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Revista Brasileira do Caribe ISSN: 1518-6784 [email protected] Universidade Federal de Goiás Brasil Walter, Roland Memória, História e Identidade Cultural: Maryse Condé, Édouard Glissant, Gisèle Pineau e Patrick Chamoiseau Revista Brasileira do Caribe, vol. IX, núm. 17, julio-diciembre, 2008, pp. 85-116 Universidade Federal de Goiás Goiânia, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=159113066005 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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Revista Brasileira do Caribe

ISSN: 1518-6784

[email protected]

Universidade Federal de Goiás

Brasil

Walter, Roland

Memória, História e Identidade Cultural: Maryse Condé, Édouard Glissant, Gisèle Pineau e Patrick

Chamoiseau

Revista Brasileira do Caribe, vol. IX, núm. 17, julio-diciembre, 2008, pp. 85-116

Universidade Federal de Goiás

Goiânia, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=159113066005

Como citar este artigo

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Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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*Artigo recebido em agosto de 2008 e aprovado para publicação em novembro de 2008

Revista Brasileira do Caribe, Brasília, vol. IX, n° 17, 85-116, 2008

Memória, História e Identidade Cultural: MaryseCondé, Édouard Glissant, Gisèle Pineau e Patrick

Chamoiseau

Roland Walter

ResumoPartindo da hipótese que a contra-memória é um ato de resistência à

perda, expropriação e desterritorialização, o enfoque analítico deste

trabalho são obras escolhidas de Édouard Glissant, Gisèle Pineau, Patrick

Chamoiseau e Maryse Condé com o objetivo de traçar a dinâmica

heterotópica do (não) pertencimento cultural/identitário no espaço

diaspórico do Caribe. Problematiza-se como os autores desenvolvem

concepções de coesão e inteireza, os “milieux de mémoire” coletivos, a

partir da cosmovisão e do ethos implodidos pela colonização e

diasporização. Neste processo, examina-se como a palavra escrita engaja

a memória oral para recriar as referências necessárias para a reconstrução

da identidade cultural, identidade transculturada em múltiplos processos

de fissura e fusão entre mares e lares, raízes e rotas, origens quebradas

e chegadas diferidas.

Palavras-chave: Memória, História, Identidade Cultural, Transescrita

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ResumenPartiendo de la hipótesis que la contra memoria es un acto de resistencia

a la pérdida, expropiación y desterritorialización, el enfoque analítico de

este trabajo son las obras seleccionadas de Édouard Glissant, Gisèle

Pineau, Patrick Chamoiseau e Maryse Condé con el objetivo de trazar la

dinámica heterotópica del (não) pertenecimiento cultural/identitario en el

espacio diaspórico del Caribe. Se problematiza cómo los autores

desenvuelven concepciones de cohesión y entereza, los “milieux de

mémoire” colectivos, a partir de la cosmovisión y del ethos implodidos

por la colonización y la diasporización. En este proceso, se examina cómo

la palabra escrita se une a la memoria oral para recrear las referencias

necesarias para la reconstrucción de la identidad cultural, identidad

transculturada en múltiples procesos de fisura y fusión entre mares y

hogares, raizes y rutas, orígenes quebrados y llegadas diferidas.

Palabras claves: Memoria, Historia, Identidad Cultural, Transescrita

AbstractBased on the hypothesis that counter-memory is an act of resistance to

loss, expropriation and deterritorialization, this essay examines select

creative works by Édouard Glissant, Gisèle Pineau, Patrick Chamoiseau,

and Maryse Condé intend on tracing the heterotopic dynamics of cultural

(un)belonging in the Caribbean diaspora space. It problematizes how

the authors develop conceptions of cohesion and wholeness, collective

“milieux de mémoire,” out of an imploded ethos and worldview resulting

from colonization and diasporization. In the process, the primary analytical

focus is on how the written word engages oral memory in order to recreate

the references necessary for a reconstruction of cultural identity, a

transcultural identity originating from multiple processes of cultural

fissure and fusion between roots and routes as well as broken origins

and deferred arrivals.

Keywords: Memory, History, Cultural Identity, Transwriting

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the half has never been told (E d n a B r o d b e r )

Qui parlera de ce lourd silence étouffant nos élans depuis la nuit

sauvage des cales négrières? (Lilas Desquiron)

Hay que aprender a recordar lo que las nubes no pueden olvidar.

(Nicolás Guillén)

Ao examinar a formação das literaturas nacionais,Édouard Glissant (1992, p. 99-100) ressaltou duas funções: umafunção dessacralizadora “of demythification, of desecration, ofintellectual analysis, whose purpose is to dismantle the internalmechanism of a given system, to expose the hidden workings” euma função sacralizadora com o objetivo de reunir “thecommunity around its myths, its beliefs, its imagination, or itsideology”. Sylvia Wynter (1971, p. 99) caracterizou a históriado Caribe pela divisão geográfica e ideológica entre dois lugares:a plantação com a sua mercadoria destinada à exportação e osjardins de subsistência onde se plantam os produtos destinadosaos mercados internos. Para Wynter esta dicotomia e a implícitatensão de seus ideologemas opostos, que abrange a política, aeconomia e a cultura, permanecem “the distinguishingcharacteristic” da região. Patrick Chamoiseau (1997, p. 49),evocando o hífen liminar que liga e separa as duas epistemesopostas que nutrem sua escritura, diz: “J’ai le regard du planteur”e “aussi l’autre regard”, aquele que “me vient de ces ancêtresqui y courbaient leur vie”.

O que liga estes três pontos de vista na sua diferença é olimen da colonialidade entre o passado e o presente, entre oque W.E.B. DuBois (1904) chamou de dupla consciência, avisão liminar entre duas epistemes, e o que se poderia chamarde dupla visão, uma visão que distingue entre duas epistemes e

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interpreta o self e o mundo de uma perspectiva etnoculturalespecífica.

Em termos da literatura caribenha (e afro-diaspórica), omovimento da dupla consciência para a dupla visão, revela oque Gayatri Spivak (1988, p. 171) chamou de “epistemicviolence” de políticas imperiais caracterizadas pelo caosesquizofrênico de uma cosmovisão e um ethos implodidos. Aomesmo tempo, revela também uma resistência enquanto mímicaa esta violência que implica diversas tentativas de reconstruçãoidentitária. Gostaria de chamar o tipo de escrita neste entre-lugar uma transescrita, ou seja, uma maneira de escrever quese move através de um espaço intersticial dentro e entrefronteiras, atravessa os territórios culturais compostos de múltiplaszonas de contato e se esforça para ir além deste limbo intersticialnuma tentativa de mudá-lo. Este ensaio parte da hipótese que atransescrita caribenha é uma escrita liminar que parte da duplaconsciência em direção à dupla visão, denunciando e tentandoreverter a dissonância cognitiva e identitária que resulta de umacolonialidade cujos efeitos continuam no presente. Com base naanálise de diversos aspectos desta transescrita o enfoqueprincipal será na ligação entre história, memória e identidadecultural em obras escolhidas de autores caribenhos.

Nomear de forma imprópria é um meio primário de gerardissonância cognitiva. Definições externas impostas forçadamentesobre uma episteme cultural geram dissonância identitária. Desdeo início de sua diasporização nas terras americanas, o africano/afro-descendente teve e continua tendo que lidar com estasdissonâncias enquanto resultado de um conjunto de violênciascorporais, mentais e epistêmicas. René Depestre (2005, p.52,53) se refere a estas dissonâncias, que juntas constituem“l’occultation des identités particulières derrière un masquegénérique”, um processo de “déguisement ontologique” que faz

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com que as diversas etnias africanas entrem nas Américas sob afalsa identidade de negros. O motivo de voltar ao passado é queno negreiro, na plantação e em outros lugares do sistemaescravocrata originou-se a produção de epistemologias queviolentaram os corpos, as mentes, as experiências e culturasafricanas/afro-descendentes. Desta forma, o resgate de eventose pessoas do passado na literatura afro-descendente dasAméricas deve ser visto enquanto quilombismo cultural que tentaestabelecer uma consonância cognitiva e identitária mediante atransformação da “não-história” esquizofrênica em memóriacoletiva sedimentada que explica as trilhas do passado que levamao presente. Uma das formas mais importantes desta resistênciaà violência epistêmica é a revisão da história escrita pelo Outro.

A questão é: como reescrever a história sem mitos, sem umaepisteme cultural a não ser aquela imposta pelo colonizador?Antes que objetos, pessoas e eventos possam ser historiadosprecisam ser nomeados e semantizados de maneira mitopoética.Para muitos escritores e pensadores caribenhos, portanto, onomear mitopoético é fundamental porque é fundador. Nestesentido deve-se entender o uso do quilombola na ficção deMaryse Condé e Édouard Glissant, entre outros.

Em Crossing the Mangrove (1995) da escritoraguadalupense Maryse Condé, Xantippe, temido e condenadoao ostracismo pela comunidade de Rivière au Sel, é nosapresentado ao longo da trama pela perspectiva e ponto de vistade diversos personagens como o idiota da vila cuja linguagemninguém entende. No fim do livro, porém, por sua própria voz,ele aparece como o último marron (quilombola) que viveu asdiferentes épocas da sociedade guadalupense: a época colonial,as revoltas dos escravos, a abolição, a construção de escolas, osistema de educação francesa, a fragmentação e alienação culturaldos tempos modernos. Em busca de abrigo na selva, Xantippe

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lembra o passado:

It was on the buttress roots of its manjack trees that the pool of my

blood dried. For a crime was committed here, on this very spot, a long,

long time ago. ... I know where the tortured bodies are buried. I

discovered their graves under the moss and lichen. I scratched the

earth and whitewashed the conch shells, and every evening at dusk I

come here to kneel on my two knees. Nobody has pierced this secret,

buried and forgotten (CONDÉ, 1995, p. 205).

Neste trecho, Condé enfatiza a importância do passado parao presente: é nos traços invisíveis das ruínas históricasreimaginadas pela memória que se pode descobrir e entenderos caminhos que nos trazem para onde estamos e atuamos nopresente. E, como a trama (e o trecho acima) conota, em termosde identidade cultural a sociedade guadalupense, sendo a ilhaum DOM francês, não tem encontrado seu próprio caminho para(re)construir sua episteme culturall. Uma vez que esta(re)construção precisa de mitos, Condé usa Xantippe pararevalorizar o marron como figura mítica autêntica da sociedadeguadalupense.2 Assim, ao (re)apropriar o marron como mitofundador de uma memória coletiva fragmentada ela reverte acontínua e alienadora busca de mitos na episteme cultural do ex-colonizador francês. Minando esta mímica do Outro, sua escritaesboça possíveis caminhos de cura tanto das fissuras e vaziosproduzidos pela não-inclusão das experiências locais nosprocessos mitopoéticos e discursivos, quanto da concomitanteinternalização do sistema de valores da cultura dominante.

Para Édouard Glissant (1992, p. 16-26), os processosdiscursivos e mitopoéticos da Martinica não são enraizados nasexperiências locais. Se a reconstrução pós-colonial está paraprosseguir, empréstimos alheios devem ceder a autênticos

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processos de criação discursivos e mitopoéticos. No seuromance Malemort, o narrador sem nome descreve a ausênciade memória na experiência antilhana: “nous nous embusquons,énigmes de notre supposée histoire, monstres d’une mythologiedont nous n’approchons jamais le secret, effigies et mutités auxfenêtres de notre avenir. ... nous, pâlis et dérivés, châtrés detoute somptuosité mais épurés aussi de ces excès de perditionpar où une volonté de résistance se révèle à elle-même; ternesqui n’ont plus à accepter, pour ce que le choix n’est plus permis”(1997a, p.161). Segundo Glissant, o resultado desta amnésia éque as histórias vividas pelos martiniquenhos continuam sendonarradas pelos outros; ou seja, em termos identitários eepistêmicos: “nous n’entendons pas nous estimer du dedans”(1997a, p. 87).

O mundo de Malemort é um mundo de total confusão,errância, loucura e violência, passando dos negreiros, o sistemade plantação e a experiência quilombola até a neo-colonizaçãoda ilha pela França no século XX. O único personagem quereconhece e critica a crise moderna é um louco. Andando pelasruas ele tira sua roupa e grita: “ils crient sur la métropole heinmais qu’est-ce qu’on fabrique hein qu’est-ce que tu fais de tesdeux mains ... c’est pas la métropole qui te donne la chemise,c’est la métropole, bon elle te vend la chemise, mais avec quelargent, c’est pas la métropole qui te donne allocations familiales... et tous les petits secours par-ci par-là que tu demandes pouracheter ... c’est la métropole c’est ton papa ta manman tanourrice”(1997a, p. 191). Como vislumbra na fala destapersonagem, a crítica glissantiana da amnésia antilhana e da neo-colonização francesa visa o “practico-inert”2 da mercadoria edo sistema capitalista. Na sociedade martiniquenha de espetáculo,como diz um dos personagens, “la terre entière est une Habitation”(1997a, p.149) empenhada em expropriar o máximo superávit

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dos indivíduos.O que é que Glissant opõe a esta auto-alienação e

fragmentação, esta falta de autonomia histórica e experiência depossibilidades humanas constantemente frustradas? Com basenos pensamentos filosóficos de Glissant diria: 1) a escrita; 2) aimaginação; 3) a relação. Em Traité du tout-monde, Glissantalega que ao contrário da ciência, “l’ecriture, qui nous mène àdes intuitions imprévisibles, nous fait découvrir les constantescachées du monde” (1997c, p.119). É mediante a escrita que sepodem redescobrir e abrir novas possibilidades: “c’est parl’imaginaire que nous gagnerons à fond sur ces dérélictions quinous frappent .... sans aucunement renoncer au refus ou au combatque tu dois mener dans ton lieu particulier, prolongeons au loinl’imaginaire, par un infini éclatement” (1997c, p.18). Esta noçãode totalidade, na sua evocação de diversas possibilidades futuras,coloca a consciência humana em cima de e contra o mundo queela percebe. A consciência glissantiana existe, portanto, numarelação dialética com o mundo na qual a identidade e as nossascapacidades de perceber e entender o Dasein são primeiro,dissolvidas (como no mundo de Malemort) para depois seremressuscitadas desta experiência com mais vigor. Em seguidagostaria de examinar alguns aspectos deste renascimento noromance O quarto século.

O renascimento de uma episteme cultural começa com areconstrução do ego nas ruínas do passado, na ”digenèse”.3 Paratransformar esta “digenèse” em gênese, o velho quimboiseurPapa Longué, cuja memória abrange o passado de seusancestrais escravos e quilombolas, aconselha: “A gente atépensaria que de tanto cortarem o braço direito, e depois a pernadireita, eles acabaram por amputar um lado inteiro do corpo: umpulmão, um testículo, um olho, uma orelha. E aí estápossivelmente o que é preciso procurar no amontoamento: estaparte de ti em que a queimadura abre uma fenda como um

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relâmpago, e que no entanto permaneceu longe de ti nos bosquesou no mar ou no país lá longe: a metade direita do cérebro”(1986, p.222). Em conversa com Mathieu Béluse, um jovemintelectual martiniquenho em busca da episteme cultural da suailha, Papa Longué enfatiza (ao praticar) o que considero ofundamento da poética da relação glissantiana: a memória oraltransmitida de geração a geração. Ela serve de base pela“poetização” escrita da experiência histórica que tem comoobjetivo a recuperação dos vestígios da experiência mental ecorporal de sofrimento e prazer negada e/ou distorcida pelodiscurso dominante. Esta memória viva que condensa diversoslugares, tempos e personagens num megacronotopo contínuo,também recria a relação quebrada entre cultura e natureza. Sendoo passado “o conhecimento que te enrijece na terra e te impeleem multidão no amanhã” (1986, p.356) é necessário “escavar osolo vermelho e desenterrar, no centro, a nascente do mar” (1986,p.346).

A descolonização da “não-história” esquizofrênica que fezcom que, segundo Figueiredo (1998, p.99), “o descendente deescravos na América não tinha nem história nem geografia nasquais pudesse apontar sua legitimação” abrange em O quartoséculo toda a biota. Além de figurar como pano de fundo datrama e palco para as ações dos personagens, a natureza e apaisagem surgem como personagens acionando “a lembrançada lama primordial” (1986, p. 282). Logo no início, é a imagemdo vento que invade o afro-descendente: “Todo este vento, dissepapai Longué, todo este vento que está para subir, você nãopode fazer nada, espera que ele suba até as tuas mãos, e depoisà boca, aos olhos, à cabeça. Como se um homem existisse apenaspara esperar o vento, para se afogar, sim, você está ouvindo,para se afogar de uma vez em todo este vento como no mar semfim” (1986, p.15). O vento, que sobe durante e mediante as

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conversas ritualísticas entre papai Longué e Mathieu se estabelece“como a invisível floração desta cepa humana” (1986, p. 58). Oque floreia mediante o vento são traços do passado, “a sombra,a fixidez, o profundo das verdades passadas” (1986, p.327);elementos e vestígios que se sedimentam enquanto memóriacoletiva. De geração em geração, o vento traz “este cheiro”(1986, p.31), o odor do negreiro, da plantação, da morte, mastambém aquele da resistência, dos bosques, da vida (1986, p.32).Papai Longué transmite este saber emotivo-fatual para Mathieuna tentativa de articular o que Morrison chamou de o“unspeakable unspoken”, aquilo que não foi dito porque nãopode ser dito e ao mesmo tempo tem que ser dito para curar otrauma. Neste processo, a natureza torna-se uma “symboliclandscape”, ou seja, “uma região no tempo e no espaço queoferece expressões espaciais de estruturas sociais e condiçõesrituais por um lado, e de communitas e genius loci por outro”(STEPTO, 1991, p.67; tradução minha); o que significa que “oindivíduo, a comunidade, a terra são inextricavelmenteentrelaçados no processo de criar história” (GLISSANT, 1992,p.105; tradução minha).

Além da reconstrução do ser humano enquanto corpo e menteenraizados na sua terra, a descolonização da não-história envolvea retificação das distorções históricas e a revalorização dos mitosetnoculturais. Em O quarto século, Glissant delineia o marron(o quilombola) como figura mítica que tem um papel crucial naconstituição da consciência interior dos antilhanos. Os negrosfugitivos, por causa de sua resistência, inspiravam medo tantonos donos da plantação quanto nos escravos e negros livres.Outrizados por todos, tornaram-se “a personificação do diabo”(1986, p.166) e desta forma um dos símbolos da internalizaçãodo imago do negro fabricado pelo sistema escravocrático. PapaiLongué justapõe os quilombolas e os negros da plantação nomomento do registro depois da abolição: “Os antigos escravos

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das plantações estavam lá, inclusive as mulheres. Mas também,majestosos em seus farrapos, arrastando como se fora um adornode dignidade sua lama e sua nudez, e os únicos aliás armadoscom facão, os negros rebeldes” (1986, p.225). Em outro trecho,porém, ele estabelece uma diferença fundamental: enquanto queos negros da plantação recebiam os nomes dos senhores, osquilombolas “escolhiam os seus nomes: as pessoas não oschamavam disto ou daquilo, eles escolhiam e diziam a quem oscercava. ‘Pronto, meu nome é Tal´(1986, p.214). Dar um nomea si mesmo e às coisas é estabelecer uma episteme cultural, umethos e uma cosmovisão; ou seja, significa construir seu ser-no-mundo. Para Glissant, porém, esta revalorização do negro querecusou a condição subalterna somente pode ser feita em relaçãocom aquele que a aceitou. Papai Longué, descendente de umquilombola passa a memória ancestral para Mathieu, descendentede um escravo da plantação. Em outras palavras: voltar à origem(da não-origem) implica revelar e juntar os diversos matizes daexperiência negra nas Américas.4 Isto significa que a recuperaçãoda memória no processo de estabelecer um saber epistêmico éalgo mais do que a simples recuperação arquivístical de dados.É um fazer sentir, cheirar e ver que estabelece a continuidadeentre o passado e o presente; uma dialética heterotópica emfluxo entre o interior e o exterior, o próprio e o alheio, o oral e oescrito, a camuflagem (opacidade) e a revelação (transparência),o deslocamento e a reterritorialização, entre lugares (e em entre-lugares), tempos, cores, vozes e consciências, entre a fusão e afissura identitária, cultural e epistêmica enquanto meio temático,retórico e teórico: le chaos du tout-monde em constanteprocesso de metamorfose; ou melhor, o quilombismo mitopoéticode Édouard Glissant.

Em seguida, partindo da hipótese que o ato da recordaçãoafro-descendente (um complexo processo seletivo (re)codificando

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imagens e pensamentos em traços mnemônicos), é um ato deresistência à perda, expropriação e desterritorialização, gostariade focalizar dois romances, Texaco e Biblique des derniersgestes, de Patrick Chamoiseau com base nas seguintes perguntas:como é que a tradução da oralidade na escrita recria os “milieuxde mémoire” (NORA, 1989) coletivos enquanto lar e práticasocial? Se é um fato que no cerne da memória não existemverdades históricas, mas versões do passado geradas esustentadas pela memória inventada, como é que a oraliturarepresenta a descontinuidade entre o passado vivido e o passadoimaginado no presente? Como é que a palavra engaja a memóriapara recriar as referências necessárias para a reconstrução daidentidade cultural, identidade transculturada em múltiplosprocessos de fissura e fusão entre mares e lares, raízes e rotas,origens quebradas e chegadas diferidas?

Texaco, como toda a obra de Patrick Chamoiseau, é ummanifesto criativo contra o esquecimento da história e da narraçãooral. Uma tapeçaria mnemônica tecida de múltiplas vozes (asanotações de Marie-Sophie Laborieux que transmitem as palavrasdo seu pai Esternome; as transcrições de Oiseau de Chambaseadas nas declarações feitas a ele e ao urbanista por Marie-Sophie contando a história de Texaco; as cartas de Chamoiseaupara Marie-Sophie; e os comentários e pensamentos do urbanistaenviados para o autor) e diferentes estilos da língua francesa(francês padrão/francês crioulizado), a narrativa traduz o processohíbrido da crioulização no nível de sua estrutura, estilo e temática.5

Assim, o texto é uma encruzilhada multidimensional constituídade múltiplas entonações e implicações de experiências fluidas quese determinam mutuamente. Além disso, o enfoque sobre aresistência de diferentes gerações de negros e seu impacto sobrea fundação de Texaco (um assentamento ilegal sob perigo dedestruição pela prefeitura da cidade) por meio de uma variedade

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de vozes, pontos de vista e perspectivas, traduz a descrição paraum devenir fragmentado e serpeante; um processo de confluênciahíbrida que mina a fixidez enquanto função de poder (representadapelos funcionários tecnocráticos da cidade e os donos da terra)mediante a mobilidade nômade dos posseiros-fundadores deTexaco. O ato de escrever-falar contra a destruição planejadade Texaco e o implícito apagar da sua história entre os anoscinquenta e oitenta, quando foi legalmente reconhecido comosubúrbio, significa não somente contar as histórias de luta pelasobrevivência de seus habitantes. Mais importante, significa revelaro desarraigamento e o “homing desire” (BRAH, 1996: 180), odesejo por um lar destes posseiros-fundadores e seusantepassados desde os tempos da plantação. Este ato, aotransformar a “não-história” em histórias imaginadas, preencheos vazios e silêncios do discurso oficial deliberadamente distorcidocom significação e desta forma fornece a comunidade de Texacocom os mitos, o ethos e a cosmovisão, a linguagem e a variedadede discursos que estabelecem e explicam seu específico Daseinmartiniquenho. O poder de rememorar e reescrever a epistemecultural enquanto encruzilhada diaspórica que medeia entre a ânsiado deslocamento e o desejo por um lar, contribui para a gradualsedimentação da história enquanto memória coletiva no sentidode fornecer o saber enquanto relação vivida e imaginada contínuaentre o passado e presente, a compreensão de si mesmo comoparte de um imaginário coletivo num lugar específico do mundo.Neste sentido, a mitopoética da oralitura, o ato de “nommer, ennous-mêmes pour nous-mêmes, jusqu’à notre pleine autorité”(CHAMOISEAU, 1992, p. 498) tem o poder de criar e/ourecuperar as identificações que constituem a identidade cultural.

Marie-Sophie explica a interface memória-identidade daseguinte forma: “écrire, c’était retrouver mon Esternome,réécouter les échos de sa voix égarés en moi-même, me

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reconstruire lentement autour d’une mémoire, d’un désordre deparoles à la fois obscures et fortes” (CHAMOISEAU, 1992, p.411). Dado à transitoriedade das impressões e sentimentos e aohumor variável das reflexões que transformam as imagens e valoresde lugares, paisagens e seres humanos, a memória precisa dearmações espaciais, de lugares específicos. Assim, é l’En-ville(a cidade), Texaco (la ville créole), les mornes (colinas de origemvulcânica), e la savane que funcionam como as imagens espaciaismais duradouras que desencadeiam as lembranças de Marie-Sophie. Ao dizer que “[l]a ville créole qui possède si peu demonuments, devient monument par le soin porté à ses lieux demémoire. Le monument, là comme dans toute l’Amérique, nes’érige pas monumental: il irradie” (CHAMOISEAU, 1992, p.431), o urbanista enfatiza o caráter dinâmico de uma memóriaque une diferentes espaços, tempos e imaginações: uma memóriaenquanto “prática social ” (NORA, 1989, p.14) que nivela ashierarquias monumentais mediante seu poder de radiação. Estamemória coletiva não esconde seu lado sangrento; pelo contrário,ela se desdobra de baixo para cima, ligando seus lugares étnico-culturais opostos em complementaridade contraditória. Assim, apresente confluência da memória de Texaco e de “l’En-ville”tem suas raízes rizomáticas naquela dos escravos e quilombolase dos senhores europeus e seus descendentes, les békés: umamemória multiétnica que condensa diversos espaços e temposnuma encruzilhada transcultural na qual a capacidade subjetivade imaginar a experiência histórica é recuperada. Ela é recuperadadentro do que Fanon (1967, p. 8) chama de “zone of nonbeing”,uma zona de não-estar onde a memória é conscientementerecalcada, como Marie-Sophie sublinha na sua lembrança da mãede Ninon, uma mulher que não tem outro nome que “l’Africaine”:

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[l]a mort de l’Africaine ouvrit un nouveau temps. ... Ninon resta devant

la tombe. Seul, désormais, ce retourné de terre décoré de calebasses

attestait que sa mère lui provenait d’Afrique. Vaste pays dont on ne

savait hak. L’Africaine elle-même n’avait évoqué que la cale du bateau,

comme si elle était née là-dedans, comme si sa mémoire, juste là, avait

fini de battre. Ninon ne savait pas encore que tout en cultivant le

souvenir de sa mère, elle oublierait l’Afrique: resteraient la femme, sa

chair, sa tendresse ... mais rien de l’Autre Pays. Pas même le mot d’un

nom (CHAMOISEAU, 1992, p. 154-155).6

Uma memória étnico-cultural tanto vivida quanto recalcada eimaginada. Bethel (1997, p.5, 92; tradução minha) argumentaque os acontecimentos históricos da vida, luta e sobrevivênciadiária tornaram-se “milieux de mémoire” da representação coletivaque moldaram “os lugares empíricos e simbólicos” a partir dosquais “a memória afro-americana desenvolveu”. Ela sugere queestes momentos foram tirados do seu contexto histórico particulare recriados como “veículo espiritual com o objetivo de construirum passado perdido”. Transformados numa representaçãocoletiva ligada de maneira tênue ao acontecimento original, estes“milieux de mémoire” tornaram-se catalisadores de mobilizaçãoe ação política coletiva pelo fato de inspirar um sentido do passadocoletivo. Um ponto importante da argumentação de Bethel é adescontinuidade entre o passado vivido e lembrado. No cernedos “milieux de mémoire” não se encontra (um)a verdade históricamas versões do passado geradas e sustentadas pela memória“inventada”. Na medida em que a última geração de africanosmorreu, a memória vivida tornou-se memória inventada; umamemória transferida da experiência individual dos ancestraisafricanos para a imaginação coletiva.

Em Texaco a memória vivida e inventada enquanto práticasocial (o processo seletivo de (re)codificar imagens e

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pensamentos, combinando o sagrado e o profano nos traçosmnemônicos de um “speakerly text”7) é um ato de reconstruiruma cosmovisão e um ethos implodidos. É um ato de resistênciaporque mapeia a zona de não-estar na sua natureza destrutiva econstrutiva. Neste romance, a memória multivocalizada dospersonagens é determinada pelo que Brand (2002, p.29; traduçãominha) problematiza como “o esquema cognitivo do cativeiro”.Capturados e mantidos em cativeiro contra sua vontade antes daabolição e marginalizados mediante diferentes formas de servidãodepois da abolição, os negros da diáspora americana têmrespondido com diferentes práticas e maneiras de mobilidade emnome da sobrevivência e liberdade. Chamoiseau traça os efeitosdesta errância multidimensional como fissuras e fusões inter e intra-étnicas: a relação antagônica entre os afro-martiniquenhos e osbékés e entre os afro-martiniquenhos baseada em cor e status(escravos do campo e da casa grande, quilombolas e negrosnascidos do ventre livre e alforiados) por um lado, e por outro, asolidariedade entre os afro-descendentes que vivem nas colinase aqueles de Texaco. Das rotas de errância de Esternome entreas colinas (les mornes) e as cidades, àquelas de sua filha Marie-Sophie entre Texaco e l’En-ville, Chamoiseau mapeia 150 anosde um não-estar violento imposto sobre os afro-martiniquenhos :“le sentiment de l’injustice, de ne pas exister, d’être une chienneméprisée, la haine de cet En-ville ou je me tournaillais seule, livréeaux sept malheurs sans choisir le chemin” (CHAMOISEAU, 1992,p. 325).8

Este mapeamento mnemônico, porém, ao resgatar também aenergia da resistência dos subalternos, revela uma geografia críticade um processo histórico que explica a situação atual. É importanteobservar que a perseverança dos posseiros contra o poder dosbékés e seus aliados tem suas raízes no espírito “noutéka”(CHAMOISEAU, 1992, p. 161-173): o espírito de solidariedade

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baseado na agricultura de subsistência nas colinas; espírito esteque é imbuído do desejo de substituir as rotas do cativeiro comas raízes da liberdade enquanto lar. Se, segundo Brand (2002, p.49, 20; tradução minha), “o esquema cognitivo de cativeiro” situaos africanos da diáspora “sempre no meio da viagem”, nesteespaço inexplicável do “entre-mar”, então as viagens deEsternome e Marie-Sophie demonstram que este espaço decativeiro, a errância de uma vida nômade, também contém lugaresde descoberta, conscientização e liberdade, ou seja, lugares queoferecem possibilidades de escolha. Assim, ao imbuir a buscaidentitária do afro-martiniquenho de uma percepção clara daspossibilidades de concretização e projeção para o futuro, queabrange a percepção de liberdade e a responsabilidade que esteconhecimento implica9, Chamoiseau vai além da descriçãobrandiana da existência negra alienada e fragmentada entre lugarese mares que enfatiza a perda das raízes dando origem a umdesarraigamento identitário e existencial sem fim. Em outraspalavras, a consciência interior da diáspora africana, que segundoBrand (2002, p. 25; tradução minha) é “a porta da não-volta”caracterizada por uma história apocalíptica e esquizofrênica quetem bloqueado o agir e assim reduzido a experiência afro-diaspórica a uma expressão enfurecida de sofrimento10, torna-seem Chamoiseau simultaneamente uma porta de novos horizontesconstituída por diferentes formas de marronnage, como, entreoutras, a transescrita da oralitura. O que mantém esta portaaberta e a faísca é a criatividade, portanto, é a tensão do seulimiar separando e ligando a perda e a esperança.

A perda do que foi e a esperança de reencontrá-lo no presentee transformar este presente num futuro melhor. Esta “utopiaconcreta” (BLOCH, 1985) subjaz ao romance Biblique desderniers gestes, onde Chamoiseau narra fragmentos da vida deBalthazar Bodule-Jules através de uma memória multidimensional.

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Baseado em entrevistas e escritos de Balthazar, comentários erelatos de seus amigos e na sua própria imaginação estimuladapelos gestos do mesmo, o narrador-jornalista reconstrói aslembranças do velho Balthazar durante os últimos dias antes damorte deste, admitindo que mediante sua imaginação durante oprocesso da escrita sua memória tornou-se aquela de Balthazare vice versa. A memória individual de Balthazar, portanto, é aomesmo tempo a memória de uma comunidade radicada emMartinica. Durante o processo de desvendar a trajetória deBalthazar desde o nascimento, infância e adolescência na ilha,suas andanças pelo mundo enquanto guerrilheiro em movimentosanticolonialistas do século XX até sua volta e morte em Martinica,Chamoiseau recria a memória coletiva não somente no sentidouniversal, mas também no sentido particular da diáspora africana,mediante o nascer de Balthazar há centenas de anos na África,sua passagem para as Américas num negreiro e sua vida demarron (quilombola).

Esta memória individual-coletiva deve ser considerada uma“prática social” por duas razões: tenta retificar as distorções evazios da História oficial por meio de histórias subalternas e, nesteprocesso de iluminar as atrocidades bárbaras cometidas em nomedo progresso civilizador, esboçar uma vivência alternativa emrelação pacífica. Chamoiseau, portanto, utiliza o lugar da memóriapara (re)sedimentar a consciência da “utopia concreta”. Para tirardas “ombres du passé ... les énergies de [sa] vie et les fermentsde [ses] combats”, para aprender dos nossos erros, “compren[dre]le sens secret du monde” (CHAMOISEAU, 2002, p. 74, 185) ecriar um mundo melhor é necessário revelar e problematizar oscaminhos pelos quais chegamos aos nossos lugares e posiçõessociais no presente, ou seja, compreender e estabelecer relaçõesentre o que se passou e se passa. Neste processo de “relier lessymboles” (CHAMOISEAU, 2002, p. 526) é necessário que

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nos lembremos das nossas histórias individuais e coletivas, queanalisemos os nossos atos de maneira crítica: a memória enquantolugar de conscientização à Paulo Freire. Isto significa que mediantea memória em processo dever-se-ia recriar as identidadesindividuais e coletivas em fluxo e diversidade:

Il faut savoir ... imaginer le monde, imaginer les lieux, inventer les

histoires! … Inventez-vous cette mémoire fondatrice, que l’on jardine

en soi-même et qui dicte son principe d’ouverture aux puissances de

ce monde ! Apprenez à faire ça ! Imaginez pour chaque endroit, chaque

case, chaque femme, ses prolongements dans des constellations de

lieux, d’endroits, de cases, de toiles, d’alcools ou de parfums, l’un

appelant l’autre, l’autre présent dans mille autres, allez comme ça,

errant de prolongement en prolongement, jusqu’à vous sentir le plus

humain possible ! (CHAMOISEAU, 2002, p. 278-279)

Este mangue da memória rizomática e errante11 torna-se emChamoiseau um espaço de libertação: um espaço onde acompreensão e seguinte desconstrução do discurso e ideologia(neo)colonial, imperialista e consumista liberam a mente e o corpopara uma episteme multilateral, fractal e diaspórica. Evento, fato,intuição, sonho e imaginação alimentam um processo dememorização que liga a mente e o corpo de um com aqueles dooutro, constituindo “un organisme ouvert, circulaire et vivant”(CHAMOISEAU, 2002, p. 471; ênfase no original); organismoeste que abrange tanto diferentes culturas quanto diversas esferase cujo símbolo é o círculo (CHAMOISEAU, 2002, p. 270, 735).12

Chamoiseau, portanto, recria a memória enquanto berço e localdo mundo crioulizado e afirma que “[e]n perdant la mémoire onperd le monde ... et quand on perd le monde on perd le filmême de sa vie” (CHAMOISEAU, 2002, p. 518; ênfase nooriginal). Uma afirmação importante perante a globalização

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neoliberal que tenta apagar a memória crítica e conscientizadorano seu afã de anular a singularidade do individuo e objeto euniformizar a realidade, tornando-se desta forma uma ideologiadestrutora e totalitária. Chamoiseau, ao contrário de Levinas(1990) que levanta a questão da relação Moi-l’Autre no ambientede uma só civilização histórica e homogênea, e sumamenteinfluenciado por Glissant, coloca esta questão intersubjetiva naencruzilhada cultural diaspórica do local e do global: nem um nemo outro mas os dois diasporicamente misturados num processosem origem nem fim .

O que Chamoiseau aqui desconstrói é o pensamento binárioda modernidade baseado na diferença enquanto separação eexclusão. Diferente das teorias pós-modernas e sua desconstruçãodos binarismos, a teoria da crioulização é baseada nos fluxoshíbridos e transculturais vivenciados na realidade; fluxos estesque abrem fronteiras fixas e nações homogêneas para seus espaçosfronteiriços, transformando-as em “archipels” (CHAMOISEAU,2002, p. 603) regidos por dispersão. Em relação à questão Moi-l’Autre, Chamoiseau enfatiza que uma identidade-em-processonão é uma não-identidade, mas uma identidade composta poridentificações que se estabelecem de maneira transitória paraserem apagadas, suplementadas por outras. Portanto, a viagem,a errância, a mobilidade é um elemento sumamente importantecomo também o é o seu contrário: a imobilidade, as raízes culturais,o lar. A arte da vida e sobrevivência é juntar os dois, misturá-lossem exagerar nenhum lado para, neste processo, (re)criar asidentidades culturais. Parece-me que a ética que vibra em Bibliqueé esta: ir ao encontro do outro e da diferença, dialogando comestes para compreendê-los e, desta forma, a si mesmo.

Em nossos tempos virtualmente e neoliberalmenteglobalizados,13 quando graças à imagem a ilusão de estar em várioslugares simultaneamente pulveriza o tempo e o espaço de tal formaque sufoca a utopia, a imaginação do passado e a memória do

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futuro, a oralitura de Chamoiseau usa, nas palavras recentes deCarlos Fuentes (2005, p. 29), a língua como “le fondement de laculture, la porte sur l’expérience, le toit de l’imagination, la cavede la mémoire, la chambre à coucher de l’amour et ... la fenêtreouverte sur l’air du doute qui remet en question et interroge”.Para Fuentes, os grandes romances traçam o desenho humanochamado “passion, amour, liberté ou justice”. Neste processo,enfatizam que “l’art restaure la vie en nous, la vie que l’histoiredans sa précipitation a méprisée. La littérature rend réel ce quel’histoire a oublié”. As resistências de Esternome, Marie-Sophiee Balthazar Bodule-Jules preenchem os vazios e distorções dodiscurso oficial e revelam que a história colonial continuaescrevendo novos capítulos no presente supostamente pós-colonial. Gostaria de afirmar que, além disso, este processoengajado de “révéler” enquanto “changer” (SARTRE, 1948)implícito na escrita de Chamoiseau tem um outro objetivo:conscientizar seus leitores que um outro mundo é possível, ummundo crioulizado que celebra sua diversidade relacionadamediante a aceitação das diferenças não-hierarquizadas; ummundo em processo onde a imaginação suplementa a razão, oopaco encanta o claro, o errante ilumina o sedentário, o serhumano se redescobre no mundo dos animais e das plantas14; ummundo, enfim, onde o amor e o respeito vencem qualquer tipo deagressão e violência. A grande lição que Balthazar tira das suaslembranças é que qualquer ato violento, mesmo aquele perpetradoem nome da libertação dos subalternos, perpetua a violência.

O objetivo da crioulização, portanto, é: substituir a dominaçãohierarquizante por uma convivência em processo para que adiferença enquanto separação possa ceder à diversidade comointer-relação dinâmica. O que vibra na estrutura, estilo e temáticada narração de Patrick Chamoiseau não é nem “o choque dascivilizações” (HUNTINGTON) nem “o fim da história”

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(FUKUYAMA), mas o conflituoso diálogo, ativado pela memóriae transmitido pela escrita oral, ambas funcionando “en rupturesde temps, de lieux, de tons et de manières” (CHAMOISEAU,1986, p. 247) entre fragmentos culturais que, num processohistórico aberto, se tangem e entrelaçam em simbiose ou síntese.Como é que blocos de civilizações fechadas podem se chocar ea história terminar se estas civilizações são compostas porfragmentos de culturas misturadas resultante de um processohistórico de crioulização em andamento? Em seguida, e pararessaltar a importância do pensamento rizomático enquantopossibilidade de um mundo mais pacífico e justo, focalizarei aligação entre a violência e o entre-lugar enquanto efeitos dacolonização.

Se para Michael Hardt e Antonio Negri (2000, p. 122, 129),“[s]lavery, servitude, and all other guises of the coerciveorganization of labor …. are all essential elements internal to theprocesses of capitalist development“ e se “violence is the necessaryfoundation of colonialism”, uma grande parte da literatura negrapan-americana de autoria feminina sublinha o fato de que desdeo sistema econômico de plantação o corpo da mulher negra temsido um campo de luta onde a origem se quebra no silêncio gritantedas histórias, paisagens, identidades e vontades violentadas. Ostextos de escritoras afro-descendentes destacam que o (ab)usodo corpo negro pela/na economia racializada e racista da violaçãoinstitucionalizada, continua sendo uma das razões pela errâncianeocolonial destas mulheres. Uma errância entre lugares eespaços, terras e mares em busca de lares a serem construídaslonge das ruínas violentas do passado. Porém, para a narradoraem L’espérance-macadam de Gisele Pineau, o sangue dopassado arruína as construções do presente: “Non, rien n’avaitchangé depuis qu’on avait transbordé les premiers Nègresd’Afrique dans ce pays qui ne savait qu’enfanter des cyclones,

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cette terre violente où tant de malédiction pesait sur les hommeset les femmes de toutes nations” (PINEAU, 1995, p.241). Paraela, uma velhinha que observa e comenta sobre a violência numpequeno vilarejo em Guadalupe nos anos 70 e 80 do séculopassado, homens batendo, violentando e matando suas esposase filhas; a comunidade ouvindo os gritos e fazendo ouvidos demercador, os habitantes desta vila ainda não tinham “sortis dugenre des animaux assujettis au bon gré du maître” (PINEAU,1995, p.282). Ou seja, ainda não desconstruíram a internalizaçãodos valores do discurso e sistema dominante que lhes incutiramauto-desprezo. Em seguida, problematizarei brevemente este“entre-deux” no romance L’Exil selon Julia de Gisèle Pineau.

L’Exil delineia a experiência (autobiográfica) de uma meninaque vive os primeiros quatorze anos da sua vida em Paris antesde voltar a Guadalupe. Seus pais fizeram parte da transplantaçãomassiva das Antilhas à metrópole em busca de melhorescondições de vida depois da Segunda Guerra Mundial. Nascidana França, ela teoricamente tem os mesmos direitos que qualqueroutro francês. Praticamente, porém, ela se sente constantementerejeitada por causa de sua cor, vivendo uma vida nas margens dasociedade e cultura francesa. Voltando a Guadalupe, ela éconfrontada com a estratificação sociocultural, racial e de gêneroe classe de uma ilha que ainda não conseguiu se desfazer dosefeitos coloniais, especialmente o da cor. Em L’Exil, como emtoda sua obra, Pineau problematiza o assunto complexo de raçaenquanto legado colonial numa sociedade fundada na economiade plantação. A partir de uma tabula rasa original baseada emaniquilação da população autóctone, as sociedades das ilhasantilhanas foram colonizadas por uma população importada: oscolonos da Europa e os escravos da África (depois da aboliçãosubstituídos/suplementados por trabalhadores indianos). Esteesquema organizador resultou num contraste fenotípico ligado à

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cor da pele e legitimou, em parte, a ordem social e hierárquica dasociedade de plantação. Consequentemente, a paisagem humanade Guadalupe, como de todas as sociedades caribenhas deplantação, está imbuída de um racismo funcional cujas raízes seencontram na época colonial. Características físicas e herançajustificaram privilégios econômicos e status social baseados emexploração e dominação. Com o fim do sistema de plantação, aideologia racista internalizada por todas as categorias étnico-raciais serviu como base da sociedade pós-colonial: brancosdiscriminando contra mulatos que discriminaram contra negrosque discriminaram contra indianos. Entre a França que amarginaliza e uma ilha que só conhece das histórias orais de suaavô, entre a oralidade destas histórias contadas em Créole e aescrita/fala Français-Français, entre um mundo branco que asubalterniza e um mundo de cor no qual seu lugar é prescrito,neste entre-lugar enquanto encruzilhada transcultural onde as“structures d’attitude et de pensée” (SAID) que se constituíramdurante a época do colonialismo e imperialismo perduram, aprotagonista de L’Exil busca seu lugar, sua identidade.

Visto desta perspectiva, a francophonie é este lugarsociocultural ambíguo entre, por um lado, os efeitos da estruturade dominação colonial, pós-colonial e neocolonial e, por outro, abusca de autonomia cultural e identitária. É a encruzilhada criativaonde línguas (e através delas, culturas/identidades) se misturam,onde le Créole e le Français-Français se abraçam ao ritmodos batuques, contando as histórias da História. Neste processo,ela é um lugar onde a mémoire brisée encontra a mémoirevivante (GALEANO, 2005). A memória viva escreve osubalterno dentro da memória quebrada do discurso e da ideologiaoficial, problematizando-os, interpretando-os e transformando-os. Como tal ela gera energia semiótica (re)construtiva e torna-se um fator importante em atos de legitimização identitária e

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política. A oralização desta memória viva é uma força curativa detransformação porque cria constantemente novas conexõesrizomáticas entre diversos elementos desafiando a relaçãoarbitrária entre cultura, identidade, memória e território mediantesua essência serpenteante. Desta forma, a francophonie reúne opassado e o presente num complexo espaço (pós-/neo)colonialdiscursivo e mnemônico. Sendo seu traço principal “la langue”,ela, segundo Tahar Bem Jelloun, escritor marroquino (PrixGoncourt 1987), “a ceci de particulier: c’est une immense maisonaux portes et fenêtres sans cadres, ouvertes en permanence surl’univers; c’est un pays sans frontières, sans police, sans Etat,sans prisons. La langue n’appartient à personne en particulier,elle est là, disponible, malléable, vive, cruelle, magnifique ettoujours truffée de mystères” (2007, p. 21).

Para Carole Boyce-Davies (1994, p. 36), os diversos tiposde migração com suas desterritorializações e reterritorializaçõesgeográficas, culturais e identitárias moldaram a “migratorysubjectivity” dos antilhanos. Para Frantz Fanon (1967, p. 170), aexperiência do Dasein intersticial entre “raízes e rotas” (GILROY,1994, p. 133) dos afro-descendentes da diáspora negra produz“indivíduos sem âncora, sem horizonte, sem cor, estado e raízes,uma raça de anjos”. Amryl Johnson (1988, p. 212) delineia oscaribenhos como “pessoas nas ondas, das ondas”. Em O quartoséculo Édouard Glissant utiliza o mar como útero e tumba dosescravizados. Além disso, nos seus pensamentos teóricos, Glissantutiliza elementos e imagens do mar (onda, areia, corrente, etc.)para problematizar a (não-)sedimentação mnemônica e a opaciténas relações intersubjetivas e culturais.15 Uma semelhantemitopoética das ondas enquanto berço do nascer e morrer podeser encontrada no poema “The Sea is History” de Derek Walcotte no conto”Children of the Sea” de Eldridge Danticat. Enquantopara Walcott a “tribal memory” (1977, p. 25) dos afro-

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descendentes americanos começou no mar “like a rumor withoutany echo” (1977, p. 28), as “crianças do mar” de Danticat,haitianos que em barcos precários fogem da violência política dailha em direção à costa norte-americana, continuam escrevendonovos capítulos desta memória coletiva, ecoando os rumores dopassado no presente: a dança esquizofrênica dos afro-descendentes nas águas do mar azul aos ritmos da violência deontem e hoje. Nenhum monumento, a não ser a escrita, lembraos espíritos errantes no mar. Neste sentido, a literatura caribenhautiliza a dor, o sofrimento e diversas formas de violência emimagens mitopoéticas para redefinir a identidade, o espaço e ahistória.

Para Walcott (1993, p. 55) a mímica “é um ato deimaginação”, um “design”. Enquanto delineação/performancedo entre-lugar cultural e identitário nos autores analisados, estetipo de mímica é um ato de trans-escrever que constitui umaapropriação da história, mente e corpo mediante o discurso e amemória. É uma transescrita que situa o signo numa zona decontato intercultural onde ‘raça’, ‘etnicidade’, ‘gênero’ e‘sexualidade’ dançam num ritmo sincopado resultante da violênciada “digenèse”; ritmo este que interrompe e (re)une diversassignificações (muitas vezes em complementaridade contraditória)criando novos sentidos: o ‘trans’ que cruza e suplementa o ‘multi’das relações interculturais num processo mnemônico quesedimenta uma história apocalíptica de subjugação e resistênciaem consciência coletiva.16 Como tal, a transescrita caribenha criaum lar discursivo e epistêmico enquanto geografia simbólica.Esta geografia pode ser tanto regional, nacional, cultural quantotransregional, transnacional e transcultural caracterizada por umacidadania enraizada ou migratória. Neste sentido, os escritorescaribenhos são mediadores transculturais sobre o hífen entreculturas e epistemes, trans-escrevendo os laços conflitivos que

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as mantêm em relação.

Notas1E o faz em toda sua ambigüidade humana: não somente como figura deresistência, mas também, como no seu romance Ségou, colaborando como colonizador. Para uma análise crítica do marron, ver Campbell.2 O “vampiro-objeto” que “absorve a ação humana, vive do sanguehumano e, finalmente, vive em simbiose com o ser humano” (SARTRE,1960, p.238; minha tradução). O “practico-inert” é a matéria, a máquina,as instituições sociais ou qualquer objeto que aliena e objetifica o serhumano.3 Como para Glissant (1997c, p. 36) a génese “des sociétés créoles desAmériques se fond à une ... obscurité, celle du ventre du bateau négrier”,ele a chama de”une digenèse”.Ver também Brand (2002), que problematizao lugar desta “digenèse” enquanto a porta da não-volta..4 Glissant usa o termo transversality em Caribbean Discourse parareferir-se ao sistema sincrônico das forças convergentes queconstituem a identidade antilhana.5 Acerca da crioulização, ver Bernabé et al (1989), Glissant (1992 e 1997b),Condé e Cottenet-Hage (1995), Walter (2003, p. 351-67). e Vianna (2005).6 Enquanto que uns esquecem outros lembram a África. A verdade é quenão existe esquecimento da África porque ela vibra no subconscienteenquanto memória emocional, ou como diz Verlaine em Les chemins deLoco-Miroir de Lilas Desquiron (1999, p. 57-58): “Afrique, notre blessuresecrète, enfouie au mitan de nous, nous ne guérirons jamais de toi, jamais”.7 Para a definição de um “speakerly text”, ver Gates (1988, p. 239-258).8 Chamoiseau opta pela recuperação da psíque fragmentada e alienadamediante a criatividade: a afirmação criativa do trauma colonial e da criseexistencial. Embutida no processo de recordação multivocal, a afirmaçãocriativa do trauma colonial e suas conseqüências em Texaco recupera oque, segundo Chamoiseau (1997, p. 144) a memória deveria fazer: “retenirl’énergie d’une masse indistincte en lutte de survie.” Esta energia tambémé causada por meio da multivocalidade do texto: uma narrativa que não

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se origina de Chamoiseau mas que é transmitida por ele enquantocontador-escritor.9 O narrador em Amada de Toni Morrison (1994, p. 114) articula estadiferença da seguinte forma: “libertar-se era uma coisa, tomar posse docorpo libertado era algo bem diferente”.10 Ver também os três romances de Dionne Brand, At the Full and Changeof the Moon, In Another Place, Not Here e What We All Long For.11 Ver Walter (2005a) para uma problematização da identidade cultural dasAméricas enquanto mangue transcultural.12 É interessante notar a semelhança entre este raciocínio de Chamoiseaue a cosmovisão de muitas tribos ameríndias. Segundo Chamoiseau opapel da natureza é fundamental no processo da conscientização do serhumano: “il fallait juste aiguiser sa conscience, et libérer (à force desilence et patience) ce sens animal qui donne leur âme aux autres”; “Lesplantes … ne connaissent pas le bien ou le mal, le juste ou l’injuste, ellesconnaissent les équilibres du monde” (CHAMOISEAU, 2002, p. 300, 309).O círculo, portanto, liga o mundo humano com o mundo animal e vegetal.Além disso, ele liga o passado, presente e futuro de diferentes pessoas egerações em diferentes lugares e contextos culturais do mundo mediantea memória individual-coletiva de Balthazar e do narrador-jornalista. Efinalmente liga homens e mulheres, já que Balthazar se lembra de episódiosda sua vida por meio da recordação das mulheres com as quais se tinharelacionado desde sua infância. Para a importância do círculo enquantosímbolo da consciência interior da diáspora africana, ver Walter (2005b).13 Nos quais, segundo Toni Morrison (2003, p.4), “all is known and nothingunderstood”.14 Como em L’esclave vieil homme et le molosse, onde a natureza guardaa memória de todos aqueles povos, indígena e afro, que resistiram aointruso europeu.15 Entender o mundo enquanto “chaos-monde” ou “tout-monde”constituído por fluxos erráticos significa, em última análise, não poder/querer compreendê-lo totalmente. O raciocínio glissantiano levanta umponto raramente tocado por críticos: a incomensurabilidade das relaçõesinterculturais que reside no seu caráter transcultural (Glissant diria‘crioulizado’). Glissant, neste sentido, fala de “opacité”. A opacidade

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das relações transculturais é o depósito como sedimento que se acumulano processo da inter-relação cultural. Como tal contribui para aimprevisibilidade e não-linearidade (o caos) destas relações. Estesedimento é a base insondável e fértil da experiência intersubjetiva eintercultural que pode ser apenas sentida. Para Jean Faustman (2004,p.9), o direito à opacidade reclamado por Glissant significa as diversas“tentatives d’intériorisation et d’authenticité”praticadas por artistasantilhanos com o objetivo de “revenir à l’intérieur, au centre, au lieu deregarder ailleurs, à l’extérieur”.16 Para Galeano (2005, p.93), a memória viva “ne contemple pas l’histoire,mais elle incite à la faire”.

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