lugares de crianças: desmontando o discursos obre dificuldades de aprendizagem
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INTRODUO
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INTRODUO
Conheceis a histria.Por isso ns a diremos de novo.Todas as coisas j foram ditas,mas como ningum as escuta,
preciso recomear sempre
GUIDE
Para comear a contar a histria que originou esta pesquisa, gostaria de transcrever um
momento que fez parte do cotidiano de minha atuao profissional: um trabalho desenvolvido
junto Prefeitura Municipal de Juiz de Fora, onde, com uma equipe multidisciplinar, atende-
se crianas que so nomeadas com ditas dificuldades de aprendizagem, que chegam at ns,
encaminhadas pelas diferentes escolas municipais:
Eu no aprendo... tenho dificuldades... mas agora estou abrindo a minhacabea e as coisas esto entrando (...). Essas foram as palavras que acabarade escutar de um garoto de 11 anos de idade ao conversarmos sobre a escola.E foi nos desdobramentos da conversa que compreendi o que ele queria dizercom estava entrando, referia-se ao aprendizado das letras do alfabeto, queocorria a partir de repeties orais, de seqncias e, se uma era esquecida,tinha que retornar ao A para lembrar as demais. Da mesma forma aprendiaas slabas, a partir das junes e suas repeties: ...B com A: BA; B com E:
BE.... Depois de mostrar todo o seu conhecimento confessou-me com avoz baixa, como quem conta algo profano: ... s sei escrever meu primeironome. Comovi-me com suas palavras, mas no era a primeira vez que ouviaesta histria.1
Meu percurso pela educao no se iniciou neste momento, mas h algum tempo,
quando finalizei o curso de magistrio, em 1986, e ingressei no ensino superior para me
graduar em Letras. Foi no contato com as matrias da Faculdade de Educao, que fui me
interessando por autores e linhas de pensamento que estudavam o desenvolvimento humano e
os processos pelos quais se davam as aprendizagens. Esse interesse levou-me a cursar
1Notas pessoais, redigidas em 2002.
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Psicologia e a me ligar a um dos campos de conhecimento da educao, definido at ento por
Educao Especial.
Nessa poca j desempenhava o cargo efetivo de professora regente na Secretaria
Municipal de Educao de Juiz de Fora. Era um momento em que se discutia a integrao2de
alunos com deficincias em sala de aula regular. Norteada pela teoria de Jean Piaget e de
estudiosos que desdobraram seu pensamento pelas diferentes reas educacionais (como por
exemplo, Constance Kamii, Emlia Ferreiro, Ana Teberosky, Maria Teresa Mantoan e outros),
discutiam-se os processos de construo do conhecimento e sua aplicabilidade nos alunos que
apresentavam deficincias, assunto que permeava tanto a Psicologia como a Educao.
Por minha insero nas duas reas, em meados de 1995, fui convidada a participar de
um grupo de estudos que elaboraria e implantaria um projeto de integrao de crianas comparalisia cerebral da Rede Municipal em parceria com o NESP -Ncleo de Educao Especial
da Universidade Federal de Juiz de Fora, no qual minha funo era trabalhar com as crianas
em uma sala recursos3 de uma escola da Rede, assim como orientar os professores para o
trabalho com elas.
A grande resistncia dos professores, no desenvolvimento e aplicao do projeto levou
a sada da equipe dessa escola, porm esse contato tornou-se significativo para mim, pois
comecei a indagar o que levaria aqueles professores a pensar que determinadas crianas noaprendem?
Essa indagao acabou sendo reforada ao iniciar um trabalho no Instituto Mdico
Psico-Pedaggico, instituio conveniada com a Rede Municipal de Juiz de Fora que mantm
uma escola especial e atendimentos como fonoaudiologia, psicologia e psicomotricidade para
crianas que tm algum tipo de deficincia ou supostas dificuldades de aprendizagem.
Nesse instituto, atuei como psicloga clnica, sendo minha primeira experincia fora da
educao, embora atendesse a um pblico ligado mesma. Nas entrevistas que ocorriam comos professores, para discutirmos sobre as crianas encaminhadas, podia-se perceber em suas
falas, palavras que representavam um discurso sobre a justificativa dada a no aprendizagem:
condio social, pobreza cultural, carncia afetiva, desnutrio, maus tratos, falta
de desejo de aprender, dentre outros.
Em 2000, fui convidada a ocupar um lugar num programa junto Rede Municipal de
Juiz de Fora onde novamente me encontraria com crianas consideradas com dificuldades de
2A perspectiva de integrao prope um sistema de insero parcial, prevendo servios segregados e educaoespecial.3 A sala recurso constitui-se num espao pedaggico planejado para alunos que apresentem necessidadeseducativas especiais, para atendimento complementar e especifico que contribua com sua integrao.
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aprendizagem. O objetivo do meu retorno era, junto com uma equipe multidisciplinar,
elaborar e implantar um programa para atender a essas crianas que no aprendiam no espao
escolar. Essa demanda surgiu do grande nmero de alunos que as escolas consideravam
precisar de um atendimento especializado, com psiclogos, fonoaudilogos e outros
profissionais.
Em sua concepo original, o programa foi chamado de Programa Especializado de
Atendimento Criana Escolar PEACE, cujo objetivo trabalhar com as crianas com
supostas dificuldades de aprendizagem, garantindo a continuidade de sua escolarizao.
O programa buscava atuar intervindo junto criana, escola e famlia. Utilizava como
referncia a perspectiva de autores scio-histricos, como Vygotsky,Marta Kohl,Luria entre
outros. Dessa forma procurvamos inserir essas crianas na vida escolar e noinstitucionaliz-las em um outro ambiente.
Aps dois anos de trabalho, percebemos que muitas crianas encaminhadas no
apresentavam obstculos aprendizagem e sim questes que a prpria escola ou o professor
poderiam trabalhar. Surgiu ento a necessidade de um momento de reflexo e interao dos
profissionais do programa com os professores, assim, implantamos um espao de dilogo com
os professores chamado de Sextas Interativas4.
Aqui, novamente, podia-se recolher nas vozes dos professores, tanto daqueles quetinham apenas o curso de magistrio como daqueles com especializaes, palavras que me
retornavam ao discurso sobre a no aprendizagem.
Percebi que havia, nesse discurso, uma concepo de infncia, que deveria se traduzir
numa concepo idealizada de aluno, cuja famlia estruturada, com acesso a livros, revistas,
em uma casa organizada, com ambiente ideal de estudo, entre outros, levariam a um
processo de aprendizagem e, por conseguinte, o inverso, no aprendizagem.
Vivenciando esses contextos que fui apropriando-me de algumas dimenses queacabaram por sistematizar um projeto de pesquisa, levando a buscar o mestrado na rea da
Educao. No bojo desse projeto estavam presentes as diferentes crianas que chegavam at a
mim, que compunham uma diversidade no mbito da infncia; os seus processos de
aprendizagem; as concepes dos professores sobre escola, famlias, ser aluno, ser criana.
No decorrer do mestrado, ampliei e aprofundei meus estudos sobre a educao
brasileira, sua histria, seus momentos de avanos e retrocessos em relao construo de
4O grupo de estudo acontecia em encontros mensais, s sextas-feiras, e tinha por objetivo refletir teoricamentesobre os casos encaminhados.
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uma outra realidade, suas interaes com os diferentes segmentos da sociedade, alm de
outras temticas.
Encontrei-me tambm com autores que estudam a infncia, tanto no Brasil quanto no
mundo. Desta forma aproximei-me dos estudos de ries (1981), Postman (2000), Kuhlmanm
Jr (1998), de pesquisadores da rea da Sociologia da Infncia, da Histria da Infncia e da
Geografia da Infncia.
No encontro com esses autores e reas de conhecimento, constru um olhar sobre a
histria social da infncia e a concepo de que esta era uma construo social, uma
representao presente nas diferentes sociedades, s possvel de ser compreendida se inserida
em seus diversos contextos. Alm disso, dialoguei com pesquisas que abordam a histria da
educao infantil, as crianas em seus diferentes contextos, a histria da assistncia, aspolticas que fundamentam as propostas e prticas na rea educacional, mostrando
abordagens, fontes e pesquisas sobre as crianas consideradas em seus processos histrico-
geogrficos e de interao social.
Ao fazer esses estudos na realidade brasileira, deparei-me tambm com autores que
trabalham uma viso da infncia, trazendo fatos no registrados na histria oficial, atravs de
fatos do cotidiano, das leis, dos pensamentos pedaggicos, dos perodos histricos, das
interfaces com a sade e a assistncia, dos movimentos sociais, mostrando o lado dosexcludos em seus relatos.
Isso tudo intensificou o interesse em tentar desvelar se existia alguma implicao entre
a concepo de infncia e os processos de aprendizagem, o que acabou tornando-se o foco
central de minha pesquisa.
As leituras de autores da Anlise de Discurso Francesa e o entendimento dessa teoria
comearam a dar corpo e trazer instrumentos para entender como os sentidos que estavam
ocultos nos indcios expostos poderiam ser desveladosatravs da compreenso da produodesses discursos. A partir deste dilogo terico, minha entrada em campo teve, como primeiro
recurso, analisar um conjunto de fichas5, preenchidas pelos professores da Rede Municipal de
Juiz de Fora que versam sobre alunos encaminhados para atendimentos especializados.
Inicialmente o objetivo dessa ficha, formulada pelo Servio de Educao Especial
SEE da Secretaria Municipal de Juiz de Fora, era o levantamento e mapeamento do nmero
de alunos matriculados em escolas regulares que tinham algum tipo de deficincia,
identificando quais eram as deficincias apresentadas (auditiva, visual, fsica etc) para
encaminh-los aos atendimentos especializados, quando necessrio. Entretanto, com o passar
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do tempo essa ficha se institucionalizou para todos os tipos de encaminhamentos. Essas
fichas, em que os professores relatam suas vises sobre a criana e suas supostas dificuldades
de aprender, servem para justificar o porqu essas crianas devem receber um atendimento
fora do espao escolar, com profissionais com formao da prpria rea educacional e
tambm de outras reas, como a da sade. No encontro, com esse material, abriram-se outras
perspectivas do trabalho que acabaram por reorientar meu foco principal, como ser
abordado.
Creio na relevncia desse conhecimento para a formao de professores, uma vez que
traz uma reflexo sobre a questo da infncia e da aprendizagem, articulando esses
conhecimentos para fundamentar e orientar a prtica na busca de uma transformao social,
uma reformulao do conhecimento.O texto que, agora, apresento foi sistematizado buscando demonstrar todos os
caminhos por onde passei na busca de tentar responder questo que originou a pesquisa.
Dessa forma, esta Introduomostra de onde falo, situando o leitor de onde vieram
minhas inquietaes e os caminhos profissionais e tericos que percorri e que justificam a
minha chegada pergunta de partida.
A seguir, em Reparando a questo da Pesquisa,pretendo mostrar como o contato
com as fichas e os registros nelas existentes me abriram um outro foco de anlise ereordenaram minhas leituras tericas para tentar interpretar os dados que apareciam.
Apresento, ento, o local da pesquisa em Partindo do Caminho Novo-Local da
Pesquisae contextualizo a Rede Municipal de Educao de Juiz de Fora.
Em Iluminando a Cena, introduzo uma reflexo j direcionada a partir de minhas
novas questes de campo. Por isso esse texto versa sobre as diferentes nomeaes e
adjetivaes dadas infncia a partir de seus diferentes lugares ocupados, a essa discusso
chamei de A Criana, Seus Diferentes Nomes, Seus Lugares Ocupados e Os Outros: UmPercurso Pela Histria.
Neste captulo apresento ainda o texto (Des)montado o Discursoem que explicito o
olhar terico sobre os dados que ter como pilar a Anlise de Discurso Francesa, seus
conceitos e dispositivos como as formaes imaginrias e o interdiscurso que sero relevantes
para essa anlise, as condies de produo do discurso e o corpusdiscursivo.
Nas interpretaes apresentadas em Surgindo Nomeaesdesvelo, consecutivamente,
as anlises sobre as dificuldades de aprendizagem e suas filiaes discursivas; as
nomeaes e os sentidos de infncia que so atribudos s crianas pelos professores
5Ficha-anexo I
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pesquisados;como esses sentidos se relacionam viso sobre a famlia, alm de explicitar o
poder dado ao profissional que faz atendimentos. Por fim, em Lugares de Criana apresento
os lugares destinados a essas crianas e as formaes ideolgicas que as perpassam.
J em (Re)montando o Discurso busco tecer um dilogo entre as concluses da
pesquisa e nossa compreenso do assunto.
Nas Consideraes Finais trago, a partir das concluses, algumas implicaes desta
pesquisa para o campo da educao.
A escrita do texto conta com minhas palavras, com transcries dos autores que
serviram de base para minhas interpretaes e com as transcries das falas das professoras
entrevistadas, alm de reproduzir ainda, em alguns momentos, trechos das fichas. Esse
entrelaamento de vozes busca demonstrar de onde vieram minhas inferncias.A epgrafe que abre este texto nos alerta que tudo j foi dito, que conhecemos a
histria, mas que, como ningum a escuta, precisamos contar novamente, cada contador lhe
d um vis diferente, matiza mais o que quer, e, assim, temos diferentes histrias que levam a
diferentes anlises, porm preciso recomear at que algum queira escutar. Eu, nesta
pesquisa, busquei contar diferentes histrias conhecidas de professores e crianas, pois quero
faz-los escutar.
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REPARANDO A QUESTO DA PESQUISA_________________________________________________________________________
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1-REPARANDO NA QUESTO DA PESQUISA
Se podes ver, repara.
SARAMAGO
Olha t tudo misturado... isto aqui vai tudo pro arquivo morto... vamoszerar e pedir que as escolas faam todos os encaminhamentos novamente(...). Essas foram as palavras que ouvi da pessoa responsvel pelo setorresponsvel pelas fichas de encaminhamento da Secretaria de Educao deJuiz de Fora. Agachada diante de vrias pastas no cho me questionava poronde comearia. O que faria. E se eu no encontrasse. O que seria dapesquisa. Que outro caminho eu poderia trilhar para conseguir os dados quebuscava...6
Os escritos como: autobiografia, cartas, dirios, memorando, boletins informativos,documentos sobre polticas propostas, cdigos, artigos de jornal, alm de fornecerem detalhes
fatuais, so fontes de como as pessoas que produziram os materiais pensam ou concebem o
mundo em que vivem. No caso dos rgos de educao, por exemplo, tornam-se fonte rica de
investigao os documentos externos, internos e registros sobre alunos. Os registros de alunos
so documentos elaborados por professores, coordenadores, psiclogos e outros, que incluem
relatrios, registros e comentrios sobre esses alunos. ( , 1994).
Meu intuito inicial era que, atravs da anlise de tais registros, pudesse observar o tipode dificuldade que mais se evidenciava, numa tentativa de mapear o que as professoras da
Rede municipal de Juiz de Fora consideravam dificuldades de aprendizagem. Ainda dentro
deste levantamento, buscava identificar as escolas de onde procediam o maior nmero de
encaminhamentos, j que pretendia escolher os sujeitos da investigao em tais instituies.
Por algum tempo, que me pareceu uma eternidade, folheei pastas com contedos
diversos, folhas soltas e sem nexo da administrao que acabava de deixar a Prefeitura.
Minhas esperanas comearam a diminuir, visto que, se no encontrasse ali, poderia desistir,
6Notas pessoais-2005.
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no haveria outros registros, as professoras ou coordenadoras geralmente preenchiam as
fichas de prprio punho e as repassavam referida Secretaria que analisava o caso e
encaminhava para um convnio ou para os PEACEs. At onde eu sabia, depois do
encaminhamento, as fichas permaneciam na Secretaria de Educao at serem digitadas,
quando seus dados eram minimizados para serem catalogados, sendo muitas das informaes
originais, as que eram exatamente de meu interesse, ignoradas.
A pilha de pastas reduzia e minha angstia aumentava, o movimentona sala era intenso, natural de uma repartio pblica, pessoas entravam esaiam e algumas questionavam sobre mim... (...) ela est procurando as fichas(...), (...) estou procurando as fichas (...) e continuavam. (...) talvez vocache isso no PEACE, ano passado foram eles que fizeram a triagem (...).
Abro mais uma pasta, h um relatrio, folheio desanimada, pormqual no a surpresa, atrs do relatrio dezenas de fichas de 2004. Para minhasorte neste ano um dos PEACEs, resolveu fazer a triagem das escolas que esteatendia.
O relatrio em minhas mos continha informaes sobre o que haviasido feito os atendimentos deferidos e indeferidos e as fichas anexadas. Minhavontade foi bater a mo no cho e dizer: salvo!, como se diz em alguns piques.Segurando aquelas fichas no podia imaginar que elas mudariam o rumo dapesquisa.7
Ao pesquisar preciso manter os olhos abertos para no se enxergar o que se quer ver,
preciso romper com as certezas tericas e deixar que o invisvel se apresente. precisoreparar. Foi o que ocorreuao adentrar nas fichas.
Primeiro era necessrio encontrar um critrio de anlise, pois havia 92 fichas e essas
so, como j foi dito, utilizadas para diversos encaminhamentos como deficincias, questes
fonoaudilogas, psicolgicas, entre outras, que muitas vezes no se relacionam questo da
aprendizagem em si. Ento estipulei que era necessrio que o termo dificuldade de
aprendizagem ou algum correlato como distrbio de aprendizagem ou dficit de
aprendizagem deveria aparecer na ficha para que esta fosse passvel de anlise, o que seevidenciava nos trs itens iniciais em que os professores, descreviam a sntese do caso, o tipo
de deficincia ou o motivo do encaminhamento. Ainda que esses termos no fossem
sinnimos, eles me indicavam que o professor entendia que havia algum problema
relacionado aprendizagem e que, por esse motivo, a criana deveria receber ajuda; registro o
que foi encontrado em 70 fichas.
A partir de um olhar mais detido sobre essas fichas, olhar impregnado por todas as
questes j estudadas, pude suspeitar que no s a Secretaria Municipal de Educao emanava
7notas pessoais 2005
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um discurso em sua formulao, mas que as professoras tambm tinha suas vozes naquelas
fichas, pois os materiais escritos produzidos pelos sujeitos so textos que participam de um
discurso. Entretanto, mais do que o entendimento sobre por que encaminhavam, alguns itens
que constavam nas fichas me levaram a novas constataes e indagaes.
Os espaos destinados sntese do caso, motivo do encaminhamento e tipo de
deficincia se confundiam, e, muitas vezes, o professor, na sntese, dizia que a criana no
aprendia (ler, escrever, somar) e justificava que ele tinha dificuldades de aprendizagem,
outros invertiam e diziam que a criana tinha dificuldade de aprendizagem por isso no
aprendia a ler, escrever etc; no item que se referia a tipo de deficincia para que fosse
respondido apenas sobre quem a possua apareceram os seguintes termos: defasagem de
aprendizagem, hiperatividade, distrbio de comportamento, dificuldade de aprendizagem,falta de coordenao motora, dificuldade de fala, deficincia de aprendizagem, problemasde
fala, dficit de ateno, problema psicolgico, deficincia de comportamento, rebeldia,
carncia de afetividade, falta de concentrao, agitao, atraso na aprendizagem, dficit de
aprendizagem, problema de dico, disritmia, dislexia.
Nas atitudes tomadas pela escola registram-se: conversas com famlia, conversas com
os pais, indicao de tratamentos, encaminhamentos para reforo. Nas reas de dificuldade
constavam: Portugus e Matemtica. J nas reas de preferncia apareciam: Artes EducaoFsica, Geografia, Histria e Cincias.
As caractersticas da criana traziam nomeaes que falavam das suas qualidades,
expressas como julgamentos de valor, na sua maioria pejorativa como: aptica, agressiva,
desinteressada, solitria, lenta, desatenta, acanhada, distrada, fechada, superprotegida,
insegura, dispersa, tmida, infantil, calada, passiva, quieta, dependente, no se relaciona,
hiperativa, irritadia, fofoqueira, rebelde, agitada, falante, rebelde, conflitante, impulsiva,
instvel, temperamental, sem limites, inquieta, baixa auto-estima, imatura, ansiosa, confusa,preocupado, carente; e poucas meliorativas como: gil, organizada, dedicada, esforada,
participativa, alegre, esperta, caprichosa, carismtica, meiga, afetuosa, obediente, tranqila,
comunicativa, carinhosa, calma, prestativa. Algumas fichas no respondiam a vrias questes,
dizendo apenas que a criana tinha dificuldades.
Nesse contexto, comecei a me perguntar: so as crianas julgadas por suas qualidades?
Atitudes como conversa com os pais e encaminhamentos resolveriam entraves no aprender?
Com relao Secretaria de Educao, ter uma ficha de encaminhamento no traz um
imaginrio de que essas questes devam ser resolvidas fora da escola? Tais fichas no seriam
uma maneira do professor ter uma opo para destinar estas crianas? A prpria formulao
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da ficha no traz uma viso da concepo de dificuldades da rede? Se so fichas de
encaminhamento, os itens citados servem para definir o atendimento da criana e no a
interveno na escola?
Ao mesmo tempo em que elas me suscitavam perguntas: quem eram essas crianas?
Quais suas idades? Gnero? Srie? (na ficha no consta cor); elas tambm me traziam
respostas: das 70 fichas de encaminhamento que foram produzidas por 10 escolas pudemos
apreender que essas crianas so 55 so do sexo masculino e 15 do sexo feminino, sendo 23
crianas de turmas referentes 1a srie/2a fase do 1 ciclo, 24 na 2a serie/3a fase do 1 ciclo.
Desse total 37 j repetiram ou esto repetindo o ano letivo, as idades variam de 7 a 16 anos
sendo a maior incidncia na faixa de idade entre 8 e 10 anos.
No havia como ignorar a quantidade de informaes que essas fichas traziam, porm,em seus vrios tpicos, uma situao se evidenciava para mim: a nomeao dada s crianas,
ora designando as caractersticas que as levavam a no aprender como apticas,
agressivas, agitadas, tmidas, inseguras e outras; ora justificando a no
aprendizagem: com dficit de ateno, com problema psicolgico, com deficincia de
comportamento, com rebeldia.
Se reparar as fichas me conduziam para esse novo olhar, apenas estas no respondiam
aos novos questionamentos que se instalavam na pesquisa, elas me apresentavam textos queprecisavam ser mais explicitados. Desta forma foi necessrio utilizar as entrevistas com
algumas professoras responsveis pelas informaes contidas nesses documentos. A
entrevista, que j era uma opo metodolgica, tornou-se pertinente, para junto com as fichas
desvelar as concepes presentes no discurso desses professores. Entretanto, no era mais
possvel ir a campo sem atentar para aquelas nomeaes.
Aps a realizao das entrevistas, reforou-se a percepo de que as nomeaes dadas
s crianas eram algo que estava presente, mostrando uma evidncia nos discursos que nopoderia ser omitida de minhas interpretaes, o que me fez delimitar um novo caminho dentro
da minha pergunta original re-contextualizando o projeto.
Desse modo, o objetivo inicial deste trabalho era compreender quais infncias estavam
presentes no discurso desses professores que encaminhavam crianas com dificuldades de
aprendizagem e como essas infncias dialogavam com as concepes de dificuldades de
aprendizagem expostas por esses mesmos professores. Agregando a esse objetivo as idias
criadas no campo da anlise do discurso, propunha-me a responder a seguinte questo: Quais
os sentidos de infncia estavam presentes no discurso dos professores sobre dificuldades de
aprendizagem?
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Assim, dentro da questo inicial, acabei por fazer um recorte indagando quais os
sentidos de infncia esto presentes nas nomeaes dadas s crianas que so encaminhadas
para o atendimento especializado? Como o outro entra nessa nomeao? Que lugares
concretos e simblicos so materializados por estes discursos e ocupados por essas crianas
nomeadas? Dessa forma, estaria trabalhando com a seguinte trade para minhas interpretaes
e para a conduo da escrita final deste texto:
Nomeao da Criana/concepo de infncia
Discurso
Outros que nomeiam Lugares ocupados pela criana nomeada
Entendendo que esse esquema no esttico, havendo constante interao,
interpenetraes, impregnaes entre os trs pontos, o que lhes do sentido e os reafirmam,
busco, a partir deles, compreender as diferentes concepes de infncia nos discursos dos
professores.
Essa reformulao do projeto me levou a um retorno aos tericos sobre infncia e aos
estudos feitos no mestrado, que pudessem levar-me a compreender as relaes entrenomeaes das crianas e concepes de infncia com a organizao educacional.
A Anlise do Discurso Francesa (AD) foi a teoria escolhida para construir a
fundamentao terica e interpretar os dados colhidos em campo, mais precisamente um de
seus dispositivos conhecido por interdiscurso, que nos ajuda a compreender que no h
discurso que no se relacione com outros. Em outras palavras, os sentidos resultam de
relaes: um discurso aponta para outros que o sustentam, assim como para dizeres
futuros.(...) No h deste modo comeo absoluto nem ponto final para o discurso. (Orlandi.2003, p.39).
Fazendo essas leituras, comecei a perceber que os autores escolhidos traziam
nomenclaturas destas crianas ou adjetivaes dessas infncias que remetiam aos lugares que
essas crianas ocupavam nos discursos. Esse ponto comeou a saltar frente aos meus olhos,
no de forma aleatria, mas remetendo-me aos textos encontrados nas entrevistas e nas fichas,
o que me levou a produzir um captulo neste trabalho (que ser apresentado aps a
contextualizao do local da pesquisa) sobre as nomeaes e adjetivaes presentes em alguns
perodos histricos, ilustrando que esses discursos no esto presentes s na atualidade, mas
que eles se relacionam no tempo e no espao.
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PARTINDO DO CAMINHO NOVO
LOCAL DE PESQUISA_____________________________________________
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2- PARTINDO DO CAMINHO NOVO-LOCAL DA PESQUISA
Eu sou um pobre homem do caminho novo das Minas dosmatos gerais. Se no exatamente da picada de GarciaRodrigues, ao menos da variante aberta pelo velho Halfelde que na sua travessia pelo arraial do Paraibuna, tomou onome de via principal e ficou sendo depois a Rua Direita dacidade do Juiz de Fora. Nasci nesta rua...
NAVA
Em Ba de Ossos (1984) e outras obras, Pedro Nava, entremeando histria e memria
fala-nos da cidade em que nasceu, passou a infncia, vendo seu desenvolvimento e que
depois, mesmo em sua distncia, no deixou de habit-la. Localizada no sudeste do Estado de
Minas Gerais; Mesoregio da Zona da Mata, atualmente com uma populao de 456.796
(censo 2000), a histria dessa cidade se funde com a histria do desenvolvimento da regio
mineira, pois suas origens remontam abertura do Caminho Novo, estrada criada para o
transporte do ouro no sculo XVIII. Com o antigo caminho traado ainda pelos primeiros
bandeirantes, a viagem era longa e apresentava muitas dificuldades e obstculos, a quem por
ela transitava. Para reduzir a viagem e as dificuldades, a Coroa ordenou a abertura do
Caminho Novo.
Surgiram em seu percurso povoados, armazns e hospedarias, estimulados pelo
movimento das tropas que ali transitavam rumo ao Rio de Janeiro. Um desses povoados foi o
de Santo Antnio do Paraibuna, criado por volta de 1820, que, posteriormente, passou a se
chamar Juiz de Fora. desta cidade construda pela necessidade de caminhos novos que parto
para traar o meu caminho de pesquisa e me defrontar com os obstculos e as surpresas que
qualquer caminho novo possa nos proporcionar.
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2.1-A Rede Municipal de Educao de Juiz de Fora
Para contextualizar a Rede Municipal de Educao de Juiz de Fora e sua atuao comrelao questo das dificuldades de aprendizagem, apresentarei aes e mudanas internas
significativas que ocorreram nas ltimas administraes municipais, articulando concepes
tericas com polticas pblicas que influenciaram o seu funcionamento atual. Para isso me
apio em documentos oficiais, entrevistas com sujeitos qualificados e produes acadmicas
sobre essa Rede8.
A rede municipal de Juiz de Fora constituda de 16 escolas rurais e 62 escolas
urbanas de primeira a quarta srie, sendo que 14 destas escolas urbanas optaram por trabalhar
com os Ciclos de Formao. No Censo de 2003 estas escolas tinham um total de 20.462
alunos matriculados e, ao final do ano, aps 8% de transferncia e 1% de evaso, 19.037
alunos permaneceram na Rede, sendo 15.589 foram aprovados sem dificuldades, 2463
reprovados e 785 foram aprovados com dificuldades 9. O ndice total de reprovao de 13%
nas sries iniciais, entretanto na primeira srie/ 2a etapa do 1o ciclo o ndice de 18% nas
escolas urbanas e de 21% nas rurais, mantendo os maiores ndices entre as trs sries
seguintes. O problema da evaso parece controlado, mas o da repetncia ainda requer ateno.
A Rede mantm tambm escolas ou instituies conveniadas que oferecem
escolarizao para crianas com necessidades educacionais especiais10, algumas dessas
instituies oferecem atendimentos especializados.Estes convnios eram firmados a partir da
8 Os dados foram levantados atravs de documentos como Boletins informativos da prpria instituio e deentrevistas com sujeitos qualificados, pessoas que estavam na Rede ou que participaram das mudanas ocorridas:Psicloga escolar 1992 e Chefe do Servio de Educao Especial 1994-2003; Secretria de Educao 1996-2002; Gerente de Educao(nomeao dada ao cargo de Secretrio) 2002-2004.9A aprovao com dificuldade se refere s crianas que so consideradas sem condies de aprovao, mas que
esto no ciclo e conseqentemente, no podem ser retidas.10 Conforme o art.5, da resoluo CNE 02/2001, so considerados alunos com necessidades educacionaisespeciais aqueles que, durante o processo educacional, apresentarem dificuldades acentuadas de aprendizagemou limitaes no processo de desenvolvimento que dificultem o acompanhamento das atividades curriculares,no vinculadas a uma causa orgnica especifica ou relacionadas a condies, disfunes, limitaes oudeficincias. Aqueles com dificuldades de comunicao e sinalizao diferenciadas dos demais alunos,demandando a utilizao de linguagens e cdigos aplicveis. E, ainda, os que apresentarem superdotao, grandefacilidade de aprendizagem que os levem a dominar rapidamente conceitos, procedimentos e atitudes. (Lade,2004, p. 33).Por essa conceituao, as dificuldades de aprendizagem se inserem na Educao Especial que, conforme a Lei deDiretrizes e Bases da Educao LDB 9394/96, entendida como uma modalidade de educao escolaroferecida para esse alunado, preferencialmente na rede regular de ensino.
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cesso, por parte da instituio, de um certo nmero de vagas e, por parte da Prefeitura de um
professor da Rede. Muitas vezes essesconvnios que haviam sido feitos para as crianas com
deficincia, estavam sendo ocupados por crianas que eram consideradas com dificuldade de
aprendizagem, sendo que as crianas com deficincias mais severas no estavam em lugar
algum. Alm disto, o professor que ia para os convnios ganhava mais 20%sobre seu salrio
e ficando na instituio conveniada sem participar das atuaes e reflexes da Rede.
Alm dos convnios, existe o Programa de Reabilitao Visual-PREV que trabalha
especificamente com crianas com deficincias visuais e o Programa de Atendimento
Especializado Criana Escolar PEACE. Que foi criado em2000, numa ao da Secretaria
de Educao com a Diretoria de Poltica de Sade. Segundo a Secretria de Educao da
poca11, esse programa foi criado para dar um atendimento quelas crianas que tm umadificuldade, que demanda um cuidado maior, em suas palavras, segundo entrevista realizada
em janeiro de 2005:
H algumas crianas que, se no tiverem apoios maiores, ficam marcandopasso. E por estudos e experincias, tambm, a gente percebe que dificilmentevai conseguir ter numa escola, ou manter numa escola, todo profissional,porque as dificuldades so muito variadas. Da a idia de se ter ncleos ondevoc pudesse congregar profissionais de mais de uma rea, pra poderdiagnosticar qual o problema daquela criana. A ns tivemos uma parceriamuito boa com a rea da sade, que tambm tinha uma preocupao com osproblemas que as crianas apresentam e tivemos a oportunidade de montaresse primeiro ncleo (...), onde congregamos psiclogas, assistente social,prximo rea mdica e s escolas, como nesse primeiro momento eracentral, e as escolas que tinham identificado alunos que estavam com umadificuldade que as escolas no conseguiam dar conta dela, pode ser levada l ea precisar onde estava o problema dela.
O primeiro Ncleo, denominado PEACE-Centro, resume a concepo do programa no
projeto de implantao apresentado em 2000, dizendo que a questo educacional que diz
respeito democratizao do saber, no somente envolve a possibilidade do amplo acesso das
classes populares escola, mas implica tambm determinadas condies que possibilitem a
continuidade da escolarizao enquanto conjuntos de conhecimentos e habilidades
considerados realmente necessrios vida social da realidade. Afirma que essas garantias
devem ser efetivadas atravs de atendimento s crianas e jovens da rede municipal de Juiz
de Fora com supostas dificuldades de aprendizagens, buscando na interdisciplinaridade de
aes ressignificar a aprendizagem de tais alunos. Para isso tem uma equipe formada por
11 Dado colhido em entrevista pela Secretria de Educao que atuava em 2000, na poca de formulao eimplantao do Programa PEACE.
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profissionais tanto da rea de educao (pedagogos, psicopedagogos, psiclogo escolar), bem
como da rea de sade (fonoaudilogos, psiclogos clnicos e pediatra). O programa prope
ainda s instituies de origem desses alunos reflexes metodolgicas e tericas com base nos
pressupostos scio-interacionistas.
Posteriormente, em 2001, foi implantado o segundo ncleo do PEACE, que apesar de
ter sido inaugurado por ltimo, constitua-se como um projeto que vinha sendo articulado h
dois anos, e esperando a aprovao para seu financiamento. Propunha-se, inicialmente, que
esse projeto se chamaria NCLEO INTERAO sendo organizado de maneira que a cidade
fosse dividida em 8 regionais, cada uma dotada de um ncleo responsvel pelo atendimento
da regio, a partir das caractersticas e especificidades, alm da facilidade de acesso no s
das crianas e suas famlias, mas tambm do professor e desses profissionais. Porm como jexistia o PEACE enquanto programa, o primeiro ncleo passou a ser PEACE CENTRO e o
outro PEACE LINHARES, embora se distinguissem tanto em sua formulao como em seu
atendimento, pois o segundo tinha como propsito garantir o atendimento especializado a
crianas e jovens em idade escolar com alguma necessidade especial (permanente ou
temporria), bem como crianas de zero a trs anos que necessitam de estimulao essencial,
este trabalho tambm se daria a partir de uma abordagem interdisciplinar e coletiva de
suporte incluso escolar.(JUIZ DE FORA, Projeto PEACE Linhares, 2003, p.dois).Podemos perceber que um se prope a atendimentos de supostas dificuldades de
aprendizagem e outro a alguma necessidade especial temporria ou permanente, enquanto
um se prope a garantir a permanncia no processo de escolarizao, o outro se prope a dar
suporte incluso escolar, sendo que as idades tambm so diferenciadas de acordo com os
propsitos estabelecidos.
Esses programas estavam ligados ao do Servio de Educao Especial (SEE), criado
em 1993, estimulado no s pela regulamentao da Lei Orgnica Municipal-LOM (gesto1993-1996) como tambm pela Resoluo 01/91, determinando que 8% dos recursos
educacionais tanto do Estado como do municpio deveriam ser aplicados no ensino especial
(AZEVEDO, 2004). O SEE tinha por objetivo a integrao e, posteriormente, a incluso de
crianas com deficincia no ensino regular explicitando que Integrar implica um sistema de
insero parcial, que prev servios segregados e educao especial; incluir inserir todos os
alunos no ensino regular, desde o comeo, abolindo completamente os servios segregados,
ditos especiais (MELLI, 2001, p.44). O SEE comeou a funcionar com 33 vagas e em seu
trmino, em junho de 2003, devido a mudanas internas, existiam 620 vagas para o
atendimento especializado, e uma fila de espera de 700 crianas.
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Conforme tabela apresentado por Azevedo (2004) podemos perceber que o nmero de
alunos em escolas especializadas no se ampliou, mas medida que aumentou o nmero de
crianas includas em escolas regulares, ampliou-se tambm o nmero de atendimentos
especializados.
Atendimento Educacional/Especializado Pessoa com Deficincia - 2000-2003
Ano E.E. (Convnios). Alunos em classescomuns
A. E.(CONVENIO/PEACE/PREV)
2001 141 521 474
2002 141 719 574
2003 141 820 620
Legenda: E.E.: Escolas Especiais A.E.: Atendimento Especializado.
As solicitaes de vagas para alunos com dificuldades de aprendizagem,
encaminhados para o atendimento especializado, ocorriam com o preenchimento de um ficha
sobre esse aluno, pela supervisora ou a professora e estas tinham que especificar a dificuldade
da criana e atitudes tomadas pela escola para a resoluo do problema que era entregue no
SEE. Assim, a ao do encaminhamento passou a ter um filtro, pois no se encaminhava
direto para a instituio. Alm disso, os profissionais dos convnios passaram a ser vinculados
ao SEE e chamados a participar de cursos de formao que eram promovidos, todos os anos,
pelos prprios profissionais que atuavam nesse setor, trabalhando e tendo como referncia a
reflexo da ao pedaggica para a atuao com crianas que manifestassem necessidades
educacionais especiais.
Em 2001, a Prefeitura, em um segundo mandato, inicia uma reforma administrativa
aprovada pela Lei municipal n 10.000 de 08 de maio de 2001 que leva mudana da sua
estrutura organizacional. Sob a justificativa de que:
O novo modelo que institucionaliza a administrao gerencial, propiciamelhorias do atendimento, atravs da regionalizao da prestao de servios,da transparncia dos gastos e das aes e da capacitao dos servidoresmunicipais (JUIZ DE FORA, Boletim informativo da agenda de mudana,2001, p.1).
A Secretaria de Educao passa a ser a Gerncia de Educao Bsica GEB,
vinculada Diretoria de Poltica Social (DPS), com quatro departamentos: Departamento dePoltica Pedaggica e Formao; Departamento de Ensino Fundamental; Departamento de
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Ateno Integral Criana e ao Adolescente e Departamento de Educao Infantil. Com
mudanas internas em 2003, desaparecem os trs ltimos departamentos e surgindo os
NAVEs - Ncleo de Articulao da Vida na Escola.
Com esses ncleos, a inteno era acabar com a departamentalizao, setorizao e a
falta de interlocuo desses diversos setores. Segundo entrevista com o formulador da
proposta, ento Gerente de Educao12:
O pensamento foi de que a escola estava muito atomizada, quer dizer, cadaescola fechada nela mesma e que era preciso criar uma dinmica quemovimentasse, que articulasse as escolas entre si, que houvesse uma maiortroca de informaes entre as escolas, para facilitar esse intercmbio, a gentecomeou a regionalizar. Ento o NAVE atende a um conjunto de escolas em
que os tcnicos da Secretaria vo estar buscando essa articulao entre asescolas e vo estar contribuindo a partir dessa articulao. A idia dos NAVEs para romper essa atomizao que caracterizava a dinmica da escola, querdizer, cada escola fechada em si mesma,... O NAVE Ncleo de Articulaoda Vida na Escola - tudo aquilo que vai trazer vida, que vai dinamizar.
Os NAVEs foram divididos em sete regionais: Nordeste, Leste, Norte, Rural, Sudeste,
Sul e o Centro que ficava associado regio Oeste. Para cada Ncleo foram designados um
coordenador e dois tcnicos que eram responsveis por toda ao na e da escola. Com a
regionalizao, vrios setores deixaram de existir ou foram incorporados pelos NAVEs; oque ocorreu com o SEE, que ficou descentralizado, uma vez que as questes das crianas com
necessidades educacionais especiais eram problemas para serem discutidos e resolvidos no
NAVE de sua regio.
Nesse novo quadro, encaminhavam-se os casos para outro setor: o Departamento de
Apoio Comunidade, que a porta de entrada de todo atendimento comunidade. Aps a
entrada neste departamento, fazia-se o cadastro, lanava-se o nome em uma fila de espera e
devolvia-se para o NAVE; no momento em que surgia uma vaga, o caso era levado para um
colegiado, de que participavam todos os Naves, que avaliava qual a criana da regional que
tinha a maior necessidade.
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Nas eleies de 2004 para Prefeitura, o partido que administrava a cidade por oito
anos foi vencido por um partido de oposio, que, ao iniciar a administrao de 2005,
reformulou o funcionamento da Gerncia de Educao, abandonando as aes do governo
anterior, introduzindo nova formatao. Os Naves foram extintos e em seu lugar surgiram
ncleos que esto divididos da seguinte forma. Ncleo de Educao Infantil, Ncleo de
Ensino Fundamental, Ncleo de estudos da Educao Bsica e o Ncleo de Ateno
Educao na Diversidade, onde se vincularo as questes referentes s deficincias (sensorial,
cognitiva, fsica, mental), religio, etnia, gnero e orientao sexual, tendo como um dos
objetivos promover aes que levem consolidao de uma poltica Educacional inclusivaque atenda s varias manifestaes da diversidade humana. Os PEACES e os convnios
passam a ser coordenados por este ncleo e conseqentemente as questes das dificuldades
de aprendizagem tambm. Este novo/velho modelo est ainda em fase de implantao e
todos os setores envolvidos esto fazendo uma avaliao diagnstica da rede para definir suas
diretrizes, a partir desses resultados.
Com o formato descrito da administrao anterior e a nova administrao, as fichas de
encaminhamento acabaram se dispersando, entretanto um dos PEACEs, trabalhandoconjuntamente com sua coordenao, passou a fazer a triagem das escolas dessa regio. Isto
tornou possvel ter em mos todos os encaminhamentos feitos por essas escolas com relao
s dificuldades de aprendizagem no perodo de 2004, ento a delimitao desta regio e de
suas fichas de encaminhamento tornou-se uma contingncia da situao apresentada e,
conseqentemente, dos sujeitos a serem entrevistados. dentro desse contexto, que norteiam
tanto a atuao do professor quanto do atendimento s crianas encaminhadas com
dificuldades de aprendizagem, que esto inseridas as fichas que recortamos paracompreenso do discurso que ser analisado aps a introduo do referencial terico
metodolgico.
12Entrevista feita em 21/12/2004,com o Gerente de Educao que estava ocupando o cargo em 2003.
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ILUMINADO A CENA
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3 - ILUMINANDO A CENA
Os textos so dialgicos porque resultam doembate de muitas vozes sociais; podem, noentanto, produzir efeitos de polifonia, quando essas
vozes ou alguma delas deixam-se escutar, ou demonofonia, quando o dilogo mascarado e umavoz, apenas, faz-se ouvir.
BARROS
No se comea uma pesquisa de mos vazias, a histria de vida do pesquisador, seus
encontros tericos, sua vida profissional, seus cotidianos, so feixes mediadores que
constrem um olhar quando se vai ao campo.
Guirado (1998, p.184) corroborar, refletindo que o fato de tratar do assunto de uma
determinada perspectiva terica ilumina a cena com cores de sua lente. Nem por isso esgota o
tema. Mas abre, sem dvida, uma senha para o entendimento. Orlandi (2003, p.62) ir nos
dizer que um objeto emprico, no caso o discurso, inesgotvel, no h discurso fechado em
si mesmo, mas um processo discursivo do qual se podem recortar e analisar estados
diferentes.
Aceitando as recomendaes desses autores, introduzo como estrutura terico-
metodolgico as nomeaes da criana e adjetivaes constitutivas da infncia, bem como
consideraes sobre Anlise de Discurso Francesa (AD).
3.1- A criana, seus diferentes nomes, os outros e seus lugares ocupados: um percursopela Histria.
Dia gordo de novidades. Logo pela manh apareceu Ema, filha de donaJosefina Strambi, riso aberto, ansiosa por dar-me a boa nova; descobrira, por acasotimo colgio onde eu poderia prosseguir meus estudos gratuitamente. Conhecendo opensamento de meus pais sobre religio, fez rodeios antes de referir-se a um pequeno
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detalhe, talvez um entrave: tratava-se de uma escola catlica. Uma escola catlica,porm liberal, explicava Ema. Ela prpria estivera com as freiras no dia anterior,falara de mim, as freiras aceitaram sem reservas ou restries a aluna pag. Ali euaprenderia, alm de conhecimentos gerais, a falar francs e bordar.
Papai torceu o nariz ao ouvir as explicaes da moa, que exaltava a
compreenso e a tolerncia das freiras. Ctico quanto as suas afirmaes sobre oliberalismo e a tolerncia das irms catlicas, papai acabou cedendo, concordando emfazermos uma experincia; pelo menos - ponderou - o ambiente l deve sertranqilo....
A escola no tinha nome, nem currculo. Era um anexo de famoso colgio demeninas ricas de So Paulo, o Des Oiseaux - ocupando todo um quarteiro foraconstrudo um modesto pavilho onde funcionava a escola que eu freqentaria, a dasmeninas pobres.
Na companhia de Ema, dirigi-me rua Caio Prado. Minha primeira surpresafoi constatar que a entrada para a minha escola era pela Rua Augusta, nos fundos dogrande colgio, e no pelo porto central de Caio Prado, como eu julgara. Em meio arvores frondosas, um pavilho, isolado.Ema apresentou-me s duas freiras responsveis pela classe: Madre Tereza e Irm
Calixta. A primeira de nacionalidade belga, a outra italiana. Madre Tereza sorriudepois de me examinar dos ps cabea:
-Mas voc me disse que ia trazer uma menina e trouxe uma moa...-Confusa, Ema explicou que, apesar de muito desenvolvida, eu ainda no
completara quatorze anos. No satisfeita com a explicao que dera, acrescentou aindaque eu era apenas um dia mais velha do que sua irm Olga.Irm Calixta mostrou-se interessada em meus conhecimentos na arte de bordar. Sabebordar? No, eu no sabia bordar. Pois vai aprender. Tem vontade de aprender? Asalunas, debruadas, olhos fixos sobre finas cambraias, bordavam para as freiras, querecebiam encomendas, muitas encomendas.
Desta entrevista ficou combinado que eu voltaria logo aps o retiro espiritualque seria iniciado no colgio. A no ser que eu quisesse participar do retiro...
Voltei para casa bastante murcha, mas no disse nada a ningum que me
sentira pouco vontade naquele ambiente. Eu no desejava desistir, no ia perder achance de voltar a estudar.
Durante um ano freqentei a escola nos fundos do Des Oisseux. Depoiscansei de bordar para as freiras.
GATTAI
As palavras de Gattai (1984), presentes em seu conhecido livro Anarquistas Graas a
Deus, remetem para a vivncia das diferentes infncias. Ao evidenciar a situao da infncia
excluda e suas interaes com a educao institucionalizada, demonstram os diferentes
lugares ocupados por essas crianas no espao escolar. Suas palavras nos fazem refletir sobre
o destino que lhes traado pelo mundo adulto e as representaes existentes pelos diversos
segmentos sociais em suas formaes.
Este texto pretende refletir sobre essas dimenses, num primeiro momento sobre as
relaes da Modernidade com a infncia e suas implicaes. Num segundo momento trazer
essa reflexo para o Brasil a partir da nomeao das crianas e de seus lugares ocupados.
A separao do mundo adulto para o da criana tida, para muitos, como uma
diferenciao que est naturalizada, mas Veiga (2004) nos mostra que o processo que se nos
aparenta como natural foi sendo apreendido na mudana conceitual do mundo Medieval para
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o Moderno que, gradativamente, modificou os conceitos existentes para depois naturaliz-los
na Modernidade.
A Modernidade se institui a partir do desmoronamento da viso medieval de ser
humano que tinha sua vivncia predeterminada no mundo por um plano divino em uma ordem
social esttica, cujo objetivo era a preparao para uma vida aps a morte. Para Baudrillard
(apud VEIGA, 2004) existe, no um conceito, mas uma lgica da Modernidade que se realiza
nos costumes, no modo de vida cotidiano, que embora no tenha ocorrido de forma radical,
ela esteve presente nas mudanas ocorridas a partir do sculo XVI:
Quais sejam, as viagens ultramarinas, as reformas religiosas, o Racionalismo eo Iluminismo, a revoluo industrial, as alteraes na produo da conscincia
do indivduo, as distines entre o pblico e o privado, a redefinio dosncleos familiares, as alteraes nas relaes de trabalho, as profundasmudanas na cultura material das sociedades, enfim uma infinidade deacontecimentos perturbadores dos costumes e habitus ento correntes dosindivduos e das sociedades. (VEIGA, 2004, p.36)
Porm at o incio do sculo XVIII, a Modernidade ainda no era um modo de vida.
Sua gnese se realiza no sculo XIX, quando a maioria das naes europias se auto referem
como civilizadas, como tambm se reconhecem universalizadas na modernidade. (VEIGA,
2004, p.36)Esse processo de modernizao, ao instituir um processo civilizatrio do mundo do
adulto o institui tambm para o mundo da criana, criando um mecanismo no qual, se o fim a
ser atingido do adulto civilizado, a criana deve ser civilizada para que este fim futuramente
se cumpra. A relao ento entre modernidade e infncia se estabelece atravs da produo de
um ser criana civilizada. O tempo da infncia aqui compreendido como produo
sociocultural, que produz o aparecimento de um tratamento distinto da criana em relao ao
mundo adulto e essa distino se associa produo de lugares destinados a ela. Produztambm novas relaes de autoridade e a elaborao de novas formas de comportamento.
(Ibidem, p.37)
Tal diferenciao trouxe, conseqentemente, uma distino geracional que ultrapassa a
viso de etapas da vida, concebida numa viso evolucionista e v o tempo de infncia num
contexto que se relaciona com o tempo de adulto. No perdendo de vista que o tempo um
smbolo cultural, o modo como o concebemos varia de acordo com o momento histrico e a
forma utilizada pelo homem para perceber e relacionar os acontecimentos sob a forma destesmbolo. Essa percepo implica a produo de unidades de referncias temporais/culturais
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de maior ou menor amplitude, padronizadas e socialmente e reconhecidas para servirem de
orientao no curso do tempo da vida dos indivduos e/ou grupos da sociedade. (Ibidem, p.
39). Desta forma percebe-se que a contribuio de Veiga para nossa discusso a distino
entre o tempo de infncia do ciclo natural da vida e o tempo social de infncia em que no
primeiro, est o nascer, crescer, reproduzir e morrer, e fazendo parte deste tempo o ser
criana e o segundo, em que a infncia se constitui enquanto uma categoria de tempo
inventada, atravessada pelo imaginrio da Modernidade.
Se o mundo da criana sofre alteraes em funo dessa viso do tempo de infncia
enquanto diferenciada da viso do tempo de adulto, o processo dialtico e o adulto tambm
precisa aprender a se comportar de acordo com as exigncias desse novo contexto, o que nos
leva a idia de infncia enquanto uma representao histrica geogrfica.No seu conhecido texto13, Aris (1981) afirma que o sentimento de infncia foi sendo
organizado a partir do sculo XVII, em conjunto com as mudanas sociais, econmicas e
polticas por quais passavam as diversas regies da Europa naquele momento. Para esse autor,
no perodo anterior, a durao da infncia era reduzida a seu perodo mais frgil, enquanto o
filhote do homem ainda no conseguia bastar-se; a criana ento mal adquiria algum
desembarao fsico, era logo misturada aos adultos e partilhava de seus trabalhos e jogos.
(Ibidem, p.10)Para ele a trade famlia, educao escolar e infncia imbricam-se na emergncia desse
sentimento. Em suas palavras:
A partir de um certo perodo (...), e, em todo o caso, de uma formadefinitiva e imperativa a partir do fim do sculo XVII, uma mudanaconsidervel alterou o estado de coisas que acabo de analisar. A escolasubstituiu a aprendizagem como meio de educao. Isso quer dizer que acriana deixou de ser misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente,
atravs do contato com eles. A despeito das muitas reticncias eretardamentos, a criana foi separada dos adultos e mantida distncia numaespcie de quarentena, antes de ser solta no mundo. Essa quarentena foi aescola, o colgio. (...)Essa separao (...) no teria sido realmente possvel sema cumplicidade sentimental das famlias (...) A famlia tornou-se o lugar deuma afeio necessria entre os cnjuges e entre pais e filhos, algo que ela noera antes. (ARIS, 1981,p.11)
A elaborao de um sentido de infncia, a organizao da famlia so acompanhadas
por um modelo de escola que se torna, no incio do mundo Moderno, um meio de isolar
cada vez mais a criana durante um perodo de formao tanto moral como intelectual, de
13A edio brasileira, intitulada Histria Social da Crianas e da Famlia, foi traduzida do francs e sofreu
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adestr-la graas a uma disciplina autoritria, e, deste modo, separ-la da sociedade dos
adultos.(ARIS, 1981, p.165)
A aprendizagem se dava nesta convivncia da criana ou do jovem com o adulto, no
havendo um controle da famlia sobre os valores e conhecimentos a serem transmitidos ou
adquiridos pelas crianas e jovens, aprendia-se ajudando o adulto. As escolas existiam, mas
no havia separao de alunos por idade, velhos, jovens e crianas dividiam o mesmo espao
sem gradao de currculo. A idade para alunos iniciantes girava em torno dos 10 anos, estes
geralmente moravam com o mestre em regime de penso, cujos contratos eram uma espcie
de contrato de aprendizagem, como no era dada importncia a idade, poder-se-ia aprender
em qualquer idade; no causando estranheza a ningum o fato de que diferentes idades e
geraes estivessem num mesmo cenrio escolar.Aris postula ainda que o movimento de reformas e moralizao ligadas, tanto s
instituies religiosas quanto ao Estado s foram possveis devido cumplicidade
sentimental da famlia, pois a mesma tornou-se lugar de afeio entre seus membros
principalmente dos pais pelos filhos e isso se exprimiu atravs da importncia dada a
educao: A famlia passou a se organizar em torno da criana e a lhe dar tal importncia que
a criana saiu de seu antigo anonimato, que se tornou impossvel perd-la ou substitu-la sem
uma enorme dor (ibidem, p.12).Isso teve conseqncias na reproduo e em seu controle, questo j observvel no
sculo XVIII, uma vez que, para melhor cuidar da criana e de sua educao, era necessrio
reduzir o nmero de filhos. No sculo XIX, j no h mais resqucios da vida social do adulto
misturada da criana, a vida social da criana gira em torno da famlia e de sua educao.
A partir da publicao das teses postuladas por ries, muitos outros textos surgiram,
concordando ou discordando de suas idias. Darnton (1986) afirma, por exemplo, que naidade mdia no se pensava nas crianas (...) como criaturas inocentes, nem na prpria
infncia como fase diferente da vida, claramente distinta da adolescncia, da juventude e da
fase adulta por estilos especiais de vestir e de se comportar. (Ibidem, p. 47).
Postman (1999) compartilha da idia de um sentido de infncia construdo no bojo da
Modernidade, porm ir associar estas mudanas ao surgimento da tipografia e trar a prtica
da leitura e escrita como um dos divisores entre o mundo adulto e o da criana. Sustenta esse
argumento dizendo que na idade das trevas, a alfabetizao corporativa substituiu a
alfabetizao socializada; alfabetizao social ou socializada uma condio em que a
algumas adaptaes, inclusive com cortes de partes do texto original.
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maioria do povo pode ler ou realmente l, por alfabetizao corporativa se entende uma
condio em que a arte de ler est restrita a uns poucos que formam uma corporao de
escribas e, portanto, privilegiada. (POSTMAN, 1999. p.25). A inveno da imprensa e a
proliferao de livros marcam uma separao entre os que sabem ler e escrever, mundo
adulto; e os que no o fazem, mundo da infncia, materializando na prtica mais um trao
social que institui essas duas realidades.
Assim vrios fatores voestruturando um modelo ideal de infncia, que, em conjunto
com um modelo ideal de famlia, encontra na escola a continuidade de suas representaes. A
trade infncia, famlia e escola so idias que, associadas com outras, sustentam uma forma
de ver o mundo, construda na tica da burguesia que se estruturava como fora ideolgica
dominante.Segundo Lopes (2003), todas essas crianas, que no se enquadram no modelo de
infncia burgus, acabam sendo rotuladas como crianas-problema, como uma forma de
ocultar o desfiguramento presente na lgica da reproduo do capital: a desigualdade. Para
esse autor, os mesmos ideais liberais, associados ao capital, que produziram uma infncia
figurada, originaram tambm crianas desfiguradas que tm no menor marginalizado, filho
dos segmentos mais pobres (...) o negativo da infncia burguesa e, como tal, constitui uma
ameaa ordem social. (Ibidem, p.39)O ideal burgus considera problemas no s as crianas desfiguradas, mas suas
prprias famlias que, ao no se organizarem no modelo padro, no possurem residncias
adequadas, nem acesso informao (livros, revistas, jornais...) e outros, so incapazes de
cuidar da entrada dos seus filhos no mundo adulto (LOPES, 2003). E a, entram em cena os
outros atores sociais, para Perrot (apud KUHLMANN JR, 1998, p. 25), quando a famlia
pobre e tida como incapaz, insinuam-se como terceiros filantropos, mdicos e estadistas que
pretendem proteger, educar e disciplinar seus filhos.O que Kohan (2004) vai nos alertar que a tese de Aris acaba se instalando como
verdade naturalizada; a infncia torna-se uma inveno moderna. Tomamos o exemplo dado
pelo prprio autor para mostrar a gravidade desta afirmao:
Consideremos apenas um exemplo, tomado do incio de palestra apresentadarecentemente em mesa redonda de colquio internacional: como sabemos, ainfncia uma inveno moderna, iluminista, e a possibilidade de entend-laem sua especificidade nos proporcionou interpretaes diversas... Chamam aateno alguns detalhes; primeiramente, que a infncia seja considerada umainveno; segundo que a inveno seja de a infncia e no de umainfncia; terceiro que essa inveno seja adjetivada de moderna; mas o quemais provoca esse inicio: como sabemos, o que naturaliza e torna uma
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obviedade o que vem depois; o como sabemos sinnimo denaturalmente, evidentemente, como todo mundo sabe. E quando todomundo sabe, ningum sabe. Quando algo se torna natural ou evidente, deixade ser pensado. Mau sinal para a infncia. (KOHAN, 2004, p.2)
Nos pontos levantados por Kohan, queremos reforar a idia da inveno de uma
infncia: a burguesa, ponto de conflito que tambm se encontra em nosso pensamento.
Monteiro (2003) corrobora em sua dissertao de mestrado, dizendo que:
As vivncias de uma criana no so iguais s de outras crianas, oscontextos no so os mesmos. Ainda que tentemos falar de infncias ao dizersobre as infncias de crianas pobres, de crianas ricas, de crianas de rua, decrianas deficientes, de crianas indgenas, de crianas rfs, dentre outras,no podemos perder de vista o fato de que no interior de cada uma dessashistrias de infncias h vrias outras que as constituem, que se constituem: ashistrias das crianas, de cada uma dessas crianas. (MONTEIRO, 2003, p.55)
Na interface dessas dimenses, acaba sendo produzido um conjunto de nomenclaturas,
de nomeaes, organizado por aqueles que no vivem essa realidade, nem esse segmento
social, mas trazem essa infncia diferenciada do projeto burgus em seus discursos, ao
utilizarem expresses como: meninos de rua, menores carentes, crianas com dificuldades de
aprendizagem e outras.
Os sujeitos se tornam uma construo da realidade, medida que so nomeados por
outros sujeitos atravs da linguagem, pois o sujeito social desde que nasce, constitui-se
sempre em relao a outros, mediado pelas significaes sociais de seu mundo... sujeito e
mundo no so entes independentes e sim se constituem um ao outro. (EDWARDS, 1998,
p.14).
No Brasil, desde o incio da colonizao as crianas trazem nas diferentes nomeaes
o conceito subjacente que se faz delas ou da infncia naquele perodo histrico. Acreditando
nesses pressupostos, partiremos das nomeaes para traar um caminho de anlise sobre aviso da infncia no Brasil, deixando claro para o leitor que a cronologia ser preterida em
funo destas nomeaes, num breve apanhado de alguns perodos histricos.
Porm, para iniciarmos esse caminho sobre a infncia, no devemos perder de vista o
que nos coloca Queiroz (apud DERMATINI, 2002, p.3-4) sobre uma supremacia dos adultos
sobre crianas, jovens e velhos no que diz respeito educao enquanto uma viso
adultocntrica:
Quer se trate da educao informal quer se trate da educao formal, elasempre formulada a partir da posio de dominao dos adultos sobre asoutras trs categorias. (...) quase por toda a parte, e principalmente no mundo
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ocidental, so os adultos que ocupam a primeira plana e suas funes sonitidamente da camada dominante; so eles que ditam as normas educativas,construindo a educao em seu sentido tanto amplo quanto restrito, so elesque estruturam a imagem do homem que jovens e crianas se esforam porrealizar.(...) os adultos, na fora da idade, so os produtores por excelncia,diante deles devem se dobrar velhos, jovens e crianas. Um conjunto deesteretipos e de comportamentos condicionados apoia esta maneira de ver.
3.1.1-Grumetes, pagens, e rfs do Rei: Os midosda expanso martima
Elas no tm gosto ou vontadeNem defeito nem qualidade
Tm medo apenas...
HOLANDA
Os midos, assim eram chamadas as crianas que embarcavam para o incio do
povoamento das terras do Brasil, a partir de 1530. Segundo RAMOS (1999, p.19), as crianas
subiam a bordo somente na condio de grumetes, pajens, como rfs do Rei ou, mais
raramente, como passageiros embarcados em companhia dos pais ou de algum parente. Mas
quem eram esses midos? Por que recebiam diferentes nomeaes?
Os grumetes eram crianas entre 09 e 16 anos, recrutadas entre as famlias pobres da
rea urbana ou eram rfos desabrigados. No caso dos primeiros, a possibilidade de aumentar
a renda familiar, uma vez que os pais recebiam um soldo, tornava-se uma oferta tentadora
para quem no sabia se seus filhos, ficando em terra, no morreriam de doenas ou inanio.
Tais atitudes que se justificavam pela realidade do momento, j que nessa poca, a
mortalidade infantil era alta e as expectativas de vida das crianas portuguesas geralmente no
passavam dos 14 anos, o que demonstrava a dura rotina das famlias e crianas menos
favorecidas economicamente. Isto fazia com que principalmente entre os estames mais
baixos da sociedade as crianas fossem consideradas como pouco mais que animais, cuja
fora de trabalho deveria ser aproveitada enquanto durassem suas curtas vidas. (Ibidem,
p.20).
O rapto de crianas judias tambm era uma forma de recrutamento. O mtodo cruel
significava, simultaneamente, um meio de obter mo-de-obra e de manter sob controle o
crescimento da populao judaica em Portugal.
Os grumetes realizavam os trabalhos mais perigosos e pesados das embarcaes etinham as piores acomodaes e alimentao. Entregues a um cotidiano difcil e cheio de
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privaes, essas crianas viam-se rapidamente obrigadas a largar o universo infantil para
enfrentar a realidade da vida adulta (Ibidem, p. 27).
Os pajens, diferentemente dos grumetes, provinham de setores mdios urbanos, de
famlias protegidas pela nobreza ou da baixa nobreza, pois estas viam na expanso martima
a possibilidade de ascenso social de seus filhos. Seus servios eram mais leves e,
geralmente, atuavam junto aos oficiais, o que lhes dava diversas vantagens, inclusive de
alimentao, raramente eram castigados, o que era comum para os grumetes e ainda tinham
poder sobre esses.
Se muitos meninos embarcavam por vontade de seus familiares ou por vontade
prpria, assim como os judeus, as meninas rfs e pobres eram levadas contra sua vontade e
nomeadas como rfs do Rei. Tinham entre 14 e 30 anos, porm dava-se preferncia smenores de 17, que eram enviadas s colnias portuguesas para constiturem famlia.
A travessia era difcil para os adultos, qui para os midos:
Em qualquer condio eram os midos quem mais sofriam com o difcil dia-a-dia em alto mar. A presena de mulheres era rara (...) grumetes e pajenseram obrigados a aceitar abusos sexuais de marujos rudes e violentos.Crianas, mesmo acompanhadas dos pais, eram violadas por pedfilos e asrfs tinham que ser guardadas e vigiadas cuidadosamente a fim demanteremse virgens, pelo menos at que chegassem Colnia. Quando os
piratas atacavam as embarcaes (...) as crianas eram escravizadas e foradasa servirem nos navios dos corsrios franceses, holandeses e ingleses, sendoprostitudas e exauridas at a morte.
Na eminncia de um naufrgio... pais esqueciam seus filhos no navioenquanto tentavam salvar suas prprias vidas...As crianas eram as primeirasvtimas tanto em terra, como no mar. (RAMOS, 1999, pp.19-20).
Assim as crianas que chegavam ao Brasil no eram ainda adultos, mas eram tratadas
como se fossem, sua mo-de-obra era explorada ao extremo, pois nelas se investiam como se
investe em animais, para serem utilizadas enquanto eram teis. Porm, se algo lhes acontecia
de trgico ou mesmo se chegassem morte, pouca importncia era dada ao fato.
Traziam j essas crianas uma herana de pobreza, conheciam a hierarquia social e
no havendo para com elas nenhum sentimento de proteo ou cuidado, mas sim de
explorao. Sim, eles eram midos frente a um mundo que no se compadecia com seu
sofrimento, pois combater o universo adulto desde o incio seria tentar vencer uma batalha
que j estava perdida. (Ibidem, p. 49)
Nesse momento j podemos perceber as diferentes adjetivaes que esto presentes
nos discursos que nomearam essas crianas e figuram, no s no contexto da colnia e da
metrpole, mas tambm se fizeram presentes nos registros e documentos de poca: grumetes,
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pajens, midos. Na base de suas diferenas est a condio social e econmica de suas
famlias, para cada nome um lugar nas embarcaes, para cada nome uma realidade vivida na
travessia martima, para cada nome um papel na empresa colonial.
3.1.2-Curumins e rfos: ospequenosda colnia
Os curumins, sc. Meninos com muitosmolhos de flechas levantadas para cima,faziam seu motim de guerra e davam suagrita, e pintados de vrias cores, nuzinho,vinham com as mos levantadas receber a
bno dospadres, dizendo em portugus,louvado seja Jesus Cristo.
SERAFIM LEITE
A sociedade colonial instalada no Brasil tinha um modelo agroexportador,
fundamentado na produo de produtos primrios que eram destinados Metrpole. A
estrutura social era formada pelos senhores latifundirios, donos de engenhos e escravos. O
sistema de poder representado pela famlia patriarcal favoreceu a importao de formas de
pensamento da cultura europia. Como nesse momento a escola no servia como reproduo
de fora de trabalho, serviu como reproduo das relaes de dominao e de suas ideologias,
papel que foi desempenhado pelos Jesutas (ROMANELLI, 2003).
Os portugueses, desde o sculo XII, eram pioneiros na empresa de expanso martima
e, no sculo XV, procuravam lugares onde no houvesse concorrncia, como a costa ocidental
da frica, o Oriente. A colonizao brasileira acabou fazendo parte desse contexto. O
principal objetivo dessa empreitada era o lucro e a funo da populao da colnia era
promov-lo para a metrpole. Segundo Ribeiro (1998), a organizao escolar no Brasil no
poderia deixar de estar estritamente ligada poltica colonizada.
Em 1549, desembarcavam em Vila Velha quatro padres e dois irmos da Companhia
de Jesus sob a liderana do padre Manuel da Nbrega. Entre as vrias funes, como pregar
aos portugueses e aos homens da terra, estava as de ensinar a ler e fazer oraes aospequenos.
Umas das primeiras preocupaes dos Jesutas era, alm da converso do gentio, o ensino
das crianas. A preocupao era tamanha que estava expressa no regimento do Governador
Tom de Sousa, no qual o rei determinava que aos meninos porque neles imprimir melhor a
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doutrina, trabalhareis por dar ordem como se faam cristos (CHAMBOULEYRON, 1999,
p.53) .
Havia outras ordens que tambm tiveram papel importante na converso dos
Curumins, como eram chamadas as crianas indgenas, e no ensino dos filhos dos
portugueses, mas a Ordem dos Jesutas aos poucos foi se transformando em uma ordem
docente que orientou seus esforos no sentido de se ocupar da formao, no s dos seus
prprios membros, mas tambm da juventude, o que correspondia ao desejo de formar
jovens nas letras e virtude, a fim de faz-los propagar eles mesmos no mundo onde vivessem,
os valores defendidos pela companhia (Ibidem, p. 56).
Como a Companhia de Jesus se contrapunha ao avano da Reforma Protestante,
demonstrou um apego pelas formas dogmticas de pensamento, revalorizao da escolstica euma educao literria e humanstica. Assim, seu ensino era alheio realidade da vida da
Colnia, uniforme, neutro e sem qualificao para o trabalho, servia s classes dominantes,
pois no perturbava a estrutura vigente. Seu principal objetivo era a catequizao da
populao indgena, papel que se estendia aos filhos dos colonos. Preparavam ainda os
servidores para o sacerdcio e, nos colgios que fundaram, ensinavam Letras, Cincias
Humanas e Teologia.
Nessa conjuntura, podemos ver que todas as representaes sociais da poca passavampela religio, tendo como discurso a converso f catlica e a educao humanstica.
Assim, a educao era um fator importante, mas como meio de se catequizar, pois
esses missionrios acreditavam, como a maior parte do mundo europeu dessa poca, que o
cristianismo era a nica religio verdadeira e que seu objetivo na colnia era civilizar os
habitantes, no por meio do conhecimento em si, mas por meio de um conhecimento que os
levasse a alcanar o reino dos cus.
A consolidao da Companhia Jesutica enquanto formadora vai se estruturando narelao que se estabelece entre os jesutas e os moradores do Novo Mundo, pois a Ratium
studiorume as Constituiesque norteavam a educao dessa Companhia ainda no estavam
definidas, aRatium studiorums foi definida no final do sculo XVI e as Constituies, aps
a morte de Santo Incio. Conquanto essa relao tenha se estruturado no convvio dos
missionrios com o povo nativo do Novo Mundo no se pode ignorar que nesse momento
estava se concebendo um novo olhar para a infncia no Velho Mundo:
resultados da transformao nas relaes entre indivduo e grupo, o queensejava o nascimento de novas formas de afetividade e a prpria afirmao
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do sentimento de infncia na qual Igreja e Estado tiveram um papelfundamental. Neste sentido foi tambm esse movimento que fez a Companhiaescolher as crianas indgenas como o papel blanco, a cera virgem em quetanto se desejava escrever; e inscrever-se. (Ibidem, p. 59)
A educao escolarizada servia pequena nobreza que necessitava de mo-de-obra
sem custos e, conseqentemente, aos interesses da metrpole. Conquanto fossem os indgenas
e principalmente os curumins o alvo dos padres para essa educao, foi necessrio incluir os
filhos dos colonos, pois os Jesutas eram os nicos educadores de profisso e recebiam
subsdios para fundar colgios, desde que formassem gratuitamente sacerdotes para a
catequese.
Padre Manuel da Nbrega elaborou, ento, um plano educacional e planejou os
Recolhimentosnos quais se educaria ndios mestios e os rfos, alm dos filhos dos colonos
brancos em regime de externato.
O plano de estudos propriamente dito foi elaborado de forma diversificada,com o objetivo de atender diversidade de interesses e de capacidades.Comeando pelo aprendizado do portugus, inclua o ensino da doutrinacrist, a escola de ler e escrever. Da em diante, continua em carter opcional oensino de canto orfenico e de msica instrumental e uma bifurcao, tendo deum lado o aprendizado profissional e agrcola e de outro, aula de gramtica e
viagem de estudos Europa.No tinha inicialmente, de modo explcito, a inteno de fazer com
que o ensino profissional atendesse populao indgena e o outro populao branca exclusivamente.(posteriormente) Nota-se que a orientaocontida na Ratium concentra sua programao nos elementos da culturaeuropia. Evidencia desta forma um desinteresse ou a constatao daimpossibilidade de instruir tambm o ndio.
Era necessrio concentrar pessoal e recursos em pontos estratgicos, jaque aqueles eram reduzidos. E tais pontos eram os filhos dos colonos emdetrimento do ndio, os futuros sacerdotes em detrimento do leigo, justificamos religiosos. (RIBEIRO, 1998, p.22)
Esse ltimo apontamento demonstra que os colgios jesutas constituam-se como
instrumento de formao da elite colonial.
Os padres foram percebendo a dificuldade de evangelizao dos nativos adultos que se
convertiam mais por medo do que por acreditarem na f crist, e reforava-se a idia de que a
criana se converteria mais facilmente, sendo o caminho para a evangelizao e converso do
gentio. Acreditava-se que ocorreria algo que o Padre Nbrega em suas cartas chamava de
substituio da geraes: os meninos, ensinados na doutrina, em bons costumes, sabendo
falar, ler e escrever em portugus terminariam sucedendo a seus pais.
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Entretanto, a cera virgem no se mostrou to fcil de imprimir, j que para os padres o
mais difcil era manter os nativos nos bons costumes. O ensino dos curumins prosperava,
como mostra a carta Anua de 1583, abriam-se mais escolas e aumentava o nmero de
freqentadores, porm os padres receavam que, uma vez passada a infncia, o aluno
esquecesse o que havia aprendido e voltasse aos costumes dos ndios. Duas situaes que
propiciavam esse acontecimento eram o nomadismo dos pais, que carregavam a criana
consigo quando partiam, e a puberdade que levava os ndios a terem prticas consideradas
abominveis pelos padres, como bebedeira e mulheres.
Esses problemas levavam os padres a uma evangelizao pelo temor, que passava por
um rgido sistema de disciplina com vigilncia, delao e castigos corporais.
Outra dificuldade de evangelizao era a falta de domnio da lngua falada pelosnativos. Tamanha importncia tinham as estratgias que permitissem tanto o aprendizado dos
indgenas como dos filhos dos portugueses, que os Jesutas faziam arranjos para que toda
dificuldade fosse sanada, uma delas foi trazer jovens rfos de Portugal onde juridicamente
essas crianas eram consideradas desvalidas, nome que quer dizer desprotegidas ou sem
valor. Pensava-se que estes seriam capazes de aprender facilmente a lngua dos curumins, e
assim, pudessem ensinar-lhes o latim e a doutrina da igreja catlica.
Porm, como demonstram as palavras de Anchieta, ao falar da chegada, em 1550 aoBrasil de dez a doze rfos, tal iniciativa no propiciou bons resultados:
Um bando de moos perdidos, ladres e maus, que aqui chamam de patife.Isso porque escreve ele em pouco tempo, assediados pelas ndias, noresistiram tentao, fugindo com elas (...) gente maisperdida desta terra ealguns piores mesmo que os ndios (...) Na mesma carta o padre Anchietaalertou para o risco da permanncia desses patifes no Brasil: Porque nelesest muita parte da edificao ou destruio da terra e aqui h muitosinconvenientes e perigos para serem ruins, as mulheres andam nuas e nosabem se negar a ningum. Seria melhor envia-los Espanha, onde h menosinconvenientes e perigos de serem ruins. Solicitou, enfim, na mesma carta quefossem enviados para c jovens que tivessem boas qualidades, para seremirmos e atuarem como interpretes do latim ajudando assim na converso dogentio e infiis. (LEITE, 2001, p.10)
Os pedidos do padre Anchieta foram atendidos, j que nem todos os rfos eram
patifes e esses meninos de boas qualidades se transformavam em doutrinadores e
catequizadores, junto com os padres percorriam as aldeias e faziam pregaes, resolvendo o
problema de falta de religiosos para dar conta de misso to grande.Para esses rfos foi criada uma casa com o auxlio de Tom de Souza,
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vendo-se a dificuldade em manter os meninos, escreve Nbrega assentamoscom o parecer dos mais padres nossos, de tomamos terra e ordenarmos casa demeninos. Funda-se uma confraria que se chamava Colgio dos Meninos de
Jesus que tinha uma situao jurdica ambgua, pois ao mesmo tempo erainstituio eclesistica, com confraria, e civil, por cuidar de rfos ( portantosujeita a uma legislao especial). (CHAMBOULEYRON, 1999, p.76)
Segundo Leite (2001), foi para abrigar esses meninos bonzinhos que os padres
inacianos fundaram os primeiros colgios internos, construindo de imediato duas casas uma
para menina e uma para meninos.
Aqui, mais uma vez marcam-se as diferenas das crianas a partir de suas
nomenclaturas: as crianas nativas do-se o nome de curumins, essas devem ser convertidasao catolicismo e empregados todos os esforos (inclusive fsico) para que essa converso no
desaparea na medida em que se adentra na vida adulta. Aos jovens rfos couberam duas
nomenclaturas:patifes e pequenos de Jesus. Aos primeiros a infncia desvalida teve o sentido
de sem valor, meninos que no prestavam e, segundo Anchieta, caiam em qualquer tentao.
E os pequenos de Jesus encarnavam os meninos de boas qualidades que eram desprotegidos,
para quem foi criado um lugar para a sua proteo. Aos patifes que fugiram podemos ainda
inferir que foram os primeiros meninos de rua do Brasil, enquanto os pequenos de Jesus
foram as primeiras crianas recolhidas, inaugurando, nas palavras de Leite (2001, p.19) uma
poltica de recolhimento de menores que vigorou at 1990 - por quase cinco sculos.
3.1.3-Nhonhs, Muleques e Gente de Cor no contexto escravocrata
Segundo Scarano (1999), no sculo XVIII, no h interesse em se relatar como viviam
os escravos e pobres na correspondncia entre Lisboa e o Brasil, pois estes no acrescentavam
nos assuntos polticos e econmicos e s eram citados, caso houvesse, perigo de revoltas ou
problemas. Assim, a documentao oficial pouco informa sobre crianas e, se informa,
porque esto envolvidas em atitudes marginais. Porm, a falta de referncias no significam
que no lhe dessem valor, ela era
a continuao da famlia, gozavam de afeto dos seus, participavam dosacontecimentos e das festas, enfim tinha presena na vida do momento.
Entretanto, sua morte no era encarada como uma tragdia, outras crianaspoderiam nascer substituindo as que se foram. Era aceita como uma fatalidade,
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tantas nasciam e morriam, sendo substitudas por outras. No era vista comoum ser que faria falta. (Ibidem, p.110)
Se compararmos o que nos relata ries (1981), sobre a vida da criana na Europa,antes do perodo que esse autor delimita para a inveno da infncia, veremos as semelhanas
sobre a vivncia da criana entre os adultos, em que as crianas transitavam pelas ruas e
cidades, pois no eram separadas do mundo adulto, o mesmo se dava com as crianas
escravas, que circulavam tanto pela senzala como pela casa de seus donos, participando da
vida dos seus filhos, muitas vezes servindo de distrao para as mulheres ou de brinquedos
para os filhos dos senhores. Meninos brancos recebiam amas africanas que lhes faziam todo
tipo de mimos. Quando cresciam, recebiam um companheiro de brincadeira: o muleque que
servia de brinquedo, enquanto o dono, o nhonh, divertia-se com as brincadeiras geralmente
maldosas, repeties dos castigos impostos aos escravos adultos. A nomeao atrela a idade
ao trabalho, o escravo adulto deveria ter mais de quinze anos, os abaixo desta idade, o
mulequetraz uma designao de um campo restrito de trabalho, tendo por isso menor valor.
As crianas que nasciam escravas no serviam de reposio para outros escravos, pois
isso levava anos, maior importncia era dada a suas mes, que serviam de amas de leite para
os nhonhs, atitude considerada importante tanto pela igreja como pela medicina vigente. O
filho das escravas muitas vezes era prejudicado pela falta do alimento e abandonado com
outros membros mais idosos para servir os donos. A hierarquia se mantm: privilgio de uns
em detrimento de outros.
Crianas filhas de escravos com escravos nascidos no Brasil eram chamadas de
crioulos, porm, gente de cor era o nome com o qual se agrupavam crianas nascidas de
brancos com pessoas de outra etnia (Ibidem, p.113), que podiam ser designadas de cabra,
mestio, mulato ou pardo. Este grupo tornou-se ascendente no s em populao, mas
tambm em caractersticas culturais, e sua classificao dependia da situao social da
criana. Se esta fosse aceita pelos pais, podiam ser aceitas como brancas. Independente de
serem escravas ou livres, estas crianas eram batizadas. A igreja julgava isso to
indispensvel que o batismo ocorria independente da vontade dos pais e deles podiam ser
separadas se aps os sete anos de idade estes quisessem afast-la dos preceitos da igreja
catlica. A igreja enxergava esta idade como o incio da idade da razo.
Em contradio viso do escravo enquanto mercadoria, dar a criana de cor um
batismo significava entend-la como algum que tinha alma e capacidade para odiscernimento. Porm essa ao no avalizava s a idade da razo, ela permitia que a
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criana, se escrava, fosse separada de seu pais e vendida, mas nessa idade, como dissemos
anteriormente, ela s seria vista como fonte de distrao ou brinquedo ou para fazer pequenos
servios, como carregar coisas ou abanar o seu senhor.
As relaes entre negras e homens brancos geraram inmeras crticas e filhos
ilegtimos. Crticas porque no se via com bons olhos o r