memÓrias e representaÇÕes sociais de prÁticas religiosas de matriz africana

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UERJ UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA CURSO DE MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

MEMRIAS E REPRESENTAES SOCIAIS DE PRTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA

POR GILMARA SANTOS MARIOSA

PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA MESTRADO PROCESSOS SOCIOCOGNITIVOS E PSICOSSOCIAIS

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA MESTRADO PROCESSOS SOCIOCOGNITIVOS E PSICOSSOCIAIS

MEMRIAS E REPRESENTAES SOCIAIS DE PRTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA

GILMARA SANTOS MARIOSA ORIENTADOR: RICARDO VIEIRALVES DE CASTRO

Dissertao submetida como requisito parcial para obteno de grau de Mestre em Psicologia

Rio de janeiro, 2007

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CATALOGAO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/AM341 Mariosa, Gilmara Santos Memria e representaes sociais de prticas religiosas de matriz africana / Gilmara Santos Mariosa- 2007. 135 f. Orientador: Ricardo Vieiralves de Castro. Dissertao (mestrado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. 1. Cultos afro-brasileiros - Teses. 2. Negros Brasil Religio - Teses. 3. Representaes sociais Teses. I. Castro, Ricardo Vieiralves de. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Ttulo. CDU 299.6(81)

Autorizo, apenas para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta tese.

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___________________________________________ Assinatura

_______________ Data

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MARIOSA, Gilmara Santos. Memria e Representaes Sociais de Prticas Religiosas De Matriz Africana. Rio de Janeiro, 20 de junho de 2007. Dissertao de Mestrado (137p.) apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Esta dissertao de mestrado realizou um estudo sobre a identificao de memrias e representaes sociais das prticas religiosas de matriz africana na populao negra do bairro Dom Bosco situado no municpio de Juiz de Fora - MG. Foram entrevistados 60 sujeitos, de ambos os sexos, que se auto identificavam como negros, pardos, mulatos e outras denominaes que caracterizam a ascendncia negra. Atravs dos dados levantados na pesquisa conclumos que as representaes sociais que esta populao possui, so de que as prticas de matriz africana so demonacas, feitiarias para o mal e aes que causam prejuzo para as pessoas. As lembranas se mesclam com esquecimento, e as representaes e memrias dos sujeitos da pesquisa esto associados com as prticas de sincretismo religioso existentes no Brasil. Os entrevistados no possuem lembrana dos lderes religiosos negros e nem dos locais de memria do bairro. Os participantes da pesquisa no se associam com estas prticas religiosas e tm em relao a elas uma viso de distanciamento e desinteresse. Constatamos que isto ocorre devido dificuldade de aceitao pela sociedade em geral que as desvaloriza e discrimina, sempre atribuindo negatividade a elas e aos praticantes. Estas prticas so estereotipadas, folclorizadas e menosprezadas socialmente. O que faz com que a populao afro-descendente no queira ser identificada com as tradies histricas, culturais e religiosos dos seus ancestrais

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ABSTRACT

This dissertation is a study that aimed at identifying memories and social representations of African religious practices among the population of the neighborhood called Dom Bosco in the city of Juiz de Fora MG. 60 black subjects , both male and female, were interviewed. Through the data collected during this research, we concluded that subjects identified African religious practices with either witchcraft or satanic rites. Subjects recollections were not quite clear and memories and representations were associated with the existing religious syncretism in Brazil. Subjects were unaware of the black religious leaders and of the places that were important to African culture in the neighborhood. Subjects dont associate with these religious practices and show no interest in them. We verified that this occurs due to societys non-acceptance of these practices, and because people despise them and attribute a negative value to them and to the followers of these religions. These practices are stereotyped, socially despised and associated with folklore. All that keeps Afro-Brazilians from identifying with the historical, cultural and religious traditions of their ancestors.

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Sumrio Resumo Abstract Introduo.................................................................................................................01 1 As prticas religiosas de matriz africana no Brasil e em Minas Gerais......05 1.1 Breve Relato sobre os Africanos no Brasil..................................................05 1.2 Religies e prticas religiosas dos negros africanos.................................07 1.3 A tradio africana em Minas Gerais e em Juiz de Fora.............................17 1.4 Os cultos afro-brasileiros em Minas Gerais e em Juiz de Fora..................21 2 A teoria das representaes sociais e a memria social...............................34 2.1 Sobre o conceito de representaes sociais...............................................34 2.2 O fenmeno das representaes sociais.....................................................40 2.3 Representaes e prticas sociais................................................................41 2.4 Sobre memria social.....................................................................................45 2.5 Memria e psicologia scia............................................................................45 2.6 O esquecimento como memria....................................................................50 2.7 Memria social e religies de matriz africana..............................................52 3 Metodologia........................................................................................................55 3.1 Consideraes metodolgicas......................................................................55 3.2 Anlise e descrio dos dados......................................................................61 3.2.1 Sobre os sujeitos da pesquisa....................................................................61 3.2.2 Sobre a identificao de prticas religiosas de matriz africana..............62 3.2.3 As prticas religiosas de matriz africana em Juiz de Fora......................64 3.2.4 Tipologia das prticas religiosas................................................................65 3.2.5 Memria e valores........................................................................................72 3.2.6 Sincretismo.................................................................................................101 3.2.7 Lideranas negras em Juiz de Fora.........................................................106 3.2.8 Os lugares de memria..............................................................................109 3.2.9 Relatos e histrias sobre prticas religiosas de matriz africana..........110 4 Consideraes finais e concluso.................................................................113 Referncias bibliogrficas.....................................................................................119 Anexo......................................................................................................................123I

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ntroduo Esta dissertao realizou um estudo sobre a memria social e as representaes sociais das prticas religiosas de matriz africana entre os negros da cidade de Juiz de Fora, especificamente do bairro Dom Bosco que possui grande concentrao de populao negra na cidade. Este bairro, no passado, foi localizao de um quilombo e prximo a ele se encontraria um cemitrio de escravos. Sabe-se que os primeiros negros chegaram em terras brasileiras, como escravos, por volta do sculo XVI. Entre eles existiam nobres, reis, rainhas, caadores, sacerdotes. No trouxeram nenhuma riqueza material, mas muita riqueza cultural. Dentre estas destaco o culto aos Orixs, divindades africanas que representam as foras da natureza. Em Minas Gerais encontramos uma diversidade de cultos. Destacamos: candombl, umbanda, benzees, folias de reis, irmandades e congados. Eles consistiram o nosso universo de pesquisa, com exceo dos congados, dos quais no encontramos registros na cidade. Consideramos como prticas religiosas de matriz africana aqueles ritos que, mesmo sendo identificados pelos seus praticantes como cristos, tm caractersticas da tradio africana, tais como os reisados, as danas, os toques de tambor, banhos de ervas e oferendas. O objetivo desta pesquisa foi identificar memrias e representaes sociais na populao do bairro Dom Bosco. Investigar as lembranas, esquecimentos e o que foi perdido desta tradio. Quais as representaes que eles possuem, como vem estas religies e que tipo de atribuio de valor do a elas. Dentre os principais fatores que me motivaram a realizar esta pesquisa est a necessidade que senti, desde muito cedo, de saber quem sou, de onde vim. Participando do movimento negro, percebi que o desejo por busca de razes no era s meu, no era individual. Notei a grande importncia social e psicolgica do que representava aquilo que buscava. No caminho, me deparei com o universo religioso e descobri que ali estava a chave. O universo africano era permeado pelos ritos e cultos, que foram deixados de herana. Esta se perdeu no tempo, se misturou com outras crenas, outras prticas, diferentes tribos foram fundidas. Meus antepassados tiveram que no somente unir suas crenas, entre as diferentes etnias, como recriar esta crena dentro do espao brasileiro, para sua sobrevivncia. Os cultos foram

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reprimidos, mas, mesmo recriados, sobreviveram, sob o manto do sincretismo religioso. A populao negra brasileira rf de suas razes. No tem a devida participao na histria e cultura do pas assumida pelos rgos oficiais, inclusive os acadmicos. Dentro do meu interesse por psicologia social descobri o quanto este tema essencial para a populao negra. O quanto vital para o desenvolvimento psicossocial deste grupo, ter sua memria mais valorizada e estudada de uma forma que seus integrantes sejam tratados enquanto agentes atuantes na construo da sua histria, sua cultura e do povo brasileiro. A grande ausncia de acesso a uma histria, no contada pelos meios oficiais, provoca nos negros sentimentos de baixa auto-estima, alm de falta de identidade, de referncias sociais e histricas. Outro ponto que justifica a realizao deste estudo a grande lacuna dentro dos estudos de psicologia. Poucos psiclogos se interessam por este tema, mais explorado por antroplogos e socilogos. Acredito que h ainda muito por se explorar dentro do fenmeno da religiosidade afro-brasileira sob o ponto de vista da psicologia social. Tambm relevante o fato de quase inexistirem estudos sobre estes aspectos em Juiz de Fora. A maior parte dos autores que investiga o tema relata que a tradio afro na cidade dispersa e pouco conhecida. A importncia deste estudo demonstrada nos censos demogrficos do municpio, que revelou 60% de sua populao de negros, no passado. Na poca de sua fundao, o municpio concentrava a maioria dos escravos da provncia de Minas Gerais que, por sua vez, foi, no perodo cafeeiro, considerada a maior provncia escravista do pas. Chama a ateno a aglutinao tamanha de afrodescendentes em uma mesma regio e, concomitantemente, a ausncia de memria dos mesmos. Um ltimo, porm no menos importante fator, que aponto para a relevncia social do trabalho, o inovador fato da histria do negro ser contada pelo prprio negro. Poucos estudos so realizados onde se d voz aos verdadeiros autores da histria, da memria e da representao construda. A histria dos negros em nosso pas pouco contada do seu ponto de vista e, em se tratando de Juiz de Fora, a maioria dos estudos ressalta a importncia da grande contribuio dos imigrantes

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portugueses, alemes, italianos e srio-libaneses. Dos negros se sabe que foram escravos, que sofreram, que apanharam, que fugiram, que foram exploradas. Mas o que construram, o que realizaram de concreto para a construo da memria da cidade, pouco se sabe, pouco se fala, pouco se ouve. Como eles se vem, do que sabem, do que lembram, do que esquecem. Disso constituir, basicamente, este trabalho, na tentativa de lanar luz sobre uma memria rica e pouco conhecida pelos descendentes daqueles que a fizeram, que acabam por no ter histrias para contar sobre si mesmos e nem se do conta do que esta ausncia representa. No captulo um apresentaremos um relato histrico sobre os africanos no Brasil e as tradies afro-brasileiras no pas at chegar a Juiz de Fora. Explanaremos a forma como os africanos aqui chegaram, as principais etnias localizadas em Minas Gerais, como se processou a recriao cultural e religiosa desta populao, no que se transformou para que conseguisse sobreviver. Quais os principais cultos de origem africana que existiram em Minas no passado, como calundus e canjers, at os existentes nos dias atuais, umbanda, congados, irmandades, folias de reis, benzees. No captulo dois abordaremos a teoria das representaes sociais e a memria social. Trataremos o conceito de representaes sociais, como ela se apresenta enquanto fenmeno, quais as relaes entre representaes e prticas sociais. Apresentaremos, tambm, o conceito de memria social, a relao da psicologia social com a memria e algumas terminologias de memria social relacionadas ao nosso objeto de pesquisa tais como: memria pessoal, memrias comuns, memrias coletivas, memrias histricas, histricas documentais e histricas orais, memrias prticas e memrias pblicas. Analisamos o conceito de esquecimento social e a importncia de seu estudo para a compreenso da construo da memria social, definindo esquecimento no como vazio, mas como espao cheio de contedos representacionais, assim como as representaes sociais, construdo no cotidiano de forma dinmica, sempre em transformao. Terminamos o captulo relacionando as memrias e as religies de matriz africana, abordando a reconstruo scio-cultural dos africanos no Brasil e a contnua dinmica destas religies com um processo de memria social. No captulo trs encontra-se a metodologia utilizada na pesquisa. Os tais como candombl,

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mtodos e as tcnicas com as quais trabalhamos, o campo e os participantes. Demonstramos como procede a metodologia de pesquisa em representaes sociais, a forma de coleta de dados, os procedimentos utilizados, a forma de anlise e a apresentao dos dados coletados na pesquisa emprica. A seguir apresentamos como os dados foram interpretados e o perfil dos participantes, as anlises quantitativas feitas por frequncia simples e anlise de contedo das questes qualitativas. Alm disso, so anunciados os resultados aos quais chegamos aps as anlises e interpretaes. No captulo final esto as concluses a que chegamos com base nos resultados obtidos. Identificamos quais as memrias e representaes existem nesta populao oriunda de uma comunidade de descendentes de escravos. Apresentamos questionamentos e perspectivas futuras a respeito da importncia do tema luz da psicologia social. Esperamos que estudos como estes possam contribuir para uma melhor compreenso das religies afro-brasileiras dentro da psicologia social. Tambm para que possamos compreender melhor qual viso a populao negra possui sobre seus referenciais de ancestralidade, como v as tradies religiosas trazidas por seus antepassados, recriadas em solo brasileiro e qual a influncia que estas memrias e representaes tm na vida cotidiana. Acreditamos estar abrindo perspectivas para que novos estudos sejam realizados posteriormente sobre esta temtica.

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1 - As prticas religiosas de matriz africana no Brasil em Minas Gerais Neste captulo trataremos do corpo terico do trabalho, referente a fundamentao terica especfica sobre prticas religiosas de matriz africana. Faremos uma breve trajetria da histria destas prticas considerando as bases de sua reconstruo cultural em solo brasileiro, atravs das influncias catlicas e amerndias, dentre outras. O breve histrico em Minas Gerais e Juiz de Fora torna-se necessrio. Atravs dele poderemos compreender como estas prticas chegaram e se desenvolveram e de que forma se transformaram at o que encontramos hoje. importante considerar que, de acordo com as condies de cada regio, estas prticas tiveram uma trajetria diferenciada, especialmente em Minas Gerais, devido principalmente a trs fatores: ter sido a maior provncia escravista do pas, ter sido vigiada pela coroa portuguesa, por conta da minerao do ouro e diamantes, e, tambm, por sua riqueza acompanhada da forte presena da Igreja Catlica. Estes fatores promoveram uma transformao religiosa muito caracterstica e marcada pela mistura com o catolicismo popular, representado principalmente pelas irmandades do Rosrio e dos santos pretos, os congados, as folias de reis e as benzedeiras, prticas que so ainda hoje difundidas, apesar de no mais acontecerem com intensidade. As prticas religiosas de matriz africana como umbanda e candombl, so pouco conhecidas, apesar de praticadas. Elas so muito marcadas por representaes negativas, como poderemos observar melhor no captulo da anlise e interpretao dos dados da pesquisa. 1.1-Breve relato sobre os africanos no Brasil Os africanos chegaram ao Brasil no sculo XVI. Foram trazidos como mercadoria escrava nos navios negreiros e pertenciam a vrias etnias, mas as principais so os bantos - das regies de Angola, Moambique e Congo - e os iorubs ou nags - das regies de Nigria, Benin e Togo. Segundo Lody (1987), o continente africano tornou-se alvo de uma srie de investidas por parte dos portugueses, para a escravizao de homens e mulheres, que vo desde a metade

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do sculo XVI at a metade do sculo XIX. De acordo com Lody (op. cit.), o comrcio escravagista pode ser compreendido por quatro grandes ciclos: ciclo da Guin, segunda metade do sculo XVI; ciclo de Angola-Congo, por todo o sculo XVII; ciclo da Costa Mina, at o incio da segunda metade do sculo XVIII; ciclo de Benin, at a metade do sculo XIX. Lody (op. cit.) informa ainda que o total de escravos africanos no Brasil chegou cifra de quatro milhes. A escravido era justificada pela inferioridade dos negros em relao aos brancos como podemos constatar na declarao de Nina Rodrigues (2004), na qual afirmava a inferioridade at mesmo por caractersticas fsicas e culturais. O autor acreditava que os negros jamais alcanariam o estgio de evoluo dos brancos europeus, pois alm de estarem muito atrasados, evoluam de forma muito lenta. O autor ressalta ainda que os negros trazidos pelo trfico possuam diferenas culturais e tnicas, que tornavam a influncia destes na formao dos povos americanos mais nociva quanto mais inferior fosse o elemento africano introduzido. Isso devido ao fato de haver diferenas entre os negros, que se encontravam em graus distintos de cultura e de capacidade. Nina Rodrigues (2004) entendia que alguns povos introduzidos no Brasil eram mais degradados, brutais e selvagens que outros. Augras (1983) relata que a primeira leva de africanos escravizados, que se tem notcia, desembarcou em 1538 e era de origem de So Tom, marcando o incio do trfico das chamadas peas da Guin. Esta definio da Guin era considerada geograficamente imprecisa, pois o prprio vice-rei Conde dos Arcos dizia no saber ao certo de que pas se tratava. Os primeiros negros que aqui chegaram eram Peules e Mandigas, parcialmente islamizados. Segundo Carneiro (1991), os bantos eram originrios do sul da frica e foram distribudos no Maranho, Pernambuco e Rio de Janeiro. Dali migraram para Alagoas, litoral do Par, Minas Gerais, Rio de Janeiro e So Paulo. Os iorubs eram originrios da zona do Niger, frica Ocidental e foram introduzidos, conforme este autor, principalmente na Bahia. Silva (1994) conta ainda que no Brasil houve uma grande mistura de etnias. Grupos familiares foram separados, cls, linhagens se perderam, inimigos e aliados se misturaram nas senzalas. A partir disto, no restava muita alternativa aos negros, j que muito do que conheciam e viviam lhes foi tirado. Era necessrio reconstruir. Os africanos

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necessitavam recriar todo um universo cultural e religioso. Devemos considerar como foi reconstruda essa realidade no Brasil, o que o negro produziu de histria, de memria cultural e religiosa. 1.2 - Religies e prticas religiosas dos negros africanos Em se tratando do negro africano, difcil separar a cultura da religiosidade. Os dois fatores andavam juntos em seu universo primrio e a reconstruo desse universo cultural e religioso na realidade brasileira tambm se iniciou permeada por esta unidade. Silva (op. cit.) constatou que o desamparo social em que se encontraram os negros no pas criou a necessidade de reconstrurem sua identidade no espao brasileiro, nas condies adversas da escravido, tendo como referncia as matrizes religiosas de origem africana que traziam dentro de si. Segundo mesmo autor, o branco europeu tentava, princpio, catequizar o negro. A coroa portuguesa determinava que os escravos deviam ser batizados, adotar um nome cristo, e a Igreja Catlica oficiava tais prticas religiosas e no combatia os maus tratos que sofriam os negros escravos no Brasil. As relaes entre a Igreja e as prticas negras eram ambguas, j que os padres toleravam os batuques realizados nas senzalas. Verger (2002) ressalta que o Governo encorajava os negros africanos a se encontrar aos domingos para realizar batuques, organizados por suas naes de origem. Assim aquelas naes inimigas na frica manteriam sua rivalidade. Os senhores de escravos tinham interesse poltico na manuteno das prticas religiosas dos negros, porque acreditavam que se os escravos mantivessem suas tradies, tambm permaneceriam as rivalidades entre os grupos. Tratava-se de uma estratgia para dificultar a formao de rebelies e impedir a criao de laos entre os grupos rivais. Porm, os cultos unificaram Orixs e Voduns, divindades dos povos nags e do Daom. Silva (1994) assinala que os cnticos e rezas, realizados nos terreiros das fazendas, eram justificados pelos negros como homenagens aos santos catlicos, feitas em sua lngua natal, com danas de sua terra. Havia, por outro lado, certas prticas de magia africana combatidas. Rituais como de sacrifcio de animais, manipulao de objetos, pedras e ervas,

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transformao do destino das pessoas, eram vistos como diablicos. Os transes de incorporao de deuses eram tidos como demonstrao de possesso demonaca. As adivinhaes, matana de animais, dentre outras prticas consideradas como bruxarias e magia negra, vinculadas ao mal. Dentro deste contexto, o negro praticava sua f nos deuses africanos e disfarava cultuando os santos catlicos, como ordenava o senhor. Assim foi recriado todo o seu universo religioso, o que hoje denominamos religiosidade afrobrasileira. As prticas catlicas dos negros, de acordo com Silva (op. cit.), eram procisses, folguedos, cavalhadas. Eles cultuavam irmandades de santos pretos e de outros santos com os quais identificavam semelhanas. Augras (1983) relata que nas cidades, a Igreja Catlica organizava Confrarias de Pretos, que possuam suas capelas e seus folguedos. Essas confrarias permitiam, s vezes, a reconstituio de grupos africanos da mesma origem. As festas eram: congo, congada, ticumbi, moambique, coroao do rei de Congo, todas com predomnio do elemento banto, o que permitiu que, em muitos casos, estes africanos e seus descendentes celebrassem seus ritos sob o manto de Nossa Senhora do Rosrio. Assim se originou o sincretismo. Por no lhes ser permitido cultuar seus deuses, eles tinham que se submeter ao modelo catlico de religio. Danavam, por exemplo, para So Benedito ao ritmo do toque de Oxumar, conclui Augras (op. cit.). Nas regies norte e nordeste, de predomnio indgena, os cultos aos espritos dos caboclos e aos seus deuses tambm se misturou crena dos africanos, dando origem ao candombl de Caboclo, uma sntese de elementos bantos, catlicos e indgenas. Conforme a autora, no sudeste, onde o elemento banto predominou, foi registrada a origem de dois tipos de cultos: o candombl de Angola ou candombl de Congo, que recebeu tambm certa influncia posterior dos nags; e a macumba, que integra modelos de origem variada e posteriormente originou a umbanda. Esta ltima congrega elementos africanos, indgenas, catlicos, espritas, ocultistas. Silva (1994) fala dos negros participando de procisses nas ruas das cidades, nos louvores a Corpus Christi, Cinzas, So Francisco, dentre outros. Porm sempre participavam dos desfiles afastados, de maneira a no se misturarem com os brancos. Os negros acrescentaram s cerimnias a msica, a dana e a utilizao

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de instrumentos de percusso. Alguns narradores, como o viajante Saint-Hilaire, que esteve no Brasil por volta de 1816, relata como a procisso das cinzas em Minas Gerais tornava-se irreverente com ridculas palhaadas. Os alemes Spix e Martius, em Salvador neste perodo, revelaram que, por conta dos negros reunidos nos festejos do Bonfim, a festa tomava feio estranha e excntrica. Segundo Silva (op. cit.), nos autos de ventos bblicos e histrias do cristianismo, os negros sempre participavam, porm representando os inimigos da f. Nas cavalhadas, representavam os mouros (os islamizados considerados do mal), e os brancos, os cristos (que expulsaram os mouros, considerados do bem). Os negros eram impedidos de participar das irmandades dos brancos, por isso se organizavam em irmandades prprias, separadas segundo a cor da pele e condio de escravo ou liberto. A mais conhecida e difundida pelo Brasil foi a de Nossa Senhora do Rosrio. Os escravos tinham estas organizaes como importantes associaes de apoio mtuo. Atravs das contribuies dos filiados, tentava-se formar um peclio suficiente para comprar alforria dos seus membros e assegurar um enterro cristo aos filiados, geralmente feitos misturando as ladainhas catlicas aos ritos funerrios da nao africana do morto. As irmandades tambm tinham como objetivo a construo de igrejas prprias, o que era considerado sinal de prestgio. Verger (2002) relata que as mais conhecidas em Salvador eram a Venervel Ordem Terceira do Rosrio de Nossa Senhora das Portas do Carmo, fundada na Igreja de Nossa Senhora do Rosrio do Pelourinho, frequentada por angolanos. Os daomeanos jejes reuniram-se na igreja do Corpo Santo, na Cidade Baixa. L fundaram a confraria de Senhor Bom Jesus das Necessidades e Redeno dos Homens Pretos. As mulheres nags-iorubs encontravam-se na Igreja da Barroquinha, fundando a confraria de Nossa Senhora da Boa Morte, mais tarde elas fundariam a primeira casa de Candombl Il Ax Iy Nass. Nas regies onde os nags predominavam, segundo Augras (1983) particularmente em Salvador, mais difcil falar em sincretismo, pois se trata de justaposio mais do que fuso. Houve sincretismo do ponto de vista das religies originrias da Costa dos Escravos. Deuses daomeanos foram assimilados s divindades iorubs. As divindades das diversas cidades iorubs misturam-se. O mesmo mito encontrado, com nomes diversos.

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De acordo com Silva (1994), as religies de origem africana eram nomeadas durante o sculo XVIII como calundu, termo de origem banto. Juntamente com batuque ou batucaj, reuniam uma diversidade de ritos, cultos, danas coletivas, cantos e msicas acompanhadas por toques de atabaques e tambores, invocao de espritos, sesses de possesso, prticas divinatrias e cura mgica. O autor afirma que, at o sculo XVIII, os calundus foram uma forma urbana de culto africano relativamente organizado, antecedendo s casas de candombl do sculo XIX e aos atuais terreiros. Silva (op. cit.) afirma que os primeiros calundus eram restritos aos espaos das fazendas. Devido s contingncias da escravido, os rituais eram realizados secretamente nas matas ou nas senzalas. Contudo, o crescimento dos centros urbanos, juntamente com o nmero de libertos e escravos circulando pelas cidades com maior liberdade, favoreceu o desenvolvimento das manifestaes religiosas dos negros. Moradias localizadas em velhos casebres coletivos eram ponto de encontro para a prtica dos cultos. Era comum, naquele perodo, o uso do mesmo espao para moradia e para culto dos deuses, caracterstica que destacou o incio da tradio religiosa afro-brasileira, preservada at os dias atuais pela maioria dos templos de candombl. Santos (2001) esclarece que, no sculo XIX houve implantao, reformulao e transporte de elementos de um complexo africano, que se expressa atualmente atravs de associaes bem organizadas, nas quais so mantidos e renovados os cultos de adorao aos orixs e aos ancestrais, os eguns. As associaes religiosas se instalaram em roas que ocupam um determinado terreno, o terreiro, termo que acabou tornando-se sinnimo de lugar onde se pratica a religio afro-brasileira tradicional e onde se constituem comunidades que apresentam caractersticas especiais. Uma parte dos membros habita o terreiro, formando, s vezes, um bairro, um arraial ou um povoado. Outra parte mora distante, mas freqenta o terreiro com certa regularidade, passando at perodos prolongados dispondo, muitas vezes, da prpria casa. O terreiro ultrapassa os limites materiais dos praticantes. Seus membros tm vnculos com a sociedade global, mas constituem uma comunidade flutuante que se concentra e expressa sua prpria estrutura nesses locais. Segundo Santos (2001), Na dispora, o espao geogrfico da frica genitora e seus contedos culturais foram transferidos e restitudos no terreiro.

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(p.33) As primeiras famlias de santo que se tem notcia, como relata Silva (1994), foram formas de organizao que estruturaram os terreiros de candombl. Negros e mestios se reuniam destitudos de seus grupos de referncia pela escravido e reconstruam seus vnculos baseados em laos de parentesco religioso. Pelas narrativas dos antigos, parecem ter sido africanos de uma mesma etnia que se reuniram e fundaram os primeiros terreiros, onde receberam e iniciaram negros de outras etnias. Com o passar do tempo, com a entrada inclusive de brancos, a caracterstica tnica das famlias foi se perdendo, todos passando a ser ligados por vnculos religiosos. Augras (1983), assinala que a primeira casa de candombl, que se tem notcia foi fundada na primeira metade do sculo XIX. A autora ressalta que elas nasceram em solo urbano. O primeiro grande templo foi fundado no centro de Salvador, ao lado da Igreja da Barroquinha. Silva (op. cit.) faz um relato sobre as mulheres originrias da cidade de Keto, antigas escravas libertas, pertencentes Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, da Igreja da Barroquinha, exclusivamente de mulheres de origem nag, que teriam fundado o terreiro de Candombl chamado Iy Om As Aira Intil. Este, logo depois, tomaria o nome de Il Ax Iy Nass e seria transferido para o subrbio do Engenho Velho, passando a ser conhecido como Casa Branca. As fundadoras eram Iy Det, Iy Kal e Iy Nass. Esse terreiro foi bero de todas as casas mais tradicionais de candombl Keto, formando uma imensa famlia de santo. A proliferao da religio se deu mesmo por volta do final do sculo XIX e no sculo XX se expandiu pelo pas. De acordo com Bastide (2001), os candombls possuem naes diversas e, atravs delas, buscam manter as diferentes tradies: angola, congo, jeje, nag. As distines entre estas naes, conforme este autor, se do tanto pela maneira de tocar os tambores, com as mos ou com varetas, como pelas vestimentas tpicas, pelo tipo das msicas, cnticos, e at mesmo pelos nomes das divindades. No Rio de Janeiro no h registro de candombl antes do sculo XIX, afirma Augras (1983). Os bairros da zona porturia eram pontos de atrao para os africanos recm chegados e tambm para os escravos libertos. O grande nmero de negros oriundos da Bahia contriburam decisivamente para a expanso do

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candombl e do samba na regio chamada Pedra do Sal. O local fica no Morro da Conceio, bem no centro da cidade, importante ncleo de famlias baianas. Augras (op. cit.) ainda indica um movimento de ida e volta para a frica de sacerdotes e sacerdotisas, aprofundando conhecimentos religiosos e trazendo objetos necessrios aos cultos, tambm neste perodo. De acordo com Lody (1987), na relao memria milenar e grandes transformaes, os modelos africanos encontram sustentao na histria oral, forte e predominante em que regras e papis de homens e mulheres so geralmente determinados pelos cargos e funes, que vo do ser agricultor, arteso ou sacerdote a ser um alafim (rei), por exemplo. A produo cultural realiza uma eficaz aliana entre os planos sagrado e humano. Conforme este autor, o candombl uma congregao de sobrevivncias tnicas da frica (p. 8). A palavra candombl originria do termo Kandombile, que significa culto e orao. A religiosidade tem uma centralidade na vida do africano tanto no aspecto material como nos seus mltiplos microssistemas de poder, tanto temporais como religiosos. Uma fora vital transmitida de maneira permanente denominada de ax, seja na cultura material, na msica, na dana, no canto, no gesto, na preparao de alimentos. A energia da natureza e os reis e heris divinizados so os aspectos mais importantes do plano do sagrado, cotidiano na vida dos africanos. A presena destes aspectos est em todos os espaos da vida destes homens e mulheres, tanto na natureza quanto na matria construda, nas atividades ldicas, nos relacionamentos familiares e amorosos, constituindo cultural e religiosamente a essncia destes seres. Os terreiros de candombl tiveram importncia como focos de resistncia cultural, com ativa participao at mesmo como resistncia armada, nas rebelies e nos quilombos, assinala Augras (1983). Carneiro (1991) informa que os negros maometanos, tambm chamados de mals, tiveram importante participao na histria dos africanos no Brasil, pois participavam ativamente das revoltas, levantando armas contra a opresso dos senhores. O autor relata o desaparecimento quase total dos ausss, ou mals, devido reao governamental insurreio dos escravos, liderada por eles na Bahia. Seu culto islamizado no era puro, mas diferenciava-se dos demais existentes na poca. Carneiro (op. cit.) afirma que se caracterizavam por serem

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negros orgulhosos e de poucas palavras. Os candombls se dividiram posteriormente por naes. De acordo com Carneiro (op. cit.), os negros bantos da Bahia parecem ter esquecido os seus prprios orixs, tendo absorvido os do povo nag, criando os candombls de caboclo. S restaram alguns como Zambi e outros poucos originrios de Congo e Angola e a designao calunga. No tendo orixs prprios a adorar, conforme Carneiro (op. cit.), os africanos de origem banto adaptaram s suas prticas religiosas os orixs dos cultos jjes-nags. O autor fala sobre os candombls de caboclo, na Bahia, como resultado da fuso da mitologia dos negros bantos, j sobre influncia forte dos jeje-nags e mals, com a mitologia dos ndios da Amrica portuguesa. Segundo ele, existem diferenas marcantes entre os candombls puramente bantos e os mesclados por influncias amerndias. Lody (1987) alerta sobre a excluso dos bantos, em geral, da prpria literatura, o que inexplicvel dada sua contribuio para a constituio da civilizao brasileira. Alm disso, as poucas referncias so feitas com alguma inferioridade. De acordo com Pereira (2005), a inter-relao de tradies bantos e iorubs gerou um quadro mltiplo para a realidade scio-cultural dos afro-brasileiros, uma vez que atravs do intercmbio de elementos sagrados foram organizadas maneiras prprias de vida e percepo do mundo. Ainda segundo o autor, o modelo iorub sofreu influncia da herana banto na construo de um universo afro-brasileiro, na medida em que se modifica e tambm modificado por ele, expressando a reelaborao de um modelo religioso. Isso pode ser constatado em vrias casas de candombl da regio fluminense, formando as linhas dos candombls Angola. Referindo-se a Pernambuco, Augras (1983) fala sobre inmeras casas de santo denominados de Xangs. Em Recife, o primeiro templo teria surgido no centro da cidade, em meados do sculo XIX, no Ptio do Tero, sendo alvo de perseguies constantes. Augras (op. cit) revela o encontro de uma soluo conciliatria. Para receberem licena da Secretaria de Segurana Pblica os templos foram inscritos no Servio de Higiene Mental da Assistncia aos Psicopatas. Ser enquadrado com psicopata era melhor que ser tratado como marginal. Por volta da segunda dcada do sculo XX, surge a umbanda, perodo este favorvel devido aos modernistas apregoarem o retorno s razes, expresso da

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cultura nacional, e ressaltarem os ndios, os negros e mestios. Neste contexto, Silva (1994) explica que as religies afro tornaram-se contedo indispensvel para a compreenso do processo de construo da cultura popular. Conforme este autor, kardecistas de classe mdia, no Rio de Janeiro, So Paulo e Rio Grande do Sul, passaram a mesclar suas prticas com elementos das tradies religiosas afrobrasileiras, passando a defender publicamente esta mistura, com intuito de que se tornasse reconhecida e aceita com status de nova religio. As origens afrobrasileiras da umbanda, portanto, remontam ao culto s entidades africanas, aos cultos de caboclos, santos do catolicismo popular e influncias do kardecismo europeu. O kardecismo, aponta Silva (op. cit.), uma religio que chegou ao Brasil em meados do sculo XIX. Criado na Frana por Allan Kardec, doutrina filosfica e religiosa, teve pouco sucesso em seu local de origem, mas obteve grande repercusso no Brasil, principalmente entre as famlias da classe mdia. O kardecismo estabelece a presena de um Deus criador e crena na reencarnao. Caracteriza-se ainda por buscar mtodos e explicaes cientficas no entendimento dos fenmenos espirituais. Silva (op. cit.) relata que no se consegue precisar em que momento as entidades dos cultos afro comearam a baixar nas sesses do espiritismo kardecista. Mas ao que tudo indica, praticantes do espiritismo, insatisfeitos com o kardecismo, consideravam os ritos estticos e inspidos e passaram a preferir espritos que encontraram em centros de macumba, considerados por eles mais eficazes na cura e tratamento de doenas. Entretanto, certos aspectos da macumba os incomodavam, tais como sacrifcio de animais, presena de espritos diablicos (exus) e explorao econmica de clientes. Portanto, de acordo com Silva (1994), as caractersticas mais marcantes da umbanda, inicialmente, foram a depurao estabelecida sobre os cultos afro, pois acredita-se que na sua origem, possuam prticas brbaras. As principais entidades da umbanda so: os caboclos, que representam os ndios brasileiros, e os pretos-velhos que representam os negros. Estes revelavam a misso de irmanar todas as raas e classes sociais que formavam o povo brasileiro. Augras (1983) ressalta que, por volta dos anos 30, a umbanda chega o Rio de Janeiro. Na maioria dos casos se tratava de sacerdotes e sacerdotisas que se

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refugiavam de perseguies e fundavam casas nos subrbios da ento capital da repblica. A dcada de 40 marcada pelo aumento significativo de nordestinos na capital, povoando ento a Baixada Fluminense, multiplicando os templos, na sua maioria de umbanda. De acordo com Silva (1994), a umbanda mesclava elementos da cabula, no qual o chefe era chamado de embanda. A cabula tambm possua o cargo de cambone, auxiliar do culto assim como na umbanda. O emba ou pemba, p sagrado utilizado para os rituais na macumba, tambm era encontrado na umbanda. A cabula era culto de forte influncia banto, praticado na regio do Esprito Santo, basicamente por negros, realizado nas florestas secretamente noite. Da macumba, de origem banto e jej nag, herdou orixs, caboclos e santos catlicos. No Rio de Janeiro, os cultos eram divididos em linhas, muito aproximado das prticas da cabula, tambm com culto dos espritos amerndios, os caboclos. Os kardecistas misturaram suas prticas a estas denominadas, na poca, de primitivas. Houve ento um processo de embranquecimento das prticas afro-brasileiras e um enegrecimento das prticas espritas kardecistas. O culto tornou-se mais facilmente aceito por pessoas de classe mais elevada. A umbanda ento, Silva (op. cit.) relata, era tratada como culto religioso intermedirio entre os populares que j existiam. Por um lado, aceitava a concepo do karma dos espritas, da evoluo espiritual, por outro praticava os ritos africanos, porm tornando-os mais aceitveis. Algumas prticas, consideradas brbaras, como sacrifcio de animais, fumo, plvora foram retiradas ou ento explicadas cientificamente, conforme o racionalismo kardecista. A umbanda, de acordo com Silva (op. cit.), embranqueceu os valores religiosos da macumba, os quais eram considerados pelos kardecistas como atrasados e primitivos e, por outro lado, empretecia os valores do kardecismo, considerados europeus demais para a realidade brasileira. Atravs da identificao com os cultos afro os umbandistas tinham como proposta uma religio brasileira, que reconhecesse os anseios das populaes marginalizadas (negros, ndios, estivadores, prostitutas, pobres). A organizao dos terreiros de umbanda se inspiraram nas associaes civis, como ordem scio-religiosa. Os terreiros possuam estatutos que regiam seu funcionamento, definindo cargos e funes. Inspirada nas

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federaes kardecistas, a umbanda tambm criou suas prprias federaes, a primeira foi fundada no Rio de Janeiro em 1939. Trata-se da Unio Esprita da Umbanda do Brasil, principal articuladora do Primeiro Congresso do Espiritismo de Umbanda, ocorrido em 1941, quando as principais diretrizes da religio foram traadas. Os principais objetivos das federaes eram fornecer assistncia jurdica contra a perseguio policial, patrocinar cerimnias religiosas, organizar eventos religiosos, regulamentar as prticas religiosas, atravs de cursos e fiscalizaes. Com o tempo, alguns seguimentos reivindicaram uma maior aproximao com os valores africanos, criticando a umbanda por tornar-se branca demais. Esses dissidentes pertenciam s classes mais baixas. Eram negros e mestios, retomando algumas das prticas consideradas, pelos pioneiros, como primitivas e brutais. Castro (2005 a) explica uma das razes da umbanda ter se expandido mais no Rio de Janeiro do que o candombl. O fato se deu pela umbanda ser considerada uma religio menos trabalhosa, com menos rigores e restries, permitindo aos adeptos uma vida religiosa mais individualizada, com menos interdies. Castro (2005 a) aponta que: A Umbanda no se tornou branca, fez-se mestia. Os pretos velhos lembram o sofrimento da escravido, mas aconselham complacncia, tolerncia e piedade para com os brancos e negros. Os caboclos mostram a fora da natureza indgena brasileira e recuperam o mito da fora e exuberncia do pas. So Cosme e So Damio, brancos, crianas, renasceram sem crueldade, dominncia e usura. A umbanda veio para ser uma religio de conciliao e, assim, mestia como o Rio de Janeiro e o Brasil, traduzir o prprio pas. (p.73) A umbanda, de acordo com Castro (2005 a), deixa de cumprir seu papel de conciliadora e integradora entre as raas quando surgem os exus e pomba-giras. Por se caracterizarem como seres amorais, chamados de povo da rua, tm, em suas histrias, marcas de tragdias humanas nas ruas das cidades, sendo marginais, prostitutas, ladres, assassinos. a incorporao ao rito dos menos desvalidos da populao, os pobres e marginalizados. Augras (1983) ressalta que a umbanda uma religio marcada essencialmente pelo sincretismo, pois as divindades e ritos no somente se

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justapem, como no candombl, mas fundem-se, transformando e reconstruindo um culto no qual santos catlicos, espritos do kardecismo, caboclos, pretos velhos, crianas brancas e figuras marginais, como exus e pomba-giras, convivem e reconstroem todo um universo religioso novo, mais parecido com o que seus adeptos atribuem realidade brasileira. 1.3 - A tradio africana em Minas Gerais e Juiz de Fora Minas Gerais foi, no perodo do sculo XIX, a maior provncia escravista do pas. De acordo com Oliveira (1994), o perodo de maior desenvolvimento do Estado foi referente minerao aurfera, que marcou grande crescimento das cidades no incio do sculo XVIII. Por volta de 1703, conforme Oliveira (1994), foi construda a estrada do Caminho Novo que permitia o escoamento da minerao para o Rio de Janeiro. A estrada passava pela Zona da Mata Mineira, aumentando a circulao de pessoas pela regio. Segundo Guimares e Guimares (2001), por volta de 1709 houve obras de melhoramento na estrada, que passou a permitir o trnsito regular de tropas de animais. As margens do Caminho Novo surge o povoado de Santo Antnio do Paraibuna, em funo das hospedarias e armazns que abrigam tropeiros. Em 1850, surge o municpio de Juiz de Fora. Por volta da segunda metade do sculo XVIII, conforme Guimares e Guimares (op. cit.), a economia mineradora entrou em decadncia transformando a regio de mineradora em agrcola. O Governo do Imprio passou a distribuir terras na regio para pessoas de origem nobre (sesmarias), facilitando o povoamento e a formao de fazendas, como relata Oliveira (1994). A produo de caf, inicialmente de subsistncia, tornou-se economia mercantil, gerando recursos aplicados na expanso cafeeira da Zona da Mata Mineira, entre 1850 a 1870. Com a expanso cafeeira, a rea de Juiz de Fora passou a concentrar, de acordo com Guimares e Guimares (2001), a maioria dos escravos da provncia. Juiz de Fora foi o nico municpio a concentrar, em uma mesma ocasio, 20.000 escravos usados, em sua maioria, em lavouras de caf. Oliveira (1994) afirma ter sido Juiz de Fora a maior cidade escravista de Minas e a maior provncia escravista do pas. Oliveira (1994) informa ainda que em 1860 cerca de 60% da populao da cidade era composta por escravos. Guimares e Guimares (op. cit.) acrescentam que um grande contingente se originou do trfico

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interno, j que o trfico de escravos africanos foi proibido em 1850. Os escravos do municpio vinham em quase sua totalidade das regies mineradoras e do nordeste, onde as lavouras tradicionais entraram em decadncia. Rodeada por fazendas de caf, Juiz de Fora era o escoadouro natural de toda a produo da regio, servindo de grande entreposto comercial, devido, principalmente, s facilidades de comunicao com o Rio de Janeiro. Considerando as dificuldades no escoamento da produo cafeeira e as vantagens da concesso para a construo de uma estrada de rodagem, como as da Europa e dos Estados Unidos, Mariano Procpio Ferreira Lage props ao Imperador D. Pedro II a construo de uma moderna via ligando Minas Gerais ao Rio de Janeiro. Assim, por volta de 1856 chegaram os primeiros alemes. Mo-de-obra especializada, que veio trabalhar na obra, com contrato de dois anos. Eram especialistas em pontes de ferro, mecnicos, carpinteiros, ferreiros, construtores. Embora o governo imperial proibisse a utilizao de escravos em servios pblicos de maior importncia, Guimares e Guimares (op. cit.) relatam que eles trabalharam na Cia. Unio Indstria, juntamente com imigrantes alemes e outros trabalhadores livres. Os escravos eram empregados nos mais diversos tipos de trabalho, de acordo com Guimares e Guimares (op. cit.), tanto nas lavouras como outras atividades tais como: ferreiro, pedreiro, marceneiro, parteiras e tambm servios domsticos. Existiam tambm os escravos de ganho que serviam de gals (servios pblicos prestados por escravos criminosos ou prisioneiros). De acordo com Oliveira (2000), Santo Antnio do Paraibuna possua em 1833/35 uma populao de 1.532 pessoas, das quais 583 eram livres e 949 cativas. J em 1855, com a populao de 6.466 habitantes, a cidade possua 2.441 habitantes livres e 4.025 escravos cativos. Em 1872, tinha 18.775 habitantes, dos quais 11.604 livres e 7.171 escravos. No ltimo perodo, houve uma elevao da populao livre devido ao crescimento das funes urbanas e, tambm, ao surgimento da colnia de imigrantes alemes, destinada a construo da rodovia Unio Indstria, que acrescentou 20% populao original da cidade. Falando sobre o perodo, Oliveira (2000) esclarece que os negros se afirmavam atravs de oposio aos senhores, muitas vezes em fugas individuais, formao de quilombos e resistncia cultural. A sua condio de despossudos era

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amenizada pela preservao de valores e recriao de tradies. Estas aconteciam tanto nos momentos de lazer, com os batuques e capoeiras, como nas prticas religiosas. Porm, na cidade de Juiz de Fora, durante o perodo escravagista, existem verdadeiras lacunas na compreenso das formas de resistncia cultural dos negros. Oliveira (2000) se refere aos muitos cativos com posse de pedaos de terra de seus senhores para o cultivo de roa particular e, tambm, faz observao sobre os que no residiam em senzalas coletivas. Existem registros de que alguns possuam suas moradias individuais, quando casados. Estes fatores demonstram uma elaborao mais estruturada de famlias escravas, marcada tambm por um aumento gradativo de casamentos entre os escravos no perodo do sculo XIX. Com o reflexo do fim do trfico, observa-se uma tendncia, conforme Oliveira (2000), para casamentos endogmicos, ou seja, nativos africanos preferiam se unir a nativos africanos e nascidos no Brasil com nascidos no Brasil. Havia poucos casamentos entre libertos e cativos. O casamento e a formao de uma famlia estvel significava uma moradia individual, acesso a economia prpria em terra cedida dentro da prpria fazenda, venda dos excedentes da produo e recebimento de salrios por tarefas extras. A unio estvel tambm possibilitava a consolidao de laos de parentesco, no necessariamente consangneos, mas estabelecidos por compadrio, partindo das experincias compartilhadas, memrias e valores. Minas Gerais no sofreu grande impacto com a abolio, afirma Oliveira (2000), pois j contava com um grande contingente de ex-escravos, somados aos trabalhadores livres e pobres. A produo agro-exportadora se recuperou rapidamente e houve uma tmida poltica imigratria de 52 mil trabalhadores italianos, em sua maioria. Os fazendeiros davam preferncia para os ex-escravos no plantio das lavouras, o espao para os imigrantes no era grande. A grande maioria dos imigrantes se concentrou, ento, na zona urbana da cidade. Os ex-cativos, porm, sofriam com a represso ao trabalho livre, tendo sua capacidade sempre questionada. Tambm, segundo Oliveira (2000), so encontrados registros de conflitos entre negros e imigrantes. Nos registros criminais, os negros so associados desonestidade e violncia, os imigrantes so tidos como honestos e leais. Como no caso de Juiz de Fora, o impacto da abolio no levou os negros aos centros urbanos, estes ficaram a cargo dos imigrantes. Somente com a decadncia

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das lavouras de caf, no perodo de 1920, que comeam a fluir em direo a cidade em busca de emprego e moradia. No entanto, como este movimento ocorreu tardiamente, os centros urbanos j estavam ocupados pelos imigrantes e no ofereciam mais espao para a mo-de-obra e moradia dos negros. Eles partiram ento em direo s periferias, o que levou a formao de bairros inteiramente de pessoas negras, como o So Benedito (antigo arado) e Dom Bosco (antiga serrinha). Estas regies no possuam a mnima infra-estrutura, como acesso a rede de gua, esgoto, iluminao pblica, etc. Este fator proporcionou uma segmentao racial marcante na cidade. Segundo Oliveira (2000), a identidade tnica constitua as bases para a coeso interna das comunidades negras no perodo do ps-abolio. Na zona rural, o viver em comunidade promovia costumes solidrios de sobrevivncia, tais como a diviso dos alimentos, dos primeiros socorros aos recmchegados, ajuda aos menos favorecidos. Uma famlia negra se apoiava na outra para que pudesse sobreviver. A marginalizao das famlias negras nas periferias e na zona rural viabilizava sua organizao a partir de certas instncias de cultura, como a religio e lazer. Na cidade existia uma espcie de apartheid. A Rua Halfeld, entre a Avenida Rio Branco e a Batista de Oliveira (trecho mais central e comercial at os dias atuais), s era freqentada por brancos. Entre a Batista de Oliveira e a Avenida Getlio Vargas (trecho mais marginal), a passagem era para negros. No que diz respeito especificamente religio, segundo Oliveira (2000), esta apresentava uma outra instncia de legitimao de uma identidade negra e de convivncia social. As diferentes crenas e prticas mgico-religiosas representavam verdadeiros ingredientes da formao comunitria. Os cultos formais, as missas, a adorao aos santos, articulando contedos culturais diversos, sustentavam a vida religiosa dos negros, principalmente nas festas de Santo Antnio, So Pedro e So Joo, quando as comunidade se reuniam e atualizavam seus laos de reciprocidade. As rezas, curas e benzeduras eram entranhadas no universo cultural das populaes. Conforme Oliveira (2000), a f catlica, construda com novos significados, apresenta-se como nica entre os negros naquele perodo, fato que leva ao questionamento de uma presena das religies africanas. Ainda assim as prticas catlicas representavam, conforme a autora, fatores de coeso dos grupos sociais negros, nos quais encontravam sua igualdade e praticavam sua

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liberdade, permitindo o exerccio da sua criatividade, possibilidade de auto-afirmao e de se auto-reconhecerem como sujeitos, construindo sua identidade negra prpria. 1.4 - Os cultos afro-brasileiros em Minas Gerais e Juiz de Fora Uma das presenas religiosas mais marcantes e tradicionalmente

reconhecidas no estado de Minas Gerais so os congados. As manifestaes misturam religiosidade catlica com prticas afro-brasileiras e irmandades do Rosrio e santos pretos. Segundo Pereira (2005), trabalhos realizados por lingistas historiadores e folcloristas identificam forte influncia da etnia banto na regio de Minas Gerais, apesar de alguns pesquisadores darem notcia da presena de iorubs. De acordo com Silva (1994), em Minas Gerais, os primeiros cultos africanos identificados foram os calundus. Estes cultos tinham origem tnica banto. Em perodo posterior, as prticas identificadas so associaes destes cultos ao catolicismo, fato marcado pelos congados e moambiques. O sincretismo foi a forma que o negro encontrou de manter viva sua tradio no espao dominado pelo cristianismo. Sem alternativa, o negro reinventou suas prticas em conjunto com as prticas catlicas. Herana africana e crist foram reelaboradas, novos modelos construdos. Segundo Martins (1982), a congada um ritual de devoo sagrado, embora com aspectos profanos. Os registros mais antigos so de 1705 e 1706, do costume de negros e negras de criarem reis e rainhas, juzes e juzas, por ocasio das festas de Nossa Senhora do Rosrio e So Benedito. A devoo por Nossa Senhora do Rosrio muito antiga. Desde os tempos de 1552, j se tem notcia de negros organizados em confrarias do Rosrio, de acordo com Martins (op. cit). Missionrios franciscanos na frica, antes mesmo do descobrimento do Brasil, confundiram, propositadamente, o orculo de If, com o rosrio, tendo por fim a catequese. A fraternidade de Nossa Senhora do Rosrio e dos santos pretos, entre os quais So Benedito e Santa Efignia, constituda em Minas por oito guardas: candombe, moambique, congo, vilo, marujos, catops, cavaleiros de So Jorge e caboclinhos. Conforme a tradio, partiram do candombe todas as guardas, sendo este o pai de

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todas. O congo a irm mais velha, depois vindo moambique, marujos e as demais. O candombe uma guarda fechada, esotrica. No sai, exceto para tocar e cantar em casa de reis congos, durante grandes ocasies. Ligado a tais guardas, o reinado se sobressai pelo colorido e ostentao. Lembra passagens histricas de Chico Rei e da Rainha Ginga e comunicaes de guerra e paz. Todas as guardas formam a Congada, denominao genrica da grande famlia coreogrfica em torno de Nossa Senhora do Rosrio e dos santos pretos. O ritual das festas comea com o levantamento do mastro, por vezes dois: um no adro da Igreja e outro na casa do festeiro. De manh, a escolta conduz a coroa (reinado) da residncia dos reis ao altar. No trajeto, os versais cantam e danam. Tavares (2003) afirma que a histria da tradio afro-brasileira da Zona da Mata mineira e, particularmente, de Juiz de Fora ainda est por ser contada, pois existem muitas lacunas sobre a verdadeira participao da religiosidade africana na histria e na memria regionais. As poucas informaes registradas em estudos atuais foram obtidas atravs de depoimentos de informantes, colhidos por pesquisadores. Pereira (2005) assinala que a herana religiosa dos bantos encontrou em Minas Gerais solo frtil e entre os afro-descendentes um universo de simbolismos formados pelos valores do catolicismo. Mesmo com a evidente predominncia banto no congado, referncias dos elementos lingsticos e simblicos da cultura iorub tambm so encontrados no espao mtico deste seguimento cultural/religioso. Xang e Nan so citados em repertrios e cantos que realizam uma ligao tnica e religiosa com a Bahia, por exemplo. A importao dos bantos e a sua fixao em Minas Gerais refletem sobre as recentes memrias africanas na populao local. De acordo com Pereira (2005), a ordem familiar entre os bantos se estrutura segundo a lgica de um grupo de parentesco que traa a origem partindo de ancestrais comuns, o que pode ser observado em grupos de candombe, tais como os Arturos (que tm como marco ancestral Artur Camilo Silvrio), Mato do Tio (que tem como ancestral Constantina Augusta dos Santos), dentre outros. Por conta do deslocamento dos bantos de uma regio para outra, criou-se um roteiro segundo o qual seus ancestrais acompanhavam seus descendentes. Como a noo de terra sagrada acompanhava estes ancestrais, terra sagrada era aquela na qual se

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instalavam. Desta maneira, as razes familiares dos bantos no se prendiam a um determinado lugar, mas no grupo de parentesco, nos ancestrais. Pereira (2005) aponta que a necessidade de criar mecanismos de mediao entre Deus e os homens fez com que os grupos, atravs da vivncia religiosa, manifestassem sua considerao pelos antepassados. Para chegar casa de Deus era preciso manter os vnculos de pertencimento entre os vivos e os mortos, uma vez que sem esses vnculos os homens estariam privados da comunicao com Deus e com os seus semelhantes. O monotesmo e a mediao dos ancestrais forneceram aos bantos dados para realizarem leitura da realidade que o trfico escravista os obrigou a conhecer. Por conta disso, estreitavam-se os vnculos entre a experincia histrica e a vivncia religiosa dos que desembarcaram no Brasil. No novo contexto, os bantos tiveram que desvendar um campo religioso no qual se destacavam o catolicismo ibrico, as tradies indgenas e, sobretudo, as tenses resultantes desse contato. Nesse campo religioso, as negociaes entre as diferentes vivncias do sagrado abriram espao para o surgimento de novas configuraes das prticas e dos valores que permitiram ao devoto relacionar-se com as foras divinas. O candombe exemplifica uma dessas configuraes, pois reverencia, simultaneamente, os ancestrais negros e os santos do catolicismo. Alm disso, durante as rodas do candombe canta-se para Calunga e para Nossa Senhora do Rosrio. A invocao de Zambi e Calunga nos cantos registrados em Minas Gerais demonstra o contnuo cultural que espelha as heranas de procedncia banto. Pereira (2005) relata que o universo cultural e religioso relacionado s heranas no estado permitiu que os afrodescendentes mantivessem a percepo de Zambi como fora maior e deus protetor. Segundo Pereira (2005), o congado atualmente constitui uma prtica importante na trajetria histrica dos afrobrasileiros, vinculando-as s experincias da dispora protagonizadas pelos ancestrais e aos esforos de construo de uma sociedade mais democrtica. Apesar da marcante e incontestvel presena dos congados em Minas Gerais, na cidade de Juiz de Fora no existem nem se tem registros de grupos e rituais, apenas da existncia de uma Irmandade de Nossa Senhora do Rosrio. Do perodo escravista, a manifestao religiosa negra tpica registrada na cidade a Irmandade de Nossa Senhora do Rosrio. De acordo com Pereira (2003),

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o fato do catolicismo, no incio da fundao do municpio, ser de origem leiga tem como conseqncia sua base em manifestaes populares, no se diferindo das demais cidades brasileiras. A presena das Irmandades, associaes religiosas nas quais os leigos se reuniam em torno de um santo, era comum. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosrio era somente de negros, libertos e escravos. Seu registro de compromisso data de 22 de abril de 1888, 21 dias antes da abolio. O fator que a diferenciava era a coroao de um rei e de uma rainha, que marcavam o trao africano do movimento. Esta tradio remonta figura de Francisco Natividade, o famoso Chico Rei, de Vila Rica. Alm do compromisso com a Nossa Senhora do Rosrio, os irmos festejavam tambm So Benedito, So Eslebo e Santa Efignia. Esta representou a fase inicial da construo da Igreja de Nossa Senhora do Rosrio, hoje localizada no bairro Granbery, com ativa participao dos membros da irmandade. Aps o processo de romanizao da igreja catlica no ps-abolio, Pereira (2003) revela o desaparecimento da Irmandade do Rosrio e no se encontram mais registros do que teria ocorrido, em seguida, com os seus membros. Aparentemente a centralizao do vaticano a teria enfraquecido por afastar as prticas da religiosidade popular. Fato marcado tambm pelo falecimento do Padre Tiago, (Primeiro padre da cidade, negro, e que defendia as tradies do catolicismo popular) que representa uma ruptura com o catolicismo tradicional. Aps o falecimento do proco, a ao reformadora de Dom Vioso consegue penetrar na cidade, reformando o clero, conforme era o desejo da diocese de Mariana. As Irmandades de Nossa Senhora do Rosrio e dos santos pretos religavam os negros s suas origens de uma forma simblica, diz Pereira (2005). Tinhoro (2000) acrescenta que os negros, no perodo colonial, cultuavam santos com os quais se sentiam semelhantes pela cor tais como So Benedito, So Gonalo, Virgem de Guadalupe, Santa Efignia. A nica exceo era Nossa Senhora do Rosrio. Neste caso a identificao, segundo este autor, reside no fato de o rosrio lembrar o orculo africano de If feito de sementes. Pereira (2005) assinala a coroao de reis e rainhas como identificao de uma ligao histrica dos africanos com as suas regies de origem. Por isso, adquiriu um peso poltico dentro da sociedade escravista brasileira. Os ritos de coroao foram vistos como forma de acirrar rivalidades entre grupos africanos aqui

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instalados. Aos olhos da sociedade escravista, valores ambivalentes aos batuques e coroaes de reis e rainhas desuniam os grupos mantendo vivos seus conflitos. Por outro lado permitiam uma perigosa aproximao de pessoas igualadas pelo sofrimento. O aspecto sagrado da coroao ampliou a sua significao no cenrio social, j que, por sua conta, eram articulados diferentes interesses dos senhores, escravos e devotos. O carter sagrado que cercava a coroao justificava o respeito que os seus sditos lhes dedicavam. Para os negros, que retomavam a linha histrica de sua ancestralidade, a coroao era mais do que uma encenao permitida pelos senhores. A confirmao disso estava no fato de que o ato representou, em diversas localidades, caminho para a obteno da alforria. Em Minas Gerais, essa cerimnia passou a ter um aval das Irmandades de negros, muitas das quais regulamentavam em seus compromissos a eleio e as funes dos reis. Alm disso, o costume de se alforriar o rei eleito anualmente deu grande prestgio instituio do Reinado. De acordo com Pereira (2005), a coroao possua um carter poltico forte, na medida em que ela relembrava esquemas de poder de sociedades africanas dentro do escravismo brasileiro. Para os negros, essa cerimnia possua uma funo simblica, pois reis e rainhas representavam o estabelecimento do grupo familiar ampliado, que se tornava responsvel pela sustentao da memria dos ancestrais. A funo poltica da coroao se revelava quando os negros respondiam ordem social escravista com atitudes que permitiam dialogar com os seus valores sociais, os seus padres estticos e suas experincias afetivas. Estabelecia-se assim, de maneira explcita ou velada, a confrontao entre ordens sociais diferentes, que se exprimiam a partir dos relacionamentos entre brancos e negros, senhores e escravos, dominantes e dominados. Segundo Pereira (2005), as aes dos escravos atribuam expressividade particular s idias liberais, pois as expressavam atravs das heranas culturais de origem africana reelaboradas no Brasil. A coroao de reis e rainhas tinha, na frica, o sentido de preservao de determinada linhagem, possuindo carter conservador, ainda que na aparncia indicasse a dinmica de substituio de um soberano pelo seu sucessor, no contexto do escravismo brasileiro. Pereira (2005) aponta que o aspecto conservador a religao com o mundo dos antepassados, permitindo que os negros mantivessem sua memria poltica, social e afetiva, apesar do processo de

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coisificao estabelecido pelo modelo escravista. O aspecto liberal se exprimiu na forma de escolha dos reis, pois passou a privilegiar pessoas diferentes em diferentes pocas. O trfico havia dispersado famlias inteiras, impossibilitando a manuteno da linhagem nas cerimnias. Os negros tiveram na coroao dos reis e rainhas das Irmandades fonte de formao de uma ideologia, na medida em que o rito sustentava o vnculo afetivo entre as geraes e estabelecia, no sagrado, uma organizao social dos negros no Brasil. Tavares e Floriano (2003), em pesquisa realizada sobre a tradio afrobrasileira em Juiz de Fora, mostram que a memria da tradio afro-brasileira na cidade bastante difusa e pouco conhecida. De acordo com depoimento de informantes, esta tradio acentuada pela antiguidade da umbanda. Alguns a associam a uma continuao de tradies anteriores, como cabula ou canjer. Existem, no entanto, algumas contradies. Para alguns, o canjer seria uma prtica religiosa distinta da umbanda, para outros as razes da Umbanda da cidade esto no canjer. Este seria um nome antigo que a designaria. Tavares e Floriano (op. cit) indicam ter sido sob o nome de canjer, que as prticas denominadas de baixo espiritismo eram identificadas pela elite local. H ainda o fato do nome canjer ter sido utilizado pelo clero catlico e pela polcia da poca, para designar os praticantes da umbanda de forma pejorativa. Tavares e Floriano (2003) ressaltam que o canjer seria a prtica mais antiga, atribuindo Dona Mindoca, sua fundao na cidade. H, contudo, aqueles que dizem que a prtica no centro de Dona Mindoca era umbanda. O canjer teria um altar, como os do culto da jurema, com mesa branca, um jarro com gua, flores brancas, para invocar os espritos. Mesmo no havendo consenso entre o que se praticava no centro, Tavares e Floriano (op. cit.) concordam sobre o carter precursor da mesma. A falecida Amerinda, mais conhecida como Dona Mindoca, era uma mulher branca, nascida em cidade prxima, falecida na dcada de 40. Teria fundado, de acordo com os informantes de Tavares e Floriano (op. cit.), a casa mais antiga de Juiz de Fora , no incio do sculo XX. O seu centro ainda existe e est em funcionamento. Chama a ateno o fato destes informantes identificarem uma mulher branca como precursora das tradies afro-brasileiras num espao, que chegou a abrigar o maior contingente de negros do pas. Porm, como os prprios pesquisadores

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definem, esta questo constitui verdadeira lacuna nos estudos sobre religiosidade do municpio e pauta para estudos futuros. Por volta da dcada de 60, houve uma tentativa de politizao do movimento umbandista na cidade, inspirada no fenmeno identificado no Rio de Janeiro e So Paulo. Este fato ficou marcado com a entrada de lderes umbandistas para a poltica partidria. O movimento foi liderado por Hlio Zanini que, entre 1972 e 1984, elegeu-se vereador por diversas vezes, chegando Presidncia da Cmara Municipal em 1981. Tavares e Floriano (op. cit.) relatam que Zanini realizava reunies no Legislativo com os praticantes do culto interessados na organizao do movimento, o que deu visibilidade a umbanda local. O vereador fornecia alvars de funcionamento para os terreiros at que conseguissem registro definitivo no cartrio de registro civil. Apesar disso, a Federao Umbandista de Juiz de Fora passou a adquirir personalidade jurdica somente em 1979. Atualmente a entidade encontrase desativada. Tavares e Floriano (2003) registram a chegada do candombl a Juiz de Fora no final dos anos 80, atravs da feitura de sacerdotes de umbanda em terreiros da baixada fluminense e em Niteri. Os autores declaram ter sido um processo conturbado. Em primeiro lugar, devido reorientao pessoal de suas trajetrias religiosas e, consequentemente, do perfil estabelecido para os terreiros. Em segundo lugar, pelo fato de a cidade ter pouqussima familiaridade com o candombl, j que os recm iniciados eram de terreiros de umbanda. Todos tentavam estabelecer-se dentro da nova iniciao sem abandonar a antigas prticas umbandistas. Na verdade ainda h uma tentativa de conciliar as duas prticas, inclusive adaptando o seu tempo de feitura no candombl ao seu tempo de iniciao na umbanda. Uma caracterstica ressaltada pelas autoras que os neocandomblecistas no deixaram de ser umbandistas e declaram a umbanda como raiz da sua tradio em Juiz de Fora. Manifestao religiosa do catolicismo popular, alguns autores consideram a folia de reis como uma prtica religiosa de matriz africana. Porto (1982) cita as folias como unio da nostalgia do africano ao apego do portugus s tradies da meptria. Uniu-se o folclore portugus s tradies de origem africana. Segundo o autor, as folias de reis so os cortejos de carter religioso popular que se realizam

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em vrios estados do Brasil entre o Natal e a Festa de Reis, no dia 6 de janeiro, reproduzindo a viagem dos Magos de Belm, para adorar o Menino Jesus. De acordo com a tradio crist, os Magos seriam Gaspar, Belchior e Baltazar, que vieram por inspirao divina, conforme o evangelho de So Mateus, do Oriente at a gruta onde se achava o Menino Jesus, dos fatos bblicos, para ador-lo como Rei dos Judeus e oferecer-lhe, como presentes, ouro, incenso e mirra. A partir das confusas noes os folies compem versos e cantigas e utilizam msicas tradicionais, unindo criatividade e tradio. Porto (op. cit.) indica que a origem da folia de reis no muito especificada e certamente um tanto remota. Ao que tudo indica seria originada nos pases ibricos. O autor descreve que a folia composta daquele que segura a bandeira, o bandeeiro, os palhaos e o coro. Cada grupo tem uma funo e um significado. O bandeeiro carrega respeitosamente a bandeira, apresentando-a ao chefe da casa, onde a folia acaba de chegar, ao receber os donativos oferecidos pela famlia. A bandeira chamada de doutrina e feita de pano brilhante, no qual colada uma estampa dos Reis Magos; ela elemento sagrado da Companhia. Os palhaos geralmente so em nmero de dois, pois so os puxadores das duas alas da folia e tm obrigaes e proibies especficas, com jamais danar diante da bandeira. Eles usam mscaras que podem ser de couro, lata ou pano. A figura do palhao se confunde ora com os reis, ora como soldados do Rei Herodes, diante da perseguio ao Menino Jesus, ou com os pastores. Como podemos perceber, so sempre figuras ambguas. Em algumas folias, a figura do palhao no permitida, sob o argumento de dar carter profano a um ritual sagrado. O coro da folia constitudo quase sempre de seis pessoas, cada um com seu nome especfico, pode ou no tocar instrumentos: o mestre o personagem mais importante. o responsvel por organizar e coordenar todas as fases da folia e improvisar os versos. tratado com respeito por todos, pois o que inicia os mais novos; o contramestre comanda o coro, fazendo a segunda voz; o contrato faz dueto e chamado de respondedor; o taipe faz a terceira voz; o contrate faz o tenor. Requinte ou taurina a voz mais caracterstica de uma folia. Entra em resposta ao ltimo verso da estrofe. uma voz de falsete que se sobressai s demais. As roupas so em geral coloridas. Os palhaos vestem-se de cores mais

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vivas e os demais usam uma espcie de farda, geralmente de trs cores. Os instrumentos so: viola, sanfona, caixa e pandeiro. De modo geral, no se admite mulher na folia, mas podem ser abertas excees. Alguns autores atribuem o carter africano da folia pela representao do Rei Mago Baltazar, do continente. H ainda o mito de que os reis magos se envergonharam de andar em companhia do negro Baltazar e resolveram desfazer-se de sua presena. Acordando bem cedo, seguiram caminho e o deixaram para trs. Quando Baltazar acorda pela manh descobre que foi abandonado pelos companheiros, orou a Deus pedindo orientao e seguiu seu destino. A estrela luminosa o conduziu prontamente gruta de Belm onde se encontrava o Menino Jesus. Ele ento se ajoelhou diante da criana divina. Os outros reis s chegaram mais tarde. Outras folias contam ainda o mito associando o Rei Negro Baltazar ao Rei Congo, preto e de barba espessa. Os outros reis representam Belchior, o Rei Branco, e Gaspar, o Rei Caboclo, indicando assim as principais origens do povo brasileiro. De acordo com Giovaninni (2005), as folias de reis demonstram uma influncia africana j identificada na pennsula ibrica, de onde o autor localiza sua origem. O mito de Belchior, o rei negro que acompanhou a visita ao menino Jesus, no ocorreu somente no Brasil. J existia na Europa. Na zona da mata mineira, conforme este autor, so encontrados alguns grupos onde o predomnio de negros, devotos de Santos Reis. O autor ressalta a necessidade de estudos mais minuciosos que investiguem a questo tnica presente na folia de reis. Em Juiz de Fora, existem muitos grupos de folias que se renem todos os anos em um encontro regional, para realizarem apresentaes pblicas. Tambm com predomnio dos negros. As benzees, assim como as folias de reis, so consideradas manifestaes de origem africana por alguns autores, apesar de serem prticas do catolicismo popular. De acordo com Oliveira (1985), trata-se de uma forma de manter um vnculo com os deuses e com os homens. Tambm uma forma de estabelecer um instrumento de solidariedade entre pessoas de uma mesma classe social. O ato seria uma splica, um pedido aos deuses para que se tornem mais presentes e concretos na vida das pessoas, trazendo benefcios aos mortais. De acordo com Oliveira (1985), a bno fortalece os laos entre as pessoas, exorciza o mal, a dor,

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a aflio e o sofrimento, promovendo a cura. So prticas do catolicismo popular de origem rural, trazidas para as religies populares. As benzedeiras so figuras tradicionais, combinam religio, magia e medicina popular. Originalmente catlicas, elas tm contato com outras religies (kardecismo, pentecostalismo, umbanda, etc.) e recriam os modelos de suas prticas. Oliveira (1985) afirma que as benzedeiras se caracterizam por serem autnomas, sem vnculo especfico com nenhuma instituio religiosa. O aprendizado se d atravs dos familiares geralmente do lado feminino. O modo como uma profissional encaminha a forma de benzer demonstrar a sua formao religiosa, o modo como v o mundo. Cada pessoa, ao benzer, revitaliza smbolos sagrados, reconstrudos e resignificados, permeando a produo social, a vida, e as relaes entre as pessoas. Oliveira (1985) sintetiza a figura da benzedeira como uma cientista popular que atribui a cura por meio da combinao do misticismo religioso com truques de magia e com conhecimentos de medicina popular. A maior parte catlica. Apesar de serem religiosas, nem sempre freqentam as Igrejas. Geralmente so autnomas, no dependem de templos para suas rezas realizadas em suas prprias casas. Quando na cidade, as benzedeiras podem fazer de seu ofcio uma profisso, diferente do que ocorre nas zonas rurais. Em geral, no campo, as benzedeiras vivem num espao de relaes comunitrias e familiares. O espao geogrfico restrito e a relao com a natureza muito forte e prxima. Possuem uma classificao e seleo de plantas, ervas, razes, utilizadas como recursos teraputicos. O seu conhecimento articula smbolos do catolicismo popular, rezas, oraes e prticas cerimoniais. Entre as benzedeiras rurais, h tambm a tradio de se passar o conhecimento s novias. J nas cidades elas passam por transformaes, novos smbolos se acrescem s prticas e rituais, o que pode, segundo Oliveira (1985), resultar num empobrecimento das suas razes culturais. A forma como as benzedeiras recebem o dom pode ser variada. Elas podem atender a um pedido de auxlio para uma situao de desespero ou se deparar com uma doena incurvel, quando recebem uma viso ou ouvem uma voz que as orienta. s vezes recebem o dom de pessoas da famlia. O que marca a benzedeira que ela sempre tem que ser legitimada e reconhecida pela comunidade qual atende, que comprovar sua eficcia.

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Conforme Gomes e Pereira (2004), benzees so um meio de o homem lutar contra suas prprias limitaes. Atravs da palavra, o homem exerce resistncia diante daquilo que no consegue decifrar. A benzeo uma linguagem oro-gestual que permite a algumas pessoas escolhidas manipular foras que contrariam a harmonia da vida. Benzer seria permitir que a vida das pessoas tivesse seu funcionamento dentro do que deve ser, sem interferncias malficas. O benzedor, de acordo com Gomes e Pereira (2004), se destaca no grupo como um agente social, aquele responsvel por manter o equilbrio entre o homem e mundo. Embora possa receitar ervas e chs, seu poder de cura est na palavra. A presena da mulher sempre mais marcante no mundo da religiosidade popular e forte, tambm, a crena no sobrenatural, no mtico e no mstico. Gomes e Pereira (2004) identificam na benzeo trs fatores essenciais: o benzedor, o benzido e a palavra portadora de cura. O fator mais relevante no processo a cura atravs da fora verbal. Mesmo quando so utilizadas rezas e oraes oficiais, como o Pai Nosso, Ave-Maria ou Salve Rainha, a palavra do benzedor tem um poder a mais. Ele sempre complementa a reza com sua fora espiritual, a sua f e, assim, a orao do padre torna-se popular. A orao popular, afirma Gomes e Pereira (2004), ao contrrio da oficial, ocorre geralmente no mbito ldico e aproxima mais intensamente os homens dos deuses. A palavra se impe, sendo manipulada pelos iniciados, de forma a mediar a antiguidade do sagrado e a rapidez do cotidiano. As benzedeiras e benzedeiros iniciados so herdeiros de conhecimentos que s se tornaro teis se pronunciados segundo os critrios e as normas de uma determinada linguagem a linguagem das palavras sagradas ou palavras curativas. Com estas palavras compensam-se as deficincias, superam-se males que afligem os homens (Gomes e Pereira 2004, p. 29). Os benzedeiros acabam por desempenhar um importante papel social na comunidade dos mais desvalidos, j que esta parcela da populao sofre com graves problemas de sade e tem pouco ou nenhum acesso ao atendimento de sade de qualidade. Eles funcionam como elementos curativos, influenciando na ordem social. Gomes e Pereira (2004) relatam que, alm da fora da palavra, que seu principal instrumento, estes profissionais recorrem a elementos da natureza. A gua leva e lava o mal. fonte de vida meio de purificao e regenerao. O mal pode

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ser passado para a gua e/ou purificado por ela. O fogo representa iluminao, purificao e, por irradiar luz e calor, smbolo de fora e poder divino, podendo separar o bem do mal. O fogo possui uma representao negativa por seu carter destrutivo e pode, por isso, significar o mal, mas tambm smbolo de justia que purifica e destri, transformando matria em luz e chama. Queimar destruir o mal. O ar smbolo de espiritualizao, palavra sopro, o hlito ar em movimento, sopro o prprio esprito, sopro divino. O ar intermedirio entre cu e terra. Soprar o outro transmitir-lhe fora vital, significativa nas benzees do ventre virado, por exemplo. A terra oposio ao cu. o princpio passivo. Ela tem caractersticas femininas. matria prima que separa as guas, matria com a qual o criador fez o homem. me, matriz, smbolo de fecundidade de regenerao e tambm o ltimo leito. Atribui-se, por isto, um valor curativo a lama. A vegetao elemento constante nas benzees. Os ramos so usados como corpos intermedirios para a produo de cura. As ervas fornecem energias vitais ao homem, simbolizam desenvolvimento, transformao e, muitas vezes, se prestam a receber sobre si o mal que aflige o doente. Segundo Castro (2005a), a convivncia urbana e domstica entre escravos e senhores criou uma espcie de comunicao religiosa inter-relacional (p. 68). Estas experincias, quando escondidas, permitiam que prticas mgicas e demandas amorosas, de sade e de dinheiro fossem realizadas pelos feiticeiros negros. Estes serviam tanto aos seus pares como aos senhores, receitando ervas curativas, talisms e amuletos. As sinhazinhas tambm procuravam conselhos dos negros para promoverem encantamentos amorosos e de sade, incluindo ervas, ungentos e banhos. Conforme pesquisa realizada por Oliveira (2000) em Juiz de Fora, rezas, curas e benzeduras so muito citadas como prticas religiosas presentes no cotidiano dos negros no pr e ps-abolio. Representavam verdadeiros ingredientes da vida comunitria, entranhando-se no universo cultural das pessoas. Alguns declaram que a rezas eram to fortes que chegavam a libertar imediatamente os escravos do tronco. Outros revelam que quando seus pais saam, na calada da noite, de uma fazenda, as oraes de sua me eram to fortes que teriam silenciado os ces e adormecido os vigias. As prticas mgico-religiosas infiltram-se no cotidiano e reproduzem-se por geraes.

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Neste captulo, podemos observar o quanto de riqueza existe nas tradies afro-brasileiras. Como foi preciso fora e desejo de manter suas razes at os dias atuais. Mesmo influenciada por outras realidades, outras prticas, foi preservada a essncia africana. Demonstramos como as mais importantes prticas se desenvolveram em Minas Gerais e as principais encontradas ainda hoje em algumas regies, mais tradicionais. Com isso, podemos mais claramente, nos prximos captulos, estabelecer relaes entre estas prticas, as condies nas quais se propagaram na regio, as dificuldades que encontraram para se preservar e as estratgias de sobrevivncia que desenvolveram para poderem se manter vivas enquanto herana afro-brasileira de resistncia cultural. Desta maneira poderemos melhor vislumbrar a relao destas religies e prticas religiosas com a teoria das representaes sociais. Esta investiga construes do senso comum no cotidiano, especialmente relacionadas s prticas sociais como as religies, onde so criadas e emergem as representaes. Tambm poderemos melhor perceber a presena da memria social que no mera reproduo do passado, mas est em constante transformao, mantendo somente o que est vivo na conscincia dos membros do grupo. Os europeus tentaram fragilizar e vulnerabilizar os negros atravs de proibio da prtica de suas tradies e separao de grupos tnicos e familiares. Apesar disso, aqui, a memria que trouxeram foi transformada, misturada e recriada. Conforme Bastide (2001), atravs das prticas do candombl nos rituais privados, o negro se sente africano e assim passa a pertencer a um mundo mental diferente, mundo este produzido pela memria e pelas representaes sociais.

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2 - A Teoria das Representaes Sociais e a Memria Social Neste captulo apresentaremos a fundamentao terica a respeito da teoria das Representaes sociais e da Memria Social, a origem, os estudiosos mais importantes e os conceitos principais. Acreditamos que essa teoria tem muito a contribuir para a nossa pesquisa. As questes que pretendemos investigar so alvo mais dos antroplogos e socilogos. De acordo com S, Bello e Jodelet (1998), as religies afro-brasileiras configuram um importante fenmeno psicossocial pouco abordado por psiclogos, pouco dados a pesquisa de objetos exticos localizados, dando preferncia a temas mais universais e modernos. Conforme estes autores, a abordagem da psicologia social nas experincias religiosas compartilhadas se diferencia por abordar aspectos mais contemporneos. Em relao escolha da teoria das representaes sociais, acreditamos que nada mais apropriado do que um estudo das construes do senso comum produzidas no cotidiano, j que nisto poderamos traduzir estas prticas religiosas. Representaes so reinscries de algo. As religies afro-brasileiras so reconstrues de prticas africanas no espao brasileiro. O seu significado para os negros, os descendentes dos africanos que as trouxeram para o pas, seria uma representao social. 2.1 - Sobre o conceito de Representaes Sociais Representaes sociais so o conhecimento produzido no senso comum, a partir de interaes entre membros de grupos sociais. Sua principal finalidade tornar o no familiar em familiar. Uma representao para ser social tem que ser sempre compartilhada. Elas so conceitos dinmicos. Serge Moscovici estava insatisfeito com os rumos da psicologia social norteamericana, que privilegiava aspectos individuais. Ento retomou o conceito de representaes coletivas de Durkheim, no incio dos anos 60, com um grupo de psiclogos sociais. Moscovici e seu grupo se interessavam em estudar representaes na medida em que elas permitiam compreender os problemas da

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cognio e dos grupos, a difuso dos saberes, a relao pensamento/comunicao e a gnese do senso comum. Durkheim (1968 apud Moscovici, 2001) tinha cunhado o conceito de representaes coletivas que ele separa das representaes individuais. Estas ltimas se restringiriam a conscincia individual, seriam consideradas variveis, sendo este conceito impessoal e universal. As representaes coletivas, ao contrrio, seriam referentes a sociedade em sua totalidade. De acordo com o autor, elas seriam homogneas e vividas por todos os membros do grupo, tendo como funo mant-lo unido, preparando-o para ao e pensamento uniforme. Elas seriam mais estveis que as representaes individuais. Para Moscovici (2001), Durkheim restringia o conceito na medida em que argumentava que o social determinava o individual. Para Durkheim (apud Moscovici 1978), a vida social condio de todo pensamento organizado. Segundo ele, as representaes coletivas so uma forma de mito, como os das sociedades primitivas. Os mitos constituiriam, portanto, um referencial para o chamado homem primitivo, seriam a forma como explicariam os fenmenos do seu mundo. A representao social seria para o homem moderno sua forma de compreender o mundo concreto. Durkheim trata as representaes como algo externo, que domina a construo do senso comum. Nas representaes coletivas os indivduos so usurios. Moscovici entende que, nas representaes sociais tanto o pensamento do universo interno quanto externo interagem entre si para formar o senso comum, por isto, diferente das representaes coletivas de Durkheim (apud Moscovici 1978), que so estveis e nas quais os indivduos so determinados, as representaes sociais so dinmicas e os indivduos ativos na sua construo. Enquanto Durkheim afirma que as representaes coletivas so homogneas, Moscovici defende que as representaes sociais so heterogneas na medida em que compreendem a variedade de pensamentos em diferentes grupos sociais. De acordo com Moscovici, no h uma ciso entre o universo do indivduo e o universo exterior. Quando se emite uma opinio sobre um objeto j formamos opinio sobre o mesmo. Para Moscovici (1978), as representaes sociais estabelecem o espao das comunicaes possveis, dos valores ou das idias presentes nas vises

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compartilhadas pelos grupos, conduzem e orientam as condutas desejveis ou admitidas. O autor v as representaes sociais como fenmenos quase tangveis que circulam e cristalizam-se atravs de falas, gestos e outros acontecimentos do universo do cotidiano. Elas se posicionam numa encruzilhada entre o psicolgico e o sociolgico. Moscovici (1981 apud S, 1993) identifica na sociedade dois universos de pensamento. O universo reificado, onde o conhecimento cientfico produzido, no qual circula o grupo de produo do saber - cientistas, jornalistas, onde a cincia e o pensamento erudito dominam. Aqui existe um compromisso com a objetividade, com o rigor metodolgico. J os universos consensuais so o senso comum, domnio dos leigos, dos amadores. No h compromisso com rigor metodolgico. Neste universo so produzidas, na interao do cotidiano, as representaes sociais. no universo consensual que so produzidas as teorias do senso comum. Neste mundo cada indivduo livre para elaborar conceitos, teorias que o auxiliem a melhor compreender os conceitos elaborados no universo reificado. Moscovici (1978) aponta que a representao tem duas faces, indissociveis: face figurativa e face simblica: figura Representao ______________ significao Toda representao faz compreender em toda figura um sentido e em todo o sentido uma figura. A funo de dar ao sentido uma figura, tornar concreto um objeto abstrato, foi denominada de objetivao. J a funo de compreender uma figura por um sentido, interpretar um objeto, foi denominada de ancoragem.

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Moscovici (1978) aponta que a representao tem duas faces: a ancoragem e a objetivao. Ancorar, assinala Moscovici (2003), seria reduzir idias estranhas a categorias comuns, conhecidas, familiares. transformar algo estranho e perturbador e inclu-lo em uma categoria que julgarmos apropriada. Neste processo a neutralidade proibida, pois indispensvel o juzo de valor positivo ou negativo. J objetivar transferir algo que est na mente para o mundo material, traduzir o conceito em uma imagem. Representaes podem ser de trs tipos: hegemnicas, como no caso das representaes coletivas de Durkheim; emancipadas, as criadas por um grupo com tal autonomia que se espalham por outros grupos; e as polmicas, representaes que surgem de conflitos entre grupos opostos. De acordo com Jodelet (2001), precisamos nos manter informados a respeito do mundo que nos cerca, o que nos leva a buscar nos ajustar a ele para sabermos como nos comportar, para, tambm, podermos identificar os