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Maria Evilma Alves Moreira
o INTERACIONISMO BAKHTINIANO E A CONCEPQAO AFRICANA
TRADICIONAL, APROXIMAQOES E DISTANCIAMENTOS
Trabalho de conclusao de curso, apresentado aUniversidade Tuiuti do Parana, como requisitoparcial para obten9a.o do grau de especialista.Orientador Professor Ooutor Henrique CunhaJunior.
C'
CURITIBA
TERMO DE APROVA<;:Ao
Maria Evilma Alves Moreira
o INTERACIONISMO BAKHTINIANO E A CONCEP<;:Ao AFRICANA
TRADICIONAL, APROXIMA<;:OES E DISTANCIAMENTOS
Esta monografia foi julgada e aprovada para obtenyao do titulo de Especiatista em Hist6ria eCullura Africana e Afro-brasileira, Educaryao e AC6es Afrrmativas no Brasil, no Curso de Hist6ria eCullura Africana e Afro-Brasileira da universidade Tuiuli do Parana.
Curitiba, 25 de Janeiro, 2008.
CURSO: Historia e Cultura Africana e Afro-brasileira. Educa980 e A90es
Afirmativas no Brasil.
Universidade Tuiuti do Parana
Orientador Prof. Dr. Henrique Cunha Junior
Universidade Federal do Ceara
Oedico esse trabalho aos nossos ancestrais, pela sua dor, sua luta e resistencia,presentes em cada urn de n6s ..
Para Va Maria, Va Creuza e Va Mundim, que nao sabem ler as letras no papel,mas !l3em 0 mundo e gritam, a seu modo, sua poesia e sua rebeldia ..
Para os tios, tias, primas e primos que ficaram em Exu - Pe e de quem meorgulho de tentar representar ...
Para mamae Maria Nazira e papai Joaquim (Quinco) fonte de amor, for9a etemura ..
Para Aninha, Adriano e Beatriz, as irmaos rna is Iindos que alguem poderia ter ..
Para a professor Henrique Cunha, eterna gratidao pela homa de me deixarcompartilhar sua presen9a sempre sabia e generosa ..
Para professora Lena Garcia, misterio e for9a que gritam em olhinhos de crian9acuriosa e riso de men ina bonita ..
Para Luciana, Silvana, Afrodite, Marcia, Lucineia, Elisangela, Cleonice, Marli,Anizia e Elaine.. irmas de caminhada, mulheres magicas que me ensinam tododia ..
Para Ze Paulo, todo carinho e gratidao par me incentivar sempre e par me ensinar 0
que e ser livre e deixar ser livre ... mesmo na dor ..
Para Va Neide, Cicero, Celso Jose, Cleusa e Edmundo, todo amor construido nosmuitos quil6metros/caminhos compartilhados ..
Para Dulce, Jose de Souza Santos, Dernival, Angela Klepa, Valeria SanchesFonseca e Deodato que me orienta ram e me encantaram na escota e na vida ..
Para professora Fatima, linda incentivadora ...
Para 0 professor Carlinhos Aleixo, que sempre (des) orienta e obriga a (re)construir, com sua existencia poetica e subversiva ...
Para 0 professor Lauro Rocha, linda amigo, sempre presente ..
Para Va Guna, Dermeval e Marcos, terna gratidao por ressignificarem taogenerosamente a dan9a, a arte e as religi6es de matriz africana ...
Para companheiras e do curso de especializa~ao e do Ipad, pelo ensinamentocotidiano do que e respeito a diversidade e pelas muitas horas compartilhadas comoirmaos e irmas ..
Com especial gratidao ao IPAD - BRASIL, pela idealiza9ao e realiza9ao dessecurso em parcer;a com a UTP, que modificou nossas vidas e proporcionou umreencontro com nossa hist6ria e nossa ancesfralidade.
"[... ] imp6e-se ao escritor que nao sequer cumplice da destrui9ao a tarefa de
formular poeticamente respostas queexpressem, a despeito das fortes
press6es, a nossa cren<;a na resistencia.Imprensado, portanto, contra as invisiveismuros da interdi980, a poeta pode evitar °
caos quando consegue assegurar apalavra 0 direito e 0 poder de continuar
fundando utopias."
Rita Chaves
RESUMO:
Os estudos de Mikhail Bakhtin, sobre a linguagem, a intera~ao pela palavra e a
natureza social das representac;:6es simb61icas embasam a maioria dos trabalhos
atuais e sao quase unanimidade ao S8 falar em linguagem, lingua, interac;:c3o e,
considerando a area educacional, fazem emergir uma serie de questionamentos
sabre 0 que seria interac;:ao, interagir, construir coletivamente conhecimento. lingua e
tala. Da mesma torma, especialmente apos a aprova~ao da Lei 10639/2003, que
institui a obrigatoriedade de ensina de historia e cullura africana e afro-brasileira na
educac;ao basica da rede publica e particular e ensina, emergiram uma serie de
discuss6es sabre 0 modo africano e afro-brasileiro de existir, de conceber as
relac;:oes I interac;6es humanas, e portanto. a linguagem, a lingua, a tala. Nesse
trabalho temas a pretensao de aproximar essas discussoes: a interacionismo
bakhtiniano, a palavra e seu valor para ocidentais e africanos e demonstrar que e
passivel, mesma em estudos iniciais, aproximar e comparar mundas, canceitas, sem
hierarquizar canhecimentas, como historicamente sempre se fez.
Palavras-chave: palavra; interacianismo; Bakhtin; cultura africana.
SUMARIO
1 APRESENTA<;Ao---------------------------------------------------------------------------------10
2 PALAVRA E GRUPO SOCIAL---------------------------------------------------------15
2.1 OLHAR 0 POVO PASSAR, NOTAS SOBRE COISAS DE HOJE E DE
ANTIGAMENTE-------------------------------------------------------- 15
3 PESSOA E PALAVRA: VALORES DE LA E DE cA----------------------------------19
3.1 APONTAMENTOS NECESsARIOS----------------------------------------------------19
3.2 PALAVRA, INTERA<;AO E FORCA VITAL----------------------------------------------26
3.3 PALAVRA FALADA E PALAVRA ESCRITA: 0 POMO DA DISCORDIA?-----32
4 APROXIMA<;OES E DISTANCIAMENTOS-------------------------------------------37
4.1 0 INTERACIONISMO BAKHTINIANO E A PALAVRA PARA A TRADI<;AO
AFRICANA--------------------------------------------------------------------------------------37
5 CONSIDERA<;OES FINAIS---------------------------------------------------------------41
6 REFERENCIAS----------------------------------------------------43
APRESENTA<;AO:
UEu vim aqui rever meu pe de serra,
vim beijar a minha terra,
festejar teu centenano .. ."
(LuiS Gonzaga).
Embora para alguns soe paueD cientifico a principia, parece ser
indispensavel a uma pesquisadora anunciar 0 lugar de onde fala. E e uma voz de
nordestina, negra e indigena, iniciando sua trajet6ria de (auto) reconhecimento
historica, cultural e de pesquisa cientifica que sera ouvida nesse texto (au uma
tentativa de). Sou primeira filha de Joaquim e Maria. Pernambucana de Exu, cidade
conhecida par ser "a terra de Luis Gonzaga", 0 rei do baiao, do ferro. Mama8 e
papai, retirantes nordestinos que ainda muito jovens atravessaram 0 Brasil com duas
criam;as a procura de vida melhor, com agua e com ida suficientes ao men os.
Isolados de seu grupo social e cultural, estranhando a "jeito do povo daqui" (do sui),
retornamos a Pernambuco, mas a seca castigava todo 0 sertao do Araripe e fieamos
apenas tempo sufieiente para eonseguir dinheiro e retornar em definitivo para 0
Parana.
Oez anos morando numa chacara em troca de urn salario quase simb61ieo
(como geralmente e feito com retirantes nordestinos no Brasil), a maior parte do
tempo sem energia eletrica; depois, tres anos e meio numa fazenda, distante da
escola, numa pequena cidade do interior do Parana (Luiziana), tambem sem energia
eletrica, e ai tambem sem agua, que era carregada na caberya por alguns
quil6metros, inclusive para 0 banho (claro que preferiamos 0 banho de rio,
eachoeira). Vida dificil, sem vov6, sem tios e tias, ou qualquer referencia que nao
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pai, mae e irmaos. Mas nada disso se traduziu em amargura ou tristeza. Em casa
sempre se eultivou algumas das principais caracteristicas do ~pava do nordeste": a
cantoria e 0 riso facil.
o que houve foi uma perda da consciemcia que aos poueos vai sendo
resgatada do que e ser nordestina, negra e indigena. Um resgate que passa pelas
cantigas que mamae cantava e que hoje sei, eram "de terreiro" (de religiao de matriz
afrieana); pelas historinhas que papai contava, inventanda e reinventado
(terminanda sempre com: "Chega, senao cria rabo!" que davam um misto de magia e
medo de virar bicho, pelo exagero da dose); pela importancia das diversas plantas
na entrada de casa, que sempre estiveram la para afastar mau olhada ou para
remedio; pelas palavras "anordestinadas", quase outro idioma, que ouvia em casa e
ninguem de fora sabia direito a que significavam, causando risos e vergonha; pelas
palavras que nao podiam serem ditas dentro de easa para nao atrairem
acontecimentos ruins; peto sotaque reprimido e quase extinto pel a professora da
quarta serie; pela deseoberta de uma "nao branquitude", que fai tardia, dalarosa,
confusa e as vezes ainda questionada, com base na "morenice" 0 no cabelo nao tao
"ruim"
Esse processo de reconhecimento nao esta a parte do percurso escolar e
das reflexoes de natureza cientifica, pelo contra rio, estao umbrieados de forma que
podem se confundir e provavelmente nao haja raz6es para separa-Ios, sob a risco
de total incaerencia inclusive aos conceitos aqui estudados.
Segundo Paulo Freire, 0 caminha se faz ao caminhar, e ainda no inicio
desse percurso, muito vazio de certezas e repleto de duvidas, questionamentos e
receios de pisar em terreno paueo eonheeido, temos a pretensao de aproximar
discuss6es que sao bastante atuais embora tradieionais. Poderiamos ate dizer
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d3ssicas: a interacionismo bakhtiniano, a palavra e seu valor para ocidentais e
africanos. Nao faz parte de nassos anseios esgotar a discussao au estabelecer
verdades. Mas fazer algo que par hora parece relevante e necessaria: demanstrar
que e possive1, mesma em estudos iniciais, aproximar mundos, conceitos, sem
hierarquizar conhecimentas, como historicamente sempre se fez.
as estudos de Mikhail Bakhtin embasam a maioria dos trabalhos atuais e
sao quase unanimidade ao se falar em linguagem, lingua, interayao e, considerando
a area educacional, fazem emergir uma serle de questionamentas sabre a que seria
intera~ao, interagir, canstruir coletivamente conhecimento, lingua e fala.
Da mesma forma, especialmente apos a aprova9ao da Lei 10639/2003, que
institui a obrigatoriedade de ensina de historia e cultura african a e afra-brasileira na
educayao basica da rede publica e particular e ensina, emergiram uma serie de
discussoes sabre 0 modo africano e afro-brasileiro de existir, de conceber as
rela90es/intera90es humanas, e portanto, a linguagem, a lingua, a fala.
o porque tentar aproximar ou, talvez mais apropriadamente, comparar 0
interacionismo vinculado a 8akhtin com a modo de ver africano vern de uma
angustia sentida ainda na gradua98a, aa me deparar com essa afirma9ao: "a voz
que esta em mirn (os meus conhecimentos) nao e senao a resultada dos que
viveram antes de mim", nas defesas do professor Carlos Aleixo interpretando
canceitos bakhtinianos. Era alga (ernbora 6bvio) dificil de compreender -
provavelmente devido ao modo de pensar de urn pova que utiliza sem corar a termo
"a self made man", como se fosse possivel alguem fazer-se por si proprio. Ao iniciar
as leituras e participa~6es nos diversas eventos que nos iam desvelando as
africanidades/negritudes que permeiam as varias dimensoes da existencia do pova
brasileiro, compreendi mether 0 que nao compreendia antes: e obvio ao extremo que
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sao os conhecimentos de nossos ancestrais que nos fazem saber ever 0 mundo
como vernos. Entretanto, essa afirmagao pareee conflitar com 0 modo como somos
educados a perceber nossa existencia e a construgao de nossos saberes. Entre
esses saberes a palavra e 0 cerne dessa discussao. De que forma a interagao pela
palavra ocorre em culturas diferentes? Que valor tern a palavra (oral e escrita) para
oeidentais e para africanos?
Aqui se faz necessario explicitar que sabemos nao ser possivel afirmar
indubitavelmente ser essa ou aquela cultura africana ou ocidental. Tampouco
podemos nos debrugar - num trabalho inicial como esse - sobre as inumeras
representagoes culturais africanas e ocidentais, desvelando suas similitudes e
diferengas. Assumimos inclusive os riscos de nao acrescentar muito, devido a
escassez de bibliografia sobre a tematica e os desconhecimentos que atravessam
as concepc;:oescomparadas nesse trabalho. Entretanto, acreditamos ser possivel
analisar elementos de urn e de outro universe simballeo, aproximando au nao
praticas e representagoes.
Fazemos aqui uma ressalva necessaria: ao tratar de tradigao africana nao
estamos considerando a Africa antiga, nos referimos a valores, concepgoes e
praticas de matriz africana que ainda podem ser percebidas, por que imanentes em
diversas partes do territorio africano e nas culturas afrodescendentes localizadas
geograficamente fora desse continente (apesar das invas6es sofridas nos espagos
ffsico e ideologico e das reconstrugoes que se fizeram necessarias).
Organizaremos 0 presente ensaio da seguinte forma: no primeiro capitulo
faremos uma ligeira abordagem sobre 0 que poderiamos chamar de crise de
interag6es (pela palavra) e a forma como atualmente algumas praticas linguisticas e
culturais tradicionais e {urais demonstram irem perdendo espago para praticas de.;~
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." <== 5llll.!·:r:t; ...\SdlI:}'A.!i:!;i. ..•.'",.,-_../'
linguagem mais pr6ximas da virtualidade e do distanciamento, ao mesmo tempo em
que as rnesmas tecnologias responsaveis por esse quadro transformam as rela~oes
em praticas mais "oralizadas".
No segundo capitulo faremos algumas considerac;:oes sobre possiveis
diferen~as no modo de conceber pessoa, grupo social e palavra, para 0 ocidente e
para povos africanos. Tambem analisaremos ai algumas diferen~as fundamentais
entre a palavra escrita e a palavra falada e seu valor para os dois grupos culturais
em questao.
No terceiro capitulo trataremos da concepc;ao de interacionismo vinculada a
Mikhail 8akhtin e faremos aproxima~oes (e distanciamentos) entre essa visao e 0
modo africano de conceber as intera~oes pela palavra.
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PALAVRA E GRUPO SOCIAL
~VivaExu Odarao bamba que zanza pete campo
o born de briga que abafa no bafafaQue bota uma beca batutaPre ser porteiro de Deus·
(Ant6nio Riserio).
"OLHAR 0 POVO PASSARo, NOTAS SOBRE COISAS DE HOJE E DE
ANTIGAMENTE
E. comum ouvirmos nossos pais e av6s falarem de urn tempo geralmente
definido como Wantigamente~, em que as pessoas respeitavam os mais velhos. Em
que parava-se no portaa ou embaixo de uma arvore e ali ficava-se haras olhando 0
tempo e 0 pavo passaro Quando alguem S8 aproximava, faziam-se long05
cumprimentos, perguntava-se sabre a familia (e esperava-se a resposta). Ouvia-se
o que Qutro falava sem pressa para 0 ani bus que S8 aproximava ou para 0 horario
de "bater 0 cartao". Par alguns, essas historias sao compreendidas como relatos de
urn tempo em que naD trabalhava-se muito. Ou como sin6nimo de uma vida rural. E
de fato podem ser associadas a praticas que ocorreram (e ainda ocorrem) em locals
mais afastados dos centros urbanos, quando 0 tempo era regido pelo sol e as dias
de trabalho pela lua, que determinavam 0 plantio e a colheita.
Mesmo em ambientes urbanizados e possivel saber de alguns habitos que
cultivavam encontros para danyas ou para cantoria e para horas em que se "jogava
can versa fora". Ha ainda, em varias cidades, grupos culturais de bairros que ha
seculos mantem a tradiyao de ensinar expressoes culturais diversas aos mais jovens
e, ao mesmo tempo, utilizar essas situayoes para, como "antigamente", permitirem-
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se conversar, ouvir, sem a correria imposta pela concepc;ao contemporanea de
existir.
Com base na crescente diminuic;ao desses habitos, e mais, na
desvalorizaC;ao de algumas dessas praticas, pode-se ate afirmar que ha uma crise
nas relac;:oes humanas, nas interac;:oes pela palavra falada. Mas, ao mesmo tempo,
nao podemos deixar de considerar que hit novas pritticas sendo construidas e ja
estabelecidas em praticamente todo 0 mundo, inclusive entre a maioria da
populac;ao brasileira.
Com a consolidac;:ao da escrita, as palavras antes repetidas por enviados ou
realizadas pessoalmente, podiam ser registradas em papel e lid as, ao inves de
ouvidas. a telefone revolucionou a comunicac;:ao e, consequentemente as relac;:oes
pela palavra quando possibilitou, ao longe, audic;ao em tempo real e um diitlogo que
demorava as vezes anos (se feito por cartas) poderia oeorrer em alguns minutos. A
televisao, se inseriu rapidamente nesse contexto, possibilitando a imagem, outras
vidas e outros povos a serem observados numa caixa, que aos poueos ganhou 0
centro das salas e dos demais comodos da maio ria das casas, desde ambientes
extremamente urbanizados ate moradias de povos indigenas.
E esse 0 caminho que tern seguido tambem a rede mundial de
computadores, a internet. Mas com urn elemento cornplicador (au facilitador): alguns
programas da internet permitem que se converse (atraves da eserita ou da palavra
falada) em tempo real com pessoas nos mais diferentes lugares do mundo. As
pessoas acessam determinado programa, convidam os "penis" que Ihes interessam
para seu grupo (ou mais apropriadamente, sua comunidade), aceitam ou nao serem
"adicionadas" em determinados grupos e falam dessas amizades, ou desses
contatos como se fossem amigos de inUmeia. Nao sao raras as vezes em que as
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pessoas se reinventam e criam uma personagem para conversarem por esses
meios: afirmam morarem em outros lugares, pertencerem a outros grupos sociais ou
etnico-raciais. Ha mesmo quem afirme que e passive! que ja existam programas
"inteligentes" que responderiam a essas mensagens. Entao, seria possivel que
alguem estabelecesse rela90es de amizade ou de amor com urn programa de
computador. Enos ultimos anos, ja possivel acessar a tudo isso em urn aparelho
menor do que urn telefone celular, 0 ipod.
Se por um lado esse quadro parece evidenciar um percurso de afastamento,
de desumanizay80 das relayoes pel a palavra, por outro, oferece uma outra realidade
que ressignifica e volta a valorizar algo que e reivindicado por quem assume-se
saudoso pelo tempo de "antigamente": a oralidade, a conversa, 0 jogar conversa
fora. Antonio Riserio afirma que:
"( ... J Vivemos hoje imersos num universo cultural que e, entre outrascoisas, fortemenle ora\. Presidentes enviam suas mensagens'pessoalmente' pela televisao, devotos lolam templos para orar e ouvirpredicas, autom6veis passam com seus radios ligados, neuralicos eneur6ticas de lodo a mundo abarrotam escril6rios de pSicologia para tentara cura pela palavra falada, professores discursam da manM if noite emsuas salas de aula, genie de todo tipo se reune em congressos eseminarios para falar sabre os temas mais esdrDxulos, conferencistasprofissionais proliferam como insetos zumbidores, gurus repetem sflabasmagicas e por ai vai...~(1996, p.167)
E necessario salientar que, ao contra rio das situa90es em que solidariamente
se entoava cantigas numa roda, au contava-se historias ate 0 amanhecer, todas
essas praticas elencadas par Riserio, inserem-se num contexte capitalista de existir
e, portanto, custam relativamente caro. Excluem determinados grupos socia is. Dai
tambem a impressao de que estamos imersos num momenta historico e cultural que
aponta para 0 que e pertinente e, na mesma medida, explicitam quem pode ou nao
ter acesso a tais possibilidades. Nessa otica, Bakhtin afirma que "[...] pode-se dizer
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que a Filosofia burguesa contemporanea esta se desenvolvendo sob 0 signo da
palavra." (2004, p.26).
Se esse ou aquele momento e melhor ou pier e uma avalia<;:aobastante
subjetiva e esta fortemente amarrada aos valores e aos objetivos de cada grupo
social. A forma como cada grupo cencebe seu existir. 0 ser e 0 fazer-se humano.
Sabemos que valores cultivados pelos povos africanos e par seus
descendentes no Brasil diferem em diversos aspectos dos valares europeus
exaltados pelos seus descendentes e oficializados como brasileiros. Mas quais
seriam os elementos que poderiamos analisar e tra<;:arsemelhan<;:ase diferen<;:as,
considerando indica<;:6esdo modo de conceber pessoa, grupo social e a valor da
palavra nesses dais universos?
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PESSOA E PALAVRA: VALORES DE LA E DE cA
~Lasca e racha paredesRacha e crava pedras de raiaEncara feroz quem vai comer
Fala com a corpo todoFaz 0 poderoso estremecer
orho de brasa vivaCastiga sem ser castigadoRei que briga e me abriga"
(Anlonio Riserio, Oriki de XangO)
APONTAMENTOS NECESsARIOS
Antes de iniciarmos as considerac;:oes sabre as diferenc;:as e as
semelhanyas entre as concep90es de pessoa, grupo social e palavra para africanos
e ocidentais, precisamos delimitar de quais africanos e de quais ocidentais
trataremos. Como ja foi afirmado aqui, naD pretendemos esgotar a discussao, mas
apenas apontar alguns elementos que consideramos mais relevantes de nota e dos
quais acreditamos estarmos mais pr6ximos empirica e cientificamente.
Para isso, nos limitamos a pesquisa bibliografica. Para tratar das
concep<;5es de africanidade, utilizaremos como base as estudos de Antonio Riserio,
de Ronilda Ribeiro e de Eduardo Oliveira. Sabre as cancep<;6es de sujeito (pessoa)
e palavra para 0 acidente, ah§:m desses, utilizaremas como base Mikhail Bakhtin,
mais especificamente seus escritos em Marxismo e Filosofia da Linguagem. 0 que,
em principia, pode parecer estranha, posta que a estudioso russo Bakhtin nao
escreveu sobre 0 Brasil au Africa, nem sabre rela<;6es etnica-raciais. Mas ao
pensarmos que Bakhtin escreveu sabre lingua, palavra e seu carater social, e que,
nas ultimas decadas suas afirmac;oes sao largamente discutidas e ecoam nas
academias de todo a mundo (e no Brasil encontram grande respaldo academico,
muitas interprete, estudiosos e admiradores. Que embasam inclusive as Diretrizes
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Curriculares para Educa~ao do Estado do Parana), nos estudos sabre a palavra,
podemos afirmar que as premissas bakhtinianas sao sim uma realidade proxima
para tratarmos de mod os de ver ocidentais sabre relac;6es pela palavra e,
consequentemente, pessoa e grupo social.
Poeticamente, Oliveira define a condic;ao de ser/estar no mundo de forma
intimamente umbricada ao existir dos que antecedem e dos que coexistem,
construindo juntos cada particula fisica e social de urn ser: "Tudo que naD sou eu
tambem me comp6e. Eu sou eu e muitos DutroS. Todos as Qutros teceram
moi<'culasde mim. Teci, involuntariamente, pedacinhos da alteridade." (2007, p. 05).
Esse modo de ver, de sentir-se no mundo, e tambem resultado de uma formac;ao
estreitamente ligada a cultura de matriz africana.
Segundo Rita Chaves, "[...J conhecer a Africa e, sem duvida, abrir as olhos a
matrizes que nos comp5em, que interierem em nossa modo de ser, em nossa forma
de estar no mundo." (2005, p.13). Mesmo quando nao conhecemos essas matrizes
africanas, elas nos constituem, nos fazem ver, sentir e falar de forma diferente.
Quando nos aproximamos das representac;:6es simb6licas de matriz africana,
desvelamos varios elementos estruturantes dessa cultura e desenvolvemos urn olhar
para as africanidades que nos compoem, enquanto pessoa e enquanto pessoa num
determinado grupo.
Eduardo Oliveira (2003) afirma serem elementos estruturantes da
concepc;:ao africana de mundo: as religi6es, a ancestralidade, 0 modo de produc;:ao,
a familia, a morte, a socializac;:ao, 0 tempo, a pessoa, a palavra, a forc;:avital e 0
modo de perceber/conceber 0 universo.
Entendemos que a prime ira e principal diferenc;:a entre 0 modo africano e
ocidental de ver e a rela,ao com 0 sagrado (e conseqiientemente a segredo que
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envolve as relat;:5es com esse sagrado). A religiosidade africana e tao presente em
todas as dimens6es do existir que mesmo em pesquisas, cientificas, atualmente tao
comprometidas pelo positivismo e peto racionalismo (que imp6e a separat;:ao do
racional e do espiritual) nao ha como falar de valores africanos sem falar da
religiosidade que permeia todas as esferas do existir. Desde as relat;:6es de
produt;:ao, as diversas formas de sociedade, a concept;:ao de tinguagem ou qualquer
outra dimensao que se estude 0 sagrado sera constituinte.
Embora povos ocidentais, de orientat;:ao judaico-crista, atribuam bastante
importancia a sua religiosidade, a veem como algo separado, por exempl0, da esfera
cientifica. A menos que seja urn trabalho especifrco sobre a religiosidade,
dificilmente encontraremos uma pesquisa sobre linguagem que focalize a
religiosidade. Ou que a considere relevante a ponto de que nao seja possive! omiti-
la. Ao contra rio, " 0 sagrado permeia de tal modo todos os setores da vida africana,
que se torna impossivel realizar uma distincrao formal entre 0 sagrado e 0 secular,
entre 0 espiritual e 0 material nas atividades do cotidiano. Uma forya, um poder ou
energia permeia tudo." (Ribeiro, 1996,p.39). Notamos facilmente essa rela~ao nas
mais diversas areas de conhecimento.
Decorre tambem de urn modo de ver fragmentado, dividido em areas
distintas, a forma como a ser humano e concebido no ocidente: um ser , sujeito de
direitos e deveres, como define 0 direito, ou sujeito historico, como afirmam
correntes materialistas, marxistas e para grande parte dos lingOistas. Mas essas
defini90es (sernpre excluindo a dimensao retigiosa) variam dependendo da area de
estudo que as fazem. Segundo a lingOistaIngedore Villa~a Koch (2003), ao tratar de
sujeito da linguagem, as conceP90es podem variar de acordo com a concepyao de
lingua adotada.
Nessa perspectiva, Koch (2003) afirma serem tres as posiyoes ciassicas
com relar;ao ao sujeito:
Sujeito cartesiano, que seria dono de sua vontade e, portanto, de suas
palavras. Ha nesse sujeito urn predominio da consciemcia individual no usa da
linguagem. 0 sujeito da enunciayao (da realizayao, da materializayao do ato de fala)
seria responsavel pelo sentido. A Lingua seria, entaD, um instrumento it disposil):80
dos individuos que a utilizariam como se ela naD tivesse hist6ria.
Sujeito anonimo, social, na verdade resultado de assujeitamento. Ai 0
individua, quando em papel de locutor e dependente, repetidor. Tern a ilusao de ser
a origem de seu enunciado. Sua consciencia e produzida de fora, e e ela a
responsavel pela ilusao de que ele e 0 dono do que tala. Quando, segundo essa
concepc;ao, naD sabe 0 que diz.
A terce;ra posic;ao e a de urn sujeito de interary<3o, uma entidade
psicossociat, com carater ativo na produryao social e da interary<3o. Urn sujeito
hist6rica e ideotogicamente situado, que se constr6i na interary<3o com a outro. 0
outro da a medida do que ele 6. Essa e a definiry<3o que se embasa nos estudos
bakhtinianos. Percebemos que a pessoa, chamada aqui de sujeito, 6 definida
conforme as premissas de 8akhtin: 0 dialogismo e a alteridade. 0 dialogismo que
preve 0 dialogo entendido nao apenas como a fala em voz alta, ou a troca de
informac;:oes pela palavra, mas a interaC;:<3o, a construc;:c3o coletiva e hist6rica da
humanidade pela linguagem e peta palavra. E atteridade, 0 reconhecer no outro a
real participaC;:<3oe constituiC;:<3odo que sou eu e de suas similitudes e diferenc;:as.
Segundo 0 modo de ver predominante entre ocidentais, os "individuos" sao
vistos como seres independentes que escothem pertencer a determinados grupos
socia is. Mas esses individuos sao donas de seus conhecimentos, de sua hist6ria e
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responsaveis par seu sucesso ou insucesso e consideram a possibilidade de
estabelecerem inclusive urn relativo isolamento dos demais integrantes do grupo.
Bakhtin afirma que:
~o individualismo e uma forma ideologica particular da atividade mentaldo n6s da c\asse burguesa (encontra-se um tipo analogo na classe feudala{istocralica). A atrvidade mental de tipo individualista caracteriza-se poruma orientacAo social s6lida e afirmada. [...J Essa variante da atividademental do nos e caracteristica da intelligentsia ocidentalcontemporanea.- (p."7, grifos nossos).
E interessante perceber que, mesmo com fundamentos que orientam para a
conduta individualista, egocemtrica, que podem causar a ilusao de que se trata de
ac;;oes que tern origem no individuo, essa tambem e uma orientac;;ao social. 0
individualismo e uma conduta social.
Outra grande diferen9a facilmente perceptivel nos modos de ver pessoa e a
valar dado a ancestralidade. A pessoa va/orizada, na ardem capita/ista do ocidente,
e caracterizada pelo sucesso conseguido no mercado de trabalho, e e via de regra,
jovem. Nao ha espac;;o socia/ valorativo para a pessoa idosa, que com raras
exce90es, fica reduzida aos espa90s autorizados, que podem ser simbolicamente
representados pela casinha nos fundos da casa de algum filho ou conhecido rna is
caridoso. Tern que se adaptar a urn mundo pensado para a pessoa com faixa etaria
dos vinte aos quarenta anos.
Conforme valores tradicionais africanos, a ancestralidade esta ligada ao
cicio vital, a pessoa idosa esta numa fase privilegiada, rnais proxima do tempo
primordial, do sagrado. Pois ao contra rio da visa a linear passado - presente -
futuro, a vida e tida como uma corrente que flui de gerac;ao em gerac;;ao e nao S8
finda com a morte:
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~o cicio da vida e circular: a crian~a vai se Iransformando ate chegar aadulto; este se transforma ate chegar a velho; este, par sua vez, setransforma, inclusive atravessando a portal da marte, para alcan~ar acondiqAo de antepassado; 0 antepassado renascerit como crian~a .. "(RIBEIRO, 1996, p. 44/45).
Outro aspecto que merece muita atenC;8o e a forma como 0 tempo ecompreendido nos dais universos. Para a ocidental a tempo aconteee jinearmente
(na sequencia passado, presente, futuro) em direC;8o a urn futuro onde sao
depositadas todas as expectativas. Quanta mais distante 0 futuro, maior a
expectativa. E assim, a pas-vida serla 0 "ninho" onde repousariam todas as
realizac;6es nao conseguidas na vida terrena.
Riserio afirma que "( ... J as Hnguas africanas sequer possuem, segundo as
eruditos, palavras para designar um futuro distante." (1996, p.67). Ribeiro concorda
e acrescenta que
No pensamento tradicional africano nao ha urn conceito de Hist6riamovendo-se para a frente, ern dire~ao a um climax futuro, bern como naoha urn movimento em direfYao ao fim do mundo. As pessoas depositam 0olhar em zamani uma vez que, em lugar de urn reino por vir, como natradifYao judaico-cristao, h3 a hist6ria a preservar. (p. 52)
Alem disso, a pessoa e vista como "simultaneamente, a soma do que existe
na terra (reino mineral, vegetal e animal) e participe da natureza divina. 'Sintese de
tudo que existe, receptacula por excelencia da for9a suprema e confluencia de todas
as forl'as existentes" (RISERIO, 1996, p. 31). Assim, todas as pessoas e todos os
seres, animals, vegetais e minerais formariam um todo, 0 universo. E a desarmonia
em uma dessas dimens6es ou mesmo entre individuos, causaria a desarmonia, a
mau funcionamento dessa cadeia que funciona solid aria e continuamente. Ribeiro
define como um "universo de correspondelOcias, analogias e interac;oes, na qual a
24
hom em e todos os demais seres constituem uma (mica rede de fon;as." (1996, p. 39)
E acrescenta, citando Thomas, L. V. (1973):
Nas diversas etnias africanas M um sem numero de exemplos deconcep4yOesa respeito da constitui~o humana como resultante de umajustaposi930 coerente de partes. A pessoa e tida como resultante daarticula930 de elementos estritamente individuais herdados e simb6licos.as elementos herdados a siluam na linhagem familiar e cltmica enquantoos simb6licos a posicionam no ambiente c6smico, mitico e socia!."· (...1asdiversos componentes da pessoa estabelecem rela90es entre si e rela90escom for9as c6smicas e naturais. (p. 39).
Isso e 0 mais proximo que consideramos (em uma definic;ao com palavras)
do que seria interagir, coexistir, estabelecer uma relac;:ao de forc;:as interdependentes
e dinamicas.
Talvez esse modo de perceberlsentir 0 universe indique caminhos para
compreender um pouco mais as relac;:oes familia res, socia is, as relac;:oes de trabalho
e algumas das especificidades do pensamento de matriz africana. Que nao cabem
detalhadas nesse trabalho. Mas e importante ressaltar que falamos de valores
tradicionalmente cultivados no continente africa no, contudo, sabemos que em varias
regioes, os valores observados atualmente nao diferem muito dos de uma metropole
brasileira. Os seculos de invasao europeia destruiram nao apenas as riquezas
materiais e a organizac;:ao governamental em Africa, mas principalmente muitas
formas de representac;:oes simbolicas e 0 modo singular de conceber ° universo.
Essas concepc;:oes de tempo, religiao, pessoa, e universo interferem
diretamente nas relac;:oes socia is e na forma como essas relac;:6es se dao pela
palavra. Bakhtin afirma que "a palavra e 0 modo mais puro e sensivel de relac;:ao
social." (2004, p.36). E, no caso africano, alem de rela90es sociais, sao rela90es
divinas, espirituais.
25
PALAVRA: INTERAyAO E FORyA VITAL
A palavra, oral ou escrita, e vista e valorizada diferentemente, dependendo
das rela90es que cad a povo tern com e atraves dela.
Segundo Gwyn Prins (1992), de acordo com a forma como urn povo se
relaciona com a palavra escrita au falada, podemos distinguir tres modos de cultura.
Entao, seriam culturas orais as culturas em que "a linguagem assume urna forma
puramente oral. Essas sao tipificadas par linguagens locais; sao hoje em dia, e tern
sido M longo tempo, relativamente raras" (p. 169). As culturas escritas seriam
representadas pelas linguas classicas, em que a forma oral nae existe mais. A
linguagem assume entao apenas a forma escrita. E as culturas compostas, em que
a linguagem assume tanto as formas escritas quanto as formas orais. Essas
poderiam ser distinguidas entre culturas universalmente alfabetizadas
(historicamente incomuns) e culturas restritamente alfabetizadas, "em que a maior
parte das pessoas vive a margem, mas sob a dominio do registro escrito." (p. 169).
Apesar de nos parecer que tanto no caso africano quanta no brasileiro trata~
se, com algumas exce~6es, de culturas compostas, criou-se (tambem pelas
constru~6es racistas) a imagem de que em todo a continente africano ha apenas
culturas orais. Mas apenas uma rapid a incursao nas formas tradicionais africanas
explicita que 0 que ha sao formas diferentes de valorizar a palavra escrita e falada. E
essa valorizac;ao passa pelo crivo da cientificidade, para a ocidente e pela relayao
com sagrado, para 0 africano.
Riserio retoma urn mito do povo Bambara (do sui do Saara) para
exemplificar a forma como a homem e visto em sua estreita relac;ao com a sagrado
mediado pela palavra e seu poder criador:
26
Sintese de tudo que existe, receptaculo por excelencia da Fon;a suprema econfluencia de todas as fon;as existentes, Maa, 0 Homem, recebeu deheranca uma parte do poder criador divino, 0 dom da Mente e da Palavra'( ... J e por isso que a linguagem, ao mesmo tempo construtiva e destrutiva,pode colocar em movimento - animar - as coisas do mundo. (1996, p.31).
A palavra tern, segundo essa concepc;ao, nao apenas a poder de
estabelecer relagoes socia is, mas e uma heran<;a do criador divino, com poder de
construgao ou destruiyao para alterar as coisas do mundo. Oificilmente encontramos
pessoas que ja nao ten ham ouvido dos mais velhos que nao se pode dizer essa au
aquela palavra dentro de casa (urn exemplo e a palavra "desgraya") sob 0 risco de
que acontecimentos tragicos sejam atraidos para a familia. Essa parece ser uma
indica gao de como representagoes simb61icas african as constituem a existencia do
povo brasileiro.
Bakhtin, embora nao trate da palavra nessa relaC;ao com sagrado, ou com 0
sobrenatural, explicita que ela esta intima mente ligada as criayoes socia is e a forma
como determinado povo se relaciona, entre si e, para a tradiyao africana, com as
relac;oes com 0 divino. Ele afirma que "(... ] As palavras sao tecidas a partir de uma
multidao de fios ideol6gicos e servem de trama a todas as relayoes socia is em todos
os dominios." (2004,p. 41). "Todas as rela90es socia is" podem ser compreendidas
inclusive como as relayoes socials com sua religiao. Bakhtin nao se restringe a
palavra escrita, e nem ve as expressoes verbals a margem au separadas das
demais formas de significar, ao contrario:
(...) Todas estas manifestaty6es verbais estao, por certo, Jigadas aosdemais tipos de manifestayao e de interayao de natureza semi6tica, amimica, a linguagem gestual, aos gestos condicionados, etc. Estas formasde intera~o verbal acham-se muito estreitamente vinculadas as condil):oesde uma situayao social dada e reagem de maneira muito sensivel a todasas f1utua'YOesda atmosfera social. (p.42)
Nesse raciocinio, ainda com premissas bakhtinianas, a palavra nao teria um
fim em si mesma, mas seria determinada pela relac;ao com a outro, 0 interlocutor,
contudo sem atribuir ao outro uma hierarquia superior, mas um papel igualmente
importante, na medida em que:
[...) toda palavra comporta duas faces. Ela e determinada tanto pelo fato deque procede de alguem, como pelo fato de que se dirige para alguem. Elaconstitui justamente 0 produto da inlera<;8odo locutor e do ouvinte. Todapalavra serve de expressao a um em relaytlo ao outro. Atraves da palavra,defino-me em relac;aoao outro, jnsto e, em ultima analise, em relacao acoletividade. A palavra e uma especie de ponte lan<;adaentre mim e osoutros. Se ela se ap6ia sobre 0 mim numa extremidade, na outra ap6ia-sesobre meu interlocutor. A palavra e 0 territ6rio comum do locutor e dointerlocutor. (p. 113)
Aqui parece oportuno considerar que diversas representac;oes tradicionais
africanas estabelecem justa mente a importancia do interlocutor. Essa seria tao
relevante que justificaria a criaC;ao do homem, para que fosse 0 interlocutor do
criador:
"Situando-se entre as ma;s belas, completas e sucintas formas deexpressar a concepc;ao de homem e de cosmos, 0 mito cosmogonico datradic;ao bambara do Komo, uma das grandes escolas de iniciaytlo doMande, no Mali, narra que Deus, denominado Maa Ngala, tendo sentidofalta de um interlocutor, 0 criou." (RIBEIRO, 1996, p. 40 - 9rifo nosso).
Vale lembrar que ha grandes diferenc;as entre Interlocutor e receptor. 0
outro aqui nao e vista como alguem que estatico recebe passivamente uma
mensagem, mas como interlocutor, tambem com poder de criac;ao, de palavra, logo
como ser de interac;ao.
Riserio enfatiza que a comunicac;ao, a linguagem, e para 0 africa no uma das
formas essenciais de relacionar-se com 0 sobrenatural e que, par isso, podemos
encontrar nas representac;5es de alguns deuses uma dimensao explicitamente
dialogica e valorabva da palavra, como no caso iorubano em que "parte <ao men os)
28
do grande pader de Orumila-Ifa, 0 aracula nag6, vem do fata dele ser , segundo a
crenva, urn deus onilingue. Nao S8 trata meramente de multi, mas, rigorosamente,
de panlingOismo." (1996, p. 31). Essa rela~ao com a linguagem fica evidente em
varios deuses iorubanos, podemos citar ah§m de Orumila, Exu e Xango, nos quais
fica evidente que 0 pader da comunicac;ao e da com preen sao das diferentes formas
de linguagens e extremamente valorizado.
Nessa perspectiva tambem inserimos a questao da valoriza9ao da
oralidade. Pois os mitas das sociedades tradicionais africanas sao rememorados, e
dessa forma atualizados, atraves de rituais. E e de fundamental importancia que,
durante 0 ritual, sejam proferidas as palavras que retomem ou reiterem os atos
magico-criadores, a tim de que seja passivel passar do tempo do agora, da
dimensao do factual imediato para 0 tempo das entidades sobrenaturais em que as
coisas foram criadas, ou como define Ribeiro, 0 tempo primordial:
[ ... J Nesse contexto, alta importancia adqui{e 0 conhecimento, entre outros,da correta forma de realizar as evoca<;6es. Sendo a tradi<;ao Oral 0reservatorio dessas formulas, e a ela que se deve recorrer. A co{{eta{ealiza<;aodos rituais e 0 usa da patavra certa compaem 0 quadro deexigencias basicas para que se passe do tempo cronologico ao primordial.(1996, p. 58)
A realizal!(ao de um ritual religioso e um dos mamentos mais importantes de
um povo, e nao apenas para povas africanos. Se considerarmas a cristianismo,
tambem ai hit diversas represental!(oes da palavra como sagrada. Urn de seus
fundamentas e de que da palavra fai criado a filho de Deus. E verba, a palavra
rnaterializada, habitou entre nos como urn hamem e depois retornou a condil!(ao
sobrenatural. A palavra estft de forma decisiva nos diversas momentos sagrados do
cristianismo, marcando os momentos de passagem, como 0 batismo, por exemplo.
Obviamente devemos guardar as devidas proporl!(oes e considerar que he: diversas
29
diferenryas entre a valor da palavra e as especificidades de cad a religiao. Sobre essa
questao emerge 0 can3ter humano dos deuses africanos em oposic;ao a humanidade
"perfeita" da divindade judaico-crista: "0 divino judaico-cristao conceitua/reflete
apenas uma faixa da experiemcia humana. 0 resto e depositado na conta do Mal."
(RISERIO, 1996, p. 73).
Rise-rio afirma ser a transmissao do conhecimento iniciatico para os nag6-
ioruba uma situac;ao limite em que a palavra fica carregada com 0 saber que tern
que ser transmitido de uma pessoa para outra:
A palavra que leva 0 saber tem que ser dita por uma pessoa a outra. !::rigorosamente interpessoat. E sua emissao e acompanhada pormovimentos corporais. A palavra tem que ser proferida com 0 corpo, arespira~ao, 0 halito, a saliva, a temperatura [...] Caso contrario, seraapenas palavra, signa convencional, inca paz de veicular axe, a for~aque, ainda no dizer de Elbein, 'assegura a exislencia dinamica', permitindoo aconlecer e 0 deviL (RIS!::RIO, 1996, p. 64, grifos nossos).
Essa dimensao criadora, essa forrya inerente a palavra e 0 que pode ser
chamada de energia vital. A energia que move a vida, capaz de fazer acontecer.
Nao apenas no sentido de ato de linguagem perlocucionario, mas na sua dimensao
sagrada. Essa concepy8o esta, por 6bvio, inserida num modo de existir que nao
separa 0 tempo e a existemcia real, factual, do sobrenatural, do sagrado. BaKhtin
provavelmente nao se inclui nessa realidade, mas afirma 0 papel da consciemcia que
tem a palavra, nao como simples exteriorizac;ao de mecanisme individuais, mas
como elemento para compreensao de determinada ideologia e ai tambem podemos
considerar a manifestayao religiosa:
I...]E devido a esse papel excepcional de instrumento da consciencia quea palavra funciona como elemento que acompanha toda cria~aoideologica, seja ela qual for. A palavra acompanha e cementa todo ateideologico, Os processes de cempreensae de lodos os fenomenos
30
ideol6gicos (um quadro, uma pe9a, um ritual ou urn comportamentohumano). (2004,p.37, grifos nossos).
Mas Bakhtin explicita a necessidade de perceber que nenhuma
representa9ao simb61ica pode ser inteiramente substituivel par palavras. Ele afirma
que e impossivel "exprimir em palavras, de modo adequado, uma composi9ao
musical ou uma representa9ao pictorica. Um ritual religioso nao pode ser
inteiramente substituido par palavras. Nem sequer existe urn substituto verbal para a
mais simples gesto humano." (ibid. p. 38). Sobre isso Oliveira, citando um proverbio
Fulbe, aponta para as lirnites da palavra que, segundo ele pede tanto aproximar
quanta distanciar da experiemcia, "afinal, decir fuego no querna ta boca" (2007,
p.310). Embora alguns defendam que 0 registro escrito pode ser considerado como
prova irrefutavel (nas mais diversas situa90es) sabernos que por mais perfeita que
seja escrita a descri9E10 de urn gato, se batermos neta, nao rniara.
31
PALAVRA FALADA E PALAVRA ESCRITA, 0 POMO DA DISCClRDIA?
As questoes que envolvem as discuss6es sabre oralidade e escrita parecem
ser 0 porno da disc6rdia sobre as estudos da linguagem.
Embora viuios estudiosos afirmem 0 contra rio ou omitam determinados
aspectos, desde as estudos do IingOista Ferdinand Saussure 0 carater social da
linguagem e, portanto 0 papel que desempenham os falantes de uma lingua, com
suas transgress6es e adapta90es as regras e especificidades, sao de importancia
inquest ion ave I. Entretanto, ao confrontarmos 0 valor atribuido a palavra escrita e a
palavra falada, percebemos uma desvalorizac;:8.o dessa e na maiaria dos cases uma
supervalorizaC;:8o daquela.
A lingua escrita e a cristaliza<;:ao, uma forma de representar urn dado
momento lingOistico, nao e 0 momento, nao ha a dinamica da comunicaCY8o, das
relac6es humanas na sua verS80 escrita (per melhor que seja a escritor). Par outro
lado, e essa mesma dinamica que impede que a lingua falada seja objeto de estudo.
Da forma como as postulados cientificos se apresentam, e quase impossivel
apreender a palavra no momenta de sua realizacy20, da enunciacyao para tormHa
objeto de estudo.
Mas as dificuldades nao se findam a1. As diferen~as no modo de conceber a
mundo, as pessoas e as relac6es com a paJavra, oral e escrita, interferem
significativamente nessa questao. Nao sao raras as vezes em que estudiosos se
prop6em a pesquisar determinada cultura e, entusiasmados com algumas das
representacy6es simb6Jicas tradicionalmente orais de outros povos, tentam registra-
las per escrito. Podemos Gitar como exemplo a experi€mcia de Angola e de
Mo~ambique: com a imposi~ao do portugues como lingua olicial e a coexistencia
32
das diversas Unguas e dialetos falados pelas varias etnias desses territoriQs, alguns
conflitos foram desencadeados pel a dificuldade de compreensao que geralmente
permeia essas rela<;:6es. Sobre isso, 0 poeta ficcionista Manuel Rui, citado por
Chaves, questiona:
E agora? Vou passar 0 meu texto oral para a escrita? Nao. ~ que a partirdo momento que eu 0 transferir para 0 espaco da folha branca, ele quasemorre. Nao tem arvores. Naa tern rituaL Nao tern as criancas sentadassegundo a quadro comunitario estabelecido. Nao tern som. Nao tern danca.Nao tern bracos. Nao tem othos. Nao tern bocas. 0 texto sao bocas negrasna escrita, quase redundarn num mutismo sobre a folha branca.o texto oral tem vezes que s6 pode ser falado por alguns de n6s. E hapalavras que 56 alguns de nos podem ouvir. No c6digo escrito possoliquidar esse c6digo aglutinador. Outra arma secreta para cambater 0outro e impedir que ele me descodifique para depois me destruir.Como escrever a hist6ria, 0 poema, 0 proverbio sobre a folha branca?Saltando pura e simplesmente da fala para a escrita e submetendo-me aorigor do c6digo que a escrita comporta? Isso nao. No texto oral ja disse quenao taco e nao 0 deixo minar pela escrita arma do outro. Vou e minar aarma do outro com todos os elementos possiveis do meu texto. Inventooutro texto. Interfiro, desescrevo para que conquisle a partir doinstrumento escrita um texto escrito meu, minha identidade. (2005, p. 50,grifos nossos)
o que Manuel Rui explicita e fundamental para percebermos a rela<;:ao que
as culturas tradicionais africanas t~m com a palavra falada. Ela e parte do sagrado.
Acompanha rituals, revela ensinamentos iniciaticos. Mas nao pode ser simplesmente
falada, lida ou escrita, registrada para que qualquer um tenha acesso. Sem 0
contexte que a envolve e constitui sua significa<;:ao. A palavra escrita nao da conta
de registrar 0 todo que envolve uma enuncia<;:ao num momento de aproxima<;:ao com
o sagrado. Imerso nessa realidade, 0 poeta prop6e que se construa outro texto, nao
o oral, mas 0 escrito, com os elementos que possam ser escritos. Mas sem a
pretensao de reduzir a cultura do outro a uma representa<;:ao que nao e suficiente
para faze-Io.
Entretanto, 0 fato de ate hoje, em varias etnias african as, existir essa
dimensao valorativa da oralidade, e interpretado como atavismo, como incapacidade
33
para a aprendizado da escrita. E fundamental lembrar que mesmo a nao existencia
dos registros escritos nao significam que inexistencia de construc;:ces textuais,
poeticas ou hist6ricas. Sabre isso, sao sa bias as afirmativas de Riserio ao lembrar
que:
A riqueza da criaryaotextual na Africa e um fato indisputavel. A menos queuma intenfY80 ideol6gjca explicita tente rasurar programaticamente aexistencia mUenardo texto criativo naquele continente, como na epoca emque fantasias racistas de calibre variado se esforfYaram para expurgar 0negro da esfera da especie humana. I...J E possivel, alem de tudo, que umaou outra cegueira ideol6gica qualquer venha a ofuscar 0 observador,impelindo-o a ver tabula rasa onde reluz a tabula piena, au impedindo-o defazer distinyoes ate mesmo entre um leopardo e urn baoba. Excluidas taissituayOes - hisloricamente corriqueiras, por sinal -, as artes africanas dapalavra estao ai, sempre estiveram ai, para quem tern elhos de veT eouvidos de ouvir. A Africa nao e de modo algum uma excey.3o planetaria.Pelo contrario, e urn continente funda e profundamente poetico. Poetico-musical, intersemi6tico, multimldia. (19gB, p.24).
Alem disso, 0 fato de as primeiras universidades africanas datarem de 1468
ao passo que a primeira universidade brasileira e de 1912 pode ser um exemplo
quanta da tradic;:ao escrita em Africa em comparac;:ao com a brasileira. Mas voltamos
a enfatizar que mesmo a inexistencia de textos escritos nao impediria a existencia
dos textos criativos. Estamos acostumados a nao fazer distinc;:aes basicas: entre a
poema e a poesia, par exemplo. Como se todo poetico tivesse obrigatoriamente que
estar amarrado ao poema, a forma, preferencialmente escrito. Riserio pontua que
alem dos textos escritos,
[ ... J em qualquer uma das quatro partes do 'continente negro', brota,viceja, ha milenios, 0 fazer poetico. Suas canvaes de guerra, cantosfunerals, cantigas de ninar, hinos militares, preces, encantayoes,canticos religiosos, loas imperiais, poemas didciticos, work songs etantas outras formas assumidas pelo texto criativo numa esfuzianteproliferac;ao de peralas verba is, produzidas por um elenco que vai,digamos, dos cantadores achantes aos cultores profissionais dapoesia dinastica de Ruanda. (1996, p. ????)
Novamente percebemos que as diferen9as estao na forma como sao
valorizadas as formas escritas au faladas da lingua. A questao nao e, entao, a
34
capacidade criadora ou de aprendizagem africana com rela9aO a palavra. Que
apresenta ate formas de texto desconhecidas pelo ocidente (a nao ser pelas
sofriveis representa90es esteriotipadas e mal informadas de Tarzan), como e 0 texto
percursivo, tambem chamados de lingua dos tambores.
Nao nos atreveremos aqui a tentar explicar as especificidades da
comunica9ao feita atraves de tambores. Mas mesmo nao tendo 0 que se costuma
chamar "dominio sobre 0 assunto", nas palavras de Antonio Riserio faremos
algumas considera90es sabre a oriki. Um genera textual, proprio da cultura africana,
que sobrevive as incursoes da escrita e da empresa colonial e pode ser encontrado
no Brasil nos cullos de religiao de matriz africana, como a Candomble e a Umbanda.
Segundo Riserio, orikls sao textos feitos para serem interpretados, realizadas. Nao
ha no oriki uma sistematiza980 de esquemas metricos au de rima, e cansiderado
uma forma organica que pode se apresentar tanto sinteticamente como
extremamente extenso.
o eriki parece expressar, pela forma como se apresenta um pauco sabre a
modo de conceber a palavra em Africa. Nao ha no ariki 0 desenvolvimento logico
linear de uma ideia ou enredo que e caracteristica das narrativas. Mas e estruturado
segundo um principia de montagem, por caordena9ao segundo Riserio: "Iivres de
um principia hierarquizante", a subordina9aa. Alem disso, sao dinamicas nao
estaticos, mas mantem uma logica, um compramisso com a sua verdade. "Orikis sao
emitidos para ninar crian9as, receber visitas, celebrar deuses; ressoam, tambem, em
batizados, noivados e funerals; comparecem, ainda, em cumprimentos palacianos,
batalhas e festivais; [... J pontuam todos os momentos e movimentos da existencia
social na lorubalandia." (ibid, p.41).
35
Bakhtin percebe 0 carater dial6gico e a natureza (mica da enunciat;:ao, da
realizac;ao de urn ate de fala:
[... j a situa~ao da forma a enuncia~ao, impondo-Ihe esta ressonancia emvez daquela, por exemplo a exigencia ou a solicitay.30, a afirmacao dedireitos ou a prece pedindo graca, urn estilo rebuscado au simples, aseguranca au a timidez, etc. A situac.3oe as participantes mais imediatosdeterminam a forma e a estilo ocasionais da enunciac.3o.Os estratos maisprofundos da sua estrutura sao determinados pelas pressoes sociaismais substanciais e duraveis a que estill submetido a locutor. Setomarmos a enunciacao no estagio inicial de seu desenvolvimento, 'naalma', nao se mudara a essencia das coisas, ja que a estrutura daatividade mental e lao social como a da objetivayao exterior. (p. 114, grifosnossos).
o contexte da enunciat;:ao, define entao, sua forma. Como 0 oriki, que eclassificado nao por uma forma sistematizada, mas de acordo com a objeto que
recria e com a situat;:ao em que e realizado. "( ... ] 0 texto emitido nurn rito social
(religioso ou profano) e indestacavel da cena de sua atualizat;:ao. Inexiste fora dela.
Trazer a oral para os trilhos da escrita seria, tarnbem, atitude mutiladora,
falsificadora, reificacionisla." (Riserio, 1996, p. 101).
Essas considerat;:6es nos possibilitam aproximar, ou como ja dissemos,
comparar a forma como 8akhtin define a interat;:ao pela linguagem e modo como,
tradicionalmente, em Africa se concebe a palavra na interac;ao com 0 outro e com 0
universo.
36
APROXIMAr;:OES E DISTANCIAMENTOS
"Senhora das nUl/ens de chumboSenhora do mundo
Oentro de mimRainhas dos raiasRainha dos raiasRainha dos raios
Tempo born - tempo fuim ... •
(Gilberta Gil e Caetano Veloso)
o INTERACIONISMO BAKHTINIANO E A PALAVRA PARA A TRADI<;:AO
AFRICANA
Algumas diferengas saltarn aDs olhos quando falamos de cultura tradicional
africana e dos valores do Ocidente. Parece que a primeira e rnais evidente
diferenc;a e a relaC;8o com 0 sagrado. No casa dessa pesquisa nao e diferente. Ao
analisarmos as afirmac;;oes bakhtinianas sabre lingua, linguagem, sociedade, palavra
e interaC;80 nao encontramos expllcitamente uma relaC;8o com a religiosidade, com a
espiritualidade. Bakhtin nao S8 refere a fala no contexto na cerimonia religiosa, por
exemplo. E qualquer estudioso que 0 faya corre 0 risco de ser apontado como pouco
cientifico, p~r analisar coisas do wespirito" e nao da "razao" Por outro lado,
tradicionalmente, em Africa, nao e possivel falar de pessoa, de palavra ou de grupo
social sem a dimensao religiosa. 0 sagrado permeia tudo.
Da mesma forma, nao identificamos uma defesa bakhtiniana do valor da
ancestralidade, nem do valor da pessoa ma;s velha enquanto conhecedora, ou fonte
de conhecimento hist6rico , lingOistico e menos ainda da seu conhecimento sobre as
relayoes com 0 sagrado. Em Africa, alem de se considerar que a pessoa idosa esta
num periodo rna is privilegiado da existencia, mais proxima do divino, ela e
37
respeitada por seu conhecimento dos rituais iniciaticos, nos quais transmite seu
saber aos mais jovens.
A forma como se concebe cie!ncia e saber cientlfico no ocidente, parece
excluir determinados saberes e certas dimens6es do humano. Como e 0 caso da
rela9aO com a religiosidade. 0 individuo e visto ai como urn ser fragmentado, capaz
de separar sua religiosidade das demais esferas da sua vida. E como se, por
algumas horas, durante os rituais de sua religiao, Ihe fosse permitido exercer essa
sua dimensao, mas em outros momentos sociais, nao fosse adequado faze-Io.
A pessoa seria, assim, como uma jun9ao de fragmentos que colocaria em
a98:0 dependendo da situay80 social. Mas inca paz de reconhecer em si 0 trabalho e
a existencia do outro. Bern diferente da cOnCep98:0 africana que percebe 0 ser como
urn conjunto indissoluvel, nao apenas com as pessoas (ancestrais e
contemporaneos), mas com todos as elementos que existem. Havendo ai uma das
diferen9as fundamentais: para a tradi9EtO africana, 0 ser humano percebe e interage
com todos os seres existentes, ao passo que para a cultura ocidental 0 ser humane
se ve com a possibilidade de viver so, independente da existencia das outras
pessoas e dos demais seres do universo. Poderiamos afirmar que em Africa se
pensa que "eu sou eu e os outros, as outros me constituem" e para a ocidente a
ideia seria "eu sou eu com os outros, as outros existem junto comigo, mas
independentemente". Seria a Oposi98:0 entre 0 pensamento coletivista e a
pensamento de orientayao individualista. E mais, sao modos opostos de ver 0
universo. Um ve uma infinidade de seres que existem e as vezes se encontram em
determinadas situayoes. Outro ve todos as seres existentes organizados como uma
teia de aranha: impossivel mexer num fio sem mexer no restante da teia.
38
Contudo, 8akhtin nao nega a natureza social da linguagem, ao contrario,
afirma 0 tempo todo que as diversas formas de representac;ao simb6licas, entre as
quais se inclui a linguagem, inexistem fora de seu meio social imediato. Alern disso,
reafirma a importancia do interlocutor, sem 0 qual nao ser;a possivel existirem
relac;oes pela palavra, uma vez que e 0 outro que direciona 0 meu dizer e da a
medida do que digo, dependendo da proximidade ou nao que sua presen9a impoe.
Outro conceito bakhtiniano que se aproxima do modo africano de ver e 0 valor
atribuido a enunciaC;ao, 0 momento de realizac;ao da fala, em que se materializam as
relac;oes humanas por meio da palavra: "0 ato de fala, OU, mais exatamente, seu
produto, a enunciac;ao, nao pode de forma alguma ser considerado como individual
no sentido estrito do termo; nao pode ser explicado a partir das condi9oes
pSicofisiol6gicas do sujeito falante. A enuncia9ao 8 de natureza social." (2004,
p.109). E claro que, al8m disso, a enunciaC;8o tern valores diferentes para africanos
tambem devido a importancia que exerce nos rituais sagrados. E al8m de
rnaterializar em palavras as rela,!(oes humanas e divinas tern a poder de veicular a
energia da vida (0 poder vital, tambem chamado axe), reiterar 0 sagrado atraves de
ritos que perpetuam os mitos de origem.
Alga que chega a causar certa vertigem ao estudioso ocidental 8 a concep'!(ao
de tempo africano. Urn tempo circular, cidico, sem tim do mundo, sem morte e
necessidade de salvac;ao. Ao inves de passado - presente - futuro, urn continuum
que preve urn tempo passado (onde repousa 0 saber e a hist6ria a serern
compartilhados e desvelados aos poucos), um presente (que reitera passado
atraves dos rituais sagrados e urn devir, no qual nao S8 centralizam as energias e
expectativas. Por rnais que encontremos a valorizaC;80 do outro e do passado,
inclusive nos escritos bakhtiniano que descrevem a palavra com uma
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heterogeneidade discursiva (heterogenea, atravessada pelo discurso do outro), nao
e posslve1 afirmar que haja ai nem indicaC;ao da possibilidade de se conceber 0
tempo dessa mane ira.
No conceito de interac;ao e que pareee emergir uma proximidade maior de
Bakhtin com a pensamento africano. Ao afirmar a natureza social da linguagem, a
heterogeneidade constitutiva e a importaneia de se eonsiderar a enunciac;ao, 0
momenta e 0 contexto da realizac;ao do ate de fala: "[ ...] a palavra revela-se, no
momenta de sua expressc3o, como a produto da interac;c3o viva das forc;as
sociais".(2004, p. 66). Guardamos ai as devidas propor,oes, pois 0 pensamento
africano exala interac;c3o, percebe e revela a existencia do outro em todo a seu
existir. Parece chegar ao apice dessa interac;ao, e, par isso difere tanto do
pensamento ocidental.
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CONSIDERAC;:OES FINAlS
No percurso que envolveu essa pesquisa, passamos par alguns momentos
diferentes. Em alguns deles acreditamos que a concepc;ao de interac;ao vinculada a
Mikhail Bakhtin poder;a ser facilmente associada aD pensamento tradicional africano.
Ap6s algumas leituras e alguma proximidade com as pnHicas religiosas de matril
africana, pareceu ser impassive I vincular um pesquisador, um cientista da
contemporaneidade (tao constituida par urna cientificidade que exclui a dimensao
religiosa) a urn pensamento em que as relac;6es com 0 sagrado permeiam todos as
aspectos da existencia. Ao concluir as leituras (da escassa bibliografia). nos pareceu
sim passivel aproximar as duas concepc;6es. Mas S8 faria necessario, tambem, fazer
os devidos distanciamentos.
Fo; 0 que tentamos fazer, demonstrar alguns pilares da concep9E1o
interacionista e do pensamento tradicional africa no, fazendo as devidas ressalvas.
Nosso principal objetivo foi aproximar essas discussoes, de modo que fosse possivel
faze-Io sem instituir hierarquias. Demonstrando as similitudes, diferen9as e
especificidades de cada realidade. Acreditamos que futuramente possamos, talvez
imersos numa realidade lingOistica e cultural, dar continuidade a essa analise com
maior profundidade.
Segundo 0 professor Henrique Cunha Junior,
A hist6ria do Brasil ensinada em nossas escolas e eurocentrica. Par partir
de uma visao de mundo do europeu e nao combinar esta com outras
matrizes de conhecimento e experiencias hist6ricas. As bibliografras e as
textos desconhecem a participar;:aode africanos e afro-descendentes na
construyao inlelectual e material desse pais. Estes descuidos sistematicos
e propositais levam a uma sub-representar;:aode parte da popular;:aona
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historia nacional, produzindo a sistematizayao das dominayoes e
opressOes.A historia nao e coisa do passado a ser decorada, ela informa e
forma, quem somas nos no presente e quais papeis devemos
desempenhar na sociedade atua1.(Cunha JR. 2007. p.01)
Esse e um dos principais objetivos que anima nossos estudos: possibilitar
que diferentes vis6es e concepl):oes de mundo possam ser combinadas,
aproximadas, questionadas, sem 0 mal estar de quem "rebaixa" sua perspectiva
para conseguir compara-la a do outro. E pier: de quem sente seu modo de existir
inferiorizado constante e sistematica mente nos espal):os fisicos e ideol6gicos da
sociedade. Obviamente nao faremos essa reconstruc;ao hist6rica sozinhos, ou com
um texto monografico, mas esse trabalho podera contribuir com esse pensamento.
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REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS
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HERNANDEZ, Leila Maria Gonyalves Leite. A Africa na Sala de Aula: visita a historiacontemporanea. Sao Paulo: Selo Negro, 2005.
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RISERIO, Antonio. Oriki Orixa. Sao Paulo: Editora Perspectiva, 1996.
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