mÁquina-rota: um jogo cartográfico e suas linhas inventivas
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA ARTE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES – PPGARTES
BRENO FILO CREÃO DE SOUSA GARCIA
MÁQUINA-ROTA:
um jogo cartográfico e suas linhas inventivas
Belém, Pará
2017
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA ARTE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES – PPGARTES
BRENO FILO CREÃO DE SOUSA GARCIA
MÁQUINA-ROTA:
um jogo cartográfico e suas linhas inventivas
Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Artes da
Universidade Federal do Pará como requisito para aquisição do título
de Mestre em Artes.
Orientadora: Profᵃ. Drᵃ. Wladilene de Sousa Lima
Linha de Pesquisa: Teorias e Interfaces Epistêmicas em Artes
Belém, Pará
2017
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Dados Internacionais de Catalogação- na-Publicação (CIP) Biblioteca do Programa de Pós-Graduação em Artes/UFPA
Garcia, Breno Filo Creão de Sousa
Máquina-Rota: um jogo cartográfico e suas linhas inventivas / Breno
Filo Creão de Sousa Garcia. - 2017.
136 f. : il. color ; 30 cm.
Inclui bibliografias.
Acompanha 1 jogo de cartas.
Orientadora: Professora Drª Wladilene de Sousa Lima.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Pará, Instituto de
Ciências das Artes, Programa de Pós-Graduação em Artes, Belém, 2017.
1. Arte-Criação de jogos. 2. Jogos de carta. 3. Brincadeiras. 4.
Expressão-arte. I. Titulo.
CDD – 23 ed. 794
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AGRADECIMENTOS
Belém, 26 de maio de 2017. Final de tarde, céu nublado e uma atmosfera agridoce, ao sabor
de pupunha e café quente invadem o paladar. É momento de dizer o que sinto em relação a
privilegiada experiência que tive nestes dois anos. O corpo estremece, o coração aperta, o traço
cambia. Alguns breves flashes surgem, me fazendo escrever.
E pensamento do peito se dirige à:
• Mamãe, exímia jogadora de dominó, e mulher de minha vida.
• Também ao meu pai e irmão, parceiros iniciais de aventuras de carro, ônibus e canoas
por viagens afora. Os saúdo com carinho!
• Ao pingu, pequenino, velhinho e tolo, gravado para sempre em meu coração com suas
peraltices, afagos e pequenos dramas cotidianos. Além dele, um alô para os animalescos
Bob, Capitu, Shade (ou Pretinha, ou Cinzenta), Clarice (ou Laranjinha), Frederico e
Maria Flor.
• Ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Pará, que com
sua equipe me proporcionou um espaço rico em afetividade e conexão.
• Aos professores e professoras do programa, por fazerem jus ao caráter criador de
mundos que as aulas precisam alimentar, de diferentes maneiras.
• Ao CNPQ, pela bolsa de estudos que manteve este corpo alimentado de suas
necessidades materiais enquanto imerso no processo criador.
• Ao querido Altiere Ponciano, pela escuta e presença marcante neste processo
transformador que tem sido a transferência analítica.
• Aos Membros do Corpo Freudiano, entre professores e colegas, pela parceria nesta etapa
recente de minha vida, em aprendizado pela psicanálise.
• À professora Wlad Lima, pela generosidade, interlocução, provocações e confiança no
processo de orientação.
• Aos colegas da turma de mestrado, pelos olhares atentos, pelos atravessamentos entre a
sala de aula e os corredores da casa-PPGARTES, pelo colo nos momentos de
necessidade, pelos questionamentos precisos e pelas diferenças, tão preciosas para a
afirmação da vida em coletividade.
• À professora Cláudia Leão, pela atenção e generosidade prestada do ato de escuta que
o trabalho necessita, além da afetividade que nos move, um ao encontro do outro, em
nossos trabalhos e nossa amizade.
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• À querida Maria dos Remédios, que chegou estrangeira no final deste processo, como
membro externa da banca, e tem sido uma nova e refrescante presença a alimentar meu
coração. Um salve a ti, querida amiga!
• Ao povo de teatro, do Grupo Cuíra ao Coletivas Xoxós, por me acolher com tanto afeto,
e me fazer sentir que há um teto quente e amoroso sob minha cabeça.
• Aos queridos e queridas da turma de licenciatura em teatro de 2016, que compartilharam
comigo pedacinhos importantes de suas vidas, na disciplina Trajetória do Ser. Em
especial, à docente Andréa Flores, hoje uma querida amiga e parceira de ideias, que me
recebeu e deu espaço para experimentações que foram cruciais neste processo.
• Aos amigos e amigas, entre jogos, bares, praias, artistagens e experiências únicas de
vida. Em especial Mauricio, Flor de Liz, Phill, Jamille, Adriano, Cinthia, Bianca, Felipe,
Samantha, Aline, Marcos, Rafael, Ramon, Romana, Leonardo, Milton, Andrea...
• Ao André, por todo o amor, suporte, orientações, calor, chamegos, sorrisos, lágrimas,
docinhos, aventuras, malinações, suspiros, conselhos, questionamentos, paciência com
minhas tolices, e pela futura aventura que nos espera adiante...
Gratidão, sempre.
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“As cartas devem lhe trazer sangue, e o sangue, dar-lhe a força para
criar.”
Gilles Deleuze e Félix Guattari
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RESUMO
FILO, Breno. MÁQUINA-ROTA: um jogo cartográfico e suas linhas inventivas. 2017. 134
fls. Dissertação (Mestrado em Artes) – Programa de Pós-Graduação em Artes, UFPA, Belém.
Este trabalho constitui o traçado de criação do jogo de cartas intitulado "Máquina-Rota",
com suas linhas compositivas e teóricas. Nesta escritura experimental, diferentes modalidades
de jogos e dinâmicas processuais de coletivos artísticos são vivenciadas em suas
potencialidades cartográficas; máquinas expressivas são inventadas por artistas destes
coletivos, deflagrando maneiras de experimentar as ideias em arte de forma potente;
inquietações impulsionam o artista-pesquisador a elaborar um jogo, operando a ideia de
menoridade nos arcanos maiores do tarô. Nesta trajetória de pesquisa, é acionada uma clave de
pensadores poéticos na literatura, teatro, artes visuais e jogos; pensadores filosóficos atuantes
no campo da diferença; e experiências ficcionais com histórias de vida, constituindo um
processo de individuação transversal entre pesquisa e vida. Uma máquina molecular, que emite
possibilidades de construção e desconstrução de si, para intensificar a existência.
Palavras-chave: Cartografia, Máquina Expressiva, Menoridade, Jogo de Cartas, Epistemologias
Poéticas
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ABSTRACT
FILO, Breno. ROTA-MACHINE: a cartographic game and it’s inventive lines. 2017. 134
pp.. Dissertation (Master in Arts) – Programa de Pós-Graduação em Artes, UFPA, Belém.
This work constitutes the tracing of creation of the card game entitled "Rota-Machine", with its
composition and theoretical lines. In this experimental script, different game modalities and
procedural dynamics of artistic collectives are experienced in their cartographic potentialities;
Expressive machines are invented by artists of these collectives, triggering ways to experience
ideas in art in a powerful way; Restlessness impels the artist-researcher to elaborate a game,
operating the idea of minority in the major arcana of the tarot. In this trajectory of research, a
key of poetic thinkers in literature, theater, visual arts and games is triggered; Philosophical
thinkers working in the field of difference; And fictional experiences with life histories,
constituting a process of individuation transverse between research and life. A molecular
machine, which emits possibilities of construction and deconstruction of itself, to intensify
existence.
Keywords: Cartography, Expressive Machine, Minority, Card Game, Poetic Epistemologies
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Carta Viagem. Ilustração de Deva Padma. .............................................................. 35
Figura 2 - Banquinho. Aquarela de Breno Filo, 2017. ............................................................. 41
Figura 3 - equações dos componentes de expressão na postura da cabeça em Kafka. ............. 54
Figura 4 - Carta Diabo. Tarot de Toth (Aleister Crowley e Frieda Harris). ............................. 56
Figura 5 - Mandala da Máquina-Rota, com o jogo montado. .................................................. 69
Figura 6 - Carta Parauá. Nanquim, de Breno Filo, 2016 .......................................................... 72
Figura 7 - Carta Icamiaba. Nanquim, de Breno Filo, 2017. ..................................................... 74
Figura 8 - Carta Buiúna. Nanquim, de Breno Filo, 2017. ........................................................ 76
Figura 9 - Carta Marajozinho. Nanquim, de Breno Filo, 2017. ............................................... 78
Figura 10 - Carta Tibira Verde. Nanquim, de Breno Filo, 2016. ............................................. 80
Figura 11 - Carta Namoradeiras. Nanquim, de Breno Filo, 2017. ........................................... 82
Figura 12 - Carta Zimbado. Nanquim, de Breno Filo, 2017. ................................................... 84
Figura 13 - Carta Onça. Nanquim, de Breno Filo, 2016. ......................................................... 86
Figura 14 - Carta Submerso. Nanquim, de Breno Filo, 2017. .................................................. 88
Figura 15 - Carta Tabuleiro dos Ciclos. Nanquim, de Breno Filo, 2017.................................. 90
Figura 16 - Carta Flexera. Nanquim, de Breno Filo, 2017. ...................................................... 92
Figura 17 - Carta Afogado. Nanquim, de Breno Filo, 2016. .................................................... 94
Figura 18 - Carta Agouro. Nanquim, de Breno Filo, 2017. ...................................................... 96
Figura 19 - Carta Mãe D'água. Nanquim, de Breno Filo, 2017. ............................................... 98
Figura 20 - Carta Mapinguari. Nanquim, de Breno Filo, 2017. ............................................. 100
Figura 21 - Carta Tajá Buiúna. Nanquim, de Breno Filo, 2017. ............................................ 102
Figura 22 - Carta Curupira. Nanquim, de Breno Filo, 2017. .................................................. 104
Figura 23 - Carta Boto. Nanquim, de Breno Filo, 2017. ........................................................ 106
Figura 24 - Carta Chamegar. Nanquim, de Breno Filo, 2017. ............................................... 108
Figura 25 - Dona Tumba. Nanquim, de Breno Filo, 2017...................................................... 110
Figura 26 - Carta Anhangá. Nanquim, de Breno Filo, 2017. ................................................. 112
Figura 27 - Carta Guajará. Nanquim, de Breno Filo, 2017. ................................................... 114
Figura 28 - Carta Fugitiva. Nanquim, de Breno Filo, 2017. .................................................. 116
Figura 29 - Tolo, eremita, bicha... Nanquim, de Breno Filo, 2017. ....................................... 121
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SUMÁRIO
ABERTURA: TRAÇANDO AS COORDENADAS 13
Coordenada 1 – Jogos: entre capturas e resistências 16
I. Brincadeira e diversão 16
II. Criação e magia 20
III. Jogos humanos 22
IV. Abrindo espaço para o caos 25
V. Jogar, devir, criança, e... 27
VI. Brincadeira e marginalidade 29
VII. Jogador? Potência de vida! 31
Coordenada 2 – Construindo um jogo cartográfico 33
I. Como se desenvolve uma cartografia? 34
II. Meadas 35
III. Um experimento em linhas 39
IV. Há lugar para a prudência? 42
V. Processo de individuação 43
VI. Interrogações 44
VII. A pele-mapa 45
VIII. A voz de um mundo 47
IX. Verdades inventadas 48
X. Questões 49
XI. Um modo de vida 50
Coordenada 3 – Experimentando a menoridade e os arcanos maiores 52
I. Máquinas Expressivas 53
II. O Diabo 55
III. Como ocorre a menoridade? 57
IV. O avesso do maior 60
V. Entre cartas 60
VI. Procedimento crítico 64
VII. Gaguejar para variar 65
VIII. Cortes e amputações 67
Coordenada 4 – Máquina-Rota 69
I. Parauá 73
II. Icamiaba 75
III. Buiúna 77
IV. Marajozinho 79
V. Tibira Verde 81
VI. Namoradeiros 83
VII. Zimbado 85
VIII. Onça 87
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IX. Submerso 89
X. Tabuleiro do Ciclo 91
XI. Flexera 93
XII. Afogado 95
XIII. Agouro 97
XIV. Mãe D'Água 99
XV. Mapinguari 101
XVI. Tajá Buiúna 103
XVII. Curupira 105
XVIII. Boto 107
XIX. Chamegar 109
XX. Dona Tumba 111
XXI. Anhangá 113
XXII. Guajará 115
XXIII. Fugitiva 117
Coordenada 5 – Um corpo tolo, eremita, bicha, e... sem órgãos 118
I. Uma rota começa pelo meio 118
II. O que é uma tatuagem? 119
III. Construindo para si um corpo 120
IV. Montagem para o Fora 124
V. Cartografando sonhos 125
FECHAMENTO: UM CONVITE AO JOGO 128
REFERÊNCIAS 133
13
ABERTURA: TRAÇANDO AS COORDENADAS
Proponho que joguemos. Com uma lufada de palavras, um desafio: imaginemos juntos
uma pequena brisa de rio, praia, mesa, amigos, uma partida de cartas. Que esta pesquisa em
criação artística, entre brincadeiras e trajetórias, seja um convite à experiência. Que a cada linha
construída, brote um caminho perigoso para a aventurança poética. Nos joguemos nesta
experiência! Esta é uma escritura para se ler sozinho ou acompanhado. A Máquina-Rota e as
pequenas sugestões de jogos citados continuamente neste trabalho são talhadas para se jogar,
para se averiguar o que pode um corpo enquanto joga. Este texto é um dispositivo para
experimentos coletivos em arte.
Um artista em formação possui grandes desafios pela frente, e um dos mais instigantes
se encontram nos modos como este organiza seu corpo e sua vida criativa. Lugares
institucionalizados, como a universidade, assim como a vida nômade dos coletivos artísticos
oferecem excelentes oportunidades de experiência para o encontro daquele que produz e
pesquisa na territorialidade da arte. Tais organizações oferecem caminhos potentes para uma
vida poética, mas não a resumem, pois, a função da arte é fazer brotar mundos através do
trabalho de criação artístico. A arte é um campo do fazer humano profundamente envolvido
com a intimidade de um povo, e uma escrita-artista reside nas conexões entre as atividades
expressivas e lúdicas que podem ocorrer nestes espaços artísticos de forma transversal à
trajetória e os porvires invocados por uma vida sensível.
Este artista, para pensar a pesquisa, recorre a uma cartografia para estabelecer um campo
de experimentação subjetivo e inventivo. Organizando os blocos de ideias em coordenadas,
abertas como mapas, este corpo escrito convida a conexão e à aventurança. Referências que não
são medidas e localizadas em pontos exatos, mas oferecem rumos, direções e sentidos
múltiplos, assim como são os movimentos do pensamento e da vida. Coordenadas escritas como
zonas de encontros territoriais entre as latitudes afetivas, que aqui explodem em experiências
diversas com jogos vividas ao longo da pesquisa; e as longitudes da experiência do pensamento
filosófico, político e poético condutores do processo de criação do jogo cartográfico intitulado
Máquina-Rota.
Uma vida que é conduzida por linhas inventivas, e reinventa suas memórias, desconstrói
seus ressentimentos, desalinha seu corpo, estabelece enfrentamentos – mesmo entre brinquedos
– contra tudo o que gera impotência. Atitudes que fortalecem as mãos de quem traça desenhos
e escrituras para estranhar o cotidiano, implicando questões a respeito dos jogos. Afinal, quais
as suas interferências na cultura política e social? Suas regras seriam fixas, dadas? Mesmo sob
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linhas ditatoriais, os artistas se inquietam com a imobilidade de algumas regras, e inventam ou
abraçam o caos, flertam com o acaso e com as variáveis da existência. Entre brincadeiras e
jogos, um devir-criança se potencializa. Uma série de divinos exercícios, que multiplicam as
possibilidades de produzir intensidades, num cotidiano tão saturado por construtos
aprisionadores, entre instituições e jogos regidos por estruturas estritamente racionais. Séries
de regras que fazem pesar a brincadeira e decepam a leveza e o acaso da vida.
Jogos cartográficos são os possíveis experimentos que herdamos dessas crianças que
insistem em nos possuir. Trajetórias traçadas em cartas que, ao contrário dos documentos de
navegação, nos fisgam e nos sequestram para rotas inauditas. Caminhos que pedem um
contínuo exercício de si, entre as diferentes linhas que atravessam nossa existência. Redes
subjetivas de poder, ou melhor, de desejo de poder, que pedem uma imersão, intensa e
inventiva, porém prudente. Feita com passos delicados, entre inocências e levezas.
Experimentos com diferentes instâncias da vida artística daquele realiza esta pesquisa são
acionados, para trazer as múltiplas vozes e mapas possíveis de uma vida que passa entre
instâncias de uma pesquisa em arte. Revelações inconscientes que fazem acontecer, durante o
processo de criação que subjaz a ideias na arte e na vida, um jogo que se compreende como
uma maneira de viver o momento de forma potente.
Entre grupos de pesquisa, coletivos poéticos da cidade de Belém do Pará, práticas
pessoais, práticas docentes na Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará, uma
ideia de menoridade se faz crucial para a constituição do jogo de cartas Máquina-Rota, uma
espécie de tarô às avessas. Uma máquina inventada para a prática da expressão de si. Uma rota
que ultrapassa o que poderia se resumir a um anagrama de tarô, e passa a firmar-se como uma
infinita possibilidade de sentidos, trajetórias e rotas narrativas e meditativas, conforme as
jogadas são realizadas. Para a composição deste jogo, uma série de procedimentos críticos são
engendrados, sobre as ideias dos jogos humanos agenciados aos arcanos maiores do tarô.
Arcanos como Louco, o Mago, a Papisa, a Imperatriz, o Imperador, o Papa, os Namorados, o
Carro, a Justiça, o Eremita, a Roda da Fortuna, a Força, o Pendurado, a Morte (ou Sem Nome),
a Temperança, o Diabo, a Torre, a Estrela, a Lua, o Sol, o Julgamento e o Mundo são amputados,
modificados, alterados, conforme os traços e os experimentos se dão.
Máquina-Rota. Jogo de cartas composto somente por arcanos menores. Um arcano
menor é uma série de paisagens para a experimentação afetiva. Cada carta, um emaranhado que
surge de uma política do imaginário, que coloca em primeiro plano, as personagens de uma
vida imersa em caminhos de memórias reinventadas num espaço conflituoso, a região urbana
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de uma certa amazônia. Um jogo que é obra de alguém que dá voz para um mundo íntimo falar,
toda uma coletividade com línguas, traços, proveniências e sabores únicos. Entidades
conceituais e sensíveis mutáveis, tão singulares quanto as vidas que se fazem devir-cartomante
e devir-consulente. Artistas que jogam e fazem diferença a cada lance do acaso. Junto do jogo,
uma escrita fabulada, que desdobra em palavras outros caminhos de experimentação narrativa
e filosófica para o Parauá, a Icamiaba, a Buiúna, o Marajozinho, a Tibira Verde, os
Namoradeiros, o Zimbado, a Onça, o Submerso, o Tabuleiro dos Ciclos, a Flexera, o Afogado,
o Agouro, a Mãe D'Água, o Mapinguari, o Tajá Buiúna, o Curupira, o Boto, o Chamegar, a
Dona Tumba, o Anhangá, o Guajará e a Fugitiva. Escrita e questionamentos produzidos sob o
formigamento de quem deseja se expressar, produzir um exercício de escuta e fazer falar um
microcosmo, um eu molecular que clama. Uma vida em jogo.
Corpo jogador é fugitivo. Tolo, Eremita, Bicha, e... completamente ilimitado. Vastidão
desorganizada em busca de experiências, de uma alteridade que dispare afetos, algo que
produza uma marca poderosa, ao se acoplar a uma máquina cartomante que não cessa de
produzir, entre desejos e vidas, o signo que move esta empreitada. Algo como uma forte
sensação, um vento que arrasta o corpo e o leva para um penhasco. Uma gélida brisa que
atravessa, envenenando e quase congelando o que toca, até o momento em que algo acontece,
e arromba para fora uma palavra, uma escritura, uma ação, uma monção, uma jogada. Um risco.
Essa sensação acontece sempre que um corpo encontra-se brincando. Um estado de jogo, um
devir-jogador. Algo inclassificável, não quantificável, não representável, imensurável. Uma
espécie de possessão assustadora que, no entanto, torna a vida, por instantes de minutos, ou
mesmo noites e dias inteiros, um processo pelo qual vale a pena se viver.
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COORDENADA 1 – JOGOS: ENTRE CAPTURAS E RESISTÊNCIAS
“A mãe disse: Mas se a onça comeu você, como é que
o caminhão passou por dentro do seu corpo?
É que o caminhão só passou renteando meu corpo
E eu desviei depressa.
Olha, mãe, eu só queria inventar uma poesia.
Eu não preciso de fazer razão”
(BARROS, 2013, p. 377)
Com o peso de uma vida voltada para a produção. Com a opressão de um sistema que
nos explora, muitos de nós sonhamos acordados com os minúsculos momentos nos quais
estamos leves e felizes. Nos acostumamos com a ideia de que cada semana de trabalho árduo é
um sacrifício, um preço a pagar, para tornar digno cada momento de descanso, de folga, de
diversão. Nos habituamos a pensar que a segurança de uma vida de trabalho árduo, tão e
somente, tornam relevantes os efêmeros momentos em que nos tornamos artistas e crianças
novamente. Nos acostumamos a não nos desafiar a pensar e agir fora desse limite. Se torna mais
fácil esperar para que as oportunidades melhores surjam, se elas surgirem. A ideia representada
dos contos de fadas, nos quais por uma virada da sorte, o azar é afastado de nossa existência
por algo, ou alguém, que brota de repente, e nos salva. Há algum tipo de solução para esse tipo
de circunstância? Uma solução distanciada dessa ideia de salvação e espera cristã, de algo que
nos tirará do torpor e do ressentimento está a nossa espreita, caso tenhamos paciência e apenas
esperar? Como nos apropriar de nossas realidades, de modo a inventar modos de vida poéticos
que contemplem, a cada um de nós, de forma singular? É preciso produzir, mas produzir para
si também. Inventar meios para roubar o mundo de volta para nós, roubar de volta traços de
infância, e traços de artista, que inventam o mundo por interagir com ele com uma inocência,
um olhar de primeira vez e de ressignificação das coisas. O poeta Manuel de Barros abre esta
escritura para nos lembrar dessa criança, desse artista, que são possíveis de acessar como devir,
e completa “Invento para me conhecer” (BARROS, 2013, p. 423).
I. BRINCADEIRA E DIVERSÃO
Brincamos apenas para espairecer? Em tempos livres de muitas pessoas, um jogo como
Magic: The Gathering1, pode agradar a muitos e muitas. Para jogar, necessita de dois ou mais
jogadores. Um jogo de cartas estratégico, no qual um compete contra o outro através dos efeitos
1 Jogo de cartas colecionáveis (modalidade de jogos também conhecida como TCG) criado por Richard Garfield. No Brasil, sua edição e tradução foi operado pela editora Devir. Mais informações: http://magic.wizards.com/en
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produzidos pelas cartas. Cada oponente inicia a partida com vinte pontos de vida, e perde o jogo
quem obtém seus pontos zerados primeiro. As cartas são extremamente diversas, e a cada ano,
desde o lançamento do jogo em 1993, novas coleções são lançadas, abrindo um grande nicho
de interesse para colecionadores. A cada nova edição, mais efeitos, personagens, e estratégias
são possibilitadas, renovadas ou revistas. Durante o jogo, cada jogador conta com um espaço
para construir seu território com as seguintes zonas: grimório, aonde os baralhos ficam, após
serem embaralhados, para a cada turno ser comprada uma carta; cemitério, lugar das cartas
inutilizadas e descartadas; mana, localidade dos terrenos, que possibilitam a convocação de
cartas; o campo de batalha, aonde são destacadas as cartas invocadas para o ataque e defesa; o
limbo, para onde vão as cartas exiladas do jogo; e o campo, para onde vão as cartas de
encantamentos, criaturas fora do ataque e artefatos. Cada jogador possui um baralho para si,
com suas cartas e táticas autônomas e singulares. A cada rodada, ou turno, um jogador, dentro
de suas possibilidades, amplia suas estratégias e mina o oponente com ataques até a sua vitória
ou derrota. É um jogo com uma pitada de caos envolvido, pois é necessário que as cartas sejam
compradas no momento certo para algumas estratégias serem exequíveis. Uma partida pode
durar do espaço de um recreio na escola, a algumas horas, dependendo do grau de dificuldade
das estratégias estabelecidas.
Para além do que se poderia definir como um mero divertimento, sobretudo entre
crianças, com seus brinquedos e passatempos, as formas expressivas que instauram o verbo
brincar produz um efeito. No momento em que ocorre a galhofa, algo acontece altera, por
intermédio dos afetos e percepções gerados, o modo como os brincantes encaram a realidade,
e mesmo afetam a realidade que os circundam, assim como as coisas do mundo acabam por
exercer pressões e efeitos em relação aos brincantes, numa rede de alteridades. Portanto o ato
do brincar gera um mais efeitos criadores, que reverberam e ultrapassam suas definições
originais. Com a brincadeira, também se agita – se bagunça – a cultura, a política e a
organização de um povo que vem adiante.
Diferentemente do brincar, o jogar é uma ação conectada às atividades, no âmbito físico
e do pensamento, dos jogos. É uma ação que ocorre em atribuição a uma série de coordenadas,
sistemas e modelos, aos quais se atribuem a noção de regra, de perda e de ganho. Jogos também
podem ser considerados como brinquedos ou brincadeiras, no entanto, isso se trata de uma
questão de perspectiva. Alguns exemplos de jogos que podemos considerar são: jogos
esportivos, como o futebol; jogos de salão, ou de azar, que envolvem apostas em dinheiro, como
o pôquer; jogos que envolvem alguma atividade ou investivação de âmbito psicológico ou
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terapêutico, como a psicanálise; conjuntos de operações, mecanismos, agentes técnicos,
dramaturgias, encenações, atmosferas, etc. relacionadas ao teatro ou quaisquer modalidade
interpretativa; e organizações protocolares, processuais e técnicas de instituições e ambientes
corporativos. Se podemos atribuir à brincadeira como uma territorialidade infantil, os jogos, em
suas organizações, situam-se num território adulto por excelência.
Adultos, para invocar suas próprias necessidades infantis, delegam às crianças os
brinquedos, que são de sua criação. Segundo Benjamin, os brinquedos situam uma confrontação
entre dois territórios, o do adulto e o da criança. Para ele, os brinquedos não são imitações o
mundo dos adultos, não são produtos de cópia, são coisas apropriadas da realidade para o
exercício da imaginação, da simbolização e da realização outra, da brincadeira afinal, sob a "lei
da repetição" (BENJAMIN, 2012, p. 270). O tal do "fazer de novo", que volta e meia proferimos
ou escutamos da criançada durante suas traquinagens são parte da essência do que se realiza
com os brinquedos. Entre a brincadeira e a sexualidade freudiana, existe um impulso que
ultrapassa o prazer, e clama pela restauração de um retorno, algo que foi o ponto de partida
daquilo que trouxe tanta satisfação, para brincar outra vez.
"A criança a recria, começa sempre de novo, esde o início. Talvez seja esta a raiz mais
profunda do duplo sentido da palavra alemã Spielen [brincar e representar]: repetir o
mesmo seria o elemento comum. A essência da representação, como da brincadeira,
não é "fazer como se", mas sempre de novo, é a transformação em hábito de uma
experiência devastadora." (BENJAMIN, 2012, p. 271)
Com esta sentença, podemos perceber que esta dupla raiz do brincar contém um duplo
jogo paradoxal que está entre algo que tenta repetir o mesmo, a representação, e aquilo que
produz a diferença na repetição, a brincadeira. Brincadeira esta que se encontra na invenção
desde os minúsculos hábitos, como por exemplo, comer ou dormir, que se inventam e
reinventam conforme as mudanças se dão na vida de um ser ou de uma coletividade. Tais
hábitos, ainda que se mostrem repetitivos, adequados aos padrões da repetição do mesmo, nunca
ocorrem de maneira igual, sempre são realizados de forma singular em cada existência. Dentro
de um mesmo jogo, com regras muito bem estabelecidas, cada jogador ou jogadora construirá
suas próprias estratégias, procedimentos e técnicas, e a esta construição de singularidade,
também se atribui ao território do brincar.
Se experimentarmos pensar a ideia de brincar, criar ou jogar como folga, diversão, folia,
com mais intensidade, imediatamente somos levados a pensar que se trata de algo secundário
em nossas vidas, de coisas que estão num plano de fundo. No entanto, não podemos nos enganar
a ponto de considerar que o lugar do jogar, da criação e do brincar encontram-se somente nesses
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momentos, seria simplório e reducionista. Tais ideias possuem grande territorialidade, e
incluem muitos dos trâmites de nossa sociedade. No contexto desta escrita, as relações humanas
em sociedade e com a natureza, não seriam possíveis sem tais qualidades. Vamos nos deter por
um instante no brincar e nos jogos. Se não nos dispomos a brincar com o que nos rodeia, nos
impedimos de nos concentrar em qualquer coisa. Para trabalhar, conversar, criar uma obra de
arte, desenvolver uma ideia, é necessário estabelecer com o mundo uma conexão inventiva. A
prática da brincadeira, desde nossa tenra idade, quando bem incentivada, é uma porta de entrada
para subjetividade e para o desenvolvimento dessa capacidade, como defende o psicanalista D.
W. Winnicott (1975). Ao contrário do que muito se desenvolveu na teoria psicanalítica a
respeito das brincadeiras, a qual havia, e ainda há, um imenso interesse com a interpretação dos
conteúdos enunciados por uma criança brincante, ele tinha o olhar voltado para a criança que
brinca e desenvolve o pensamento sobre o brincar como uma coisa a se pensar de forma
autônoma. Ou seja, era contra a instrumentalização da brincadeira para a obtenção de saberes
imediatos. Ele se preocupa muito mais com a expressão veiculada com o verbo brincar, do que
com as significações geradas pela brincadeira em si. Brincar era a prioridade, era o referencial
primário numa relação intersubjetiva. Numa relação analista e analisando, inclusive, a
capacidade de brincar era considerada primária.
Com Winnicott (1975, p. 69), estabelecemos uma aliança para iniciar um pensamento a
respeito dos jogos como uma prática que requer uma relação singular de espaço e tempo entre
corpos. Tais relações não acontecem num eu individualizado, ensimesmado, e muito menos
num fora, numa exterioridade incontrolável, no real.
Em jogos interpretativos como Werewolf: the apocalipse2, por exemplo, existe a
demonstração de um grande interesse no envolvimento de jovens e adultos em diversas questões
ecológicas e políticas em dimensões diversas, e é jogado sempre em instâncias coletivas. Seu
sistema e argumentos para as partidas encontram-se fragmentados em livros, manuais e
websites diversos, com várias edições. Jogo feito para se jogar ao vivo, ou em conferências
online, entre amigos e pessoas próximas, e supõe a pesquisa e criação de personagens a se
experimentar, como se fossem atores ou mestres de marionetes. As informações básicas dos
personagens encontram-se descritas num papel denominado “ficha”. Os jogadores interpretam
2 Este é um jogo interpretativo (Role Playing Game ou RPG), cujo gênero oscila entre a fantasia e o horror, criado por Mark Rein Hagen, Robert Hatch e Bill Bridges, e distribuido pela editora norte-americana White Wolf. Foi traduzido em português como "Lobisomem: o apocalipse" pela editora Devir, brasileira. Mais informações: http://www.wyrmfoe.com
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lobisomens que vivem numa espécie de alcateia, cuidando uns dos outros e delegando funções
estratégicas e de sobrevivência. Quando colocados em situação limite, ou um desafio qualquer,
lançam aos dados a possibilidade ou não de sucesso, o que denota a presença do caos sempre
trazendo algo de inesperado ao andamento do jogo. Lobisomens, cuja existência envolve uma
forte conexão com a dimensão espiritual do mundo. Um apocalipse se aproxima, e nesse
contexto, o arbítrio dos jogadores é pressionado para conduzir as personagens, e as personagens
intercedem pelos jogadores, em narrativas das quais eles se organizam, ou não, para evitar a
corrupção emitida por uma poderosíssima entidade espiritual, cuja existência ameaça toda a
vida na terra. Além disto, a relação entre jogador e personagem ocorre numa oscilação na qual
se torna indiscernível, em vários momentos, quem encontra-se em primeiro plano.
Ou seja, a experiência psicanalítica e pediátrica de Winnicott e a experiência de um jogo
interpretativo conhecido por muitos jovens e adultos, podem ser aliados para mostrar que existe
uma potência nos jogos que ultrapassam a concepção moderna de sujeito e objeto, e deste modo
instauram um movimento, um fazer lúdico que envolve pensamento, desejo, assim como uma
relação de compromisso do corpo como um todo. Brincar é fazer um corpo para si no mundo.
Para Winnicott, a brincadeira é um empreendimento de saúde. Baseado em sua experiência
clínica, ele afirma que o ato de brincar é um incentivo crucial para a conexão entre o indivíduo
e a sociedade que o atravessa.
II. CRIAÇÃO E MAGIA
É importante ressaltar que com sua experiência com crianças, as escrituras de Winnicott
estão fortemente conectadas a relação mãe e bebê. Ainda assim, ele não desconsiderava a
complexidade das relações sociais e políticas que atravessam essa relação parental. A mãe e um
bebê, para ele, estariam num permanente “oscilar entre ser” (WINNICOTT, 1975, p. 77), ideia
esta que nos leva a pensar num sujeito em constante devir, um indiscernível eu que se reinventa
e se recria com as práticas cotidianas. A relação entre mãe e filho constitui uma co-criação da
realidade. Quando se brinca muito, e se brinca bem, se instala o que ele chama de “controle
mágico”, onipotência inventiva, que faz a criança desenvolver uma relação de modelagem com
a realidade. Portanto a brincadeira constitui uma experiência transformadora, “sempre uma
experiência criativa, uma experiência na continuidade espaço-tempo, uma forma básica de
viver” (WINNICOTT, 1975, p. 84).
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Portanto, quando construímos uma ideia de que os jogos e brincadeiras fazem parte
unicamente do universo das crianças e da folga cotidiana, corremos o risco que tornar asfixiante
a relação com o mundo social, político e psíquico. Afinal, como não trabalhar com o que nos
diverte? Como construir uma maneira de tornar a vida mais alegre? Seria possível eu me
relacionar com o mundo social de outra maneira?
Aos jogos também são atribuídas significações do âmbito do desejo. Manhas,
estratagemas, planos, projetos, desígnios podem ser desenvolvidos como ou dentro dos jogos.
Quando investigamos um “jogo de alguém” normalmente estamos investigando as estratégias,
e gerando uma relação de competitividade, que em certa medida é comum, principalmente nos
esportes e jogos de azar. Portanto, se não praticamos a vida em sua dimensão de jogo, como
seremos capazes de lidar de forma estratégica com a realidade? Afinal, para fazer mundos, é
necessário desejar que esses outros mundos aconteçam. Um pequeno mundo possível: Animal
Crossing: New Leaf3. Um jogo que inicia com a escolha entre um personagem menino, ou
menina. Após a escolha, sua personagem é imediatamente empossada como prefeita de um
pequeno vilarejo, e cabe ao jogador emitir os comandos para que o seu avatar no jogo assuma
as funções e responsabilidades de um governante, para garantir a prosperidade, equilíbrio e boa
convivência entre moradores, tanto em questões de sociabilidade, quanto na relação entre os
cidadãos e o ambiente ao qual a vila se situa. O jogador é capaz de realizar projetos, de grandes
a pequenas construções, conforme os pedidos dos cidadãos chegam a sua secretária, uma
adorável criatura canina. Existe também a possibilidade de alterar a paisagem do lugar com o
plantio de espécimes vegetais de várias procedências, assim como a coleta de fósseis, espécies
de insetos, peixes, crustáceos e moluscos entre as árvores e as águas de rio ou oceânicas, e o
destino delas pode ser a casa de algum morador, o museu, e mesmo a sua casa. Também é
possível a coleta de tesouros, que volta e meia, sobrevoam a cidade, com um estilingue; e de
coletar objetos advindos dos sonhos, objetos esquecidos pelos vizinhos e devolvê-los, ou não;
também existe uma minúscula ilha, para nos momentos de folga, visitar e jogar várias pequenas
gincanas. Também existem acontecimentos especiais durante todo o ano, detalhe que torna o
jogo possível de se imergir diariamente. No entanto, o protagonista do jogo é programado para
demonstrar certas reações em relação ao jogador que controla, e inclusive fica entediado quando
trabalha por muito tempo, o que dá ao jogo uma interessante possibilidade de reflexão a respeito
do excesso de tempo em jogo.
3 É um video game de simulação de comunidade, com personagens animalescos e antropomórficos, produzido pela Nintendo para o aparelho Nintendo 3DS. Mais informações: http://www.animal-crossing.com
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Diferentemente do brincar, cujas definições dicionarizadas geralmente se atribuem a
uma atividade livre e de regras flexíveis, aos jogos existe uma regra que lhes é inerente. Existe
um acordo, uma série de linhas que antecedem aqueles que jogam, que geralmente são
acordadas antes, ou durante uma partida. Segundo Winnicott (1975), é importante que a
dinâmica de uma brincadeira, para ser saudável, precisa ser espontânea, e não submissa, para
satisfazer, promover clímax, excitação e, finalmente, promover um processo de subjetivação
capaz de trazer potência a existência de entre ser. Pois é apenas durante a prática, que uma
criança ou um adulto atingem sua potência criativa.
III. JOGOS HUMANOS
A respeito de como podem ser organizar as regras de um jogo, haveremos de tecer um
frágil e vagaroso fio de costura entre Winnicott e Gilles Deleuze. Relacionando o ato de jogar
humano à formação das ideias na coletividade que compõe a sociedade, Deleuze aponta: é nos
jogos e na brincadeira que a racionalidade, assim como são concebidas no paradigma moderno,
são dobradas para a dimensão espiritual, que envolve a subjetividade e as artes. Para ele, é
possível elencar dois tipos de jogos, reunindo diversas categorias: humanas e espirituais. É
importante salientar que quando trazemos Deleuze para este debate, a intenção é a de
acrescentar às qualidades já elencadas de criação inconsciente e ontológica nas atividades
lúdicas, qualidades políticas, filosóficas e sociais.
Quanto à humanidade dos jogos, Deleuze atribui elas a restrição de tudo a
especialidades, categorizações da existência que caracterizam os jogos em suposições de regras,
existentes anteriormente as suas formações; essas formulações ditas originárias causam efeitos
de previsibilidade, ou seja possibilidades de ganho e perda previsíveis; tais jogos necessitam de
ordem, de controle ou redução das forças caóticas, o acaso é diminuído, minimizado, conduzido
para fora ao máximo possível; qualquer imprevisibilidade é colocada num lugar do possível, do
já calculado, ou seja, perdas e ganhos, lucros e revés, etc.; o procedimento é sedentário: não há
um exercício de variação, seja na estrutura do que está dado, seja nos ideais, que são
conservados ao máximo. Qualquer diferença que surja tende a ser achatada e conduzida ao
caminho das regras pré-estabelecidas. Para Deleuze
“É esta a distribuição sedentária, em que há partilha fixa de um distribuído, segundo
uma proporcionalidade fixada pela regra. Esta maneira humana, esta falsa maneira de
jogar, não esconde seus pressupostos: são pressupostos morais, a hipótese é a do Bem
e do Mal, e o jogo é uma aprendizagem da moralidade.” (DELEUZE, 1988, p. 444)
Este jogo humano defende a reprodução e a adaptação dos corpos a regras e leis já
estabelecidas, negando à existência seu caráter criativo. A este jogo, podemos atribuir a ideia
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de modelo, de método, de religiosidade cristã, de capital, de sistema de arte, etc. Um jogo que
reproduz vários desses modelos: Diablo III4. Jogo para computador. Você escolhe, entre
algumas possibilidades oferecidas, um herói ou heroína. Com ele ou ela, que é uma amalgama
de anjo e demônio, passarás as percorrer os mapas que compõem o mundo do jogo. A ideia é a
salvação de um mundo que lida com a invasão de demônios vindos do inferno. Eis bem clara a
dicotomia entre bem e mal, inferno e paraíso, bem estabelecidas. O herói, ou heroína, ganha
mais recursos para enfrentar as hordas conforme as encaram, e a essa força conquistada a cada
batalha, se chama experiência. Dinheiro, armas melhores, jóias com propriedades especiais,
também são pilhagens importantes. Um mundo que, subitamente, torna-se inabitável, inseguro,
com pesadelos sempre à espreita. Possessões, invasões, cercos, zumbis circulam aos milhares.
Lugar seguro? Nenhum! Muros erguidos por toda parte, e os poucos cidadãos sobreviventes
das cidades e campos, entre mulheres e crianças, são confinados nos quartéis generais dos
heróis, com os exércitos. O mundo vive uma espécie de estado de exceção com a autoridade
demoníaca pairando no ar. Resta aos heróis a árdua tarefa de derrotar as hordas infernais,
algumas vezes em grupos de até quatro jogadores reunidos online, para formar uma espécie de
brigada. A missão: pilhar, matar e destruir qualquer sinal do mal instaurado no caminho. Entre
estratégias, retaguarda e conversas diversas, o suporte mútuo.
Construções humanas e institucionais que achatam a realidade conforme seus princípios,
e distribuem enunciados, leis, discursos e imagens como modos de existir únicos, verdadeiros
e indiscutíveis. Os jogos humanos, de tão concretamente estilizados e lapidados, dificultam a
percepção das tramas compositoras da vida no cotidiano. A humanidade dos jogos é dura feito
pedra.
A este jogo já se confunde com o exercício da representação, apresentando todos os
elementos desta: a identidade superior do princípio, a oposição das hipóteses, a
semelhança dos lances numericamente distintos, a proporcionalidade da relação entre
a consequência e a hipótese. (DELEUZE, 1988, p. 444)
É possível que as construções mais contundentes na constituição da sociedade capitalista
encontram-se entranhadas nesses modos políticos, sociais e subjetivos da constituição dos jogos
humanos. O modo como os corpos são atravessados por esses feixes de linhas duros e
opressivos, é deslumbrante. Dos pequenos hábitos ao modo como nos conectamos entre nós,
pessoalmente ou através da rede informacional da internet, luzes e maquinarias cerceiam os
seres contemporâneos para uma cultura informacional e moral, da qual jogos como o referido
4 É um RPG de ação para computadores com acesso à internet, foi desenvolvido pela Blizzard Entertainment e lançado em 2012 com versão inteiramente traduzida e dublada para o português. Mais informações: https://us.battle.net/d3/en/
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Diablo III fazem parte. Virtualidades, vídeos, livros, canetas, cadernos, roupas, remédios,
dinheiro, pequenos aparelhos... vórtices que tragam populações em direção de uma torrente de
informações e construtos criados para satisfazer um desejo de adequação, também imposto.
Diferentemente do que se pode imaginar, a ideia mais relevante para jogos humanos não é o
lucro, que possui apenas um caráter simbólico. Bancos e moedas são inventadas e reinventadas,
seguindo a lógica das crises e da mais valia. Hoje, uma produção muitíssimo observada, vigiada,
manipulada socialmente, é a subjetividade e toda a potencialidade criadora da humanidade.
Interessam aos que praticam os jogos humanos estabelecer relações de poder sobre a vida, sobre
todas as formas de vida.
Uma experiência de jogo com fortes qualidades de reforço a ideia de controle sobre a
vida: Pokémon Sun5. O jogador conecta-se a um vídeo-game, ou a um computador e escolhe
um jogo. Qualquer um, ao seu gosto. O meu? Pokémon, por ora. Após longa introdução, com
uma animação gráfica super produzida apresentando o argumento do jogo, somos apresentados
ao minúsculo protagonista da trama, que pode ser menino ou menina. Uma espécie de máscara,
de rosto que se veste para circular no mapa do jogo. Esse rosto tem mãe, amigos, inimigos, e
uma missão: salvar a ilha de Alola do desequilíbrio natural que sofre, devido aos abusos
cometidos por uma grande companhia de pesquisa tecnológica; e tornar nosso avatar o melhor
treinador de pequenos monstros. Para isto, é necessário capturar as criaturas que surgem nas
rotas e entre as cidades e lugarejos, adestra-los e treiná-los. A cada monstro capturado e
aprisionado, mais vantagens. A cada rival vencido, mais experiência e força para si e para os
monstros. Quanto mais intensa a relação de amizade entre o personagem protagonista e as
criaturinhas, mais elas irão se dispor a suportar os danos dos embates, e desmaiar cada vez
menos. Quanto mais territórios atravessados, maior a possibilidade de saquear novos itens,
independente do lugar em que se encontram. As vezes ganhamos artefatos de bom grado, as
vezes os compramos, as vezes os encontramos sob o solo por radares ou faro de algum bichinho,
as vezes roubamos mesmo. Quando conquistam todas as missões principais e o mundo está
salvo, uma nova cartela de possibilidades se abre aos campeões do jogo, inclusive, criaturas
antes ocultas passam a se revelar e se mostrar disponíveis para a captura. Criaturas feitas para
lotar grandes espaços, instrumentalizadas, caixas monstruosas para guardar monstros de todas
as variedades. Da água ao ar, do ordinário ao raro, um mundo cuja cultura gira em torno do
adestramento e das rinhas competitivas entre treinadores e suas equipes de pequenos monstros.
5 Ou Pocket Monsters Sun, é um jogo de RPG integrante da franquia de mídias intitulada Pokémon, disponível para serem jogadas no aparelho Nintendo 3DS. Mais informações: http://www.pokemon-sunmoon.com/en-us/
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IV. ABRINDO ESPAÇO PARA O CAOS
Mudando a direção da embarcação, encontramos o que seria a ideia de jogos divinos.
Para Deleuze, tanto em Lógica do Sentido, quanto em Diferença e Repetição, existe a atribuição
dessa ideia de jogo uma espécie de ideal, até mesmo utopia, a qual podemos atribuir o
desenvolvimento da capacidade de co-criação da realidade entre todos os fatores envolvidos
neles, do corpo ao ambiente em que se situa. Eles não estariam situados como algum tipo de
modelo, no entanto, Deleuze situa algumas caracterizações possíveis, ainda que seja impossível
mensurar a potência e a exequibilidade deles.
Seus princípios seriam outros, avessos e singulares em relação aos jogos humanos: 1°)
a regra não antecede o jogo, pois o mesmo incide sobre ela durante o acontecimento dele, e
mesmo quando ela é recitada, existe um acordo tácito de adaptação delas ao sabor das
necessidades de cada jogada, ou seja, a regra é construída durante o jogar; 2°) deste modo,
noções como a de vitória se encontram fortalecidas, e associadas às vidas ali presentes, deste
modo, não há vencedores ou vencidos; 3°) cada jogada produz um efeito de ganho diferente,
que incide em consequências contrárias as questões de causa e efeito, mas sim sempre
interessados nos efeitos que o acaso gera, nas consequências dele, sendo assim, cada jogada
produz efeito de potência, de criação de mais vida, de ganho, mas é preciso haver esforço para
isto acontecer; 4°) nenhuma variável é eliminada, cortada e reduzida, portanto, o caos é mais
do que relevante, ele é essencial; 5°) o acaso é o detentor das potências de criação de um jogo;
6°) não se adequa às jogadas a questões de quantidade ou qualidades, mas, sobretudo, ao
funcionamento e efeitos delas nos corpos, na maneira em que elas interferem na existência; 7°)
e o sedentarismo cede lugar ao nomadismo, ao passo em que todos os atos, em suas ocorrências
e repetições, se dão num plano aonde o caos circula e formula questões o tempo todo.
Se os jogos humanos compõem as instituições, de antemão podemos relacioná-los as
linhas que endurecem a vida em sociedade. O poder, a lei e a moral são suas engrenagens
cruciais. Já essa ideia divina de jogo só tem como motivação os jogos em si, sem a coerções e
modulações do trabalho normativo humano. Deleuze afirma que jogo divino é muito distante
da maior parte das coisas criadas pelo homem, com a exceção da arte. Segundo ele, a obra
artística está mais próxima dessa espiritualidade que qualquer coisa. A obra de arte, inclusive,
encontra-se aprisionada pelo sistema artístico que a permeia, com seus nódulos e tramas de
poder.
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Para expandir essa diferença entre os jogos humanos e divinos, me acoplo à produção
realizada por Deleuze e Félix Guattari ao construir a ideia de Máquina de Guerra e a de
Aparelho de Estado. Segundo eles, a Máquina de Guerra é invenção dos povos nômades, de
uma coletividade que não se situa presa à centralidade de um Aparelho de Estado, com todos
os seus aparatos de controle, distribuição e capacidade de poder sobre a vida sobre sua
populações. As máquinas de guerra são compostas por tudo o que alimenta esses modos de vida
resistentes, afirmativos e inventivos que se encontram do lado de fora do que institui como
sociedade de controle, segundo Deleuze. Entre Deleuze e Guattari, surge a máxima de que as
máquinas de guerra não são apenas exteriores aos aparelhos de estado, como também possuem
origem distinta, e no campo da poesia, do drama e, ao que nos interessa, aos jogos, tais teorias
se confirmam e ganham corpo.
"O xadrez é um jogo de Estado, ou de Corte [...]As peças do xadrez são codificadas,
têm uma natureza interior ou propriedades intrísecas, de onde decorrem seus
movimentos, suas posições, seus afrontamentos. Elas são qualificadas, o cavaleiro é
sempre um caveleiro, o infante um infante, o fuzileiro um fuzileiro. Cada uma é como
um sujeito de enunciado, dotado de um poder relativo; e esses poderes relativos
combinam-se num sujeito de enunciação, o próprio jogador de xadrez ou a forma de
interioridade do jogo" (DELEUZE & GUATTARI, 2012, p. 13)
Aos aparelhos de estado conectam-se a noção de jogos humanos, pois a eles a
representatividade das peças, das técnicas, das regras, das repetições do mesmo, das perdas e
ganhos se somam, tornando a prática um grande simulacro do que ocorre nos dispositivos
inventados pela sociedade contemporânea para se organizar em suas instâncias judiciais,
legislativas, executivas, enfim, em seus processos burocráticos.
"Os peões do go, ao contrário, são grãos, pastilhas, simples unidades aritméticas, cuja
única função é anônima, coletiva ou de terceira pessoa: "Ele" avança, pode ser um
homem, uma mulher, uma pulga ou elefante. Os peões do go são os elementos de uma
agenciamento maquínico não subjetivado, sem propriedades intrísecas, porém apenas
de situação." (DELEUZE & GUATTARI, 2012, p. 13-14)
Ao jogo oriental denominado go Deleuze e Guattari apontam as virtuosidades de um
jogo de guerra "sem linha de combate, sem frontamento e retaguarda, no limite sem batalha:
pura estratégia" (DELEUZE & GUATTARI, 2012, p. 14) que rompe com o significante
semiológico do xadrez, aonde tudo tem nome, função e qualidades pré-estabelecidas. Com o go
se realiza um jogo com espacialidade, codificação, legislação, movimento e tempo não-
demarcados. Ao go, ou a uma máquina de guerra encontramos a divindade dos jogos de
Diferença e Repetição e Lógica do Sentido num âmbito sobremaneira político, demonstrando
que a conexão entre o Estado e tudo o que vem de fora dele constitui uma relação,
essencialmente, de confronto e resistência.
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As obras artísticas, e os artistas, quando produzem em suas vidas a intensidade das obras que
fazem, são existências que habitam a territorialidade da resistência, a espiritualidade, fluxos
que fogem aos limites do capital. Quando falo em divindade e espiritualidade, me refiro ao seu
termo originário, que engloba toda a complexidade psíquica, emocional, sensível, racional da
existência. Me refiro a fluxos que não se curvam com tanta facilidade. Fluxos quilombolas,
indígenas, ciganos, artísticos. Movimentações nômades nas metrópoles. Corpos que dançam e
brincam. Escarnecem à lógica familiar dogmática. Esquizofrenia. Bufões risonhos e bem
“malinos”, que levantam do divã e dão giros nas encruzilhadas, torcendo as linhas escusas das
máquinas. Arthur Bispo do Rosário. Fernando Diniz. Karen May Sorensen. Johfra Draak. Louis
Wain. Francis Bacon. Lucien Freud. Yaioi Kusama. Costureiras e tecelões de fluxos e
ziguezagues difíceis de totalizar. Artistas, quando modelam suas vidas feito obras de arte,
exercitam a capacidade de imaginar o que não existe, e é de necessidade, o faz o produto da
fantasia, uma existência. Fantasia, nesta escritura, se alia novamente a experiência clínica de
Winnicott, para tornar-se sinônimo de criação, e não de representação do mesmo. Linhas
subversivas as quais são importantes para se conectar, para experimentar linhas de fuga, e
experimentar traçando deliciosas e perigosas alianças entre corpos. Sexualmente falando,
inclusive. Afinal, se nos recordarmos do trabalho de Michel Foucault a respeito da repressão
sexual realizada pelos dispositivos normativos da religiosidade, da saúde e da educação. Corpos
em jogos divinos, são corpos que podem gerar alianças singulares em qualquer lugar, sob a
força de qualquer jogada. Com rochas, arbustos, criaturas, seres encantados, enseadas, até
pequenos percevejos. Conexões diversas, para formular momentos de vida intrigantes e
cativantes. Produtores de sensações agradáveis, alegres encontros, boas relações.
V. JOGAR, DEVIR, CRIANÇA, E...
Na filosofia de Nietzsche os jogos e a brincadeira também assumem uma grande
importância, aparecendo vinculada a experiência do devir; ou seja, de uma experimentação com
movimentos de transformação, com o intuito de tornar a existência um pouco mais conectada a
inventividade e ao caos. Nietzsche reforça a ideia de produção de jogos ideais, visto que nada
permanece o mesmo na vida, como diria Heráclito, “não é possível banhar-se no mesmo rio
duas vezes”. Para lidar com as constantes transformações e reviravoltas da vida, conviver com
o incerto, sem nos apoiar em metodologias dadas e opressivas, nos resta cultivar a leveza de um
ser que joga longe da moralidade humana, e próximo da inocência e do esquecimento. Entre
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Deleuze, Nietzsche, e uma vida de artista, podemos também construir para nós um devir-
criança, a partir de Heráclito:
“Só vejo o devir. Não vos deixeis enganar! [...] Usais os nomes das coisas como se
tivessem uma duração fixa; mas até o próprio rio, no qual entrais pela segunda vez, já
não é o mesmo que era da primeira vez” (NIETZSCHE, 1995, p.40)
O Devir seria um jogo que assume as forças contingentes, por vezes paradoxais, que
coloca as coisas do mundo num processo de constante mudança. Uma obra de arte, uma
performance, um expediente de trabalho, mesmo que tenham uma duração semelhante, sempre
será afetado por diferentes movimentos. Conflitos, embates, tropeços, erros, acertos,
revelações, acidentes, encontros, tudo num constante movimento, formam o devir. E o artista
que brinca, que acessa um devir-criança, se deixa levar pelo perecimento das coisas e das ideias,
pelos processos de criação que envolvem construção e desconstrução, costura e descostura do
tear de Penélope, sem qualquer conexão com o peso da moralidade, instituída pelo homem junto
com a má consciência, a culpa e o ressentimento. Como diria Nietzsche “assim como brincam
o artista e a criança, assim brinca também o fogo eternamente ativo, constrói e destrói com
inocência” (NIETZSCHE, 1995, p. 50). A inocência produz um efeito na brincadeira que a
retira de qualquer responsabilidade, diga-se culpa ou má consciência. Afinal, na brincadeira,
não se age por querer fazer um bem ou mal. Se ocorre um erro, um tropeço, uma tolice, é porque
existe uma culpa agindo. A brincadeira dá ao artista e a criança a liberdade para experimentar
a vida sem medo de cometer deslizes, não temendo mais a perda, o revés.
Em Deleuze, a inocência “é o jogo da existência, da força e da vontade. A existência
afirmada e apreciada, a força não separada, a vontade não desdobrada, esta é a primeira
aproximação da inocência (1976, p. 19). Brincar é exercitar um imenso sim para o viver, para
viver a vida tal como ela se apresenta, com todas as suas intempéries e beleza; é um exercício
que se feito com frequência, produz força para a criação; e produz desejos, produz motivação,
mesmo quando se brinca de virar pedra. Imobilidade não é sedentarismo, mesmo o desejo de
produzir um ‘nada’ envolve a afirmação de alguma coisa em estado desejante.
A brincadeira alegre do artista infante é o que nos resta, é o que há. O ato de brincar é
uma relação com o tempo no qual se experimenta uma dose intensa de liberdade: criação de
paisagens, invenção de obras, jogatinas com a vida. Entre a humanidade e o divino, um
apoderar-se do tempo para não mais obter uma liberdade somente no brincar, mas de perceber
que a liberdade já se encontra inerente a todas as ações, daí a ausência de regras, e a necessidade
de inventá-las durante o percurso. Entre a criança e o artista, não mais um sujeito que brinca
livremente, mas a encarnação da liberdade, e ao mesmo tempo não. Somos livres e somos
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limitados, e a experiência da brincadeira nos força a descobrir quais são os limites de um
instante. Entre o devir e a brincadeira, nos deparamos com a expressão da multiplicidade que
nos atravessa, a força de criação da diferença, o movimento que nos energiza, tão intensamente
por vezes! A prática do jogo nos proporciona um estado misterioso, o vir a ser, em sua máxima
potência, o que nos afasta da ideia de identidade. Afinal, se exercitamos o brincar como prática
de vida, não somos nada, apenas estamos. Um estar infantil, artístico, louco, sem destino outro
que não uma metamorfose ambulante...
Brinquemos então! Para cultivar essa inocência, e para esquecer também. Ao devir-
criança, como já foi mencionado, não nos atrelamos ao erro, pois ele é o efeito de uma
consciência caminhando em direção a moralidade e a consciência, e não em direção das
florestas da inconsciência, por onde o devir transita, e se perde. O esquecimento é propriedade
da brincadeira, pois ela é fruto da expressão de um devir “criança que não tem ainda um passado
para negar e que brinca, na sua feliz cegueira, entre as balizas do passado e do futuro. Um dia,
porém, sua brincadeira foi perturbada e sobreveio logo ela ser arrancada de sua inconsciência”
(NIETZSCHE, 2005, p. 71). Vivendo o presente de forma intensa na brincadeira, como uma
criança, não nos atrelamos ao passado e nem ansiamos pelo porvir. O esquecimento possui esse
ganho, essa leveza, essa força, e passa a ser uma prática também. Uma arte do esquecimento é
o brincar. Uma arte que não anula os efeitos dos tempos alheios ao presente, mas a qual se
atribui uma técnica de renovação do olhar, a propriedade de nascimento de uma percepção
diferente. Algo como o que produz Manoel de Barros, em matéria de poesia. Pode o passado
ser reinventado? Como as memórias funcionam então, se não são representações do passado
reelaboradas?
Novamente o artista e a criança brotam com a potência de uma memória outra, diferente.
Com a formulação de Manoel, tudo se torna mais palpável: “Tudo o que não invento é falso”
(BARROS, 2013, p. 319). Com a brincadeira, mesmo o olhar sobre o passado pode obter uma
infinidade de caminhos possíveis, ideia que é desviante do lugar comum do passado como
ressentimento aprisionador, ou do excesso de reverência às experiências passadas alegres, a um
passado ao qual nunca se retorna, e que torna o presente impotente, por ser insuficiente. Por
isso a necessidade de reinventar o passado do artista que trabalha com a matéria de sua vida, é
a de tornar o passado, matéria de poesia. Despedaçar o que passou, para viver com saúde, para
nos permitirmos viver bem.
VI. BRINCADEIRA E MARGINALIDADE
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Com Kafka e Deleuze, podemos arrastar a brincadeira para as linhas de fuga. Ao ato de
ir para o lado de fora do mundo que construímos para nós. A criança foge, sai correndo por aí.
Seja para obter coisas, seja para se afastar do que a assusta. Fugas intercontinentais do berço
até o quintal. Para quê repousar quando se tem tanta energia? Vamos fugir? Seja ao desenhar
pelas folhas de papel, paredes de casa, debaixo dos lençóis, corredores obscuros da escola (e
em certo momento da vida, a própria escola pode ser um refúgio, principalmente quando
encontramos importantes amigos e amores). Existem prazeres secretos nas escapatórias. Sair
correndo de si, numa circunstância da qual não havia outro rumo a tomar. Com Deleuze, o
verbo fugir se conecta ao brincar, um modo de vida. Mas conecta-se ao brincar distanciado dos
jogos dos homens adultos, e se conectam ao divino jogo de criança. Ao trabalho das linhas
cartográficas que produzem linhas de fuga, de infinita multiplicidade, para desafiar as amarras,
as constrições paradigmáticas. Brincar em Deleuze, é uma forma de guerrear. A brincadeira é
uma Máquina de Guerra. Atividade marginal que procede rompendo os estratos e diagramas de
poder dos jogos humanos. Gregor Samsa, personagem de Kafka, por exemplo, se desinteressa
por tudo que abrigava seu passado depois que tornou-se barata, na novela A Metamorfose. O
artista, a criança, o fugitivo, o louco, ao serem rejeitados e pormenorizados pelas instituições,
se desinteressam delas e vão procurar outras rotas.
Essa multidão de gente que brinca num mundo cujos valores estão transtornados; isto é,
num mundo cujos valores não estão necessariamente atrelados aos valores pré-estabelecidos,
mas reinventados segundo a perspectiva singular do devir-criança. Deles tudo se pode esperar,
pois vivem num mundo sem Deus, sem valores determinados e determinantes. O que podemos
inventar, quando Deus desaparece? Tudo! Daí a fantasia ganha força para a criação de mundos
íntimos, aos quais os enunciados circulam com folga, e os papéis do jogo mudam conforme a
necessidade pede. Um mundo além do bem e do mal. Uma experiência perigosa: Cards Against
Humanity6. Jogo de cartas curioso. Em sua embalagem, estão contidos dois baralhos: um de
perguntas e sentenças para completar; outro, de respostas, nomes de celebridades e outras
palavras. Feito para se jogar em grupo, o jogo começa com cada jogador formando uma mão
com sete cartas de respostas, que são brancas, e muitas com humor negro apuradíssimo. A cada
rodada, um jogador compra um card de pergunta e a profere. Aos outros é proposta a tarefa de
utilizar uma ou mais cartas brancas para responder a pergunta, ou completar a sentença. A
6 Ou Cartas Contra a Humanidade. É um jogo de cartas com palavras e enunciados considerados bastante ofensivos, e de humor de caráter arriscado, criado para festas distribuido sob a licença Creative Commons. Pode também ser baixado gratuitamente. Mais informações: https://cardsagainsthumanity.com
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resposta mais engraçada, na perspectiva de quem proferiu a sentença ganha um ponto. Ganha a
partida quem acumular mais pontos no final.
Afirmar a brincadeira é experimentar algo para além das amarras institucionais. No entanto,
isto não é uma negação do poder. Até mesmo porquê fugir das redes de poder é impossível. As
brincadeiras e os jogos acontecem em meio aos atravessamentos do poder. É entremeando essas
redes que podemos resistir ao imperialismo dos jogos humanos. Tampouco é construindo um
novo dualismo que isto ocorre, mas instaurando uma fissura, cavando uma toca, abrindo espaço,
construindo um novo lugar, uma fissura, para fazer a diferença, a arte, a espiritualidade, a
resistência acontecer no meio dos jogos humanos. Segundo Deleuze e Guattari, existe uma
necessidade de produção de dispositivos, ou máquinas de guerra. Brincadeiras que não são
exatamente contra a ideia de poder, ou mesmo de um exílio ao poder, mas maneiras para fazer
com que a diferença aconteça, com que o caos prolifere, e o devir-criança brincante é um
importante componente expressivo para essa atitude revolucionária, entre palavras de ordem.
“Será destacada uma palavra de ordem da palavra de ordem. Na palavra de ordem, a
vida deve responder à resposta da morte, não fugindo, mas fazendo com que a fuga
aja e crie. Existem senhas sob as palavras de ordem. Palavras que seriam como que
passagens, componentes de passagem, enquanto as palavras de ordem marcam
paradas, composições estratificadas, organizadas. A mesma coisa, a mesma palavra,
tem sem dúvida essa dupla natureza: é preciso extrair uma da outra – transformar as
composições de ordem em componentes de passagens. ” (DELEUZE & GUATTARI,
2011, p. 62)
A brincadeira da criança não é contra o que está posto, e sim uma abertura da realidade
para o novo. A brincadeira não seria uma outra coisa a se considerar, e sim uma fenda, uma
tremulação do real em algo inaudito. Portanto, não estamos numa luta contra os jogos humanos,
mas a favor da vida que pulsa sobre eles, em toda a sua capacidade de gerar mais vida, e dar
vozes a toda a multiplicidade e força que pode habitar um corpo. Brincar é uma experiência à
margem dos centros, um momento alimentado por forças que não são capturadas pelos
aparelhos do estado, portanto menores. Como veremos adiante, a experiência menor não é, de
maneira alguma, uma redução, uma irrelevância. Pelo contrário, é um ato político, linguístico
e de coletividade, que recusa e cria resistência às características das maiorias, sobretudo quanto
a opressão gerada por elas, em nome de uma potência da pobreza, que passa claramente longe
da ausência de recursos, e atinge um ato nômade, sem teto, desterrado, não fixado em território
algum. Uma vida que gira e exercita movimentos que ultrapassam a banalidade do status quo.
VII. CRIANÇA? POTÊNCIA DE VIDA!
“A criança não se liga à conservação nem apenas à destruição, mas à afirmação pura,
gerando, enquanto brinca, novas interpretações, novas aberturas vitais. [...] Não cabe
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à criança projetar, realizar, dar forma, mas, criar. [...] Criando, [...] afirma outros
campos de compreensão de mundo e vida, destruindo, se permite lançar-se novamente
para outra criação, para tornar-se o que se é. Nesse jogo artístico criador e afirmador,
o indivíduo se permite dar a outros sentidos a sua existência, superando cada vez mais
a si mesmo, elevando-se.” (BRITO, 2007, p.154)
Por fim, um jogador divino – ou devir infantil – está atento à vida que se faz, desfaz e
refaz nos espaços em que transita, entre jogos e brincadeiras. Entre Heráclito, Deleuze e
Zaratustra de Nietzsche, uma criança emerge como algo a se conectar para cultivar o ato da
criação na vida humana, segundo Maria dos Remédios Brito. Aqueles que pesquisam, que
produzem em suas vidas a intensidade de uma vida artista, podem tornar-se o que são. Um
eterno por vir criança. Seu procedimento é o movimento criador, e se constitui, assim, em uma
constante relação de inocência e esquecimento, porque se interessa pela vida no presente e é
também capaz de pôr a vida para se movimentar. Por acreditar que a arte, o cotidiano, o modo
de vida, as leis dos jogos humanos, e suas dicotomias podem ser alvos de um permanente
processo de reinvenção de si e do mundo. Por acreditar que uma escrita pode movimentar as
linhas que vêm compondo e pintando os territórios da sua existência — um jogo cartográfico
que inspira e logo conspira por outras composições, animado pelo trabalho de mapear as linhas
de um território interior, e que outras linhas podem ser aí traçadas.
Em sua divindade, um jogador divino – ou artista – põe seus olhares nômades em estado
de experimentação com o ambiente que se inserem, constituindo-os e dando-lhes formas e
funções singulares. É com seu olho, que conduz a mão que desenha sobre a folha suas
personagens e histórias, abre espaços às trajetórias do traço e às linhas dos devires. É rebelde
porque está atento àquilo que escapa aos códigos dominantes dos jogos e de suas regras fixas.
A brincadeira é uma atividade que ganha força na criação e na evocação de lugares
únicos, pois aquele que brinca, enquanto cartógrafo no processo de criação fabula, desenha,
alinha mundos diferentes. Não brinca em mundos preexistentes, não cria modelos ou regras
para serem seguidas, como nos jogos, mas abre caminhos, nem que seja à força, para a
experiência de novas singularidades. Faz, em linhas de caos, uma máquina expressiva de afectos
e perceptos, inscrições inéditas em um império dos significantes e do poder sobre a vida. É
nesta escrita que o movimento da pesquisa cartógrafa, finalmente, ganha seu sopro de vida, sua
intensidade e sua multiplicidade. A cartografia nos inventa enquanto artistas, afirmadores de
vida, e a pesquisa tem a função de atualizar a potência de uma vida artista. Vamos experimentar
brincar de cartografar a criação de uma vida criança, poeta, louca, fugitiva? Vamos construir
nossa máquina expressiva? Vamos abrir fissuras para afetos políticos, linguísticos e coletivos
diferentes do que está dado? Vamos?
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COORDENADA 2 – CONSTRUINDO UM TARÔ CARTOGRÁFICO
“Os poetas não têm pudor em relação às próprias experiências: eles as exploram”
(NIETZSCHE, 2004, p. 71)
“O reparo, a travessura, a sorridente suspeita, a zombaria são sinais de saúde: tudo
absoluto pertence à patologia”. (NIETZSCHE, 2004, p. 71)
Um artista explora sua experiência transcrita em mapas, seja no ato de produção, seja
na fruição e contemplação de uma obra. Uma obra de arte, por excelência, é um emaranhado
de trajetos e devires, ou seja, de possíveis vias de conexão e experimentação. Uma pesquisa em
arte, sobretudo na composição de uma obra artística, pode constituir uma cartografia.
O que seria uma cartografia, na perspectiva deste trabalho, a princípio? Conceito
construído como um dos princípios epistêmicos do rizoma, por Deleuze e Guattari no livro Mil-
Platôs, a cartografia transborda metodologias. Ela constrói um mapa que nos instiga a viajar,
sair dos limites, encontrar movimentos e dedilhar a pesquisa, que assumidamente encontra-se
em fluxo. A cartografia é um processo materializado, um jogo de montar cujas peças são
móveis, longe de fixidez. Este trabalho se constitui deste modo pois existe a compreensão de
que jogos são criados com o intuito de serem jogados de modo continuo. É uma ou várias
práticas a se cultivar. Cada linha da cartografia é desmontável, suscetível e recambiável. Não é
ideia de um recorte-situação, mas de acompanhamento de processos-fluxos, trata-se de um
mapeamento de possibilidades da imagem do pensamento e do inconsciente.
“o mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói [...].
O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível,
suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido,
adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um
grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como obra
de arte, construí-lo como uma ação política ou como uma meditação. Uma das
características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas
entradas... (DELEUZE, GUATTARI, 2011, p. 30)
Um princípio ético da cartografia: problematizar a neutralidade científica. Um trabalho
cartográfico requer o mergulho ao que não é familiar, atravessamento de forças e formas. É um
processo nos altera. Nos torna estranhos às imagens que temos do mundo, e de nós mesmos;
nos transforma, quando nos deixamos transitar por suas linhas de composição. O rizoma das
múltiplas memórias corporificadas são fios que atravessam coletividades, e o pesquisador,
quando transita constantemente neles, pode perceber as afetações nos movimentos de conexão
e heterogeneidade. Cartografar não se dissocia do papel interventivo da pesquisa. Se
assemelhando, brevemente, ao método etnográfico, em seus aspectos imersivos. A cartografia
é uma máquina de afetar; é desejo de afetar. É uma série de operações voltadas para um ser
reconhecidamente em processo, produzindo desejos. Se ela vai funcionar, não importa muito,
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pois acredito, com muita força, que um ser atento aos fluxos da vida sempre será capaz de
encontrar outras linhas de fuga, e as habitar.
I. COMO SE DESENVOLVE UMA CARTOGRAFIA?
“A vida é uma continuidade, sempre e sempre. Não existe um destino final ao qual
ela esteja se dirigindo. Apenas a peregrinação, apenas a viagem em si já é a vida, não
o chegar a algum ponto, a alguma meta – apenas dançar e estar em peregrinação,
movendo-se alegremente sem se preocupar com algum ponto de chegada”
(OSHO, 2014, p. 113)
Não existe uma receita pronta, mas possíveis itinerários, que podem ser desmontados e
percorridos de n maneiras. A cartografia é avessa a ideia de método, ela é subversiva por
natureza a toda forma de ação puramente objetiva. Ela não se limita a uma série de ações tendo
como objetivo um produto acabado. Ela pode ser considerada como uma espécie de plano de
composição, de imanência, ou mesmo um corpo sem órgãos, mas ainda assim, afastada de
qualquer tentativa de doutrinação, dogmatismo, axiomatização, ou seja, de produção de
modelos fixos e verdades absolutas. Sendo assim, ela nunca está posta, dada, a priori. Ela não
existe anteriormente a qualquer ato de pesquisa. Ela é inventada a partir de movimentações em
direção a uma ou mais saídas. Sejam saídas de tocas, buracos de coelhos em Lewis Carol,
agrimensuras de territórios em Franz Kafka, movimentos criadores em Wlad Lima, trajetos
inventivos em Sônia Rangel, agenciamentos em Gilles Deleuze e Félix Guattari, e mesmo
movimentos de deriva e conexão que fogem ao controle. Cartografias se dão em campos abertos
para a prática, são entrecruzadas aos percursos e a violência dos encontros que formam
poderosos signos e nos fazem pensar e agir.
Um experimento cartográfico em sala de aula: a carta “Viagem”. “Ele ou ela sabe que a
viagem é a própria meta, que a peregrinação em si é o santuário” (OSHO, 2014, p. 112)
Brincadeira performativa com O Tarô Zen7 em sala de aula. Com o baralho embrulhado numa
embalagem de pano, abro espaço numa sala de aula, para que toda a turma se sente ao chão
próximo de mim. Uma dica: este é um jogo para se jogar no início de uma disciplina, pois sua
atuação envolve, no mínimo, duas aulas. Nos últimos minutos de uma aula, e durante todo
tempo da aula seguinte. Na primeira parte do jogo, preparo um texto e leio, em meu caso foi
um texto escrito recentemente por mim, mas pode ser qualquer um. Após isto, desembrulho o
baralho, fazendo um tapete com o pano que o embrulhava, e embaralho as cartas. Convido
alguém para fazer o primeiro corte, formo um leque com as cartas voltadas para baixo no tapete
7 Este jogo é uma versão que rompe com a dimensão tradicional do Tarô, principalmente no sentido de não realizar predições e sim oferecer afetos para a meditação sensível, intuitiva, compassiva, receptiva e singular do presente momento em relação a aquele que joga.
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e convido alguém a escolher uma carta, com o toque do dedo. Assim que a carta é revelada,
proponho uma experimentação do olhar em conjunto.
Figura 1 - Carta Viagem. Ilustração de Deva Padma.
Fonte: O Tarô Zen, de Osho
Que afetos a imagem produz? Como você percorre a carta? Que caminhos ela lhe indica?
Possíveis questões a disparar. Para finalizar a primeira parte da brincadeira, proponho um
exercício para casa: a montagem de uma pequena cena a partir dos afetos e percepções
realizadas na performance e na imagem revelada. Este exercício foi produzido na ocasião do
estágio supervisionado do mestrado em artes na disciplina “Trajetória de Si” da Licenciatura
em Teatro, da Escola de Teatro e Dança da UFPA.
II. MEADAS
A cartografia ocorre em novelos e meadas. É composta por linhas que formam mapas,
ou máquinas, que recortam imagens, arquétipos, símbolos, representações estanques, e
produzem movimentos estranhos com eles. Verdadeiras aberrações. Novelos que se
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desmancham, formando emaranhados cheios de nós e espirais que merecem ser percorridos
como cartas de navegação, verdadeiros atlas cujas linhas latitudinais são formados por afetos,
perceptos e outras formas de encontros entranhadas à vida; e de longitudes que consistem em
“movimentos de velocidades, lentidões e repouso” (BRITO & CHAVES, 2017). A urdidura das
linhas podem ser as mais plurais possíveis, com texturas duras, maiores ou molares; texturas
maleáveis, flexíveis, moleculares ou menores; e as texturas de fuga, libertárias ou misteriosas.
São muitas as linhas possíveis. O novelo, como sabemos, é feito com o estrelaçamento de
linhas. Mapas-mundi imanentes com camadas, e camadas e camadas... texturas duras podem
ser familiares, empregatícias, acadêmicas, industriais, governamentais, religiosas, lúdicas até.
Quanto mais um jogo é permeado de regras, mais duro ele é. A dureza da vida varia quando
uma linha flexível, ou menor, é instalada. Alguns exemplos de linhas menores acontecendo: a
bicha na família, uma greve instaurada, um grupo poético atuando numa pós-graduação em
ciências, uma ação militante, um grupo sindical atuante, um culto ecumênico e um jogo cujo
sistema é quebrado em nome de uma outra qualidade de ação não concebida anteriormente. Já
as texturas de fuga são tão necessárias quanto perigosas: uma ida ao cartomante, um
espancamento, um e-mail inusitado, um mergulho noturno, um pequeno e adocicado brigadeiro,
podem ser gatilhos para disparos que levam ao desfiladeiro de uma vida perigosa.
Este processo inventivo, portanto, constitui uma trama de linhas que não são apenas
manipuláveis, como amplas o suficiente para se percorrer, transitar, e, muito possivelmente,
viver. Em instâncias que ultrapassam as fugidias. Acompanhando o pensamento de Peter Pál
Pelbart (2007), esta cartografia habita a seguinte questão: como seria uma arte de viver nas
linhas?
Evocando Herman Melville e Gilles Deleuze, Pelbart traz à tona imagens colossais de
pensamento, que nos provocam a pensar a configuração do mundo em tramas lineares
heterogêneas, que forçam o pensamento a acontecer longe de qualquer ordem contemplativa.
Pelo contrário, o ato de pensar seria produto de uma grande coerção, um conjunto de tensões
tão poderosas que colocam em aquele que pensa em risco de transformar-se, de modo intenso.
Portanto tais movimentos por dentre linhas constituiriam uma possibilidade de cartografia.
Mas que tipo de cartografia seria esta? Pal Pelbart, em diálogo com Deleuze e Guattari,
nos aponta uma trama composta por três tipos de linhas essenciais, que seriam: as linhas duras,
as linhas flexíveis e as linhas de fuga.
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As linhas duras conduzem aos movimentos opressivos realizados pelos dispositivos de
poder, e mais, também englobam as condições de vida apaziguadoras. Se existem tendências
sedentárias, rígidas, objetivas, racionais na constituição de nossos corpos, elas são conduzidas
por estas linhas. Delas derivam nossos medos, prudências, precauções, imobilidades a serem,
de algum modo desviados e tensionados. O “desindurecimento” almejado não envolve somente
o Estado e o capital, mas também tudo o que nos constitui de subjetivo e identitário, de fixo. A
respeito de tais linhas, Pelbart complementa:
“A linha dura ou segmentária é aquela que recorta nossa vida em segmentos bem
delimitados: criança ou adulto, trabalhador ou empresário, homem ou mulher, branco
ou negro, centro ou periferia – são os códigos binários ou representações molares que
nos definem” (PELBART, 2007, p. 285)
Já as linhas flexíveis são alinhavadas por percepções, relações amorosas, atos de
cuidado, encontros apaixonados. Nelas percorrem muitas formas de vir a ser, intensidades e
“devires os mais diversos, os deslizamentos os mais vitais, na arte e na vida, nos amores e na
política” (PELBART, 2007, p. 286). Entretanto, Pelbart alerta que ela também possui
armadilhas, que residem na subjugação ou disseminação de características das linhas duras,
apontando tais práticas como únicas e impondo sobre outros indivíduos em circunstâncias de
poder. Tais armadilhas podem nos levar ao fascismo, em âmbito menor. Outra questão
problemática são as afiliações edipianas (papai, mamãe, irmão, irmã) às experiências em tais
linhas, armadilhas interpretativas que levam a integração de novas famílias em todos os lugares
que frequenta, todas as linhas flexíveis que percorre. O paradigma da família possui tendências
fortemente homogêneos, dissipadores das diferenças. Longe dos paradigmas familiares, as
linhas flexíveis permitem o acesso às múltiplas possibilidades de ser no mundo. Afirma Pelbart:
“A linha flexível diz respeito a microdesvios, limiares ínfimos, molecuraridades das
crenças e desejos, da percepção e dos afetos: é todo um mundo de agitações e
variações, de franjas incertas e pequenas mutações intensivas” (PELBART, 2007, p.
285)
Uma experiência flexível: construir com amigos um grupo de leitura, e com eles
estabelecer tantas dinâmicas quanto houver disposição para a variação. Retiros de leitura de
vinte e quatro horas, uma leitura comum para cada mês, desafios para feriados, etc. Entre formas
de ler, escolhas de gêneros literários diferentes, horas e mesmo dias lendo, experimentando a
intercessão dos personagens literários na construção de sinopses, preparando uma comida, um
café, um aconchego itinerante. Cada reunião num lugar diferente. É uma maneira de exercitar
o compartilhamento virtual de referências literárias com os amigos leitores, disparando afetos
por celular do trabalho, em meio as tarefas domésticas. Um estranho grupo de retirantes, como
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a obra de Portinari. Sedentos, famintos e miseráveis, pelos textos. Nos tornamos a carne das
palavras que devoramos. Uma pobreza que transborda vida, faminta pela poesia.
Outro exemplo de linhas flexíveis: às quintas de tarde, em periódicos momentos do ano,
se reúnem artistas-pesquisadores de diversos gêneros, assim como terapeutas, filósofos,
historiadores, cientistas e educadores, ao que me recordo, numa minúscula sala do Programa de
Pós-Graduação em Artes. Todos ali encontram se ávidos pela brincadeira que se faz. Às quinze
horas, um círculo se forma e somos instruídos a falar de nossas pesquisas, e do que estamos
lendo daquele momento. Cada um obtém um turno. A cada um fica o desafio de tomar a
iniciativa e falar, antes que chegue às dezoito horas, quando o jogo termina. O interesse está no
livre compartilhamento, exercício do diálogo e roubo de referências. Este jogo compõe o
projeto de pesquisa "Poéticos pensadores nas vísceras da pesquisa: obras e reflexões de artistas
como referenciais de primeira grandeza na academia da arte"8, coordenado pela artista-
pesquisadora Wladilene de Souza Lima. A preferência é que sejam compartilhados textos
poéticos, literários, mas toda escrita, trazida de bom grado, é bem-vinda.
Finalmente, as linhas de fuga. As linhas de fuga podem ser transgressoras, libertárias,
revolucionárias, mas também podem levar ao desespero e a morte. São tramas de explosão,
ruptura, corte e externalidade. Caminhos que levam as margens, aos limites do ser. Neste
trabalho, ela foi por muito tempo norteadora, e no decorrer deste processo, as outras deixaram,
gradualmente, de ser colocadas como plano de fundo. Em consonância com a elaboração de
Pelbart, as linhas não estabelecem relação hierárquica, ainda que haja muita tendência em se
considerar demais a linhas fugidias. Neste processo, atos de criação teóricos e poéticos são
engendrados, e basta que eles existam para me escaparem às mãos, e criarem vida própria:
“ [...] a linha de fuga ou nômade é aquela que foge e faz fugir um mundo, como se
alguma coisa noa levasse, através dos segmentos, mas também através de nossos
limiares [...] Por mais que a linha de fuga pareça a mais “libertadora”, também ela
contém sua ameaça: pode conduzir ao desespero, à destruição, ao suicídio.”
(PELBART, 2007, p. 285 e 286)
As três linhas são entrelaçadas, e formam meadas, novelos, emaranhados e redes. Desta
maneira, vale ressaltar que possuem estruturação de pensamento, em alguns aspectos, similar
ao da rede de poder na qual o conceito de dispositivo, é experimentado, e assim, configurado
como integrante das linhas duras. Já as práticas de produção artística realizadas coletivamente
são manejadas como tramas flexíveis. As obras artísticas e conceitos produzidos, as obras e
conceitos organizados como referenciais e os dispositivos poéticos inventados nos meandros
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39
da criação, por serem capazes de produzir maquinações das mais fugidias, se configuram como
fuga. Tal organização pode sugerir algum tipo de categorização ou arbitrariedade, no entanto,
considerando que as linhas estão em rede, entrelaçadas, imbricadas, percebemos que o
posicionamento de um determinado fator, em relação aos outros, se dá de modo atravessado,
dinâmico e em conexão constante. Por exemplo, uma obra artística pode ser a passagem para
uma linha de fuga, mas sempre em conexão com outras forças, que a pressionam, e exercem
influência também.
As manipulações de tais linhas se dão de forma pragmática, ou seja, num âmbito
epistemológico que considera a relação dos signos com as vidas que as atravessam. Portanto,
ao invés de me deter nas relações entre signos (sintaxe) e dos signos com o mundo (semântica),
me desloco para as relações semióticas nas quais um processo de individuação se produz. Neste
caso, me questionando com frequência a respeito da dureza dos dispositivos, aos deslocamentos
em contraposição a tais durezas e as invenções que nos permitem construir possíveis novas
rotas. A experimentação dos sabores e sensações precisa ser realizada com critério, ou deixo o
movimento acontecer atravessando meu corpo por inteiro, ou deixo os passar com interferências
mais sutis.
III. UM EXPERIMENTO EM LINHAS
Brutus desenhadores9. Um porão, uma mesa, algumas cadeiras, papel, material para
desenho. Abraços, afagos, sentimentos afloram. Sentam-se. Diálogos entre três desenhistas, que
se conectam entre linhas, ditos e escuta. Muito sangue começa a circular pelo ar. Experiências
alegres e frustrações se entrecruzam até que alguns estalos acontecem. Um desejo de viajar se
instaura. Um tema é definido, um consenso se instaura. Um pedaço de coragem e um impulso.
Linhas formam, deformam, repercutem histórias. Dor nas cadeiras. Falemos sobre cadeiras. Em
nossas casas oníricas, várias revezam entre si. Vinte e oito cadeiras são selecionadas entre
tantas, mil desculpas às que ficaram de fora. Das que foram editadas, uma se faz pertinente
contar10:
Belém, 07 de novembro de 2016
X,
9 Coletivo de desenho independente situado em Belém do Pará, fundado em 2016 pelos artistas-pesquisadores Aline Rickmann, Breno Filo e Wlad Lima. 10 Texto na íntegra publicado na revista Climacom. http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=6891
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Falo contigo do deserto que um dia foi nossa morada. Aqui, caminhamos em trilhas
de sonho e devaneio que, pacientemente, alegremente, tecíamos, enquanto nos
amávamos e trocávamos confidências, em claras ações de fuga da cotidianidade,
embebidas de um amor inexplicável. Distante e, no entanto, intenso. A paisagem de
nosso afeto era rica, e se transmutava a cada alteração de humor nossa, com a
influência de alguma viagem recente, e mesmo alguma referência literária... como
esquecer de quando ficamos sós, desnudos, cobertos somente por uma pesada manta
vermelha, sobre aquela árvore ressecada, em neve? Um afeto tão complexo quanto a
imaginação de quem nunca viu neve na vida, mas eu certamente faria questão de
compartilhar essa experiência contigo, mesmo hoje. Hoje encontro uma árvore
indiscernível, as matas ricas, as tartarugas e as encantarias de seu entorno também
estãos secas, mortas, causticadas. Cobertas de areia. Sol escaldante.
Como vai?
Sabe, tenho ido bem, apesar dos rodeios e solavancos que a vida dá. Recentemente,
me surpreendi agindo feito um tonto, me enclausurando à toa, como quem nunca
tivesse enfrentado mundos e fundos em nome do amor. Da liberdade de se permitir
ser quem se é. Esse discurso pode parecer esquisito para ti. Um fantasma emocional
estava a me rondar, talvez por ter largado de mão alguns hábitos que me são de muito
valor: não tenho mais jogado jogos interpretativos, e há muito tempo não viajo com
meus amigos para a praia. Mau-mau está por aí, inclusive. Lis, volta e meia, também
floreia pelas bandas daí. Tens visto eles? Ando isolado. Isolado em solidões povoadas,
outras solidões. Um novo amor que me dói de tão grande e misterioso. Novas
presenças, encarnadas e oníricas, também tem me encontrado, e trocado muitos afetos.
Poéticos inclusive. Uma festa de sonhos, regados a cerveja as vezes, outras ilicitudes
também, nas quais me sinto esquisito, em fastio.
Daí venho caminhar por aqui.
Me pergunto se tens vindo também.
Talvez já estejas em outro ponto,
de tão inóspitos que nos encontramos. Esse lugar.
Já foi banco de praça, cascatinha. Fomos.
Era bem pequeno, era suficiente.
As vezes esbarro com a circunstâncias, tomo chá com elas. Elas imperam neste lugar,
e delas nos deixamos escravizar em certo momento. Tu recordas? Lidávamos com
elas como que numa farsa muito bem montada. A elas dirigíamos toda a dor e repulsa
por não estarmos juntos, e por darmos nomes e formas a elas, achávamos que tínhamos
certo domínio sobre elas. Inocentes que éramos! Hoje as reverencio, e finalmente
entendi a força delas. Eu precisava ultrapassá-las, assim como você certa vez o fez, e
quebrou o tabu imposto por elas, me encontrando, finalmente. Antes disso,
flertávamos com a distância e com a espera, artigos raros hoje em dia, trocando
mimos, cartas e bilhetes via correio. Você sempre mais decidido, no limite do
possível. Eu, rarefeito, me perguntando, me questionando, necessitado de
carnalidades. Tolo que fui, devastei-te. Devastei nossa rica El Dorado. Esvaziei-me.
Terminei, terminamos.
Amei-te, e sou eternamente grato pelo teu amor.
Estou aqui para semear este lugar de novo, espero que não se importe.
Desse nosso amor, acredito que tivemos grandes aprendizados.
Com as coisas da vida, construindo uma vida de sonho.
Quero muito transmutar essa memória,
Esse sentimento grandioso.
Com o poder agir no mundo.
Construir mundos.
Hoje me permito dizer, sempre que eu encontrar um novo lugar, e pessoas com quem
compartilhar, amar, curar... para cá estarei trazendo ela, e com esta carta, lhe convido
41
a fazê-lo também. Ou que venha visitar, ao menos, poxa. Quero cultivar outras formas
de viver nesse lugar, que não somente pelos fantasmas do passado, mas pelas ações
do presente e os projetos para o futuro. Os tais porvires, tão misteriosos!
Varrer a estradinha, limpar o banco da praça, mergulhar na cascatinha. Se falei, existe
de novo. Ainda há deserto, ainda há neve também, as terras se dobram, desdobram.
Praias, areia branca, bancos de argila branca, roxa, vermelha, falésias, raízes que
sobem mais alto que os bancos de areia, mangueiras, percevejos, pés de maracujá,
aranhas caranguejeiras com patas azuis, espadas de São Jorge, tatus atravessando o
caminho de piçarra, árvores altas, copas entrelaçadas, escadarias que vão do nada ao
nada, pontes, casebres vazios, barcos cheios de gente, pizza, salsicha, pescada frita,
mapará na brasa, limãozinho, cheiro de umidade, amanhecer em neblina, frio matinal,
porcos encantados que encaram e reverenciam.
Um lugar grande, mas pequeno a ponto de caber num envelope, numa fibra vegetal.
Que esta carta seja o marco dos nossos encontros.
E dos muitos importantes encontros a atravessar nossas vidas.
Te saúdo, meu querido.
Breno Filo
Figura 2 - Banquinho. Aquarela de Breno Filo, 2017.
Fonte: acervo pessoal.
Aline Rickmann, Wlad Lima, e eu. Muitas histórias, muito cuidado, muitos
experimentos, muitos aprendizados, muita gratidão.
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O lado de fora do projeto “Dor nas Cadeiras”11. Cama, corpo deitado e a chave para o
porão da alma é pega, num relance de impulso. Num duplo exercício meditativo, desço em
busca de fantasmas, encontro um que me apeteça e o despedaço. Disseco-o, e feito Frankenstein
de Mary Shelley, remonto-o com pedaços de outras coisas, de outros autores, de outros
desenhistas, de outras experiências. Desfio, decanto e tramo novamente sob a forma de escritas,
histórias cuja matéria são as trajetórias e devires que atravessam esta vida.
IV. HÁ LUGAR PARA A PRUDÊNCIA?
Segundo Guattari, há sim. Para ele, ela segue sendo fundamental, pois uma cartografia
não constitui mera trip (GUATTARI, 2016, p. 17). Ela é um processo árduo para quem a encara
de frente. Ela não é tudo com qualquer coisa, como diria a máxima filosófica de que tudo tem
conexão com tudo, apontada por Casaubon, personagem de Umberto Eco (2016). Não é pura
improvisação, não se trata de “liberar geral”, não é pura efemeridade. Ela pode ser espontânea,
e encontros aleatórios podem alterar drasticamente o andamento de um determinado trabalho,
mas a ruminação que tais acontecimentos geram os realoca para condição de signo, algo a se
experimentar com digestão demorada. Tais alterações são linhas de fuga, processos de
subjetivação que podem ter voltas, reviravoltas, e a prudência se faz necessária para que os
rizomas, fluxos e processos sigam saudáveis e em direção de territórios vivos em primazia.
Crises conjugais, drogas, insurgências sócio-político-psíquicas podem suscitar excelentes
processos de criação, no entanto, também podem “acontecer fenômenos de implosão,
fenômenos de neutralização, de impotenciação, ou pura e simplesmente fenômenos de buraco
negro” (GUATTARI, 2016, p. 19). Tais acontecimentos, são perigosos, e podem sugar quem
os enfrenta por muito tempo e com pouca estratégia. É preciso cuidado para a tessitura de boas
táticas e de dispositivos interessantes ao processo. É preciso estar acompanhado, ter alguém na
retaguarda é imprescindível. De preferência um bocado de gente, quando formos vislumbrar
abismos. Lembremos das palavras de Nietzsche, que afirmava que corremos o risco de cair nos
abismos e virar monstros ao encará-los por muito tempo (NIETZSCHE, 2005, p. 70). É preciso
uma prudência, como diria Zaratustra:
“A minha primeira prudência humana é deixar-me enganar para não desconfiar dos
enganadores. [...] minha outra prudência humana: trato com mais consideração os
11 Mais informações sobre o coletivo e o projeto “Dor nas Cadeiras”, verificar o artigo “Brutus desenhadores: cartografia desejante de um dispositivo coletivo de desenho, cuidado e autobiografia”, escrito para o periódico Nufen, com acesso no link: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-25912017000100004&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt (acesso em 26 de maio de 2017)
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vaidosos que os orgulhosos. [...] a minha terceira prudência humana; não quero privar-
me da vista dos maus por uma timidez igual a vossa. [...] E disfarçado, quero sentar-
me entre vós, para que estejamos certos de nos desconhecermos, a vós e a mim; eis
minha última prudência humana” (NIETZSCHE, 2014, p. 186-189)
Na cartografia, os problemas emergem por vias violentas. Para tanto, Deleuze orientou
sua teoria sígnica para longe de processos representativos, voltada para a violência dos
encontros, para a ação de algo que vem de fora de si, exterior ao pensamento. Os modos de
pensar, criar, experimentar são variações da diferença que atravessa um corpo inventado. Os
conceitos de corpo sem órgãos e campo de imanência, por exemplo, são criados para abarcar
essas experiências com determinados signos. Nesta pesquisa, uma máquina é inventada como
signo, e no acontecimento que constitui a conexão entre o artista e a obra no ato de criação, e
dos jogadores no ato do jogo. “Se o signo é uma força que avalia” (BRITO & CHAVES, 2017)
a cartografia traça um mapa sobre ele, para a demarcação das coordenadas coerentes ao
processo de criação.
V. PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO
A cartografia produz diferença, quando defrontada com pensamentos advindos de
correntes estruturais do pensamento. Ela não se resume a um exercício de análise entre
observador e observado. Não reduz sua atividade a interpretações psicanalíticas, semióticas,
fenomenológicas, etc. Embora elas possam acontecer, elas não são o mote de um trajeto
cartográfico. Um cartógrafo se encontra atravessado, no olho do furacão, vivendo trajetórias e
devires que o entremeiam de questões que interferem diretamente no cotidiano. Não há
conhecimento dado de antemão, tampouco detenção de saberes ditos unos e completos. A
cartografia é, basicamente, aqui que fazemos com as poderosas experiências que atravessamos.
Portanto, não há um objeto pré-determinado, senão um agenciamento de enunciação, ou seja,
algo que atravessa, corrompe, contamina o que toca, e é construído e desconstruído durante essa
relação de contágio. A ideia de sujeito também é transvalorada num processo de individuação.
Sujeito é um devir-lagarta, com a pergunta “Quem é você?” (CAROLL, 2014, p. 61)
feita à quinta potência, a cada instante, e também um devir-alice, com o desconforto da resposta
“Eu... eu não sei direito, senhora, não no momento... Pelo menos sei quem eu era antes de
acordar hoje de manhã, mas acho que devo ter mudado várias vezes desde então” (CAROLL,
2004, p.61), ou mesmo um passeio constante pelos retratos da artista Cindy Sherman, que se
transfigura para a produção de cada retrato de si, e já podemos contabilizar centenas deles
durante sua biografia. Sujeito se transforma num constante processo de singularidade. Num
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jogo de tarô, esse processo pode envolver um tolo, um eremita, um mago, uma imperatriz...
sempre uma carta atravessada a outra, interferindo a outra, trazendo multidões à tona. Uma vida
cartográfica não se faz produzindo mapas fidedignos as suas rotas, como um satélite pode
produzir mapas, e através de sua inerente tecnologia, tornar a realidade observada pela interface
do aplicativo google maps um fruto da representação obtida pela maquinaria de fotografar e
mensurar territórios. Um cartógrafo artista produz um trajeto entranhado das questões
ecosóficas que o atravessam, lembrando que a ecosofia é um pensamento sócio-político-
psíquico inerente a qualquer atitude neste mundo. É um agir intensamente no planeta que
habitamos. Uma cartografia-artista também pode configurar uma política do pensamento, do
agir e da produção de verdades poéticas, inventadas após muita maquinação coletiva.
VI. INTERROGAÇÕES
A cartografia não reduz seus procedimentos a busca pelas respostas de perguntas
precedidas por “o que é”. Deleuze duvida que os questionamentos com essa formação sejam
boas para acessar essências ou ideias. No mínimo, é completamente insuficiente. Ele sugere
que outras perguntas menores sejam operacionalizadas, “do tipo: quem? quanto?, como?,
onde?, quando?” (DELEUZE, 2006, p. 129). A artista-pesquisadora e educadora Wlad Lima
costuma desenvolver suas ideias em arte com um dispositivo imagético que representa um
relógio de perguntas, e sugere um experimento: para cada conceito ou ideia, responda a cada
uma das perguntas do relógio, muito espontaneamente. A partir daí, já existe um pequeno olho
d’água, frágil, mas vivo, de questões a se experimentar numa pesquisa artística. A pergunta “o
que?” está lá, no entanto, ela encontra-se em estado de equivalência entre todas as outras
perguntas. Cartografia enquanto ideia não está inserida num campo de interesses essenciais,
está muito mais inscrita numa múltipla territorialidade de sensações, mundanidades, amores e
espiritualidades, em constantes atravessamentos com o corpo daquele que cartografa.
Tampouco podemos identificar a predominância de questões causísticas num trabalho
cartográfico, portanto, os “porquês” também entram em modificação de status. Não há uma
busca por um fenômeno originário. Mais interessante mesmo é propiciar um campo de
operações nas quais as perguntas menores indiquem convites à experimentação. As linhas de
fuga podem estremecer com a objetividade dos “porquês” abstratos e cheios de leis, de
grandezas e eternidades. Para um artista-cartógrafo, basta que a singularidade de um fenômeno
histórico pessoal, a experiência, indique um pequeno porquê que é engolido pelo corpo e
convertido num elemento do tempo presente, aonde “o que realmente importa são as cores,
odores, sabores, caprichos, texturas, velocidades e outras veleidades mundanas” (COSTA,
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ANGELI & FONSECA, 2012, p. 44). Que forças nos atravessam e nos fazem fugir? Os campos
de intensidade aos quais uma vida atravessa não se reduzem a ideias e teorias, mas aos modos
de ser e existir que arrebatam valores, avaliações e sentidos (BRITO & CHAVES, 2017).
VII. A PELE-MAPA
A ação cartográfica percorre vias singulares de visualização e sensação, que pouco se
identificam com os atos objetivos e neutros, que tendem a cercar o corpo de limites, precauções,
organizações, que muito possivelmente impedirão a potência de uma ou várias ações no ato de
criação compositor de uma pesquisa. As quantidades e qualidades, os sentidos e os
significantes, as informações e estatísticas podem alimentar bons encontros e alimentar as
ideias, mas não reduzi-las. Há sempre algo que escapa, que esburaca um enunciado, um texto,
uma produção qualquer, e isso será o fio condutor de outras cartografias. Uma cartografia evita
a neutralidade por ter a ciência de que a construção de um sentido único, pode causar efeitos de
neutralização em cadeia, produzir impotência por contágio e contaminação significante
também. A superfície de um mapa cartográfico é poroso, feito para se experimentar e produzir
múltiplos sentidos, tantos quanto foram quem entrar em contato com ela.
A cartografia se experimenta de forma superficial. Ela se percorre nas proximidades do
toque e não busca o pensamento estrutural que insinua profundezas e representações de lugares
inacessíveis, diga-se o inconsciente psicanalítico. “O mais profundo é a pele”. De Paul Válery
à Deleuze, por exemplo, há uma prática artística e conceitual que percorre entre cartas de tarô,
histórias de vida e relações de afeto com a singularidade linguística e imaginária com o povo
amazônico. A Máquina-Rota é evocada a cada delírio experimentado enquanto acesso as linhas,
personagens e invenções narrativas durante outros processos de criação, em conjunto com
outros artistas.
Atravessando a superfície de outras cartografias, uma máquina singular é construída.
Clarice Lispector nos sugere uma sinestésica operação de leitura de mapas “ouve apenas
superficialmente o que digo e da falta de sentido nascerá um sentido como de mim nasce
inexplicavelmente vida alta e leve (LISPECTOR, 1998, p. 25), e completa, afirmando “esse
texto que te dou não é para ser visto de perto: ganha tua secreta redondez antes invisível quando
é visto de um avião em alto voo. Então adivinha-se o jogo das ilhas e veem-se canais e mares”
(LISPECTOR, 1998, p. 27) Cartografa-se um jogo capaz de movimentar corpos, pensamentos
e práticas. Compõem-se planos, escrituras e perguntas que se interpenetram e que se entrelaçam,
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e fazem tudo escapar para a direção de uma saúde. Uma frágil saúde, uma intensa saúde,
dependente de atos de escrita, maquinação e reinvenção.
Uma cartografia corresponde a uma série de singularidades, afinal cada acontecimento
vivido é único, ainda que esteja relacionado a uma prática repetitiva. Tais séries se relacionam
diretamente com as práticas realizadas nela e também aos dispositivos nela envolvidos. Os
trabalhos de conexão entre os agentes envolvidos numa cartografia, com suas aleatoriedades
inclusas, constituem o campo de uma cartografia. Portanto, ela é feita de multiplicidades, de
coletividade, de um ativismo afetivo, de uma política da amizade.
Como essa multiplicidade funciona? Para começar, se afastando da necessidade de
afirmar ou provar verdades e mentiras, e afirmando singularidades, regularidades, coisas
notáveis e extraordinárias que se passam no instante de uma ou algumas jogadas. Tais
acontecimentos são trabalhados de forma intensa quando investigados com questões que
abraçam sua complexidade. Como se compõe ou se decompõe um jogo? Como o tempo é
trabalhado durante as jogadas? Quais as potências valoradas no ato de jogar? Tais questões, por
exemplo, ultrapassam “qualquer personalismo, psicologia ou qualquer coisa da linguística”
(BRITO & CHAVES, 2017), apostando na multiplicidade do que ocorre num ato de jogo, na
qual algumas coisas, ou muitas delas, sequer tem definição, e por isso nos roubam a paz. Bons
encontros produzem perguntas poderosas, capazes de conduzir com força um ato de pesquisa.
Para construir uma relação com essas perguntas singulares, é possível que precisemos inventar
conceitos, obras de arte, jogos e até mesmo novas ferramentas. Signos geram signos, e nos
jogos, signos nos impelem a criar novas brincadeiras.
O cartógrafo é criador, ele não limita a refletir sobre determinadas questões. O ato de
refletir sobre algo tem uma forte conexão com pesquisas de cunho representacional. A ideia
não é pairar o olhar sobre um objeto, como um sujeito detentor de um suposto saber, e sim
experimentar uma conexão, um trajeto novo, e mesmo quando a posição é indiscutivelmente
em relação de afastamento e proximidade, trabalha-se com a ideia de mapas, representações
que em si já supõem possíveis rotas, caminhos, processos.
Portanto, a Máquina-Rota é um jogo cujas cartas entrelaçam diversos sentidos: um
dispositivo que utiliza um baralho, um conjunto de cartas; uma representação de uma
determinada territorialidade, superfície, um mapa; e uma correspondência entre jogadores, visto
que supõe um diálogo. Estas significações não se filiam aos significados dicionarizados, visto
que originalmente apenas cada um deles é escolhido como significante mestre. Neste trabalho,
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todos estes sentidos são possíveis, e quantos mais forem levantados por aqueles que praticam o
jogo. A ideia é que o jogador, ou criador, sejam capazes de criar possibilidades de
funcionamento e exercitar a diferença.
O pensamento e a arte acontecem devido aos movimentos criadores que o compuseram.
Deleuze conclama Henri Bergson para afirmar que as percepções, as afecções e as ações são
elementos cruciais para lidar com o movimento (DELEUZE, 2013, p. 156). Tais elementos
promovem narrativas intelectuais no âmbito da filosofia e narrativas sensacionais para a arte,
além de uma conexão poderosa para com o tempo presente. No século XX, o cinema
intensificou a relação humana com a percepção, ao construir tecnicamente movimentos entre
imagens, e Deleuze capturou esse fenômeno para pensar o movimento, com a intercessão de
muitos cineastas e outros pensadores da imagem.
VIII. A VOZ DE UM MUNDO
A ideia de intercessão é essencial à cartografia. Uma obra de qualquer natureza é
resultado de uma conexão com eles. Uma obra de qualquer natureza é resultado de uma forte
conexão com eles. Quem eles seriam, portanto? Pensadores, criadores, cientistas, pessoas que
encontramos ao acaso, coisas do mundo, seres do mundo vegetal, do mundo animal, etc. Eles
estariam relacionados a realidade ou à ficção? Tanto faz. A ideia de intercessores pode ser
agenciada com personagens reais, fictícios, fantasiosos, maravilhosos, animalescos,
inanimados, etc. “É preciso fabricar seus próprios intercessores”, (DELEUZE, 2013, p. 160).
Pois sem eles, não conseguimos nos exprimir. Eu não me expresso sem a ajuda deles, tampouco
sem a ajuda do leitor, que habita o porvir. Uma criação ocorre sempre em agrupamentos,
coletividades, sendo elas visíveis ou invisíveis. Estar junto dos intercessores é abrir espaço para
quem precisa exercitar a voz. Somos legião, multidão, de acordo com a escrita de Deleuze e
Guattari:
“Como cada um de nós era vários, já era muita gente. Utilizamos tudo o que nos
aproximava, o mais próximo e o mais distante. Distribuímos hábeis pseudônimos para
dissimular. [...] Não chegar ao ponto em que se não se diz mais EU, mas ao ponto em
que já não tem importância dizer ou não dizer EU. Cada um reconhecerá os seus.
Fomos ajudados, aspirados, multiplicados” (DELEUZE & GUATTARI, 2011, p. 17)
Muitas vozes compõem uma criação. Um verdadeiro coro polifônico. Trabalhar só,
invariavelmente, recai numa criação intelectualizada, ensimesmada, coisa de senhorio e
colonizador. Esta obra é um esforço nesse sentido, ainda que haja palavras e linhas rebuscadas,
e se encontram em processo de revisão e mudança constantes, no corpo do pesquisador. Os
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discursos e enunciados precisam ser de minoria, precisam ser fabulados. Mas um exercício de
minoria e de fabulação que não subestimem as vozes daqueles que precisam falar, tampouco
estejam compromissados a qualquer exercício moral. Não há uma “moral da história”, um
exemplo a ser seguido. É preciso acreditar que as encantarias evocadas é que promovem a
constituição de uma multidão, que pode ser amazônica, ou de qualquer lugar inventado, por
exemplo, junto do povo que tanto os estimam e lhes dirige construções culturais. A máquina-
rota existe por uma necessidade, sobretudo, de sentir com mais força a energia de povos que
me faltam, por mim são psiquicamente censurados, e me inventam, conforme me conecto a
eles, e os deixo me constituir.
IX. VERDADES INVENTADAS
“Experimentar é considerar a teoria como uma prática criadora. Não se trata mais de
saber o que é o verdadeiro, mas como se faz o verdadeiro. E esse questionamento se
faz inseparável de um outro: “o que faz o verdadeiro?” [...] A ideia verdadeira não é
apenas aquilo em que acreditamos, que fazemos ou pensamos; é aquilo que faz
acreditar, que faz agir ou que faz pensar. [...] a verdade é avaliada em função de um
valor que a ultrapassa: o Interessante – como valor epistemológico. O que vale uma
verdade que não faz agir, acreditar ou pensar, uma verdade, enfim, sem interesse?
(LAPOUJADE, 2017, p. 61 e 62)
O empreendimento cartográfico é, portanto, uma série de procedimentos que ocorrem de modo
a avaliar a verdade das ideias. A noção de verdade, na cartografia, se aproxima das ciências,
por necessitar ser inventada, e não descoberta e representada, como algo que já se encontra
dado e velado, ao qual subitamente se faz conhecer. Nas ciências exatas, inclusive, várias séries
de sistemas simbólicos são talhadas, para que suas operações, a partir deles, sejam possíveis de
se efetuar. Não existe matemática, por exemplo, sem os sistemas numéricos. Mundos
simbólicos podem ser criados numa cartografia, cujos mapas são convites para os experimentos
dos cartógrafos no porvir. Mapas feitos para gerar outras experiências, e se possível, outros
mapas. Arrisca-se afirmar que, a partir da prática em relação a uma teoria, de todos os
procedimentos para lidar com uma questão, um problema, uma situação complexa, uma matéria
específica, verdades são inventadas como obras de arte, como corpos conceituais e sensíveis
Criados para fazer pensar, agir e criar... No âmbito coletivo de um grupo de pesquisa, por
exemplo, discursos, referências enunciados surgem como possíveis intercessores, então é
preciso coragem para roubar, saquear e pilhar uns aos outros, para enfim cavarmos nossas
próprias tocas, fortalecer nosso teto, nosso modo de vida. A intercessão ocorre violentamente,
afinal consiste também em uma modalidade de encontro, um signo furiosamente,
detestavelmente, amigável.
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Existe uma fúria nesses encontros, algo de selvagem, de animalesco, que ronda os corpos
cartográficos.
“É preciso que algo force o pensamento, abale-o e o arraste numa busca; em vez de
uma disposição natural, há uma incitação fortuita contingente, que depende de um
encontro. O pensador é inicialmente um paciente; é arrombado por um signo que
coloca em perigo a coerência ou o horizonte relativo de pensamento que até então ele
se movia. A emergência de uma ideia não é certamente amigável”
(ZOURABICHVILI, 2016, p. 51)
Que tipos de encontros são esses? Dos que ocorrem de forma aleatória, inexplicável,
intempestiva, mutiladora, catastrófica e transformadora. Menos que isso, e não seremos
arrastados da direção de uma experimentação árdua. Num processo de criação cartográfico, não
há um modo natural e fluido de se dispor, há uma incitação, uma coerção que só ocorre com
abalos, curtos-circuitos estruturais. Um encontro coloca em risco o modo de pensar e de agir
daqueles que se encontram, pois a lógica, a coerência, a paisagem psíquica passa a se situar
num denso nevoeiro, que precede um desmoronamento ou uma nova leveza. Através de um
encontro, sintoma, ou formação de signo, desejos, amores, alegrias e tristezas emergem.
Potentes afetos obscuros podem emergir, assim como afetos virtuosos, inclusive ao mesmo
tempo, afinal, uma cartografia que não seja intensa e árdua, contrariadora, instauradora de
conflitos, dificilmente consegue se sustentar.
X. QUESTÕES
A cartografia, portanto, compõe zonas de implicação. Quando um encontro nos tira do
torpor, é necessário produzir questionamentos capazes de intensificar a vida desse conflito. Tal
produção é tão processual quanto o desenvolvimento de um projeto de vida, um jogo ou uma
obra artística. Pois produzir questões também são atos de criação, e requerem movimentos,
experimentações, levantamento de materiais e um posicionamento crítico diante de problemas
já levantados. Através do exercício dessas qualidades, talvez seja possível evitar a banalidade,
cuja natureza está na irrelevância de algumas buscas, principalmente dos tipos que são feitas
por uma “alma baixa, pesada, e de chumbo” (DELEUZE, 1976, p.70). De banalidade é feito
todo o enunciado que tenha a intenção de reproduzir uma verdade já estabelecida e dada, cujas
palavras não buscam interlocução e revisão, com ouvidos cheios de cera. De chumbo se produz
um corpo fechado para o encontro. Um muro concretado que divide nações, e impede o
movimento do pensamento. No entanto, a banalidade não é problema falso. Aliás, o verdadeiro
e o falso são valores que produzem potências na abordagem cartográfica. A banalidade se
mostra, tão e simplesmente, naquilo que se mostra sem grande interesse, no lugar-comum, no
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caráter ordinário ou formulado sem muito esforço, de forma indolor. Problemas relevantes
arrancam para fora toda tranquilidade. Pois então, como criar problemas com interessem, que
nos façam mover? “Não são perguntas apenas para serem respondidas. ” (RANGEL, 2015,
p.73), e sim perguntas-passaporte, que nos fisgam e nos puxam para a direção da experiência
inventiva, na arte e no pensamento.
Se formos nos deixar levar por qualquer escola de pensamento, seguiremos banais e
produzindo sem potência. É necessário um exercício de malignidade. Nos tornemos “malinos”
então! Antes sádicos que fúteis, reprodutores de saberes já dados, sem uma pitada de
estranhamento, de vontade de dissecar as questões. Antes masoquistas que passivos aos
atravessamentos de uma vida. Estamos ao sabor de rolagens de dados aleatórios. Cada rolagem
de uma jogada se dá numa instância singular, que requer desconstruções e construções, de
questões a edifícios, cada cartografia é uma apropriação única das forças que emanam dos
encontros.
XI. UM MODO DE VIDA
A cartografia, portanto, nos oferece meios de existir. Seja qual for a sua configuração,
é necessário que o empreendimento cartográfico seja uma rota para paisagens vivas, pensativas
e sensíveis, preferencialmente intensas, que levam corpos a transitar por rotas de individuação
em processo, longe de meros exercícios de reconhecimento, adequação, e muito mais próximos
de tortuosas, transformadoras e intensas vias. Trilhas que só são possíveis de se abrir, e
atravessar, a base de golpes de facão e muita aventurança!
O corpo do cartógrafo é afetado, jogado, abandonando os formatos prontos retilíneos,
fazendo de si um corpo intenso, desfigurado, pois o plano de imanência pelo qual ele
é lançado, que promove seu campo de experimentação, não é mais regido pelo eu, não
há uma forma consciente, há somente a subjetividade. O ato de criar – pensar não é
inconsciente, mas ele se engendra inconscientemente, além da representação...
(BRITO & CHAVES, 2017, p. 175)
É importante ressaltar que os modos de experiência oferecidos não se resumem a
métodos ou sistemas dogmáticos, em primeiro lugar, por não serem tidos como exemplares, e
em segundo lugar, por sugerirem criações de formas de vida e de lidar com determinados fluxos
que nos levam ao alto mar. Cartografias são processos que nos fazem variar, nos conectam a
multidões, nos impelem a cavar tocas singulares em qualquer lugar maior, pra produzir
diferença, renovando a existência. Cabe aos artistas, às crianças, aos jogadores, aos brincantes,
criar movimentos criadores de forma intensa, atenta, audaciosa e, sobremaneira, crítica. A
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grafia de um artista-cartógrafo evoca a imanência de uma vida. Convoca monstros, sibila
ventos, enche pântanos com coachares...
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COORDENADA 3 – EXPERIMENTANDO A MENORIDADE E OS ARCANOS
MAIORES
“Impossibilidade de não escrever, impossibilidade de escrever em alemão,
impossibilidade de escrever de outra maneira – ou impossibilidade de não pensar,
impossibilidade de pensar conforme um modelo, impossibilidade de pensar de outra
maneira. A grandeza do menor estaria nisto que se poderia chamar de não-
pertencimento a um modelo.” (GODOY, 2008, p. 57-58)
Um experimento sobre os arcanos maiores do tarô: A Máquina-Rota. Uma série de
procedimentos. Visitar a grande estante de madeira do pai em busca de cartas navais. Mapas de
trânsito por rios amazônicos. São necessários muitos. Consigo acessar vinte e três. Pouco a
pouco os percorro com nanquim, grafites, borracha e acrílicas. É um trabalho de superfície e
extremidades, trocas de peles. Preto no branco. Inicialmente fui capturado por um sonho, um
arroubo místico me conectou a serpentes. Sonhei com elas noites e noites seguidas. A ideia:
retomar um antigo projeto. Uma fotografia: tarde de chuva no Médici I, e eu estava sentado
numa cadeira plástica, de pijamas claros, feito um mendigo da lua, sob um toldo branco, roseiras
encharcadas, lápis e papel. Estava eu lá, naquele momento deslumbrante de pequeno, realizando
o princípio de uma jornada de estudos poéticos com a ajuda das cartas do tarô de Rider-Waite.
Uma trajetória poética, filosófica e psicológica. Um processo. Tarde inspirada foi aquela.
Produzi alguns dos poucos poemas deste processo. A vontade: experimentar novamente. Aonde
está o procedimento: na menoridade, ou seja, ações poéticas com forte carga política,
experimentando variar a língua portuguesa e abrindo o corpo para a fala do mundo. Os temas:
seres do imaginário que me atravessam, as terras de meu sangue, imagens do tarô de Marselha,
imagens do Tarô de Rider-Waite, imagens do Tarô Elemental, a voz do povo da região do
Salgado, do Baixo Tocantins, as gravuras de Ararê Marrocos, intensidades emocionais, as
atitudes obsessivas com as quais este corpo se movimenta, a ilha de Cotijuba, a praia da
Flexeira, a água que encharca meus sonhos.
O modo de jogar: é chegar junto, e descobriremos, ou melhor, inventaremos. Mas
também pode ser jogado como um tarô, a preferência é do cliente. No entanto, de antemão
aviso: neste jogo, há fissuras. Ele foi feito para atazanar o significante, sobre a inquietação que
me dá o fato de vivermos grande parte de nossas vidas querendo achar sentido para tudo, e
antever as coisas. Esta é a fissura, aberta a marteladas, e azeitada com sangue. Como máquina?
Nós somos máquinas, somos vidas que funcionam, e nos acoplamos a várias outras vidas e
coisas do mundo. Para nos divertir, para nos alimentar, matar nossa sede, para trabalhar, para
pensar. Somos máquinas, engrenagens de uma imensa máquina-sociedade. Esta é uma máquina
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de expressão. Ela é concebida para toda a gente agir, falar, dançar, escrever, agir e reagir a ela.
Feita para afirmarmos qualquer coisa que nos movimente em direção à vida. É importante
salientar: esta é uma máquina feita para a pulsação da vida. E rota? Pra início de conversa, rota
é anagrama para Tarô. Jogos de linguagem me agradam, e me fazem pensar num tarô do avesso.
Mudança de perspectiva sobre algo já dado, de cunho universal, para algo singular, que não se
vê em outro lugar. Os signos europeus, tão arquetípicos, ficam em segundo plano, para que
signos e criaturas daqui, sejam mapeadas em traços, e reinventadas. Isto é um procedimento de
menoridade. Rotas são caminhos possíveis, uma jogada pode indicar vários deles. No mínimo
um, para cada carta revelada. Cada carta é projetada para funcionar como mapa. Um convite
para um processo: a invenção de si.
I. MAQUINAS EXPRESSIVAS
A menoridade não tem uma via única de contato, pois advém de máquinas expressivas.
O que seriam máquinas expressivas? Modos de criação voltados para o estimulo da expressão
humana, sem tanta preocupação com o conteúdo liberado por ela, a princípio. Uma máquina
expressiva, em si, já produz conteúdos quando encontra-se em funcionamento. Portanto, uma
produção menor é composta por várias entradas e saídas, cujas vias de acesso não se
compreendem muito bem como funcionam, a princípio. Isto ocorre pelo fato de que cada
máquina é singular, e seus modos de funcionamento variam para cada manipulador. Através de
obra de Kafka, Deleuze e Guattari, há um convite implícito para a experimentação de uma obra
artística. Para eles, uma experiência do gênero se assemelha a entrada de uma toca, fazendo
menção a novela homônima kafkiana. A toca torna-se um dispositivo feito para enganar um
inimigo, algo ou alguém, pelo qual se enfrenta uma relação predatória.
Entrar-se-á, então, por qualquer parte, nenhuma vale mais que a outra, nenhuma
entrada tem privilégio ainda que quase um impasse, uma trincheira estreita, um sifão,
etc. Procurar-se-á somente com quais pontos conecta-se aquele pelo qual se entra por
quais encruzilhadas e galerias se passa para conectar dois pontos, qual é o mapa do
rizoma, e como ele se modificaria imediatamente se se entrasse por um outro ponto.
(DELEUZE & GUATTARI, 2015, p. 9)
Dentre os inimigos de uma obra menor, existe um que conecta a todos e os fortalece, e
este é, sob o discurso de Deleuze e Guattari, o significante. O significante é um termo trabalhado
por Ferdinand de Saussure, em meio aos esforços de estruturar sua teoria linguística, para
designar nos signos linguísticos os ecos que remetem à representação psíquica da emissão de
sons; Jacques Lacan retomou esse conceito e o tornou de grande relevância em sua obra teórica,
tornando-o um elemento de forte significação em meio a um discurso, vindo da inconsciência,
54
incorrendo em algo que determina os atos, as palavras e os destinos. As múltiplas entradas, vias
e possibilidades de conexão com uma obra deixam abertas vias para a experimentação e
construção de dispositivos para intensificar afetos políticos, e arrombar o significante. Kafka,
que, audaciosamente, escrevia em iídiche para toda a Alemanha, deixa algumas chaves de
conexão com a menoridade em toda a sua produção, e Deleuze e Guattari identificam algumas
delas, propondo possíveis funções delas em sua obra. Uma delas é a dupla função “cabeça
erguida” e “cabeça curvada”, recorrentes na obra de Kafka, que possuem uma série de efeitos,
conforme o esquema:
Figura 3 - equações dos componentes de expressão na postura da cabeça em Kafka.
Fonte: DELEUZE & GUATTARI, 2015, p. 13.
A imagem acima demonstra que uma forma de experimentar o corpo de um personagem
já traz consigo uma relação de submissão ou enfrentamento diante de um olhar, tomando a
cabeça erguida como, por excelência, a busca para a direção de uma saída de determinada
situação. Tal dispositivo impele a pensar na postura do corpo durante um jogo. Numa partida
da Máquina-Rota, os corpos geralmente se encontram sentados, posicionados um de frente para
o outro, com a formação de mandala das cartas montada entre eles. A postura da cabeça, de
todos os jogadores, influencia na construção psíquica a ser elaborada naquele instante. Uma
cabeça erguida discursiva, uma cabeça baixa a todo ouvidos, coluna ereta defensiva, braços
agitados, trazem consigo reverberações, variáveis que tornam cada jogo uma máquina diferente.
Uma experiência maquínica: o tarô. Um jogo interpretativo, que geralmente envolve
dois jogadores. Um assume o papel de cartomante, e o outro, de consulente. O cartomante
anuncia as propriedades das cartas, suas formas e funções simbólicas e interpretativas. O
consulente leva demandas, sintomas, situações intrincadas, impasses, desejos, pedidos, para
serem discutidos durante a explanação do consulente, que pode ser convidado a comprar cartas
e coloca-las na mesa. Ao cartomante é atribuída à realização de conexões entre as demandas
55
trazidas pelo consulente e conectá-las aos conteúdos revelados pelas cartas escolhidas por ele.
Desse conjunto de procedimentos, são extraídas possibilidades, significados, sentidos,
soluções, origens e material para que as questões colocadas sejam trabalhadas numa meditação
posterior do consulente. É um jogo que também funciona como exercício meditativo periódico,
numa espécie de consulta individual, com todas funções atribuídas a uma pessoa, que utilizará
o contato interpretativo com as cartas como uma espécie de oráculo periódico, para avaliar
diversas dimensões da vida íntima. É um jogo profundamente movido pelo acaso, ao qual não
há perdedores, somente desafios para o espírito.
Existe, de antemão uma potência menor no tarô, que envolve o efeito que o conteúdo de
uma carta pode exercer no ato de conexão entre o corpo e ela. Uma carta movimenta a história
de modo que ela estremece o caráter representativo desta. Como exemplo, trago a transcrição
de um dos jogos realizados pelo Coletivas Xoxós, com o Tarô de Thoth, produzido por Aleister
Crowley. Isto posto, demonstro empiricamente esse potencial, através de uma escrita de
caderno feita posteriormente a esta experiência lúdica com as Xoxós:
II. O DIABO
Ele destruiu minha coleção de carrinhos. Manchava minhas roupas. No primeiro sinal
de irritação, como vírgula, emitia infâmias e palavrões do escalão mais ferino, homofóbico, isso
quando não me agredia. E eu revidava, não deixava barato. Deixavam a gente de castigo, não
importa de quem era a culpa. Vivemos a adolescência feito sombra um do outro, mas uma
sombra distanciada, atenta. Rasgas mortalhas agourentas, fingindo desinteresse, mas de
esguelha espionando. Um tropeço, que seja, e o outro estaria ali pra gargalhar da tragédia.
Espaços cerrados, competitividade, casa igual a um campo de guerra. Me entrincheirei na sala
oculta de estudos, fiz dos livros e dos amigos um escudo, e ele continuava espionando. Eu
também. Nos menores descuidos, de atenção ou culpa, e o bote se dava.
Ele trapaceava, e conseguia o que queria. Ele se aproveitou da teia de isolamento entre
todos de casa, e pintava, e bordava. Bêbado, já me arrastou entre a culpa e o cuidado. Atacado,
me chutou o braço e banhou minha alma com uma dor sem precedentes. A dor não ocorria
apenas no braço, era lá dentro da alma. Tarde da noite, depois de destruir muito, acordou do
frenesi e chorou. Enquanto isso, eu, trancado no quarto, sufocava e abraçava o cachorrinho.
Desesperado, relutei em perceber que não era ele que precisava mudar. Essa mudança dele
sequer me interessava mais, inclusive. Cabia a mim mudar, construir táticas, aprender técnicas,
me fortalecer, cultivar firmeza e paciência, garantir alguns recursos. Com urgência.
56
Figura 4 - Carta Diabo. Tarot de Toth (Aleister Crowley e Frieda Harris).
Fonte: http://3.bp.blogspot.com/-WG_uAK0H7UA/UiOnbznPcZI/AAAAAAAAAEQ/gjnNT-
dJOXk/s1600/atuxv.jpg (acesso em 26/05/2017)
Mas isso tudo isso serviria para quê, para quem? Decerto que não se resume em garantir
tanta experiência para lidar com ele, mas também comigo mesmo. Eu agreguei nele a multidão
de pessoas opressoras que atravessaram minha vida. Pessoas com as quais nunca soube lidar, e
me marcaram. A um ponto que a amizade para mim não significava nada além de falsidade, e
não conseguia estabelecer nenhuma relação de amor que não pedisse algo em troca por seus
gestos e dificilmente eu tinha confiança em alguém. Cicatrizes que eu aprofundei,
acidentalmente. Marcas que ecoam, a um ponto que dificilmente conseguia ser meu próprio
amigo, não conseguia fazer por mim coisas importantes, sabotagens auto impostas eram
57
frequentes, assim como a subestimação de minhas capacidades. Não conseguia amá-lo, não
conseguia me amar. Isso precisava mudar. Isso ainda precisa mudar.
Entre nós, uma silenciosa trégua se instaurou. Talvez ela seja tudo o que nos resta, talvez
isso baste. Pelo menos assim não nos ferimos tanto.
Fim da história.
III. COMO OCORRE A MENORIDADE?
A noção de menor é cunhada sob uma crença numa política, numa máquina linguística
e numa experimentação que emanam na obra de Kafka e de outros artistas. Um criador, a partir
desta noção, pouco se aproxima das relações de sentido que porventura estabelece com seus
atos. Um artista sempre se movimenta para múltiplas direções, e em cada uma delas ele exerce
uma qualidade diferente de movimento, acessando devires, constituindo matérias e expressões
das formas que constituem seu campo de trabalho.
As máquinas são todo o campo que se percorre e os estados desejantes, ao mesmo
tempo. As linhas de fuga passam por máquinas, são integrantes delas também. Qualquer um
que adentra uma máquina precisa encontrar a sua saída. Aparentemente, integramos as
máquinas e a saída delas não é uma forma de liberdade. Entre essas três qualidades, o desejo
transita emitindo os procedimentos do processo de criação. Seria através da menoridade que
encontramos meios de criar a si? É possível que sim, pois é com ela que construímos nossas
próprias máquinas expressivas.
A menoridade escarnece e mutila as instituições que normatizam as estruturas
familiares. Deleuze e Guattari chamam de triângulos sociais a estrutura política, ou
micropolítica, clássica composta por filho-papai-mamãe, e aponta este enfrentamento em
“Carta ao Pai” de Kafka, ou K., sugerindo que a série de ações do destinatário, do personagem
Pai, precedidas de uma “cabeça baixa”, dão o veredicto indubitável de culpa para ele.
Uma menoridade se refere a expressão de uma minoria em uma língua maior ou
canônica. Podemos tomar como exemplo as apropriações e reinvenções que poetas e artistas
tem realizado a partir de procedimentos polifônicos – que trazem à tona muitas vozes – fazendo
que testemunha determinada obra ouvir clamores de povos que são excluídos e desassistidos
pelas maiorias institucionais e midiáticas. Povos adoecidos, oprimidos, criminalizados,
58
escondidos em guetos, pormenorizados, trazem para a língua maior uma gagueira sem
precedentes:
“Quantas pessoas vivem em uma língua que não é a sua? Ou então não conhecem
mesmo mais a sua, ou não ainda, e conhecem mal a língua maior de que são forçados
a se servir? Problema dos imigrados, e sobretudo de seus filhos. Problema das
minorias. Problema de uma literatura menor, mas também para nós todos: como
arrancar de sua própria língua uma literatura menor, capaz de escavar a linguagem, e
de fazê-la escoar seguindo uma linha revolucionária sóbria? Como devir o nômade e
o imigrante e o cigano de sua própria língua? Kafka diz: roubar a criança no berço,
dançar sobre a corda bamba.” (DELEUZE & GUATTARI, 2015, p. 40).
Segundo Deleuze e Guattari, tudo numa expressão menor é político, ao contrário das
grandes narrativas as quais tudo soa familiar e individualista, com as complexidades sociais
deixadas como mero plano de fundo, ou mesmo em último plano. Na menoridade cada detalhe
de uma personagem e sua ambiência são trabalhadas para ligarem-se a questões políticas,
detalhadamente. Mesmo em circunstâncias como as de Gregor Samsa, na Metamorfose, o que
poderia se resumir a uma trama familiar imediatamente é quebrado com a presença da figura
burocrática, tão logo o conflito se instaura. A transformação em barata do personagem,
portanto, é de imediato levada ao campo político das relações sociais.
“[...] pois em cinco minutos seriam sete e quinze – quando soou a campainha da porta
de entrada. “É alguém da firma”, disse a si mesmo e quase ficou paralisado. [...]
Gregor precisou apenas ouvir a primeira palavra de saudação do visitante e já sabia
quem era – o gerente em pessoa. Por que apenas Gregor era condenado a trabalhar
num firma na qual, pela menor das omissões, levantava-se logo a maior das suspeitas?
” (KAFKA, 2009, p. 23)
O terceiro bloco de composição de uma menoridade é o valor coletivo que ela alimenta.
Não há, numa produção menor, condições para a proliferação de discursos dados por
individualidade, por dogma, ou modelo, uma espécie de método, ou “discurso do mestre”. Ao
contrário, uma escrita que se dispõe à minoridade trabalha dando abertura, espaço e fala para
multidões. A personagem Josefina, a camundonga, renuncia ao exercício de sua singular voz,
para se misturar na multidão heroica do povo rato. Mesmo as presenças tidas como
individualizadas não tardam a formar grupos, gangues, matilhas, alcatéias e cardumes. Portanto,
não há um sujeito ensimesmado. Há um elenco atravessando um ato de expressão, uma multidão
tendo a possibilidade de falar. Há agenciamentos coletivos de enunciação, que estão ao mesmo
tempo num campo da ética dos devires e numa busca por potência e enfrentamento
revolucionário contra as opressões dos movimentos maiores.
Vamos experimentar juntos um agenciamento coletivo de enunciação? A batalha do tarô
pode nos cair como luva. Esse jogo pode ser jogado com qualquer tarô existente. Sua natureza
é experimental e envolve a incorporação das linhas impressas nas cartas com todo o corpo. Um
59
trabalho de performance e atuação. É um jogo para se jogar em grupo ou em dupla. Cada
jogador, no início da rodada, compra uma carta. A partir de então, cada jogador terá um
determinado tempo para realizar uma performance, de pura improvisação, na qual ele defende
as ideias da carta, tentando afirmar que a carta comprada é a mais virtuosa que a do oponente.
Quando jogada em grupo, cabe aos que estão fora da disputa, no caso de uma partida com mais
de dois oponentes, a decisão sobre quem realizou uma performance mais acurada e por quais
razões, construindo um posicionamento crítico e de cuidado com as palavras utilizadas. No caso
de uma partida entre dois jogadores, o consenso entre eles será o responsável por tal escolha. É
um jogo praticado pelo Coletivas Xoxós, e foi utilizado recentemente durante o processo de
criação do projeto “Ô de casa, posso entrar pra cuidar? ”, com o intuito de acionar conexões
entre os participantes da encenação a ser desenvolvida. É um jogo também produzido por alguns
membros do coletivo no âmbito da sala de aula da Escola de Teatro e Dança da UFPA.
Uma expressão artística, quando menor, pode se caracterizar como uma
“desterritorialização” da língua, ou seja, ela sai de seu lugar comum para se tornar, de algum
modo, diferente; assim como se desacopla do individualismo para se conectar ao imediato
sócio-político; e constitui um agenciamento de coletividades. O exercício da menoridade faz a
língua, a política e a coletividade fazer diferença. Respectivamente, os ruídos de uma variação
as normas que padronizam a matriz de uma língua tida como oficial, como o dialeto popular,
dialetos de grupos sociais singulares; o detalhamento microscópico dos conflitos sócio-políticos
inscritos em determinado trabalho, como os que atravessam o corpo de barata de Gregor Samsa;
e a voz de uma multidão que insiste em invadir o espaço da expressão, contra qualquer tipo de
aceitação e subalternidade.
A menoridade é sinônimo de arte popular? Seria ela, necessariamente, a expressão
proletária? Somente enquanto ela for um exercício que incite as condições revolucionárias em
qualquer formação, inclusive advinda diretamente de uma maioridade, ou molaridade. A
menoridade é uma prática e também uma condição atribuída a uma nação que sofre opressões
vindas de todas as direções. A menoridade reage a molaridade. Ela, como os povos que
continuamente são enxotados, as vezes a peso de bala, das vias urbanas, sofrendo com a
imposição de uma ideia de progresso que os massacra, ao abastecer os empreendimentos
desenvolvimentistas, é pura resistência. A periferia resiste. A arte, enquanto devir-
revolucionário, resiste também. A arte precisa devir-menor para ser uma existência resistente.
As manifestações ditas populares são continuamente capturadas pelo capital, devido ao
potencial lucro que geram, nesses casos, a menoridade é a prática que advém dessas
60
manifestações capturadas. Ou seja, se do business, mais valia, negócio, um corpo atinge uma
conexão com um devir-revolucionário e altera suas práticas de vida, uma menoridade está sendo
operacionalizada.
IV. O AVESSO DO MAIOR
Seria o sonho da minoridade tornar-se maior? Afinal, muitos estilos surgem com o
intuito de desempenhar funções molares, gêneros, movimentos, escolas se abrem, e da pequenez
inerente a todo começo, como um germe, um duro desejo de tornar-se matriz, regra, opressor
pode proliferar, assim como ocorre em muitos movimentos interpretativos, semióticos e
hermeneutas, quando reclamam a posse dos significantes, metáforas e dos jogos linguísticos.
Deste modo, o sonho de uma menoridade é o avesso da demarcação e um latifúndio. É preciso
sonhar do avesso, fazendo da menoridade um devir acessível e contaminado por energias
nômades, para que a constância da variação aconteça.
É preciso atentar para os componentes de expressão na máquina a ser criada. A
Máquina-Rota, por exemplo, configura uma máquina lúdica feita para produzir expressões,
feita para organizar, desorganizar forma e conteúdo, para soltar as amarras de um corpo, para
liberar a expressividade, que consigo arrasta as torrentes informacionais. A questão é produzir
uma série de enunciados e depois lapidá-los. A maioridade busca produzir conteúdos belos de
antemão, bem concebidos já em sua concepção, e a menoridade segue martelando, processando,
costurando, desconsturando, recosturando...
V. ENTRE CARTAS
Entre Kafka e Crowley, entre a escrita e o desenho. Como produzir zonas comuns entre
as cartas de amor e as cartas de tarô? Se considerarmos ambas como rizoma e como objetos de
conexão entre vidas, já obtemos uma primeira pista. Deleuze e Guattari também sugerem um
certo vampirismo no trabalho epistolar. Cada carta devém morcego, que suga o sangue de quem
entra em contato com elas. O sangue de uma fala, de uma expressão da vida, de traços
biográficos, de uma pessoalidade. Com esse sangue, obtemos as moléculas necessárias para o
exercício da menoridade. Magia de sangue compõe o enunciado “As cartas devem lhe trazer
sangue, e o sangue, dar-lhe a força para criar” (DELEUZE & GUATTARI, 2015, p. 59 e 60).
Entre as vias de funcionamento das epístolas, e o jogo de tarô, duas pessoas conectam
61
determinados acontecimentos que as atravessam, agenciando com as cartas diversos
movimentos. Dentre eles o desejo de cartas, que propõe, sobre aqueles para as quais as cartas
se endereçam, algum tipo de reação, de resistência, de movimento. Jogo de cartas, ou cartas
como jogo desejante, também requer a instauração de um conflito, que talvez até ultrapasse a
“descrição” sugerida por Deleuze e Guattari. Na verdade, a única esperança no jogo de cartas é
um conflito.
Uma experiência sanguínea: o tarô da incorporação. Jogo criado pelo artista,
pesquisador, cenógrafo, figurinista e artista visual Aníbal Pacha. Uma mandala circular é
formada, com as cartas de qualquer versão do tarô conhecido no chão, com a face voltada para
baixo, e cadeiras. Uma carta para cada jogador, menos para um que encarna uma espécie de
coringa, responsável pelo cuidado com o movimento de energias no ambiente inventado pelos
participantes. Os jogadores se posicionam da seguinte forma: cada um senta-se de frente para a
carta escolhida, ampliando o círculo pela postura de seus corpos. Um exercício de respiração é
iniciado. Com suavidade, o coringa conduz a respiração do grupo e inicia o movimento de
costura entre corpos. Após isto, ele convida a todos que peguem as cartas, cada uma delas. Os
jogadores são convidados a observar as cartas, e um silêncio se instaura. Após a pausa, os
jogadores são convidados a inventar uma história, desfiar uma memória, realizar uma pressão
sobre os conteúdos de sua respectiva carta, e se expressar. Não há perdedores neste jogo.
Quando ele é instaurado, no ato do jogo, potências caóticas são acessadas, formando
conflitos, brigas, discussões, coisas imprevisíveis, no entanto, intensas. Algo como um sintoma,
partindo do sentido freudiano, que é constituído como a expressão de um conflito psíquico, com
conteúdos inconscientes, que produzem uma satisfação controversa. No entanto, para Freud, o
sintoma seria uma espécie de substituição, derivada de impulsos reprimidos num determinado
sujeito, neste trabalho, o sintoma não substitui nem representa. Num jogo de cartas, de forma
contínua, compromissada e, estranhamente, qualquer efeito caótico, que pode gerar benefícios
pelo desprazer, colocará o uma partida numa guerra de trincheiras da subjetividade, um sintoma
amalgamado com o signo deleuziano.
Para uma prática menor, o sangue oferta força, mas não o suficiente. É necessário criar
múltiplas conexões. E Kafka definitivamente não se limitava a escrever cartas. Suas cartas eram
alavancas biográficas e oníricas para outros exercícios de criação, em outros formatos. Suas
novelas, por exemplo, trazem outras qualidades de escrita e intensidade, dentre elas, os devires.
Como funciona um devir? Longe de serem meras imitações, reproduções, um devir pode ser
tido como uma espécie de “captura, possessão, ou mais-valia” (DELEUZE & GUATTARI,
62
2015, p. 29) que arranca um ser de sua suposta humanidade, para conectar-se a outra formas de
vida em meio a um ato. Um gesto, uma fala, a estruturação de uma atividade qualquer pode
acessar um devir, ou vários. Na filosofia de Deleuze, eles são a minoridade produzida sobre os
ídolos, arquétipos, e construções de “outros” simbólicos, tidos como universais e fixos, e
inventados com o intuito de serem superados. Em Deleuze, um devir torna a existência humana
mais conectada a natureza, ao ambiente em que vive, mais potente, desde que não haja
conversão completa. É preciso prudência. Na Metamorfose, o personagem Gregor Samsa
transforma-se inteiramente em barata, e acabou morrendo. Ou seja, o devir é um entre-ser, e
nunca uma conversão completa.
Durante o processo de criação da Máquina-Rota, muitos devires foram acessados. Tais
devires podem se situar sob algumas características, enumeradas a seguir: não houve como
distinguir uma característica totalmente humana ou totalmente animal durante qualquer
processo de desenho ou escrita, o caminho foi sempre entre devires-humanos, devires-
animalescos e devires outros em relação de simultaneidade; dito isto, o devir humano acontece
no sentido de conter, capturar e aprisionar; com os outros devires, em medida de resistência,
oferecendo rotas de fuga e saídas, para a direção da criação. Através da conexão com os devires,
é possível operacionalizar deslocamentos, viagens, intensidades, aventuras, ainda que
estejamos imóveis e sentados sobre uma cadeira.
Ainda que a tentação de encarar a ética dos devires como uma força metafórica de
existência, aqui, este conceito passa longe disto. É importante que procedimentos cartográficos
sejam evidenciados, as cartas são, antes de qualquer coisa, mapas. Lugares para se
experimentar percursos de criação, invenções de novos caminhos, muito mais que o produto de
uma suposta profundidade, de um simbolismo, de uma alegoria, enfim, de uma representação
de algo inatingível. As cartas estão aí, prontas para serem vistas, para serem experimentadas,
transmutadas pelo ato criador, estão “ao alcance do tato” (LIMA, 2008), num ato de menoridade
que se deixa contagiar pelo fazer teatral proposto por Wlad Lima. Pequeno, minúsculo, de
porão, pequenos espaços, lugares pouco usuais, ou melhor, bastando apenas o pequenino cosmo
formado pelo encontro entre cartomante, consulente, baralho e o ambiente ao redor, num
constante entrelaçamento. O devir é um elemento fundamental da subjetividade, seja ele animal,
vegetal, mundano, mítico... constituído peças cruciais na formação das máquinas de expressão
e das linhas de fugas. Cartografias são tramas com muitas intensidades de devires.
A terceira questão inerente aos componentes expressivos de uma minoridade são os
agenciamentos maquínicos. Um agenciamento é um conceito pragmático, e supõe a elaboração
63
de desejos e enunciados. De forma singular, a partir do pacto de sangue das cartas e os devires
que são acessados num jogo. Entre esses elementos, podemos obter uma série de movimentos
de transversalidade. Um está conectado ao outro, tendo um ou outro componente mais evidente
dependendo da partida. Claro, muitos outros componentes podem ser inventados, mas por ora,
esta pesquisa consegue identificar apenas estes três. Muitos outros podem ser acessados, e só a
experiência no porvir poderá nos revelar mais possibilidades. No entanto, os componentes
levantados nos dão as pistas necessárias para os primeiros procedimentos de jogo.
Os três procedimentos possíveis para a máquina são: um pacto, os devires e os
agenciamentos. É necessário que os jogadores abram ao caminho das palavras e dos gestos,
aspectos da vida que necessitem entrar em processo de estranhamento e abertura. Tais aspectos
são tidos neste componente como sangue biográfico, tanto por parte do manipulador das cartas,
quanto por quem está entrando em contato com ele, o consulente ou buscador. Quantos aos
devires, quando necessário, uma ou mais cartas são reveladas, trazendo à tona paisagens e
personagens diversas. Os efeitos perceptivos e afetivos gerados por elas gerarão os estados de
alteração e vislumbres de fuga e saídas das circunstâncias inventadas no ato do jogo. Já aos
agenciamentos, é importante ressaltar seus dois eixos; os maquínicos, que consiste nas ações
provenientes dos corpos, e de suas paixões, sejam elas tristes ou alegres, e da mistura gerada
por essas ações, num jogo, as maquinações se dão pelas afetações e percepções geradas entre
cada elemento constituinte; e os agenciamentos coletivos de enunciação, que consistem nas
transformações emocionais, racionais, sensíveis e psíquicas que são perceptíveis e não
perceptíveis nos corpos. Os agenciamentos colocam o jogo em movimento e tanto podem
atingir cargas de estabilidade quanto arrebatamentos em direções não concebidas. É do
funcionamento dos processos de criação que não se saiba o que vem a seguir, mesmo com muito
planejamento.
Uma produção de menoridade é o procedimento de contínua variação, ou seja, de
produção de diferença. Por isto, suas regras não são fixas e não há um roteiro fechado. Existem
algumas operações, algumas reações que podem se repetir, porém com a consciência de que
nunca será da mesma forma. A expressão da Máquina, apesar de ter fortes componentes de
devir-criança, devir-artista e devir-louco, não se resume a eles, todas as existências e devires
possíveis podem surgir, e fazer algo acontecer. Se cabe a Máquina-Rota um objetivo, este é a
produção de uma singularidade, talvez de um exercício único de si, uma atividade pessoal que
conceda força para seguir em frente, para viver intensamente, de forma inventiva.
64
VI. PROCEDIMENTO CRÍTICO
A menoridade é uma forma de expressão crítica. Obtemos essa pista ao entrar em
contato com a obra “Manifesto de Menos”, de Deleuze. Carmelo Bene foi seu intercessor nesta
escritura, para mostrar que a crítica pode ter uma dimensão tão criativa quanto a obra sobre a
qual se debruça. Bene, que foi dramaturgo, ator, encenador e cineasta, afirmou que algumas de
suas montagens consistiam em ensaios críticos em relação a obra de William Shakespeare.
Como ele procedia? Ele não se limitava a escrever sobre Shakespeare, as peças de teatro em si
eram o produto de uma série de procedimentos críticos. Deleuze, afirma, no entanto, que a
crítica não se dirigia ao autor, não consistia em um mero metateatro, não caracterizava e nem
adaptava a um novo contexto. Ele procedia por cortes, sabotagens e amputações para
experimentar os efeitos políticos gerados pelas ausências. Em Romeu e Julieta, o Romeu foi
arrancado de cena, o que obrigou outras personagens a lutar com mais força pelas suas vidas.
Já em “S.A.D.E.” temos uma inversão de intensidades dos textos de Sade, com a imagem sádica
sendo enfraquecida e reduzida em relação em favor de um masoquista agigantado, cheio de
nuances e, a partir da esterilização do senhor agressivo, conquista a sua autonomia.
Um último exemplo: Ricardo III. Neste, uma audaciosa subtração ocorre: toda a corte
real, com suas ostentosas presenças e suas tramas baseadas nos costumes são cortados, restando
apenas Ricardo III e as mulheres. Com o corte do patriarcado da trama, na concepção de Bene
e Deleuze, também há um desfalque na ideia de Estado de Poder na trama, ideia esta reforçada
pelo fato de que as mulheres, neste espetáculo, desde a produção original de Shakespeare, serem
evidentemente revolucionárias e bélicas. Mulheres que produzem discursos com grandes
preocupações com aqueles que lutam nos conflitos, seus filhos e próximos, além de um Ricardo
que se torna também mais preocupado em agir como homem de guerra também, ignorando as
manobras de manutenção do poder sobre seus comandados, e construindo meios de melhorar
sua relação com estas mesmas mulheres. Tais mudanças acarretam numa série de criações de
dispositivos muito pequenos, criados para fins de conexão, com objetos retirados de uma
gaveta. Tais objetos tornam-se brinquedos que alegram a todos, ao custo de torna-lo uma
espécie de Quasímodo. Deformado e ridicularizado com suas criações, no entanto, um ser cheio
de potência e alegria.
Se há modalidade crítica para a minoridade, como já comentado, ela encontra-se nas
linhas políticas que a atravessam, as linhas do Poder. Os elementos que o tornam visível, ou o
representam, são opressores de uma determinada população. Já entre o teatro de Carmelo Bene
e o tarô, existem elementos de poder a ser revistos em comum? A representação seria, portanto,
65
uma questão norteadora. No tarô, encontramos elementos pictóricos associados com
personagens cujos sentidos e significações já se encontram dados, e que geram efeitos
universalizantes. A questão é: como produzir um tarô que permita a criação de expressões livres
de sentidos universais e pré-fabricados, em favor de experiências singulares de criação de
afectos e perceptos, uma política menor do encontro? Como produzir um tarô não
representativo? Como produzir um jogo que crie conexões revolucionárias? Como construir um
jogo que entrelace as ideias temporais conforme a necessidade do que há a se trabalhar no
instante do jogo? Se existe uma língua maior no tarô, como minorá-la? Se existe uma língua
maior nos jogos em geral, como minorá-la também?
Nos jogos de tarô, a crítica é necessária em duas vias: a da representação e do sentido.
A operação possível para a sua minoração se experimentam nesses dois âmbitos. O primeiro na
amputação dos personagens “arcanos maiores”, tidos como universais, que são claras
representações de figuras institucionais, religiosas, familiares no âmbito real que circunda o
jogo. Representações advindas de personagens religiosos cristãos (papisa, papa, casa de deus),
monárquicos (imperador, imperatriz), portadores de saberes universais (mago, justiça,
julgamento) e mesmo de conceitos tidos como essenciais à natureza humana (sol, lua, carro).
Todos eles são alterados, e ao operador das imagens coube inserir em seus lugares seus traços,
suas técnicas, reinventando personagens advindos de sua trajetória cultural, biográfica, social e
política.
A segunda crítica encontra-se na construção e desconstrução do sentido, que no tarô é
permeado por chaves interpretativas, simbólicas, arquetípicas que tornam o trabalho de criação
pura representação. A operação feita para a quebra do sentido são as narrativas inventadas em
conjunto com o baralho, com a estruturação do jogo realizada seguindo os fluxos de desejo que
se movimentam no jogo.
VII. GAGUEJAR PARA VARIAR
“A operação crítica completa é a que consiste em: 1°) retirar os elementos estáveis;
2°) colocar, então, tudo em variação contínua; 3°) a partir daí, transpor também tudo
para menor (é o papel dos operadores, respondendo à ideia de intervalo menor). [...]
Gaguejar, mas sendo gago da própria linguagem e não simplesmente da fala...
Carmelo Bene acrescenta: falar consigo mesmo, no próprio ouvido, mas em pleno
mercado, na praça pública...” (DELEUZE, 2010, p. 44)
Minorar supõe uma gagueira na língua. Uma série de blecautes, sabotagens,
estremecimentos, soluços que ultrapassam a fala, e atingem uma linguagem em si. A internet é
um ninho de menoridades linguísticas em potencial. No processo de montagem da Máquina-
Rota, por vezes, determinados elementos foram mantidos, como a sugestão de gênero de alguns
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personagens, e mesmo a imagem da torre em queda, que me agrada muito, e ganha a inclusão
de uma criatura entre o poraquê, que é um peixe elétrico da região amazônica, e o tajá-buiúna,
uma figura do imaginário cuja existência é relacionada a proteção de um território. Uma criatura
derruba a casa de deus, destrói paredões de pedra erigidos para isolar – do povo – saberes,
riquezas e conhecimentos. Algumas vezes a operação exigiu apenas a inserção de algum
elemento para fazer o jogo variar. A questão não é quebrar o jogo, e sim construir uma relação
de formação pelo desmantelamento de uma prática maior. Se pode inclusive encarar o jogo
como um tarô e jogá-lo como tal, mas o desafio está em inventar regras e chaves expressivas.
Jogar como uma pequena criança jogaria. Jogar como se nunca tivesse encarado tomos,
discursos e textos a respeito de teorias simbólicas e sígnicas a respeito da prática do tarô. Jogar
como estrangeiro! A gagueira então, seria um jogar como estrangeiro?
“É impor à língua, mesmo sabendo falar essa língua perfeita e sobriamente, a linha de
variação que faria de você um estrangeiro na sua própria língua, ou que faria da língua
estrangeira a sua língua, ou da língua um bilinguismo imanente por sua estranheza.
Voltar sempre à fórmula de Proust: “Os belos livros são escritos numa espécie de
língua estrangeira...” (DELEUZE, 2010, p. 46)
Ou, ao contrário, um grande cartomante (que nunca soube interpretar cartas) que passou
a construir o seu próprio baralho cartográfico, mesmo sem compreender uma única chave
simbólica que seja dos arcanos originais. O jogo que é construído por alianças e não por
filiações e dogmatismos aos modos tradicionais, e ritualizados, da cartomancia. É uma relação
que ocorre entre estrangeiros, desde a concepção do baralho, até o momento dos jogos em si.
Afinal, como seguir cegamente qualquer tipo de regras, sem reduzir a complexidade dos afetos
em sistemas coercitivos? É preciso que nos guiemos pelos afetos, para que as vozes a falar num
jogo sejam as dos que clamam por emancipação e liberdade, e não pelas vozes opressoras. Um
devir-estrangeiro se coloca fora de uma zona de conforto para entrar num estado de variação
contínua: a viagem, o processo, o delírio necessário. Tanto em relação com os outros, quanto
consigo mesmo, produzindo diferença.
“Assim eu me tornei gago a cada dia, ao tentar falar. Também por ser gago eu sou
esse tipo de estrangeiro. Estrangeiro no mundo dos que falam uma língua reta, inteira,
direta. E penso que sou estrangeiro, duplamente estrangeiro, sempre estrangeiro [...]”
(TIBURI, 2016, p.56)
Portanto, a subordinação das expressões, das palavras às imagens, à velocidade, à
variação de velocidade, e a subordinação do desejo à intensidade ou ao afeto, à variação
intensiva dos afetos, são, segundo Deleuze, dois objetivos essenciais das artes. (2010, p. 50).
Se há um objetivo essencial para o jogo, é o de construir, durante essa prática, uma máquina de
guerra. Ou seja, garantir que a singularidade prevaleça sobre as aparelhagens de um estado que
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adentra, imperativo, até nos mínimos gestos de vida em sociedade. Uma máquina que brinca
com as monstruosidades escondidas em si, que procura a potência e a impotência, pressionando
para que se experimente aquilo que aparece, com o mínimo de censura, culpa, vergonha,
julgamentos e quaisquer ideias advindas de modos puramente morais de vida; é dar força
coragem de enfrentar o que aparece, e finalmente, inventar meios de se apropriar das coisas do
mundo. Brincar, jogar, gaguejar, aqui, procede por estas vias. É também importante a
cumplicidade, mas advinda de uma amizade que também pode ser cruel. Existe um
compromisso entre os corpos em estado de jogo.
VIII. CORTES E AMPUTAÇÕES
“As coisas que vemos – continuou Pistórius com uma voz mais velada – são as
mesmas que temos dentro de nós. A única realidade é aquela que se contém dentro de
nós, e se os homens vivem tão irrealmente é porque aceitam como realidade as
imagens exteriores e sufocam em si a voz do mundo inteiro. Também se pode ser feliz
assim; mas quando se chega a conhecer o outro, torna-se impossível seguir o caminho
da maioria. O caminho da maioria é fácil; o nosso, penoso. Caminhemos.” (HESSE,
2016, p. 130)
A minoria, na vida e nos jogos que a compõem, indicam, primeiramente, a existência
de um sistema que exclui e/ou mantém em situação de subordinação, que impõe de forma anti-
democrática uma série de normas, as quais o menor é colocado em um parâmetro de
comparação, e mesmo inferiorização com relação a maioria. Mulheres, crianças, religiosidades
não cristãs, o terceiro mundo, as outras cosmologias, as epistemologias que desconheço (ou
invento), as culturas advindas de raças não-brancas, são exemplos possíveis. Em segundo lugar,
existe um engajamento, um ativismo, uma série de ações políticas de se praticar, as quais cabe
devir-minoria. Cabe a cada um de nós construir esse exercício, do seu modo, ao que lhe cabe,
e devir; cabe a nós nos propormos maneiras de habitar esse lugar gigante que chamamos de
mundo, produzindo mundos e os fazendo fugir das maquinações despóticas, imperialistas, dos
sistemas de poder que podem nos situar na maioria indefinidamente. Cabe a nós, por que não,
experimentar devir Onça, Afogado, Mãe D’água, Curupira, Submerso, Zimbado, Pororoca,
Boto, Namoradeira, Marajozinho, Flexeira, Tibira Verde, Anhangá, Buiúna, , Mapinguari, Tajá
Buiúna, Agouro, Dona Tumba, Tabuleiro dos Ciclos, Icamiabas, Parauás, Guajarás,
Chamegar... há um pouco deles em todos, tanto quanto há potencialidade em todos enquanto
minoria. Ao pensamento e a ação da maioria, cabe a impotência e o poder.
Portanto, este é um jogo aonde não cabem arcanos maiores. A intenção não é eliminá-
los de uma vez por todas, inclusive traços de arcanos como a Torre são mantidos. Torre em
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queda, muro derrubado, mapa revolucionário que persiste e traz um devir de minoria muito
potente para ser cortado, no entanto, a buiúna oferece uma outra conexão, uma brecha, uma
singularidade, uma vida brotando de onde só poderia haver queda e destruição. Com a arte de
sua produção, evidentemente uma política dos jogos está em princípio de proposição. Sem
representações que se reduzem a regionalismos, símbolos aristocráticos, estéticos e mesmo
místicos sendo priorizados. O que há de universal aqui é a singularidade, a unicidade dos
encontros, para além de qualquer normatização. A Máquina-Rota apresenta e constitui
possibilidades de menoridade em formação, com a operação de discursos, trocas, imagens,
símbolos, arcanos em estado de aliança e contínua mudança. Linhas transformadoras que
podem esticar para fora do jogo e assumir formas e funções diferentes, podendo também ser
experimentadas na vida. Também pode, se revirar e suscitar novas partidas. Este jogo consiste
numa tentativa de tomada de si, de consciência de si, das cores, odores, sons que se compõem
num exercício espiritual, para além dos problemas, significações e demandas imediatas. Uma
espiritualidade, em sua dimensão artística, para a direção de uma solidão povoada de átomos
do corpo. “Sozinho se é uma massa” (DELEUZE, 2010, p. 64), num jogo em que se busca
menos a solução para qualquer urgência individual, e mais uma decisão em nome de um povo
que nos atravessa.
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COORDENADA 4 – MÁQUINA-ROTA
Figura 5 - Mandala da Máquina-Rota, com o jogo montado.
Fonte: acervo pessoal
Agora é momento de respirar e seguir outros fluxos. Seres de sensações irrompem o
pensamento e nos escapam para longe. Eis aqui mapas desenhados e poeticamente escritos, em
fragmentos. Seres em estado de devir que convidam a incorporação, como na pajelança. “É
fácil deslizar... Desfazer os órgãos” (BRITO, 2015, p. 218) É possível construir um corpo sem
órgãos xamã? Vamos experimentar?
Certo dia, após uma noite de sonhos intempestivos, ele levantou-se da cama e resolveu
que construiria um tarô. Assim, do nada. Um conjunto de cartas. No momento, ele foi conduzido
por um bloco de memórias do passado. Um projeto inacabado, com poemas e imagens povoado
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por simbolismos adolescentes, irrompeu em direção do futuro. Uma captação de material do
passado para construir algo. Este jogo brotou disto, e foi transformando, transformando... num
movimento incessante, trôpego, gaguejante.
Enquanto jogar, rotear. Rotear é um verbo, cuja significação indica o ato de dirigir um
veículo, mais especificamente, uma embarcação naval ou fluvial, através de um rumo
interessante para chegar a algum destino. A este verbo, revela o dicionário, também estão
relacionados os verbos “marear, navegar” (FERREIRA, 1986, p. 1524). A cada carta aberta,
um mapa para transitar. Quais as ideias foram trabalhadas em sua composição? Folhas, chuva,
onça, raízes, rizomas, flores, plumas, passagens, encruzilhadas, solitudes, silêncios, ondas,
dobras, Matinta, Parauá, Cotijuba, Mauricio, Louco, Eremita, Torre, Diabo, serpentes,
elementais alquímicos, padrões zen, linhas, e tantos, incontáveis outros. Povos. Com o tempo,
os experimentos e os encontros, as poderosas imagens do tarô foram dando espaço a muitas
outras existências. Outras matilhas, cardumes e multidões passaram a se expressar, com muita
intensidade. A cada imagem, um caminho para a construção de muitos outros caminhos. Com
a força da maquinação, o contato permite tudo isto sim. Permite mesmo! Mas para isto, é preciso
se deixar levar pela experimentação, para além do que as palavras dizem, e a escrita expressa.
Eis um exercício: produzir uma rota para longe, num exercício ao qual diversos corpos
estão em contato direto. Estado de jogo, ou de encontro. Corpos sensíveis, afetivos, sociais,
políticos, emocionais, sentimentais... Uma máquina-sala, uma máquina-parque, uma máquina-
mesa, máquinas-cadeiras, máquina-areia-de-praia, máquinas-cartas postas e duas ou mais
pessoas reunidas formam um dispositivo muito semelhante aos produzidos por Guattari ao lidar
com seus pacientes ou entrevistandos. O jogo está montado. A mandala de cartas é posta sobre
uma superfície. Conversas se dão, perguntas são feitas, silêncios produzidos. Uma, duas, três,
ou mais faces de cartas são reveladas.
Juntos, podemos produzir uma espécie de corpo expandido, trocando informações e
entrecruzamentos pensantes a respeito daquilo que vislumbramos. Conversamos sobre nossas
vidas, sensações, incômodos, alegrias, tropeços. Conversamos. Vivemos um momento de
amizade. Permitimos escutar o que temos a dizer, e cruzar essas matérias, aos caminhos
oferecidos pelas imagens. Uma série de afetos, ora delicados, ora trêmulos de tão fortes.
Qual o sentido? Não há. Não há algo dado, algo pronto para ser absorvido. Há uma coisa
a se construir, desconstruir e desfiar. Várias derivas, tremulações. Tantas possibilidades de
deslizamento até que um encontro aconteça. Um encontro sensível, que ultrapassa as palavras
escritas, ditas e articuladas. Um encontro que ultrapasse inclusive o acontecimento do jogo.
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Nada é imediato. Como alcançar isso? É necessário navegar, se posicionar à deriva. É
necessário atenção e espaço para a intuição. Vagar, delirar, sonhar acordado, dar vazão a algum
non sense, alguma aventura do agir. Este é um jogo de criação conjunta, e a criação supõe
quebras de linearidades, sentidos, significantes estabelecidos.
Há fugas, linhas. Linhas de fuga que irrompem de repente. Um ponto de fragilidade no
cativeiro, pronto para a escavação. Uma saída da toca. Um pouco de brisa fresca, um suspiro
fora das catacumbas, e quem sabe, o fôlego para cavar outras tocas. “Fuga perfeita é sem volta”
(TIBURI, 2016) Pois, segundo Márcia Tiburi, ainda não fugimos de verdade. Mas fugir
definitivamente pode ser o nosso fim. Morte na certa. De repente, o casulo se mostra
insuportável. E no esgotamento da escrita, da fala, do andar, do comer, de dormir, de lidar com
as angústias, de aplacar as tristezas, e uma dor, uma horrenda dor atinge a vida. É preciso fugir.
Visitar o amigo solicito, jogar. “Aí torna-se preciso fazer alguma coisa para não gritar, mas
parece que essas paisagens se tornam um grito” (BRITO, 2015, p.218). Gritos de Mapinguari
irrompem e afirmam que há muito a se gritar. Da saída de casa até o encontro com o cartomante.
E as imagens podem nos fazer gritar. O jeito de lidar com a vida impossível, esgotada, muda
com os mundos possíveis revelados a cada jogada, pergunta, discurso e escrita delirante.
Vamos nos experimentar nesta política dos encontros, da amizade e do olhar? A
máquina nos convida a nos ausentar do que há de regularidade, linearidade, individualidade, de
tudo o que nos remete a uma causa, um sentido, um lugar comum. A Máquina-Rota nos desafia.
Nos impele ao deslocamento, ao atravessamento, ao toque, à sensação. Uma experiência da
troca de olhares, da criação conjunta de corpos pelas vias da criação, que é maquinação.
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Figura 6 - Carta Parauá. Nanquim, de Breno Filo, 2016
Fonte: Acervo Pessoal.
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I
PARAUÁ
Parauá é um estado de mudança; é efeito de uma escolha. É um processo de
transformação que homens e mulheres passam, para virar um encantado. A pele descama toda,
se abre em poros gigantes. Frestas feitas para acolher a natureza e fazê-la atravessar o corpo de
uma futura Matinta Perêra. Não é um momento fácil. O corpo fica quente, e os amores viram
um fogo que devasta a penúria. Chamas alastram, fazendo evaporar as substâncias pesadas,
sufocantes. O alicerce estremece, torna-se tão leve. Leve de queimar muitas impurezas,
carregadas de outros tempos, em correntezas de lava, furacões intempestivos e maremotos
emocionais. Depois de um longo e doloroso processo, o corpo do feiticeiro, ou feiticeira, recém-
nascido, torna-se capaz de voar e produzir encantarias pelas estradas e imediações de vilarejos,
sítios habitados e florestas cheias de energia. Assobiando e flutuando, com gosto especial por
fumos e bebidas quentes, que atualizam seu estado de mudança tão marcante, e perene... afinal,
a transformação de uma Matinta nunca é conclusa.
A carta pergunta:
_ como se manifestam o fogo, a água, o ar e a terra do vir a ser matinta?
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Figura 7 - Carta Icamiaba. Nanquim, de Breno Filo, 2017.
Fonte: acervo pessoal
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II
ICAMIABA
Na Flexeira, ilha não muito distante, viviam elas, mulheres de batalha e ferocidade. De
acordo com as palavras que correm, a Lua reuniu as Icamiaba, pela primeira vez, para inspirar
todas as forças resistentes das matas. Aceitando somente mulheres em suas fileiras, não
importando sua procedência. Elas são extremamente reclusas, no entanto amigáveis a quem
lhes demonstrar respeito. Ferozes, possuem porte atroz. Consideram seu dever sagrado proteger
os últimos lugares encantados. Desses lugares, só se retiram para coletar sementes de sonho,
destinadas ao fortalecimento da força mística das terras, e para procriar ou receber novas
integrantes para a tribo. São guerreiras que ainda defendem com fervor as florestas e ilhas
sagradas, e com graciosidade, flutuam por sobre ondas e ventos. Não se intimidam com ameaças
de captura, não se escondem da intimidação de machos.
A carta pergunta:
_ como caçar coragem?
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Figura 8 - Carta Buiúna. Nanquim, de Breno Filo, 2017.
Fonte: acervo pessoal
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III
BUIUNA
É raro ela aparecer à toa na tua vida. Buiuna costuma só aparecer em momentos de
pajelança forte. Apenas alguém que já tenha sido cuidado por ela antes pode chamá-la. Ela
habita as águas, e lá permanece cuidando dos seres que merecem sua proteção. Ela pode ser
aterrorizante, mas esconde um coração generoso. Acontece que já abusaram muito dela no
passado. Às vezes, de noite, ela pode ser vista serpenteando, refletindo com suas escamas o
brilho da lua. Matriz de amor, nascente de águas amorosas. Nos reinos onde transita Buiuna,
caudalosas linhas curvas de água e igarapés circulam por todos os lugares, irrigando milhas e
milhas de áreas alagadas. É natureza crescendo de forma desordenada, abundante, suntuosa, se
espalhando e semeando. Nessa terra sagrada, plantas de todo gênero são cultivadas, espalhadas,
e o cheiro é forte. De vida que pulsa. Buiuna mantém como hábito, manter a vida dos lugares,
e cuidar de criaturas enfermas que surjam em seu caminho, mas sem perder de vista o que há
de mais sagrado, que é o seu próprio corpo. O segredo de seus encantos é o contato da água
com a terra, e toda vida que brota disso.
A carta pergunta:
_ onde está o machucado?
_ onde a vida costuma doer com frequência?
_ como sair da paralisia para se cuidar?
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Figura 9 - Carta Marajozinho. Nanquim, de Breno Filo, 2017.
Fonte: acervo pessoal
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IV
MARAJOZINHO
Há muito tempo atrás, em terras de além-mar, vivia um menino que transbordava
resistência, agilidade e valentia. No entanto, em determinado momento de sua vida, foi
capturado, encarcerado e afastado de sua família, em situação de escravidão. Foi parar na Ilha
de Marajó. Por muito tempo ele aguardou, pacientemente, por uma brecha para escapar, e assim
o fez, rompendo com os grilhões que o prendiam, organizando uma grande revolta e
enfrentando dezenas de jagunços. No calor do ato de fuga, foi abatido, mas vários dos escravos
conseguiram libertar-se, formando um grande foco de resistência na região. Devido às suas
façanhas, é lembrado pelo povo preto com muita gratidão e foi consagrado como encantado.
Muito convocado nas pajelanças da cidade de Soure e vizinhanças, Marajózinho chega quando
há desafios, condicionamentos, atitudes repressivas e pelejas a se atravessar. Dizem que,
quando não é visto em sua forma humana, a brincar com pequenos encantados, sobrevoa as
copas das árvores assumindo a forma de gavião-carangueijeiro.
A carta pergunta:
_ como quebrar as correntes?
_ como sair da toca?
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Figura 10 - Carta Tibira Verde. Nanquim, de Breno Filo, 2016.
Fonte: acervo pessoal
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V
TIBIRA VERDE
Tibira é um encantado advindo da antiga etnia Tupinambá, e afilhado do caboclo Junco
Verde. Em sua juventude, era um rapaz robusto e namoradeiro de outros rapazes. Porém, para
a sociedade branca e cristã de colonizadores, sua maneira de amar era considerada inaceitável
e, segundo eles, ele precisava ser "purificado" com a morte. Quando estava prestes a morrer,
clamou que seus parceiros amorosos também fossem punidos, sugerindo que haviam amantes
dele entre os brancos também. Apesar do escândalo que causou, não foi ouvido. Forçaram-lhe
o batismo, permitiram que ele fumasse um último fumo e partiram seu corpo em duas metades,
com um tiro de canhão. A parte de baixo desabou sobre a muralha, e a de cima voou,
desaparecendo sob as ondas das águas. Mal sabiam seus algozes que o fumo carrega fortes
orações, que o reconciliaram com as forças da floresta. Pela bravura de seu clamor por justiça,
Junco o acolheu e lhe concedeu força ancestral para ajudar quem precisa de conselhos. Tibira é
fortemente atraído por buscadores ambiciosos de experiências, que se permitem aprender
constantemente com o mundo e tudo o que vive nele.
A carta pergunta:
_ como alimentar os sonhos?
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Figura 11 - Carta Namoradeiras. Nanquim, de Breno Filo, 2017.
Fonte: acervo pessoal
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VI
NAMORADEIRAS
Ah, a experiência da dúvida. Um viajante afortunado, quando percorrer uma estrada de
terra batida pelos interiores, pode deparar-se com uma situação inusitada e conflituosa: uma
dança de matintas no cio. Criaturas insinuantes, matintas machos e fêmeas, assobiando e
movimentando seus corpos sensualmente, com a leveza do vento, em busca de um novo amor.
Enquanto dançam, disputam entre si pela atenção e pelo chamego de viajantes que carregam
formosura consigo. Em seus corpos vibram uma cuíra tamanha! Sibilam, banham-se e cantam
ao sabor de seus ideais, que podem ser racionais, sensíveis, emocionais... Entre beleza, carisma
e retórica, a pessoa que atravessa seu caminho é colocada no lugar de quem pode escolher com
quem quer ficar. Com a escolha feita, as outras matintas - geralmente entristecidas -
transformam-se em mucura, pato, cutia, para atazanar os interiores, fazendo feitiços e
engendrando tramoias pelas matas e vilas, com muito alvoroço. Quando invejosas da matinta
escolhida, também costumam assobiar de forma estridente e apavorante, de produzir arrepios
na espinha, para atrapalhar boa parte do namorico.
A carta pergunta:
_ como se compõe a encruzilhada adiante?
_ quais as virtudes e armadilhas do caminho a seguir?
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Figura 12 - Carta Zimbado. Nanquim, de Breno Filo, 2017.
Fonte: acervo pessoal
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VII
ZIMBADO
Sem sinal, sem aviso, ele surge no horizonte. Desembestado, o zimbado passa correndo
por toda estrada de terra, lamaçais e até alagados, atropelando tudo o que surge em sua frente.
Aparenta ser uma espécie de búfalo, desses de imenso porte, e sua passagem é encarada por
muitos como indicação de aceleração, uma grande necessidade de movimento na vida.
Rapidamente, ele chega, para bagunçar e estremecer tudo. Fazer amizade com um zimbado é
façanha notória para poucos, pois é uma criatura muito arisca. Se sabe que para lidar com ele é
necessário prudência e carinho, portanto, não é necessário usar rédeas! Ele te levará até aonde
precisas ir. Agora, se tratares o bicho com soberba, ele se revolta, te derruba da garupa dele, e
segue a galope, tornando a revirar as estradas e caminhos, com sua potência e velocidade
colossal.
A carta pergunta:
_ como sacudir a vida após um atropelamento?
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Figura 13 - Carta Onça. Nanquim, de Breno Filo, 2016.
Fonte: acervo pessoal
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VIII
ONÇA
Ela não sabia como lidar com aquele bicho que aparecia em seus sonhos, e se perguntava
se aquele felino pintado lhe surgia para trazer mensagens, outras sensibilidades. Certa vez,
quando ela dormia, via-se em outro lugar, com outro corpo. Um corpo pesado e de músculos
tensos, porém, estranhamente ágil e hábil. Sob a fumaça da neblina, esgueirando a velha carcaça
entre terras e águas, na busca do sagrado alimento. Silenciosamente pulando galhos, flutuando
sob as leves maresias. Astuciosa, nota uma frágil presa e a observa atentamente. Congela o
coração, calando magicamente os ruídos e orando aos encantados da boa sorte para que a graça
se imponha. Com o olhar, encara a caça. Como em hipnose, a presa congela. Encarando a caça,
ela encara a si própria. A onça convoca uma força capaz de enfrentar o medo de morrer de
fome, de solidão e de sacrifício. E o bote se dá.
A carta pergunta:
_ como cultivar força para seguir adiante?
_ que força animalesca te atrai neste instante?
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Figura 14 - Carta Submerso. Nanquim, de Breno Filo, 2017.
Fonte: acervo pessoal
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IX
SUBMERSO
É uma tarefa árdua, mergulhar para não se perder. Principalmente quando os caminhos
mostram-se árduos, e deflagram mais tropeços que acertos. Ficar submerso, ouvir os cardumes
e se manter atento. A luz da lanterna nos recorda muito mais o quanto é escuro, do que mostra
algo nítido. Com o corpo inteiro, precisamos ir em direção de nossas convicções. É requisitado
para o caminho do submerso, muito trabalho mental. Grandes perigos, recifes de corais.
Enguias, jacarés, abissais. Ir bem fundo, mesmo com a pressão mortífera ameaçando cada
pedaço da sua existência. Tateando a escuridão dos rios, que mais parecem lamaçais. Desviando
as correntes sanguinárias, silenciosamente. Maestria da paciência. Retorcer, calar, endurecer,
aguentar, insistir, persistir. Lidar com o tempo, esperar o melhor momento e agir, quando for
preciso, absolutamente necessário. Momento de cuidar, mas cuidar muito. É difícil brincar, com
uma corrente tão poderosa levando seu corpo num abismo horizontal. A sensação da correnteza,
levando seu corpo adiante, é de queda? Então mergulha! Lá fundo, existe caminho.
A carta pergunta:
_ como mergulhar em si?
_ como aguentar, persistir, aprender, durante o mergulho?
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Figura 15 - Carta Tabuleiro dos Ciclos. Nanquim, de Breno Filo, 2017.
Fonte: acervo pessoal
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X
TABULEIRO DO CICLO
O tabuleiro é máquina. Estrutura que se encontra em rede, círculos, múltiplas formas de
engrenagens. Peças que produzem movimentos incessantes, esfumaçantes, aberrantes. Maquina
ciclos, situações e existências. Ideias, execuções e momentos derradeiros. Um dispositivo que
carrega, simbolicamente, fluxos: de planetas, de estações, de alterações, de espera, e de
inesperados elementos. Atividade constante. A roda sempre gira, e mesmo parada,
contraproduz. Se estamos na área de baixo, porque sofremos? Quando começamos a subir, é
necessário prudência e sensatez. Lá em cima, tudo é possibilidade, é vida inteira passando à
vista. Se estamos em declínio - por alguma frustração qualquer - é crucial parar, respirar, pensar
dessa dificuldade, também passageira. Roda gigante de arraial junino. Boiuna que engole a
ponta de sua cauda. Mesmo o rio transcorre independente de sua correnteza. Afluentes,
evaporações, encontros com terras interrompem e conduzem tudo por inesperadas rotas. A
Fortuna rege essa máquina, entidade feminina que trama todas as sortes, as de ganho e as de
aprendizado. Ela sempre constata: somos afortunados! De experiências, de possibilidades,
mesmo quando é difícil aceitar que todo mecanismo possui duração. Meios, princípios, fins.
Ela gira, e algumas perguntas a carta faz:
_ achas que controlas os fluxos?
_ achas que controlavas os fluxos?
_ achas que não controlas os fluxos?
_ achas que vais controlar os fluxos?
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Figura 16 - Carta Flexera. Nanquim, de Breno Filo, 2017.
Fonte: acervo pessoal
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XI
FLEXERA
Flexera surge em teu caminho e te solicita uma verdade, uma verdade em sua situação.
Sensitiva, ela nota a presença de uma ou mais situações desagradáveis, usando alguma verdade
como escudo. Esse escudo precisa ser dissolvido. E as vozes exteriores as de nossa vida,
expelem muitas verdades, mas elas só te atingem se tu quiseres. A tua verdade, qual a tua
verdade em tua situação? Flexera invoca a balança e pede que tu segures ela. A balança pende,
se reconfigura, alarga, pesa, reduz, amplia o alcance de tua verdade em teu corpo. O poder desse
ritual envolve as feridas causadas pelas mentiras alheias, os preconceitos, os julgamentos
apressados. A intenção é cuidar das verdades dolorosas e das inverdades mortíferas. Flexera
olha para ti, e pede que tu te mantenhas próximo ou próxima das pessoas que emanam boas
energias e palavras, aqueles que honram teu caminho.
A carta pergunta:
_ que pendências pesam no peito?
_ que discordâncias precisam ser administradas?
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Figura 17 - Carta Afogado. Nanquim, de Breno Filo, 2016.
Fonte: acervo pessoal
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XII
AFOGADO
Seria possível um afogamento em terra firme? Não? Como saber se tudo está de ponta-
cabeça ou se nós estamos ao contrário? Não seria melhor parar um pouco e conferir? A única
pressa que este instante pede é a da pausa. Pare esse barco agora! Às vezes, se não fazemos
isso, quem desligará esse motor será o mundo. Veja. Não mexa muito. Tente se entregar; se
renda. É preciso fôlego para encarar o mundo do outro lado. O risco de afogamento é iminente.
Há tontura, há perda de foco. Parece uma eternidade, essa pausa. O sangue sobe, a água adentra
boca, nariz, ouvidos... pendendo e sentindo a água atravessar e nos levar numa dança de raízes
de mangue, raízes que se movimentam, e adaptam-se. Raízes que criam pés para cada passo
dado. Raízes que caminham devagar. Afogados são homens que viraram árvores de igapó. Seus
cabelos e braços tornaram-se raízes, a cabeça, um bulbo, o corpo-tronco, agora se irriga de
seiva, as pernas, tornaram-se galhos. É um outro processo, vagaroso, virar árvore. Sentir a seiva
jorrando de baixo para cima, e de cima para baixo, novamente... revigorando todo o corpo,
completamente do avesso.
A carta pergunta:
_o que te sufoca?
_ qual o tempo de um silêncio?
_ qual o tempo necessário para enxergar as coisas de outro ângulo?
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Figura 18 - Carta Agouro. Nanquim, de Breno Filo, 2017.
Fonte: acervo pessoal
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XIII
AGOURO
Ih, mano, desapega! Se o agouro apareceu para ti, é hora de transformar tudo! Revirar
gavetas e armários de ponta cabeça e permitir que a mudança te leve para um lugar diferente.
O agouro é um encantado cheio de escamas, parecido com um camaleão ou jacuraru, e anda
feito pessoas de duas pernas. Mas só de vez em quando. Saltitando por aí, não parece carregar
o pesado fardo que tem para si. Ele anda pelo mundo carregando o fechamento dos ciclos, de
um dos ciclos da vida. O agouro encarna uma pequena morte se aproximando. E quando ele
surge, é tempo de verificar que hábitos, relacionamentos, atitudes ou partes de nós estão em
necessidade de mudar, perder e esquecer, para que uma nova pele nasça, e um novo ciclo
comece. Tudo o que está para morrer requer assistência, para que se vá em paz. O escamoso
ensina: as coisas obsoletas, se bem trabalhadas em sua despedida, serão o adubo fértil para
semear encontros bons, e estímulos prazerosos na vida. Um agouro é uma morte digna, para
que o crescimento se dê.
A carta pergunta:
_ o que esgota um corpo?
_ que tipo de transformação procuras?
98
Figura 19 - Carta Mãe D'água. Nanquim, de Breno Filo, 2017.
Fonte: acervo pessoal
99
XIV
MÃE D’ÁGUA
Por trás da praia da Flexeira na ilha de Cotijuba, existe uma infinidade de pedras, nas
quais transitam minúsculos sararás e alguns pescadores. Em noites de maré baixa, uma moça
pode ser avistada, manipulando magicamente as águas do rio. Há quem a chame de Mãe D'água,
há quem fique febril com sua presença, e também quem perca o sono com sua beleza ancestral.
O fato é que muitos atribuem a ela os ensinamentos a respeito de muitas receitas benéficas para
o corpo e para o espírito. Receitas para semear bondade no coração dos raivosos, conciliação
aos amantes de conflitos, agitações para os entediados, movimentos para os acomodados,
antigas sabedorias recontadas para os videntes, alívio para os angustiados buscadores e
otimismo aos extremos pessimistas. Quando esta feiticeira surge no nosso caminho é sinal de
que existe esperança, e necessidade de prudência mais adiante. Para que seus encantos
funcionem, é necessário cuidar, pacientemente, pela fluidez e equilíbrio da vida.
A carta pergunta:
_ como mover-se como água?
_ como é o movimento das águas que te atravessam?
_ como buiar12 pelo rio da existência?
12 Referente a pronúncia do verbo boiar, na voz ribeirinha amazônica.
100
Figura 20 - Carta Mapinguari. Nanquim, de Breno Filo, 2017.
Fonte: acervo pessoal
101
XV
MAPINGUARI
Criatura tão descomunal quanto ardilosa, que habita as profundezas da floresta, para
proteger os sítios aonde o povo humano não deve pisar. Sempre carrega consigo um ou mais
espelhos, para aprisionar os incautos que atravessam seu caminho. Tanto Mapinguari quanto
seus aliados produzem gritos assustadores e deixam pegadas imensas nas trilhas abertas. Efeitos
intimidantes, direcionados para os gananciosos exploradores dos meios naturais. Aos
audaciosos que subestimam os assustadores avisos, resta apenas a nossa imaginação presumir
que fim ele dá para eles. Há histórias a respeito de pessoas que testemunharam sua existência e
continuaram vivas, que afirmam: "_o cativeiro dos gananciosos é um cômodo imenso,
escondido sob as raízes de uma castanheira gigante, lotado de espelhos." Essas testemunhas
afirmam que ele recolhe objetos pelas cidades, desde a época em que os europeus iniciaram o
processo de colonização, e ofereciam às lideranças indígenas objetos de valor irrisórios em
troca de espaço para explorar a floresta: "_com espelhos enganaram o povo da mata, com
espelhos seus corpos serão aprisionados".
A carta pergunta:
_ como enxergar o que há de mais temível em si?
_ em que circunstâncias costumas te espantar consigo mesmo?
102
Figura 21 - Carta Tajá Buiúna. Nanquim, de Breno Filo, 2017.
Fonte: acervo pessoal
103
XVI
TAJÁ BUIUNA
O tajá buiúna é uma planta nativa das florestas amazônicas, sendo muito cultivada e
admitida, simbolicamente, como uma espécie de entidade guardiã. Acredita-se que a planta
oferece o melhor dos alicerces, o emocional, para os lares e sítios habitados. Proteção que ajuda
pessoas com dificuldades em lidar com as próprias demandas, principalmente após fortes golpes
em suas convenções e conveniências, resultantes da necessidade de revisão das certezas
aprisionadoras. As orações direcionadas para a superação de desequilíbrios devem ser feitas
perto de onde ela estiver plantada. Uma casa com tajá é regida por verdades em movimento
constante de mudança e reinvenção. Tais propriedades são alcançadas quando é abençoada por
um encantado, pajé ou matinta. De noite, sua espiritualidade ofídia é desperta, para proteger,
com mais potência, os arredores do seu habitat.
A carta pergunta:
_ o que limita um corpo?
_ o que nessa casa precisa ser derrubado?
_ o que nessa casa precisa ser protegido?
104
Figura 22 - Carta Curupira. Nanquim, de Breno Filo, 2017.
Fonte: acervo pessoal
105
XVII
CURUPIRA
Curupira, ou capu-mirim, é um encantado menino, que habita as florestas e pode ser
encontrado por quase toda a américa latina. Em todos esses lugares, sua fama advém de um
detalhe muito curioso de sua anatomia: os pés virados para trás. Seu andar produz confusão,
interpretações errôneas da direção em que transita, e isto o torna mestre em despistar caçadores
e pessoas mal-intencionadas. Acredita-se que ele guarda tudo o que se encontra na natureza,
com a crença de que o mundo das matas inteiro é seu lugar, e, portanto, digno de sua atuação,
cuidado e proteção. Seu legado para as populações das matas envolve ensinamentos a respeito
da convivência com as intempéries das matas, e como se guiar pelos astros do firmamento.
Apesar de parecer apenas um moleque levado, expressa autossuficiência, confiança e
compreensão. No entanto, sua desconfiança o faz transmitir segredos somente para quem exala
serenidade, geralmente xamãs, pajés e matintas.
A carta pergunta:
_ tu já encontraste um lugar para atuar no mundo? Qual?
_ o que tu recebeste do mundo, costumas cuidar?
_ como cuidar de um mundo?
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Figura 23 - Carta Boto. Nanquim, de Breno Filo, 2017.
Fonte: acervo pessoal
107
XVIII
BOTO
O boto é um mamífero encantado, que habita as águas amazônicas. Possui aliança com
a lua, e nas noites de saliências transforma-se num belíssimo rapaz. Nessa forma, a única pista
de sua verdadeira identidade é um pequeno buraco sobre sua cabeça. Vestido com grande
elegância, suas roupas são costuradas com a seda produzida pelos raios lunares e linhas de teia
de aranha. Gostando de aparecer nas festas, é um inveterado sedutor, atraindo homens e
mulheres, casados ou não, para noites tórridas de amor no meio das matas. Conhecedor de
muitas encantarias de sedução, costuma causar muita confusão nos desejos sexuais de seus
alvos amorosos. Até mesmo quem não gosta muito de chamego fica alucinado por essa criatura.
É dificílimo resistir a ele, pois sua aliança com a receptividade da lua é forte. Muitas mulheres
o culpam quando se encontram em situação de gravidez indesejada, mas sua capacidade fértil
é alvo de dúvida por muitos iniciados da pajelança.
A carta pergunta:
_ qual a intensidade dos caminhos que te trouxeram até aqui?
_ como lidar com as mudanças difíceis?
_ como cultivar leveza?
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Figura 24 - Carta Chamegar. Nanquim, de Breno Filo, 2017.
Fonte: acervo pessoal
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XIX
CHAMEGAR
Existe uma chama sagrada dentro de cada um de nós, que ruge quando surgem barreiras,
percorrendo os caminhos difíceis de nosso corpo, urgindo de calor. Um bom chamego produz
brasa que ajunta as diferenças, e nos ajuda a tornarmos quem somos, seja com o fogo que
queima os encontros ruins, seja aquecendo nossas existências. Nas noites frias, ao contrário dos
solitários, podemos nos aproximar em torno da fogueira, e desta maneira, nos aquecemos muito
bem. Trocando histórias e afagos, inclusive. Juntos, vivemos melhor os momentos difíceis.
Chamegar é chama que transforma as fogueiras difíceis, tempera as lâmpadas, acrescentando
boas medidas de paixão e de harmonização, nos lares e lugares aonde questões difíceis estão
em debate. Relacionamentos amorosos em crise, amizades cheias de espinhos, afetos
complicados atraem esta criatura que, invísível aos olhos nus, aproxima as pessoas que estejam
se estranhando.
A carta pergunta:
_ o que há de luminoso para compartilhar?
_ quais as mais potentes alegrias de uma vida?
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Figura 25 - Dona Tumba. Nanquim, de Breno Filo, 2017.
Fonte: acervo pessoal
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XX
DONA TUMBA
Melhor não fugir do passado. Melhor ainda é não fugir das situações que nos ocupam
neste instante, pois boa fuga é aquela da qual não há mais retorno. Existem coisas que passam,
outras não. Experiências que, em sua dificuldade e ônus, podem nos tornar defensivos. A Dona
Tumba é uma feiticeira poderosa, entidade que viaja pelo plano dos sonhos, carregando
múltiplos recursos. É um corpo longilíneo, que vagueia sutilmente, carregando formas de ajudar
os sonhadores perdidos em pesadelos, resistências e descontentamentos. Com seus amuletos e
questionamentos, ela nos sugere o desprendimento de tudo o que é irrelevante, e a manutenção
das boas relações com as pessoas que compuseram nosso passado e presente. Tal manutenção,
segundo ela, proporcionará bons encontros, e promessas de abertura, emancipação e alegria.
A carta solicita os seguintes enunciados:
Uma presença que atinge intensamente:
Uma forte inspiração:
Alguém que muito compartilha:
A carta pergunta:
_ como fugir da solidão do deserto?
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Figura 26 - Carta Anhangá. Nanquim, de Breno Filo, 2017.
Fonte: acervo pessoal
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XXI
ANHANGÁ
Anhangá é uma entidade que se apresenta sob múltiplas formas animalescas,
pertencentes ao mundo do ar, da terra e da água. Seu espírito mágico já encarnou em muitos
seres pequenos, sumariamente alvejados por balas, que em dado momento da existência, cansou
de desencarnar sem dar o troco. Sem distinções, seu corpo se movimenta no mundo e se
reinventa. Além, é claro, da transformação na forma humana, principalmente quando quer
adentrar festividades, pois é atraída por multidões. Em meio as massas, se sente mais segura.
Quando sozinha, nas matas, costuma voltar suas energias para os caçadores, assustando-os com
seu incrível domínio sobre a vida e a morte. Quando é alvejada por alguma bala, ou golpeada
por alguma teçadada, desaparece, para logo em seguida ser vista correndo, serpenteando ou
voando por outra direção. Deste modo, pode ser aterrorizante cruzar com ela seu caminho.
A carta pergunta:
_ nos ciclos que espiralam a vida, existe algo que não se conforma?
_ existe algum ciclo que precisa ser rompido?
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Figura 27 - Carta Guajará. Nanquim, de Breno Filo, 2017.
Fonte: acervo pessoal
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XXII
GUAJARÁ
Guajará é um lago que se situa dentro de uma urna, há muito perdida por aí, em alguma
ilha amazônica. Em posse de alguma matinta, esse espaço enclausurado encontra-se em
movimento. Os povos das matas e interiores indicam que, neste lugar encantado, existe um
grande vilarejo submerso, e de sua boca emanam todas as vozes deste lugar, em sua
cotidianidade. Se em algum momento, repentinamente, tu ouvires vozes de feira, de animais,
da roça, carroças, aves em abate, crianças brincando, é possível que esta matinta esteja passando
por perto. Portanto, cuidado! Essa matinta pode estar sobre influência da ganância, se apossando
das coisas e levando tudo o que deseja para este espaço mágico. Encontre um meio de demarcar
seu território, seja ele sua casa, seu corpo, e assim ela deverá ter respeito por você e sua
propriedade, que após demarcada, será sacralizada, e certamente se tornará intransponível para
qualquer criatura mal-intencionada.
A carta pergunta:
_ de quais profundezas imateriais vibram as possibilidades de uma jornada?
_como proteger as forças da vida na paisagem cotidiana?
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Figura 28 - Carta Fugitiva. Nanquim, de Breno Filo, 2017.
Fonte: acervo pessoal
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XXIII
FUGITIVA
Ela desliza com a leveza de uma navalha que marca a pele recém cortada, e balança o
corpo nas turbulentas águas, ao sabor das sinuosas ventanias. Ainda que se desloque com furor,
as raízes corpóreas fincam, teimam, reclamam o risco de seu ato. Seria capaz de atravessar? A
vista turva – é pororoca no pedaço – varrendo toda a força da terra que lhe toca, traçando, a
peso de pluma, possíveis novos territórios, enquanto derruba galhos, troncos, raízes, de seus
firmes solos. Ela sabia que esse dia chegaria, nenhum território fica invulnerável por muito
tempo. Os pássaros, em seus voos, grasnados e agitações, avisavam as almas atentas. Tudo será
varrido dali. A peso da necessidade, precisava deslocar-se. Há tempos atrás, deslizava
tranquilamente por aquele lugar, e mal notava que girava em torno de um eixo sem arriscar-se,
acomodando-se ao permanecer longe dos espinhos que a fizeram sair da cidade. O motor precisa
acelerar de novo. Nas ondas da tranquilidade, encontrou um refúgio. Mas agora, a hora é para
desencontrar-se. Sacudir a existência novamente, e sair sem rumo, ou melhor, rumo a qualquer
lugar. Para não mais retornar.
A carta pergunta:
_ já sentiste a necessidade de fugir?
_ qual a trajetória de fuga que mais realizas?
118
COORDENADA 5: CORPO TOLO, EREMITA, BICHA, E ... SEM ÓRGÃOS13
“Tudo é caso de sangue. Não é fácil ser [...] livre: fugir da peste, organizar encontros,
aumentar a potência de agir, afetar-se de alegria, multiplicar os afetos que exprimem
ou envolvem um máximo de afirmação. Fazer do corpo uma potência que não se reduz
ao organismo, fazer do pensamento uma potência que não se reduz à consciência. ”
(DELEUZE, 1998, p. 51)
Com sede e fome, ele empreendeu uma fuga para encontrar qualquer coisa de
diferente. Uma fuga entre tantas. Calçou botinas, roupas leves. Ele se arrumou com minúcia.
Decidido, foi ao terminal rodoviário sem aviso prévio. Sentou-se à janela sem muita cerimônia.
Viajou. Pegou a estrada rumo a um suposto lugarejo situado no meio da estrada, um sítio cuja
fama corria a boca dos artistas e do povo da rua. Referências pouco confiáveis, sempre frágeis.
Uma trilha ao lado de uma sucata abandonada, numa área próxima à cidade de Benevides, lhe
explicou Mael, o tatuador. Seguiu o instinto. Pelo cheiro, adentrou esse caminho. Durante o
percurso, lhe atravessaram muitos caminhos pouco ou nada paralelos. A trilha de saída e
chegada de Belém é onde sempre assegurou sua morada. Almirante Barroso, antiga Tito Franco,
avenida de muitos carros e pouquíssimos amigos e amigas. Avenida aonde a lentidão é
torturante, especialmente ao rush. Lugar de escoamento, de passagem, lembra muito mais uma
saída de emergência a qual todos preferem usar, ao invés da via mais aberta. Que abertura seria
essa? Talvez o rio. O Guajará ao qual muitos dão as costas e está ali, sempre de passagem.
I. UMA ROTA COMEÇA PELO MEIO
Dessa vez, o artificio de fuga era a produção de uma marca em seu braço. Uma tatuagem.
O motivo? Não se sabe bem, já disse, qualquer coisa de diferente. O desenho? Uma quimera,
talvez. A intuição pedia por uma criatura, duas, ou mais, em traços contingentes. O tolo, a
criança e a bicha lhe vinham à mente. Populações nômades também atravessaram o deserto de
suas ideias, lhe perfuraram a peso de beliscões e chutes de canela. O desejo? Perigosamente
gigante. Transbordante. O desejo de engendrar com Mael um pequeno ser de sensações. A
existir consigo, fazendo da superfície da pele, sua carne e existência, a partilhar sol, vento,
alimento e experiências. Chegou ao destino facilmente, até. O ônibus deslizou pela BR com
passageiros cheios de bagagens das mais coloridas e ruidosas. Mochilas, bonecas, ventiladores,
frutos e pequenos animais. O cheiro das uvas o transportou a um pouco mais de uma década
atrás, quando com sua mãe ia até a médica. O objetivo? Consertar seus olhos atrofiados. De
ônibus, iam até a Presidente Vargas, e lá o cheiro das uvas vendidas pelos ambulantes-feirantes
13 Texto escrito para comunicação na ocasião da Jornada de Pesquisa em Arte de 2017, evento organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Arte. É fruto de um experimento de escrita com a Máquina-Rota.
119
invadiam. Pressionavam. Inebriante o odor, a dor dos exercícios, dos olhos guiados pelo
movimento de imagens aparelhadas e deslocadas mecanicamente pela médica. Era a
musculatura. Seus olhos eram imóveis, precisavam aprender a se mover, aprender a
acompanhar o movimento das coisas do mundo. Ver era dolorido em certo momento. Junto
com o cuidado, um conselho. Disse a médica:
_ seus olhos tendem a ficar imóveis, mas se fizeres o exercício que irei lhe ensinar,
não terás esse problema. Tudo bem? Deves proceder assim: pegue a caneta e... Escreva a vida.
Enlouqueça. Se jogue na experiência, mas se atire com atenção e prudência. Difícil? Difícil...
para encontrar-se, perder-se, e encontrar meios de sair do imenso pastoreio de almas que
vivemos, elimine a tirania de si. Delire. Varie. Produza diferença. Fortaleça o espírito com a
espirituosa Arte. Afinal, estamos no inferno. O inferno dos vivos. Daqueles que sentem dor e
sofrem, mas também podem reverter os quadros tristes, e engendrar alegrias. Sobretudo,
alegrias coletivas.
Após desembarcar do veículo, ele caminhou pela trilha de gramíneas, pobremente
aparada e enlameada. Enquanto pulava poças, pensava na importância de buscar encontros.
Pensava em Marco Polo, em suas trilhas exploratórias pela Mongólia de Khan, e pensou-
enunciou:
_ Ai. Botina encharcada. Caminho difícil. Mael não é inferno, preciso lhe abrir espaço,
preservá-lo (CALVINO, 1990, p.150). Me assusta de tão mudado. Dobre a esquerda no final
da rua. Um menino cujas forças inventivas eram voltadas para o trabalho das marcas e
empresas, e se tornou esse artista nômade. Não se distraia com as galinhas da casinha. Conheça
as vizinhanças nesse mundo. Siga reto nessa tortuosa via. Pule as poças. Faça alianças com
artistas que trabalham com as energias das ruas. Trabalhe com o que há de intensa necessidade.
Cheguei. Puf! Casa bonita. Um pomar a vista. Ele, tão luminosamente, me recebe, reverberando
toda a sorte de transformações. Quem diria! Olá!
II. O QUE É UMA TATUAGEM?
Tornar o corpo leve com o peso de milhões de bordoadas. Ele descarrega as bagagens.
É possível descarregar os órgãos também? Um cumprimento, um olhar cúmplice. Leve
nervosismo. Uma certa audácia. O lugar, cheio de vida. Bananeiras, árvores, aranhas, cães,
gatos, uma preguiça ronda a vizinhança. E no corpo deles, o que ronda? Preguiça? Não, não...
120
medo sim! Medo de adotar uma forma de vida nômade. Medo de estabelecer um conjunto de
práticas avessas ao status quo. Medo de parar de produzir para quem paga bem pelas nossas
almas e morrer de fome. Medo de afirmar a vida e os desejos, e ser esmagado. Medo de se
desorganizar, e perder tudo. Ele pensava nisso tudo, pensava em Mael e em sua súbita dor de
cabeça. Certamente também estava nervoso. Tinha notícia de que ele, apesar de tatuador, não
tinha realizado um desenho com tamanha complexidade e amplitude. Um bom pedaço de seu
braço, ela ocupa hoje. A tatuagem, naquela instância, marcaria o avesso disso, e isso. Ao mesmo
tempo. Devir-louco em Lewis Carrol e Gilles Deleuze. Identidade infinita. Um profundo medo
das forças que o pressionam, e lhe provocam tristeza. Já era conhecido como o menino que
furou as orelhas. Tatuagem então... coisa de criminoso, diziam alguns. Nossa cumplicidade
envolvia a aventura. A possibilidade de erro. De erro e de acerto. Salto do penhasco.
Agrimensar a pele como K., forçado a abandonar imediatamente o condado, e traçar nela, na
pele, um mapa para sabe-se-lá-onde. Mapa falível. Mapa de errâncias. Lhe vem à mente a
imagem sem número do Louco, do Tarô de Marselha. Junto a ele, as sombrias personagens de
Harry Clarke, endereçadas aos contos de Edgar Allan Poe. O misterioso homem do Encontro
Marcado espreitava... maquinações pontilhistas, pontuações a esmo que indicam coordenadas
às avessas. Platôs são corpos sem órgãos (CsO), segundo Deleuze e Guattari. Componentes de
passagem (DELEUZE, GUATTARI, 2012, p. 23), ao invés de significantes ou significações
estancadas. Tatuagem: mapa para conectar e variar o corpo para uma direção qualquer. Uma
rota de fuga. Desterritorialização. Muitas linhas, curvas, elementos... tantos quanto forem
necessários para a intricada sangria em traços. Um desenho começa a ser engendrado, uma
imagem esburacada. O rapaz abriu espaço para o seu povo ao desenhar. E concedeu brechas
para a intervenção do povo que atravessa Mael, e aquele lugar. Muitas máquinas juntas
formando uma paisagem intensiva. Traçamos formas fugidias, dolorosamente. Nós e os nossos.
III. CONSTRUINDO PARA SI UM CORPO
Ainda neste dia, eles se banharam no olho d’água, demoradamente. Tortuosas pontes
abriam caminhos entre os espaços daquele lugar. Repousaram na água gelada entre folhas que
flutuavam no ar e pairavam sobre a água. Um profundo silêncio. O povo daquela encantada
casa tratou a dor de Mael com luzes de uma fina lanterninha, frutos tirados do pé e aromas de
rosa branca. Ali, uma outra lógica era engendrada. Curioso e ansioso que ele era, observava
tudo com ares de preocupação. Para um outro corpo ser concebido, muitos rituais são
inventados. Experimentamos uma ética outra, vivenciada. Mael retirou-se e dormiu por um
121
tempo. Lhe veio outra imagem. Eremita e sua lanterna o perseguiu, de modo a reforçar a
operação do isolamento, enquanto ele caia no sono. A lanterna ilumina, e também revela a
amplitude da escuridão no entorno.
Figura 29 - Tolo, eremita, bicha... Nanquim, de Breno Filo, 2017.
Fonte: acervo pessoal
Prática filosófica inscrita no acontecimento precisa de um corpo sem órgãos? Vamos
ver. O experimento: fazer da pele algo que escapa ao organismo com suas funções pré-
estabelecidas. Algo fora de sua prévia, e idealizada, organicidade. Travar com o corpo-pele uma
batalha, amolece-lo. Fazendo os órgãos estremecerem. Órgãos deslizantes? Uma possibilidade.
Marcar na carne a imagem de um tolo, eremita, bicha... como nota-se, um arcano nunca vem
sozinho. Arquétipos são superados. Os devires brotam como os povos roedores de Kafka.
122
Múltiplos tolos, eremitas, bichas, e... tudo o que mais houver ao alcance. Modo de operação
deste corpo: previamente, não há. Jogo sem regras pré-estabelecidas. Há mescla de
experiências, costuras, montagens, no momento do encontro. Tarô sem tabuleiro. Xadrez sem
peças marcadas, ou peças misturadas. Astrologia mash-up: “Virgem faz a limpeza pra Libra
decorar”, diz Escorpião14, em adesivo de geladeira. Práticas artísticas e místicas que se
distanciam de buscas por graças que se resumem a orações, e experimentando as imagens e os
devires que eles evocam para pensar e desejar a vida com intensidade. Trabalho espiritual.
Corpo sem órgãos. Organismo cujo trabalho de adestramento sofre um curto-circuito.
O que antes encontrava-se adoecido, impotente, ganha uma vida intensa, sensacional. Um
corpus, cuja espiritualidade é exercitada de forma assertiva e experimental. Um corpus cujo
psiquismo encontra-se em atividade intensa, por inteiro, sob práticas nas quais o desejo é
renovado, afetado e artisticamente espiritualizado. Jogo cujas regras são montadas no ato do
encontro.
Mael acordou, e eles começaram o trabalho. Gaze, agulha, pistola, tinta abismal.
Negrume pulsante. O desenho, enquanto decalque, é carimbado sob a pele para cobrir. O
caminho do traço o coloca novamente em movimento. Perigosas perfurações. Turbilhões de
sangue e tinta formam ondas que turvam a vista do artista, que traça as cegas em muitos
momentos, enquanto centenas de furos são feitos por segundo. Enquanto a dor o toma, ele volta-
se para a leitura, para a flutuação do pensamento. Para a contemplação da floresta que enegrece
enquanto a noite toma conta. Ao redor, mosquitos, farfalhos, chiados, grilos, crianças e ruídos
de TV formam notas dissonantes e conexões. Pele enquanto suporte de criação, instrumento
voltado para busca das intensidades da vida. Um CsO é inimigo do organismo fechado, e de
sua instrumentalização. Um corpo em processo de selvageria, avesso ao adestramento, ao
treinamento vil, que o torna dócil. O corpo doente é organismo formando CsO. E torna-se o que
se é. É preciso atentar aos movimentos cotidianos, senão deixa-se de intensificar. Morte,
servidão e entorpecimento instauram as forças constritivas do corpo organizado. A dor de tatuar
confunde-se com a dor de escrever, de ler de maneira ativa, de dialogar, organizar encontros
intensivos. Corpo sem órgãos é uma prática, um exercício de vida, portanto, não se resume a
um objeto: “de todo modo você tem um ou vários” (DELEUZE, GUATTARI, 2012, p.11). Um
conjunto de coisas criadas para fazer a vida fluir, afetar, acordar, alegrar, viver. Ultrapassar o
14 Excerto da poeta Inaê Escorpião, retirado do zine “(notas dos meus estudos astrológicos que ninguém me
perguntou)”, de autoria dela e de Luana Touro.
123
instrumento e, sobretudo, a instrumentalização de todos os processos. Ultrapassar também
dogmas e ideais cristalizados. Coisificar sensacionalmente os objetos, imbuindo eles com
desejos singulares. Não é um processo apaziguador, muito menos “tranquilizador, porque você
pode falhar” (DELEUZE, GUATTARI, 2012, p. 12). Intensidade de viver os erros. Uma linha
foge para outra direção, outra linha também. Uma dor aguda força os corpos a refazerem suas
rotas e transitar diferente. Errou? Errou. O caminhante refaz o caminho quando um abismo
surge à espreita. Errante. Conjunto de práticas: olhar atentamente, estar ali de corpo inteiro,
variar e disparar lampejos. Vamos delirar juntos? Um desfiladeiro, clareira, montanha de
pergaminhos abstratos, trilha de escritos a sangue e tinta evocam Zaratustra. “ De tudo quanto
se escreve, agrada-me apenas o que alguém escreve com o próprio sangue. Escreve com sangue
e aprenderás que sangue é espírito” (NIETZSCHE, 2014, p. 51).
Enquanto ele esfaqueia a pele do outro com a agulha, o corpo ali sentado desloca o
pensamento para outra procissão. Com uma digressão, outro experimento: promessa do círio,
caminhar de casa até a Catedral da Sé com o corpo cheio de merda, sem cagar por semanas,
caminhando, recitando orações e segurando toda a montanha de barro possível. Intestinos
devindo linguiças. Não podendo se aliviar até chegar ao destino, o rapaz. Destruir intestino,
reto e esfíncter, se necessário. Vazou? Tudo bem, cumpra a caminhada. Luta interior, corpo
masoquista. E o corpo pode, pode muito. O limite? Ultrapassa-se. Dobra de dor dentro de dobra
de dor, para produzir contra capturas, novas potências fora dos investimentos sócio-políticos
convencionais. Vela acesa, oração feita, hora de voltar para casa e produzir uma bela “boneca”
de desejo na privada, um desarranjo intensivo. Sangue, muito sangue no ônibus de volta para
casa. Contorções histéricas e magia antiga. Intensidade que destrói a casa. Oikonomia
dilacerada, destruição do corpo submisso via alguma espécie de insubmissão. Devir-Louco
contingente. Devir-cachorrinho que, além de fazer au-au, defeca fantasmas, e lambe-lambe,
incansavelmente, significâncias e subjetivações déspotas, até que elas se encharquem de
qualquer coisa viva, fluídica e deslizante.
CsO dilacera horários marcados, salários, mais valias, embalagens, prazos, juros,
escarnece do business. Maiakóvski e a vida nova-iorquina de cem anos atrás, atualíssima no
inchaço vil da Metrópole da Amazônia. Em seus ensaios de viagem, ele afirma que produzir
paixões tristes e ferir as massas não é nada para os americanos, se as metas são cumpridas:
dinheiro, capital, lucro. Um mero “bom dia” é substituído por “make money? ”
(MAIAKÓVSKI, 2007, p. 75). “Um CsO é feito de tal maneira que ele só pode ser ocupado,
124
povoado por intensidades” (DELEUZE, GUATTARI, 2012, p. 16). Um arcano nunca está só,
carrega povos consigo, encarnações diversas e alianças das mais diferentes, ultrapassando o
mundo dos símbolos e do imaginário e ferindo o plano real como uma presença trovejante. CsO
é o plano aonde os desejos transitam, produzem, fluem de forma afirmativa. É um plano pré-
existente ao ato, ao qual quaisquer criaturas que vivam em fluxo, longe da culpa, da falta, da
castração. Deixa-se de pagar promessas, de destruir o órgão de prazer e eliminação das fezes
não por compreender que o suposto prazer obtido pelo ato seria um desvio de sofrimentos
fantasmáticos, e sim para encontrar outros meios de constituir corpos sem órgãos que
convenham muito mais, potencializem muito mais e desvelem outros planos e outras
intensidades. Com o sangue e a tinta, escorre também toda a merda, hábitos estanques se vão.
IV. MONTAGEM PARA O FORA
“No ato de escrever há a tentativa de fazer da vida algo mais que pessoal, de liberar a
vida daquilo que a aprisiona [...]. Criar não é comunicar mas resistir [...]. É a potência
de uma vida não orgânica, a que pode existir numa linha de desenho, de escrita ou de
música. São os organismos que morrem, não a vida.”. (DELEUZE, 2013, p. 183)
Um corpo sem órgãos exercita a consistência do caminho redescoberto e distante dos
territórios movediços, que sob o bastão da subjetividade, minam a vida afirmativa. Criá-lo não
se resume ao reconhecimento consciente de um eu ou de um outro, mas de um exercício virtuoso
da singularidade impessoal. O CsO, ou campo de imanência “não é interior ao eu, mas também
não vem de um exterior ou não-eu. Ele é antes como o Fora absoluto que não conhece mais os
Eu, porque o interior e o exterior fazem igualmente parte da imanência na qual eles se
confundiram” (CORAZZA, 2009). Encontrar-se com um fora para procurar, na encenação de
pequena incursão a um sítio em Benevides, a sua dimensão de deserto, de exílio, na qual se
arranca, se desaparece com o sujeito. Resta criar um corpo, a marteladas. “Quem escreve? Ora,
um Desdobrado, cuja palavra passa a constituir um espaço de transgressão [...]” (CORAZZA,
2009, p. 28). Uma criação que ultrapassa a vida de um indivíduo. Ser que se agarra ao devir,
corpo-acontecimento, uma condição inventada para si. Pele-mapa de criação de um jogo. Jogo
de uma vida. Brincar de viver sem receitas, ou viver brincando com as receitas fabricadas. Criar
dispositivos contraprodutivos? Através do jogo, órgão da profanação (AGAMBEN, 2007, p.
67), atos de resistência contra as urgências institucionais se tornam possíveis. Algo como
renovar a mobília de trabalho do artista, assim como Pierre Fédida, psicanalista e filósofo, fez
com os móveis da psicanálise (DELEUZE, 2016, p.172), arrancando do dispositivo
psicanalítico, uma possibilidade outra de uso. Com qual intento? Renovar as práticas de
125
trabalho do espírito pela via da arte. Brincriações em Mia Couto? Brincriar seria a abertura das
portas, janelas, poros e espírito para a vida potente? Seria o engendramento de armadilhas
contra os adestramentos da subjetividade? Fédida e Mia Couto se aliam trazendo dispositivos
cuja potência encontra-se na relação de cuidado mútuo. A mesa da intersubjetividade e a maleta
das cartas que transportam trajetos e devires. Além deles, um “entre” singular, aquele que nunca
é um ou outro. Devir-criança sonolenta, distraída dos ressentimentos e assombros da vida
adulta, que “vive e pensa o mundo em forma de mapas” (DELEUZE, 2011, p. 84). Devir-velho,
evocador de ancestrais inventados, memórias de passados, presentes e futuros. Tolo e eremita,
transbordando sensações, disposições, organizações do momento. Suor, sangue e tinta. O
menino pensou em reinventar sua vida a partir daquele primeiro exercício. Fortuna de uma noite
agitada. Refazer o mapa dos atos cotidianos. Largar o trabalho anterior. Realizar outros
trabalhos. Estudar, viver como artista-cartógrafo. Fortalecer o espírito. Fortalecer o corpo.
Desenhar. Reunir, conectar pessoas. Residir nas questões desterradas da filosofia antiga para
uma possível poética da (r)existência. Márcia Tiburi soma esforços ao povo filosófico antigo
que questiona: “Como me torno quem sou? [...]. O que estamos fazendo uns com os outros?
[...]. Como viver junto? ” (TIBURI, 2014, p. 7-8). Renovar a mobília do artista com invenções
conceituais, sensíveis e funcionais.
V. CARTOGRAFANDO SONHOS
Uma, duas, três da manhã. Corpos esgotados, dor de sono excruciante. Fechamento do
trabalho e resta embalar para viagem de volta. Pomada cicatrizante, gaze, papel filme.
Marijuana. Bom para a dor, ele fala para o recém tatuado. O tatuado concorda. Redes são atadas
para os corpos sonharem. A pele queima, febrilmente, e o cheiro da fumaça impregna. Difícil
achar postura boa até formar o casulo e conseguir ouvir o barulho da água corrente. E com a
fluidez da água, a recitação. Ele convoca tolos, eremitas e bichas, para povoar um sonho
potente, trabalhando com as linhas daquele mapa recém traçado. Noite agitada. Mael dorme
sob o mosquiteiro. Um barulho o acordou e o levou a investigar o lado de fora da casa. Havia
medo, medo das cobras. A escuridão o levou até aonde a grama baixa o podia levar. Luz de
lanterna e o medo de ser ferroado. Lanterna e olhos se voltam aos pés, cobras por toda a parte.
Pele de terra minha morada, o corpo sibilado de Carol Magno, Olga Savary e as serpentes do
ritual cênico-erótico realizado com Renato Torres. Andréa Flores, mulher de teatro, devém
serpente-cartógrafa e integra movimentos espiralados dos traços evocados pelo xamanismo a
sua maneira de pesquisar e viver. Escamas e presas, prestes a devorá-lo. Devir-cobra, devir-
126
mulher, n sexos? Mais um experimento, inspirado num sopro de Jésio Zamboni, no I Colóquio
Variações Deleuzianas em Belém: como devir-bicha15? Fumaça de incenso espiralando. O
plano intensifica. A paisagem turva. Cidade baixa. Circulando pelas vias, um gigante sem pele.
Cidade vazia, e o gigante está com fome. É preciso se esconder. Longas corridas se estabelecem.
Ao dobrar uma esquina, ao longe se avista um réptil humanoide comendo serpentes. No outro
instante, era ele o escamoso comendo serpentes. O ponto de vista muda, no entanto, ainda é
uma vida que passa. Uma gigantesca ponte surge, e ao olhar para cima, o gigante está lá.
Sentado, de pés balançando, apresenta-se:
“Eu sou a monstra sagrada
eu sou a bicha papona
eu sou a jaguatirica
dos vales
eu sou a suçuarana
dos montes.
Eu sou o maracajá.
Sou demônio, anjo e deus
guardião de mil segredos
e do sonhado GRRRAAAALLLL.
Eu sou o terror das selvas,
eu sou o horror das trevas,
todos me amam e temem.
Por amor a Yanderu,
sirvo a Jurupari,
finjo-me de Anhangá,
Caipora e Saci.
Sou um anjo travesti.
Curinga, proteu
dez mil faces tenho.
Em todo e qualquer
lugar estou eu.
Eu sou o querubim do tabernáculo
e o anjo da espada flamejante
e o tigre de Blake e de Borges
e a pantera de Dante, e o leopardo
de Eliot e Daniel
e o dragão do Jardim das Hespérides
e a besta do Apocalipse
e a serpente do paraíso.
Sou o próprio Chupacabra.
[...]
Não me venha com bravatas e esconjuros
15 Conceito criado para uma ética dos devires, a partir das personagens psicossociais denominadas bichas. Foi enunciado durante a comunicação "Deleuze e... a bicha", proferida no I Colóquio Variações Deleuzianas, na Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal do Pará, em 2016.
127
e nem me torne presa, caça ou vítima
de sua estupidez civilizada.
Sou uma besta sagrada e protegida
um animal santo e exijo
todo o respeito devido
à minha divina estirpe.”
(MOTTA, Waldo. 2016)
_Bicha, Curupira, Bôta. Bichona maravilhosa. Bicha cósmica, Buiúna abissal e Mãe
D’água tenebrosa. Piranha, cobra, cutia e leoa dos banheiros. Bicha, querida, faça a chuca16
antes de pragar promessa!
Encantada Matinta.... Ela, a bicha que ri e também chora, chora muito. Ela, bem
apequenada, toda afeminada, acorda após fortes ventanias. Ah, uma intuição! Algo
indiscernível que vem. Ela se questiona a respeito de sua consciência. Como arrancá-la em
favor do pensamento aventuroso? Como arrancar o inconsciente do lugar da decodificação e
inseri-lo na produção? Não é fácil, é preciso prudência. Em primeira instância, exercitando um
inconsciente que não lida com sujeitos e objetos, e sim “trajetos e devires” (DELEUZE, 2011,
p. 86). Em seguida, se instalando sobre os estratos compositores de subjetividades capturadas
pelas máquinas capitalísticas, de forma intensa. Assim, produzindo uma escrita-artista instalada
no cotidiano íntimo, no ato do trabalho filosófico e poético, experimentações transversais a
ambos, no trânsito pela cidade e no âmbito institucional. A partir dessa experiência divertida,
se propõem formas de subjetivação que colocam a existência em possibilidade de
transformação, através de processos de criação brincantes.
16 Denominação comum ao meio LGBT atribuída à prática de assepsia na região anal, na qual se improvisa uma
lavagem de cólon de forma artesanal, com o intuito de uma realização higiênica do coito.
128
FECHAMENTO: UM CONVITE AO JOGO
“Entes invisíveis, impossíveis, virtuais, que pertenciam ao domínio dito da
imaginação, do psiquismo, da representação ou da linguagem, atravessaram
alegremente a fronteira entre sujeito e objeto e reaparecem numa outra chave
ontológica. Já não somos os únicos actantes do cosmos, protosubjetividades pululam
por toda a parte, e mesmo aquilo que parecia mero objeto de manipulação
tecnocientífica, como natureza, salta para o proscênio, reivindicando meios de
expressão próprios.” (PELBART, 2016, p.391)
Numa sociedade a qual ainda se sustenta a ideia de que o homem está no centro de tudo,
seja lá em qual territorialidade do saber, formas de vida diferentes lutam para garantir sua
potência, para se deslocar de suas prisões subjetivas e se instaurar em outras circunstâncias.
Seria possível mudar a realidade através de uma experiência onírica? Talvez com o surgimento
de uma Fugitiva em deslocamento, um Curupira com seus traiçoeiros pés, uma paciente Mãe
D’água, uma carta é revelada, e questiona-se: quais as coisas que pulsam em cada jogada? Que
dores atingem cada elemento vivo, entre jogadores e criaturas encantadas, durante uma partida?
Que perigos e inimigos temos em comum? Seria a Máquina-Rota um dispositivo capaz de ativar
uma experiência de visibilidade e escuta à multidão de vozes que nos atravessa, e muitas vezes,
fazemos calar?
Peter Pál Pelbart nos convoca a uma política de coexistência entre as formas de vida
humanas e não humanas, que nos termos deste trabalho, podem atravessar desde os jogos
humanos e divinos, e além deles, ao “cultivo de modos de vida singulares” (PELBART, 2016,
p. 392). Como poderemos dar voz e corpo aos entes que gritam e afetam nossas vidas? Será que
conseguiremos cultivar como hábito, como exercício, este modo cartográfico de brincar?
“Que tipo de existência se lhes pode atribuir, a esses “seres” que povoam nosso
cosmos, agentes, actantes, sujeitos larvares, entidades com suas maneiras próprias de
se transformarem e de nos transformarem? Nem objetivos nem subjetivos, nem reais
nem irreais, nem racionais nem irracionais, nem materiais nem simbólicos, seres um
tanto virtuais, um tanto invisíveis, metamórficos, moventes, a que categoria
pertencem? E em que medida existem por si mesmos? Quanto dependem de nós?
Quanto estão em nós? [...] E que efeitos têm sobre nossa existência e imaginação?”
(PELBART, 2016, p. 392)
As máquinas de cartas produzidas neste processo trazem uma dupla potência quando
reveladas: com uma linha nos transforma em outra existência, e com outra se transformam
também em outra coisa, num trabalho de devir constante. A funcionalidade da maquinação
muda conforme os desejos agem junto das multidões que, no jogo, os seus agentes abrem espaço
para expressar.
Se não fossem as tantas experiências entrecruzadas ao processo de produção da
Máquina-Rota, eu certamente estaria num plano de banalidade, produzindo ideias que me
129
fariam sentir imóvel, desacreditado de minhas ações. É preciso acreditar nas ideias que
desenvolvemos, o mínimo que seja, senão adoecemos. Estaria cultivando, para a eternidade de
uma vida, impotente, resumido a uma coisa estacionada no tempo e no espaço, alimentando a
impressão de ser a mesma coisa. Uma Icamiaba me sacode, então, para traçarmos juntos um
caminho, ou vários, de intensa alteração e aventura. Ela me questiona a respeito de meus
sonhos. Uma Mapinguari, pode me assustar, com o simples ato de levantar um espelho e revelar
minha face, e juntos produzirmos algum tipo de cuidado. Numa jogada, a revelação da carta
Dona Tumba me fazer remontar uma memória, quando estava junto de alguém, ou de algo de
grande relevância que estava ignorando até aquele momento. Um jogo pode ter a potência de
suspender a angústia, ou elevá-la a potências colossais, que seja, contanto que esta moção nos
conduza a alguma experimentação. O contato com a Máquina só faz produzir quando nos
abrimos para um processo de reinvenção.
Quais desafios se insinuam adiante? Talvez a instauração da existência maquínica deste jogo.
Pois para que qualquer trabalho, empreendimento, pessoa ou obra funcional ou artística
conquiste seu existir, segundo Pelbart “é preciso que seja instaurado” (2016, p. 393). É preciso
abrir espaço, fazer valer o esforço. O que não quer dizer que essa instauração seja qualquer tipo
de formalidade ou burocracia, ou mesmo um ato iniciatório. Instaurar, nesta escrita, denota o
próprio ato de jogar, seja para um número expressivo de pessoas, seja uma íntima partida, seja
durante o almoço com uma amiga, seja entre os rituais e festejos de um Réveillon, por exemplo.
Como já defendemos na primeira coordenada, a brincadeira tem a virtude de instaurar uma
apropriação de elementos da realidade, para estabelecer um trabalho de construção de si, um
trabalho espiritual por roubo e pilhagem psíquico, entremeando corpo e alma.
Uma maquinaria de cartas, entre diferentes campos epistêmicos, sobremaneira artísticos,
instaurando seres, paisagens, pequenos cosmos. Mundos singulares colidem e se transformam,
a cada troca de afetos. Múltiplas dimensões entrelaçadas, multiversos em constante movimento.
Lagos contidos em garrafas pedem uma escuta atenta, Matintas estão sempre a espreita para
nos enfeitiçar, Tajás encontram-se em latência, esperando o sono chegar para circular a casa,
encantados prontos para serem revelados, fabulados e transversalizados em nossos corpos,
numa arte que minora a língua, o pensamento e a expressão, fazendo surgir bichos, encantados
e seres mágicos há muito silenciados, com a sisuda vida adulta. Uma arte que evoca seres
existentes no psiquismo social, num estado de torpor, precisa vir mais vezes à tona, senão eles
seguirão nas sombras dos espetáculos, se restringirão às zonas simbólicas, ao hermetismo que
não toca ninguém, aos lugares inatingíveis.
130
Cada uma das cartas surge como um devir possível. No entanto, é necessário afirmar que a
manifestação do devir ocorre de forma singular, sob o signo do desejo, e, portanto, desatrelado
de qualquer estereótipo e modelização da experiência. Para tanto, acionamos operações de
cunho cartográfico para pensar nos jogos promovidos durante a criação da Máquina-Rota.
Assim, pensamos também os desdobramentos experimentais da máquina em si. Ela pode
funcionar baseada nas pistas deixadas nesta escritura, mas infinitos procedimentos podem ser
inventados a partir da instauração de um jogo. A Máquina-Rota é um jogo concebido para
experimentos de cunho cartográfico, para instaurar trajetos e devires sempre na zona do “por
fazer”, cercada por incompletudes, aberturas, imprevisibilidades. Múltiplas rotas a serem
percorridas, para tornar a vida pulsante de trilhas, sustos, encontros, linhas de fuga, desabafos
e riscos.
A cada momento, os jogadores e seres encantados encontram-se numa situação de
convergência, e uma ou mais rotas se abrem, em direção ao desconhecido. E agora, o que fazer?
Como fazer isso funcionar? As cartas nos acenam, nos perguntam, pedem nosso sangue, nos
percorrem, nos possuem, nos incendeiam, nos olham com interesse. São assustadoras! Elas nos
desafiam, nos fisgam em direção ao pensamento e à ação. Elas fazem expressar outros mundos
possíveis. Buiúnas, serpentes, morcegos, Anhangás são seres imaginários que percorrem as
linhas das cartas em direção de nosso pescoço. Nos atravessam o corpo e solicitam desejos,
esperas, indecisões, fabulações que nos inventam. Assim como nós os encontramos e os criamos
com a percepção, eles nos enxergam e nos inventam. Acionando muito brevemente o
xamanismo ameríndio, ao qual o saber envolve ser possuído pelo ponto de vista daquele que
vemos, ou melhor, comemos. Antropofagia do olhar ígneo de Curupira segundo João de Jesus
Paes Loureiro:
O CURUPIRA VÊ OS HOMENS
Meus pés ficaram tortos de pisar pedras e raízes
a defender a floresta
e o sacrário de aldeias reunidas.
Mas nunca de pisar
o coração dos homens.
Quando os caminhos retos são injustos
a justiça caminha nos caminhos tortos.
(LOUREIRO, 2017, p. 142-143)
Pelbart complementa, “Mais do que criadores somos fruto e efeito daquilo que através de nós
foi criado” (PELBART, 2016, p. 397)., somos uma série de reviravoltas na formação de uma
política da multiplicidade. Uma série de ações de cunho poético e político para o qual pouco
importa se acreditamos ou não em determinado ente, mas o que fazemos para tornar nossa vida
possível e intensa numa mesma medida entre céticos e pessoas fervilhantes de crenças. Cada
131
jogo traz essa preocupação de forma evidente, pois uma partida traz um mundo por desvelar,
nem que seja sob a forma de uma metáfora viva. Longe de universalismos, as rotas são tramadas
para produzir modos de vida em urgência de mudança, entre corpos plenos de possibilidades.
Afinal, como poderemos traçar uma série de rotas possívei? Jogando, jogando, jogando...
Experimentando arduamente, talvez poderemos invocar um devir vidente, conforme Deleuze e
Pelbart denominam, e mesmo um devir cartomante, conforme tenho procedido neste processo
de criação. Entes divinatórios, que num contexto como o de um jogo, irão voltar suas
percepções aos afetos que os atingem e produzem algo que se encontra em inevitável ebulição.
“O vidente enxerga, em uma determinada situação, algo que a excede, que a
transborda, que nada tem a ver com fantasia. A vidência tem por objeto a própria
realidade em uma dimensão que extrapola seu contorno empírico para nela apreender
suas virtualidades, inteiramente reais porém ainda não desdobradas. [...] Não é o
futuro, nem o sonho, nem o ideal, nem o projeto perfeito, porém as forças em vias de
redesenharem o real. O vidente pode ser o artista, o pensador, a singularidade
qualquer, o anônimo, o pobre, o autista, o louco – em todo caso, aquele que, à sua
maneira, chama por um modo de existência por vir” (PELBART, 2016, p. 414)
O cartomante aciona a vidência e traça coordenadas de intensidades, potências, experiências
remontadas, novas virtualidades sob a forma de cartas, fabulações e questionamentos.
Cartomante-cartógrafo. Com estes dispositivos, ele invoca realidades no porvir. Não menos que
isso. Com a máquina acoplada a mim, a ti, a nós, desenhamos em expressão os desígnios de
força e movimento de uma realidade iminente. Uma realidade cartomante, artista, criança,
maluca, enfim, qualquer via de existência, qualquer corpo sem órgãos que se invente colocará
em jogo a evidência e o esgotamento correspondentes a uma multidão, à coexistência entre os
seres que essa multidão engloba e também seus conflitos existenciais.
Às muitas perguntas as quais esta escritura maquínica de desejo se fez debruçar, algumas outras
se somam, e tornam difícil o fechamento deste experimento, afinal: como poderemos nos afetar
com o desvelamento destas criaturas encantadas? Como nos permitir atravessar por eles no
cotidiano? Como traçaremos novas rotas, novos mundos possíveis em meio a tanta opressão e
instauração de modelos? Como, ao nos expressar, dar voz e corpo a eles? Como produzir um
corpo “entre”, que estabelece uma relação ética com o outro? Como abrir-me às passagens e
me metamorfosear com o futuro que me aguarda? Como poderemos cuidar de nossa vida juntos,
cultivando a noção de que nunca estaremos plenos e completos?
Agora é começar a respirar fundo, embaralhar as cartas, poucas ou muitas vezes, desloca-las e
combina-las até que o coração aqueça. Estás atento ao movimento delas e ao que podes produzir
ao combiná-las? E quando sentires que teu coração já está aquecido, vires que através da
132
combinação de cartas retiras algo que não havias conseguido conhecer por ti só ou com o auxílio
das convenções, quando estiveres pronto a transbordar os fluxos da potência que perfura,
empregue então todo o teu pensamento, imagine que em teu coração as Matintas e os
Encantados, que estarão contigo, mesmo que por um breve momento, passarão a lhe crivar de
sensações, visibilidades, enunciados e perguntas. Como dito, este é um jogo cujas regras são
elaboradas no encontro. Prática de um artista-cartógrafo, que reúne "pedras trazidas por
diferentes viajantes e por pessoas em devir" (DELEUZE, 2011, p. 89), que produz um devir-
artista e cartógrafo. Artista que viaja, experimenta, constrói lugares de passagem, no man's land
e coisas de esquecimento. Cartógrafo que traceja caminhos virtuais que colam no real e
instigam pluralidades de novos trajetos. Entre o tolo, o eremita e a bicha está o povo de Dioniso,
está a festa de Exu, estão os traços e rotas de Mael.
Nas veias deste trabalho, pulsam muitos jogos. Vários deles nunca terminaram. Apagamentos,
descartes e esboços compõem infinitas galáxias, paisagens, personagens e entes divinos. Um
estado de jogo, portanto, aproxima a existência a de uma obra de arte em vias de feitura. Um
momento de brincadeira, com qualquer máquina-brinquedo, oferece superfície suficiente para
uma nova experimentação, um possível projeto ou rascunho, para a reinvenção de si.
133
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