miguel torga diario vols i a iv

Upload: barbara-teles

Post on 08-Jul-2018

297 views

Category:

Documents


6 download

TRANSCRIPT

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    1/26

    Miguel Torga

    DIÁRIO Vols. I a IV 

    5.a ediçãoconjunta

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    2/26

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    3/26

    Índice dos Volumes

    Diário I 15

    Diário II 109

    Diário III 197

    Diário IV 281

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    4/26

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    5/26

    9

    Índice de Poemas

    Diário I

    Santo-e-Senha 17Paisagem 19Prece 20Brinquedo 22Imagem 23Fado 25Certeza 27Bucólica 30Sombra 31História Antiga 33Moisés 40

     Aqui Estou 42Peregrinação 43Secura 44Idílio 48Negrura 50Instantâneo 54

    Sarro 55Relato 56 Aceno 59Breve Desilusão 61Calmaria 62Paz 63Memória 65Sina 65Exercício Espiritual 67Exortação 68Lembrança 69

    Pietà 70Canção 71

     Ariane 72Claridade 73Unha Negra 75

     Visita 80Canção da Pura

    Humildade 83Nocturno 84Mágoa 88Diário 90Outono 93Dia Santo 95Noite 98Desencanto 100Passeio 104Escuta 105Lezíria 107Dúvida 108

    Diário II

    Correio 111Instante 115

    Súplica 117Destino 118 Vendaval 124Recordação 126

     Aguarela 127Sesta 130Sangue 131

     Aniversário 132Pátria 133

     Água 134Condenação 134

    Parábola 136Saudação 138

     Apelo 141Fim 143Clarão 144

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    6/26

    10

    Partilha 147Natal 151Graça 152

    Certeza 154 Vela 156Búzio 158Testamento 160Convalescença 161Magnólia 163O Poeta 166Chuva 169Condição 171Por Uma Papoila 174Dia 175

     Voz 178Medo 179Pedido 180

     Justificação 181Luar 182Intimidade 184Consolação 188Eleição 190Poema 191

     Vida 193

     Abandono 195

    Diário III

    Écloga 199Meditação 202Bilhete 203Trova 204Noite 205Canção 206Ordem 208

    O Bispo 212Legado 214Soluço 216Pacto 217Marão 220

     Almas 222Romance 223Solidão 224Grito 225Epitáfio 227Embalo 228

     Anunciação 229Sudário 230Balsemão 231Descante 232Nirvana 234

    Loa 235Tríptico 236Pergunta 238

    Lar 241Exortação ao Sono 243Douro 244Sementeira 245Promissão 246Eternidade 246Conquista 247Colheita 248Telegrama 248

     Viático 249Encontro 249

    Elegia 251Fantasia 252

     Ajuda 253 Abyssus Abyssum 256Ode às Mulheres da

     Vida 257Lisboa 258Saudade 261Canção para o Alentejo 262Canção a Évora 263

     Amor 264O Vate 266Bonança 269

     A Cigana 271Canção para Minha

    Mãe 274Maldição 277Condição 278Ode 280

    Diário IV 

    Cantiga de Maldizer 283Regresso 285

     A Manuel de Falla 288Fonte Nova 289Maceração 290Litania 292In Pulverem Reverteris 294Poema 295Despertar 296Bucólica 298

    Testamento 299 Às Ninfas, por Um Voto 303 Alquimia 305Parto 307Enigma 308

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    7/26

    11

    Retrato 310Nocturno 312Crepúsculo 315

    Tentação 321Puericultura em ChãoPobre 324

    Mãe 325Gomes Leal 327

     Aniversário 329Minho 330Eterno Feminino 331Sugestão 333Idade da Poesia 334

    Ícaro 334Pequeno Testamento 336Termo de

    Responsabilidade 338Meditação 340

    Natal 341 Ano Novo 342Estampa 343

    Pequena História de UmMito 347Fado do Limoeiro 348Noivado 352Carta Familiar 357

     Vem, Doce Morte 358Depois da Chuva 359Biografia 360Suicídio 361Primeiro

    Poema da Primavera 362SegundoPoema da Primavera 364

    TerceiroPoema da Primavera 365

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    8/26

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    9/26

    DIÁRIO I

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    10/26

    Primeira edição: do autor, Coimbra, 1941

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    11/26

    17

    Coimbra, 3 de Janeiro de 1932.

    SANTO-E-SENHA 

    Deixem passar quem vai na sua estrada.Deixem passarQuem vai cheio de noite e de luar.Deixem passar e não lhe digam nada.

    Deixem, que vai apenasBeber água de Sonho a qualquer fonte;Ou colher açucenas

     A um jardim que ele lá sabe, ali defronte.

     Vem da terra de todos, onde moraE onde volta depois de amanhecer.Deixem-no pois passar, agora

    Que vai cheio de noite e solidão.Que vai serUma estrela no chão.

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    12/26

    Miguel Torga

    18

    Coimbra, 6 de Fevereiro de 1932 — Passo por esta Universidade como cãopor vinha vindimada. Nem eu reparo nela, nem ela repara em mim.

    Coimbra, 8 de Janeiro de 1933 —  Ao chegar, encontrei reunido na Centralo concílio dos deuses. Sentei-me prudentemente a distância.

    Coimbra, 1 de Março de 1933 — Continuam as matanças de gatos, à moca-da, cá na república. Uma selvajaria. Só quem assiste a isto pode avaliar oque é um homem primitivo. Não há Universidade que nos tire da idade dapedra lascada.

    Coimbra, 6 de Março de 1933 — Estoirei-me hoje dum carro eléctricoabaixo por causa de um filme de Charlot. Ia morrendo, ou pelo menos fi-cando sem um braço. Mas o filme mereceu o fato inutilizado e mereciatambém o braço a menos.

    Coimbra, 4 de Novembro de 1933 — Hoje, no café, aqui-del-rei que eu exa-gero, aqui-del-rei que conto uma anedota e a anedota sai da minha bocatransfigurada. Aqui-del-rei que descrevo um indivíduo e ponho bigodesde polícia onde havia somente uma discreta penugem. É certo, exagero. Co-meço a pintar um botão, e é capaz de me sair o cosmos. Mas pergunto:— Pondo como condição que não haja mentira em absoluto no que diz, quemé mais de aqui-del-rei: quem acrescenta, enriquece, aumenta e vivifica as coi-sas, ou quem as diminui, amesquinha, empobrece, achata e reduz a nada?

    Coimbra, 8 de Dezembro de 1933 — Médico. Conforme a tradição, mal obedel disse que sim, que os lentes consentiam que eu receitasse clisteres àhumanidade, conhecidos e desconhecidos rasgaram-me da cabeça aos pés.

    Só deixaram a capa. E aí vim eu pelas ruas fora o mais chegado possível àminha própria realidade: um homem nu, envolto em três metros de negru-ra, varado de lado a lado por um terror fundo que não diz donde vem nempara onde vai.

    S. Martinho de Anta, 3 de Março de 1934 —  Aqui estou enterrado em mon-tes até às orelhas, a receitar xaropes e a ler o Comércio do cabeçalho ao der-radeiro anúncio. «Pela cidade...» E vêm-me umas saudades dos eléctricos,das livrarias e do Joaquim António de Aguiar dentro da casaca de bronze àPortagem, que até estas pedras bravias se comovem. Já nem o negrilho pos-so ver! Ou saio daqui para um sítio onde haja ao menos um cinema, ou estaminha raiz, que mesmo do cabo do mundo bebeu sempre neste chão, secacomo um canoco.

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    13/26

    Diário I

    19

    Mas ir para onde, se não tenho com que mandar cantar um cego, nem amão de ninguém me acena de parte alguma de Portugal?

    S. Martinho de Anta, 5 de Março de 1934 — Como a gente se perde! A lin-guagem que o meu sangue entende — é esta. A comida que o meu estôma-go deseja — é esta. O chão que os meus pés sabem pisar — é este. E, con-tudo, eu não sou já daqui. Pareço uma destas árvores que se transplantam,que têm má saúde no país novo, mas que morrem se voltam à terra natal.

    S. Martinho de Anta, 6 de Março de 1934.

    PAISAGEM

    Hirtos, os montes velamO cadáver gelado do meu sonho.Num desespero íntimo, contido,Que seca na raiz toda a verdura,

     Velam seu corpo astral, caídoNuma vala sem fundo de amargura.

    Vila Nova, 7 de Novembro de 1934 — Acabou hoje tudo. Como sempre, fi-quei derrotado. Quando já não era possível ter ilusões, agarrava-me a umailusão ainda maior e... esperava. É coisa que nunca pude destruir em mim: aideia de que um ser, desde que nasce, fica logo com direito (e obrigação) de

     viver os sessenta anos da média. Pelo menos os sessenta anos da média.Muitas vezes me aconteceu ir a férias e assistir a uma sementeira de meuPai. Depois, ver o milhão ou o linho a despontar. E, embora sabendo que

    aquelas vidas eram efémeras, voltar à leira nas férias seguintes e ficar deso-lado ao ver lá, em vez de linho ou milhão, um batatal espesso. E dizer a meuPai: «— Então o linho que havia aqui? — Colheu-se em Agosto, filho.» Em

     Agosto, realmente, o linho amadurece. Nos curtos meses que a naturezadetermina, tira ao sol o mais calor que pode e enche-se dele. Depois dá si-nais de cansaço, e morre.

    Mas este pequenito ainda não tinha bebido nenhum sol. Ainda estavana primeira semana. Nem o caule sobriamente fibroso, nem a flor azul edelicada, nem a semente parda e madura. E foi por tudo isto que, ao chegarao quarto, tive a sensação mais dolorosa da minha vida. Ali estava, aindanão substituído por cevada ou centeio, mas prestes. A mãe lavada em pran-to. E ele, muito branco, muito discreto, voltado para a parede, a renegar decostas os remédios inúteis espalhados pela mesa-de-cabeceira.

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    14/26

    Miguel Torga

    20

    Um médico nem sequer pode chorar. Só pode pegar no bracito magroe morno, apertar a artéria inerte e ficar uns segundos a trincar os dentes.Depois sair sem dizer nada.

    Quem saberá por aí uma palavra para estes momentos? Uma palavra pa-ra um médico dizer a esta mãe, que entregou à vida um filho vivo e recebeuda vida um filho morto.

    Vila Nova, 11 de Dezembro de 1934.

    PRECE

    Senhor, deito-me na camaCoberto de sofrimento;E a todo o comprimentoSou sete palmos de lama:Sete palmos de excrementoDa terra-mãe que me chama.

    Senhor, ergo-me do fimDesta minha condição:Onde era sim, digo não,Onde era não, digo sim;Mas não calo a voz do chãoQue grita dentro de mim.

    Senhor, acaba comigo

     Antes do dia marcado;Um golpe bem acertado,O tiro dum inimigo...Qualquer pretexto tiradoDos sarcasmos que te digo.

    Coimbra, 4 de Fevereiro de 1935 — Que belo é ter um amigo! Ontem eramideias contra ideias. Hoje é este fraterno abraço a afirmar que acima dasideias estão os homens. Um sol tépido a iluminar a paisagem de paz onde

    esse abraço se deu, forte e repousante. Que belo e natural é ter um amigo!

    Coimbra, 6 de Fevereiro de 1935 —  A sina dos homens! Daqui a trinta anosjá ninguém sabe que Gary Cooper existiu. E, contudo, a cena da flor que vi

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    15/26

    Diário I

    21

    há pouco num filme dele é tão bela como a Vénus de Milo, como a Vitóriade Samotrácia, como um hino de S. Francisco de Assis.

    Gravar, riscar, esculpir, cavar numa pedra, num papiro, num papel, mas,em última análise, escrever — por ser a única maneira de eternizar a ex-pressão.

    Coimbra, 8 de Fevereiro de 1935 — Gostava de escrever hoje um belo poe-ma, forte, quente, luminoso, escarolado, em louvor da vida. É que, sem sa-ber porquê, respondi há bocado com palavras dum optimismo impressio-nante a um moço poeta que me exibia a sua decadência precoce. E doía-mea garganta nessa altura! Mas fui-lhe dizendo que qual morte ou qual cabaça!

     Vida! Vida conquistada em luta, como a do rebento do milho que empurra,empurra, e consegue levantar o torrão e ver o sol. — Qual morte, homemde Deus! Você já viu por acaso um pinheiro suicidar-se!

    Gostava de escrever isto num belo poema.

    Vila Nova, 10 de Fevereiro de 1935 — Não posso. Passar a vida assim, a jogara bisca com o prior, a levantar-me às tantas da madrugada para ir ver umdoente ao Gandramás, a ouvir e a contar histórias de caça o resto do tem-po, valha eu o que valer, é um destino que não mereço.

    Vila Nova, 11 de Agosto de 1935 — Quatro horas da manhã. Não há manei-ra de o sono vir. Porca de vida! O dia, o que já sabemos; a noite, a maravilhaque se vê: aos tombos nesta maldita cama, numa casa vazia onde nem umarmário ressona, a ler na  Montanha Mágica os liberalismos dum senhor Set-tembrini que já nem posso ouvir.

    Vila Nova, 1 de Novembro de 1935 — Depois de dias como o de hoje tenho

    a sensação do vazio absoluto. Os amigos têm que fazer, os doentes têm quemorrer, os livros parecem múmias, e a noite nem sequer traz sono. Louva-dos sejam o barulho e as facadas da Central!

    Vila Nova, 3 de Dezembro de 1935 — Morreu Fernando Pessoa. Mal acabeide ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelosmontes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte donosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eter-nidade sem ao menos perguntar quem era.

    Vila Nova, 22 de Janeiro de 1936 — A intimidade desta vida de aldeia é umespectáculo ao mesmo tempo repugnante e maravilhoso. Estrume da cabe-ça aos pés. Entre o porco e o dono não há destrinça.

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    16/26

    Miguel Torga

    22

    Mas, ao cabo, esta animalidade toda, de tão natural, acaba por ser purae limpa como a bosta de boi.

    Coimbra, 6 de Fevereiro de 1936.

    BRINQUEDO

    Foi um sonho que eu tive:Era uma grande estrela de papel,Um cordelE um menino de bibe.

    O menino tinha lançado a estrelaCom ar de quem semeia uma ilusão;E a estrela ia subindo, azul e amarela,Presa pelo cordel à sua mão.

    Mas tão alto subiuQue deixou de ser estrela de papel.E o menino, ao vê-la assim, sorriuE cortou-lhe o cordel.

    Coimbra, 10 de Fevereiro de 1936 — Põe-se a gente a ler estes Gides, estesMunthes, estes Malraux. E é sempre a mesma sensação de plenitude. Sem-pre a mesma sensação de que, depois daquilo, não vale a pena escrever umapalavra, de mais a mais nesta língua de que o diabo ainda se serve para falar

    à avó... Mas depois vem a revolta. Esta impotente revolta de todo o verda-deiro escritor português que começou por nascer atrás duma fraga e acabapor gastar a vida em Paio Pires, amanuense de secretaria. Metessem no bra-ço dum Gide uma manga-de-alpaca, e eu queria ver... Então um homemnasce em Paris ou numa terra lavada da Suécia, tanto faz, mestres logo àbeira do berço, todas as civilizações na biblioteca do pai, uma vida inteirapelo mundo além, e aqueles neurónios, e aqueles sentidos não hão-de rea-gir?! O mais bronco ser humano, quando fala com um Wilde, ouviu pelo

    menos falar o autor do  De Profundis. Evidentemente, é preciso mais algumacoisa do que ir à China e ter certa experiência para escrever  A Condição Hu-mana. Mas, sem um homem andar de avião, como há-de um homem ganharperspectivas de pássaro e falar de poços de ar?!

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    17/26

    Diário I

    23

    ... E a gente não tem outro remédio senão gastar as horas a fabricar estaprosa travada, mais circunlóquio menos circunlóquio, esta prosa perra eoca que chega a meter nojo aos cães.

    Vila Nova, 18 de Março de 1936 — «Cavam de sol a sol, comem um caldo,mas são felizes. Não têm preocupações...»

    Ouço isto na cidade e meto-me no comboio, indignado. Que estupidez!Como se o problema da quadratura do círculo fosse maior do que o proble-ma de saber se chove ou não chove no dia da sementeira. Que vale um boi,no café? Em termos de pura dor — nada. Pois digo que nunca vi ninguémsofrer tanto como o meu vizinho a quem morreu um esta noite.

    Sei a resposta: que quem sofre por uma ideia bebe, digamos, o sofri-mento na sua forma mais pura.

    Que me importa a mim! Tudo são homens. E ao cabo, ao cabo, tantopesa uma arroba de terra, como uma arroba de filosofia.

    Vila Nova, 4 de Abril de 1936.

    IMAGEM

    Este é o poema duma macieira.Quem quiser lê-lo,Quem quiser vê-lo,

     Venha olhá-lo daqui a tarde inteira.

    Floriu assim pela primeira vez.

    Deu-lhe um sol de noivado,E toda a virgindade se desfezNeste lirismo fecundado.

    São dois braços abertos de brancura;Mas em redorNão há coisa mais pura,Nem promessa maior.

    Vila Nova, 6 de Julho de 1936 — Aqui tenho à mesa-de-cabeceira o últimolivro ainda a cheirar à tinta da tipografia. Não há dúvida nenhuma que oconcebi, que o realizei, e que, depois disso, com os magros vinténs que vou

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    18/26

    Miguel Torga

    24

    ganhando por estes montes, consegui pô-lo em letra redonda — a formamaterial máxima que se pode dar a um escrito. E, contudo, olho esta reali-dade que eu tirei do nada, que bem ou mal arranquei de mim, com o mes-mo desânimo com que olho uma teia de aranha. E não é por saber de ante-mão que o livro vai ser abocanhado ou ignorado. Não obstante a lei naturalque aconselha a que não haja homem sem homem, é preciso que a santa ce-gueira do artista lhe dê a força bastante para, em última análise, ficar só econfiante. Ora eu tenho, como artista, essa cegueira. O meu desalento vemduma voz negativa que me acompanha desde o berço e que nas piores ho-ras diz isto: Nada, em absoluto, vale nada.

    Vila Nova, 14 de Julho de 1936 — Às vezes ponho-me a pensar se a aceita-ção calma da morte no homem da terra não será o resultado desta íntimacomunhão com o ritmo da natureza. No Inverno, árvores despidas; na Pri-mavera, folhas e flores; no Verão, frutos. No Inverno seguinte, árvores des-pidas; na Primavera, folhas e flores; no Verão, frutos. No Inverno a seguir...Eu bem sei que o homem da cidade tem por sua vez mil maneiras de notareste eterno retorno da vida e da morte. Parece-me é que ali a coisa não temesta nitidez, esta evidência, esta fatalidade.

    Vila Nova, 15 de Julho de 1936 — Um parto. A injecções, a ferros, a gritos ea lágrimas da povoação inteira, mas um parto.

    Um bicho de pernas gordas e olhinho azul. O senhor Newton.O pai, ninguém sabe porquê, mal o agarrou cá fora, que se havia de cha-

    mar Newton. Queria Newton.E o Conservador do Registo — uma fera de erudição — achou que o

    pai exagerava. Newton! Logo Newton!!! Mas eu disse que sim senhor. New-

    ton, que tinha lá?!De enxada na mão, é quase certo que o novo homem não vai descobrir

    outra lei da gravitação universal. Mas vai de certeza descobrir o sofrimento,e isso, cá no meu entender, chega perfeitamente para ele ter direito a usarna terra seja que nome for.

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    19/26

    Diário I

    25

     Figueira da Foz, 15 de Agosto de 1936.

    FADO

    Hoje a grande desgraça não fui eu:Foi um velho navio que partiuE me deixou no caisSem nenhum sonho mais.

    Vila Nova, 16 de Agosto de 1936 — Isto de religião está cada vez pior den-tro de mim. Depois de uns arrancos fundos e angustiosos, a coisa foi secan-

    do, secando, até chegar a esta mirra mística, que já não há Jordão teológicocapaz de vivificar. Mas quanto mais pobre estou desse conteúdo humano,mais cheio me sinto de desespero. O que eu dava para me levantar cedo es-ta manhã, ir à missa, e voltar da igreja com a cara que trazia o meu vizinho!Não é que eu tenha verdadeiramente pecados, ou que, se os tivesse, algumDeus fosse capaz de me lavar deles. (Até o último aldeão sabe que quandomuda um marco não há céu que lhe benza a maroteira.) Queria era sentir--me ligado a um destino extrabiológico, a uma vida que não acabasse com a

    última pancada do coração.

    Coimbra, 4 de Outubro de 1936 — Hoje declarei em casa de uns amigosque a maior prova de amor que um poeta pode dar a uma mulher é a sua in-timidade.

    Escrever versos diante dela é qualquer coisa como parir com um Cristoà cabeceira da cama.

    Vila Nova, 7 de Outubro de 1936 — Aqui na minha frente a folha brancado papel, à espera; dentro de mim esta angústia, à espera: e nada escrevo.

     A vida não é para se escrever. A vida — esta intimidade profunda, este sersem remédio, esta noite de pesadelo que nem se chega a saber ao certoporque foi assim — é para se viver, não é para se fazer dela literatura.

    Vila Nova, 9 de Outubro de 1936 — Em dias destes o próprio facto de ou- vir as pessoas se me afigura irreal. Qualquer coisa como uma imagem baça,sem ângulo e sem nitidez.

    Sons que chegam confusos, pela rádio, de um país distante.

    Vila Nova, 10 de Outubro de 1936 — Um Diário não é isto. Diário é o da-quele inglês que, para que ninguém o lesse, até uma cifra inventou.

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    20/26

    Miguel Torga

    26

    O que eu diria aqui se soubesse escrever em cifra!

    Coimbra, 26 de Outubro de 1936 — Corta-se este Outono à faca. Denso,maciço. Mas há quem resista, quem não queira amarelecer e cair das árvo-res abaixo. Esta manhã, por exemplo, à minha vista, uma velhinha de oiten-ta anos salvou dum monte de folhas secas e ramos mortos, que estavam àbeira do jardim público, uma flor serôdia que ali jazia soterrada, e entre-gou-a a um netinho de dois anos que tinha ao colo. E à noite, quando eucaminhava gelado numa rua adormecida da Baixa, uma voz aflita chamoupor mim. Era um pobre rapaz que tinha a noiva há duas horas desmaiada, equeria que lha tornasse ao normal, à vida, que era boa rapariga e gostava

    dela. Tinham ralhado um com o outro, era mesmo malcriada, mas muitoboa rapariga e gostava dela.

    Subi umas escadas íngremes, estreitas e lavadas, entrei num quarto,olhei a Julieta adormecida, e dei-lhe uma bofetada imensa, funda, no rostofrio, que doeu à família toda.

     Acordou.Entreguei a noiva viva ao noivo vivo, e vim por aí fora a pensar no que

    seria mais verdadeiro: se a linfa de desânimo que faz morrer tudo mal o Se-

    tembro chega, se o sangue instintivo que se guarda para reverdecer tudomal o Março começa.

    Vila Nova, 27 de Outubro de 1936 — Um belo dia de sol, e eu sem paisa-gem dentro de mim para o receber. Que destino este! Nem a gente ter for-ça dentro de si para aceitar estas dádivas puras da natureza! Os dias pas-sam-se à margem do que realmente é vida. Passam-se a ler no jornal coisastristes, ambições desmedidas, hipocrisias, guerras, e a recalcar cá dentro a

    mágoa de tudo isto. E daqui a meia dúzia de anos morre-se mesmo de vez,e adeus sol, adeus lua, adeus tudo o que o mundo tinha para se ver, e se não viu.

    Coimbra, 29 de Outubro de 1936 — Já não sei a propósito de quê, penseihoje nisto: que esta velha humanidade, tudo quanto seja acreditar que doise dois são quatro, quatro e quatro, oito, e oito e oito, dezasseis, muito beme sem nenhuma prova; agora quando lhe dizem que há gente que morre pe-la sua verdade, é preciso mostrar-lhe Sócrates a beber a cicuta, Catão com aespada enterrada no ventre, Cristo pregado na cruz — e nem assim.

    Coimbra, 3 de Novembro de 1936 — Grande discussão sobre a mania quea posteridade tem de publicar cartas íntimas de escritores mortos.

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    21/26

    Diário I

    27

    Defendi, já se vê, que era um atropelo ao respeito que se deve a um ho-mem, tornar público o que nele foi particular. Eu bem sei que o particular,na pena dum homem de letras, nunca é uma sangria desatada de tal ordemque não haja sempre duas regras do Vieira a doirar a pílula. Seja porém co-mo for. Tenha ele escrito com sinceridade ou não, com gramática ou não,com os olhos profissionais postos no futuro ou não, salvas aquelas excep-ções em que as circunstâncias o exijam ou o autor o estipula, custe a quemcustar, doa a quem doer, perca-se o que se perca, nada do que um escritornão quis publicar em vida deve ser publicado depois da morte.

    E escusam de me argumentar com a verdade de que muitos livros pós-tumos enriqueceram o património da humanidade e a glória dos seus auto-res.

    Cá para mim, a humanidade nem tem o direito de tirar ao indivíduoaquilo que ele espontaneamente lhe não deu, nem de lhe engrandecer onome contra a sua vontade.

    Coimbra, 6 de Novembro de 1936.

    CERTEZA 

    Não:Nunca saberás quem sou.

     Apesar destes beijos que te douE destas ironias que te digo,

     Vou contigoComo vou

     Ao lado dum inimigo.Vila Nova, 8 de Novembro de 1936 — Caso, não caso, torno a casar, e acabo

    por concluir que a verdadeira paisagem da minha vida é uma grande serranua.

    Uma árvore a dar sombra lá no alto? Eu sei lá! Ao sol, tenho a certeza que faço versos; à sombra, se calhar, adormeço.

    Vila Nova, 10 de Novembro de 1936 — Um Poema. Uma Santa Teresa na

    cova, com a telúrica consciência de que não há corpo santo que resistaà podridão laica. Mistérios que só eu entendo...

    Uma semana a aplainar isto. Entretanto, em frente, na oficina dele, nes-ses sete dias de febre, calmamente, um carpinteiro vizinho fez um carro.

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    22/26

    Miguel Torga

    28

    Coimbra, 12 de Janeiro de 1937 — Isto de saber que é nos enterros que me-lhor se manifesta o egoísmo dos homens, não é novo. Vem nos livros. Mas éconveniente experimentar. É sempre bom ir uma, duas, três vezes atrás deum caixão, e ver como a pouco e pouco o mar de gente se reduz e fica emnada. Como, de tantos amigos, chegam ao cemitério apenas três, e essestrês, furiosos por não terem podido escapar-se.

    Coimbra, 14 de Janeiro de 1937 — A maior desgraça da vida, vistas bem ascoisas, acaba por não ser a morte. Salvo aqueles casos catastróficos, que sobo ponto de vista do aniquilamento são uma perfeita maravilha, morre-sequando esta coisa que se chama corpo, por uma razão ou por outra, estápodre. Quando, afinal, a ele próprio já lhe não apetece viver. A desgraça

     verdadeira é esta de nós andarmos aqui a namorar o céu, a pisar a terra, ainvestir contra o mar — e nem o céu, nem a terra, nem o mar saberem se-quer que a gente existe.

    Coimbra, 18 de Janeiro de 1937 — É evidente que eu não queria mudar. A minha verdadeira vocação é ser assim, doente, infeliz, sempre maravilhadoe aterrado diante dos outros. Um dos meus maiores amigos, esse, desprezapura e simplesmente o semelhante, se não está ligado a ele por nenhumafecto e o encontra desarticulado da manada humana. Eu não. Não possodesprezar ninguém. Até os próprios inimigos me comovem quando melembro que opõem o indicador ao polegar.

    Sou assim, e quero acabar assim. Mas reconheço que deve ser uma gran-de comodidade ver passar um enterro sem tirar o chapéu.

    Coimbra, 25 de Janeiro de 1937 — Leitura de uma «Vida de Byron». Não hádúvida nenhuma que aquele homem foi uma espécie de Henrique VIII doreino da poesia. Coragem de ser quem era, e coragem de pôr a sua realezaao serviço do seu corpo. Pessoalmente, prefiro um Shelley honrado, a sus-tentar o sogro, a dar lebre por lebre, e sem sombras de incesto.

    Mas é evidente que se não fossem os Byrons que de vez em quando apa-recem na família dos poetas, a humanidade, com o desprezo que tem pornós, já nos tinha mandado capar a todos.

    Vila Nova, 2 de Fevereiro de 1937 — Passei a noite a jogar. Amanheci, comoera de esperar, arrasado e cheio de nojo de mim. Mas que hei-de eu fazeraqui, numa aldeia destas, uma noite inteira de Inverno, quando já não te-

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    23/26

    Diário I

    29

    nho mais nada que escrever, nem me apetece dormir? Além de que o jogo,em certas horas, enche-me todo. Atrai-me aquele oscilar da sorte, o acertare o não acertar pelas mesmas razões, aquele desfecho irremediável que vemnos olhos tristes de uma dama de paus. Bem sei que isto não diz nada àmaioria das pessoas. Às positivas pessoas que, pela boca de um amigo meu,se exprimem assim:

    — E então uns sujeitos que têm uma teoria para ganhar à roleta!Ora eu confesso que tenho por esses sujeitos uma grande compreensão.

    Uma teoria sobre os colóides, é uma vergonha dizê-lo, mas só a levo ao fimpor dever de ofício. Agora, uma teoria de ganhar à roleta! Santos irmãosmeus!...

    Lá por a teoria levar sempre à bancarrota quem a inventa? Ora, bolas!Porventura, os gigantes do Quixote eram gigantes?

    O que é certo, é que depois de uma noite destas estou arrasado, cheiode nojo de mim, mas, não sei porquê, com a sensação estranha de que fe-chei as contas do mês com a senhora patroa da pensão da Vida.

    Vila Nova, 5 de Fevereiro de 1937 — É escusado. Ou se lavram estes montesa instrução e a higiene, ou então não vale a pena um médico perder a vidaaqui. Estas santas pessoas adoecem, metem-se na cama como raposas na to-ca, e esperam. Se Deus faz o milagre, muito bem: erguem-se; se Deus nãofaz o milagre, mandam chamar o padre para os untar, o doutor para daruma satisfação ao povo, fecham os olhos, e não dizem mais nada.

    Coimbra, 4 de Março de 1937 — Um enterro. Uma pessoa amiga, da cida-de, que quis ir esperar o Dia de Juízo na paz agrícola de uma aldeia. E nãofez mal de todo, que a tarde estava realmente bonita e o campo maravilho-

    so.Lá, no cemitério lírico e doméstico, enquanto benziam o caixão e lhe

    desaparafusavam os metais, ainda me ri cá por dentro desta eternizaçãoque, desde os tempos mais remotos, os homens de cem contos para cimatêm conseguido. A burguesia egípcia secava-se como o bacalhau na Figuei-ra, punha-se à prova de fogo e de micróbios, e ali ficava, com o pequeno--almoço ao lado para o que desse e viesse. A de agora, mais lógica, entrin-cheira-se num caixão de chumbo, e confia nas reservas.

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    24/26

    Miguel Torga

    30

    S. Martinho de Anta, 30 de Abril de 1937.

    BUCÓLICA 

     A vida é feita de nadas:De grandes serras paradas

     À espera de movimento;De searas onduladasPelo vento;

    De casas de moradiaCaídas e com sinaisDe ninhos que outrora haviaNos beirais;

    De poeira;De sombra de uma figueira;De ver esta maravilha:Meu Pai a erguer uma videiraComo uma mãe que faz a trança à filha.

    S. Martinho de Anta, 4 de Maio de 1937 — Estava hoje na minha boa-fé aler o S. João da Cruz, e dou com isto:

    «Descubre tu presencia, y mateme tu vista, y hermosura,mira que la dolencia

    de amor no bien se cura, sino con la presencia, y la figura.»

    Estes místicos ainda são piores do que a gente...

    Coimbra, 27 de Junho de 1937 — «...trop amoureux souvent de ce quenous possédons déjà, nous perdons l’aigu sentiment de ce qui nous man-que, de nos défauts; et je vois hélas! aujourd’hui plus d’artistes que d’œuvres

    d’art ...» A começar por mim, estas palavras e as que se lhes seguem nos  Prétextes

    de André Gide, que li hoje, deviam ser dadas de purgante a muita gente cáde Portugal.

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    25/26

    Diário I

    31

     Buarcos, 20 de Agosto de 1937.

    SOMBRA 

    Um pinheiro.Olho esta vida aqui no areal,Serena, ao vento, ao sol e ao cheiroDeste mar animal;

    Meço-lhe o pé seguro, A largura dos braços e a certezaQue tem de cima a baixo de ser duroConforme lhe mandou a natureza;

    E deito-me à sombra dele, no chão,— No mesmo chão onde eu não pude serNada mais do que um bicho anão

     A gemer.

    Coimbra, 20 de Agosto de 1937 — Este N. não parece um homem. Pareceum fio eléctrico onde se apanha um choque mal se lhe toca.

    Coimbra, 23 de Agosto de 1937 — Sem lhe dizer o nome, aqui apresento àposteridade mais um amigo meu infeliz. Foi sério, honesto, respeitou a éti-ca, respeitou-se a si próprio, e por tudo isso é o mais desgraçado dos ho-mens.

    Bastava-lhe olhar com menos fé as muralhas da honra e do dever para

    que a sua vida fosse limpa como um jaspe; fiou-se na fortaleza dos dez man-damentos da moral, e nem ele se conhece no seu lodo.

    Não. A salvação não está numa regra de manual; é uma conquista que sefaz, pisando muitas vezes no caminho a presença melancólica da virtude.

    Termas de S. Vicente, 5 de Setembro de 1937 — Mais um dia perdido a enxo-frar o nariz. O ano passado, na Felgueira, as vinte e quatro horas de entãodeixei-as cair pelas escarpas do Mondego, a pregar moralidade a uma se-

    nhora que a não tinha. Hoje, já com mais trezentos e sessenta e cinco diasde velhice, não preguei nada a ninguém. Meti as ventas e a incredulidadeno bocal do inalador, e deixei correr. Deixei que a vida se escoasse na am-pulheta em frente dos meus olhos, feita areia miúda e persistente.

  • 8/19/2019 Miguel Torga Diario Vols i a IV

    26/26

    Miguel Torga

    S. Vicente, 11 de Setembro de 1937 — Estas cartas para a posteridade dãocabo de mim. Acabei agora uma que me pôs os miolos em água. Arre diabo!Para dizer que queria outro título numas prosas da  Revista de Portugal , estiveduas horas. E, se calhar, foram vírgulas a menos...

     A consolação que a cultura me dá é o Rousseau, com aquele génio todo,a gemer:

    «Je n’écris point de lettres sur les moindres sujets qui ne me coûtentdes heures de fatigue...»

    Como se a gaguez duma pena assim não fosse uma bênção de Deus!