michael fordham - a criança como indivíduo

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PSICOLOGIA JUNGUIANA A CRIANÇA como INDIVÍDUO Michael Fordham o trabalho pioneiro de Michael Fordham acerca dos arquétipos e do seif na infância se estende por mais de cinqüenta anos. Fundamentado em bases empíricas, o autor inspira-se em sua vasta experiência como psicoterapeuta e na aplicação das formulações de Jung à psicologia infantil. Esta foi a primeira obra a apresentar um modelo junguiano de desenvolvimento. Na concepção que Jung tem da mente, é central a idéia de um seif individual -a totalidade de psique e soma. Fordham postulou arrojadamente um seif primário, que precedia o ego na infância. Sua hipótese revelou um potencial de energia que contribui para a formação do ego consciente e dos arquétipos inconscientes, resultando na individuação. Trata-se de um sistema não apenas estrutural, mas também dinâmico. A concepção do seif na infância, proposta por Fordham, foi revolucionária para os junguianos e pioneira no desenvolvimento infantil. Na época, ainda não haviam começado as modernas pesquisas sobre a iruancia. Desde então, o acúmulo de evidências opiciadas por fontes experimentais e analíticas deu mais peso ao conceito de que a dinâmica do seif é uma importante caracte- rística do desenvolvimento. Este livro apresenta várias descrições fascinantes, obtidas da experiência nos estudos de observação de bebês e da prática de Fordham. Mas, além disso, fornece os conceitos básicos nos quais se baseia a pujante abordagem junguiana da ahálise infantil. Trata-se de leitura imprescindível para estudantes e profissionais das áreas de assistência e psicoterapia infantil. ISBN 85-316-0701-9 EDITORA CULTRIX 111111111111111111111111 9"78853 I 6 o7 oI I A CRIANÇA '" INDIVIDUO " Michael Fordham

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  • PSICOLOGIA JUNGUIANA

    A CRIANA como INDIVDUO Michael Fordham

    o trabalho pioneiro de Michael Fordham acerca dos arqutipos e do seif na infncia se estende por mais de cinqenta anos. Fundamentado em bases empricas, o autor inspira-se em sua vasta experincia como psicoterapeuta e na aplicao das formulaes de Jung psicologia infantil. Esta foi a primeira obra a apresentar um modelo junguiano de desenvolvimento.

    Na concepo queJung tem da mente, central aidia de um seif individual - a totalidade de psique e soma. Fordham postulou arrojadamente um seif primrio, que precedia o ego na infncia. Sua hiptese revelou um potencial de energia que contribui para a formao do ego consciente e dos arqutipos inconscientes, resultando na individuao. Trata-se de um sistema no apenas estrutural, mas tambm dinmico.

    A concepo do seif na infncia, proposta por Fordham, foi revolucionria para os junguianos e pioneira no desenvolvimento infantil. Na poca, ainda no haviam comeado as modernas pesquisas sobre a iruancia. Desde ento, o acmulo de evidncias opiciadas por fontes experimentais e analticas deu mais peso

    ao conceito de que a dinmica do seif uma importante caracterstica do desenvolvimento.

    Este livro apresenta vrias descries fascinantes, obtidas da experincia nos estudos de observao de bebs e da prtica de Fordham. Mas, alm disso, fornece os conceitos bsicos nos quais se baseia a pujante abordagem junguiana da ahlise infantil. Trata-se de leitura imprescindvel para estudantes e profissionais das reas de assistncia e psicoterapia infantil.

    ISBN 85-316-0701-9

    EDITORA CULTRIX 111111111111111111111111

    9"78853 I 6 o7 oI I

    A CRIANA

    '" INDIVIDUO

    "

    Michael Fordham

  • "

    1 Anteceden.tes

    Ao longo de toda a sua vida, Jung baseou-se na distino geral entre estruturas conscientes e inconscientes. Ao enumer-las, definiu ,uma nic4 entidade, o ego, para representar o centro da conscincia. J os mai~ ~ !

    obscuros e complexos elementos do inconsciente revelaram-~e inmeros., Seu fascnio por eles era tanto que o fez devotar a se1u es~udo a maior parte de sua vida cientfica. Jung comeou por distinguir gois nveis.,; o pes

    , > soal e o coletivo. O primeiro compunha-se de experincias reprimidas

    , I por serem incompatveis com as convenes sociais o~ morais: elas so essencialmente parte do ego e, assim, podem voltar a ser conscientes se a barreira da represso for removida. O contedo do segundo diferia da~ quele do primeiro no fato de ser essencialmente inconsciente; ele s pode tornar-se parcialmente consciente por meio das imagens do son~o ~ da fantasia, que se desenvolvem medida que o amadurecimento prossegue. Estudando-as, Jung criou a teoria do "inconsciente coletivo", que objetivava explicar a generalidade dos temas que acabou por demonstrar. Alm disso, Jung cunhou uma expresso explicativa, "psique objetiva", para sublinhar no s uma caracterstica da natureza desses temas, como tambm a sua prpria idia de que o "mundo interior" do homem, que eles representam, um objeto de estudo tanto quanto o mundo exterior das coisas materiais e das pessoas.

    No decorrer desse estudo, Jung descobriu que os dados provenientes do inconsciente coletivo poderiam ser agrupados e classificados, inferindo que havia diversos centros ou ncleos que se expressavam repetidamente de modo semelhante e demonstravam objetivos e funes similares. Esses centros foram chamados de arqutipos do inconsciente coletivo, que , portanto, um termo usado para designar a soma total dos arqutipos. Os arqutipos foram por ele descritos como a sombra, o animus e a anima, o velho sbio, a criana etc. Todos eles foram concebidos como "no-ego", sendo-lhes essencialmente impossvel tornar-se completamente conscientes.

  • como Indivduo

    Aqui costuma surgir um problema terminolgico devido tendncia a confundir o arqutipo inconsciente com sua representao no consciente, isto , sua imagem. Apesar das diferentes posturas adotadas nessa questo, neste livro tratarei o arqutipo como uma entidade terica dita inconscier),te e me referirei s imagens que podem ser agrupadas usando-se a teoria dos arqutipos como "arquetpicas", isto , como tendo as caractersticas que a teoria delas requer: assim, o arqutipo da me postulado ,como dando ensejo, quando colocado em relao com uma me real, a imagens que contm caractersticas arquetpicas da.me. Em resumo, usaremos o adjetivo "arquetpico" para distinguir a imagem do arqutipo em si.. '

    A teoria suscitou crticas porque se supunha implicar a herana de idias e imagens, e verdade que na literatura apresentam-se formulaes vulnerveis a esse ataque. O prprio Jung, em resposta, reformulou suas idias de modo a definir o arqutipo como o substrato que usava, por assim dizer, a experincia sensorial de maneiras predeterminadas para produzir imagens tpicas. A meu ver, uma pena que ele nunca tenha esclarecido devidamente suas concluses em escritos sobre a infncia. Suas primeiras idias sobre o tema permaneceram as mesmas no que se refere ao amadurecimento na infncia e natureza dos processos inconscientes nesse perodo da vida do indivduo.

    o MTODO DA PSICOLOGIA ANALTICA Aps definir seu campo de estudo, Jung dedicou-se a descrever detalhadamente o comportamento das imagens arquetpicas. Para tanto, empregou quatro tcnicas destinadas a trazer conscincia o contedo do inconsciente coletivo: associao livre - mas, mais freqentemente, associao controlada -, anlise de sonhos, imaginao ativa e amplificao. Dessas, a primeira bem entendida, e a segunda ser abordada mais detidamente no Captulo 7. Apenas as duas ltimas precisam de apresentao aqui, principalmente levando-se em conta o fato de serem caractersticas da abordagem de )ung.

    Em algum momento do tratamento, o paciente pode tomar-se consciente de processos que talvez perceba apenas vagamente e que tenha dificuldade de expressar por meio da linguagem comum. Quando isso

    Antecedentes 13

    ocorre, deve-se, segundo Jung, incentivar as tendncias presentes no paciente a deixar a imaginao trabalhar por conta prpria, com interferncia mnima do ego. Se o momento escolhido for o correto, segue-se uma fantasia organizada que assume a forma de um sonho, no qual o paciente ento aprende a participar como uma das figuras; dessa forma pode desenvolver-se uma dialtica entre o ego e as imagens arquetpicas denominada imaginao ativa. O processo facilitado pela dana, pela pintura e pela escultura em madeira ou argila,

    Do material produzido individualmente durante a imaginao ativa, )ung extraiu dados estreitamente associados a temas mticos, rituais e prticas mgicas e religiosas. Ali se encontrava uma mina de informaes que lanavam luz sobre as fantasias dos pacientes. Portanto, Jung comeou a comparar as duas coisas.

    s vezes o mtodo comparativo da amplificao que )ung criou parece uma espcie de tour de force intelectual e, de fato, assim pode ser, embora essa no tenha sido a utilizao que ele previa. Em vez disso, Jung concebia esse mtodo como uma extenso do processo natural cuja ocorrncia observava nos pacientes.

    Estudando-se uma srie de sonhos ou fantasias, v-se que os temas se interligam e esclarecem-se - isto , amplificam-se - uns aos outros at chegar ao ncleo central do significado. Um bom exemplo pode ser encontrado na srie de sonhos publicada em Psicologia e alquimia (OC XID: A amplificao intelectual, que se baseia na teoria dos arqutipos, est contida na segunda parte do livro, embora ele tambm tenha feito para,lelos mais breves aos prprios sonhos.

    Durante a terapia analtica, a coleta de paralelismos sempre foi considerada secundria (na minha opinio, ela desnecessria) em relao ao procedimento analtico em si. Contudo, o conhecimento do material simblico cresceu muito com o estudo comparativo dos mitos, ~ as con:

    * Obras completas, Vol. XII, As referncias s obras de lung sero feitas por meio da abreviatura OC seguida do nmero do volume, com as seguintes excees: l- Quando o autor cita obras que foram modificadas por Jung e no se encontram em sua forma original nas OC, ou quando a obra no faz parte das OC, casos em que indicaremos a obra da maneira convenconal. 2- Quando a obra aind no foi traduzida para o portugus, caso em que indicamos a obra por CW (Co//ected Works) seguido do nmero do volume.

  • 14 A Criana como Indivduo .................................................................,., ........................,......... , ............................................,..

    cluses atingidas so usadas pelos analistas em sua interpretao do material dos pacientes.

    Qual ento o valor do mtodo intelectual da amplificao? Ele um mtodo de ensino e pesquisa e, ysando-o dessa forma, Jung formulou diversas teorias sobre os processos evolutivos da civilizao. A mais importante dentre elas foi a tese de que a alquimia foi no s ,uma evoluo compensatria da religio crist, mas tambm a precursora da psicologia do inconsciente e da qumica.

    A INFNCIA Se voltarmos s primeiras obras de Jung, as do perodo em que foi influenciado por Freud e aquelas do perodo do rompimento entre ambos, encontraremos muita coisa sobre a psicologia da infncia. De fato, h aqui uma literatura considervel que foi em grande parte desconsiderada. As publicaes de maior peso foram os estudos de testes de associao, que mostraram pela primeira vez o amplo alcance dos efeitos das identificaes entre pais e filhos e o quanto a vida de uma criana poderia ser, aparentemente, quase que completamente determinada pela natureza de seus pais. Mas, ao lado deles, resumidas nas palestras feitas na C1ark University (1916), Jung apresentou tambm as investigaes sexuais de uma garota, Anna (publicadas em OC XVI\). um texto complementar ao "Little Hans" I"Pequeno Hans", de Freud. Entretanto, Jung deu ateno muito maior s investigaes simblicas que formam a base do desenvolvimento dos processos do pensamento cognitivo. Alm disso, houve tambm uma considerao maior do mundo interior da garota.

    Sua obra Tentativa de Apresentao da Teoria Psicanaltica (publicada em OC IV) resume as divergncias que ele tinha com Freud, mas tambm contm muita coisa ainda hoje interessante para o estudo do desenvolvimento infantil. Porm ele estava sendo to atacado pelos psicanalistas da poca (1913) que o valor dessa obra ficou obscurecido. Ela contm idias ento novas que hoje, se no estabelecidas, j no so objeto de polmica to acirrada (Cf. Abraham 1914l. Sua nfase na importncia de separar a sexualidade infantil de sua forma adulta e o instinto da nutrio do instinto sexual j no causam muito alvoroo, principalmente depois da nfase dada voracidade e agressividade em conjun

    Antecedentes t 5

    -o com a sexualidade na vida do beb, em especial por parte de KJein. aS firmao de que a situao edipiana um mito - no no sentido de ua a , . . irreal mas sim no de possuir natureza arquetlplca e, portanto, ser me-ser , , . .

    rente ao desenvolvimento sadio da criana - so depoIs de mUIto repudiada foi aceita pelos psicanalistas.

    Vale a pena lembrar, tambm, que no livro Psychology ofthe Unconsdous (Jung 1991) ele frisou a inevitabilidade da fantasia da me dual, to importante na obra de Klein, e situou os conflitos edipianos em relao dade me-filho que, alm de anteceder, est por trs das situaes triangulares s quais Freud deu importncia capital. Nessa obra ele desenvolve ainda uma teoria de grande alcance, apesar de muito negligenciada, sobre a importncia do ritmo na transformao das pulses instintivas primitivas em atividades culturais.

    No pode ser essa parte inicial de sua obra - que ele jamais repudiou o que o distanciou da anlise infantil. Tampouco, penso eu, ter sido a sua demonstrao experimental dos processos de identificao (OC IV). Antes, foi a concluso de que se tanto do que anteriormente se imaginava ser ambiental era realmente inato, se o tema da me dual e o conflito edipiano eram parte do desenvolvimento sadio, por que desencav-los? No so acaso as contnuas "tarefas da vida" que a criana tem diante de si o que merece mais ateno? Seu raciocnio foi o de que seria melhor propiciar um bom ambiente para a criana, evitando o estmulo de processos regressivos. Levada a extremos, essa teoria da continuidade, apesar de til, no proce'de quando aplicada psicopatologia infantil, pois no so apenas os pais que contribuem para ela.

    Apesar de no exclurem a anlise de crianas, suas palestras posteriores sobre a educao (OC XVI\) restringem o escopo da psicopatologia infantil e colocam muito mais nfase na influncia dos' pais. Quase

    ~o h nada de novo sobre a psicologia infantil na obra publicada poste7 normente, embora ele tenha apresentado uma contribuio interessante sobre as crianas dotadas (em OC XVII). No entanto, a importncia da

    fix~o no desenvolvimento das neuroses e psicoses de fato no pode ser delx~da. de lado: Jung no a ignorou completamente, mas sua teoria da contInUIdade era inspirada em seu trabalho sobre a individuao humana em adultos, e isso desviou-lhe a ateno da anlise infantil. .

    . Porm, tomando-se a obra de Jung como um todo, h pouca justificatIva para a idia de que a psicopatologia seja apenas o resultado da in

  • t 6 A Criana como Indivduo

    trojeo ou idl;ntificao da criana com os processos inconscientes menos desejveis dos pais. Ao mesmo tempo, quando inicialmente desenvolvida - e Jung no foi o nico a adotar esta posio-, a tese sobre a geralmente decisiva importncia dos pais foi relevante e necessria. Aps cair, com razo, em um certo ostracismo porque erroneamente se tomou um dogma que nega s crianas a possibilidade de individualidade, ela vem sendo ultimamente recuperada: a importncia da patologia dos pais na interferncia, perversoolJ obstruo dos processos contnuos de amadurecimento" dos filhos vem obtendo um reconhecimento cada vez maior e mais equilibrado.

    A meu ver, Jung certamente acreditou, sem deixar que suas idias sobre esses problemas se cristalizassem, que no valia a pena investigar a infncia antes que seu trabalho sobre a vida adulta obtivesse o progresso e o reconhecimento que merecia. Entretanto, sempre foi bvio que, a menos que o conceito'de arqutipo pudesse ser aplicado infncia, sua teoria era vulnervel a crticas prejudiciais. Portanto, no de surpreender que anos depois ele resolvesse enfrentar o desafio - que a primeira edio da presente obra tambm visava -, aplicando a tcnica da amplificao aos sonhos infantis. Os resultados que obteve foram coligidos em vrios relatrios de seminrios, mas suas idias jamais chegaram a ser formalmente publicadas.

    Entre os analistas junguianos pioneiros, s Frances Wickes trabalhou de modo mais sistemtico com crianas. Seu livro, The lnner Warld af Chldhaad (1966), um desdobramento fiel e esclarecedor do que Jung havia sugerido. A ela deve-se o crdito por haver feito a primeira aplicao da teoria dos tipos s crianas e por haver concebido alguns mtodos engenhosos de lidar com seus processos afetivos primitivos. Talvez ainda mais importante seja seu sucesso na divulgao da idia de que por meio de identificaes inconscientes que as influncias dos pais produzem anormalidades no desenvolvimento infantil. Apesar de necessria na poca em que foi escrita, a concluso de que os pais deveriam preocupar-se com sua prpria sade mental se quisessem proporcionar um bom ambiente para seus filhos hoje parece banal. Porm Wickes, seguindo Jung. contribuiu significativame~te para refinar um conceito que costuma aproveitar-se muito do preconceito.

    Em seu trabalho, Wickes ope-se investigao de processos inconscientes em crianas, e essa tese ainda influencia muitos analistas

    Antecedentes t 7

    uianos que desconsideram que, apesar de no querer aplicar teorias ~nfncia, Wickes estava dominada por crenas tericas j sem validade acerca das vises especulativas de Jung sobre a natureza das estruturas herdadas em crianas, como as seguintes: "No ['estado infantil germinaI'] esto escondidos no s os incios da vida adulta, como tambm toda a herana que nos vem da srie dos ancestrais, e de extenso ilimitada" (OC 8, parg. 97).

    Por mais fascinantes que sejam tais idias- e aqui deve ficar claro que Jung posteriormente as modificou -, so escassas as provas em seu favor, e as que existem prestam-se a outra interpretao, mais acei~ tveI. Seja como for, Wickes era dotada de uma fina intuio, o que torna permanente o interesse dos dados que ela coletou, por mais que sua ateno aos detalhes possa ter sido pouca. Graas a esse dom, el acaba omitindo dados, aparentemente to nfimos, que so essenciais para suas observaes serem corretamente avaliadas luz do conheci~ mento atual. Sua recorrente referncia a "a criana", particularmente, tomou-se genrica demais para ter grande utilidade. Alm disso, as idades das crianas s quais ela se refere, embora extremamente necessrias, so muitas vezes omitidas, e as partes relevantes de seus histricos no esto disponveis.

    o OBJETIVO DO DESENVOLVIMENTO Um elemento essencial no trabalho de Jung era a importncia do desenvolvimento. Assim, ele frisa que o objetivo do desenvolvimento de uma criana atingir a maturidade. Para isso, ela precisa fortalecer seu ego de modo a poder controlar seu mundo interior e exterior: Alm disso, ela deve aceitar padres coletivos; s vezes, ao que parece, independentemente das conseqncias que possa sofrer. Na verdade, resta saber se isso resulta num verdadeiro desenvolvimento e - j que estarei considerando o amadurecimento infantil sob luz diferente e relacionando-o a processos favorecedores da individuao que usam concepes provenientes de Jung - talvez seja necessrio considerar brevemente como ele concebia a relao entre a individuao e a adaptao coletiva. '

    Jung (OC VD comparava os objetivos coletivos individuao da seguinte forma:

  • Antecedentes 19

    A individuao, em geral, o processo de formao e particularizao do ser individual e, em especial, o desenvolvimento do indivduo psicolgico como ser distinto do conjunto, da psicologia coletiva. L) Antes de tom-Ia como objetivo, preciso que tenha sido alcanada a. finalidade educativa de adaptao ao mnimo necessrio de normas coletivas CJ parg. 853 e ss.

    De acordo com a tendncia principal dentro da obra de Jung e dentro do contexto de seus estudos analticos, a individuao concebida na maioria das vezeS C01"'('lO tendo incio em pessoas que se aproximam da meia-idade; ento,asptojees da psique coletiva no mundo devem ser retiradas para poder ser consideradas em relao ao indivduo, e no simplesmente aceitasporque so"Q que todo mundo faz, pensa e sente". Segundo Jung, a criana, ao .contrrio, precisa deixar projetada no mundo uma grande parte de sua psique e adaptar-se "ao mnimo necessrio de normas coletivas", c;lentro do qual possa desenvolver sua vida pessoal. Da que isso ganha ainda maior importncia para ela porque, alm de no precisar pensar muito no que geralmente aceito, no pode exercer influncia sobre as idias sociais, polticas e religiosas vigentes. Mas, medida que amadurecem, as crianas adotam idias heterodoxas sobre essas questes, geralmente como parte de sua rebeldia contra os pontos de vista correntes, sobre os quais se expressam com considervel segurana. Assim, tendem a adotar uma posio unilateral.ou coletiva, em contra-posio a uma posio individual.' .

    Segundo Jung, a individuao requer ainda que o sujeito se liberte dos opostos mediante uma soluo irracional ou simblica; para isso, os opostos precisam ganhar igualdade total.

    Havendo, no entanto, plena igualdade e equivalncia dos opostos, comprovadas pela participao incondicional do eu na tese e na anttese, produz-se uma suspenso da vontade, pois j no possvel querer porque todo motivo tem a seu lado um contra motivo igualmente forte. Mas como a vida no tolera suspenso, surge um represamento da energia vital que levaria a uma situao insuportvel se da tenso dos opostos no surgisse nova funo unificadora que ultrapassa os opostos. (OC VI, parg. 913)

    . a individuao concebida como abarcando uma meta ASSlm, . d 'd' A' , da infncia, quando o fortaleCImento o ego e e Importancla

    oposta a ' . d " . I eta da individuao surge, pelo contrano, apenas .quan o pro-Vlta; a m " duz-se uma suspenso da vontade. .... _, _. . Conforme essa teoria, para que hala IOdlvlduaao e necessano pnmeiro haver relao com os arqutipos, que contm a possibilidade. de ma soluo simblica para o conflito de opostos, mas - embora o pro

    u sso seja muito semelhante ao que h na infncia - o objetivo conce" ~~dO como inteiramente distinto. Assim, a relao com os arqutipos s se estabelece quando a individuao a meta consciente de um homem ou mulher adultos, ao passo que uma criana simplesmente no pode deixar de estar em contato com formas e processos arquetpicos.

    Os problemas infantis - que esto estreitamente vinculados ao amadurecimento do ego e, na opinio de Jung, podem levar predominncia deste - tambm foram vistos em termos de tipos psicolgicos. Jung distinguia dois tipos de atitude, a extrovertida e a introvertida, e quatro tipos de funo: duas racionais (pensamento e sentimento) e duas 'irracionais (sensao e intuio). Uma determinada pessoa pertence a um tipo quando se adapta melhor a uma determinada atitude e funo. Isso no quer dizer que as demais atitudes e funes estejam se~pre ausentes; elas so simplesmente inferiores, latentes ou reprimidas - muitas vezes isso no fica claro. Pensava-se que o problema .da criana era determinar qual a sua melhor atitude e funo. Desse modo, ela teria apoio para seu status inferior e poderia sentir-se cada vez mais eficiente e supos~mente autoconfiante. O jovem pode ento delegar, por meio da projeao, as demais funes a outras pessoas; quando ele se apaixona, por

    ex~mplo, a mulher em geral detm a projeo de seu lado inferior,.ou anr~a: e da resulta um relacionamento til tanto do ponto de vista psicologlCo quanto do biolgico. A razo pela qual a criana precisa desenvol-:er sua funo superior e valer-se dela que a inferior contradiz a supen?r: a introverso contradiz a extroverso, o pensamento contradiz o sentImento . ._. e a tntUlaO contradiz a sensao. Se ela aceitar todas, se vera dlant~ do problema dos opostos, entre os quais se espera que oscile e dos quaIs precisa libertar-se. Nisso est a razo para as crianas buscarem figuras ideais, como o heri que luta contra o seu oposto. d !'preSentei de forma bastante detalhada o contraste entre a indiviuaao e o crescimento do ego porque era essa oposio que imperava

    -L

  • 20 A Criana como Indivduo

    quando escrevi o texto da primeira edio deste livro, A grandiosidade e ' , , A' I d 'd' 'dI I I . a tn IVIo a cance, oe emento re Igloso e a Importancla socla uao

    .

    eram de tnteresse central. A definio de individuao em Tipos psicolgicos d margem, po

    rm, a uma viso diferente. Jung diz que "a individuao coincide com o desenvolvimento da conscincia que sai de um estado primitivo de identi~a.d:. (OC :'1, ?~rg. ~56) e, alhures, como explic~ Jacobi, ele d margem a Idela de tndlvlduaao como um processo contmuo ao longo de toda uma vida, Diversos junguianos tentaram dar conta dessa brecha, que jamais foi detalhadamente explicada at lacobi empreender essa tarefa no livro The Way of Individuation (1967>. A ela, portanto, deve-se dar o crdito pela fundao dessa linha de pensamento.

    Seja como for, lastimo no poder aceitar nem a sua formulao nem outras menos completas, Todas recorrem a concepes como a de que a individuao um "instinto" ou implicam uma teleologia de longo alcance que foi h muito abolida pela biologia, a meu ver, com justa razo. Alm disso, Jacobi especialmente afirma,se que a compreendi bem, que os objetivos biolgicos e adaptativos da juventude e que o desenvolvimento do ego so partes de - embora apenas preliminares a um desenvolvimento necessrio aos processos, geralmente chamados de individuao, de amadurecimento na segunda metade da vida.

    Essa concepo tem seguinte dificuldade: o aumento da adaptao a exigncias sociais no pode ser parte da individuao se o distanciamento de exigncias sociais uma caracterstica central da individuao. No sou avesso nem ao paradoxo nem contradio quando eles recobrem dados simblicos que no podem ser abstrados sem perda. Todavia, a individuao , a meu ver, um conceito capital relacionado a processos definveis e no um smbolo; portanto, o paradoxo no nem justificveJ nem, creio eu, necessrio. Neste livro demonstrarei - espero que definitivamente - que os processos de individuao esto em ao na primeira infncia e na infncia e que so uma caracterstica essencial do amadurecimento.

    Ao propor-me mostrar isso, farei uso dos conceitos de Jung, apesar de suas formulaes no serem coerentes (Cf. Fordham 1985b). Por um lado, ele definiu o selfcomo a totalidade da psique, abarcando o ego e os arqutipos, concepo que significa que essas estruturas so as partes do todo. Por outro lado, ele pensou o selfcomo uma entidade que organiza

    Antecedentes 2 t

    rtes e sobreordenado ou transcendente em relao a elas todas as pa ~ ~ d d'f' 'I 'I' ~

    'd d a' parte As duas concepoes sao e I ICI concl laa0. uma entl a e , ~.OI nto s manifestaes do self, Jung e coerente: elas.sao essenclal~~blicas e representam opostos. Assim, torna-se difcil desenvolment~~ teoria satisfatria do self porque qualquer afirmao a respeito ~e~ u ode ser contradita - ao menos, essa a noo de sua natureza sim-b~I~C~ conforme comumente interpretada. Da_de~orre ~ afirmao d~, ue o self um supremo mistrio e, por isso, nao e. precIso tentar elucl-'

    d-lO. Ao relacionar o self tanto emprica quanto teoricamente expe-' rincia religiosa - e, em particular, ao conhecimento de Deus -, lung certamente colocou o selfem relao com a especulao teolgica acerca.da realidade suprema, No tentarei de forma alguma considerar esse specto de seu trabalho: ele quase completamente irrelevante aos processos de amadurecimento na infncia, alm do que algo que pertence seara da filosofia e da teologia, de qualquer forma. H muitos aspectos do self que conhecemos pouco ou nada e sua natureza j obscura o suficiente sem hipostasiar a aura de mistrio - que deve, a meu ver, funcionar mais como estmulo investigao do que como um fim em si.

    No se pode negar que a concepo de self como mistrio supremo no est de acordo com a idia de que sua percepo seja o objetivo da individuao, pois, para ser percebido, ele deve ser cognoscvel; mas muitas vezes se afirma que sua percepo requer a intuio de seu mistrio.

    Foi num momento posterior que Jung desenvolveu uma idia dife" rente: o self era um organizador, o arqutipo central. conceito revisado cobria muito bem alguns de seus dados, mas obviamente. modificava ou mesmo abolia o conceito de totalidade, j que o self cpncebido como uma de suas partes. Do meu ponto de vista, a contradio pode ser resolvida reconhecendo-se que dois nveis de abstrao esto envolvidos:

  • 22 A Criano como Indivduo

    como tambm a importncia dos pais diante do desenvolvimento e psicopatologia infantis. As imagens simblicas e o mundo interior a que Jung deu tanta nfase (embora em parte para compen~ar sua freqente negao) tambm encontraro lugar de destaque.

    Dei muita importncia ao self definido como a totalidade organizada dos sistemas consciente e inconsciente. Aconcepo aplicada criana trata-a. como uma entidade em si mesma, da qual se podem derivar os. processos maturativos. Ela no inclui me nem famlia. A significao do postulado de uma unidade primria ficar evidente, mas talvez se possa dizer desde j que ela concebida como a base sobre a qual repousa a noo de identidade pessoal e da qual procede a individuao.

    A partir da, o objetivo ideal dos pais pode ser definido como o de fomentar o amadurecimento do selfe, assim, facilitar a sensao de autoconfiana da criari em relao a eles, a seus irmos e ao ambiente extrafamiliar, no qual ela progressivamente se ir engajando com o passar do tempo.

    At agora, nada falei a respeito dos vrios psicanalistas a quem farei referncia nos captulos subseqentes. exceo, naturalmente, Freud, eles no antecederam meus prprios esforos no mesmo sentido que o trabalho de Jung e Wickes, pois eu no estava trabalhando com teorias psicanalticas, antes de mais nada, nem tivera nenhum treinamento formal em psicanlise:

    Entretanto, nos primeiros anos o pioneirismo de Klein na psicanlise infantil foi para mim um estmulo especial; suas tcnicas ldicas, que revolucionaram a psicoterapia infantil na Gr-Bretanha, foram particularmente importantes. Alm disso, muitas de suas formulaes tericas pareceram-me, j em 1935,compatveis.com.asidias de Jung. Seu conceito de fantasia inconsciente e de objetos bons e maus, por exemplo, parecia destinado a ser incorporado na teoria dos arqutipos e dos opostos. Alm disso, algumas das situaes conflituosas iniciais - como a violncia dos ataques agressivos do beb ao corpo da me - eram, a meu ver, anlogas ao tema mitolgico do heri em luta contra. os monstros, conforme observei em 1944 na primeira edio deste livro. Tambm passei a aceitar a importncia da posio depressiva.

    O fato de outros psicanalistas. - ao que tudo indica, independentemente - terem adotado conceitos do seI{ e suas representaes em seu raciocnio conceptual e de.a individuao haver sido aceita como uma

    LlIIIIII

    Antecedentes 23

    caracterstica do amadurecimento (Cf. Mahler et aI. 1977) no poderia deixar de ter muito interesse para mim. Contudo, talvez seja muito vlida uma observao sobre o frutfero dilogo entre as escolas da psicologia analtica e da psicanlise que vem ocorrendo ao longo dos anos em Londres. Ele contribuiu muito para o meu trabalho e o de outros membros da London Society of Analytical Psychology. Esse dilogo, porm, no poderia haver ocorrido sem o contnuo estudo da obra de Jung nem a correspondncia e a discusso com ele e com a Sra. Jung at omomento da morte deles. Isso propiciou-me uma base segura de onde partir para novos campos de investigao.

  • 2 Brincar

    Embora no seja a primeira, o brincar constitui uma das atividades ciais dos bebs. Assim que o seio se toma um objeto e o levar algo boca se toma um prazer alm do simples sugar, comea o ato de brincar com o mamilo e outras partes do corpo da me. Ele continua quando o seio no est disponvel e quando a fome e a sede esto satisfeitas, no exerccio dos msculos, no gorgolejar, na emisso de sons etc.

    Dada a segurana fornecida, em primeiro lugar, pelo acolhimento da me e outras formas menos diretas de cuidado (por exemplo, um bero ou cercado), outros objetos podem ser explorados, assim como o mamilo e o seio. Gradualmente, o rosto, a boca, o cabelo da me bem como partes do corpo da prpria criana, seus dedos, excrementos e rgos genitais - so includos na brincadeira exploratria. Posteriormente, esse processo toma-se parte de um mtodo no qual o beb desenvolve sua relao consigo mesmo e com o mundo exterior, tambm participando da organizao da atividade imaginativa acarretada por processos que tm lugar no self

    Relacionado com o corpo, o brincar constitui uma das atividades ciais do ego que acontece pela primeira vez quando o beb est num estado prximo integrao. Supondo que no ato de brincar o ego do beb esteja perto do sei!, pode-se esperar que o brincar forme representaes do self Dito de outra maneira, no brincar precoce o beb est dando um primeiro passo no sentido de deixar de ser um sei! para encontrar a si mesmo.

    De especial interesse so os fenmenos transicionais, cuja investigao devemos a Winnicott (1967 e 2000). Eles sero discutidos em maior detalhe posteriormente. Por enquanto, diga-se apenas que, logo no incio da vida, o beb se ocupa de partes de objetos concretos ou outros objetos primitivos que no vm a representar nem seu mundo "interior" nem uma parte da me, que representa o mundo "exterior". Considera-se, assim, que os fenmenos transicionais ocupam um lugar entre os mundos

    Brincor 25

    . . e exterior do beb em crescimento. medida que o desenvolvitntenor d . d b b~'d .egue o ob,'eto adquire do ponto e vIsta o e e, VI a e VImen o t pross ' , ' . 'talidade prprias, mas seu conteudo ~radualmente se vaI torn~ndo dIfu-SO at tomar-se "CJ no tanto esquecIdo quanto relegado ao hmbo , .." . Ele perde a energia que contm pois, como afirma Winnicott, os fenmenos transicionais tomam-se difusos, espalhados ao longo de todo o territrio intermedirio que existe entre a "realidade psquica interior" e o "mundo exterior conforme percebido por duas pessoas" (2000 p. 33\). Assim, ele o precursor do elemento significativo na brincadeira com muitos objetos, mas tambm pode tomar-se uma fantasia, uma imagem ou um pensamento (p. 157 abaixol, e estes, se Winnicott estiver certo, esto na origem da vida cultural. Essa opinio tem seus prprios percursores, pois Harrison afirma (1927, p. 17, nota 4) que "originalmente os brinquedos infantis prestavam-se a muito mais que meras brincadeiras. Eles eram amuletos indutores do bem, profilticos contra as influncias malficas". Porm, por mais atraente que seja, a idia carece de suficiente comprovao.

    Quando se amplia o conceito, comum observar que as crianas tratam certos objetos como essenciais ao seu bem-estar: eles passam a ser dotados de significado e no so retirados sem objees veementes. So eles os brinquedos em geral as bonecas com enchimento, ursinhos de pelcia e similares - que as crianas levam para toda parte, com os quais querem donnir ou consideram especiais e preferem acima de todos os outros. Alm de especiais, outra caracterstica desses objetos a sua"objetividade". A criana pode referir-se a eventos de seu mundo exterior ou interior, s vezes de modo muito claro mas mesmo assim a brincadeira em si considerada como resuitante da 'difuso, uma atividade "objetiva".

    No meu objetivo, nem no que foi exposto anteriormente nem no.qu~ direi a seguir, desenvolver uma teoria geral do brincar. Antes, quero mdlcar as caractersticas que podem ser teis a um clnico oua algum que trabalhe com crianas. Vale a pena considerar os seguintes traos durante a psicoterapia:

    I. Graas s reduzidas dimenses dos brinquedos, a criana tem dentro dos limites impostos pela natureza do brinquedo - controle total sobre o brincar. Por isso h ampla margem para expressar e gozar valiosas sensaes de onipotncia, especialmen

  • 26 A Criana como Indivduo ............ ,.......

    te quando se trata do brincar criativo com os materiais primrios (gua, areia, argila), da pintura e do desenho.

    2. O brincar onipotente pode ser auto-ertico e, nesse caso, levada a cabo na solido: ele tem suas prprias recompensas, e a criana no precisa de. mais ningum para apreciar o que est sendo feito. Esse brincar tambm pode ser criativo: onde muitas vezes se encontram smbolos.

    3. Porm a brincadeira criativa normalmente requer que outras pessoas - em especial os pais - a apreciem. Se isso no acontecer, a criana pode ficar triste ou at deprimida, zangada ou desesperada.

    4. Da decorre que a brincadeira um veculo para a comunicao significativa, um elemento que se revela especialmente til ao analista. Em vez de falar, a criana ir brincar, exprimindo seus amores e dios, medos e esperanas, s vezes de forma transparente, mas, .em geral, de modo indireto.

    5. Como parte desse elemento comunicativo, outras pessoas podem entrar no jogo por meio da representao de papis. No incio essa atividade autocentrada, isto , a criana quer que o outro desempenhe um papel que representa uma parte do self Depois, possvel um intercmbio de papis e o estabelecimento de concesses. Num momento posterior, podem ter incio os jogos organizados que se tornaro aqueles de incrvel complexidade da vida adulta: ento a brincadeira se ter tornado social.

    Os exemplos seguintes ilustram essas caractersticas do brincar - embora sua criatividade s venha a ser abordada no Captulo 4 - e foram selecionados com o intuito de mostrar diferentes graus de organizao em duas faixas etrias.

    Brincar' 27

    CASO t - A INVEJA E O CiME INFANTIS

    loyce, de 6 anos, tinha medo do escuro e fobia da escola.

    Primeira entrevista.: .' . Ela arecia ser uma garotinha ativa, cheia de VivaCidade e de uma energia ~ue ela s vezes achava di~cil ou impossvel - controlar. Quando isso acontecia, Joyce ficava ansiosa. .

    Brincadeira: Ela comeou a brincar com duas bonecas, uma preta e uma branca. A boneca preta era "m", levou muita palmada no "traseiro" e depois foi mandada para a cama. Posteriormente, essa boneca ganhou boas roupas e, no fim, Joyce a aceitou um pouco melhor. A outra boneca, chamada de "nen", era boa e muito querida. Certa vez, quando ambas as crianas estavam deitadas na cama, Joyce descobriu que os olhos do beb bom no fechavam. A princpio, ele"no podia dormir". Depois, ele aparentemente no queria dormir, dando ensejo a uma discusso no muito grave em que o "beb bom" foi chamado de "malcriado".

    Nesse jogo, Joyce brincava de ser me, pondo e tirando roupas, batendo numa filha, agradando a outra e pondo ambas para dormir: esse o brincar normal. Aos 6 anos, espera-se que a menina tenha identificao com a me, uma identificao que geralmente faz parte de seu conflito edipiano. O fato de cada boneca desenvolver como parte de si um germe da qualidade oposta mostra que a criana est perto da brincadeira do objeto total: a "filha m" ganha boas roupas - provavelmente uma recompensa por haver sido boa -, apesar de no se verificar nenhuma verdadeira mudana em sua natureza conforme demonstrou-se na continuao da brincadeira; a filha "boa" ~em em si um pouo de "maldade", na forma da inteno deliberada de no fechar os olhos e dormir.

    No conjunto, no brincar de loyce predominavam atos punitivos imp!acveis, todos destinados a controlar o "mau" comportamento. A violencia evidentemente uma tentativa de controlar seus desejos infantis maus, que ela teme. Devido sua tendncia crueldade h indcio de que sua identificao com a me seja parte de uma defes~ manaca residual (Cf. p. III abaixo). O comportamento da me fantasiada no cor-responde ao de s ,. - ua propna mae em relaao a ela, pois loyce era a

  • 28 . A Criana como Indivduo .,.............. ,........................." ..... ,.... , ... , ............... , ........................................,........ " ..................

    preferida. Isso sugere que as identificaes projetiva e introjetiva contribuem para o quadro que ela apresenta (Cf. p. 90 abaixo).

    Segunda entrevista: Houve muita brincadeira com gua numa pequena banheira de f1andre ligada a um tanque; abrindo-se uma torneira, a gua jorrava na banheira. A certa altura, a torneira entupiu, deixando Joyce chateada. Depois, ela colocou alguns barcos numa bandeja grande, que encheu com gua de um balde; empurrou os barcos de um lado para o outro. Alm disso, colocou bastante areia dentro d'gua e, ao molhar as mos, queixou-se de que acabariam speras e rachadas. Ento quis trocar a gua para separar a areia e, juntos, carregamos um balde escada acima e abaixo, derramando muita ga nessa atividade.

    Nesse brincar h uma tendncia a agrupar objetos em pares: dois barcos, areia e gua, a torneira que deixa cair a gua e a banheira que a contm. Porm, ao lidar com materiais e objetos impessoais, h mais realidade no que ela faz e deixa de haver necessidade de distinguir entre bem e mal.

    Terceira entrevista: A boneca m foi, mais uma vez, bem surrada e colocada num canto no incio da entrevista. Depois, muita brincadeira com gua; Joyce era a me lavando as roupas e lenis da boneca. Ao lavr com sabo as fraldas, sujou-as de areia. Ento cheirou-as, pensando que era "porcaria" (fezes), mas ficou alegre ao descobrir que a "porcaria" era areia. Alm disso, lavou cuidadosamente o cho, fazen'do-me mudar minha cadeira de lugar para continuar seu trabalho. Em certo momento da limpeza, encontrou alguns pingos de gua no cho. "Isso a 'pipi' (urina) de nen. Ela se levantou da cama e veio pra c fazer 'pipi'; que menina mais malcriada, ela uma chata", disse. .

    Brincadeira com areia: Joyce fez um "bolinho" e cozeu-o. Ch: Ela era a me fazendo o ch e eu, o papai. De repente disse:

    "Minha filhinha est chorando"; pegou a boneca e tirou-lhe as fraldas. Ao sentir fedor de ;'porcaria", disse: "Ela uma peste. Sujando a fralda".

    A identificao com a me , mais uma vez, clara, mas agora os atoS de Joyce esto mais ligados realidade e refletem o comportamento de sua prpria me: lavar e cozinhar. Alm disso, muitos dos comentrios

    Brincar 29

    que ela fez _ "Ela uma peste" - so os que sua me de fato faz. O tema da brincadeira tambm mudou no sentido de o beb se haver torn; do menoS bom. Sua maldade, sugerida em sesso anterior quando se re:cusava a fechar os olhos, agora estendeu-se a atividades anais. Em relao a estas, loyce menos impiedosa, provavelmente porque se havia livrado da boneca "m". Ela passa o tempo no incio limpando tudo~lsso.le~ va descoberta da sujeira: "porcaria". Referindo-se realidade, isto , descobrindo que a "porcaria" areia, ela controla a raiva; outras atividades so tratadas com severidade, mas no com punio.

    Quarta entrevista: Joyce achou a mamadeira do beb e divertiu-se sugando e mascando o bico. No incio da sesso, comentou: "Meu nen pode cuspir". Isso queria dizer que o beb havia cuspido o leite. Por isso, levou uma surra.

    Logo depois, ela encontrou uns bastes de giz, quebrou-os e colocou-os dentro de uma caixinha presa a um quadro-negro. Quando acabou, perguntou: "Ela est chorando? Minha filhinha est chorandoT Foi alimentar a boneca. "Ela cuspiu?", disse e sugou ela mesma a mamadeira. Caiu um pouco de gua pela parte inferior da mamadeira, fazendo-a exclamar: "Oh, pipi!" Em seguida, mordeu e mascou o bico. "Fui ver o nen do Tio AIf", disse. Derramou mais gua no cho. Nesse ponto, fiz o seguinte comentrio: "Quando voc era nen, talvez quisesse fazer pipi na mame do mesmo jeito que est derramando gua no cho agora". Ela respondeu: "No queria, no, mas eu fazia porcaria nela inteira - no se pode dar surra num nen". Ento, guardou a mamadeira. 'Vou guardar para a noite", disse e, enojada, achou uma banheira de brinquedo que estava suja. Colocou-a na gua, lavou alguns soldadinhos, fazendo co; mentrios sobre seus revlveres, e colocou-os numa cesta de papel. A achou outra banheira com "lama" dentro. Disse: "Um menino ps a lama a ontem noite" e, em seguida, acrescentou: "Preciso correr pra fazer o jantar do papai; depois eu coloco a banheira na pia". Ela estava perto de um interruptor aparafusado parede; "Eu quero isso", disse tirando o ~~rafuso que estava solto. Em seguida, tentou abrir a porta de um arn:ano, mas a chave estava com defeito. Vendo-a lutar para abri-Ia, oferecl-n:,e pa:a ajud-Ia, mas ela recusou. "Oh no, oh no, oh no. Por que voce esta chorando, nen? Sua malcriada!", disse.

  • lO A Criana como Indivduo .............................,.", ............................,............................,.. " .... " ...... " ......... ,...... ,., ................

    Depois encontrou tinta e pincel e fingiu ficar enjoada. Tirou areia da caixa, derramando-a pelO cho todo. Encontrou o beb, pegou-o no colo e deu-lhe a mamadeira. Ao fazer isso, derramou gua no cho. Imediatamente, bateu no beb, depois descobriu que ele estava com a cala molhada e voltou a bater nele: "Ela uma peste". Em seguida, foi a mamadeira que virou "uma peste". Joyce a sugou e mordeu.

    H muitas novas caractersticas nesse brincar. Em primeiro lugar, a identificao com a me j no to forte - du'rante boa parte da sesso, ela desenvolve os s~ntimentos de ser um beb, fazendo coisas que um beb faria, sugando e mastigando o bico da mamadeira. Mas nem todas essas coisas so de atuao segura, pois so punveis. Ento ela projeta seus sentimentos na boneca e a pune. Pela primeira vez, no h rejeio da boneca preta e, apesar das palavras duras e das fortes palmadas no "nen", em geral o comportamento est menos obsessivo, mais violento, mas tende a tomar-se mais inquieto.

    Tomando o brincar como um todo, a seqncia sugere que as coisas "ms" na boneca preta representavam o comportamento cindido do beb bom: medida que ele piora, a boneca preta fica menos "m". Embora a "me" tente forar o beb a desistir de seus maus modos castigando-o, o castigo no se aplica a ela como beb, pois quando revela seu desejo de fazer "porcaria" na me inteira, imediatamente se protege opinando que "no se pode dar surra num nen". Porm, quando quer, logo ataca o "beb" qlJe ela j no .

    A interrupo no desenvolvimento - que deve ser considerada inflexvel devido aos seus medos - giraem tomo da persistncia de desejos prprios ao beb e de seu cruel desejo de punio para manter esses desejos sob controle. Criando uma situao de tolerncia na qual podia haver o brincar, Joyce pde trabalhar seus conflitos. Os objetos mais usados foram: as bonecas preta e branca; a mamadeira, significando ora o seio, que ela morde, ora o corpo, do qual sai "pipi"; areia e gua, que representam "porcaria" e "pipi".

    Ao ventilar seus conflitos pr-edipianos, el

  • 32 A Criana como Indivduo ." ...........,', ................... , .........................................................,...................

    tambm da de muitas crianas e se reflete em formas culturais. Ao COntrrio dos aspectos dogmticos do cristianismo, a relao era de especial interesse para os alquimistas, mas a expresso mais organizada de enantiodromia se encontra na filosofia chinesa. A Grande Mnada um grama" padro usado provavelmente para meditao. Ele mostra dois pei. xes, um representando Yang e o outro Yin, ambos do mesmo tamanho e contendo em si um germe do seu oposto. A mnada infere uma rela. o fsica entre ambos; quando Yang predomina, Yin recessivo e vice. versa. Esse princpio se vem aplicando a toda a natureza e histria das naes.

    A importncia cultural do brincar de Joyce , assim, o fato de ela es. tar exprimindo de forma direta, simples e flexvel o padro de um sistema dinmico que foi abstrdo, refinado, pensado e desenvolvido em uma idia filosfica complexa.

    CASO 2 - A FIXAO DO PAI O registro do brincar de Joan, garota de dez anos e meio, abaixo apresentado, foi extrado de uma longa srie de registros ao longo de mais de um ano. Longe de casa, passou a apresentar profusa enurese noturna.

    sempre havia sido enurtica, mas apenas levemente, de forma que,

    ao voltar para casa, o problema deixava' de ser srio. Ela havia nascido na

    ndia e vindo para a Inglaterra aos 4 anos. Dois anos depois, o pai aban

    donou a famlia, deixando-a praticamente na misria. Joan tinha do pai

    boas recordae.s, de modo que o forte golpe do abandono expressava

    se na sensao que tinha a garota de que jamais se casaria quando cres

    cesse, pois isso criaria a po~sibilidade de ser, como a me, abandonada

    pelo marido.

    Logo no incio da s.u.a ludoterapia, Joan contou-me dois sonhos.

    Sonho 1 bomba caq no qUIntal e eu colocava a cabea entre os braos, es

    perando a exploso que me mataria. Minha me foi l fora e colocou terra sobre a bombae,_emcirria de tudo, um vaso no qual nasceu uma flor.

    A me de Joan ~qui mostrada como boa, dando a afetos destrutivos uma forma positiva.

    Brincar 33

    SonhO 2 ., d I' . I " ')

  • 34 . A Criana como Indivduo ..................

    Jogos com bola Quando comeou a brincar com uma bola, seus jogos mudaram. No incio,ela a arremessava ao cho ou contra a parede, pegando-a no rebote. Depois ela me incluiu no jogo, embora no me permitisse pegar a bOla preferindo arremess-Ia para longe; uma vez em direo ao sol, dizend~ que eu no deveria peg-Ia se no fosse "diante do sol". Em seguida, passou a impor outras condies como, por exemplo, a de que eu no pegasse a bola antes'do rebote. Por'fim, resolveu jogar rounders l , definindo quatro pontos obrigatrios para as jogadas. Nessa parte do jogo, no havia conflito quanto a quem deveria ter a posse da bola, j que havia as regras formais do jogo organizado.

    As seqncias de jogos com bola sempre terminavam com uma partida de rounders. Trata-se de um jogo formal no qual h quatro bases, uma das quais a "base principal", ponto de incio e fim. No jogo, ela conseguia exprimir mais facilmente seu antagonismo e competitividade em relao a mim - no precisava temer um ataque, pois as regras do jogo o impedem. Essa condio no durou muito; no seria de esperar que durasse.

    No preciso enfatizar o elemento social nesse jogo. Porm a sua forma uma mandala que alia dois elementos simblicos. De acordo com Jung, quatro um nmero que expressa opostos em relao de estabilidade ou completude; a idia de enfrentar um problema representa essa estabilidade. Rounders, como implica o prprio nome2, envolve a idia de crculo, smbolo amplamente conhecido que expressa desde a

    magi~ defensiva at uma forma perfeita. Supondo que a criana tenha inconscientemente definido os quatro

    pontos do jogo para exprimir aquilo que para ela equivalente a essas idias, poder-se-ia inferir que ela e eu personificamos funes anteriormente em conflito,mas agora complementares, numa rivalidade segura.

    O simbolismo do jogo de bola parecia exprimir uma maior sensao de segurana por parte da criana. De fato, aps o incio do jogo, a ansiedade foi temporariamente dominada, conforme exigiria o seu simbolismo, j que a mandala representa um todo estvel. Esse estado implica que, a partir da, um enfoque diferente dos conflitos de Joan viria tona.

    I. Jogo britnico que deu origem ao beisebol. (NTl 2. O substantivo rounder deriva do adjetivo round: redondo, circular. (NTl

    , Brincar 35

    jogos com gua d' J .. . os que se seguiu girava em tomo do uso ,a agua. oan Im o~~e~d . .

    . fi 'Interessada ao ver um garoto bnncando com uma manguel-Glalmente ICOU " . bstruir o fluxo da agua pisando na mangueira. O garoto reclac ra. "Tientou o . . . _ .

    ficou ainda mais chateado quando Joan mSlstm. Ela entao resolveu Ir moo e . S"at a torneira e fech-Ia, mas o garoto a abnu novamente. egulu-se ~m JOgo em que o rival tentava de~ar fluir a gua enquanto Joan t.entava'lmp~ clir que isso acontecesse. DepOIS, enquanto o garoto estava abnndo a torneira, ela pegou a mangueira e esguichou gua nele. A certa altura, Joan quis ir ao banheiro e, na brincadeira subseqente, a relao entre o fluxo da gua e a ida ao banheiro tomou-se particularmente perceptvel.

    Em outras sesses, Joan usou a gua para fins distintos, como por exemplo, regar as plantas do jardim ou encher um pequeno lago de concreto. s vezes, enquanto molhava o jardim, encontrava rachaduras no solo (era um vero muito seco); concentrava-se nelas e parecia enfiar a gua dentro da terra. Enquanto isso acontecia, seu olhar ficava brutal. Em uma das sesses, ficou muito agitada e molhou uma terapeuta que estava presente. Esguichou gua nas pessoas, inclusive em mim. Ao faz-lo, chamou-me de "lixo", como fez com o garoto e tambm com a outra terapeuta. Quando se excitava, tomava-se muito imperiosa.

    Assim, a brincadeira com a mangueira provocava em Joan mudanas de humor - uma inconscincia passiva e ausente enquanto enchia o lago, uma brutal concentrao enquanto enchia de gua as' rachadura's, uma excitao imperiosa quando atacava as pessoas, um estado mais ou menos neutro quando molhava o jardim. . Nessa brincadeira, a sexualidade de Joan veio mais tona. Sua rivahda?e. com o garoto implicava sua inveja do pnis, seu desejo de atacar o p~ms dele e possuir um ela prpria. Suas atividades colocaram em primel.ro plano a origem instintiva de sua enurese noturna. Aparentemente,

    hav~a fantasias com relaes sexuais bem perto da superfcie: ela \ls can~~bla Como selvagens e brutais e, se isso estivesse correto, no brincar ela ma represe t '. . ,

    , n ar pnnclpalmente papis masculinos, mas possivelmentetambem f " D ' . , . emmmos. rortanto, mterpretei para ela seus prprios atos e sentimentos Joa' d' .,.'

    . n Ime latamente esgUichou a agua mais uma vez sobre a terapeuta demonstrando . 'b' - . - .I' menos ml Ia0 menos excltaao e mais controe em sua ativid dE'I a e. ssas mudanas sugerem que minha interveno va eu para reduzir sua ansiedade. '

    I ~-----

  • lagos escolares A srie seguinte de jogos girava em tomo da escola. Neles, Joan invaria_ velmente representava a prOfessora diante do quadro-negro, ensinando ortografia e' matemti~. Vrios dos problemas surgidos na escola revelaram-se no jogo~ Ela estava evidentemente imitando a verdadeira professora - eu participava do jogo como seu aluno, verbalizando alguns dos protestos qlle 'eu imaginava que ela gostaria de haver manifestado na escola. O devaneio era um deles, o tdio, outro, prazer quando acertava nas somas, e tambm queixas contra a professora. A qualquer tipo de "malcriao", ela reagia a princpio com violncia verbal e, depois, Com ameaas de punio fsica.

    Essa brincadeira'lembra a de Joyce na severidade da desaprovao e dos castigos: mais uma vez, a brincadeira cruel e - como a de Joyce - no se relaciona realidade. Em cada caso, a criana est trabalhando seu medo da punio sdica por. meio da identificao. Porm em Joan as fantasias e impulsos agressivos esto claramente avanando e relacionando-se a uma organizao genital mais madura.

    A sombra Um dia Joan comeou a brincar com um quebra-cabea e resolveu com' plet-Io. Era um quebra-cabea fcil que ela certamente teria terminado de montar se quisesse, mas cansou-se dele e referiu-se a "mim e pessoa que pode resolver este quebra-cabea" - cindiu-se em duas.

    Ento foi at um quadro-negro efez um desenho (Desenho D. Pri, meiro ela fez um contorno pontilhado e me perguntou o que eu achava que era. Sugeri que era a sombra de uma pessoa, um fantasma. Ela imediatamente comeou a elaborar as partes da figura com mais detalhes. Enquanto o fazia, eu lhe fiz perguntas sobre o desenho. Por que as orelhas grandes? Respondeu que elas ficavam assim quando a me gritava com ela. E os dois rostos? "Ah, isso porque eu falo comigo mesma." Logo em seguida, escreveu no quadro: "fantasma do Dr. Fordham" e da seguiu-se um jogo descontrolado - s vezes fugindo do "fantasma do Dr. Fordham", s vezes atacando-o violentamente com ameaas, "surras", tirania e tentativas coibidas de morder. Por fim; ela me ordenou que ficasse parado, sem me mexer.

    Quando, depois, eu lhe 'perguntei' sobre os fantasmas, ela me diss: que havia fantasmas bons e maus. Os bons eram gentis com ela, isto e, eram como as recordaes que tinha do pai.

    Brincar 37

    Assim, o comportamento de loan ilustra duas formas de lidar com o objeto amedrontador: ela foge e se identifica com ele. Que ela foge.e~: t claro, mas qual a prova de que h identificao? Em primeiro lugar, ela se torna cruel e brutal, usando inclusive a boca para morder, J que este lado seu que ela teme expressar, seus atos podem ser tomados inequivocamente como uma manifestao de sua identificao defensiva con., trafbica; em termos de fantasia, ela foi devorada pelo fantasma . i emprega sua forma de ataque (Cf. tambm a Figura IV, p. 74). Entretanto, a identificao transitria; ela a torna objetiva por meio da prjeo em mim e ento separa-se dela, definindo um lugar em que possa ser confinada e controlada.

    A partir da, embora ocorressem algumas perseguies de mentirinha, verificou-se mais uma mudana no brincar de Joan. Seguiu-se uma

    rlonga srie de jogos na qual ela se tomou a me cuidando dos filhos le

    >,

    Desenho I - "A sombra" (cpia dooriginaD

  • 18 A Criana como Indivduo ................ , .. ," ........ " ...................... " ..................""." ................ , ,,,................ ,, ....... ,

    vando-os escola,'cozinhando, mandando filhs imaginrios levarem recados, deixando a casa "arrumadinha" e mantendo longe a "gente ruim" Isso comprova.que Joan havia elaborado Sl!a identificao com a image~ negativa do pai e ~estabel.ecido suas identificaes edipianas com a me.

    Uma antiga. recordao' .' Certa vez brincou que ela ..eeu fazamos uma longa viagem de trem, uma viagem de trs dias. A expresso "trs dias" refere-se ndia, ento perguntei,lhe.que lembranauinha daquela epoca. Ela me disse que um dia O',lV "irp l!ma cobra passar a cabea por sob a.porta da casa em que moravam. O pai e o av mataram o

    . Meu.objetivo ~o.citar essa recordao ilustrar como o brincar se c;lSSocia tanto ao passado quanto ao, pr~sente..A ao dramtica de mui- . tas brincadeiras indica"mas tambm esconde, as realidades mais simples e, geralmente, sofridas.

    Boa parte do brincar de Joan uma dramatizao de como se sentia em relao a

  • 40 A Criana como Indivduo .......... ,,, ...............,..................................................... , .... .................... .... , .... .'" "

    jogo justo, da capacidade de aceitar uma derrota e de valorizar o lad derrotado esto profundamente arraigadas em nossa sociedade. o

    Se h uma coisa que contribui para a sade mental a percepo de que fazemos parte de um todo, no apenas psquica como tambm socialmente, e de que sempre h, ao mesmo tempo, um lado que, embora seja inferior, precisa ter o seu lugar. A maior parte do trabalho analtico orienta-se no sentido de conseguir trazer o lado inferior ou sombra (isto , o "deles") conscincia - e as dificuldades disso decorrem do fato de ele haver sido expulso da conscincia por causa do desenvolvimen_ to excessivo de um lado da personalidade. Nos jogos, isso equivaleria a subjugar o outro lado mediante mtodos injustos, trapaas e faltas Contra um ou mais de seus membros. Assim, os jogos fornecem uma ilustrao do modo como a vida coletiva afeta processos psiCOlgicos profundamente arraigados e representa-os na conscincia, atenuando assim as atitudes irrealistas.

    ~. J

    3 Sonhos

    A amplificao , sem dvida, o mais sofisticado mtodo que Jung,desen~ volveu para elucidar o significado dos sonhos. J que eles podem revelar imagens mticas e, em alguns casos, tm caractersticas de uma histria, a amplificao pode ser e tem sido aplicada aos sonhos. Com ela, fcil mostrar que as formas arquetpicas esto em ao na primeira infncia: As figuras parentais so freqentes, a sombra, o animus, a anima e as representaes do self (Cf. p. 84 abaixo) podem ser encontradas bem antes do incio da adolescncia.

    O estabelecimento de analogias entre um sonho infantil e complexas formas mitolgicas foi um grande feito, numa poca em que se comeava a compreender que o comportamento e o brincar das crianas pequenas indicavam a influncia de fantasias inconscientes muito primitivas nos primeiros meses de vida. Ele promoveu maior segurana na aplicao da teoria dos arqutipos ao estudo no apenas da infncia, mas tambm da primeira infncia.

    Jung, contudo, com ousadia caracterstica, levou sua teoria dos arqutipos e do inconsciente coletivo a concluses que, como j sugeri anteriormente, poucos podem segui-lo.

    Os sonhos infantis causavam-lhe claramente forte impresso: "Muitos deles so sonhos de carter 'infantil', muito simples e imediatam~nte compreensveis, ao passo que outros contm possibilidades de sentido, quase a ponto de nos provocar vertigem, e coisas que s revelam seu significado profundo luz de paralelos primitivos CJ. A infncia (J o tempo em que surgem, t..> diante da alma da criana, aqueles sonhos e imagens de ampla viso, a condicionar-lhe o destinQ concomitantemente Com aquelas intuies retrospectivas que se estend~m, para alm da esfer~ da experincia, at prpria vida de nossos ancestrais" (OC VIII/I, parag.98)'

    ~mbora Jung tenha modificado seu posicionamento em publicaes postenores, esse trecho sugere que os sonhos arquetpicos da infncia res

    ~

  • -------

    42 A Criana como Indivduo

    ,...."

    paldam a idia da existncia de uma herana cultural que, no sendo transmitida pelos pais ou professores, acessvel a priori a uma Criana. Ele prossegue dizendo que a carga hereditria da criana "altamente diferenciada" e "CJ constituda pelos sedimentos mnmicos de todas as experincias legadas pelos ancestrais"

  • 44 A Criana como Indivduo , ........, ..........................................,............................ , ................. ,......................... , .... , ..... ,.............. ,

    SONHOS NA SEGUNDA INFNCIA Registram-se raras observaes' e, ao que eu saiba, no h estudos sistemticos dos sonhos dessa fase da vida. Nos ltimos anos foram coletados muitos dados e, com efeito, j que uma criana pequena pode brincar, o contedo de seus sonhos pode. ser deduzido correlacionando-se perturbaes do sono com o comportamen~o; conforme ilustra o exemplo abaixo. Uma garotinha de apenas 3 anos estava sofrendo de terrores noturnos. Nas sesses que tivemos, a princpio ela manifestou muita ansiedade ao separar-se da me e deu incio a uma srie de jogos cujo tema central consistia em morder vrios objetos. medida que os jogos se tornaram mais violentos, os terrores noturnos diminuram e finalmente cessaram.

    Note-se que o morder aparecia nos sonhos tanto da garotinha quanto do beb anteriormente mencionado, que estava no processo de desmame. Tendo em mente o importante lugar que tm as fantasias muito primitivas que ocorrem ao mesmo tempo que o morder o seio na primeira infncia, o beb e a criana pequena provavelmente estavam no processo de representar seus ataques orais ao seio ou derivados. Cada um, a seu modo, eles estavam apavorados com um perigo sentido como real e fsico; pois objeto e fantasia ainda no eram distinguidos.

    A observao de que os primeiros sonhos infantis esto muitas vezes associados ao morder foi corroborada e generalizada pelo estudo de crianas em idade pr-escolar. Despert, por exemplo, coletou 190 sonhos de 39 crianas entre 2 e 5 anos de idade_ Para isso, providenciou bonecas e camas infantis, alm de um div e.um travesseiro de dimenses normais. Como em geral a fala ainda no era desenvolvida o suficiente, a criana podia responder a perguntas 0\.1 comunicar espontaneamente os sonhos por meio de ao dramtica usando os brinquedos.

    Usando essa tcnica, Despert chegou s seguintes concluses: os primeiros sonhos de.crianas de 2 anos esto associados a trs declaraes - "Me persegue LY, uMe morde L),' e "Me come C.f - mas no h meno a "como" isso ocorre nem.a "quem" atua. Entre os 3 e os 5 anos, o agente torna-se especfico: sempre um animal e, alm disso, um animal real - um c;lchorro, um urso, um tigre etc. -, proveniente do ambiente domstico imediato ou mencionado ou visto em fotografias. Essas observaes sugerem que as imagens primrias dos sonhos

    Sonhos' 45

    ~.'un" criana pequena so realis:as. Aps os 2 anos, surgem outros . ~ coma OS ataques a um irmao menor. 50 por volta dos 3 ou A .no so registradOs fantasmas e bruxas. Em torno dos 5 anos, surgem te,llas, ess que "freqentemente so destrutivas, de tamanho e poder soS

    oas~",.humanos e, s veres, sobrenaturais" (Despert 1949, p. 161 l. Fogo e ,gua so elementoS comuns, e especialmente interessante o fato - ao Ci"'1 faremoS referncia posteriormente - de que, com apenas uma ex' ,eiio, OS pais no aparecem em papiS hostis, agressivos ou destruti~ vos. Assim, por volta dos 5 anoS de idade, est desenvolvida uma ga

    'ma bastante ampla de temas. Essas concluses sugerem que o padro conhecido posteriormente na mitologia como a me devoradora animal surge bem cedo - como, als, seria de esperar - e origina-se na projeo de fantasias violentas que acompanham as primeiras experincias de amamentao e a frustrao

    das pulses orais.

    SONHOS A PARTIR DOS 5 ANOS Aparentemente, no h dificuldade em obter informaes das criaoas pequenas sobre seus sonhos, mas, a partir de um certo momento, isso pode tomar-se difcil. Desenvolvem-se atitudes sofisticadas, que geralmente refletem as dos pais, que podem facilitar, obstruir ou distorcer a comunicao. Algumas crianas falam livremente sobre seus sonhos, outras "nunca" sonham, ao passo que outras ainda os suprimem no todo ou em parte e, finalmente, h as que os inventam. E, assim, a forma como eles so coletados to importante quanto o seu contedo.

    Sries de sonhos Duas sries de sonhos de um garoto, John, e uma garota, Jane, foram coletadas por sua me, que neles tinha particular interesse pelo fato de haver tido contato ela prpria com a experincia analtica. Esclarecido isso, as duas crianas comearam a contar seus sonhos e, assim, surgiu um di logo que se tornou parte do dia-a-dia da famlia. Geralmente de manh, elas contavam me os sonhos que haviam tido e trocavam idias e reflexes a respeito. Essa troca prosseguiu por cerca de trs anos e manteve-se graas ao meu interesse por ela, j que a me costumava trazer es

    j ,1# ..

  • 46 . A Criana como Indivduo

    ses sonhos para discutir comigo, em base amigvel. Um dos fatores par a coleta dessa srie excepcionalmente longa (mais de duzentos sonhos~ foi o pedido de ajuda por parte dessa me devido depresso que sofreu aps a morte do marido, quando o caula ainda era um beb. Que o estudo dos sonhos tenha levado an~liseda me talvez no seja to surpreendente, mas no tel1ho razes pG\ra p~nsar que isso tenha influenciado sua especial relao com as crianas no decorrer do sonhar em si. Tampouco creio que sua psicopatologia tenha infludo significativamen_ te no relato deles nem no contedo do que as crianas contaram. Todos os sonhos so do tipo que se esperaria e no h elaborao bvia pela fantasia. "

    A existncia de?sa srie Sl,lgere muito qlle o fato de as crianas relatarem ou no seus sonhos depende em grande parte da atitude das pessoas que as cercam. Ela contradiz a idia de que as crianas no falam sobre seus sonhos nem os relatam por alguma reticncia inerente ao desenvolvimento infantil. Afirma-se que os sonhos se tornam parte do mundo interior secreto da criana, no qual os pais no podem entrar. O fato de as crianas em idade ~scolar gostarem de contar ou escrever seus sonhos quando tm essa opo' most~a o equvoco dessa idia. Outra possibilidade transform-los em tema de redao.

    Alinhadas idia de que o fato de as crianas contarem sonhos ou no depende do interesse real ou imaginado dos adultos de seu ambiente imediato, esto os comentrios sobre a srie de sonhos que estudaremos em seguida neste captulo, Eles foram feitos por um garoto que fez algumas entrevistas teraputicas comigo. Naquele momento eu estava particularmente interessado nos sonhos e, por isso, o estimulei muito a cont-Ias, fazendo-lhe perguntas a respeito na primeira sesso e sugerindo, nas seguintes, que me contasse um sonho sempre que no soubesse o que dizer ou fazer. Ele gostava dos sonhos e eu explorei esse prazer. Em contrapartida, desde que eu passei a aplicar tcnicas analticas terapia infantil e deixei de pressionar as crianas a cont-los, os sonhos aparecem menoS, Quando so relatados, so comunicados como parte de uma situao total e, assim, associados ao brincar, fantasia e a outras comunicaes verbais. Esse procedimento facilita a anlise do sonho com a criana, mas, por outro lado, faz com que muitos sonhos deixem de ser contados. .

    til coletar sonhos por meio de um mtodo que explore os sentimentos da criana em relao ao terapeuta porque a compreenso do 50

    " . _ ou talvez eu deva dizer era valiosa quando eu a es-SI e vahosa . f ..

    '.zando. Estudar os sonhos dc:ssa .manelra aClhta a com~r~ensao , onsde mas nao aluda a penetrar nos maIs mcons

    processos pre-C ntes' . . i ',Es 't do tem contudo, suas desvantagens, uma das quais se ""'@Il,~es'@~;J, . se me o 'd 'r agora Com pouqussimas excees, observou-seque a @.'t;f1~e:consl,~.. era . '' e apenas num papel positivo, mesmo quando a reahdade con!im;:leJ,aparec - . d d ..:t ....l o Mesmo os filhos que sao maltratados pelos pais - e acor o ~ra",!v ISS . ' ,.' .. padres no s dos adultos, mas tambem das propnas cnanas

    om os . -' t~m com as mes apenas sonhos bons. As Imag~ns ~a mae ma sa~ q~~se s@rApre mitificadas como bruxas, fantasmas, antmals e afins. Os mdlclos :aportados pelas duas crianas so muito interessantes nesse sentido. ,.~.. O exame dos 95 sonhos da srie relatada por john mostra que a me aparece quarenta vezes. Ela solcita, consoladora, idealizada, educadora, mediadora ou passiva. Quando est ausente, conhece-se seu paradeiro; s vezes sua ausncia lamentada. Nunca demasiado frustradora; s vezes to vtima dos perigos quanto os filhos. Houve uma e>xGeo que foi quando, num sonho, ela se matou. O mesmo se aplica ,srie de lane, portanto a diferena de sexo no afeta o resultado.

    Agora, essa me era uma me boa o bastante, a despeito da depresso e da necessidade de substituir a lembrana do marido pela concen~~Fa'odo investimento libidinal noS filhos. Ela era criativa, solcita e rara

    ,Ii!lel'l,~e, se muito, perdia o controle ou era violentamente agressiva com ;os' filhos, Mas ela os punia ou frustrava quando preciso; no h nenhuma sugesto de que essas situaes se tenham tornado tema de sonhos.

    Um indcio que confirma essa situao vem de um comentrio feito por )ohn. Certa vez, ao contar parte de um sonho, ele disse: "Tive oUe tro em que Mame tinha papel de m, mas eu no lembro desse sonho porqu ~ .e nao vou deIxar que ela tenha esse papel. No meu sonho, ela s

    ~az ~apel de boa". A irm concordou.lohn tinha 7 anos e sete meses ea Irma, Ii anos e quatro meses de idade. ' .

    ,? fenmeno, inicialmente observado por Despert, que o denomie nou segreg ~ u 'aao , e geral e deve-se supresso deliberada ou esqueci

    ~ento. E~e pode ser associado a uma caracterstica comum da infncia, neceSSIdade de t . e . - pnnclpalmente da .' mae man er a vlsao dos pais

    como bons ~ c aramente observada no fato I de as crianas se recusarem a _ "

    ou nao conseguir I em - I ' . ' .soas to erar as CrIticas feitas aos pais por outras pes, sso pode ser observado ainda mais durante a anlise infantil. Para

    j, :,:;,,'..i:,". , ___________ei,.t,g

  • 48 A Criana como Indivduo ............ " ............... ,........................................................................................................

    ., ......

    ~ue uma criana re~onhea e ?ssimi.le a sensao. de que algum dos Pas e, em qualquer sentido, mau, e preCIso que ela saiba que o analista rec . nhece que ele predominantemente bom~ o

    Essa situao provavelmente decorre da dependncia que a criana tem dos pais e da necessidade original de que a me seja boa o bastante. Na infncia isso queria dizer que a me era boa e no m e, se na realidade ela no fosse boa o bastante, teria de ser "alucinada" como boa. . esse estado anterior de coisas que persiste nesses fatos irracionais do Comportamento e do sonhar infantis.

    Antes de partir para a considerao da seleo de sonhos com manifestao de temas arquetpicos, necessrio declarar que eles no so comuns. Da srie de duzentos, Jane relatou 91, a maioria sobre questes pessoais na escola e no lar. Entre eles est um grupo de cinco "grandes sonhos", os quais sero agora estudados.

    Um sonho "mitolgico" Aos 9 anos e um ms de idade, Jane passou por dificuldades em seus relacionamentos pessoais na escola. No havia nada de muito tangvel, ela no criou inimizades nem.se dava mal com os professores, mas era algo evidente; uma espcie de ausncia de alguma coisa que se esperaria dela. Havia uma forte sugesto de que essa situao interior fosse proveniente da trgica morte do pai, que a deixou muito perturbada. Mais ou menos na mesma poca em que ela contou o sonho, a professora notou uma "melhoria gerar em seu rendimento e seus relacionamentos pessoais.

    "Eu tinha um beb dourado com uma estrela de prata na testa. Um dia eu estava na beira. de um rio e a aconteceu uma coisa horrvel. beb caiu no rio~ Ento eu perguntei ao drago onde estava e ele respondeu: 'Eu vou ficar com ela'. A eu fiquei numa ilha em forma de tringulo, cheia de rvores em volta, com uma amiga. Ento chegaram umas crianas negras e se deram as mos, cercando a ilha. Ento eu disse minha amiga: 'Vamos dar um jeito de passar por essas crian: as'. Ns conseguimos passar. Ento eu fui at o rio. Mergulhei e peguei o meu beb."

    . Esse sonho nico dentro da srie. Ele possui uma beleza e uma simetria no encontradas em ,nenhum outro. Apesar de Jane haver do outros sonhos de caractersticas mticas nessa mesma poca, eles acabavam descambando em fatos do dia-a-dia. Nos anos seguintes, ela teve

    Sonhos' 49

    hos isolados ecos do passado, que jamais chegaram oU dOIS son '. ' .,~ I d erfeia-o. Por consegumte, o grupo so pode representar

    't:; mve e p d d . l- '. _ de mudanas crticas que estavam ocorren o no mun o lO,mlnaaO ~te:ri'0r de )ane. . _ '

    :~.': li mos primeiro algumas conslderaoes sobre o sonho como umlM-..... ea _ . .. _ . .~{:l.d.O.: Sua estrutura e. seu ~adro ~inamlco representam um~ sequencI? . t . atl'vo-deintegrattvo-relOtegratlva (Cf. pp. 101-102 e Capitulo 6 abalI,megr. _ . ~~). A unio me-beb comea e termina nele; o draga0 demtegra-se em .i.rnwmeras figuras: a ilha triangular com rvores, crianas negras e uma ami~g~.,O beb inicialmente muito idealizad~; depois ele se toma "meu be,l;i" e assim representa um acesso ao sentimento pessoal, que parece ter ,."' . I I

    ~ido conquistado das imagens impessoais. ui. Em seguida, a maioria das imagens, independentemente da feio

    ~~Hlonto que tem o sonho, comum em mitos e contos de fadas: o drago,. rios, rvores, ilhas mgicas, a estrela, ouro e prata. Acrescente-se o tema do deixar cair ou imergir - em geral no mundo subterrneo. O evidente desejo de Jane de ser me e ter um beb idealizado por meio de seus atributos (ouro e prata)_

    Jane teve nessa poca outros sonhos que podem ser usados para a:mplificar o seu "grande" sonho e mostrar que ,ouro e prata eram importantes para ela em diversos contextos. Um deles ocorreu quando Jane tinha 9 anos e dois meses de idade.

    "Havia um leo que era chamado de leo dourado porque ele tif!ha p~tas douradas, mas o corpo era prateado. Havia dois prncipes, um da mmha sala [de aula] e outro de outro lugar. Os dois queriam ~quele leo d~urado. Eu empurrei o prncipe para fora da sala dizendo: 'V pegar o leao do d' I" .

    ura o e e e 101 e pegou mesmo. Ele trouxe o leo para a minha sala e colocou na frente do quadro-negro. Eu fiquei olhando, maravilhada. Ao mesmo tempo, eu era o leo dourado. Dei a ele quinze centavos durante dois d' - " . , ,dez la~ e e~tao eu disse: Ah, que pena que agora eu s.o tenha

    centavos. Nao vai dar' e a eu acordei 11 Logo depois ( d' h 9 . - ."tou quan o tm a anos e tres meses de Idad~), ~Ia voI.a"sonha~ Com ouro e prata. ' , Mamae t . "

    COm Ch . es ava em casa e John e eu estvamos brincando na rua nstopher [filho de . . h ] A; D :do - uma V1ZlO a I eus mandou papal descer

    ceu, carregado de Ouro e t EI '. . d' chucou pra (I. e caiu no Jar 1m, mas nao se ma-

    porque estava com os espritos bons. Ento mame gritou: ')lne,

  • Sonhos' 51

    John! Venham rpido ver o que caiu no jardim'. A num minutinho a g te estava l, abraando e beijando papai. Ento a gente entrou em cas:ncomeu." "" e

    Alm de mostrar que ouro e prata so importantes, esses sonhos sugerem o desenvolvimento da preocupao pelo pai e uma considervel capacidade de atividade feminina decisiva, dando a entender que, no todo, sua agressividade estava bem integrada e sua identidade feminina, es: tabelecida e reforada por identificaes positivas.

    O fato de deixar cair o beb no primeiro sonho provavelmente se refere ao trauma em sua vida - com efeito, quando Jane tinha 3 anos de idade, o pai morreu de um ataque cardaco enquanto fazia um passeio com ela e enquanto a me ainda estava no hospital, aps o parto de John. O ltimo sonho introduz a morte (papai est no cu e acompanhado de "espritos bons") e tambm o seu desejo de t-lo no seio da familia. Essas caractersticas sugerem a culminao de seu luto por ele e o pesar no apenas pela sua prpria perda, mas tambm pela perda sofrida pela me e pelo irmo, Sob essa luz, o primeiro sonho representa uma parte do luto que naquele instante estava sendo elaborado. O drago ento representaria o componente negativo, possessivo, voraz - e tambm o pai e a influncia regressiva em seu pesar, que a vinha ocupando e que parecera,de fora, 'um defeito em sua personalidade.

    Seguindo a idia de que a ilha, as rvores e as crianas so deintegrados do drago, a ilha triangular e as rvores seriam partes do pai aparecendo sob uma luz mais positiva, ao passo que as "crianas negras" so o quanto de obscuros sentimentos infantis (anteriormente fundidos com o pai e agora dele separados) que existem no' caminho do domnio e da elaborao de seu pesar negativo, autodestrutivo, regressivo e voraz. A amiga, de modo geral, mostra a boa integrao da sombra por parte de Jane e provavelmente representa sua relao com a realidade, j que o ego onrico introvertido. No segundo sonho; sua relao com a realida" de mostrada pela forma como ela passa da identificao narcisista com o leo ao reconhecimento realista: "Ah, que pena que agora eu s tenha dez centavos. No vai dar".

    Todavia, resta considerar o beb dourado, cuja abordagem mediante amplificao intelectual de outras fontes tentadora. _

    '{!'''. _ paSSO que a estrela o oposto do corpo, prpria do cu .~!2,rata , ato o ouro da terra mas isso noS desvia de Jane, apesar de tanto quan o ' f' . dO't'o~" -noS do universo da linguagem em que ela OI cria a. Imenlaproxlmar . d" 'b 'I' h' , "o , oe da me em seu prpriO mun o tntenor e SIm o ICO a aVIa !S()' IOteress. . , o d a estudar exaustIvamente o assunto e a colocar seu conheclmenleva o . d d f d .' I

    o d' posia-o dos filhos por meio e contos e a as, pnnclpa mente to a IS ' ' ' os Contos e lendas dos irmos Gnmm - que Jane ha com grande voracIda

    de - e a Bblia.Como judia, a Estrela de David lhe era familiar e, por meio da leitu~a da Bblia, conhecia a histria do milagroso Jesus-menino. Entretanto, "uma criana dourada referncia incomum nos contos de fadas. Talvez 'ela tivesse lido algum, mas eu s consegui lembrar de "The Colden Children"rAs crianas douradas" depois que folheei os Contos e lendas dos irmos Grimm. Outras referncias mais remotas esto no Hiranyagarbha da filosofia oriental, traduzido por Muller como "Colden Child" rCriana dourada" e por Hume e Zimmer como "Colden Cerm" rCerme dourado". Outras analogias no acessveis a Jane ocorrem-me do estudo de "A psicologia do arqutipo da criana" (jung OC IX/D, no quallung registra os mitos dos homenzinhos de metal, observando que a criana representada como "esfera de ouro", Todo esse grupo de imagens refere-se ao self e ajuda a entender a criana dourada como uma representao narcisista do se/f. Outras analogias podem ser buscadas na alquimia, que associava o ouro ao leo, ao sol e s fezes, expressando assim bem diretamente o sentimento infantil de que as fezes so parte preciosa do self e a equao fezes-beb-nascimento (deixar cair), que Jane e o irmo haviam elaborado juntos explicitamente num momento anterior de sua vida.

    As representaes do self l se insinuou que a criana dourada uma representao do self - um smbolo do self no verdadeiro sentido da unio de opostos. Isso no nos deve levar a esquecer que todo o sonho em si uma representao do self Isso se tomar mais claro se aplicarmos o mtodo integrativo-deinte

    g;~tivo. Muitos anos antes, Jung havia construdo o modelo de um sonho tlplCO. . '

    Ele O dividiu em: situao, exposio, desenvolvimento (peripcias) e s?luo. A diviso do sonho de Jane conforme o modelo resulta no se-

    Para a mente sofisticada, acostumada a lidar com esses temas, nao gUInte: haver dificuldade em perceber que o beb contm opostos - o ouro e

    .ir:" --I O

  • 52 . A Criana como Indivduo

    1. A situao: "Eu tinha um beb dourado com uma estrela de pra. ta,na testa. Um dia eu estava na margem de um rio ..."

    2., A exposio: "...ea(aconteceu uma coisa horrvel. Meu beb caiu ,oori~ ,

    . 3 . As peripcias: para maior convenincia, esta parte pode ser sub. dividida em duas: (a) "Ento eu perguntei ao drago onde esta. va rt;linha filha e ele respondeu: ',Eu vou ficar com ela'. (b) A eu

    ':, fiqu~i numa ilha em forma de tringulo, cheia de rvores em vol. ',ta, com uma amiga. Ent,o chegaram umas crianas negras e se deram,qs fl1os, cercando a ilha, Ento eu disse ~ minha amiga:

    , 'Vamos dar um jeito de 'passar por essas crianas' - tinha um espao entre algumas delas., Ns cpO,seguimos passar".

    4. A soluo: "Ento eu fui at o rio. Mergulhei e peguei o meu be~"be.

    Essa seqncia - que posteriormente ser estudada em maiores detalhes - pode ser abstrada da seguinte forma:

    (a) Ela comea com um integrado: a "situao", (b) Ento h um desenvolvimento que implica a diviso (deintegra

    o) do integrado na '!exposio" e no "desenvolvimento", (c) 'Finalmente, um novo integrado expresso na "soluo" do so

    nho.

    Todavia, a representao incompleta, como devem ser todas as representaes do self Dentro do selfesto o ego, a sombra, o pai (drago) e a me (na identificao da prpria criana [o ego] com o arqutipo materno). Alm disso, o drago tambm pode,'como a criana dourada, representar opostos. Ele no s o pai, mas tambm o aspecto sinistro da me que lhe rouba o beb mgico, bem como sua prpria possessividade infantil voraz. Nesse caso, "ele", representa uma condensao que, em outras circunstncias, diferenciada em bruxas, rainhas, princesas e outras representaes. ,

    Em ps-escrito a essas reflexes, talvez seja interessante recordar que, aos 4 anos de idade, Jane j pensava em termos muito claros a seU

    respeito e chegou a dizer em certa ocasio: "Eu sou um pouquibeb, um pouquinho uma bonequinha e muito uma mame".

    " _ .reonseguinte, aos 9 anos ela estaria em condies de compreender a :"::,;wr.hplexidade de seu mundo interior e sua capacidade de representar

    fs

  • 54 A Criana como Indivduo ........... ,........... " ......... , .... " ..........................................,.............................

    o mundo das fadas est relacionado natureza no sentido de el . . ch b asviverem na terra, nos na os ou nos osques, e representa uma comu .

    nl da de mgica altamente organizada de reis, rainhas,cortesos etc. Existe ' fadas boas e ms, que usam de magia branca, e_ magia negra. uma m: gia menor; elas no so nem boas nem ms em si mesmas; no como o so os grandes euses e demnios. Delas diz um mito etiolgico:

    tambm crena amplamente difundida na Irlanda a de que as fadas sejam anjos cados que, sendo menos culpveis que os demais, no foram mandados para o inferno e sim obrigados a viver na terra. Considera-se que elas se sintam muito preocupadas com sua condio aps o dia do juzo final. (Keightley 1982, p. 363) A importncia coletiva do fogo est ainda mais registrada no fa

    lar comum; sua universalidade como smbolo revela-se na disseminao mundial de mitos relativos sua origem e nos inmeros outros em que ele caracterstica central. Pode-se conceber o fogo como representando a paixo que o garoto exprime no comportamento e na enurese - h uma associao comum entre os sonhos com o fogo e a enurese noturna. O fat de o incndio haver sido provocado pelo pai de Christopher de interesse porque ele, como o filho, vivaz, mas imprevisvel; assim o sonho sugere uma identificao entre o filho e o pai. A me de Christopher, ao contrrio, demonstra ansiedade diante de uma possibilidade real. Como no sonho, na verdade ela quem faz o instvel par "manter os ps no cho", proporcionando assim uma necessria compensao,

    Esse sonho retrata as reaes individis da criana e dos pais ao que se poderia chamar, no sentido figurado, de fia chama da vida", Que o conhecimento dos pais verdadeiros possa ser facilmente utilizado para aprofundar a compreenso sgere que Christopher chegou a um b~m nvel de apreciao das partes essenciais de suas naturezas por meio pnncipalmente da introjeo. I Sonho 2 "Tinha uma bruxa e ela me mandava fazer gua na boca e Mame disse: 'No, agora no', A~ bruxas foram atrs de Mame, de mim e de um bOcado de ge~te, N~s sentamos em cima do muro ~o jardim da casa. A; bruxas comam atras das bruxas - as [da frente] fugiram dando a volta.

    , pegar as outras deu uma mancada e a a outra bruxa que quena

    H'''Faz gua na boca" refere-se a um meio que Christopher usava

    , ercar a salivao, que era chupar as bochechas. No Sonho I, o ~afa provo ' I'

    o -. d' a~mico iniciador era o fogo; desta vez e a sa Iva e seu uso suge,mbleto 10 A ' .." ssa-o I' que os bebes costumam salivar quando se coloca uma co

    '.r~ regre , " !be OU outro ~bjeto em .,:;ua" boca ~, en; fase posten(~r, cospem a s~hva parar aliar afeiaO a agressao. Fazer agua sugere tambem o. ato de un.nar.

    Depois do primeiro sonho e antes do segundo, Chnstopher VIU o ,filme Branca de Neve e os sere anes, que lhe causou considervel impresso. Branca de Neve uma princesa virtuosa, que mantida em cativeiro e obrigada a executar as mais aviltantes e servis tarefas pela perversa rainha, sua madrasta, que uma bruxa. Volta e meia a rainha consulta um espelho mgico, invocando um esprito ao qual pergunta repetitivamente: "Quem a mais bela de todas?" Ao fazer a invocao, surgem chamas no espelho, das quais sai o esprito para responder-lhe. Na primeira vez, a rainha-bruxa ouve a resposta que quer: ela a mulher mais bonita do mundo, mas na segunda vez o esprito responde que j no ela, e sim Branca de Neve. Ao ouvir isso, cega de inveja, tenta em vo matar a enteada, que foge para o bosque e passa a viver em companhia dos anes. Ao descobrir onde Branca de Neve estava, a rainha - recorrendo magia negra para transformar-se numa velha feia e acabada - sai em busca da enteada e a induz a comer a ma envenenada., Por causa disso, Branca de Neve cai num transe do qual finalmente despertada por um prncipe e, assim, a virtude recompensada e o bem triunfa sobreo mal.

    , .0 conflito entre o bem e o mal perpassa toda a histria, na qual o espmto da inveja propicia o ponto de partida para o drama subseqent~. C~ristopher ficara impressionado com ele e a idia da bruxa te~ inCIO aI.

    . A pintura da bruxa vermelha em chamas (Cf. Figura J) feita por Cbhr~stoPher impressionante, apesar de muito distante de lima rainha onlta- . " .

    _praticamente desprovida de tronco ela dotada de uma imensa cabea, na qual sobressaem os olhos e um ~hapu ftico' Christopher fn,'sou . ' particularmente o seu carter HpontiagudoH _ A ausncia de um corpo parece negar

    . sua Importancla. S'e a ptntura for entendida como a 'fano A' . taSla da m -ae ('1'a lca, o chapu em forma de pnis sugere um deslocamento l.jk:~,

  • 58 A Criana como Indivduo ........ ,.. " .. " ............................,.............. " .. ,........................,...... , ......., ......, ......... , .....", ...

    o sonho prossegue: "As bruxas corriam atrs das bruxas". Apare _ temente, onde antes estavam Christoplwr, a me e outras pesSoas a n ra h brnxa5_ Sabemos que o medo pode produzir identificao c~~oseI,! objeto, e isso parece estar sugerido pelo sonho, que poderia ser a~ sim traduzido: "Voc passa a ser como uma bruxa quando foge, s quando se distancia que pode ver o que est acontecendo".

    O modo como a bruxa consegue fugir da outra relevante: ela "d a volta" - uma ao que na realidade a faria agir mais devagar e tornarse mais fcil de capturar. Portanto, provvel que essa ao seja mgica. Dar a volta sugere um crculo mgico atravs do qual nada pode penetrar, tema que amplificado no sonho seguinte.

    Sonho 3 "Eu estava numa casa, olhando para fora por debaixo da porta. Tinha um 'moleiro' que estava cruzando o rio para incendiar a casa. Ele tinha vindo do outro lado do rio. Mas tinha soldados, ento no tinha problema. Acho que o 'moleiro' estava vindo porque a gente tinha tirado alguma coisa do moinho dele."

    O desenho feito por Christopher (V Figura lI) um moinho de quatro ps circundado por um rio, juntando assim uma cruz a um crculo: uma estrutura semelhante mandala, que Jung definiu como smbolo do selfe associou freqentemente a Deus_ Ele diz, por exemplo (OC XI, pa

    : "A idia destes antigos filsofos era de que De~s se reve~ou e~ lu ar na criao dos quatro elementoS. Estas (Slc) eram slmboh

    g , I" E - "() belas quatro partes do clrcu o. postenormente: _.. em ora o

    Pseja um smbolo antiqssimo, provavelmente pr-histrico, sem-relacionado com a idia de uma divindade criadora do mundo" bid.,

    IOD). Creio que essa amplificao no seja to fantstica quanto parecer a prinCpio, porque logo antes Christopher havia ouvido fa

    de DeuS e estava muito preocupadO com ele . :t>/.. Se Christopher j tivesse associado o crculo magia e se Deus lhe 'illare mgico e ameaador, ao contrrio do que normalmente se en

    cesse.sina, a amplificao comearia a fazer sentido, pois ele teria feito sozinho S associaes bsicas necessrias. Itr Nos sonhos, pertencer a significa ser igual a e, assim, o moinho outlJio aspecto do "moleiro". Um amplificao do significado generativo do simbolo ocorre no livro de Silberer (1917, pp. 97-98), onde ele afirma:

    Em linguagem simblica, o moinho significa o rgo feminino (j-tv, de onde vem mulier) - o satirista Petrnio usa molere mulierem (literalmente, moer a mulher) para referncia a