dos anos 1940-50, a exemplo de Mario Quintana e

Joaquim Cardozo, conforme salientamos na página 105. Estende-se ainda ao cearense

Américo Facó.

Nascido em 1885, Facó se enquadraria, pelo ano de nascimento e à luz do que

propõe Pedro Lyra, na geração “pré-modernista”. No entanto, seu único livro de poemas

– Poesia perdida, lançado em 1951– não apenas aparece fora da faixa de estreia daquela

geração478 como, esteticamente, é obra que guarda sensíveis diferenças em relação à

lírica pré-22, apesar de significativos pontos de contato entre ambas. O ano de estreia

em livro, por seu turno, posicionaria Facó entre os autores de 45, grupo a que o poeta

tem sido vinculado, segundo Gilberto Araújo: “Quando lembrado, o escritor cearense

Américo Facó costuma ser inserido na Geração de 1945”.479 Entretanto, embora Poesia

476 FACÓ, Américo. Noturno. In: ____. Obra perdida de Américo Facó. Op. cit., p. 120. 477 MILANO, Dante. Luiz Delfino. In:____. Obra reunida. Op. cit., p. 449. 478 No alentado e já referido estudo sobre gerações literárias, Pedro Lyra registra como faixa de nascimento da geração pré-modernista o intervalo de 1875 a 1895 e como faixa de estreia o interstício de 1895 a 1915. Cf. LYRA, Pedro. As gerações da poesia brasileira no século XX. In:____. Sincretismo – a poesia da Geração 60. Op. cit., p. 82. 479 ARAÚJO, Gilberto. O negro e a véspera. In: Rascunho n. 142. Curitiba, fev.2012. p. 18.

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perdida nalguns aspectos tangencie a plataforma estética de 45, associar Facó a tais

autores parece igualmente indevido, considerada a faixa de nascimento da Geração.480

A situação de Américo Facó no quadro da poesia brasileira é, pois, análoga à de

Dante Milano. Não raro ambos aparecem juntos (e acompanhados de Joaquim Cardozo)

nalgum “ponto fora da curva”. Diante do impasse, o mais frequente é considerá-los

“poetas de estreia tardia”, classificação difusa de que se vale, por exemplo, Péricles

Eugênio da Silva Ramos, ao referir-se a “determinados poetas [que], pela idade

pertencentes à geração de 1922, só muito mais tarde publicaram livros: tal foi o caso

[...] de Joaquim Cardozo e ainda de Américo Facó, Dante Milano ou Edgard Braga”.481

No Itinerário de Pasárgada, Manuel Bandeira lastima que os volumes extemporâneos

de Facó e de Milano (e o de Cardozo) não constassem em seu estudo de poetas: “as

retardadas edições em livro de Américo Facó, Dante Milano e Joaquim Cardozo vieram

tornar minha Apresentação da poesia brasileira, escrita antes de 45, um livro truncado.

Deus me dê tempo para atualizar aquelas páginas”.482 A desejada atualização sobreveio,

ao menos em parte: a Seleta de prosa de Bandeira, organizada por Júlio Castañon

Guimarães em 1997, colige versão da Apresentação da poesia brasileira acrescida de

comentários sobre as Poesias de Milano e os Poemas de Cardozo. Quanto à Poesia

perdida, porém, não há registro, e o apontamento sobre Facó limita-se a incluí-lo em

“uma geração que podemos chamar neoparnasiana”483, composta de poetas que,

“diversos já, no espírito, da geração anterior, guardam o mesmo amor da linguagem

eloquente, da forma nítida”.484

Atente-se nas diferentes categorias (definidas mais por critérios cronológicos do

que estético-literários) em que inserem Facó: “pré-modernista”, conforme alegação de

Pedro Lyra; “neoparnasiano”, de acordo com Manuel Bandeira; “de estreia tardia”

tendente, pela idade, à “geração de 22”, segundo Péricles Eugênio da Silva Ramos;

“Geração de 45”, como registra Gilberto Araújo. Outra vez o imbróglio classificatório –

aspecto secundário a nosso ver, mas sempre caprichosamente manifestado.

Posicionamento mais lúcido ante à arrevesada questão parece o de Sérgio Buarque de

480 No que tange à Geração de 45, Pedro Lyra aponta a faixa de nascimento de 1915 a 1935 e a faixa de estreia de 1935 a 1955. 481 RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. O Modernismo na poesia. In: COUTINHO, Afrânio (org.). A literatura no Brasil. Op. cit., p. 623. 482 BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. In:____. Seleta de prosa. Op. cit., p. 359. 483 Id., ibid. Apresentação da poesia brasileira, p. 419. 484 Id., ibid. A “geração anterior” abarca, entre outros, Alberto de Oliveira, Francisca Júlia, Raimundo Correia, Olavo Bilac, Vicente de Carvalho.

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Holanda, que, em artigo sobre Poesia perdida, tratando do problema da classificação,

rende-se ao

fato de existirem autores que se esquivam com obstinação a tamanhos caprichos. O número desses autores não é tão escasso que permita inscrevê-los entre aquelas famosas exceções capazes, conforme se diz, de confirmar a regra. No entanto, o fato de sua existência pareceu-me particularmente significativo quando li há algum tempo esta Poesia perdida de Américo Facó. [...] Ela não se acomodaria, sem violência, às arregimentações temporais em que tantas vezes se comprazem os historiadores.485

Com efeito, Poesia perdida traz peculiaridades que tanto a singularizam no

complexo lírico de que participa quanto a diferenciam da poesia praticada por Facó na

mocidade. O veio “neoparnasiano” a que alude Bandeira pode ser rastreado naqueles

poemas da juventude, sonetos estampados em torno de 1907 e 1908 no Jornal do Ceará

(alguns chegaram a ser publicados no Álbum imperial, quinzenário político e literário de

São Paulo). Fernando Góes, antologista do Panorama da poesia brasileira, assinala que

Facó, “nos tempos da mocidade, teve fervorosa admiração por Alberto de Oliveira, cuja

forma severa e apurada procurou imprimir aos seus versos”.486 O crítico Sânzio de

Azevedo corrobora a assertiva: “foi sob o influxo do Parnasianismo que o poeta

escreveu a maior parte dos versos dessa época”487, na qual, segundo Fernando Góes,

Facó teria anunciado “um livro de sonetos – Terra bendita –, que nunca chegou a

publicar”.488

No estudo “A fase parnasiana de Américo Facó”, Sânzio de Azevedo analisa a

primeira produção do poeta, em cujos decassílabos e alexandrinos desfilam ninfas,

sátiros e deuses (Pã, Vênus, Tritão), ornados com o “grego manto”489 ou com “a coroa

de pâmpanos virente”.490 O cinzel parnasiano, porém, não apaga de todo a inflexão

lírico-amorosa ou certa “nota de sensualismo, que jamais abandonará sua poesia”.491

Curiosa também é a presença, num soneto, da “terra estéril [que] jaz sem produzir [sob]

485 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Poesia perdida. In:____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 538. 486 GÓES, Fernando. Panorama da poesia brasileira (v.5). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960. p. 36. 487 AZEVEDO, Sânzio. A fase parnasiana de Américo Facó. In: Aspectos da literatura cearense. Fortaleza: Edições UFC; Academia Cearense de Letras, 1982. p. 134. 488 GÓES, Fernando. Panorama da poesia brasileira (v.5). Op. cit., p. 36. 489 FACÓ, Américo. Ed. Apud AZEVEDO, Sânzio. A fase parnasiana de Américo Facó. In: Aspectos da literatura cearense. Op. cit., p. 134. 490 Id., ibid. 491 AZEVEDO, Sânzio. Ibid., p. 136.

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o implacável calor deste sol de novembro”, alusão à seca que, nos versos do cearense

Facó, nordestinamente estiola o sopé do Parnaso.

“Os anos levaram-no a perder o culto do Parnasianismo, sem lhe tirar,

entretanto, o gosto pelo verso bem construído, pela linguagem escorreita e nobre”492,

acrescenta Fernando Góes. De fato, publicados tanto tempo depois dos sonetos da

mocidade, os poemas de Poesia perdida, “apesar de [...] parecerem o oposto mais

radical de seus versos de juventude, tão claros e objetivos, guardam ainda assim algo

daquele longínquo aprendizado: a postura clássica, o amor das coisas antigas”493, como

destaca Sânzio de Azevedo. Voltaremos a este ponto mais à frente.

Entre a juvenília parnasiana (depois renegada) e o aparecimento de Poesia

perdida medeiam quatro décadas, durante as quais vive Facó na então capital da

República. Depois de participar ativamente “na vida cultural fortalezense, como poeta

ou como redator do Jornal do Ceará, [...] por motivos políticos teve ele de emigrar, em

1909 ou 1910, para o Rio de Janeiro”494, onde se achega aos modernistas da primeira

hora e tem importante atuação nos meios jornalístico e literário, como registra Floriano

Martins:

No início dos anos 20, já temos notícias suas frequentando a casa de Aníbal Machado, juntamente com Raul Bopp, Mário Pedrosa e Murilo Mendes. Ali conheceu Sérgio Buarque de Holanda e Prudente de Morais, neto, que logo fundariam a revista Estética. [...] Participa, então, Américo Facó do número inaugural de Estética (1924), escrevendo um lúcido ensaio sobre o romancista inglês Joseph Conrad.495

Ainda na década de 1920, lembra Raul Bopp, “Américo Facó tinha realizado, no

Rio, o seu velho projeto de estender pelo país uma rede de divulgação de notícias”.496 A

Agência Brasileira é fundada em 1924, ano em que visita o Brasil o poeta Blaise

Cendrars, de quem Facó se aproxima: ao lado de partícipes destacados do Modernismo

carioca – Graça Aranha, Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Moraes, neto,

Guilherme de Almeida e Ronald de Carvalho –, Facó está entre os “amis de Rio de

Janeiro” aos quais Cendrars dedica o volume de poemas Feuilles de route. Sua

492 GÓES, Fernando. Panorama da poesia brasileira (v.5). Op. cit., p. 36. 493 AZEVEDO, Sânzio. A fase parnasiana de Américo Facó. In: Aspectos da literatura cearense. Op. cit., p. 143. 494 Id., ibid., p. 131. 495 MARTINS, Floriano. Notas de acesso a uma obra perdida. In: FACÓ, Américo. Obra perdida de Américo Facó. Op. cit., p. 18. 496 BOPP, Raul. Putirum: poesias e coisas do folclore. Rio de Janeiro: Leitura, 1968. p. 234.

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participação no entourage modernista, contudo, tal qual a de Dante Milano, não foi

efetiva; deveu-se antes a questões de simpatia, como registra Sérgio Buarque:

Se nos anos de Klaxon e Estética essa vocação [de Facó] ia bem amadurecida, não o impediu de ligar-se, por laços de amizade e até de afinidade, a alguns homens – justamente os mais moços e menos responsáveis – que cuidavam em revolucionar nossa literatura e nossa linguagem. Se chegou a colaborar em suas revistas e a participar, creio eu, de alguma de suas conspirações, a verdade é que foi menos um militante do que um simpatizante sem quaisquer compromissos.497

Além de frequentes colaborações em diversos órgãos de imprensa da capital, a

fecunda atividade de Facó inclui a direção da página literária da revista Fon-fon e a

fundação das revistas Pan (na qual foi publicado, em 1940, o primeiro conto de Clarice

Lispector, “Triunfo”) e O espelho. Exerceu ainda cargos burocráticos: foi diretor da

seção de enciclopédias e dicionários do Instituto Nacional do Livro, diretor do

Departamento Nacional de Informações – DNI (órgão sucessor do DIP na

redemocratização pós-Estado Novo) e redator do Senado Federal. As diversas

atividades pareciam ter-lhe sequestrado a lira: “desviando-se para a crônica, para a

crítica ou para a bibliografia, dir-se-ia que se esquecera das musas”498, anota um seu

conterrâneo, o poeta Mário Linhares. Os versos rareados levaram Manuel Bandeira a

incluí-lo na Antologia de poetas brasileiros bissextos contemporâneos, editada em

1946.

Nesse mesmo ano Facó publica Sinfonia negra, obra que orquestra múltiplos

gêneros e registros para abordar, com alto teor poético, a questão do negro, na esteira do

Urucungo de Raul Bopp e dos Poemas negros de Jorge de Lima. Segundo Floriano

Martins, Sinfonia negra é “carregada de inconfundível poder de sugestibilidade [...],

surpreendendo não somente pela força imagética como por suas variações rítmicas e o

uso entrelaçado de prosa poética, relato fabulista e versos brancos”.499 Poesia perdida,

no entanto, é o único volume que Facó dedica de forma exclusiva ao “poema em

versos”, considerado em sua configuração clássica.

497 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Poesia perdida. In:____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 538. 498 LINHARES, Mario. História literária do Ceará. Rio de Janeiro: [s.n.], 1948. p. 96. 499 MARTINS, Floriano. Notas de acesso a uma obra perdida. In: FACÓ, Américo. Obra perdida de Américo Facó. Op. cit., p. 20.

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É por esse tempo, em meados da década de 1940, que se consolida a amizade de

Américo Facó com Carlos Drummond de Andrade. A proximidade entre os dois é

especialmente significativa para a proposta deste trabalho, pois a dialética tradição-

modernidade do período (definidora da poesia de ambos no início dos anos 1950) se faz

representar, obliquamente, nesta emblemática conexão. Em O observador no escritório,

Drummond recorda o estreitamento da relação:

Minha convivência com Facó vinha dos últimos anos do meu trabalho no gabinete de Capanema. A princípio, contatos cerimoniosos, embora na década de 30 eu fosse, em Belo Horizonte, correspondente da Agência Brasileira, dirigida por ele. Depois, maior convívio, e a cortesia, mantendo-se, estendeu-se em confiança e amizade.500

Nas mesmas “páginas de diário”, Drummond alude ao “empreguinho de ocasião

no Instituto Nacional do Livro”501, então capitaneado por Facó, sob cuja supervisão

elabora, em 1945, “verbetes para o sonhado Dicionário de Literatura Brasileira”.502 No

fim daquele ano, Facó assume a direção do DNI e, lembra o poeta de Sentimento do

mundo,

para se sentir à vontade em terreno escorregadio e cheio de armadilhas, apelou para três amigos – Gastão Cruls, Prudente de Morais, neto, e eu – convidando-nos a fazer um levantamento completo das condições de funcionamento do órgão e da natureza de suas atividades sigilosas.503

O “maior convívio” desse tempo, conforme assinala CDA, “estendeu-se em

confiança e amizade”, o que levou o poeta a submeter ao “requintado e puro Américo

Facó”504 os ainda inéditos poemas de Claro enigma:

Na casa da Rua Rumânia, durante três noites, confiei-lhe os originais do meu livro Claro enigma e ouvi suas opiniões de exímio versificador. Eu “convalescia” de amarga experiência política, e desejava que meus versos se mantivessem o mais possível distantes de qualquer ressentimento ou temor de desagradar os passionais da “poesia social”. Paciente e gentil, Facó passou um mínimo de nove horas, contando as três noites seguidas, a aturar minhas dúvidas e indecisões. Se não aceitei integralmente suas observações, a verdade é que as três vigílias me deram ânimo a prosseguir no rumo que me

500 ANDRADE, Carlos Drummond de. O observador no escritório – páginas de diário. Rio de Janeiro: Record, 1985. p. 102. Drummond deixa a chefia de gabinete de Gustavo Capanema em março de 1945. 501 Id., ibid., p. 44. 502 Id., ibid. 503 Id., ibid., p. 52. 504 Id., ibid.

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interessava. E me fizeram sentir a nobreza do seu espírito de autêntico homem de letras, mais preocupado com a linguagem e seus recursos estéticos do que com a fácil vida literária das modas e dos bares.505

Em agradecimento, Drummond dedica Claro enigma a Facó. Publicado no

mesmo ano em que Poesia perdida vem a lume (1951), o livro representa o ponto alto

da “guinada classicizante operada na lírica do poeta itabirano no pós-guerra”506,

conforme anota o ensaísta Vagner Camilo. Examinando tal guinada, Camilo busca

indícios que ajudem a esclarecê-la, e para tanto investiga a proximidade do poeta com

Américo Facó, “escritor de gosto apurado e exemplar zelo literário”507, afeito a

“processos e vocábulos senectos”.508 Camilo observa: “É possível que muito dos

interesses literários de Drummond, identificáveis nessa fase da obra, deva-se em boa

medida ao convívio com esse valeryano confesso”.509 O crítico Felipe Fortuna desdobra

tal consideração e aponta o alinhamento estético entre os dois poetas, no início dos anos

1950, como exemplo da “determinante influência de escritores pouco frequentes em

escritores de maior relevo, como a de [...] Américo Facó sobre uma fase de Carlos

Drummond de Andrade”.510

A condição de “valeryano confesso” é significativa e será examinada adiante.

Por ora cumpre ressaltar que, para além do desvelo de Facó com os originais de Claro

enigma, é nítida a convergência estética entre este e Poesia perdida, obras que “se

afinam por uma tendência de época”511, aproximadas pelo “mesmo espírito

classicizante”.512 Ademais, ao mesmo tempo que marca a orientação da poética

drummondiana para a tradição lírica, a franca interlocução entre o “exímio versificador”

de extração clássica e o (já na época) grande poeta moderno brasileiro também assinala

a “liberdade de espírito”513 de Facó, que, se “em nenhum momento deixou o convívio

dos seus clássicos portugueses e dos clássicos greco-latinos”514, “não deixava por isso

505 Id., ibid., pp. 102-3. 506 CAMILO, Vagner. Drummond: da Rosa do povo à rosa das trevas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. p. 62. 507 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Realismo lírico. In:____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 513. 508 RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. O Modernismo na poesia. In: COUTINHO, Afrânio (org.). A literatura no Brasil. Op. cit., p. 623. 509 CAMILO, Vagner. Drummond: da Rosa do povo à rosa das trevas. Op. cit., p. 153. 510 FORTUNA, Felipe. A equação do lirismo. In: A próxima leitura – ensaios de crítica literária. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002. p. 88. 511 CAMILO, Vagner. Drummond: da Rosa do povo à rosa das trevas. Op. cit., p. 155. 512 Id., ibid., p. 154. 513 Id., ibid., p. 153. 514 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Poesia perdida. In:____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 539.

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de acolher algumas contribuições dos modernos”.515 De certa forma, considerada a

linhagem poética de cada um, o contato entre Facó e Drummond simboliza a

interpenetração entre tradição e modernidade que define a poesia de ambos no começo

da década de 1950 – e o próprio complexo lírico daquele início de decênio.

Poesia perdida

A edição dos poemas de Américo Facó foi saudada por Drummond no artigo

“Poesia nobre”, estampado no Correio da manhã de 17.9.1951. O escrito elogioso

assinala com perspicácia aspectos fundamentais do livro e da poesia de Facó. O texto de

CDA abre-se assim:

Apareceu o livro raro de 1951, e raro não porque o fizeram tal os pintores de tipografia ou a limitação de tiragem, mas pela qualidade inconfundível do texto. Chama-se Poesia perdida, e seu autor é Américo Facó, que não frequenta o nosso sujo e mesquinho beco literário.516

Adiante o crítico ressalta o característico essencial da obra à luz de nossas

conjecturas. Ao referir-se à “altura superior” de Poesia perdida, Drummond assinala

que suas páginas “vêm conciliar a sensibilidade moderna com o espírito clássico”.517

Tal qual o coetâneo Claro enigma, a cuja posição emblemática no complexo poético dos

anos 1940-50 aludimos nas páginas 102 e 103, Poesia perdida é de fato perpassada pela

indeclinável “sensibilidade moderna” finamente ajustada à feição clássica que a obra

ostenta. No livro de Facó, todavia, o “espírito moderno” manifesta-se em amplitudes e

intensidades distintas das que se detectam no enigma drummondiano.

515 CAMILO, Vagner. Drummond: da Rosa do povo à rosa das trevas. Op. cit., p. 153. 516 ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia nobre. In:____. Passeios na ilha. Op. cit., p. 147. 517 Id., ibid.

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A conjunção de tradição com modernidade é também destacada por Sérgio

Buarque de Holanda, para quem a poesia de Facó, “vestida de algumas das galas do dia

sem desatar-se da tradição lírica lusitana, [resulta] clássica e moderna ao mesmo

tempo”.518 Esta natureza dual deriva em grande medida da “capacidade de conciliar na

mesma e desenvolta estima um Sá de Miranda e um William Blake, um Gil Vicente e

um Paul Valéry”519, influências que Facó assimila com “o apetite das coisas do

tempo”520, que “bem pode e deve aliar-se ao gosto do antigo e do perene”.521

Nos textos críticos sobre a poesia de Facó, é recorrente a alusão a Valéry, “a cuja

lição nosso poeta se mostra particularmente sensível” 522, de acordo com Drummond. A

afinidade com o autor de “Le cimetière marin” é mencionada por Péricles Eugênio da

Silva Ramos, que afirma ser Poesia perdida um “livro de expressão à Paul Valéry”523, e

por Assis Brasil, ao apresentar Facó na antologia A poesia cearense no século XX.524

Ainda na esteira das predileções, Sérgio Buarque de Holanda refere-se ao “mallarmista

consumado que é o sr. Américo Facó”525, enquanto Mário Faustino reitera sua adesão

aos “modismos mallarmaicos e valeristas”.526 Com efeito, a modernidade que os

críticos, nomeadamente Drummond e Sérgio Buarque, detectam em Poesia perdida

parece mesmo filiar-se à linhagem (bastante influente na lírica do século XX) que passa

por Mallarmé e Valéry, “os proponentes de uma teoria do papel e da natureza da

linguagem na poesia”527, conforme destaca o ensaísta John Gledson. A propósito, Leyla

Perrone-Moisés afirma:

Paul Valéry, como personalidade, já não tinha nada a ver com a “maldição” dos heróis da Modernidade [referência a Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont e Mallarmé]. [...] De todos esses poetas, foi o

518 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Poesia perdida. In:____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 540. 519 Id., ibid., p. 539. 520 Id., ibid. 521 Id., ibid. 522 ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia nobre. In:____. Passeios na ilha. Op. cit., p. 149. 523 RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. O Modernismo na poesia. In: COUTINHO, Afrânio (org.). A literatura no Brasil. Op. cit., p. 623. 524 Cf. BRASIL, Assis. Américo Facó. In: A poesia cearense no século XX: antologia. Fortaleza: FCF; Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 60. 525 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Branco sobre branco. In:____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 525. 526 FAUSTINO, Mário. Importante poeta menor. In:____. De Anchieta aos concretos. Op. cit., p. 300. 527 GLEDSON, John. Drummond e Valéry. In: Influências e impasses: Drummond e alguns contemporâneos. São Paulo: Cia. das Letras, 2003. p. 145.

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que deixou a mais aguda e completa teoria da escrita poética moderna, cujos efeitos se fazem sentir até os dias de hoje.528

As ideias e os procedimentos de Valéry, teórico e praticante da “poesia como

exercício da inteligência, buscando a lucidez do espírito e a clareza da forma”529, ecoam

fortemente na Poesia perdida de Facó, “depurada pelo filtro da inteligência, sem vício,

porém, do intelectualismo”.530 As onze peças que compõem o volume são

ostensivamente marcadas pelo rigor da linguagem e pelo emprego consciencioso da

técnica do verso e do poema. É ainda Drummond quem salienta:

Vocábulos usados sem a imprecisão romântica, geradora de mistério fácil, antes agenciados no rigor último de sua acepção, os de Américo Facó surgem preciosos e desconhecidos, por força da alquimia poética, e a surpresa que nos causam é maior pela conservação do molde estrito que o poeta se impôs e do qual não se afasta sequer por um instante. Todas as suas composições têm a forma fixa [...]. Não é suave uma disciplina que estabelece entre suas exigências a proscrição de rimas esdrúxulas ou agudas, mas o poeta que teve força para aceitá-la pretende justamente chegar ao encantamento através da dificuldade vencida.531

Avessa à “imprecisão romântica, geradora de mistério fácil”, a poesia ascética de

Facó revela-se também refratária à arrebatadora inspiração (apontada amiúde pelos

românticos como motriz da criação poética), a ela contrapondo o trabalho criterioso

com a linguagem. O regramento formal conduz sua poesia, toda vazada em versos

metrificados, estrofes regulares e rigorosos esquemas rímicos, sem qualquer concessão

ao versilibrismo ou à estrofação desuniforme. Atesta-o “o uso de um sistema estrófico

dos mais raros e difíceis: a sextina [...], a mais requintada entre as formas da poesia

provençal”532, segundo Drummond. Com efeito, integra Poesia perdida a “Sextina da

véspera”, “belo exemplar moderno da forma”533, conforme avalia Manuel Bandeira, e

“uma das melhores da língua”534, de acordo com Mário Faustino. A propósito, atente-se

na lúcida ressalva de CDA: “Cumpre assinalar que estamos longe do estéril quebra-

cabeças parnasiano, que consistia em mera pesquisa de forma, quando aqui, e em geral

528 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Prefácio. In: BARBOSA, João Alexandre. A comédia intelectual de Paul Valéry. São Paulo: Iluminuras, 2007. p. 12. 529 Id., ibid. 530 ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia nobre. In:____. Passeios na ilha. Op. cit., p. 147. 531 Id., ibid., p. 148-9. 532 Id., ibid., p. 149-50. 533 BANDEIRA, Manuel. A versificação em língua portuguesa. In:____. Seleta de prosa. Op. cit., p. 555. 534 FAUSTINO, Mário. Importante poeta menor. In:____. De Anchieta aos concretos. Op. cit., p. 300.

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na melhor poesia moderna, a partir de Mallarmé, a forma se confunde com a essência

mesma da poesia”.535

A concepção da poesia como “um ‘fazer’, e não uma representação de algum

sentido prévio e supostamente inspirado”536 é importante ponto de convergência entre

Facó e Valéry.537 Na célebre conferência “Poesia e pensamento abstrato” (1939),

registro capital de sua meditação crítico-reflexiva, o poeta de “La jeune parque” refuta

frontalmente a ideia de que “as análises e o trabalho do intelecto, os esforços de vontade

e de exatidão em que o espírito participa não concordam com essa simplicidade de

origem, essa superabundância de expressões, essa graça e essa fantasia que distinguem a

poesia”.538 “A poesia é uma arte da linguagem”539 – “é uma linguagem dentro de uma

linguagem”540 –, e como tal, para autonomizar-se em relação ao emprego convencional

e utilitário (meramente comunicativo) da expressão linguística, deve ser submetida a

procedimentos que a organizem e a redesenhem como construção artística. Dá-se,

assim, “a fabricação das obras”541, absolutamente diversa do difuso “estado poético”542:

aquela, realizada com a intervenção do aparato racional, elabora o objeto artístico; este,

resultado da “produção espontânea através do espírito”543, tremula ao sabor das

“flutuações imediatas de nossa sensibilidade geral, não controlada pelas sensibilidades

de nossos sentidos especializados”.544 Esse “estado de poesia, perfeitamente irregular,

inconstante, involuntário, frágil, que perdemos assim como o obtemos, por acidente”545,

535 ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia nobre. In:____. Passeios na ilha. Op. cit., p. 149. 536 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Prefácio. In: BARBOSA, João Alexandre. A comédia intelectual de Paul Valéry. Op. cit., p. 12. 537 À luz da afinidade entre Facó e Drummond e considerando certos pontos de tangência entre os livros de ambos publicados em 1951, parece relevante destacar que também Claro enigma (dedicado, como se viu, a Facó) entabula franco diálogo com Valéry, seja por meio da epígrafe tomada ao poeta francês (“Les événements m'ennuient”), seja no dístico final de “Relógio do rosário” (último poema do livro), cujas “rimas não podem deixar de lembrar, até mesmo para o mais apressado leitor de Valéry, os versos de abertura de ‘Le cimetière marin’, seu poema mais célebre”, conforme destaca John Gledson em atilado estudo sobre o influxo de Valéry em Drummond. Cf. GLEDSON, John. Drummond e Valéry. In: Influências e impasses. Op. cit., p. 140. 538 VALÉRY, Paul. Poesia e pensamento abstrato. In: Variedades (org. João Alexandre Barbosa; trad. Maiza Martins de Siqueira). São Paulo: Iluminuras, 1999. p.193. 539 Id., ibid., p. 197 e p. 200. A afirmação figura em duas passagens distintas. 540 Id., ibid., p. 200. 541 Id., ibid., p. 199. 542 Id., ibid., p. 198. 543 Id., ibid., p. 199. 544 Id., ibid., pp. 197-8. 545 Id., ibid., p. 198.

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“apresenta grandes analogias com o que podemos supor do universo do sonho”.546

Valéry desdobra tal proximidade:

Nos tempos modernos, a partir do Romantismo, se formou uma confusão bastante explicável entre a noção de sonho e a de poesia. Nem o sonho, nem o devaneio são necessariamente poéticos; eles podem sê-lo: mas figuras formadas ao acaso somente por acaso são figuras harmoniosas.547

Em passagem que parece dialogar diretamente com o texto de Valéry,

Drummond assinala em Poesia perdida a abolição da casualidade em decorrência do

trabalho esmerado com a linguagem: “Aqui, nada é fruto do acaso feliz, mas de uma

dedicação feliz. [...] Esta poesia é vivida e meditada, [...] é movimento e contenção,

devaneio regido, sabedoria, requinte, equilíbrio implícito”.548 Em artigo sobre o

romancista Joseph Conrad, publicado no número inaugural da revista Estética, o próprio

Facó evoca o primado do intelecto na condução da atividade criativa, quando alude ao

“processus a que está sujeito o gênio criador”.549 É a este processo que se refere

Drummond quando, referendando o pensamento de Valéry, indica em Poesia perdida as

“qualidades indispensáveis” para “extrair da linguagem [...] ‘obras inteiramente

deliciosas e distintas’”: “a paciência, a obstinação e a indústria”.550

Analisando “o artesanato do estilo” como vertente da expressão literária da

modernidade, Roland Barthes inclui Valéry em “uma espécie de confraria de artesãos

das Letras, onde o lavor da forma constitui o sinal e a propriedade de uma

corporação”.551 Na obra desses “confrades”, a linguagem literária procura “substituir o

valor-uso da escrita por um valor-trabalho”.552 Assim, a “forma sensível adquire, através

de seu próprio efeito, importância tal que se imponha e faça-se respeitar”553, e a obra

passa a valer pelo “trabalho que terá custado”.554 Daí a frase de Valéry com que Barthes

abre seu ensaio: “A forma custa caro”.555 O enaltecimento do “artesanato do estilo” e o

consequente “valor-trabalho” da palavra empenhada na expressão artística

546 Id., ibid., p. 197. 547 Id., ibid. 548 ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia nobre. In:____. Passeios na ilha. Op. cit., p. 147. 549 FACÓ, Américo. Joseph Conrad. In: Estética n.1. Rio de Janeiro, set. 1924. p.88. 550 ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia nobre. In:____. Passeios na ilha. Op. cit., p. 149. 551 BARTHES, Roland. O artesanato do estilo. In: O grau zero da escrita (trad. Mario Laranjeira). São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 54. 552 Id., ibid. 553 VALÉRY, Paul. Poesia e pensamento abstrato. In: Variedades. Op. cit., p. 201. 554 BARTHES, Roland. O artesanato do estilo. In: O grau zero da escrita. Op. cit., p. 54. 555 VALÉRY, Paul apud BARTHES, Roland. Id., p. 53.

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correspondem à valorização da “maestria técnica”, atributo que Leyla Perrone-Moisés

arrola em sua “axiologia de uma certa modernidade literária”, à qual aludimos no

exame das Poesias de Dante Milano.556 Esposada por Facó, essa postura não apenas

encerra uma aposta estética como fundamenta uma orientação crítica tipicamente

moderna, conforme consigna o ensaísta Waldecy Tenório:

Quando escreve que “o poema deve ser uma festa do intelecto”, [...] Valéry já está revelando aquela concepção intelectualista que será a referência poética da modernidade. [...] Quando poetas e críticos rondam em torno de um poema, examinando sua estrutura como engenheiros experimentando uma ponte, estão agindo sob a influência de Valéry. Ou seja, sob a influência do que é claro, exato, racional.557

Além da diretriz “teórica” que, derivada de Valéry, norteia em grande monta o

pensamento de Facó, o influxo do poeta de “Le cimetière marin” revela-se ainda mais

evidente nas páginas de Poesia perdida. Poder-se-ia mencionar certa “atmosfera de

hermetismo”558 comum à lírica de ambos ou a sugestão algo difusa de Valéry na poesia

de Facó – impressões que se comprovariam sem embaraço. Contudo, a “presença” de

Valéry (e, por extensão, da modernidade que se lhe associa) em Poesia perdida é mais

palpável e pode ser detectada na carnadura do texto poético. Em várias passagens de

Facó ressoa a alusão (imagética, vocabular) a poemas de Valéry. Reproduzimos a

seguir, lado a lado, os sonetos “A bela adormecida”, de Américo Facó (único soneto de

Poesia perdida), e “A adormecida”, de Paul Valéry, publicado em Charmes (1922),

aqui em tradução de Augusto de Campos, de modo a ilustrar o intenso diálogo entre os

poetas.559

556 Cf. nota 459. 557 TENÓRIO, Waldecy. A bailadora andaluza – a explosão do sagrado na poesia de João Cabral. São Paulo: Ateliê Editorial; FAPESP, 1996. p. 61 558 AZEVEDO, Sânzio. A fase parnasiana de Américo Facó. In: Aspectos da literatura cearense. Op. cit., p. 132. 559 Na esteira de tais considerações, mencione-se que Poesia perdida enfeixa o poema “Narciso” (dedicado a Carlos Drummond de Andrade), revisitação do clássico tema explorado por Valéry nos célebres “Fragments du Narcise” e “Cantate du Narcise”.

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560561

Partindo da proximidade dos títulos, o cotejo entre os sonetos dá boa noção do

comparecimento de Valéry em Poesia perdida. À leitura superficial, chamam atenção

elementos pontuais que interligam os dois textos: a figura central de uma mulher

adormecida, cuja alma é “levada longe” por efeito do sono/sonho; a referência, no

primeiro quarteto de ambos, a uma flor (uma rosa, em Facó) cujo aroma se espira; a

560 VALÉRY, Paul. A adormecida (trad. Augusto de Campos). In: BARBOSA, João Alexandre. A comédia intelectual de Paul Valéry. Op. cit., p. 76. No original: Quels secrets dans mon cœur brûle ma jeune amie,/ Âme par le doux masque aspirant une fleur?/ De quels vains aliments sa naïve chaleur/ Fait ce rayonnement d'une femme endormie?// Souffles, songes, silence, invincible accalmie,/Tu triomphes, ô paix plus puissante qu'un pleur,/ Quand de ce plein sommeil l'onde grave et l'ampleur/ Conspirent sur le sein d'une telle ennemie.// Dormeuse, amas doré d'ombres et d'abandons,/ Ton repos redoutable est chargé de tels dons,/ Ô biche avec langueur longue auprès d'une grappe,// Que malgré l'âme absente, occupée aux enfers,/ Ta forme au ventre pur qu'un bras fluide drape,/ Veille; ta forme veille, et mes yeux sont ouverts. 561 FACÓ, Américo. A bela adormecida. In: Obra perdida de Américo Facó. Op. cit., p. 123.

A adormecida (La dormeuse) 560

a Lucien Fabre

Paul Valéry

Que segredo incandesces no peito, minha amiga,

Alma por doce máscara aspirando a flor?

De que alimentos vãos teu cândido calor

Gera essa irradiação: mulher adormecida?

Sopro, sonhos, silêncio, invencível quebranto,

Tu triunfas, ó paz mais potente que um pranto,

Quando de um pleno sono a onda grave e estendida

Conspira sobre o seio de tal inimiga.

Dorme, dourada soma: sombras e abandono.

De tais dons cumulou-se esse temível sono,

Corça languidamente longa além do laço,

Que embora a alma ausente, em luta nos desertos,

Tua forma ao ventre puro, que veste um fluido braço,

Vela. Tua forma vela, e meus olhos: abertos.

A bela adormecida 561

Américo Facó

A alma levada longe, e todavia

Presente, e presa do segredo, anima,

Espira a rosa de opulento clima,

Flor viva, aroma novo, aura macia.

Desejo franze o beijo, e se inebria;

Abraço iluso preme e tem por cima

Um corpo alheio – na delícia prima

De oculta flama que se nega ao Dia.

Entrevecido e surpreso, adivinha

O ser profundo a vertigem da vida,

Fruto suspenso da secreta vinha…

Forma acesa de amor adormecida!

Para a primícia de um mistério antigo,

Um deus solerte quis dormir contigo.

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alusão, ainda na estrofe inicial, a um segredo oculto sob o véu do sonho (ou engendrado

no próprio sonho). Em ambos os poemas, a mulher que dorme é o eixo a partir do qual

se estabelecem campos de força que se tensionam: presença/ausência,

imobilidade/movimento, o patente/o latente, imanência/transcendência. O crítico João

Alexandre Barbosa detecta com perspicácia no soneto de Valéry o “jogo incessante

entre abstração e concretude”562, dinâmica também identificável no poema de Facó.

Segundo Barbosa, a abstração insinuada já no quarteto de abertura de Valéry,

“inteiramente interrogativo”, armado com “perguntas sem resposta”563, estende-se ao

segundo quarteto, cujo primeiro verso, “compondo a imagem da mulher adormecida,

permite a leitura, ao mesmo tempo, descritiva e narrativa da própria imagem”.564 O

poema, assim, opera antes com a imagem da adormecida do que com a própria mulher:

“o que se está lendo não é uma mulher adormecida, mas a imagem de ‘sopro, sonhos,

silêncio, invencível quebranto’ que o poema instaura na visão da adormecida”.565 Nas

três primeiras estrofes, o poema, tendendo à deliquescência, sustém-se entre a imagem

da mulher inerte sob a “onda grave e estendida” de “um pleno sono” e a evasão

irrefreável da alma “em luta nos desertos”. Não obstante, no último terceto a concretude

se manifesta com maior robustez, na referência ao “ventre puro” e ao “fluido braço”,

acionados, em metonímia, como demarcadores da corporeidade da mulher que dorme.

Sutilmente insuflada nos quartetos e no primeiro terceto, a tensão entre a imanente

“ forma da adormecida, [...] cuja objetividade escultórica é dada no penúltimo verso”566,

e a emanação transcendente de sua porção incorpórea (a alma) atinge o ápice.

O soneto de Facó se vale de operação análoga, também promovendo o “jogo

entre imobilidade aparente e o tumulto dos sentidos”567 que anima o texto de Valéry. A

“bela adormecida” é o esteio em torno (ou a partir) do qual gravitam rarefações – “alma

levada longe”, “segredo”, “opulento clima”, “aroma novo”, “aura macia” – que já na

primeira estrofe instalam a ambiência onírica ostensiva em todo o poema. Já no quarteto

inaugural se detecta a tensão presença/ausência que também pulsa no soneto de Valéry:

“levada longe” (ou seja, ausente, liberta), a alma é “todavia presente”, “presa do

segredo”.

562 BARBOSA, João Alexandre. A comédia intelectual de Paul Valéry. Op. cit., p. 76. 563 Id., ibid. 564 Id., ibid., p. 77. 565 Id., ibid. 566 Id., ibid. 567 Id., ibid.

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Apoiado em compasso ambíguo e evasivo, no qual se insinua a nota de

sensualidade que será mais fortemente percutida no último verso do poema, o segundo

quarteto dá curso à atmosfera de abstrações e ambivalências inaugurada na estância

anterior. Aqui também se pode entrever o “jogo incessante entre abstração e

concretude”, acionado por arranjos sintático-semânticos que correlacionam vocábulos

tendentes a esses dois polos. Assim, no primeiro verso, o “desejo” inebriado (tendente à

abstração) “franze” (tendente à concretude, no sentido de “contrair(-se) ou enrugar(-se)

lábios, sobrancelhas etc., formando vincos”568) o beijo; o “abraço” (concreto) “iluso”

(qualificativo que desfaz a concretude do substantivo) “preme um corpo” (predicado

tendente à concretude) “alheio”. O adjetivo “alheio”, por seu turno, relativiza a

possibilidade de o abraço concretizar-se, pois congrega sentidos que,

concomitantemente implicados, conferem ao corpo abraçável atributos que podem

inviabilizar a ação: sendo “de outrem” (suscetível, portanto, ao contato físico), o mesmo

corpo pode resultar, por efeito da adjetivação, “liberto e abstraído, distante e

apartado”569, impossibilitado, assim, de ser cingido. Baldado por “premer” um corpo

que súbito se volatiliza, o “abraço iluso” dissolve-se numa “delícia prima” igualmente

falta de concretude, circunscrita ao reino onírico e noturno da mulher adormecida.

Consumida em “oculta flama que se nega ao Dia” (vigente apenas durante a noite), a

“delícia prima” (e, por conseguinte, o beijo franzido pelo desejo inebriado e o abraço

iluso em corpo alheio) revela sua natureza sonial.

O primeiro terceto prossegue na atmosfera brumosa da noite e do sonho: um ser

“entrevecido” – isto é, coberto de trevas, qual a adormecida de Valéry imersa em

“sombras e abandono”, no mesmo ponto do poema – “adivinha” (em vez de, às claras,

saber ou conhecer) “a vertigem da vida”, imagem igualmente abstrata desdobrada em

“fruto suspenso da secreta vinha”. Também aí, na construção apositiva, comparecem

combinações sintático-semânticas que mesclam a exatidão do concreto (“fruto”;

“vinha”) com a vagueza do abstrato (“suspenso”; “secreta”).

Os sonetos se tangenciam ainda na última estrofe, em que a palavra “forma”

aparece pela primeira vez, em nítida evocação de concretude. Se no evanescente poema

de Valéry a forma é substantivamente simbolizada na “objetividade escultórica” de

“ventre” e “braço”, no de Facó ela se encorpa na carnalidade embutida no último verso,

568 Cf. Dicionário Houaiss Eletrônico (versão 3.0), op. cit. 569 Cf. Dicionário Aurélio Eletrônico (versão 3.0), op. cit., e Dicionário Houaiss Eletrônico (versão 3.0), op. cit.

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não sem antes se positivar “acesa” após esfumados e nebulosos quartetos e terceto. A

propósito, a mulher adormecida que incandesce um segredo na primeira quadra de

Valéry parece rebrilhar na “Forma acesa de amor adormecida” – e ainda na “oculta

flama” – do soneto de Facó.

Projetados noutro estrato de significações, os poemas sugerem o tema da própria

expressão poética, notadamente o equilíbrio entre forma e significado, ou seja, a tensão

entre a concreta manifestação textual e a volátil elaboração de sentido, processos

interdependentes que confluem na leitura do poema. João Alexandre Barbosa assinala

no soneto de Valéry essa significação latente – a qual, de resto, pode também ser

atribuída ao texto de Facó: “Nada mais abstrato do que a leitura de uma forma e, no

entanto, transformada em matéria do poema, a ação do leitor opera a concretização que

passa a ser, então, o próprio poema. Ou, em outras palavras, é a concretização do

abstrato que é a matéria do poema”.570

Noutro estudo sobre o poeta, Barbosa acentua “a mestria com que Valéry cria,

por meio de uma linguagem de grande beleza e nitidez, a atmosfera que se insinua pela

fina fímbria do sonho e da fantasia quase fantasmagórica”.571 O confronto entre os

sonetos dá mostras de que Facó assimilou com especial cuidado essa lição do poeta de

Charmes. Com efeito, tal atmosfera se espraia por toda a Poesia perdida, como

prenunciam os títulos de alguns poemas: “Noturno”, “A bela adormecida”, “Magia”,

“Ar da floresta noturna”, “Aventura”. Tratando do universo que o livro engendra,

Drummond destaca o aspecto “lunar [desse] mundo de florestas obscuras, de presenças

mágicas, de cores, aromas, ‘polpa e deleite contidos’”.572

A ambiência soturna, onírica, de “fantasia quase fantasmagórica” é definidora

em Poesia perdida e, submetida a uma leitura que ultrapasse a névoa do sonho imediato

e justificável na própria fabulação, revela um discurso poético rente a questões próprias

da modernidade. Sob a arquitetura poemática tradicional e a dicção hierática –

exterioridades que à primeira vista podem sugerir, apenas, uma poesia autossatisfeita

com torneios meramente formais – ressoa a “sensibilidade moderna” a que Drummond

se refere na abertura de seu artigo. Ela se deixa captar na turbação que frequentemente

570 BARBOSA, João Alexandre. A comédia intelectual de Paul Valéry. São Paulo: Iluminuras, 2007. pp. 77-8. 571 Id., ibid., p. 22. 572 ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia nobre. In:____. Passeios na ilha. Op. cit., p. 148.

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assalta o errático sujeito lírico, fustigado a cada passo, cuja “alma se abrasa”573 “na

selva abismal do tempo, escura”.574 Erige-se assim um universo poético entre o

quimérico e o sombrio, envolto num campo simbólico imantado por palavras-chave

reiteradamente acionadas, como “sombra” (que aparece 27 vezes nos 11 poemas do

livro); “sonho” (com 26 ocorrências); “noite” (24 ocorrências); “alma” (22 ocorrências);

“segredo”/“secreto(a)” (16 ocorrências); “abismo” (11 ocorrências);

“engano”/“desengano” (10 ocorrências) e outras menos frequentes mas igualmente

significativas, como “magia”, “mistério”, “miragem”, “vertigem”. Se por um lado esse

léxico plasma “um mundo de sugestões vocabulares válidas por si mesmas”575, por

outro alegoriza a desventura do indivíduo no torvelinho de angústias, contradições,

frustrações, impermanência e desamparo da modernidade.

Nesse sentido, duas esferas contrapostas constantemente se tangenciam e se

complementam em Poesia perdida: numa, a do sonho, projeta-se um tempo-espaço

acolhedor e feliz, circunscrito ao passado e revivido por intermédio da lembrança e do

devaneio; outra, a da realidade, é o tempo-espaço presente, atroz e ameaçador, do qual

o sujeito busca ausentar-se pela nostálgica maquinação da memória. No entanto, o que

constituiria fuga para um locus reconfortante e redentor não se consuma de maneira

plena: sobre as saudosas divagações do sujeito lírico paira a consciência renitente e

vigilante da incômoda realidade, a todo tempo reafirmada. Dessa forma, em vez de

promessa de apaziguamento (pois que provisoriamente instala uma ambiência infensa às

aflições do presente), a evocação de um passado ideal ou idealizado potencializa a

precariedade da condição real do sujeito, tornando mais evidentes as perdas e

denegações que o lancinam. Nesta “floresta de símbolos”, a “noite” desempenha

especial função: reiteradamente povoada de “sombra”, “segredo” e “mistério”, surge

como ambiente enigmático e ameaçador (“Noite! mãe dos segredos,/ Secreta e

vigilante”576); ao mesmo tempo, ponto de passagem ao “sono” e ao “sonho”, apresenta-

se como via de acesso ao transitório refúgio. A oscilação entre sonho e realidade embala

com frequência o cosmo fabulado em Poesia perdida, estabelecendo-se já no primeiro

poema, emblematicamente intitulado “Noturno”; vejamos como ela se implementa.

573 FACÓ, Américo. Aparência. In: Obra perdida de Américo Facó. Op. cit., p. 129. 574 Id., ibid. Ar da floresta noturna, p. 133. 575 ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia nobre. In:____. Passeios na ilha. Op. cit., p. 148. 576 FACÓ, Américo. Narciso. In: Obra perdida de Américo Facó. Op. cit., p. 141.

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Noturno 577 Quando jamais na ausência escura, Na imensa noite sem memória, Há de repetir-se a aventura Da antiga floresta ilusória? Dormência lunar vaga e pura, Flores, folhas, troncos, raízes, Revivas de extinto mistério... Quando na tépida espessura Há de tornar o sono aéreo, Os límpidos sonhos felizes? Mimar de múrmura magia! Remansear de nuvem fremente! Magia e sombra pesam onde Se ouvia a voz de um deus presente… De ouvir a terra estremecia, O céu profundo se acendia, Noturnamente, brandamente! Depois… Depois a voz sombria Se velou na terra, que a esconde, Atrás do universo silente.

/.../

O poema se abre com estrofe exclusivamente interrogativa, na qual se opõem

duas ambiências: a “imensa noite sem memória” crivada de “ausência escura”; e a

“antiga floresta ilusória”, envolta em “dormência lunar vaga e pura”. Ao sujeito lírico

importa saber quando retornará de “extinto mistério” a “antiga floresta”, fonte de

“límpidos sonhos felizes”. A cisão entre os ambientes estabelece dois polos: ao domínio

do sonho (pretérito) pertence a “antiga floresta ilusória”; no território da realidade

(presente), por contraste, estende-se a “ausência escura” em “imensa noite sem

memória”. A estância seguinte confirma tal contraposição, ao confrontar um “antes”

aprazível e um “depois” (um agora) soturno. Ecos de “límpidos sonhos felizes”, o

“mimar de múrmura magia” e o “remansear de nuvem fremente” harmonizam-se na

eufonia de uma época em que “se ouvia a voz de um deus presente”, a cujo comando

tudo “brandamente” respondia. O tempo verbal (“ouvia”, “acendia”) não deixa dúvida

quanto a tratar-se de situação pretérita, à qual sobrevém um período sombrio de silêncio

e abandono: em lugar de “um deus presente”, sob cuja voz “o céu profundo se acendia”,

instala-se a “ausência escura” de um “universo silente”. As oposições “voz/“silente”,

“presente”/“ausência” e “se acendia”/“escura” reforçam a dissidência entre o “antes” e o

577 FACÓ, Américo. Noturno. In: Obra perdida de Américo Facó. Op. cit., pp. 119-22. Os trechos transcritos a seguir foram extraídos da mesma fonte.

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“depois”. Com efeito, o apagamento do deus outrora atuante recoloca a pergunta do

louco nietzschiano (“Para onde Deus foi?”578), cuja resposta (“Deus morreu!”579)

constitui traço basilar do pensamento moderno que molda “nosso mundo ateu e

laicizado”.580 Nesse passo Leyla Perrone-Moisés adverte, referendando afirmação de

Octavio Paz, que “a poesia moderna [...] não é serva, mas rival da religião”.581 No que

concerne às especulações do presente trabalho, tal “rivalidade” é também detectável em

Dante Milano, em poemas como “Salmo perdido”.582

Em “Noturno”, a configuração preliminar dos polos temporais funda um agora

que, delineado a partir de perguntas não respondidas (lembre-se a primeira estrofe,

essencialmente dubitativa), é marcado por escuridão, desmemória, ausência divina,

desamparo, vacuidade. Eis, em breves pinceladas, o quadro desolador de “nossa

insalubre modernidade”.583 Estabelecidas as instâncias cronológicas, o poema prossegue

em movimento retrocedente, de modo a restaurar por intermédio da lembrança

(“Mágico espelho contemplado /.../ Que fixa o tempo eternamente”), ainda que de forma

precária e provisória, o tempo de “límpidos sonhos felizes”:

Ó tempo em flor e folha, menos Amarga fora esta lembrança, O mais subtil de teus venenos, Se cansasse do que não cansa… Lembrança! Filtro acerbo e quente, Que eu bebo, e quero mais! – espelho, Mágico espelho contemplado, Miragem de cristal vermelho Que fixa o tempo eternamente, E faz presente do passado! Imagem nunca mais perdida, Surta na sombra, que demora! Noturno ardor, boca de aurora Que oferta a fruta apetecida! Forma de si mesma despida, Imagem sempre a mesma – embora Paire suspensa além da vida, Penso que a vejo viva agora, Não porque a veja revivida, Só por sonhá-la a igual de outrora.

578 NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência (trad. Márcio Pugliesi, Edson Bini e Norberto P. Lima). São Paulo: Hemus, 2002. p. 134. 579 Id., ibid. 580 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas literaturas. Op. cit., p. 162. 581 Id., ibid. 582 Cf. nota 446. 583 NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo – ensaio de uma crítica ao cristianismo. In: Obras incompletas (trad. Rubens Rodrigues T. Filho). São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 394.

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Atento ao ludíbrio da lembrança, o sujeito não se ilude com o jogo de imagens

produzido pelo “mágico espelho” da memória. Ele bem sabe que o passado venturoso e

desejável qual “fruta apetecida”, sobretudo se comparado ao presente infausto, só

ressurge como simulacro: “Penso que a vejo viva agora,/ Não porque a veja revivida,/

Só por sonhá-la a igual de outrora”. Fundamento do “devaneio regido”584 que

Drummond ressalta em Poesia perdida, o império da consciência sobre a fantasia

impede a evasão do sujeito, atando-o, ao revés, à inexorável realidade. A nítida

percepção do “engano” se confirma na próxima estrofe:

Sonho! É sonho, minha alma! Vede O avito engano em que se agita Para matar a própria sede, Aumentando a própria desdita… É sonho! Traz no riso mudo Certeza e dádiva de tudo… Sonho!… E sonho, por ele a nua Negra floresta reverdece; Por ele, outra vez, no ar flutua A Presença, que não esquece.

À medida que a “negra floresta reverdece” por intermédio do sonho, intensifica-

se a “própria desdita” do sujeito, a qual, confrontada com o passado deleitante, se

afigura ainda mais adversa. As estâncias seguintes desdobram a quimérica incursão

através “da mais que perfeita delícia”585, sempre pontuada, contudo, pela consciência de

que tudo não passa de “maviosa vertigem do instante”.586 A propósito, a evocação de

um passado idealmente acolhedor em oposição ao presente tormentoso é sintoma de

modernidade já apontado na poesia de Dante Milano – o “mito nostálgico de um pré-

moderno Paraíso Perdido”587 de que fala Marshall Berman. Como se vê, também aqui se

manifesta o “espírito da modernidade”, infiltrado nas frinchas de um discurso poético

urdido em clássica e solene elaboração formal.

O remate do poema ratifica o que de precário e efêmero há no devaneio, o qual,

esvaído no “raro instante luminoso/ Que se exclui do tempo e do espaço”, não é capaz

de libertar o sujeito de sua desventura. Ao final prevalecem o desnorteio e o desalento,

entrelaçados noutra pergunta irrespondida, à semelhança da primeira estrofe:

584 Cf. nota 548. 585 FACÓ, Américo. Noturno. In: Obra perdida de Américo Facó. Op. cit., p. 121. 586 Id., ibid. 587 Cf. notas 450 e 451.

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Eu beijo o beijo e abraço o abraço, Meu raro instante luminoso, Que se exclui do tempo e do espaço Na eternidade de um regaço, A dar-me sem medir seu gozo... Mago instante que não refaço! Divino instante que me adverte! Fugiu-me cedo...

– Onde ir a esmo, Alma ferida, corpo inerte, Buscar a ilusão de mim mesmo?

Na conclusão reafirmam-se aspectos essenciais do sujeito lírico que deambula

em Poesia perdida, o qual, à medida que se desvela nos demais poemas, reitera sua

condição de “homem espoliado em sua experiência – um homem moderno”588, à

semelhança do eu poético baudelairiano segundo ponderação de Walter Benjamin.

Ressalte-se que, tantas vezes enunciada em primeira pessoa, a poesia de Facó não se

confina na vivência pessoal, tampouco redunda em mera confissão: projetada para além

da circunstância individual, ela se ergue como “revelação da condição humana e

consagração de uma experiência histórica concreta”589 tipicamente moderna, conforme

vimos sinalizando. Traço cardeal da poética da modernidade, a impessoalidade do

sujeito lírico define não apenas a poesia de Facó mas também a dos demais autores que

compõem o corpus deste trabalho. Leyla Perrone-Moisés fala da despersonalização

como “valor moderno”:

De maneira geral e unânime, os escritores-críticos modernos abominam a expressão do eu psicológico e seu exacerbamento no sentimentalismo. [...] A despersonalização já era um preceito poético desde meados do século XIX, com Poe, Baudelaire e, sobretudo, Mallarmé. A frase de Rimbaud – “Eu é um outro” – tornou-se a palavra de ordem do poeta moderno. [...] É o sujeito imaginário (falso) da expressividade egocêntrica que é posto em crise na literatura moderna, em razão de uma subjetividade alargada que, ao contrário de anular, aumenta a consciência e a responsabilidade do escritor.590

Essa “subjetividade alargada” é também encontrável em “Ar da floresta

noturna”, poema que alegoriza a “frenética imobilidade num lugar que é todos os

588 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III – Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo (trad. José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista). São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 126. 589 PAZ, Octavio. Ambiguidade do romance. In: O arco e a lira (trad. Olga Savary). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p. 282. 590 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas literaturas. Op. cit., p. 167.

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lugares”591, onde o sujeito – que é todos os sujeitos – aparece sorvido pelo “turbilhão de

permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia”

que caracteriza a “experiência ambiental da modernidade”.592 Vejamos nalgumas das 25

quintilhas decassilábicas como campeia o erradio “espírito moderno” na “floresta

noturna”:

Ar da floresta noturna 593

Sumida sombra, secreta espessura – A noite em meio, ou lembrança do dia, Selva! Selva abismal do tempo, escura, Onde a força renasce, que não dura, E fulge a imagem, forma fugidia: Selva – assombro, sombrio fundo emerso! Ardor indene, força fria e mansa! Ventre que gera a suma do universo! – Tornas o sonho múltiplo, diverso, O tempo em sonho tornas, sem mudança. Ou tempo ou sonho, em teu seio, sozinha, Perdeu-se uma alma, e sozinha consulta A sombra e, sombra ela mesma, caminha... Acaso busca, alma enganosa e minha, Atrás da sombra a maior sombra oculta.

De saída se esboça o cenário sinistro – indiciado no título – em que se

desenvolverá o poema. À semelhança de “Noturno”, também aqui “noite”, “sombra” e

“floresta” (“selva”) se consorciam numa atmosfera fantasmática, que de pronto evoca o

início da Comédia dantesca, em que o sujeito poético vê-se perdido numa selva escura e

em caminho incerto. No poema de Facó, contudo, “sepultou-se na treva um paraíso”594,

e nada ascenderá às altas esferas; o sujeito, aqui, não escapa à noite funda e espessa da

“selva abismal do tempo”, cuja escuridão não se dissolve facilmente: os poucos

vestígios de luz, precários e fugazes, não passam de “lembrança do dia” ou brilho

esquivo de fulgente e fugidia imagem. Tomando a assombrosa floresta como “ventre

que gera a suma do universo”, o poeta estabelece o negror essencial que a seus olhos

tinge o mundo, inapelavelmente imerso em “atro abismo”. Daí sua própria “alma

enganosa” e errante ser “sombra ela mesma”, buscando “atrás da sombra a maior

591 PAZ, Octavio. Os signos em rotação. In: O arco e a lira. Op. cit., p. 324. 592 Cf. nota 395. 593 FACÓ, Américo. Ar da floresta noturna. In: Obra perdida de Américo Facó. Op. cit., pp. 133-37. Os trechos deste poema transcritos a seguir foram extraídos da mesma fonte. 594 Id., ibid., p. 135.

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sombra oculta”. Dissoluto no breu que o envolve, prossegue o sujeito em seu

descaminho:

Eu mesmo, o mesmo, bebo neste engano, E outro, que sou, indago, diferente, Se a aparência me engana, ou se me engano, Ao pensar dispartir-me ao desengano Que faz sentir mais grave o que se sente. Perdidos evos, quem vos acha o traço? Existe um norte onde não adivinho? Qual nume ou nome procuro de espaço? Importa apenas o gesto que faço? – No chão noturno escondeu-se o caminho. Muda-se o mudo momento em surpresa, Ambíguo pasmo, ao vir de outro momento… Jamais se muda a sutil incerteza, Jamais! Jamais! – porta de ouro defesa Da Fábula, que alerta um mundo isento.

Fragmentação, desengano, desnorteio, impermanência – emblemas de um cosmo

tangido “pelo terror da desorientação e da desintegração, o terror da vida que se desfaz

em pedaços”595, cujo único e imutável fundamento é “a sutil incerteza”. Alijado do

passado (“Perdidos evos, quem vos acha o traço?”), lançado na “selva abismal do

tempo, escura”, resta ao sujeito desvalido e solitário o vagar no “chão noturno” que lhe

oculta o caminho, sem esperança de alcançar “porta de ouro” que dê passagem a lugar

benfazejo. Mas nem tudo se afigura tão terrível, e eis que surge um sinal de refrigério:

adeja no poema “a doce mensageira” que prenuncia “dileta presença,/ Atando enleios de

amorosa trama”:

O perpassar de uma sombra ligeira Corta a noite, vai onde a noite a some… Assim perpassa a doce mensageira Saudade, que não sinta quem não queira, E a noite acorda a música de um nome! Talvez de novo a dileta presença, Atando enleios de amorosa trama, Ora tornasse, eterna amante infensa, Para fugir quando menos se pensa… E volta, e parte, e quer, e ilude, e chama!

595 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Op. cit., p. 21.

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A boa expectativa, porém, é logo baldada: artifício da saudade, a “dileta

presença” existe apenas como vã quimera, “para fugir quando menos se pensa”. O

“chão noturno” e movediço da “selva escura” traga também a promessa amorosa de

brandura e acolhimento, esboroada noutro desencanto. Na sequência instala-se em torno

da esquiva aparição uma dinâmica oscilatória entre presença e ausência, ilusão e

realidade, que encena o remoinho vertiginoso de ambiguidades e contradições tão caro

ao discurso e à estética da modernidade:

E chama! E vem de novo, como vinha, A meu desejo, adorada visita, Perdida para sempre, e mais vizinha, A minha toda bela, a minha, minha, Meu bem! Meu mal! Minha amante infinita! Ela, e não ela, imagem dela ainda, Certeza dela, e divina conquista, Veste as rosas da noite, e vem, bem-vinda… Florido engano! E o doce engano finda, E se deflora sobre a imagem vista. Bem longe estais, meus tesouros de outrora – Carícias de sol, palores de lua, Cúmplice olhar ofertando o que implora, Vermelho riso esparzido na aurora Da paisagem de linho branca e nua! Nomais a mim, nomais de mim suponho Rever-me a ver renovar-se de opressa Pena de amor um tumulto risonho! Na sombra a Sombra desfez-se… Foi sonho, Mal acabou… – Novo sonho começa.

A ciranda de paradoxos e contrassensos – “Perdida para sempre, e mais

vizinha”; “Meu bem! Meu mal!”; “Ela, e não ela”; “Veste as rosas da noite, [...]/

Florido engano! E o doce engano finda,/E se deflora sobre a imagem vista” – participa

da mecânica geral do poema, engrenada em contínuo movimento de suscitação e

desfazimento de expectativas posto em marcha desde as primeiras estrofes (“Onde a

força renasce, que não dura,/ E fulge a imagem, forma fugidia”; “Tornas o sonho

múltiplo, diverso,/ O tempo em sonho tornas, sem mudança”). Ativada em ambiente de

sombra, instabilidade, desnorteio, errância, dispersão e desamparo, tal dinâmica

metaforiza com perfeição o sorvedouro em que se estorce o “espírito moderno”.

As estrofes avançam pelas sendas tortuosas da “selva escura” ao passo que o

sujeito segue à roda de busca incerta e, ao fim, malograda: “A mão de leve se alonga,

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palpita,/ Procede lenta no ar soturno e quedo,/ Procura… – Que procura a mão aflita?”,

pergunta-se em dado momento. Imagens desconexas e fragmentárias que figuram o

caos, a treva e a voragem cambiam-se no giro calidoscópico que anima o poema,

alegorizando o vórtice da modernidade e o estilhaçamento do sujeito em “um mundo

esconso, ermo, repulso, rude”:

Lembrança inútil, silêncio indiviso! Espelho de arremedos e de mágoas! Sepultou-se na treva um paraíso, Entre duas águas negras… Treva! nem me aviso Do espírito que vaga sobre as águas. Luz, mas luz presa no abismo indistinto, O pensamento furta-me o que penso, Outro abismo… Atro abismo! – E cedo! e sinto, Imagem dupla de mim mesmo, o instinto, Meu ser de treva entre dois caos suspenso.

/.../

Não sou? não fui? – A unânime verdade Se faz ínvio jardim de ausência pura

/.../

Recresce o caos… Onde a purpúrea argila Se turba, tombam as rosas que dantes Frescas sangravam da manhã tranquila… E tomba a flor de sonho, que cintila – Ouro sutil das estrelas distantes! Eu cego! Eu só! E a negra plenitude No ausente espaço urde a surpresa enorme De um mundo esconso, ermo, repulso, rude… Não mente a noite, a mente não se ilude, É teu, minha alma, este mundo que dorme. É tua a noite, a voragem secreta, Fora do tempo, alheia ao tempo insonte, E as aves torvas do fundo sem meta – Lascívias idas, que a palavra inquieta, Imagens, nuvens de inviso horizonte: É tua a soledade em que te apagas, Imane mar de morte sonolento… E elas revoam de inauditas plagas, Informes – formas dissolutas, vagas, Flutuantes entre a noite e o pensamento. Meu pensamento – minha noite escura! Desejos, iras, penas, alegrias, Foram de novo insuspeita amargura Se foram mais que a sombra, que perdura No abismo das memórias erradias…

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No desfecho, a súplica final desta “alma ferida”596, que, mortificada na “floresta

noturna”, roga à noite – ao sono – que lhe aplaque “penas” e “desejos baldos” e

adormeça “sombras” e “fantasmas tristes”:

Dormi, lembradas iras! Dormi, penas, Desejos baldos que nunca dormistes! As alegrias passaram apenas Como as furtivas mágoas mais serenas…

Dormi, sombras! Dormi, fantasmas tristes!

Como se vê, sob o talhe rigoroso e impassível da forma tradicional – vale dizer:

em meio ao suposto “classicismo anacrônico” ou “esteticismo de fachada” –, incita a

poesia de Facó o convulso “espírito moderno” detectável de resto em boa parte do

complexo lírico dos anos 1940-50. “Noturno” e “Ar da floresta noturna” são exemplos

de como se plasma em Poesia perdida a “atmosfera de agitação e turbulência,

aturdimento psíquico e embriaguez, expansão das possibilidades de experiência [...],

autoexpansão e autodesordem, fantasmas na rua e na alma – a atmosfera que dá origem

à sensibilidade moderna”.597 Todo o conjunto, porém, participa de tal atmosfera, pois,

como salienta Drummond, há entre os textos “uma correlação que estrutura o livro num

só poema, de partes harmoniosas”.598

Regidas e interligadas por essa “harmonia”, despontam em todo o volume

figurações poéticas da “experiência ambiental da modernidade” e da desventura do

atordoado “espírito moderno”. À guisa de ilustração, fragmentos colhidos quase ao

acaso nas páginas de Poesia perdida evidenciam a correlação temática, conceitual e

discursiva (e mesmo vocabular e imagética) que lhes confere a unidade apontada por

Drummond:

596 FACÓ, Américo. Noturno. In: Obra perdida de Américo Facó. Op. cit., p. 122. 597 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Op. cit., p. 27. 598 ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia nobre. In:____. Passeios na ilha. Op. cit., p. 149.

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599600

Essa “correlação que estrutura o livro num só poema” alinha-se com os “valores

modernos” elencados por Leyla Perrone-Moisés. Segundo a crítica, na modernidade,

a obra literária é vista como uma rede de relações entre os elementos que a constituem [...].Ela se apresenta, pois, como um microcosmo autossuficiente. [...] Nos modernos, o livro é projetado como construção verbal, espetáculo ideográfico, produção de um mundo paralelo contraposto ao mundo esfacelado, sem sentido, do real moderno. Permanece a nostalgia do Todo perdido, sem que subsista a crença nesse Todo ideal.601

599 FACÓ, Américo. Narciso. In: Obra perdida de Américo Facó. Op. cit., pp. 140-5. 600 Id., ibid. O outro. pp. 148-52. 601 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas literaturas. Op. cit., pp. 161-2.

Narciso 599 (fragmentos)

/.../ Nem presença nem sonho, Vaga suspeita, assombra Até as plagas onde A sábia Noite esconde O que não sabe a sombra.

/.../ É dúvida, e se cala, Negrura, e mura o mundo!

/.../ Noite! mãe dos segredos

[...]

Abismo atrás de abismo, Onde a treva os consome! Grito… Nem sou quem grito! Ando… Nem sinto o espaço Em que tenteio o passo, À margem do Infinito! Salto… Um salto na treva, Precípite fugida!

/.../ “Ó Simultaneidade

[...] E múltipla unidade!

/.../ Enleva-me um tumulto, E já meu drama oculto Mostra na própria fonte. Eu nele, indefinido, Sou um! sou dois! – componho O sonhador e o sonho

/.../

O outro 600 (fragmentos)

/.../ E se anima, e se evade Na pura mobilidade Do encantamento improviso

/.../ Toda a luz se vela ao jogo

[...] Em raias de bruma e fogo

[...] O abismo… – No abismo dança O ator sutil da mudança!

/.../ Aqui – noturno convite, Aqui – a sombra limite, Aqui – a margem tranquila, O fim – no delírio espesso, Onde o Impermanente oscila Em perpétuo recomeço.

/.../

A miragem no Deserto… Fatalidade da Treva! Tira ao sonho, ao sono leva, Surpresa do jogo insano

/.../

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Como se vê, múltiplos são os aspectos da modernidade que se revelam em

Poesia perdida. De permeio entre o “verso bem construído [e a] linguagem escorreita e

nobre”602, a “sensibilidade moderna” liga-se intimamente à “liberdade de movimentos

[e às] largas disponibilidades que [essa poesia] conquistou”603 em sua “exata

compreensão do passado”604 e agudo sentimento do presente. Em prefácio a Poemas do

tempo (1947), de seu conterrâneo Leopoldo Brígido, Facó assinala com propriedade a

permanência “do antigo e do perene”605 “no delírio agitado da hora” – atributo que

constitui a pedra de toque de seu próprio volume de poemas:

A poesia moderna resguarda, no delírio agitado da hora, as prerrogativas da Poesia. [...] Não é o presente apenas a linha de separação entre o passado e o futuro? Os poetas o sabem, e por isto costumam de tempo a tempo conter-se e buscar nas regras perdidas o elo da cadeia de ouro em que se funde a continuidade da criação poética.606

Conforme vimos salientando, os anos 1940-50 constituem, na marcha da poesia

brasileira, tempo de “conter-se e buscar nas regras perdidas o elo da cadeia de ouro em

que se funde a continuidade da criação poética”, e o livro de Américo Facó é síntese

desse processo. Como bem adverte Sérgio Buarque de Holanda, “só o amor imperfeito

do passado chega a petrificar-nos e tolher-nos no culto ciumento às formas transatas”.607

Em Facó, ao revés, “a postura clássica”608 não se aprisiona em estéril anacronismo e

tampouco se exaure em “aspectos epidérmicos e puramente ornamentais”609: transida de

inelutável modernidade, essa “poesia, não perdida, achada”610 se firma como “laço/ Que

o passado legou ao Futuro de herança”611 e “já no futuro/ está presente”.612

602 Cf. nota 492. 603 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Poesia perdida. In:____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 539. 604 Id., ibid. 605 Cf. nota 521. 606 FACÓ, Américo. Prefácio. In: BRÍGIDO, Leopoldo. Poemas do tempo. Rio de Janeiro: Agir, 1947. p.11. 607 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Poesia perdida. In:____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 539. 608 Cf. nota 493. 609 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Poesia perdida. In:____. O espírito e a letra (v.2). Op. cit., p. 539. 610 ANDRADE, Carlos Drummond de. A.F.. In:____. Viola de bolso. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação do MEC, 1952. p. 38. 611 FACÓ, Américo. Velha espada. Apud AZEVEDO, Sânzio. A fase parnasiana de Américo Facó. In: Aspectos da literatura cearense. Op. cit., p. 134. 612 ANDRADE, Carlos Drummond de. A.F.. In:____. Viola de bolso. Op. cit., p. 38.

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8. “Contrafação de canto e eternidade”613: O homem e sua hora,

de Mário Faustino

Apesar de legarem seus livros de versos ao complexo poético das décadas 1940-

50, nos quais respondem com lucidez a questões tipicamente modernas, Américo Facó e

Dante Milano são filhos do século XIX. Nascidos respectivamente em 1885 e 1899,

iniciaram-se na poesia nos primeiros decênios da centúria seguinte, em época anterior

ao advento do Modernismo, movimento de que chegaram a participar (a distância,

todavia), como se viu. Dessa perspectiva, o último poeta a integrar a tríade de autores

contemplada neste trabalho guarda diferença capital em relação aos outros dois. Mário

Faustino é, por excelência, homem do século XX: nascido em 1930, teve seus anos de

formação ao tempo da franca afirmação modernista e da consolidação de nossa

modernidade literária. “Sou dos que creem ter a poesia entre nós começado por volta do

movimento de 22: anteriormente, o que há é um ou outro ‘achado’, dois ou três versos

num ou noutro ‘poeta’”614, afirma Faustino em entrevista de 16.12.1956, concedida à

jornalista Mary Ventura.

Considerado o interstício de 20 anos como faixa cronológica de uma geração615,

interpõem-se dois arcos geracionais a afastar Américo de Mário e um arco e meio a

distanciar Milano de Faustino. Pelo critério “ano de nascimento”, os poetas aqui

613 FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora. In: O homem e sua hora e outros poemas. Op. cit., p. 110. 614 Id., Valores novos da literatura brasileira (entrevista). In:____. De Anchieta aos concretos. Op. cit., p. 503. 615 “Uma geração pode reunir indivíduos sob um arco aproximado de 20 anos de distância, de diferença de idade entre o mais velho e o mais novo de seus membros”, assenta Pedro Lyra, sintetizando o ensinamento de diversos teóricos que refletiram sobre a questão (destacadamente Karl Mannheim, Ortega y Gasset, Julián Marías, Claudine Attias-Donfut). Cf. LYRA, Pedro. Geração: genealogia e história. In:____. Sincretismo – a poesia da Geração 60. Op. cit., p. 30.

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reunidos pertencem a gerações – frise-se – separadas pelo sismo modernista.

Isoladamente, este dado talvez fizesse supor que seus livros de poemas se relacionem de

modo diverso, ou mesmo oposto, aos imperativos estéticos das respectivas gerações.

Suspendamos por ora a questão, que será retomada ao devido tempo.

Apontado pelo poeta e crítico Carlos Nejar como “o pioneiro do advento da

Geração de 1960, [...] propulsor de uma nova poética, amigo dos concretistas”616, Mário

Faustino de fato encabeça os antologiados de Pedro Lyra em Sincretismo: a poesia da

Geração 60. O crítico e professor Paulo Franchetti, por seu turno, considerando Mário

“uma das figuras importantes da poesia brasileira no início dos anos de 1950” 617,

posiciona-o “ligado às vanguardas, porém mais próximo da Geração de 45”.618 Não

obstante, a professora Lilia Silvestre Chaves, biógrafa de Faustino, consigna que, “no

panorama da literatura brasileira, os autores que citam o poeta piauiense situam-no ao

lado daqueles que tomaram direção diversa da chamada Geração de 1945”.619 Abona a

assertiva o crítico José Castello, segundo o qual, “apesar de ter começado a publicar no

início dos anos 50, [Faustino] foi um escritor desvinculado da Geração de 45; ao

contrário, foi um homem sempre interessado em delimitar sua independência, quer

dizer, a singularidade que, muito além de todo espírito de escola, define um poeta”.620

Também aqui, registros conflitantes acerca de poeta despontado em livro no complexo

dos anos 1940-50.

As contradições talvez esmaeçam sob a perspectiva que propõe o poeta e crítico

Augusto de Campos. Em “Mário Faustino, o último verse maker”, dupla de artigos

originariamente publicados em 12.8 e 19.8.1967 no suplemento literário de O Estado de

S. Paulo e coligidos em Poesia, antipoesia, antropofagia (1978), Campos apresenta a

seguinte repartição:

A poesia de Faustino pode ser dividida em três fases: a da integração da tradição no moderno – O homem e sua hora [...] e mais os esparsos e inéditos da primeira parte do livro [Poesia de Mário Faustino (1966), com organização e introdução de Benedito Nunes]; a moderna

616 NEJAR, Carlos. Mário Faustino. In: História da literatura brasileira: da carta de Pero Vaz de Caminha à contemporaneidade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2007. pp. 518-9. 617 FRANCHETTI, Paulo. Estudos de literatura brasileira e portuguesa. Cotia: Ateliê Editorial, 2007. p. 27. 618 Id., ibid. 619 CHAVES, Lilia Silvestre. Mário Faustino: uma biografia. Belém: Instituto de Artes do Pará; Academia Paraense de Letras, 2004. p. 20. 620 CASTELLO, José. Feroz independência. In: Revista Bravo! n. 61. São Paulo, D’Avila Comunicações, out. 2002. p. 90.

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– poesia posterior ao advento da poesia concreta (a segunda parte dos esparsos e inéditos, que se compõe de apenas oito poemas, o primeiro dos quais datado de 22.10.1956); a da integração do moderno na tradição – os fragmentos do poema longo, inacabado.621

Benedito Nunes, amigo de Faustino e um dos maiores estudiosos de sua obra,

segue a mesma divisão, frisando que as três fases “tão curtas foram que mais apropriado

seria chamá-las de momentos”.622 A passagem de Augusto de Campos sumaria com

agudeza a breve trajetória do poeta prematuramente desaparecido em 1962, em acidente

aéreo, aos 32 anos. Ela evidencia, per se, a dialética tradição-modernidade no percurso

de M.F., manifestada em cada fase sob diferentes modulações. No que concerne ao eixo

temático e ao recorte cronológico deste trabalho, interessa-nos mais de perto a primeira

etapa (“a da integração da tradição no moderno”), especificamente o que diz respeito a

O homem e sua hora (1955), único volume publicado por Faustino. No entanto, a visão

total, ainda que em linhas gerais, do projeto poético desdobrado nas fases seguintes

ajuda a melhor compreender o livro de 1955 e a situá-lo no conjunto da obra

faustiniana.

A aparente “proximidade com a Geração de 45” mencionada por Franchetti

decerto remonta à fisionomia tradicional de O homem e sua hora, que, “com seu giro

rítmico em torno do decassílabo, seu tributo ao soneto e seu lastro metafórico” 623, se

aproximaria, segundo Augusto de Campos, “senão da ‘Geração’, pelo menos do espírito

de 45”.624 Já a ligação com as vanguardas relaciona-se à amizade com os concretistas

referida por Nejar: Faustino achegou-se a certos procedimentos da poesia concreta, em

especial durante a fase “moderna” – na classificação de A. de Campos –, que se estende,

em grosso, de 1956 a 1959:

Na segunda fase – a mais experimental e ousada – Mário Faustino, já em contato com a problemática da poesia concreta, [...] iria libertar-se ao máximo dos liames tradicionais. Penetram em sua poesia a disposição espacial, a fragmentação e a livre combinação de vocábulos, as associações fonêmicas e paronomásticas; a metáfora explode diretamente, sem conexões sintáticas, de substantivo a

621 CAMPOS, Augusto de. Mário Faustino, o último verse maker. In:____. Poesia, antipoesia, antropofagia. São Paulo: Cortez & Moraes, 1978. p. 45. 622 NUNES, Benedito. A poesia de meu amigo Mário. In: FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. Op. cit., p. 49. 623 CAMPOS, Augusto de. Mário Faustino, o último verse maker. In:____. Poesia, antipoesia, antropofagia. Op. cit., p. 40. 624 Id., ibid.

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substantivo; o decassílabo (que ainda subsiste, patente ou latente) começa a se dispersar.625

O aproveitamento de tais expedientes, no entanto, não significa adesão ao

Concretismo nem adoção irrestrita de seu postulado, conforme esclarece o próprio

poeta:

Não, não sou concretista. Minha formação é muito parecida com a dos poetas Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos e José Lino Grünewald, mas certos aspectos e maneiras dessa mesma formação, bem como, e sobretudo, certas condições pessoais, nos colocaram e nos colocam em posições bem distintas, por mais que pareçam aproximadas aos menos informados. Os poetas acima [...] são congenitamente de vanguarda. São poetas que têm mais compromissos com o futuro que com o passado e o presente [...]. Meu destino pessoal, como poeta, parece ser diferente: a experimentação não me solicita tanto quanto a eles. [...] O que nos separa decorre exatamente da diferença [...] que distingue nossas personalidades e nossas atitudes. Há, em primeiro lugar, as premissas de onde parece partir a experiência concretista: a linguagem atual está moribunda, dificilmente se adapta às necessidades contemporâneas, é preciso criar uma nova poesia para criar uma nova linguagem, o verso está morto, é impossível criar coisa nova – e boa – em verso, etc. Não aceitamos (ou não aceitamos ainda; ou ainda não podemos aceitar) essas premissas ou, pelo menos, não partimos delas com igual impulso nem nas mesmas direções.626

O fragmento está em “Um ano de experiência em poesia”, longo texto datado de

20.9.1957, no qual Faustino efetua um balanço no primeiro aniversário de “Poesia-

Experiência”, página por ele dirigida no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. O

escrito traz importantes indícios – autoanálises, autoavaliações, autocríticas – para a

compreensão do pensamento e da atuação de Faustino como poeta e como crítico. O

exame da relação com os concretos – em especial a verificação das dessemelhanças,

malgrado a incorporação, na segunda fase de sua obra, de expedientes formais

preconizados pelos irmãos Campos e seus companheiros – muito diz de sua posição

estética e de seu projeto poético. Ao rechaçar “as premissas de onde parece partir a

experiência concretista”, Mário reafirma a aposta na estrutura discursiva do verso e do

poema, fundamento que nunca abandonaria de todo. Embora afirme, em passagem do

mesmo texto, haver, “por toda parte, uma crise do verso”627, defende logo após que,

625 Id., ibid., p. 46. 626 FAUSTINO, Mário. Um ano de experiência em poesia. In:____. De Anchieta aos concretos. Op. cit., pp. 490-1. 627 Id., ibid., p. 486.

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“em toda parte, ainda se faz, e pode-se fazer melhor ainda, bom verso”.628 Em certo

sentido, tal crença deixa entrever a permanência do vínculo com a tradição, tão presente

em O homem e sua hora, como se verá adiante. Faustino prossegue:

A tradição continua, retifica-se e continua, não se perde um bom instrumento só porque outro foi inventado, ou se está inventando – sobretudo se ainda não está provada a maior eficiência do mais novo em relação ao mais velho. O verso é importante meio de comunicação – ainda quando não se trata de linguagem poética propriamente dita: a importância do verso como utensílio didático, mnemônico –, fixação e transmissão de experiências – veja-se a importância de quantos verse makers (poetas mesmo ou não) na elevação dos padrões de eficácia de seus idiomas.629

Pouco à frente, a opção pela sintaxe discursiva é reiterada, em contraste com a

linguagem ideogrâmica da poesia concreta:

Aquilo que a palavra (geralmente substantivos ou locuções substantivas) significa para os concretistas, como elemento de estrutura, como origem de valências, quero que a frase inteira, partes inteiras de discurso, versos que sejam, estrofes, cantos, venham a significar para minha poesia. [...] Pretendo continuar criando, em poesia, com todo o arsenal léxico, com todas as partes do discurso, substantivando-as ou não.630

A visada “vanguardista” de Augusto de Campos enxerga nesta posição de Mário

uma espécie de “apego anacrônico” à “poesia em verso[, que] encontra nele seu canto

de cisne”.631 Para Campos,

a liberação que proporcionaram a Faustino as técnicas da poesia concreta, por ele utilizadas de maneira parcimoniosa e não ortodoxa, permitiu-lhe sair do impasse tradição versus moderno, passado versus presente, mas o jogou, insensivelmente, em outro, crucial: presente versus futuro. Faustino ficou, como lhe dizíamos, entalado no “nó mallarmaico” do Lance de dados.632

O que Campos chama “impasse tradição versus moderno” talvez aponte para a

conciliação de instâncias não necessariamente excludentes, num movimento não de todo

estranho aos concretos, como sugere o testemunho Haroldo de Campos: “Éramos, num

certo sentido, Faustino e nós, além de experimentais, ‘tradicionalistas’. Púnhamos, 628 Id., ibid. 629 Id., ibid., pp. 486-7. 630 Id., ibid., p. 493. 631 CAMPOS, Augusto de. Literatura e arte em questão: concretistas explicam a poesia concreta. In: CHAVES, Albeniza de Carvalho e. Tradição e modernidade em Mário Faustino. Belém: UFPA, 1986. p 306. 632 CAMPOS, Augusto de. Mário Faustino, o último verse maker. In: ____. Poesia, antipoesia, antropofagia. São Paulo: Cortez & Moraes, 1978. p. 47.

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porém, ênfases diferentes em cada um desses termos, só aparentemente antitéticos”.633

Em vez do paralisante “nó mallarmaico”, quiçá se possa falar numa hábil laçada

faustiniana a cingir e mesclar o “experimental” e o “tradicionalista”, gesto harmônico

com a detida reflexão sobre “a historicidade da linguagem poética, feita matéria de

experiência cultural, enquanto tradição viva, na qual a herança clássica se fundiu à

moderna, e que [Faustino] conseguiu inculcar em seus versos”634, segundo a acurada

avaliação de Benedito Nunes. Em carta de 1957, Mário assinala que seus “últimos

poemas são primos da poesia concreta: não são irmãos nem filhos”.635 Bom exemplo

desse parentesco oblíquo é o “Soneto” escrito naquele ano de 1957:

Soneto 636

Bronze e brasa na treva: diamantes pingam (vibram) lapidam-se (laceram) luz sólida sol rijo ressonantes nas arestas acesas: não vos deram, calhaus (calhaus arfantes), outro leito corrente onde roçar-vos e suaves vossas faces tornardes vosso peito conformar (como sino) como de aves em brado rebentando em cachoeira dois amantes precípites brilhando: tições em selvoscura: salto! beira de sudário ensopado abismo armando amo r amo r amo r a mo r te r amo de ouro fruta amargosa bala!

e gamo.

633 CAMPOS, Haroldo. Mário Faustino ou a impaciência órfica (depoimento de um companheiro de geração). In:____. Metalinguagem & outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 2006. p. 197. 634 NUNES, Benedito. Apresentação. In: FAUSTINO, Mário. Os melhores poemas de Mário Faustino (seleção Benedito Nunes). São Paulo: Global, 1985. p. 9. 635 FAUSTINO, Mário apud NUNES, Benedito. O projeto de Mário Faustino. In: CHAVES, Albeniza de Carvalho e. Tradição e modernidade em Mário Faustino. Op. cit., p. 292. 636 Id., Soneto. O homem e sua hora e outros poemas. Op. cit., pp. 214-5.

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Considerado o título, causa estranheza a disposição gráfica do poema: em vez

dos esperáveis quartetos e tercetos – ou, no caso de Mário, do usual monóstrofo de 14

versos –, este “Soneto” se vale de configuração sui generis, espacializada, ventilada

pela experiência concretista. No já referido “Um ano de experiência em poesia”,

Faustino, simulando uma autoentrevista, comenta-lhe o feitio “concreto”:

– Mas em seu último poema publicado, há, no final, um pequeno “ideograma” à maneira concretista...

– Não passa de uma “homenagem” ao espírito da época. Simples ilustração. Aquele mesmo soneto, inteiro, pode ser publicado a qualquer momento de outra maneira, “desespacializado”, sem o tal “ideograma”...637

Este “soneto rigorosamente decassilábico, habilmente disfarçado por uma

espacialização funcional, que inclui um ‘pequeno ideograma à maneira concretista’,

com o alinhamento das palavras ‘amor-amora-morte-ramo’ pela coluna, verticalmente

disposta, da letra ‘r’”,638 constitui, para Augusto de Campos, exemplar “típico da

dilaceração faustiniana entre a tradição e o novo, [...] talvez uma tentativa-limite de

salvar a primeira”.639 Em que pese a avaliação de Campos, o “Soneto” antes parece

filiar-se ao esforço deliberado de Faustino “de progredir sem abandonar, um momento

que seja, toda a tradição poética a preceder[-lhe], procurando revivificá-la e aproveitá-

la, adequando-a a novas necessidades”.640

O período de pesquisa e experimentação, marcado “pela assimilação de certos

processos compositivos dos poetas concretos, utilizados de modo muito pessoal”641,

estende-se até fins de 1959, quando M.F. adota outra orientação em seu itinerário

poético. Nesta terceira fase – “a da integração do moderno na tradição”, segundo A. de

Campos –, Mário se volta para a criação de um poema longo “que unisse à profundidade

lírica o acento épico”642, a ser composto indefinidamente por meio de fragmentos que se

iriam articulando para perfazer o Poema-Obra. Segundo Joaquim Francisco Coelho, os

fragmentos seriam “instantes lírico-épicos de uma ‘obra-em-progresso’, que 637 FAUSTINO, Mário. Um ano de experiência em poesia. In:____. De Anchieta aos concretos. Op. cit., pp. 491. 638 CAMPOS, Augusto de. Mário Faustino, o último verse maker. In: ____. Poesia, antipoesia, antropofagia. São Paulo: Cortez & Moraes, 1978. p. 46. 639 Id., ibid. 640 FAUSTINO, Mário. Um ano de experiência em poesia. In:____. De Anchieta aos concretos. Op. cit., p. 492. 641 NUNES, Benedito. O projeto de Mário Faustino. In: CHAVES, Albeniza de Carvalho e. Tradição e modernidade em Mário Faustino. Op. cit., p. 291. 642 Id., ibid., p. 290.

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acompanharia o poeta enquanto ele vivesse. Juntos, conduziriam ao Livro – Le Livre, à

Mallarmé –, ao Poemário existencial de Faustino, síntese alquímica da Vida”.643

Benedito Nunes comenta o projeto:

Em fins de 1959, M.F. concebe que a obra em progresso deverá acompanhar a sua própria vida – till death doeth part us – e constituir-se de fragmentos como os que então passou a escrever. Convertia-se o poema longo em poema-objeto. Pois na verdade, a poesia, refletindo e formando a vida, tornava-se práxis. [...] Essa interação da poesia com a vida, como tarefa, transcendia os limites de um plano literário para ser escolha no sentido eminente, isto é, projeto existencial. [...] É uma antropodisseia que se desenvolve, agregando parcelas seletivas da experiência do artista, tal como a plotless epic dos Cantos de Pound.644

Os Cantos poundianos inspirariam ainda a publicação periódica dos fragmentos,

como destaca Haroldo de Campos: “Mário estava disposto a dá-los à estampa a cada

cinco anos, [...] um pouco à maneira do que fazia Ezra Pound com os drafts de seus

Cantos”.645 O início efetivo da “obra-em-progresso” se dá, como registra Benedito

Nunes, em fins de 1959, mas já em 1957 Faustino afirma sua inclinação para o poema

longo, ponto que o distanciava dos concretos:

Pessoalmente, sempre emprestei grande importância à quantidade, em arte. Os poetas concretos parecem aceitar a posição de Poe, segundo a qual é impraticável o poema longo. Ora, a mim só interessa o poema longo. Toda a minha obra tende à criação de poemas longos, tenta criar poemas longos, prepara-se para a criação deles. [...] Para mim – felizmente ou infelizmente – só o maior – quantitativamente – é relevante, é importante, é capaz de interessar ao homem de nossa época, de assegurar à nossa ameaçada poesia um lugar entre as demais artes e as demais atividades humanas.646

Ainda antes, em O homem e sua hora, o poema que dá título ao volume (e lhe

constitui a terceira parte) espraia-se por 235 versos, dimensão que em muito ultrapassa,

por exemplo, os 14 decassílabos dos “Sete sonetos de amor e morte”, série que compõe

a segunda parte do livro de 1955. Benedito Nunes se refere à carta que Mário lhe envia

por essa época (em 1956), na qual participa ao amigo a criação de um “longo poema”:

643 COELHO, Joaquim Francisco. Morte & ressurreição de Mário Faustino. In: CHAVES, Albeniza de Carvalho e. Tradição e modernidade em Mário Faustino. Op. cit., p. 316. 644 NUNES, Benedito. O projeto de Mário Faustino. In: CHAVES, Albeniza de Carvalho e. Tradição e modernidade em Mário Faustino. Op. cit., p. 294. 645 CAMPOS, Haroldo. Mário Faustino ou a impaciência órfica. In: ____. Metalinguagem & outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 2006. p. 197. 646 FAUSTINO, Mário. Um ano de experiência em poesia. In:____. De Anchieta aos concretos. Op. cit., pp. 492-3.

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De uma composição poética no gênero maior, pertencente a esse tipo de poesia que se realiza com o máximo de palavras, ‘dentro da maior economia de meios’, é que me falava Mário Faustino em carta anterior àquela em que anunciara o seu A reconstrução. Referia-se, então, a um certo longo poema, que contava terminar dentro de um mês e tanto.647

A reconstrução seria o segundo título de M.F., tentativa de “concretizar a ideia

de uma obra quantitativamente considerável, imponente, caudalosa”648, segundo

Benedito Nunes. O crítico revela indícios do livro irrealizado:

Entre os papéis do poeta morto, encontra-se esquematizada a sequência [...] de oito partes, espécie de réplica à trajetória de Dante, e que tem por tema a busca do amor, abrangendo episódios simbólicos. [...] A emergência do concretismo, porém, levou-o a desenvolver certas direções inerentes à sua poesia anterior, e a divisar, de um novo ângulo, a linguagem do poema extenso que ambicionava produzir.649

O desejo e a convicção estética que desde o final de 1959 moveram Faustino

rumo à “obra-em-progresso” amadureciam, como se vê, pelo menos desde O homem e

sua hora. Benedito Nunes anota que, com os fragmentos, “Mário Faustino retomou,

pela última vez, antigo projeto, sem dúvida paradoxal: o retorno ao poema longo, que

respeitasse o espírito de síntese da tradição moderna, em nome do qual Edgar Poe o

repudiara”.650 Com efeito, o “paradoxo” apontado por B. Nunes é aspecto capital da

“integração do moderno na tradição” de que fala A. de Campos. “Empenhado em

projetar, ainda que contra o espírito da época, um poema longo, quantitativamente

voluminoso, à Camões, à Milton, à Dante”651, Faustino cultivava, ao mesmo tempo, a

síntese, que “seria respeitada tanto na composição das partes quanto na construção do

todo, pois que o poema longo deveria surgir e crescer, permanentemente, da

justaposição ou ‘montagem’, periodicamente realizada, de unidades parcelares mínimas,

com a autonomia de poemas comuns”.652 O poema caudaloso permeado pelo “espírito

de síntese da tradição moderna”: eis o documento a reiterar, na derradeira produção de

647 NUNES, Benedito. Introdução ao fim. In: CHAVES, Albeniza de Carvalho e. Tradição e modernidade em Mário Faustino. Op. cit., p. 320. 648 Id., ibid., O projeto de Mário Faustino, p. 290. 649 Id., ibid. 650 Id.. Apresentação. In: FAUSTINO, Mário. Os melhores poemas de Mário Faustino. Op. cit., p. 10. 651 CAMPOS, Haroldo. Mário Faustino ou a impaciência órfica. In: ____. Metalinguagem & outras metas. Op. cit., p. 202. 652 NUNES, Benedito. Apresentação. In: FAUSTINO, Mário. Os melhores poemas de Mário Faustino. Op. cit., p. 10.

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Faustino, “a transação do velho com o novo, [a qual,] eminente em O homem e sua

hora, persistiu na escrita final e agônica dos ‘fragmentos’”.653

Linha mestra das três fases de sua poesia, a dialética tradição-modernidade

norteia também a atividade crítica de Mário, “indissociável e balizadora de sua

experiência de poeta”654, segundo Maria Eugenia Boaventura. Não por acaso os

registros historiográficos, ao mencionarem a obra de Faustino, invariavelmente atrelam

o poeta ao crítico. É ainda a organizadora das recentes edições de M.F. quem assinala:

“O arsenal crítico de Mário Faustino é tipicamente de visada moderna: oscila entre a

ânsia de renovação, de inventividade, de atualidade, e o olhar investigativo, acolhedor e

dirigido à tradição”.655

Iniciada aos 16 anos no matutino A província do Pará, de Belém, a militância

crítica de M.F. desempenha papel destacado na segunda metade da década de 1950,

quando Faustino edita a página “Poesia-Experiência” do Suplemento Dominical do

Jornal do Brasil, prestigioso periódico da então capital federal. De setembro de 1956 a

janeiro de 1959, “Poesia-Experiência” dedica-se ao trabalho de apresentar, divulgar,

analisar e discutir a poesia de várias épocas e diversas línguas (em traduções preparadas

por Faustino e outros colaboradores), num contínuo exercício de reflexão sobre a

experiência poética do passado e a contemporânea, suas questões e seus impasses.

“Numa única página podiam-se encontrar o então iniciante José Lino Grünewald, um

experimentalista como Antonin Artaud e ninguém menos que Sá de Miranda”656, lembra

o jornalista Reinaldo Azevedo, salientando a ecumênica diversidade de expressões

reunidas sob o extenso arco espaçotemporal traçado por Faustino. O poeta-crítico-

editor, por seu turno, define o objetivo da empreitada: “A página quer ser antes de tudo

didática: um pequeno curso de poesia com aulas semanais”.657 A apresentação do

número inaugural de “Poesia-Experiência” manifesta propósitos e propostas:

653 Id., ibid. 654 BOAVENTURA, Maria Eugenia. Um militante da poesia. In: FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. Op. cit., p. 40. 655 Id., ibid., pp. 39-40. 656 AZEVEDO, Reinaldo. Mário Faustino – De volta ao eterno. In:____. Contra o consenso: ensaios e resenhas. São Paulo: Barracuda, 2005. p. 95. 657 FAUSTINO, Mário. Valores novos da literatura brasileira (entrevista). In:____. De Anchieta aos concretos. Op. cit., p. 507.

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Trata-se de uma tribuna e de uma oficina, onde os poetas novos falarão ao público e, em particular, a outros poetas novos, e onde, ao mesmo tempo, os jovens poetas e seus leitores procurarão reviver a boa poesia do passado, à medida que aprendem a fazer a boa poesia do presente e do futuro. O lema de “Poesia-Experiência” (“Repetir para aprender, criar para renovar”) parece exprimir claramente as intenções da página. Através dessa esperamos que o público – comparecendo, em última análise, como protagonista – possa ler, número após número, em pleno processo de elaboração, uma parte significativa da nova poesia brasileira. Aqueles que, como nós, acreditam ser a poesia uma arte; e ser o poeta não uma prima donna e sim artesão honesto, competente músico e ser humano perigosamente vivo, [...] encontrarão sempre abertas, para o debate e para a criação, as diversas seções de “Poesia-Experiência”, página que pretende ser veículo de comunicação do maior número possível dos interessados nos problemas da poesia.658

O excerto revela as bases do pensamento de Faustino acerca do fenômeno

poético e reafirma-lhe o pendor para conciliar o antigo e o novo – “reviver a boa poesia

do passado, à medida que [se aprende] a fazer a boa poesia do presente e do futuro”. Tal

diretriz irmana crítico e poeta, entes que em M.F. convergem na necessidade de

“manter-se em permanente contato com a tradição viva, de onde o novo se alimenta”659,

como frisa Benedito Nunes. O crítico e filósofo ressalta a interpenetração entre a

atividade analítica e a criação poética de Mário a partir do trabalho em “Poesia-

Experiência”:

Mário Faustino, que jamais perdeu de vista as ligações da poesia com a totalidade da cultura, duplicou o seu labor pessoal de poeta [...] com esta atividade de crítico, de didata da poesia, que empregou na elaboração da página semanal do Suplemento Literário do Jornal do Brasil. [...] “Poesia-Experiência”, destinada a divulgar e discutir poesia, [foi] o instrumento de pesquisa mediante o qual extraiu, dos veios da tradição poética aprofundada, um conjunto de vozes que, de Homero a Pound, em uníssono ou em contraponto, iriam ressoar no conteúdo e na forma do seu grande poema, a cuja elaboração dedicou-se integralmente a partir de 1959.660

Engajada em “reconhecer a poesia nova”661 e, ao mesmo tempo, “manter viva a

poesia do passado”662, a ação crítica de Mário Faustino é de fato, por essa perspectiva,

658 FAUSTINO, Mário. Um ano de experiência em poesia. In:____. De Anchieta aos concretos. Op. cit., p. 485. 659 NUNES, Benedito. Introdução ao fim. In: CHAVES, Albeniza de Carvalho e. Tradição e modernidade em Mário Faustino. Op. cit., p. 321. 660 Id., ibid. 661 FAUSTINO, Mário. Um ano de experiência em poesia. In:____. De Anchieta aos concretos. Op. cit., p. 486. 662 Id., ibid.

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indissociável de sua criação poética, “tecido de temas, formas, procedimentos e

técnicas”663 em que se entremeiam o antigo e o moderno. As diferentes fases/faces da

poesia de M.F. repousam sobre essa pedra fundamental; são todas, no bem dizer de B.

Nunes, “variantes do mesmo continente lírico de O homem e sua hora”664, o livro único

que Faustino publicou em vida, o qual nos interessa como integrante do complexo lírico

que vimos estudando.

O homem e sua hora

Poetas “de estreia tardia”, Dante Milano e Américo Facó participam do

complexo estético dos anos 1940-50 com “obras de madureza”, como destacam Manuel

Bandeira e Carlos Drummond de Andrade: “Dante Milano [...] estreou tarde em livro, o

que [...] deu ao artista a vantagem de surgir em plena maturidade”665; “Facó surge tarde,

e não podia surgir antes. [...] Toda a existência do poeta se consumiu na sua

preparação”.666 Mário Faustino, ao contrário, ingressa naquele complexo lírico, segundo

sua autoavaliação, com livro “de poeta a caminho, de poeta que se faz, que não está

feito”.667 O homem e sua hora constitui, consoante o próprio autor, uma “espécie de

relatório de meia dúzia de anos de aprendizado poético”.668 Na entrevista de dezembro

de 1956, Mário reitera a condição de “poeta aprendiz”:

663 NUNES, Benedito. Apresentação. In: FAUSTINO, Mário. Os melhores poemas de Mário Faustino. Op. cit., p. 9. 664 Id., ibid., p. 11. 665 BANDEIRA, Manuel. Apresentação da poesia Brasileira. In:____. Seleta de prosa. Op. cit., p. 443. 666 ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia nobre. In:____. Passeios na ilha. Op. cit., p. 148. 667 FAUSTINO, Mário. Um ano de experiência em poesia. In:____. De Anchieta aos concretos. Op. cit., pp. 489. 668 Id., ibid., p. 489-90.

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Eu ainda estou, e assim continuarei pelo menos por mais uns dez anos, em minha incubadeira, em período de formação, errando aqui, acertando acolá [...]. Tudo que faço, por enquanto, tem um sentido de experimentação, tanto no nível ético, metafísico, psicológico, quanto no plano estético. Quero ser, ainda por muito tempo, um poeta em formação e em transformação.669

As discrepâncias etárias e geracionais que apartam Faustino de Milano e Facó

bem poderiam definir orientações poéticas distintas e por conseguinte estabelecer

configurações estéticas díspares em seus livros únicos. Não obstante, sob o prisma da

dialética tradição-modernidade, as três obras que compõem o corpus deste trabalho

apresentam mais afinidades do que dessemelhanças, como se verá.

O destino não permitiu a Faustino dispor do tempo que imaginava necessário

para seu “período de formação”, o que, contudo, não o impediu de estrear com livro

esmerado, tanto no que concerne à escritura dos poemas quanto ao que diz respeito à

composição do volume como obra conceitualmente ideada. Trabalho de “artesão

competente e hábil no manejo do verso”670, O homem e sua hora exibe a mesma

“correlação que estrutura o livro num só poema, de partes harmoniosas”671, apontada

por Drummond na Poesia perdida de Américo Facó. Pode-se mesmo pensar, como

propõe Benedito Nunes, numa “arte poética, inerente a O homem e sua hora”672,

“projetada num plano cosmogônico”673, no qual o poeta exerce sua demiurgia ao fundar

um universo lírico peculiar, animado por uma mitologia toda própria e elaborado a

partir da “aliança do lírico com o épico como dimensão de sua própria poesia”.674

O livro reúne 22 poemas, 21 dos quais divididos em três seções: “Disjecta

membra”, com 13 textos; “Sete sonetos de amor e morte”; e “O homem e sua hora”,

longo poema que dá título ao volume e constitui-lhe a terceira seção. Destacado do

conjunto, o soneto “Prefácio”, como sugere o nome, inicia a coletânea. O poema

antecipa, condensando-os, elementos, procedimentos, recorrências e intenções do cosmo

poético que se descortinará nos três segmentos subsequentes. Conforme sublinha a

ensaísta Albeniza de Carvalho e Chaves, autora de extenso e importante estudo sobre a

669 FAUSTINO, Mário. Valores novos da literatura brasileira (entrevista). In:____. De Anchieta aos concretos. Op. cit., pp. 505-7. 670 CAMPOS, Augusto de. Mário Faustino, o último verse maker. In:____. Poesia, antipoesia, antropofagia. Op. cit., p. 45. 671 Cf. nota 598. 672 NUNES, Benedito. A poesia de meu amigo Mário. In: FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. Op. cit., p. 49. 673 Id., ibid., p. 48. 674 Id., ibid.

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poesia de Mário Faustino, “Prefácio” não se resume a “mera apresentação de uma série

de produções poéticas que tem em ‘O homem e sua hora’ o seu ponto culminante. É,

antes, o embrião, o germe dos vinte outros poemas intermediários, que vão encontrar no

último, para usar uma linguagem aristotélica, a sua enteléquia”.675 Vejamos como

“Prefácio” prepõe e sintetiza aspectos fundamentais do livro que introduz:

Prefácio 676 Quem fez esta manhã, quem penetrou À noite os labirintos do tesouro, Quem fez esta manhã predestinou Seus temas a paráfrases do touro, A traduções do cisne: fê-la para Abandonar-se a mitos essenciais, Desflorada por ímpetos de rara Metamorfose alada, onde jamais Se exaure o deus que muda, que transvive. Quem fez esta manhã fê-la por ser Um raio a fecundá-la, não por lívida Ausência sem pecado e fê-la ter Em si princípio e fim: ter entre aurora E meio-dia um homem e sua hora.

Forma que reaparecerá em toda a segunda seção de O homem e sua hora, o

soneto monóstrofo e decassilábico (aqui todo vazado em versos heroicos) é a insígnia a

antecipar o padrão métrico e rítmico majoritário nos demais poemas. Também assim a

exuberante orquestração metafórica deste abre-alas, prenunciadora da linguagem

ostensivamente alusiva que se imporá ao longo do livro.

O segmento que abre o soneto – “Quem fez esta manhã” – evoca a presença de

um ente e instaura uma circunstância temporal que coincide com o momento da

enunciação poética, conforme denota o emprego do demonstrativo “esta”. O discurso,

assim, se organiza em torno do ser que gerou a manhã a transcorrer no poema. À

primeira vista, a oração “Quem fez esta manhã” sugere uma interrogação, que, ao cabo,

não se confirma: referido duas outras vezes (nos versos 3 e 10), o segmento introduz o

protagonista (o sujeito oracional) de diversas ações subsequentes, as quais,

relacionando-se com o ato primordial de “fazer a manhã”, compõem a rede de sentidos

tramada no poema. 675 CHAVES, Albeniza de Carvalho e. Tradição e modernidade em Mário Faustino. Op. cit., p. 234. 676 FAUSTINO, Mário. Prefácio. In:____. O homem e sua hora e outros poemas. Op. cit., p. 71.

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Adiante se encadeiam os dois movimentos do primeiro par de versos: quem

palmilhou, à noite, “os labirintos do tesouro” também fez a manhã. Aqui, para além da

evidente continuidade cronológica, insinua-se a ideia de causalidade, como se a feitura

da manhã decorresse do caminhar noturno pelos dédalos. Albeniza Chaves identifica na

aurora fundamental que serve de eixo a “Prefácio” a “renovação promovida pela obra

do poeta, metaforizada na expressão ‘manhã’”.677 Tal aproximação reveste o soneto

introdutório de O homem e sua hora de caráter metapoético, nele imprimindo um feitio

de autoapresentação, do qual é possível derivar leitura reveladora sobre a poesia de

Faustino – o que, bem pesado, justifica a natureza preambular do poema. Conhecedor

do passado literário – “praticamente assimilara tudo o que a tradição poderia oferecer

como forma de pensamento e estrutura em poesia: Homero e a Bíblia, Horácio e Ovídio,

Dante e Villon, os cancioneiros galaico-portugueses, Shakespeare, os espanhóis do siglo

de oro, os metaphysical poets”678 –, “Mário Faustino teve consciência do seu papel

renovador do panorama poético nacional e o demonstrou não apenas nos ensaios e

estudo críticos, mas, sobretudo, nos poemas de O homem e sua hora”679, afirma

Albeniza Chaves. Nesse sentido, o próprio Mário assevera: “procuro fazer poesia [...]

para transformar, o mínimo que seja, o mundo, a língua, a arte”.680 Dessa forma, a

manhã renovadora seria mesmo antecedida de profícuo passeio pelos labirintos (poesia

de diversas épocas, línguas e culturas) em que se deposita o pujante tesouro do qual

Faustino vai extrair à larga o material com que erige seu universo poético.

Considerado o caráter de autoapresentação, não deixa de ser curioso que em

“Prefácio” não conste qualquer indício que permita distinguir ou particularizar, de

forma direta, o sujeito poético. As marcas gramaticais (destacadamente verbos e

pronomes) apontam a terceira pessoa, tornada elemento referencial basilar já na

abertura do poema, sob a persona do “fazedor da manhã”. Engendra-se, assim, um

discurso autorreferenciado que camufla a pessoa que o enuncia, a qual só se deixa

apreender obliquamente, por intermédio de um jogo indireto de símbolos e

significações. A propósito, Benedito Nunes, analisando o projeto poético de Mário

Faustino, registra que “o Eu exigente do artista [...] impessoaliza-se o mais possível nas

677 CHAVES, Albeniza de Carvalho e. Tradição e modernidade em Mário Faustino. Op. cit., p. 38. 678 COELHO, Joaquim Francisco. Morte & ressurreição de Mário Faustino. Ibid., p. 309. 679 CHAVES, Albeniza de Carvalho e. Ibid., p. 35. 680 FAUSTINO, Mário. Valores novos da literatura brasileira (entrevista). In:____. De Anchieta aos concretos. Op. cit., p. 506.

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coisas, [...] mas permanece interrogando, interpelando, invocando os seres”681, e “o

poema se insere na perspectiva da ‘biografia épica’, ‘biografia total’”.682

Ao fazedor da manhã atribuem-se outros gestos que, articulados com o primeiro,

compõem o debuxo alegórico da atuação poética de M.F., especialmente do que nela

resulta em conjugação de passado e presente. Por esse prisma, é significativo o

fragmento dos versos 3 a 5. À luz do pensamento e da própria poesia de Mário, a

referência a “paráfrases” e “traduções” remete a expedientes de repetição

transfiguradora, os quais, efetivados a partir de intervenção em obra geralmente alheia,

pressupõem uma espécie de concriação como instância necessária. Tal raciocínio

tangencia o lema poundiano adotado por Faustino: “Repetir para aprender, criar para

renovar”. Predestinando seus temas a paráfrases e traduções, o poeta manifesta a

consciência de que sua obra, muito embora “renovadora”, participa de um antiquíssimo

e complexo continuum de criações que, grosso modo, respondem a um núcleo temático

essencial e imemorial, espécie de repositório de questões fundamentais ligadas à própria

aventura da existência sucessivamente revisitado e reprocessado. Nesse sentido,

Benedito Nunes detecta na poesia de Faustino o desejo de “construir na linguagem, em

torno dos eternos temas do Amor e da Morte, uma concepção do mundo”.683 No mesmo

passo, José Francisco Coelho assinala:

Toda a poesia de M.F. [...] assenta-se numa temática triangular: o amor, a morte e a própria poesia. Este tríptico ideológico, por sua vez, abre-se no sentido de vários subtemas – Deus, o tempo, a salvação da alma, a náusea ou a glorificação da existência – vinculados de uma ou de outra forma às três linhas de força do pensamento faustiniano.684

Se o movimento metapoético de “Prefácio” é exemplo da poesia tomando-se a si

própria como objeto e assunto, diversos são os textos de O homem e sua hora que

atestam a alta incidência dos outros componentes da tríade temática preferencial de

Faustino, como evidencia, por exemplo, a segunda seção do livro – os “Sete sonetos de

amor e morte”. Referindo-se a Mário como “o vate, o bardo moderno, ávido de magia e

profecia, esconjurando com metáforas os descaminhos do amor, da frustração e da

681 NUNES, Benedito. O projeto de Mário Faustino. In: CHAVES, Albeniza de Carvalho e. Tradição e modernidade em Mário Faustino. Op. cit., p. 294. 682 Id., ibid. 683 Id., ibid., p. 287. 684 COELHO, Joaquim Francisco. Morte & ressurreição de Mário Faustino. Ibid., p. 310-1.

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morte”685, Augusto de Campos ressalta a sinistra identidade entre a vida e a obra do

poeta precocemente desaparecido: “Realmente, chega a ser impressionante a

coincidência da temática da morte jovem na poesia de Faustino com os acidentes e as

circunstâncias do seu próprio trágico fim”.686

Em “Prefácio”, a predestinação de “temas a paráfrases do touro,/ a traduções do

cisne” parece relacionar-se com esta questão basilar do universo poético de M.F..

Costumeiramente associados a força e beleza – atributos também perseguidos e

alcançados por essa poesia, que procura “exprimir, da maneira mais bela, eficiente e

durável possível o sentimento de seu tempo e de seu mundo”687 –, “touro” e “cisne”

trazem latente, no plano simbólico, algo de funesto que ecoa com intensidade no

discurso faustiniano. O Dicionário de símbolos de Herder Lexikon registra:

No Egito, Ápis, o deus da fecundidade, era venerado sob a forma de um touro [...]; equiparado a Osíris, passou também a ser um deus funerário. Festejava-se a morte e o sepultamento do touro consagrado a Ápis [...]. O sacrifício de touros e o batismo com seu sangue, no culto de Mitra, [...] representam os poderes do touro ligados à morte e à ressurreição.688 ................................................................................................................

Segundo crenças gregas, o cisne possuía a capacidade de vaticinar e predizer a morte. [...] O canto do cisne – lamentos que ele supostamente entoa antes de sua morte – tornou-se símbolo dos últimos atos ou da última palavra de um homem.689

Pondo em curso a “rara metamorfose alada”, o poeta – o inexaurível “deus que

muda, que transvive”– tece constelada rede de metáforas e alegorias em que logra

“abandonar-se a mitos essenciais”. Em O homem e sua hora, elementos bíblicos e

mitológicos, referências ao mundo clássico, alusões à poesia fundadora de, por

exemplo, Homero e Safo de Lesbos690 entrelaçam-se na composição de um estrato

poético essencialmente simbólico, por meio do qual o poeta busca conhecer e revelar.

José Lino Grünewald sublinha o “arrojo metafórico [...] e o seu revigoramento

685

CAMPOS, Augusto de. Mário Faustino, o último verse maker. In:____. Poesia, antipoesia, antropofagia. Op. cit., p. 44. 686 Id., ibid. 687 FAUSTINO, Mário. Um ano de experiência em poesia. In:____. De Anchieta aos concretos. Op. cit., p. 485. 688 LEXIKON, Herder. Dicionário de símbolos. São Paulo: Cultrix, 2007. p. 193. 689 Id., ibid., p. 60. 690 Mencionem-se, à guisa de ilustração, os títulos de dois dos “Sete sonetos de amor e morte”: “Estava lá Aquiles, que abraçava” e “Ego de mona kateudo”, este um verso de Safo citado diretamente do grego, que pode ser traduzido por “E estou deitada, sozinha”.

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moderno”691 na poesia de Faustino, “cantor que celebra o amor e a morte iminente com

evocações e alegoria dos clássicos, [...] especialmente os gregos – a sua mitologia

revisualizada numa catarse hodierna homem & cosmos”.692

Este aparato mítico parece aliançado ao que Benedito Nunes identifica como

aspirações “ancestrais, de ordem metafísico-religiosa” 693, inerentes ao homem. De fato,

para Faustino, “a poesia serve para manter vivos e eficazes os mecanismos humanos de

percepção do universo, [...] para atender às necessidades metafísicas, místicas e míticas

do ser humano [...]. A poesia deve procurar reunir os homens e identificá-los ao

universo social e cósmico”.694 Isso faria o poeta, segundo B. Nunes, “intérprete de sua

época e de seu povo, capaz de ter uma visão de conjunto das coisas e das situações no

presente e projetar-se no futuro por meio do ‘raciocínio utópico’”695, o que o revestiria

“de uma vaga responsabilidade histórica perante a sua época”.696

Associado ao gesto inventivo, o ato interventivo do poeta é reafirmado na parte

final de “Prefácio”. Nos versos 10 a 13, transmudado em raio viril, ele fecunda a manhã:

a ação poética, potência luminescente, surge em oposição à inatividade da “lívida

ausência” casta e estéril. Para Faustino, o ato poético frutífero é consciente, sistemático

e efetivo, orientado para uma finalidade, em contraste com a escrita gratuita e arbitrária,

fátua e diletante. O número de estreia de “Poesia-Experiência” reproduz o seguinte

trecho de Ezra Pound: “A mestria em arte é trabalho para uma vida inteira. [...] O caos

atual durará até que a Arte da poesia tenha sido metida à força garganta abaixo do

amador, até que haja conhecimento geral do fato de que a poesia é uma arte, não um

passatempo”.697 Esta postura positiva e empenhada é defendida na entrevista de

dezembro de 1956:

691 GRÜNEWALD, José Lino. Mário Faustino – poeta e crítico. In: CHAVES, Albeniza de Carvalho e. Tradição e modernidade em Mário Faustino. Op. cit., p. 283. 692 Id., ibid. 693 NUNES, Benedito. A poesia de meu amigo Mário. In: FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. Op. cit., p. 50. 694 FAUSTINO, Mário. Um ano de experiência em poesia. In:____. De Anchieta aos concretos. Op. cit., p. 488-9. 695 NUNES, Benedito. A poesia de meu amigo Mário. In: FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. Op. cit., p. 50. 696 Id., O projeto de Mário Faustino. In: CHAVES, Albeniza de Carvalho e. Tradição e modernidade em Mário Faustino. Op. cit., p. 289. 697 POUND, Ezra apud FAUSTINO, Mário. Um ano de experiência em poesia. In:____. De Anchieta aos concretos. Op. cit., p. 484.

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O poeta deve orientar tudo o que faz no rumo de seu centro poético, criador: deve trabalhar, comer, beber, amar... tudo para fazer poesia e melhor poesia. [...] O poeta precisa conseguir e manter sua unidade de espírito: abaixo os poetas bissextos! É preciso pensar todo o tempo em poesia, ser profissional, ler poesia o máximo e fazer um pouco todos os dias. [...] Há que se exigir do poeta aquelas qualidades que definem o artista: coragem em todos os sentidos, espírito de aventura, espírito criador e renovador.698

Em “Prefácio”, o devotamento com que o poeta realiza seu ofício transparece na

obra-manhã feita com todo rigor: trazendo “em si princípio e fim”, ela vige, exata e

completa, “entre aurora e meio-dia”, intervalo luminoso em que sua poética se revela

sob a claridade crescente, até o auge do sol a pino. Segundo Albeniza Chaves, o fazedor

da manhã, ciente de seu papel renovador, transita, na construção simbólica do livro,

entre a aurora e o meio-dia, “como um homem e sua hora (o poeta e seu destino)”.699

Este curso encontra termo no terceiro e último segmento – o extenso poema que dá

título à coletânea, espécie de súmula da poética faustiniana –, correspondente, segundo

a professora e ensaísta, ao “meio-dia, enquanto ‘Prefácio’ e os poemas de ‘Disjecta

membra’ constituem a aurora da manhã feita pelo poeta”.700

O percurso sinalizado em “Prefácio” inicia-se no poema seguinte, “Mensagem”,

que bem ilustra o “substrato mágico e mítico da linguagem poética”701 clássica e altiva

de O homem e sua hora. No que concerne ao interesse do presente estudo, a primeira

peça da série “Disjecta membra” traz aspectos importantes da dialética tradição-

modernidade na poesia de Faustino. Eis o poema:

Mensagem 702 Em marcha, heroico, alado pé de verso, busca-me o gral onde sangrei meus deuses; conta às suas relíquias, ontem de ouro, hoje de obscura cinza, pó de tempo, que ele os venera ainda, o jogral verde que outrora celebrou seus milagres fecundos.

698 FAUSTINO, Mário. Valores novos da literatura brasileira (entrevista). Ibid., p. 506. 699 CHAVES, Albeniza de Carvalho e. Tradição e modernidade em Mário Faustino. Op. cit., p. 38. 700 Id., ibid., p. 38. 701 NUNES, Benedito. Apresentação. In: FAUSTINO, Mário. Os melhores poemas de Mário Faustino. Op. cit., p. 7. 702 FAUSTINO, Mário. Mensagem. In:____. O homem e sua hora e outros poemas. Op. cit., p. 74-5.

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Dize a eles que vinham tecer silentes minha eternidade que a lava antiga é pura cal agora e queima-lhes incenso, e rouba-me farrapos de seus mantos desertos de oferendas onde possa chorar meu disfarce ferido. Dize a eles que tombam como chuvas de sêmen sobre campos de sal sem mancha, mas terríveis que desçam sobre a urna deste olvido e engendrem rosas rubras do estrume em que tornei seus dons de trigo e vinho. Segue, elegia, busca-me nos portos e nas praias de Antanho, e nas rochas de Algures os deuses que afoguei no mar absurdo de um casto sacrifício. Apanha estas palavras do chão túmido onde as deixo cair, findo o dilúvio: forma delas um palco, um absoluto onde possa dançar de novo, nu contra o peso do mundo e a pureza dos anjos, até que a lucidez venha construir um templo justo, exato, onde cantemos.

Num momento em que o próprio poeta afirma haver, “por toda parte, uma crise

do verso”703, é justo o verso “heroico”, de pés alados (qual o mitológico Hermes,

emissário dos deuses, inventor da lira), que ele convoca para levar sua mensagem a um

tempo mítico e benfazejo, idealmente concebido. Esse passado harmonioso, povoado de

divindades magnânimas, contrapõe-se a um presente de desalento e desamparo,

simbolizado em “pura cal” e “campos de sal”, tempo infértil e infenso aos “milagres

fecundos” de antes. Já na primeira estrofe inicia-se o movimento que transfigura o

outrora bonançoso no agora daninho: a oposição entre as relíquias divinas – “ontem de

ouro,/ hoje de obscura cinza” – deflagra o contraste entre as duas esferas temporais, em

torno do qual se estrutura o poema.

O alcance de tal antinomia é ampliado pela leitura alegórica do texto poético, a

partir da qual se pode atribuir ao sujeito lírico o status de homem da modernidade.

Nesse passo, o conjunto de elementos classicizantes (signos como “pé de verso”, “gral”,

“deuses”, “jogral”; a dicção solene e o tom invocatório; o predomínio rítmico do

decassílabo) remete ao acervo cultural da tradição, o qual, embora acionado pelo poeta,

aparece desvalorado e deliberadamente repelido no presente instaurado no poema. Nesta 703 Cf. nota 627.

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dinâmica de recusa, os deuses (representantes por excelência do classicismo greco-

romano, pilar da cultura ocidental) estão extintos, de vez que foram sangrados e

afogados (cf. versos 2 e 21) pelo sujeito poético (ou, metonimicamente, pelo homem

moderno). No plano alegórico, o deicídio encena o apagamento da tradição apregoado

pela modernidade do último século, em especial nas primeiras décadas, conforme

sinalizamos, entre outras passagens, nas páginas 29 e 30.

A despeito de rogar à sua “elegia” que busque “nas praias de Antanho e nas

rochas de Algures” os deuses abatidos, o poeta deixa entrever, na abertura da terceira

estrofe, que a ausência lastimada não é absoluta. Os versos 13 e 14 referem-se a “[...]

eles que tombam/ como chuvas de sêmen sobre campos de sal”: núcleo da oração

adjetiva a qualificar o pronome “eles” (que se refere, no discurso, a “deuses”), a forma

verbal “tombam”, no presente do indicativo, aponta para a permanência das divindades,

as quais, por sortilégio, manifestam-se como chuva inaudita. O atributo divino de “tecer

[a] eternidade” (v. 8) desdobra-se na ideia de descendência inerente à imagem da

“chuva de sêmen”, que implica, por sua vez, a noção de continuidade (de perpetuação

transgeracional), própria da tradição. “A tradição continua, retifica-se e continua”704,

assevera o crítico Faustino. Já o poeta metaforiza este pensamento no condão seminal

dos “deuses” (e, por extensão, do lastro cultural que encerram), embora o poder

fecundante da “chuva de sêmen” resulte inócuo nos sáfaros “campos de sal”. Não

obstante inscrever-se no solo árido e neutralizante da modernidade, pretensamente

imune ao apelo germinativo da tradição, a poesia de Mário Faustino – em especial a que

rebenta na seara de O homem e sua hora – distingue-se, ao contrário, pela alta

fertilidade quando em contato com as matrizes tradicionais.

Compungido num tempo que se busca afirmar pelo aniquilamento do passado, o

sujeito lança a sua “Mensagem” a fim de que os deuses se desprendam do limbo do

esquecimento e, retomando o protagonismo de outrora, novamente operem “milagres

fecundos”: “Dize a eles [...]/ que desçam sobre a urna deste olvido/ e engendrem rosas

rubras/ do estrume em que tornei seus dons de trigo e vinho”. A intervenção “divina” é

evocada para transmudar a matéria reles do presente 705: tornado “rosa rubra”, o dejeto

704 Cf. nota 629. 705 Na primeira estrofe, a expressão “hoje de obscura cinza” corrobora a redução do tempo presente a algo insignificante. Albeniza Chaves salienta que “a ‘cinza’, para Bachelard, deprecia a purificação pelo fogo, por ser ‘verdadeiro excremento’”. Cf. CHAVES, Albeniza de Carvalho e. Tradição e modernidade em Mário Faustino. Op. cit., p. 40.

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se dignifica e ombreia com os antigos “dons de trigo e vinho”. Sob o prisma da alegoria,

engendra-se neste encadeamento metafórico sofisticada alusão ao contínuo

reprocessamento da tradição. A aparentemente desprezível substância do presente – o

“estrume” – resulta, segundo informa o sujeito poético, de “dons de trigo e vinho”

ofertados pelos “deuses” (ou, no plano alegórico, pelo complexo cultural que

simbolizam); o mesmo “estrume” é também, a um só tempo, adubo que fertiliza o solo e

potencializa a florescência da “rosa rubra”. A breve passagem sintetiza, pois, a

ininterrupta dinâmica que inter-relaciona passado e presente, tradição e modernidade,

em mútua e contínua implicação: trigo e vinho de ontem transformados no excremento

de hoje, que favorecerá a medrança da flor de amanhã.

Na última estrofe, findo o genesíaco “dilúvio” – estiada a “chuva de sêmen” em

que se transmudam os deuses de antanho ––, a aridez dos “campos de sal” cede passo à

fertilidade do “chão túmido” em que o sujeito semeia palavras (“onde as [deixa] cair”).

Determinando à sua elegia que as apanhe, o poeta-demiurgo ordena que delas resulte

curiosa combinação: se “o poema conjura a noção de um teatro”706, como assevera

Octavio Paz, Faustino propõe que de sua palavra se formem “um palco” e, ao mesmo

tempo, “um absoluto”. O acionamento simultâneo desses signos promove a associação

entre as ideias de “lugar destinado às representações, onde se desenrola um

acontecimento trágico ou solene”707 e “realidade plena, ilimitada, essencial, que não

depende senão de si mesma para existir”.708 Arte que “aprofunda o sentimento trágico

da existência”709 e se projeta “num plano cosmogônico”710, a poesia de Mário Faustino

se autodefine com mestria neste lance metapoético.

O estatuto de “realidade plena” se estabelece nos termos em que Leyla Perrone-

Moisés define a obra literária da modernidade: “uma rede de relações entre os

elementos que a constituem [...], um microcosmo autossuficiente [...] contraposto ao

mundo esfacelado, sem sentido, do real moderno”.711 Para Faustino, “a poesia, como

toda arte, e talvez mais que as outras, é importante meio de universalização, importante

arma contra a fragmentação, contra a compartimentalização, particularmente sensível

706 PAZ, Octavio. Os signos em rotação. In: O arco e a lira. Op. cit., p. 344. 707 Acepções do substantivo “palco” registradas no Dicionário Houaiss Eletrônico (versão 3.0), Op. cit.. 708 Significado do substantivo “absoluto”, ibid.. 709 NUNES, Benedito. O projeto de Mário Faustino. In: CHAVES, Albeniza de Carvalho e. Tradição e modernidade em Mário Faustino. Op. cit., p. 288. 710 Cf. nota 673. 711 Cf. nota 601.

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em nosso mundo capitalista”.712 É nesse sentido que, de forma propositada, sua poética

“tende ao todo, à unidade”713: “no universo verbalizado, as coisas se enlaçam, se

correspondem e se completam significativamente, como as palavras no discurso”.714

Constituir-se como “realidade plena” ou “microcosmo autossuficiente”, todavia, não

significa pretender-se impoluta e impermeável ao que a circunda. O intento declarado

dessa poesia é, ao contrário, “exprimir [...] o sentimento de seu tempo e de seu

mundo”715 – daí firmar-se “contra o peso do mundo e a pureza dos anjos”, em

movimento análogo ao que a opõe, em “Prefácio”, ao abstencionismo da “lívida

ausência sem pecado”.

Conquanto afirme que sua poética propenda “a ser mais comprometida com o

passado e o presente que com o futuro”716, Faustino conclui “Mensagem” em sentido

prospectivo: os dois últimos versos apontam para um porvir em “que a lucidez venha

construir/ um templo justo, exato, onde cantemos”. No entanto, a expectativa de que se

edifique um “templo”, isto é, um lugar em honra de uma divindade, sugere a restauração

(ou a permanência) do passado venturoso habitado pelos deuses reiteradamente

aludidos, em tom saudoso, ao longo do poema. Os atributos deste “templo” – justeza e

exatidão, emblemas de um classicismo glorioso – despontam como qualidades a serem

recuperadas no presente precário e derruído, sobre cuja “obscura cinza” se erguerá,

“justo e exato”, o construto da “lucidez”. Conforme sublinha Haroldo de Campos, “a

completude e a perfeição são nostalgias clássicas, substancialistas, de harmonia e

reconciliação, num mundo como o nosso, laico e dilacerado”717 – e a poesia, remata

Octavio Paz, promove “a momentânea reconciliação: ontem, hoje, amanhã”.718

A arregimentação simbólica que permeia “a transação do velho com o novo

eminente em O homem e sua hora”719 reincide em certos aspectos que assinalam a

percepção – e, mais, a efetiva manifestação – do espírito da modernidade no discurso de

Faustino. A constante referência a um agora adverso (não raro contraposto a um passado

712 FAUSTINO, Mário. Um ano de experiência em poesia. In:____. De Anchieta aos concretos. Op. cit., p. 489. 713 Id., ibid. 714 NUNES, Benedito. O projeto de Mário Faustino. In: CHAVES, Albeniza de Carvalho e. Tradição e modernidade em Mário Faustino. Op. cit., p. 288. 715 Cf. nota 687. 716 FAUSTINO, Mário. Um ano de experiência em poesia. In:____. De Anchieta aos concretos. Op. cit., p. 492. 717 CAMPOS, Haroldo. Mário Faustino ou a impaciência órfica. In: ____. Metalinguagem & outras metas. Op. cit., p. 212. 718 PAZ, Octavio. Os signos em rotação. In: O arco e a lira. Op. cit., p. 348. 719 Cf. nota 653.

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mítico e ditoso, como em “Mensagem”) parece empenhada em encenar, neste palco,

neste absoluto, a “experiência ambiental da modernidade”720 de que fala Marshall

Berman, em passagem já mencionada no exame dos livros de Dante Milano e Américo

Facó. Tal qual “Mensagem”, vários poemas de O homem e sua hora figuram um

presente hostil e ameaçador. Citem-se alguns versos em que o momento presente

comparece por intermédio de marcas discursivo-textuais – tempo verbal, advérbios,

adjetivos, o demonstrativo “este” – em referência ao instante em que se fala: “Nem uma

só verdade resplandece/ Neste verão sonhado por abutres”721 (“Noturno”); “Agora o

bandoleiro brada e atira/ Jorros de luz na fuga de meu dia”722 (“Legenda”); “Sinto que o

mês presente me assassina/ As aves atuais nasceram mudas /.../ Há luto nas rosáceas

desta aurora/ Há sinos de ironia em cada hora”723 (“Sinto que o mês presente me

assassina”). O derradeiro poema do volume – o extenso “O homem e sua hora” – inicia-

se com longa referência ao presente desolador, sobre o qual “bestas/ aladas pairam, à

hora de o futuro/ fazer-se flama, e a nuvem derreter-se/ em cinza do presente”:

O homem e sua hora 724 (fragmento)

... Et in saecula saeculorum: mas Que século, este século – que ano Mais-que-bissexto, este – Ai, estações – Esta estação não é das chuvas, quando Os frutos se preparam, nem das secas, Quando os pomos preclaros se oferecem.

[...] Esta é outra estação, é quando os frutos Apodrecem e com eles quem os come. Eis a quinta estação, quando um mês tomba, O décimo-terceiro, o Mais-Que-Agosto, Como este dia é mais que sexta-feira E a hora mais que sexta e roxa. Aqui, Sábia sombra de João, fumo sacro de Febo, Venho a Delfos e Patmos consultar-vos, Vós que sabeis que conjunções de agouros E astros forma esta Hora, que soturnos Voos de asas pressagas este instante. Nox ruit, Aenea, tudo se acumula Contra nós, no horizonte. As velas que ontem

720 Cf. nota 395. 721 FAUSTINO, Mário. Noturno. In: ____. O homem e sua hora e outros poemas. Op. cit., p. 77. 722 Id., ibid., Legenda, p. 79. 723 Id., ibid., Sinto que o mês presente me assassina, p. 92. 724 FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora. In: ____. O homem e sua hora e outros poemas. Op. cit., pp. 106-7.

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Acendemos ou brancas enfunamos O vento apaga e empurra para o abismo. As cidades que erguemos, nós e nossos Serenos ascendentes se arruínam

[...]

Nos poemas de O homem e sua hora, o presente tétrico, já o frisamos, é

frequentemente confrontado com o passado de glórias. Tal estratégia corresponde à

evocação do “mito nostálgico de um pré-moderno Paraíso Perdido”725, marca do

discurso da modernidade também assinalada nos outros dois livros abordados neste

estudo. Na mesma esteira, poderíamos novamente lançar mão da “axiologia de uma

certa modernidade literária”726 compendiada por Leyla Perrone-Moisés para que, no

plano da elaboração textual, ressaltassem no livro de Mário Faustino (como nos de

Dante Milano e de Américo Facó) valores como a maestria técnica, a unidade na

concepção da obra (organizada como “realidade plena”, “um microcosmo

autossuficiente”), a impessoalidade do sujeito poético, a visualidade, a intensidade. Tais

elementos inscreveriam, por si sós, O homem e sua hora no painel da poesia moderna

do último século.

Nada obstante, Augusto de Campos entende que o volume, “saído quando já se

desencadeavam os primeiros lances do movimento que iria resultar na poesia concreta,

parecia ter chegado um pouco tarde”.727 Para o poeta e crítico, “às vésperas da eclosão

daquele movimento, [...] a poesia de Faustino não era inovadora, [...] quase que se

poderia dá-la como um fruto tardio, [...] não se distinguisse o poeta por uma formação

diversa, muito mais poundiana que eliotiana, [...] aberto à experimentação e à

rebeldia”.728 De fato, como se viu, a intensa conexão de M.F. com as matrizes da

tradição está na base de O homem e sua hora, o que, contudo, não o impede de ligar-se,

também, à irrenunciável modernidade de seu tempo. Ao cabo deste capítulo estaria,

pois, caracterizada, no derradeiro componente de nosso corpus, a dialética tradição-

modernidade que, definidora do complexo poético dos anos 1940-50, irmana as três

obras sobre as quais nos debruçamos.

725 Cf. notas 450 e 451. 726 Cf. notas 405 e 406. 727 CAMPOS, Augusto de. Mário Faustino, o último verse maker. In:____. Poesia, antipoesia, antropofagia. Op. cit., p. 40. 728 Id., ibid.

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É de se registrar, contudo, que, diferentemente de Dante Milano e Américo

Facó, cujos anos de formação transcorreram durante o domínio parnasiano-simbolista,

Mário Faustino nasceu e formou-se em plena vigência do Modernismo, vale dizer, no

período de franca consolidação de nossa modernidade literária. O futuro poeta e crítico

contava adolescentes 15 anos quando, em 1945, Drummond publicou A rosa do povo,

livro capital que o consagraria como grande nome da poesia brasileira moderna, e João

Cabral lançou O engenheiro, título fundamental que definiria nova diretriz de sua obra

e, também, da poesia moderna no Brasil. O sólido conhecimento da poesia sua

contemporânea, nacional e estrangeira, aliado à identificação com o pensamento e a

obra de Ezra Pound (influência decisiva na atuação de M.F.), atesta a formação e a

visada modernas do poeta-crítico piauiense.

Dessa forma, o reprocessamento da tradição operado por Faustino parece

adquirir um matiz especial. Em Milano e Facó, a apropriação do passado pode ser

atribuída, ao menos em parte, à formação de que não puderam fugir (nem libertar-se de

todo) e à consequente “fidelidade” a um gosto ou a uma sensibilidade estética forjados

na primeira juventude. Isenta de tais imperativos, a postura de Faustino em favor da

tradição parece revestir-se de mais alta consciência, uma vez que definida, de forma

deliberada, a partir de uma perspectiva originariamente moderna. Nesse passo, o cultivo

e o aproveitamento da tradição decorrem, em Faustino, de um movimento crítico

conscientemente integrado ao fluxo da modernidade, num gesto muito mais afinado

com seu espírito “aberto à experimentação e à rebeldia” do que tributário da difusa e

ingênua “tendência estetizante” com que certa crítica literária busca definir, de maneira

comezinha, o complexo poético em que toma parte O homem e sua hora.

Para além de valores ou aspectos estruturais, formais, discursivos ou

conteudísticos que, aferíveis por meio de alguma “axiologia de certa modernidade

literária”, o inscrevam na atualidade de seu tempo, o livro de poemas de Mário Faustino

parece definir seu caráter moderno na postura e na consciência críticas – “O que

distingue a modernidade é a crítica”729 – de seu autor. Inegável e deliberadamente

associado à tradição, ele se faz moderno ao participar do desalojamento da “tradição

imperante [...], para, um instante após, ceder lugar a outra tradição, que, por sua vez, é

outra manifestação momentânea da atualidade”.730 O pensamento de Octavio Paz, já

729 Cf. nota 286. 730 Cf. nota 287.

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referido na primeira parte deste trabalho, decerto se aplica aos demais componentes de

nosso corpus e, mutatis mutandis, ao complexo poético dos anos 1940-50. Em O

homem e sua hora, no entanto, a reflexão paziana parece ecoar com maior intensidade,

o que talvez imponha necessária revisão à análise de Haroldo de Campos, segundo a

qual Mário Faustino seria “mais apegado à grande tradição clássica do que à ‘tradição

da ruptura, incessantemente vetoriada para o futuro’”. 731 Seu livro de poemas parece

fadado a promover “a momentânea reconciliação: ontem, hoje, amanhã”732, em sua

“contrafação de canto e eternidade”.733

731 CAMPOS, Haroldo. Mário Faustino ou a impaciência órfica. In: ____. Metalinguagem & outras metas. Op. cit., p. 199. 732 Cf. nota 718. 733 FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora. In: ____. O homem e sua hora e outros poemas. Op. cit., p. 110.

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9. Conclusão

Iniciemos estas considerações finais parafraseando Gilberto Mendonça Teles,

que, na abertura do já referido ensaio “Para o estudo da Geração de 45”, atesta “como a

poesia brasileira da segunda metade [do século XX] tem sido mal estudada”.734

Circunscrita ao recorte cronológico em que nos detivemos, a afirmação se aplica com

justeza à nossa premissa basilar, qual seja, a constatação de como as análises sobre a

poesia brasileira da metade do século XX não têm dado conta, com o devido rigor

crítico, do complexo estético atuante àquele tempo. Mendonça Teles busca comprovar

sua assertiva assinalando “uma infeliz simplificação maniqueísta: via-se, de um lado,

como a melhor, a poesia que se dizia de vanguarda; e de outro, a que se contentava em

renovar a tradição do discurso poético”.735 O circunlóquio em torno da poesia das

décadas de 1940-50 parece mesmo desfiar-se dessa visada restringente.

No âmbito deste trabalho, chamamos “metade do século XX” à faixa de 1945 a

1955, interstício que se estende do “fim definitivo da era modernista, encerrada com o

falecimento de Mário de Andrade em 1945”736, ao instante que antecede “o advento de

uma nova Vanguarda em poesia – a primeira depois do Modernismo”, consoante

Benedito Nunes, que identifica em 1956 (quando surge oficialmente o movimento

concretista) “o eixo de nossa atualidade literária”.737 No Brasil, a confluência de

rupturas históricas e estéticas faz desse intervalo um “momento apropriadamente de

crise, [...] de balanços e reavaliações, claro fim de uma época e território de

734 Cf. nota 257. 735 Id., ibid. 736 Cf. nota 94. 737 Cf. notas 95 e 97.

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passagem”738, no bem dizer de W. Martins. No que tange à poesia, várias vertentes se

entroncam, compondo um estado lírico invulgar. A singularidade do período reside

sobretudo, conforme procuramos demonstrar, na intensa interpenetração de duas linhas

de força seminais – tradição e modernidade –, as quais, há muito inter-relacionadas, nele

se ombreiam, equipolentes, pela primeira vez na vigência do estatuto moderno do século

XX.

No entanto, parte significativa dos estudos sobre a poesia da época insiste e se

esgota na categorização superficial e na dicotomia redutora – a “infeliz simplificação

maniqueísta” – que contrasta os dois vetores como se mutuamente excludentes, não

percebendo, como bem assinala Mendonça Teles, “a inter-relação das várias correntes

vindas do Modernismo – uma saindo de dentro da outra, relacionando-se por oposição

ou por complementação”.739 “A crítica não soube ver [...] a pluralidade de aberturas

estéticas que constituiu a essência mesma de toda a nossa modernidade”740, adverte o

crítico.

Os desdobramentos dessa postura são vários. A nosso ver, o equívoco

fundamental consiste na minimização do complexo poético dos anos 1940-50 a certa

“tendência estetizante”, aceita de forma acrítica como característica geral e

generalizadora, pretensamente apta a equalizar a multiplicidade de registros que se

tensionam naquele complexo poético. No mais das vezes, a difusa e espectral “tendência

estetizante” é plasmada na “Geração de 45”, epíteto também impreciso e precário, como

visto. Não raro a confusa imbricação entre a Geração de 45 e “um momento da história

literária brasileira” reduz a um grupo não muito bem definido de poetas, reunidos sob

designativo igualmente inexato, o sistema de forças que o abarca.

Tomada como monólito, a poesia de 1945 a 1955 é tratada, via de regra, como

mero apêndice (ou excrescência) do Modernismo, donde os termos “neomodernismo” e

“antimodernismo” que boa parte da crítica emprega para situar historicamente a

Geração de 45 – e, por extensão, a poética do período. Denotando a perpetuação do

estatuto de 22 e o papel supostamente periférico dos movimentos que lhe são

adjacentes, as denominações (e percepções) quase antagônicas incidentes sobre o

mesmo conjunto estético põem sob suspeição a eficácia analítica no exame da poesia em

738 Cf. nota 228. 739 Cf. nota 257. 740 Id., ibid.

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ação naquele tempo. Ou, por outra, indiciam-lhe a diversidade inapreensível e

indefinível por meio de categorizações que se debatem na tentativa sempre malograda

de sintetizar seu real significado.

A “simplificação maniqueísta” produz ainda outros resultados. O hábito de

contrapor “a poesia que se dizia de vanguarda” à que propunha “renovar a tradição do

discurso poético” não raro redunda no apagamento desta, identificada, grosso modo,

com a produção despontada entre 1945 e 1955. Recentemente, por ocasião do 90.º

aniversário da Semana de Arte Moderna, o Instituto Moreira Salles (RJ) promoveu uma

série de conferências sob o título “Modernismo e modernidades”, com o propósito de

“empreender um exame amplo, acolhendo as várias artes que, em algum momento,

manifestaram-se com a rubrica modernista – literatura, música, artes plásticas e

arquitetura –, vendo-as para além dos limites estritos da célebre semana”741, segundo

texto de apresentação estampado no rico material de divulgação do evento. No mesmo

escrito se lê:

O Modernismo da década de 1920 liberou forças que se encontravam contidas até então. Graças a isso, 1930 entrou para nossa memória cultural como o ano da publicação de pelo menos três marcos literários – Libertinagem, de Manuel Bandeira; Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade; e Poemas, de Murilo Mendes. [...] Mas seguiremos adiante e discutiremos os desenvolvimentos e as apropriações do Modernismo já nos anos 1950 e 1960, com a entrada em cena da Poesia Concreta, da Tropicália e da arte de Hélio Oiticica. Por fim, pensaremos os próprios conceitos de Modernismo e modernidade à luz de uma questão incontornável: o pós-moderno.742

Como se vê, a discussão sobre “os desenvolvimentos e as apropriações do

Modernismo” contempla, apenas, os “anos 1950 e 1960, com a entrada em cena da

Poesia Concreta”. Essa visão crítica cava um hiato que deliberadamente suprime da

história literária e cultural os anos 1940 e a primeira metade da década de 1950.

Conforme sustentamos ao longo deste trabalho, o resgate da tradição promovido no

complexo poético dos anos 1940-50 insere-se, de modo efetivo, nos desdobramentos

importantes da poesia pós-22 e, assim, reclama a legítima condição de agente da

tradição da ruptura, definidora da modernidade, à luz das argutas considerações de

Octavio Paz. 741 COELHO, Eduardo; FERRAZ, Eucanaã. Modernismo e modernidades. In: Material de divulgação do curso “Modernismo e modernidades”, ministrado no Instituto Moreira Salles (RJ) em ago.-set. 2012. Rio de Janeiro: IMS, ago. 2012. 742 Id., ibid.

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Nesse passo, o corpus sobre o qual nos detivemos desempenha papel de relevo

para o estabelecimento do lastro argumentativo proposto neste trabalho. Publicados

entre 1948 e 1955, os livros de Dante Milano, Américo Facó e Mário Faustino

assumem, aqui, especial significação: escritos por autores “independentes”, isto é,

desvinculados de movimentos ou grupos tão em voga àquele tempo, atuam, cada qual a

seu modo, como efetivos indutores da dialética tradição-modernidade que distingue o

complexo lírico em que ingressam, sintetizando a dualidade medular do período.

Promovendo, de diferentes formas, “a transação do velho com o novo”743, os livros

únicos destes poetas são obras que, embora veladas “nas sombras de meio

esquecimento”744, permanecem como produto estético e, ao mesmo tempo, documentam

e testemunham o espírito de uma época. Obedecendo ao escopo do presente estudo, a

análise da tríade de livros limitou-se aos aspectos que evidenciam a relação das obras

com o complexo estético de que participam, notadamente quanto à tensão tradição-

modernidade. Serviu-nos, pois, como estratégia de demonstração dos pressupostos

estabelecidos na primeira parte do trabalho, de modo que se pudessem compreender

com maior clareza as reais implicações entre o antigo e o moderno na poesia dos anos

mediais do último século.

O exame deste processo e o rastreamento de suas derivas históricas e estéticas

são importantes para que se entendam com maior clareza as vertentes que atuam, hoje,

na poesia brasileira. Se no último século a dialética tradição-modernidade culminou

entre 1945 e 1955, seus desdobramentos se espraiam até a atualidade. A crítica Iumna

Maria Simon sublinha que “a tradicionalização, ou a referência à tradição, tornou-se um

tema dos mais presentes na poesia contemporânea brasileira, quer dizer, a que vem

sendo escrita desde meados dos anos 80”.745 Na contemporaneidade, segundo Iumna,

o passado é continuamente refeito pelo novo, recriado pela contribuição do poeta moderno consciente de seus processos artísticos e de seu lugar no tempo. [...] Mesmo que não exista mais o “antigo”, o esgotado, o entulho conservador, que sustentavam o tradicionalismo, tradição é o que se cultua por todos os lados.746

743 Cf. nota 653. 744 FACÓ, Américo. Prefácio. In: BRÍGIDO, Leopoldo. Poemas do tempo. Rio de Janeiro: Agir, 1947. p.7. 745 SIMON, Iumna Maria. Condenados à tradição. In: Revista Piauí n. 61. São Paulo: Alvinegra, 2011. 746 Id., ibid.

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De fato, um rápido olhar sobre a poesia brasileira contemporânea permite que se

detecte a continuidade da dialética entre o antigo e o novo. Cite-se, como exemplo de

diálogo com a tradição, entabulado em maior ou menor grau, a poesia de Adriano

Espínola, Alexei Bueno, Antonio Carlos Secchin, Antonio Cicero, Marco Lucchesi.

Com a percuciência que lhe é própria, Benedito Nunes justifica a perpétua e necessária

revisitação a este acervo incessantemente constituído ao longo do tempo:

A poesia não pode progredir sem que toda essa tradição seja injetada na sensibilidade moderna. É pela reatualização de passadas vivências, pela descoberta do processo evolutivo das formas poéticas e, por fim, pela aprendizagem das técnicas que constituem os dados essenciais de toda uma cultura literária que nos foi legada que a renovação da poesia se processa.747

Assim, juntando-nos ao esforço de outros pesquisadores interessados em dissipar

a névoa que encobre determinados recantos de nossas crítica e historiografia literárias,

procuramos contribuir para a melhor compreensão do complexo poético vigente nos

anos centrais do século XX, quadra singular e relevante no processo literário do país,

renitentemente “mal estudada”, quando não sequestrada sem cerimônia. A análise atenta

deste amálgama lírico revela que o tradicional e o moderno, ao contrário do que creem o

senso comum e a crítica rasa, nada têm de contraditórios, tampouco constituem

categorias mutuamente excludentes; são, antes, complementares, agentes de um

processo dialético frequentemente deflagrado no curso da história.

747 NUNES, Benedito. Introdução ao fim. In: CHAVES, Albeniza de Carvalho e. Tradição e modernidade em Mário Faustino. Op. cit., p. 321.

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10. Referências

♦ Livros

AGUIILAR, Gonzalo. Poesia concreta brasileira: as vanguardas na encruzilhada modernista. São Paulo: EdUSP, 2005.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Viola de bolso. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação do MEC, 1952.

_______. O observador no escritório – páginas de diário. Rio de Janeiro: Record, 1985.

_______. José; Novos poemas; Fazendeiro do ar. Rio de Janeiro: Record, 1998.

_______. Sentimento do mundo. Rio de Janeiro: Record, 1999. _______. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 2006.

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