natonal geograph171

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NATIONALGEOGRAPHIC.PT | JUNHO 2015 FORTALEZAS ESQUECIDAS DA CHINA GOLFINHOS, O REGRESSO À LIBERDADE O PEQUENO PARQUE DO CANADÁ MAR DE ARAL LINCE-IBÉRICO HUBBLE ANOS DE OBSERVAÇÃO DO UNIVERSO 25 5 603965 000006 00171 NÚMERO 171 MENSAL 3,50 (CONT.)

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Page 1: Natonal geograph171

N AT I O N A L G E O G R A P H I C . P T | J U N H O 2 0 15

FORTALEZAS ESQUECIDAS DA CHINA GOLFINHOS, O REGRESSO À LIBERDADE

O PEQUENO PARQUE DO CANADÁ MAR DE ARAL LINCE-IBÉRICO

HUBBLEANOS DE OBSERVAÇÃO DO UNIVERSO25

5603965000006

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VOL. 15 N.º 171

J O R N A L O F I C I A L D A N AT I O N A L G E O G R A P H I C S O C I E T Y

Um aglomerado de jovens estrelas cintila entre os remoinhos de poeira da Nebulosa de Tarântula nesta imagem captada pelo Telescópio Espacial Hubble.

NASA; ESA; F. PARESCE, INAF-IASF, BOLONHA, ITÁLIA; R. O’CONNELL, UNIVERSIDADE DA VIRGÍNIA; COMITÉ CIENTÍFICO SUPERVISOR DA CÂMARA DE GRANDE ANGULAR 3

225 anos do Hubble

O Hubble não cessa de nos fascinar. O telescópio espacial expandiu as fronteiras do conhecimento humano e deixou-nos imagens memoráveis. O astrofísico Zoltan Levay, um dos responsáveis pela sua divulgação, mostra-nos dez das suas imagens favoritas.Texto de Timothy Ferris

18Fortalezas esquecidas

As tulou da província chinesa de Fujian atraem legiões de turistas. A sociedade de consumo acabou por despovoar estes ícones da arquitectura, apesar de eles constituírem protótipos de edifícios de eiciência energética e sustentabilidade ambiental.

Texto de Tom O’Neill

Fotografias de Michael Yamashita

32Golfinhos, o regresso à liberdade

Milhares de golinhos são capturados e utilizados em espectáculos de parques aquáticos. Que efeitos tem o cativeiro sobre estes animais? Será possível voltar a treiná-los para os devolver com êxito ao mar depois de um longo cativeiro?Texto de Tim Zimmermann

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Secções

Na capa Pináculo ascendentena Nebulosa de Quilha, a 7.500 anos-luz da Terra.

Fotografi a da NASA, ESA,

M.Livio, Equipa Hubble Heritage,

STScl; mosaico composto por

múltiplas imagens coloridas.

A sua fotoEditorial

VISÕES

Instinto básicoA menina é que manda

Em acção

No baú

Na televisão

Próximo número

86Lince, o regresso do fantasma

Foi dado como quase extinto,mas o lince-ibérico registou um novofôlego com o programa dereintrodução e o centro de reproduçãode Silves. Acompanhámos o lincenesta segunda vida.Texto e fotografias de Luís Quinta

52Parque Nacional Yoho

Jóia da natureza, este pequeno parque das montanhas Rochosas canadianas reúne paisagens especta-culares e uma das jazidas de fósseis mais importantes do planeta.Texto de McKenzie FunkFotografi as de Peter Essick

68O declínio do mar de Aral

O mar de Aral é o protótipo de uma catástrofe ambiental provocada pela actividade humana. O que aconteceu em cinco décadas a este ícone do Cazaquistão e do Usbequistão?Texto de Mark Synott

Fotografi as de Carolyn Drake

FOTOGRAFIAS DE CIMA PARA BAIXO: PETER ESSICK; CAROLYN DRAKE; LUÍS QUINTA; MARTIN OEGGERLI

EXPLORE PLANETA TERRA

O Algar do CarvãoNavegantes indesejáveis

MUNDOS ANTIGOS

Mistério do dinossauro

CULTURA

A ciência do creme

VIDA SELVAGEM

O abraço do coala

Torne-se fã da nossa páginade Facebook: facebook.com/

ngportugal

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rbarevistas.pt

Mais informação na nossapágina de Internet: nationalgeographic.pt

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96Olhos penetrantes

Há aventuras de exploração da imensidão territorial e há outras que decorrem num laboratório, com equipamento de última geração. Martin Oeggerli intitula-se “micronauta”. Descubra porquê.Texto e fotografi as de Martin Oeggerli

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A escolha da redacção Tema livre Todos os dias são aixadas dezenas de fotograias no grupo português de discussão da revista no Facebook. Seleccionámos quatro. Veja a galeria completa em nationalgeographic.pt/suafoto

A sua fotoVISÕES

Carlos DuarteSão Domingos de Rana, Portugal

Apaixonado por monumentos e história de Portugal, Carlos Duarte já fotografara a basílica do Palácio- -Convento de Mafra, mas não resistiu à imponência do monumento. O dia estava cinzento, mas, por breves instantes, “as nuvens deram tréguas, deixando entrar a luz pelas janelas junto ao tecto e cúpula”. E clique.

José Carlos Nero Sesimbra, Portugal

À luz das estrelas, em pleno Parque Natural da Arrábida, José Carlos Nero preparou esta simbiose cuidada entre a imensidão do universo e o património cultural de inspiração religiosa do cabo Espichel. “Por vezes, no escuro da noite, o céu presenteia-nos com luz vinda das estrelas”, diz.

“O cosmo sempre me fascinou. Tenho tentado captar toda a magia vinda do espaço num local também fascinante como é o cabo Espichel.” — José Carlos Nero, fotógrafo

COMENTÁRIO

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António LopesMontemor-o-Novo, Portugal

Era quase meia-noite e António Lopes preparava-se para dormir. Ao notar que os relâmpagos caíam mais perto de Montemor-o-Novo, onde reside, vestiu-se apressadamente e foi para o ponto mais alto da cidade. Montou o tripé, alterou as deinições da máquina e fez este disparo à 1h30.

António Pereira Porto, Portugal

O cabo Carvoeiro é um cenário inspira- dor para qualquer fotógrafo. Do alto de uma falésia, António Pereira avistou um pequeno grupo de pescadores aproximando-se da borda “socalco a socalco, sem se deixarem invadir pelo medo”, conta. O elemento humano deu escala a esta impressionante imagem dos bravos de Peniche.

“O hobby, a evasão e a paixão pela pesca faz destes homens bravos seres, pois corajosamente arriscam a vida todos os dias.” — António Pereira, fotógrafo

COMENTÁRIO

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VISÕES

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FILIP SINGER, EPA

Ucrânia No ginásio ao ar livre de Kachalka, em Kiev, um antigo ginasta soviético mostra a sua agilidade aos 83 anos. Construí-do com os materiais disponíveis na atribu-lada capital ucraniana, este ginásio pode ser usado livremente desde a década de 1970.

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LUCA LOCATELLI, INSTITUTE

Singapura No parque Garden by Bay, as árvores artiiciais medem 25 a 50 metros. Com 100 hectares, o parque de ecoturismo inaugurado há três anos promove o uso eiciente da água e da energia solar e sugere práticas sustentáveis.

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Veja mais imagens de Visões da Terra em nationalgeographic.pt

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PAUL SOUDERS, BIOSPHOTO

AntárctidaA fotograia enquadra as patas e a cauda de um pinguim-gentoo no momento em que este salta da água gelada para a costa rochosa. Com mais de nove mil casais reprodutores, a maior colónia desta espécie na península antárctica vive neste local inóspito.

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ILUSTRAÇÃO: ANYFORMS. FOTOGRAFIA: LUÍS QUINTA. FONTE: PAULO BARCELOS (“OS MONTANHEIROS”).FOI UTILIZADA A TOPONÍMIA ESTABELECIDA PELA ASSOCIAÇÃO “OS MONTANHEIROS”.

EXPLOREPlaneta Terra

O Algar do CarvãoA 26 de Janeiro de 1893, dois intrépidos terceirenses, Cândido Corvelo e José Luís Sequeira, resolveram descer, com uma simples corda, um algar já conhecido na ilha Terceira, mas nunca desbravado. A sua aventura não teve consequências, mas há memória na ilha de outras “loucuras”. Em texto publi-cado na revista “Atlântida” em 2004, Vítor Hugo Fragueiro contou que o sar-gento-enfermeiro Couto protagonizou, em 1960 ou 1961, com o seu grupo de escoteiros de Angra do Heroísmo, uma descida num cesto de vimes amarrado com corda de touros, através do qual os exploradores subiram e desceram a estrutura. Foi de tal maneira penoso que “o sargento Couto disse-me, com convicção, que chegou a pensar atirar-se para dentro do algar e ‘lá icar’, caso não conseguisse içar quem estava em baixo”, lembrou o autor.

Na década de 1960, grupos de exploradores da Associação “Os Montanhei-ros” desbravaram, com suor e aventuras arriscadas, esta estrutura testemunha de uma erupção stromboliana. “O algar corresponde a uma chaminé vulcânica onde a lava em emissão recuou repentinamente para o interior da terra devido a movimentos do Comple-xo Fissural. Daí resultou um vazio, quase vertical”, explica o vulcanólogo Victor Hugo Forjaz, do Ob-servatório Vulcanológico e Geotérmico dos Açores.

Os primeiros grupos de exploração encontraram a cavidade vulcânica ainda intacta. Mais tarde, a construção do túnel de entrada (iniciada há precisa-mente 50 anos) de 44 metros, depois consolidada a betão, constituiu uma faca de dois gumes, facilitan-do o usufruto do algar aos milhares de turistas que visitam a Terceira, mas gerando também novas pres-sões sobre este monumento natural. A Associação “Os Montanheiros” tem a missão de salvaguardar o algar e gerir o luxo de visitantes. – Gonçalo Pereira

Chaminé

Ilha Terceira

Algar do Carvão Túnel de entrada construído por “Os Montanheiros”

Principal entrada de luz na gruta, esta chaminé, colonizada por ve-getação ao longo dos primeiros 20 metros, apresenta uma insuperável riqueza de espécies hepáticas, musgos e plantas vasculares. Em algumas poças de água fria, proliferam diatomáceas.

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Lagoa

Cones de bagacina e turfeiras

Palco superior

Catedral

Corresponde ao topo do recuo da lava durante a fase terminal de “construção” do algar. Alimentada maioritariamente pela precipitação, a sua profundidade é muito variável. Em meses chuvosos, já atingiu 15 metros de profundidade. No Verão, o seu nível desce substancialmente.

À superfície, a paisagem é marcada por alinhamentos de cones de bagacinas basálticas, strombolianos, salteados com perfeitos domos mamelares, ricos em sílica e pontualmente delimitados por turfeiras verdes e esponjosas. Todos esses relevos vulcânicos inserem-se no Complexo Vulcânico Fissural, um alinhamento de estruturas geológicas que corta a ilha Terceira ao meio.

Zona de acesso restrito, ica numa cota quase idêntica à do Palco Inferior. Nesta zona, vivem insectos endémicos, raridades já registadas pela entomologia internacional.

Encontram-se estalactites de tipo vulcânico, de recobrimento e tipicamente de precipi-tação. As vulcânicas resultaram do recuo das lavas luidas e algumas “pingaram” de tal modo que originaram estalagmites na vertical da estalactites. As de precipitação são siliciosas e a respectiva sílica deriva das circulação de águas nos domos traquíticos vizinhos. A génese é idêntica à das estalac-tites de cavernas calcárias e, com os anos, vão crescendo do tecto da Catedral, quase cónicas. São estruturas geológicas raras. As estalactites de recobrimento geram-se como as anteriores, mas recobrem estalacti-tes vulcânicas preexistentes. Este conjunto de negros e cinzentos vulcânicos contrasta com a alvura dos depósitos siliciosos. Daí, também a preciosidade do algar.

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MAPA: JEROME N. COOKSON. FONTES: GARY FROYLAND E ROBYN M. STUART, U.N.G.S., AUSTRÁLIA; ERIK VAN SEBILLE, IMPERIAL COLLEGE DE LONDRES. FOTOGRAFIA: MIKE NELSON, EPA/ALAMY

Planeta TerraEXPLORE

Sem dados

Águas mistas

HAWAI(EUA)

CALIF.EUAOCEANO PACÍFICO

NORTE

OCEANO ÁRCTICO

OCEANOPACÍFICO

SUL

OCEANOATLÂNTICO

NORTE

OCEANOÍNDICOOCEANO

ATÂNTICOSUL

75°N

75°S

Apesar de cobrir a maior parte do planeta, o oceano é uma fronteira indistinta. Do ponto de vista técnico, há apenas um oceano ligado globalmente, mas o senso comum habituou-se a referenciar o Atlântico, o Pacíi co ou o Índico.

Ainda mais confuso é o motivo pelo qual as linhas que os separam, reconhecidas formalmente pela primeira vez em 1928, se mantiveram praticamente inalteradas. “Os limites rel ectem a geopolítica” mais do que rel ectem o modo como a água efecti-vamente circula, diz o matemático Gary Froyland. Ele e o oceanó-grafo Erik van Sebille propuseram um novo mapa, redesenhando os limites com base no conhecimento moderno das correntes e das bacias naturais que estas formam, bem como na relação das correntes com um problema ambiental premente: o lixo.

Plástico e outros detritos estão há décadas à deriva nos oceanos, por vezes em manchas gigantes agitadas por correntes fortes conhecidas como giros. Gary e Erik analisaram os limites centrando-se nos locais desses pontos poluídos, o maior dos quais l utua entre o Hawai e a Califórnia. Com pesquisa mais aprofundada, a análise pode ajudar a determinar a origem de algum do lixo, ou seja, que países são responsáveis pelo seu depósito no oceano. — Catherine Zuckerman

Navegantes indesejáveis

Quando os sacos de plástico, garrafas e outros detritos acabam no mar, uma parte aglomera-se em manchas. Este mapa mostra as fronteiras oceânicas propostas (que se distinguem por cores) com base nessas acumulações.

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Mundos antigosEXPLORE

LIU QINXUE, MUSEU DE HISTÓRIA NATURAL DE DALIAN

À primeira vista, um fóssil do Nordeste da China com 120 milhões de anos parece ser um ninho de crias de dinossauro acompanhadas de um exemplar mais velho. “Vê-se a olho nu”, diz o paleontólogo Brandon Hedrick, que estudou recentemente este invulgar achado. Agricultores escavaram o fóssil com quase três metros de diâmetro, mas não conseguiram recuperar as características envolventes, como as margens do ninho, que ajudariam a explicar a situação. Quanto mais Brandon investigava os pormenores do fóssil, menos lhe parecia ser apenas um grupo de crias num ninho. O especialista apresenta duas novas hipóteses. Os dinossauros poderiam ter-se escondido numa toca que desabou e os esmagou. A espécie, do género Psittacosaurus, ou “lagarto-papagaio” (devido ao grande bico), vivia provavelmente em grandes grupos. “Foram encontrados em toda a Ásia e deveriam ser uma presa apetitosa para os carnívoros desta época.”

Existe outro cenário: tendo em conta as posições dos corpos e da natureza da rocha em seu redor, as crias poderão ter sido vítimas de um deslizamento de terras que subitamente as varreu. — A. R. Williams

Mistério do dinossauro

Um dino na morgue? Não perca “Autópsia ao T. Rex”, no National Geographic Channel, no dia 7 de Junho, às 22h10.

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CulturaEXPLORE

FOTOGRAFIAS DE CAITLIN TEAL PRICE

O protector solar que aplicamos não se mantém na pele para sempre. Anualmente, cerca de seis mil toneladas de protector solar atingem as águas costeiras. É uma má notícia para os banhistas, mas sobretudo para os peixes, de acordo com um relatório do Conselho Superior de Investigações Cientíicas de Espanha. Quando as nanopartículas do dióxido de titânio, um dos principais ingredientes do protec-tor, se misturam com a água e se expõem ao sol, transformam-se em peróxido de hidrogénio, responsável pela morte do itoplâncton que alimenta os peixes. Os investigadores não encorajam os banhistas a utilizar menos protector solar. A solução tem de passar pelos fabricantes, que deverão criar substitutos menos poluentes, sugere a ecologista Cinzia Corinaldesi. Há mais de uma década que se testam fórmulas químicas sem impactes no ambiente. — Daniel Stone

A ciênciado creme

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STEVE GRIFFITHS (NO TOPO); CLAESSENS LAB/CONSELHO DE MUSEUS DAS MAURÍCIAS

Vida selvagemEXPLORE

29ºC

41ºC

Quando o calor aperta na Austrália, os coalas sabem manter o sangue frio. Graças à tecnologia de fotograia com infravermelhos, os humanos conseguem agora ver como eles fazem. Em 2014, uma pesquisa da Universidade de Melbourne mostrou que, durante o Verão, quando as temperaturas superam a fasquia de 40ºC, os coalas descem das árvores pressionando o corpo contra os troncos. Cada árvore possui um microclima próprio, que pode ter menos 7º C do que a temperatura do ar. Por isso, para o coala, cuja pele da barriga é relativamente ina, o abraço à ár-vore representa o mesmo que icar parado em frente de um frigoríico com a porta aberta. Os coalas também podem ofegar ou lamber a pele para regular a tempera-tura do corpo, mas este método é mais eiciente pois consome-lhes menos água.

Noutro estudo, o biólogo Matthew Crowther descobriu que os coalas tendem a relaxar em “árvores de abrigo” e não em “árvores de alimentos” como o eucalipto. Durante as ondas de calor, porém, qualquer uma serve. — Jeremy Berlin

O abraçodo coala

DODOS EM 3DÀ medida que a tecnologia permite perceber melhor os dodos, a reputação des- tes animais pode ter uma segunda oportunidade. O paleontólogo Leon Claes-sens usou um digitalizador a laser 3D no único esqueleto de dodo completo que existe no mundo. O resultado digital pode responder a perguntas antigas sobre estas aves de três metros de altura que não voavam. A imagem do dodo como falha evolutiva “é injusta”, argumenta Leon. Os dodos prosperaram na ilha Maurícia durante milhares de anos antes da chegada dos holandeses em 1598. Em 1693, foram extintos, “num estudo de caso da perturbação humana”. — JB

A imagem tér- mica (tempe-raturas mais baixas a roxo) revela um coala suspen- so, protegen- do-se do calor.

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A National

Geographic Society

é uma organização associativa global, sem i ns lucrativos.A nossa missão é inspirar através da exploração, iluminaratravés de narrativas e ensinaratravés de todas asnossas plataformas.

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LEGAL AND INTERNATIONAL PUBLISHING: Terry Adamson CHIEF OF STAFF: Tara BunchCOMMUNICATIONS: Betty HudsonCONTENT: Chris JohnsNG STUDIOS: Brooke RunnetteTALENT AND DIVERSITY: Thomas A. SablóOPERATIONS: Tracie A. Winbigler

INTERNATIONAL PUBLISHING

SENIOR VICE PRESIDENT: Yulia Petrossian BoyleVICE PRESIDENT OF STRATEGIC DEVELOPMENT: Ross Goldberg

VICE PRESIDENT OF INTERNATIONAL PUBLISHING AND BUSINESS

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Cynthia Combs, Ariel Deiaco-Lohr, Kelly Hoover, Diana Jaksic, Jennifer Jones, Jennifer Liu, Rachelle Perez

BOARD OF TRUSTEES

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CHAIRMAN: Peter H. Raven

VICE CHAIRMAN: John M. Francis

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EXPLORERS-IN-RESIDENCE

Robert Ballard, Lee R. Berger, James Cameron, Sylvia Earle, J. Michael Fay, Beverly Joubert, Dereck Joubert, Louise Leakey, Meave Leakey, Enric Sala, Spencer Wells

FELLOWS

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TREASURER: Barbara J. Constantz

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Todos os direitos reservados. National Geographic e Yellow Border (moldura amarela da capa): Registered Trade-marks® (marcas registadas). A National Geographic não se responsabiliza por material não solicitado.

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da Cunha e Alves e Luís Pinto, Tradução;

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LATIN AMERICA: Fernanda González Vilchis. LATVIA: Linda Liepina. LITHUANIA: Frederikas Jansonas. NETHERLANDS/BELGIUM: Aart Aarsbergen. NORDIC COUNTRIES: Karen Gunn.POLAND: Martyna Wojciechowska. PORTUGAL: Gonçalo Pereira. ROMANIA: Catalin Gruia.RUSSIA: Alexander Grek. SERBIA: Igor Rill. SLOVENIA: Marija Javornik. SPAIN: Josep Cabello. TAIWAN: Yungshih Lee. THAILAND: Kowit Phadungruangkij. TURKEY: Nesibe Bat.

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Page 23: Natonal geograph171

A Nebulosa NGC 6611 e aNebulosa da Águia M16, naconstelação da Serpente, asete mil anos-luz da Terra:imagem captada pelo Hubblee processada a cores.

A cor do infinitoO Hubble é o nosso olho no céu. Foi desenhado para observar tudo quantose espalha na abóbada celeste e mais além – dos planetas próximos até àsmais longínquas galáxias. Foi pensado também para encontrar respostas àsperguntas essenciais sobre o universo. Entre as imagens mais populares

obtidas pelo telescópio espacial lançado pela NASAe pela ESA em 1990, e que este ano cumpre o seu25.º aniversário, encontram-se as da Nebulosa daÁguia, uma região do meio interestelar a mais desete mil anos-luz da Terra. É ali que se encontram osdenominados “Pilares da Criação” (à esquerda),uma zona baptizada com este nome porque alinascem e morrem estrelas. Com a aparência de umacriatura alada saída de um conto fantástico quetenta manter o equilíbrio sobre um etéreo pedestal,este objecto é na realidade uma torre ascendente degás frio e pó emergindo da nebulosa onde as estrelasganham vida entre as nuvens de hidrogénio líquido.

“Às vezes pergunto-me por que razão as imagensdo Hubble cativam a imaginação do público”, dizZoltan Levay, director da equipa de imagem doInstituto Cientíico do Telescópio Espacial (STScI)da NASA. “E creio que a sua verdadeira força sepercebe quando começamos a compreender aquiloque se está a ver, a sua magnitude.”

Zoltan Levay seleccionou para a NationalGeographic as suas dez imagens preferidas de entreas milhares que processou em laboratório. Convémrecordar que as imagens que as câmaras do Hubblecaptam são a preto e branco, de modo a optimizar ainvestigação dos astrónomos. É aqui que começa otrabalho de Zoltan e da sua equipa: reconstruir ascores mediante a utilização de iltros que captam asdiferentes luminosidades de cada um dos elementospresentes na zona ou no objecto celeste fotografado.“Todos os elementos terrestres estão representadosno espaço”, diz Zoltan. “Há hidrogénio, oxigénio,enxofre. E podemos estudá-los a partir da luz queobtemos deles.”

Magia? Não, é ciência em estado puro. É provável que algum desseslashes da Nebulosa da Águia que o Hubble nos mostra pertençam aestrelas que já não existem, que morreram há milhares de milhões de anos,talvez biliões, embora a luz perdure na sua viagem até nós através doespaço e do tempo. O Hubble é um olho que tudo observa no universo,incluindo o resplendor de algo que em tempos foi e já não é.

25 anos do HubbleEDITORIAL

FOTOGRAFIA: NASA / ESA, EQUIPA HUBBLE HERITAGE, STSCI / AURA

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OS GRANDES ÊXITOS DO HUBBLEAs fotografi as do telescópio espacial extasiam-nos há 25 anos. Pedimos ao cientista responsável pelas imagens do Hubble para escolher as suas dez imagens favoritas.

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PIROTECNIA CÓSMICA Faiscando de energia, um aglomerado de jovens estrelas ilumina uma cavidade do rolo de poeira da Nebulosa da Tarântula. Para Zoltan Levay, responsável pela divulgação das imagens do Telescópio Espacial Hubble, o dinamismo da cena é irresistível. “As estrelas nascem e morrem”, diz. “Há muito material em movimento.”NASA; ESA; F. PARESCE, INAF-IASF, BOLONHA, ITÁLIA; R. O’CONNELL, UNIVERSIDADE DA VIRGÍNIA; COMITÉ CIENTÍFICO SUPERVISOR DA CÂMARA DE GRANDE ANGULAR

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POTÊNCIA ESTELAR A Câmara de Grande Angular 3 do Hubble olha através da Nebulo-sa Cabeça de Cavalo, numa imagem de infravermelhos com um nível singular de pormenor. A nebulosa costuma parecer escura contra um plano de fundo luminoso, mas o Hubble penetra o manto de poeira e gás inter-estelar. É um indício daquilo que poderemos esperar do Telescópio Espacial James Webb, de luz infravermelha, projectado pela NASA.MOSAICO COMPOSTO POR QUATRO IMAGENS. NASA; ESA; HUBBLE HERITAGE TEAM, STSCI/AURA

9

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Zoltan Levay,

responsável pela

equipa de imagem

do Instituto de Ciência

do Telescópio

Espacial (STScI),

trabalha nas imagens

do Hubble desde

1993. Estas são as

suas dez fotografias

preferidas.

REBECCA HALE

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VALSA GALÁCTICA A interacção das forças gravitacionais contorce duas galáxias em espiral, conhecidas conjuntamente como Arp 273, à medida que se aproximam uma da outra e preparam a sua fusão a 300 milhões de anos-luz. “Parece que estão a dançar”, diz Zoltan. “Orbitarão à volta uma da outra durante eternidades até por fi m se juntarem.”NASA; ESA; HUBBLE HERITAGE TEAM, STSCI/AURA

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Lançado para a órbita terrestre a bordo do vai-vém espacial Discovery no dia 24 de Abril de 1990, o Telescópio Espacial Hubble titubeou de ime-diato. Em vez de se focar nos seus alvos celestes, tremeu e abanou, esperneando como um vampi-ro fotofóbico sempre que a luz do Sol atingia os seus painéis solares. Quando a porta protectora se abriu para permitir a entrada da luz estelar, o telescópio icou de tal maneira perturbado que entrou em coma electrónico. E, pior ainda, o Hub-ble sofria de miopia. O seu principal espelho colector de luz, com 2,4 metros de diâmetro e, alegadamente, o objecto de grandes dimensões mais liso alguma vez fabricado por seres huma-nos, fora mal conigurado.

Na verdade, a sua concepção implicara desde logo cedências. Os astrónomos tinham pedido um telescópio maior e a sua colocação numa órbita mais distante, mas receberam um apare-lho mais pequeno, que orbitava apenas a 560 quilómetros de altitude. O projecto fora redi-mensionado para se adaptar ao compartimento de carga do vaivém e para se manter ao alcance dos astronautas, permitindo a sua manutenção no espaço.

No entanto, o vaivém acabou por salvar a missão. Se o Hubble tivesse sido lançado para além do seu alcance, poderia ter icado na his-tória como um fracasso literalmente astronómi-co com um custo de mil milhões de dólares. Em vez disso, foi construído de modo a que os seus componentes principais permanecessem aces-síveis para substituição ou conserto. Cinco mis-sões de manutenção quase perfeitas realizadas pelo vaivém, revelaram-se essenciais para a transformação do Hubble, de um iasco de 12 toneladas numa das mais produtivas e populares máquinas cientíicas do mundo.

princípio, não causou grande impressão.

Texto de Timothy Ferris

TODAS AS IMAGENS SÃO COMPOSIÇÕES COLORIDAS REALIZADAS A PARTIR DE ORIGINAIS A PRETO E BRANCO. EM ALGUNS CASOS, VÁRIAS IMAGENS COMPOSTAS FORAM REUNIDAS NUM MOSAICO.

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PERTO E LONGE Estrelas luminosas brilham aqui perto, na Via Láctea. A maioria das outras, incluindo o enxame visível em baixo, pertence à galáxia de Andrómeda. A milhares de milhões de anos-luz de distância, galáxias inteiras reluzem. “Pode não parecer muito, mas temos aqui um panorama do universo inteiro numa só imagem”, diz Zoltan. NASA; ESA; T. M. BROWN, STSCI

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hubble

ASAS CELESTES O gás de uma estrela moribunda toma a forma de uma borbole-ta, com asas rendadas formadas pela ejecção das camadas exterio-res. Nebulosas planetárias coloridas como a NGC 6302 são o tema de algumas das imagens mais popula-res do Hubble. “São moldadas por dinâmi-cas e fenómenos muito complexos”, diz Zoltan.NASA; ESA; HUBBLE SM4 ERO TEAM

O Hubble expandiu as fronteiras do conheci-mento humano. Utilizando-o para espreitar as profundezas do espaço e observar o passado do tempo cósmico com uma nitidez sem preceden-tes, os astrónomos descobriram que as galáxias se formavam a partir de conjuntos mais pequenos de matéria reunidos no início do universo e que as galáxias maciças costumam alojar buracos negros supermaciços no seu centro. O Hubble observou estrelas anãs esbatidas e coni rmou que a matéria normal não consegue gerar gravidade sui ciente para manter as galáxias agregadas, o que signii ca que a “matéria escura” terá de ser composta por algo mais exótico. Medições de velocidade das galáxias realizadas pelo Hubble forneceram as primeiras pistas para a existência de “energia escura”, a força misteriosa que actual-mente acelera o ritmo da expansão cósmica.

Muito recentemente, os investigadores do Hubble captaram luz de uma galáxia recém-nas-cida, vendo-a como ela era há 13 mil milhões de anos. Mediram também a temperatura de um planeta quente orbitando uma estrela a 260 anos--luz da Terra e descobriram três objectos gelados no sistema solar exterior que poderão tornar-se um destino ainda mais distante para a sonda New Horizons, da NASA, após a sua passagem por Plutão em Julho.

A popularidade global do telescópio espacial deve-se, sem dúvida, aos seus feitos cientíi cos e às imagens memoráveis de galáxias reluzentes, nebulosas de brilho suave e destroços de estrelas estilhaçadas. Durante a construção e o lançamen-to do Hubble, estas fotograi as eram menospre-zadas nos círculos da NASA como mera informação de relações públicas: chamavam-lhes “bonitinhas”. Contudo, um quarto de século mais tarde, as perspectivas cósmicas montadas por Zoltan Levay e os seus colegas do Instituto Cien-tíi co do Telescópio Espacial conseguiram, nas palavras do historiador da NASA Steven J. Dick, “melhorar a própria noção daquilo a que chama-mos ‘cultura’”. O facto de os seres humanos as considerarem tão belas e evocativas como foto-grai as do pôr do Sol ou dos picos das montanhas da Terra, vem mais uma vez provar que só há uma natureza e que nós fazemos parte dela. j

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VISÃO ESPECTRALEste anel fantasmagóri-co suspenso é na verdade uma bolha de gás com 23 anos-luz de diâmetro, representando os restos da explo-são de uma supernova observada pela primeira vez há 400 anos. “A sim-plicidade desta imagem é assombrosa, mas ilusória”, diz Zoltan. Uma miríade de forças agita a superfície da bolha e distorce-lhe a forma.NASA; ESA; HUBBLE HERITAGE TEAM, STSCI/AURA. J. HUGHES, UNIVERSIDADE RUTGERS

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ECO DE LUZ Ao longo de vários me-ses de 2002, o Hubble captou um espectáculo cósmico: um balão de poeira esfarrapado que parecia expandir-se em torno da estrela V838 Monocerotis. Na realidade, uma explosão expansiva da luz da estrela iluminava a nuvem de poeira. “É raro observarmos uma alteração tão dramática à escala humana”, comenta o especialista.NASA; ESA; H. E. BOND, STSCI

MAIS ONLINE

Natgeo.com/more

Agora é a SUA vez.

Navegue na nossa galeria alargada de imagens do Hubble e diga-nos quais as suas preferidas.

GALERIA INTERACTIVA

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DE SE TIRAR O CHAPÉU Esta imagem especta-cular da galáxia espiral do Sombrero, vista quase de perfi l a partir da Terra, tem “grande ligação emocional” para Zoltan Levay. Ele recorda com carinho um professor da universidade que contava histórias sobre noites mágicas passadas a ver a galáxia através do telescópio de um observatório.MOSAICO COMPOSTO POR SEIS IMAGENS. NASA; HUBBLE HERITAGE TEAM, STSCI/AURA

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TUMULTO ESTELAR O nascimento e a morte das estrelas criam confusão cósmica numa panorâmica da Nebulosa da Quilha, montada a partir de diversas imagens do Hubble. “É tão rica em termos visuais e deu tanto trabalho a montar que tem de ser uma das minhas preferidas”, diz o astrónomo. Dados recolhidos por um teles-cópio terrestre fornece-ram as cores associa-das aos elementos.MOSAICO COMPOSTO POR 32 IMAGENS

IMAGEM DO HUBBLE: NASA; ESA; N. SMITH, UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA; HUBBLE HERITAGE TEAM, STSCI/AURA

IMAGEM DO OBSERVATÓRIO INTERAMERICANO DE CERRO TOLOLO: N. SMITH; NOAO/AURA/NSF

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BELEZA ÍMPAREsta imagem da galáxia espiral NGC 1300, obtida pelo Hubble, está impregnada de porme-nores: estrelas azuis jovens e luminosas, faixas de poeira espiralando em redor do núcleo brilhante, galáxias distantes em irradiação ao fundo. “Podemos perder-nos nela”, diz Zoltan. Muitos já o fi zeram. MOSAICO COMPOSTO POR DUAS IMAGENS

NASA; ESA; HUBBLE HERITAGE TEAM, STSCI/AURA. P. KNEZEK, WIYN

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FORTALEZAS

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ESQUECIDASAs antigas residências de clãs na província de Fujian estão

a perder relevância, em contraciclo com a nova China.

As tulou, ou “edifícios de terra”, da província de Fujian, no Sudeste da China, são habitações tradicionais construídas pelo povo hakka, oriundo da China Central e que migrou para sul a partir desta região, nos séculos XIV e XV.

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No interior de uma tulou, as habitações familiares erguem-se em “fatias” em torno de um pátio central partilhado. Cada casa dispõe de uma cozinha e de um espaço para refeições no piso térreo, de uma arredacação e de quartos nos pisos superiores.

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national geo graphic Junho

Tudo começou como um jogo. Quantas daque-las estruturas estranhas, semelhantes a fortalezas, conseguiria eu contar a partir da janela de uma viatura? Eram enormes e erguiam-se como naves espaciais na região rural da província de Fujian, no Sudeste da China. Em cada aldeia, parecia existir uma, duas ou até mais.

Em Hekeng, povoado com várias centenas de habitantes, contabilizei 13 tulou. Tulou signiica “estrutura de terra” em mandarim, uma deinição bastante modesta, como se nos bastasse descrever o Coliseu de Roma como um círculo de pedras!

Os edifícios assemelham-se a estruturas me-dievais, compostos por altos muros castanhos e lamacentos, com janelas minúsculas nos andares de cima. A entrada normalmente faz-se por uma única porta de madeira forrada a chapa metálica.

Pouco depois, já não me contentava em icar de fora, contemplando-as embasbacado a partir do exterior, nas suas formas diversas, mas sobretudo quadradas ou circulares. Resolvi entrar em cada tulou que contabilizava. A porta da rua encontra-va-se normalmente aberta e, por isso, eu entrava e tornava a entrar. E vou contar-vos o que descobri.

O exterior não nos prepara para o que encon-tramos no interior. Se o exterior sombrio se asse-melha a uma penitenciária, o interior abre-se de rompante como um salão de concertos. Galerias de madeira erguem-se, majestosas, até cinco an-dares de altura, em torno de um pátio cheio de luz. Cada piso está construído em madeira escura, formando pequenas salas iguais, dispostas uma após outra. Os corredores viram ou formam es-quinas, no inal de cada piso.

No pátio exterior, sem cobertura e calcetado com pedras arredondadas, existem normalmente um ou dois poços, mais um recinto fechado orna-mentado para o culto dos antepassados. O espaço

manda-nos virar e virar de novo, maravilhando--nos perante a sequência estonteante de salas, o panorama de céu e montanha que se avista no alto e o arrojo de um design que abriga uma comuni-dade inteira dentro de um edifício inexpugnável.

Embora se conheçam pretensões de tulou mais antigas, o arquitecto Huang Hanmin, que tem publicado muito sobre este tipo de constru-ção, defende que o primeiro registo de um edifício destes data de 1558. A sua ediicação coincidiu com uma época de batalhas pelo controlo da terra entre o clânico povo hakka, que para ali migrara oriundo das planícies da China Setentrional, e os grupos há mais tempo ixados na região.

“Desde o início, a sua função principal visava a segurança das comunidades”, diz Huang. “O registo histórico menciona ameaças de animais selvagens, bandidos e senhores da guerra.”

Contar as tulou.

Texto de Tom O’NeillFotografias de Michael Yamashita

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Fortalezas esquecidas

Para as repelir, os construtores conceberam muralhas de adobe, termo técnico para uma amálgama de argila, calcário e areia comprimi-dos, a qual, uma vez seca, forma um revestimento quase tão duro como betão. Muitas destas mura-lhas tinham pelo menos 1,5 metros de espessura.

O crescimento demográico e os tumultos as-sociados à revolução comunista de 1949 na China permitiram que a construção das tulou se pro-longasse no século XX. Os hakka contaram-se entre os mais fervorosos adeptos da revolução. Em Hekeng, as datas de construção das 13 tulou variam entre a década de 1550 e a década de 1970.

No interior do Lou Dongsheng (“Nascer do Sol”), uma tulou inalizada em 1961, a única dife-rença estrutural relativamente às mais antigas foi a dimensão ligeiramente maior das salas, embora continuassem a ter um tamanho quase insuicien-te para nelas caber uma cama de casal.

Em Hekeng, travei conhecimento com um plantador de chá chamado Zhang, que me contou que o pai, engenheiro, supervisionara a constru-ção do Lou Dongsheng. Cada andar, com as suas espessas vigas de suporte e 22 salas, demorou um ano a ediicar. Perguntei-lhe se conseguia imagi-nar a construção de nova tulou na cidade. Zhang contemplou o prédio imponente, com os muros de adobe de textura semelhante a pele enrugada.

“É impossível”, respondeu, abanando a ca-beça. “O custo seria cinco vezes superior ao de um edifício de betão e aço. Além disso, calcule a mão-de-obra necessária. E onde conseguiria agora encontrar árvores tão grandes?”

Este é o transporte escolar na aldeia de Hekeng. O número de escolas nas aldeias pequenas está a diminuir, acompanhando a demografia. As crianças viajam agora mais longe para ir à escola.

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Yuchang Lou, uma tulou com cinco andares, atrai uma multidão num feriado de Maio. Só um número reduzido de famílias ainda se considera em casa em Yuchang Lou, ganhando a vida com a venda de bilhetes, servindo chá e vendendo recordações.

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national geo graphic Junho

Quase todas as pessoas que conheci em Hekeng chamavam-se Zhang. Nas terras altas de Fujian, as aldeias são povoados de base clânica, onde predomina um único apelido. Hekeng era uma aldeia Zhang. Também existem aldeias Su, aldeias Li e aldeias Jian, entre outras.

Para satisfazer as necessidades destas comuni-dades estreitamente unidas, a tulou transformou--se numa estrutura dentro da qual braços inteiros de um clã, que juntava frequentemente mais de cem pessoas, podiam viver todos juntos num só edifício. Na Europa Ocidental, os castelos abriam os portões aos aldeãos apenas em tempos de ata-que ou de cerco. Uma tulou protegia e alojava sempre as pessoas.

Dentro de uma tulou, o espaço de convívio organizava-se na vertical, imperativo numa re-gião com quantidades limitadas de terreno pla-no. Cada família podia ser proprietária de uma ou mais salas. No primeiro piso, aberto ao pátio, i cava a cozinha e a zona de refeições; o segundo era uma área de armazenagem; o terceiro piso e os superiores continham os quartos. Huang com-para a planta do edifício a uma laranja dividida em gomos virados para um ponto central.

Toda a comunidade servia-se do mesmo cor-redor e escadarias. As regras de comportamento (limpar resíduos, respeitar os anciãos, contribuir

para as festividades) encontravam-se ai xadas à entrada. Derradeiro símbolo de atitude comuni-tária, as salas eram idênticas em tamanho e deco-ração, quer pertencessem ao chefe do clã hakka quer a um vulgar criador de porcos. Curiosamen-te, outro povo da província de Fujian, os minnan, optou por uma disposição mais privada, com fracções de habitação verticais equipadas com escadarias individuais e corredores particulares.

Não há muitas tulou encarrapitadas em cumes de montanha. Quase todas se localizam no fun-do de vales, idealmente com uma montanha à retaguarda e água à frente. Foram instaladas em obediência aos princípios de feng shui (“vento e água”), a arte chinesa da adivinhação ambiental.

Certo dia, pedi ao especialista em feng shui Zhang Shou Ru que se pronunciasse criticamente sobre a disposição da aldeia de Hekeng. Enrugado pela idade, o homem de 85 anos ultrapassou-me na subida até um miradouro e já estava a fumar um cigarro quando lá cheguei. Zhang aprovou a maneira como as montanhas se peri lavam à retaguarda da aldeia, assemelhando-se às bossas de um dragão, sinal de boa energia. Gostou de ver dois rios em conl uência junto da vila mas mos-trou-se preocupado pela maneira como, dali em diante, o curso de água corria a direito, com mais dinheiro a sair de Hekeng do que a ser ali retido.

Quanto aos efeitos do feng shui sobre cada tu-lou, acocorou-se junto das portas de entrada de várias delas, tirou do bolso a sua bússola especia-lizada com 24 orientações e disse, sempre com grave prazer: “Estes são bons sítios.”

O feng shui das Terras Altas de Fujian, como um todo, deve ser bom porque, actualmente, o dinheiro do turismo não pára de al uir à região. O al uxo de fundos começou em 2008, quando 46 tulou em Fujian foram classii cadas como Pa-trimónio Mundial, incluindo o grupo de 13 de Hekeng. Aos i ns-de-semana, as estradas rurais encontram-se muitas vezes engarrafadas com viaturas e peões e as próprias tulou são inun-dadas de turistas. A majestade da arquitectura disputa a atenção com bancas de comércio que tudo vendem, desde chá e cogumelos medicinais a cartazes de Mao e cinzeiros em forma de tulou.

ongkeng(Zhencheng

Lou)

Yanxiang(Liben Lou–ruin)

ekenghunyu,Yangzhao,

e Yuchang Lou)

XiamenTaxiaMeilin

GUANGDONG

FUJIAN

C H I N A

AglomeradoIndividual(nome entre parênteses)

Tulou

CHINA

ÁSIA

OCEAEANONÍNDICOOOCEAANONO

TAIWAN

ÁREA EMDESTAQUE

NGM MAPSFONTE: UNESCO

0 km 50

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Fortalezas esquecidas

Algumas tulou foram deixadas ao abandono como Liben Lou (no topo), destruída em 1931 durante a guerra civil chinesa. Depois de anos a trabalhar em fábricas, Li Chen (em cima) regressou à tulou dos antepassados da mulher, Shunyu Lou, para criar porcos e ensinar à filha tradições como a colheita da madressilva.

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Cada tulou é frequentemente ocupada por um grupo familiar e, por isso, um óbito afecta toda a comunidade. Em Yangzhao Lou, na aldeia de Hekeng, carpideiras com vestes brancas e azuis acentuam os lamentos da família pela morte de Su Shi Yaying, de 90 anos, uma das matriarcas da tulou.

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national geographic Junho

Embora as tulou tenham uma aparência comunitária, eram frequentemente edificadas por pessoas ricas. Zhencheng Lou (no topo) foi construída em 1912 por irmãos que fizeram fortuna com uma fábrica de corta-cigarros. Em 2008, uma das maiores empresas da China construiu uma versão moderna de tulou (em cima) perto de Guangzhou (Cantão).

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Fortalezas esquecidas

Até à década de 1950, o mundo exterior nem sequer sabia da existência das tulou. E as que se localizam na região meridional de Fujian só fo-ram conhecidas três décadas mais tarde. A sua localização remota, a má qualidade das estradas e a desertiicação das suas aldeias mantiveram em segredo a arquitectura singular da região. Huang Hanmin foi dos primeiros investigadores a estu-dá-las, viajando de bicicleta de aldeia em aldeia.

Huang é o mais importante inventariador das tulou. Baseando-se nas suas viagens, na corres-pondência com universitários e habitantes locais e no estudo da fotograia de satélite, ele calcula que há 2.812 tulou de todos os tamanhos e feitios, cerca de um milhar a menos do que estimativas anteriores. “Mais de 46 merecem integrar a Lista do Património Mundial”, airma.

“Onde pára toda a gente?” Era essa a minha reacção sempre que entrava numa tulou. Em lu-gares construídos para abrigar centenas de pes-soas, já só restavam cinco ou seis. Eram, na sua maioria, velhotes, frágeis e vivendo sozinhos. Por vezes, via-se uma criança pequena no meio das sombras, uma das chamadas “crianças deixadas para trás”, coniadas aos cuidados de um parente idoso, enquanto os progenitores viviam e traba-lhavam numa cidade distante.

As tulou têm vindo a perder gente em revoadas há pelo menos 25 anos, desde que a China ace-lerou economicamente. As pessoas não queriam viver em espaços atravancados e sem saneamento.

“Já só vivem pobres nas tulou”, ouvi várias vezes.Lin Yi Mou foi meu cicerone em Eryi Lou, uma

tulou ricamente decorada que foi habitada por quatrocentos moradores, mas actualmente é um “museu” no qual a maioria das salas estão fecha-das a cadeado. “No passado”, contou, “quando a tulou pertencia a um grande clã, a família con-tribuía para as reparações. Agora, não querem gastar dinheiro numa coisa que pertenceu aos antepassados. Querem gastá-lo em coisas para si”.

Só nos feriados nacionais é que as tulou ainda se agitam com algo parecido com o seu antigo bulício de colmeias. Familiares ausentes regres-sam para visitar os parentes, participar em casa-mentos e dormir nos quartos a que antigamente chamavam casa.

Durante o fim-de-semana do Primeiro de Maio, escutei como os ilhos e ilhas pródigos manifestavam a sua saudade pelo modo de vida nas tulou. “Havia tantas crianças com quem brin-car, nesse tempo. No Inverno, havia calor e era acolhedor. Sentíamo-nos em segurança.” Depois de uma curta permanência, porém, todos regres-saram aos seus lares modernos.

as tulou não desaparecerão. Como design arquitectónico, até é possível que as tulou co-nheçam um renascimento. Engenheiros e ar-quitectos estudiosos da construção em adobe consideram a tulou um protótipo do edifício “verde”: eficiente em termos energéticos, em harmonia com a paisagem e construído com materiais naturais, localmente disponíveis.

Segundo o arquitecto canadiano Jorg Os-trowski, a famosa Chengqi Lou, de quatro anéis, ediicada no início do século XVIII, superaria de longe os requisitos da certificação LEED, um famoso sistema de avaliação da indústria da construção civil para construções sustentáveis. Na vizinha província de Guangdong, arquitectos do escritório Urbanus projectaram uma bem-su-cedida versão moderna de uma tulou para 278 agregados familiares com baixo rendimento.

“Consigo imaginar este conceito, com o seu sentido de espaço colectivo, adaptado para cons-truir escolas, bibliotecas e, sim, até mesmo pri-sões”, airma o destacado projectista Meng Yan.

Até as antigas tulou se podem transformar em coisas novas.

Na cidade turística de Taxia, perto de muitos edifícios classiicados como Património Mundial, o empresário Zhang Min Xue pegou numa tulou abandonada há oito anos e, após um ano de tra-balho, transformou-a numa residencial chamada Qingde Lou.

“A obra mais difícil foi a instalação da canali-zação moderna”, contou-me Zhang.

Fiquei lá alojado. Era ruidosa, cheia de gente. Havia roupa pendurada nos varandins. As ga-linhas passeavam sobre as lajes arredondadas. Viam-se candeias acesas diante da imagem de uma divindade local. E, de noite, a pesada porta da rua era fechada com estrondo. Era uma tulou. j

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ELES podem ser LIVRES

MORGAN Holanda

Capturada ao largo da costa holandesa, esta orca foi enviada para Espanha quando se temeu que ela não sobrevivesse caso fosse devolvida ao oceano. As orcas, ou baleias assassinas, são os maiores golinhos do planeta.MARTEN VAN DIJL, AFP/GETTY IMAGES

Milhares de golfinhos têm sido capturados para actuarem em parques aquáticos. Agora, alguns estão a aprender a maneira de regressar ao mar.

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CHUNSAM Coreia do Sul

Facilmente identiicada pelo “2” gravado na barbatana dorsal, Chunsam nada nas águas ao largo da ilha de Jeju. Após vários anos em cativeiro, esta fêmea libertada regressou ao seu grupo, melhorando as suas possibilidades de readaptação à natureza.BRIAN SKERRY

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início de Janeiro de 2011, o especialista em ma-

íferos marinhos Jef Foster, de 55 anos, che-

ou à costa rochosa de uma baía prístina junto

a pequena aldeia de Karaca, num canto da orla

udoeste do golfo de Gökova, na Turquia. Ao

argo da costa, pairava um conjunto de gaiolas

utuantes utilizadas em unidades de aquicultura.

eceando a morte dos golinhos, a Fundação Born Free, sediada no Reino Unido e dedicada à pro-tecção de animais selvagens, interveio e tomou posse de Tom e Misha. Os dois golinhos foram conduzidos até à gaiola ao largo de Karaca. Jef foi contratado para ajudar a Fundação num pro-jecto ambicioso: recuperar a melhor forma física de Tom e Misha, ensinar-lhes o conhecimento fundamental para a vida em ambiente selvagem e libertá-los no Egeu. “Com criaturas imprevisíveis e difíceis, corria-se um grande risco”, conta Will Travers, o presidente da Fundação. “Mas percebe-mos que os animais teriam poucas hipóteses e que provavelmente morreriam se ninguém agisse.”

As questões éticas levantadas em torno da ma-nutenção de golinhos em cativeiro têm vindo a intensiicar-se à medida que as suas capacidades intelectuais e cognitivas se tornam mais bem compreendidas. Os golinhos são das espécies mais inteligentes do planeta: possuem autocons-ciência e são altamente sociais, com cérebros notavelmente grandes e complexos para a sua dimensão corporal.

Texto de Tim Zimmermann COMPREENDER OS GOLFINHOS INTELIGÊNCIACATIVEIROCULTURA

Uma série em três partes

trinta metros de comprimento por 15 metros de profundidade, dois roazes machos nadavam em círculos lentos. Tom e Misha, assim se chama-vam, encontravam-se num estado lamentável. Tanto quanto se sabia, tinham sido capturados no Egeu em 2006 e não se sabia praticamente nada sobre eles. Após iniciarem as suas vidas em ca-tiveiro num parque de golinhos na vila costeira de Kaş, em Junho de 2010, tinham viajado no interior de um camião até uma piscina de cimen-to mal construída na vila de Hisarönü, onde os turistas pagavam 40 euros para serem rebocados durante dez minutos. Seria difícil imaginar um local mais incongruente e desorientador para dois golinhos nascidos no oceano. Como o sistema de iltragem era inadequado, o fundo da piscina icou rapidamente revestido de peixes mortos e fezes de golinho.

Algumas semanas mais tarde, uma campanha indignada, iniciada nas redes sociais por habitan-tes locais e movimentos cívicos, forçou o encer-ramento das instalações. No início de Setembro,

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TOM E MISHA Turquia

Tom e Misha nadam na sua gaiola ao largo da costa do Egeu. Em cativeiro, os golinhos icam tão habituados a comer peixes mortos que não prestam atenção aos peixes vivos. Os treinadores têm de reensiná-los a caçar antes de poderem ser libertados.JEFF FOSTER

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Capazes de comunicações extensas, utilizam assobios-assinatura análogos a nomes individuais. Podem reconhecer a sua imagem num espelho, entendem conceitos abstractos e já provaram ter conhecimentos básicos de gramática e sintaxe.

Menos de três dezenas de golinhos mantidos em cativeiro durante longos períodos foram liber-tados nos últimos 50 anos, com resultados varia-dos e inconclusivos. Tom e Misha criaram uma

lhe parecera uma forma interessante de ganhar a vida e acreditava piamente que era a melhor maneira de aprender algo sobre um animal pouco conhecido. No entanto, ao ouvir os queixumes chorosos de animais jovens, solitários e conina-dos ao convés de um navio de captura, começou a ponderar os aspectos morais da questão. Jef fez o melhor que pôde, utilizando as mãos e a voz para acalmar as jovens, temerosas e perturbadas orcas.

oportunidade para se aperfeiçoar a arte de ensino dos golinhos, ajudando a deinir uma alternativa ao cativeiro contínuo. “É o tipo de projecto que toca o coração das pessoas”, diz Will. “Se tivermos sucesso com Tom e Misha, isso inspirará a socie-dade e talvez a leve a questionar os espectáculos [de golinhos em cativeiro].”

Enquanto proporcionavam à Fundação um ensejo para deinir o futuro, Tom e Misha da-vam uma oportunidade de redenção parcial a Jef Foster. Descontraído e com a compleição corada própria de um homem com uma grave alergia a cubículos de escritório, este ilho de um veterinário de Seattle sempre adorou aprender sobre animais. Aos 15 anos, já trabalhava no aquário da sua cidade natal. Em 1976, com 20 anos, ajudou Don Goldsberry, que veio a tornar-se o mais prolífero coleccionador de mamíferos marinhos do Sea World, a montar uma operação para a captura de orcas (a maior espécie de gol-inho) na Islândia. Nos 14 anos seguintes, Jef ajudou a capturar duas dezenas de orcas ao largo dos EUA e da Islândia para o Sea World e outros parques aquáticos. Além das baleias assassinas, Jef também removeu golinhos mais pequenos, leões-marinhos, focas e outros animais do seu habitat para exibição em cativeiro.

Embora não se preocupasse muito em saber se Tom e Misha estariam, ou não, a ajudá-lo a saldar uma dívida cármica, este novo trabalho agradava a Jef. Ele capturara a sua primeira orca porque

Recusou-se a seguir práticas segundo as quais a privação de uma baleia assassina de alimento poderia ajudar a domesticá-la, tornando-a mais submissa. Apesar dos seus esforços, “quanto mais o fazemos, mais nos apercebemos de que estamos a separar famílias”, diz. “Não podemos sentir-nos bem quando retiramos algo da natureza.”

 Por ironia, a vasta experiência de Jef na captura de golinhos qualiica-va-o singularmente para inverter o processo e transformara-o num parceiro inesperado para a Funda-ção. “Jef pertencia, no essencial, à

indústria da captura e nós sentíamo-nos muito nervosos”, conta Alison Hood, que supervisionou o projecto em representação da Fundação. “Mas ele é um verdadeiro poço de conhecimento e nós tínhamos assumido a responsabilidade por Tom e Misha. Cabia-nos o dever de lhes dar a melhor hipótese possível, a qualquer custo.” Segundo a estimativa de Jef, o processo de reabilitação de Tom e Misha poderia demorar seis a oito meses e custar 446 mil euros – para a gaiola, o pessoal, o equipamento, os peixes vivos. A Fundação espe-rava que custasse menos de metade desse valor. Ambos estavam errados.

A reabilitação de um golinho capturado não é tão fácil como possa parecer. Um golinho em cativeiro conserva a mesma anatomia e genética que tinha em estado selvagem, mas é um ani-

Em cativeiro desde 2006, Tom e Misha criaram uma oportunidade para aperfeiçoar a arte de ensino dos golfinhos a serem novamente selvagens.

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mal diferente em vários aspectos. Em ambienteselvagem, vive uma vida de imprevisibilidade ecompetição. Socializa e caça num vasto territó-rio, deslocando-se quase constantemente, enfren-tando uma multitude de espécies e de situaçõesnovas. À excepção de emergir para respirar, umgolinho selvagem passa a vida debaixo de água.

A experiência num parque aquático é opostaà da vida selvagem. O espaço físico é limitado eestéril, a vida segue horários e não há necessidadede caçar. Para além dos treinos e dos espectáculos,também há reduzida necessidade de movimento.E, sobretudo, a capacidade de orientação de umgolinho em cativeiro sofre alterações profundas:o mundo acima da superfície torna-se, subita-mente, muito mais importante do que o mundolá em baixo. Desde a alimentação às sessões detreino e os aplausos do público em reacção às or-dens dadas durante os espectáculos, quase todaa acção acontece cá em cima. Basta uma simples

O treinador Jeff Foster manda Tom e Misha nadarem energicamente. Em cativeiro, os golinhos icam fora de forma. Em vez de caçarem e nadarem debaixo de água, passam quase todo o seu tempo à superfície ou junto desta.

comparação para esclarecer a diferença: os gol-inhos selvagens passam, em estimativa, 80% do seu tempo muito abaixo da superfície; os goli-nhos em cativeiro passam cerca de 80% do seu tempo à superfície ou acima desta.

Jef Foster capturou a sua última orca para ca-tiveiro em 1990, embora continuasse a capturar outros golinhos e leões-marinhos. No entanto, começou igualmente a dedicar mais tempo à in-vestigação de baleias em estado selvagem e, entre 1996 e 2001, participou de maneira activa na ten-tativa de devolver Keiko, a orca que protagonizara o ilme “Libertem Willy”, às suas águas nativas, na Islândia. Keiko nadou rumo à liberdade em 2002, mas morreu de pneumonia em 2003. “A in-dústria do cativeiro pensa que eu ando a libertar animais e desconia muito de algumas coisas que temos feito. Agora sou uma espécie de pária”, diz Jef. “Mas eu não me oponho ao cativeiro. Ando apenas a tentar fazer as coisas certas.”

Z. DERYA YILDIRIM

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TOM E MISHA Turquia

Tom e Misha separaram-se pouco depois de serem libertados no Egeu. Ameaçado por pescadores, Tom teve de ser transferido, mas lutou contra a recaptura. “A expressão no seu olhar era a de um animal completamente selvagem”, contou um dos assistentes de Jeff.JEFF FOSTER

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Jef sempre teve orgulho em esforçar-se por perceber as necessidades dos animais que leva-va para cativeiro, de forma a atenuar a transição desorientadora entre os mundos natural e huma-no. A obtenção de registos rigorosos sobre Tom e Misha revelou-se impossível, mas a Fundação Born Free calcula que ambos terão sido captura-dos junto do porto de Esmirna e depois mantidos em cativeiro durante cerca de quatro anos. Tom era mais pequeno, mais travesso e aparentava ser o mais jovem dos dois. Ansiava por agradar e pa-recia ter-se adaptado melhor à vida em cativeiro.

Misha, em oposição, era arisco e desconiado de todas as novidades. Mostrava relutância em in-teragir com o mundo humano e passava frequen-temente o tempo na gaiola a olhar para o mar. “A forma como os golinhos encaram o cativeiro depende muito da maneira como foram levados para lá”, diz Jef. “Se os cuidados e o condiciona-mento não forem adequados, no inal pode-se mesmo icar com animais mais neuróticos.”

Os efeitos prolongados da vida de Tom e Misha em parques aquáticos eram evidentes na sua le-targia e no facto de se encontrarem cerca de 20% abaixo do seu peso saudável, com tão pouca gor-

procedimentos de saúde essenciais, como permi-tir esfregaços aos seus espiráculos para culturas bacteriológicas. E Jef não era capaz de imaginar outro modo de recuperar a boa forma de que Tom e Misha necessitariam para sobreviver no oceano que não fosse sujeitá-los a um regime de natação rápida, saltos e caminhadas sobre a barbatana caudal que desenvolvessem músculo e resistência. “A única maneira é treiná-los para depois ser possível destreiná-los”, disse.

Os treinos muito enérgicos exigem calorias e, por isso, a primeira tarefa era transformar os há-bitos alimentares selectivos de Tom e Misha para habituá-los de novo aos peixes que provavelmente encontrariam no Egeu, como tainhas, anchovas e sardinhas. A estratégia consistia em oferecer-lhes uma espécie de peixe local. Se o comessem, se-riam recompensados com carapau, um peixe pelo qual haviam desenvolvido o gosto em cativeiro. Para imitar a imprevisibilidade da existência de alimento na natureza, Jef variava a quantidade e a frequência das refeições. “Quando os levamos para o cativeiro, tudo, desde a alimentação aos es-pectáculos, é estruturado”, diz. “Eles desenvolvem um relógio interno e sabem exactamente quando

Para despertar os seus cérebros, Je� atirou para dentro da gaiola organismos que eles não viam há anos, como um polvo, uma alforreca ou um caranguejo.

dura que as costelas eram visíveis. A preparação para ao regresso ao mar não se limitaria ao ensi-no de técnicas de caça de peixe, à diminuição do seu contacto com seres humanos e à abertura de um portão. Jef reconhecia a necessidade de uma abordagem mais contra-intuitiva que começasse com as mesmas ferramentas (o assobio e a vara de um treinador) e métodos (“condicionamento operativo”, que recompensa os comportamentos correctos e ignora os incorrectos) utilizados pelos parques aquáticos de todo o mundo que treinam golinhos para actuação em espectáculos.

Além de serem condicionados a permitir a recolha de amostras de sangue, ambos os gol-inhos precisavam de aprender a aceitar outros

vão ser alimentados. Temos de o inverter porque sabemos que, em ambiente selvagem, podem co-mer mais num dia do que noutro.”

Jef também quis despertar os cérebros dos gol-inhos. Atirou para a gaiola organismos que eles não viam há anos, como um polvo, uma alforreca ou um caranguejo. Cortou buracos ao longo de um tubo de PVC, encheu-o com peixes mortos e depois atirou-o para dentro de água. Tom e Misha tinham de perceber como manipular o tubo para que os peixes saíssem pelos buracos. “Em cati-veiro, treinamos os animais para não pensarem por si, ‘desligando’ os cérebros e fazendo o que lhes pedirmos”, explica. “Agora, queria tirá-los do modo de piloto automático e pô-los a pensar.”

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Golfinhos em cativeiro

Num tanque de retenção no Jardim Zoológico de Seul, Taesan (primeiro plano)e Boksoon aprendem de novo a comer peixes vivos. A sua libertação estáagendada para o Verão. Se tudo correr bem, reunir-se-ão ao seu grupo nativo.

O tubo de alimentação tinha duas vantagens adicionais. Flutuava cerca de um metro e meio abaixo da superfície, recordando a Tom e Misha que o alimento se encontra debaixo de água, e ajudava a dissociar os seres humanos da oferta de alimento. “Tínhamos de fazê-los compreender que o peixe não provém apenas de um balde pra-teado e de um ser humano”, explica Amy Souster, uma jovem treinadora recrutada para o projecto.

O processo de preparação de Tom e Misha de-senrolou-se gradualmente, em etapas, ao longo da Primavera de 2011, chegando a incluir 20 sessões de aprendizagem por dia. Quando os meses quen-tes de Verão se aproximaram, Jef acreditava que Tom e Misha estariam prontos para nadar em liberdade no início do Outono. No entanto, com o calor do Verão e respectivo aquecimento das águas da baía até 26ºC, temperatura que causa problemas aos golinhos, Tom e Misha perderam o apetite e foram atacados por uma virulenta in-fecção sanguínea que quase foi fatal. “Escaparam mesmo por pouco”, recorda John Knight, o vete-rinário consultor da Fundação Born Free. Tom e Misha não estavam unidos por uma relação es-treita e limitavam-se a tolerar a presença do outro,

mas Amy icou comovida com as tentativas feitas por Misha para cuidar de Tom, empurrando-o até à superfície para respirar quando ele se afundava até ao fundo da gaiola e levando-lhe peixes para tentar que ele se alimentasse.

A agravar a situação, no inal do Verão, os al-deãos de Karaca tinham tornado claro que es-tavam fartos do projecto instalado na sua baía. As “mensagens” incluíram o corte dos pneus dos veículos da Fundação, riscos com chaves e até ameaças de violação às funcionárias do sexo feminino. Em Outubro de 2011, a gaiola foi cui-dadosamente rebocada para outro local, do lado oposto da baía. Jef e a sua equipa redobraram es-forços, com ênfase na forma física dos golinhos.

A gaiola estava agora ancorada a cerca de trinta metros da estrutura de madeira da costa, permitindo a Jef recorrer a uma das suas inova-ções preferidas do projecto de Keiko: uma isga gigantesca que rodava sobre um suporte e po-dia ser utilizada para disparar peixes para sítios diferentes da gaiola. Além de proporcionar ali-mento sem intervenção humana directa, a isga encorajava Tom e Misha a ganhar o hábito de se mexerem mais, como os golinhos selvagens.

JEAN CHUNG

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Não tardaram a perceber a ideia e o simples som da isga despertava os seus relexos. “Nem pensa-vam. Limitavam-se a esperar pela próxima coisa que caísse na água”, diz Jef. “Soube que chegara a hora de lhes dar peixes vivos.”

É um dos aspectos bizarros do cativeiro: uma vez capturados, os golinhos nascidos em am-biente selvagem parecem deixar de perceber que os peixes devem ser caçados e comidos. Tom e Misha olhavam para os cardumes de peixes que atravessavam a sua gaiola como se estivessem a ver televisão. Jef teve de treiná-los novamente para voltarem a caçar e comer peixe vivo. Co-meçou por misturar peixes vivos, ao princípio abrandados por um golpe na cabeça ou um corte no rabo, entre punhados de peixes mortos atira-dos para a piscina. Tom e Misha tinham-se de tal forma habituado a competir entre si para engolfar tudo o que caísse dentro de água que comiam pei-xes vivos juntamente com os mortos, sem sequer pensarem nisso. Com o tempo, os peixes vivos – cada vez menos abrandados – foram compondo uma porção crescente da sua alimentação, até os golinhos se reacostumarem ao sabor e à ideia de terem de capturar as suas refeições.

De seguida, Jef utilizou garrafões de 20 litros, com tampas accionadas por molas que se abriam remotamente, para soltar peixes vivos no interior da gaiola a partir de várias localizações e a di-ferentes profundidades, retirando uma vez mais os seres humanos da equação e concentrando a atenção de Tom e Misha debaixo de água. Ambos os golinhos começaram a passar mais tempo em caçadas nas profundezas da gaiola, até soprando bolhas pelos espiráculos para espantar peixes escondidos que não conseguiam alcançar. Amy Souster mostrara-se céptica quanto à possibilida-de de devolver os animais com sucesso ao mun-do natural. “No entanto, Tom e Misha mudaram. Deixaram de ser animais letárgicos e dependentes das pessoas, focados em comida vinda de bal-des, e tornaram-se animais que icam loucos com peixes vivos e se comportam da maneira que os golinhos selvagens devem comportar-se”, disse. “Foi impressionante.”

Jeff concordou. Chegara a altura de abrir o portão.

 Odia 9 de Maio de 2012 nasceu com um céu azul-cobalto lím-pido e promissor. Uma multi-dão composta por funcionários e apoiantes da Fundação Born Free reunira-se nas redondezas.

Bem cedo, nessa manhã, Tom e Misha tinham sido equipados com etiquetas de monitorização nas barbatanas dorsais. “Se conseguirem sobrevi-ver durante de seis meses, saberemos que foram reintroduzidos com sucesso”, explicou Jef. “Se não estiverem a sair-se bem, ou seja, se ao im de três meses abrandarem e o seu domínio diminuir, saberemos que estão mais fracos.”

Uma vez tudo preparado, um mergulhador abriu uma porta na rede da gaiola. Chegara o grande momento, mas Tom e Misha man-tiveram-se no interior, deslocando-se cuida-dosamente na gaiola. Passados cerca de vinte minutos de uma inactividade cada vez mais constrangedora, Amy Souster estendeu o braço direito, traçando uma linha descendente sobre o corpo, dando-lhes o último sinal de treino: o sinal para ir de A a B. Conforme o esperado, Tom fez o que lhe pediram e nadou para fora da gaiola, parando a cerca de dez metros. Como ha-bitualmente, Misha seguiu a liderança de Tom, mas acelerou ao chegar junto dele, correndo até à embocadura da baía. Tom acelerou para se juntar a ele. As dúvidas que pudessem sub-sistir sobre a forma como dois golinhos durante tanto tempo mantidos em cativeiro reagiriam ao oceano aberto, rapidamente se dissiparam. “Seis horas mais tarde, andavam a comer peixes selvagens e a nadar com outro [golinho]”, diz Jef. “Foi fabuloso.”

Segundo os registos recolhidos por satélite, ambos os golinhos nadaram quilómetro após quilómetro, rumo a Esmirna, e depois separa-ram-se, volvidos cinco dias. Jef não icou sur-preendido com essa informação. Tom continuou a nadar para ocidente. Misha dirigiu-se para sul e para leste. “Depois de desaparecer, desapareceu mesmo”, conclui.

Em meados de Outubro, cinco meses após a libertação, o marcador de monitorização de Tom parou de transmitir. O de Misha continuou a dar

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56dos quais são orcas

2.913Golfinhos em cativeiro*

Nascidos

no mar

Nascidos em

cativeiro

529

EUA

321

MÉXICO

294

CHINA

296

EUROPA

930

RESTO

DO MUNDO

25

7

12

5

Orcas: 7Golfinhos: 543

JAPÃO

sinal até inais de Novembro e depois também se silenciou. Jef e a Fundação Born Free espera-vam que os transmissores durassem nove meses ou mais, mas as etiquetas tinham funcionando durante tempo suiciente para determinar que Tom e Misha se tinham adaptado às suas novas vidas de regresso ao Egeu, com todos os peri-gos. Tinham sido necessários 20 meses e cerca de oitocentos mil euros, mas Jef e a Fundação conseguiram provar que, mesmo após bastante sofrimento em cativeiro, um golinho pode ser ensinado e aprender aquilo de que precisa para regressar ao mar.

 Um ano mais tarde e a meio mun-do de distância, a libertação si-milarmente bem documentada de três golfinhos de cativeiro reforçou, de forma enfática, essa lição. No dia 18 de Julho

de 2013, abriram-se as portas de uma gaiola de aquicultura instalada na costa setentrional da ilha de Jeju, um popular destino turístico ao largo da extremidade meridional da Coreia do Sul. Dois golfinhos-nariz-de-garrafa, Jedol e Chunsam, detiveram-se durante poucos minutos e depois nadaram para mar aberto. Tinham sido ilegal-mente capturados, juntamente com uma fêmea chamada Sampal, entre 2009 e 2010, de um gru-po formado por cerca de 120 golinhos selvagens que habitam as águas em redor da ilha de Jeju, e vendidos ao Paciic Land, uma estância balnear da ilha. Uma campanha promovida pela Associa-ção Coreana para o Bem-Estar Animal resultou numa ordem judicial para a sua libertação.

Os três golinhos tinham sido treinados para realizar os truques habituais em espectáculos do Paciic Land. Jedol fora posteriormente vendido ao Jardim Zoológico de Seul, onde fazia acroba-cias ao lado de golinhos da instituição. Após a ordem judicial, Chunsam e Sampal foram trans-portados para a gaiola de aquicultura ao largo da ilha de Jeju no início de Abril de 2013; Jedol chegou um mês mais tarde. O Jardim Zoológico de Seul enviou entretanto um treinador, um ho-mem chamado Joo Dong Seon, para preparar os golinhos para a libertação.

Estrelas em cativeiroOs espectáculos de golinhos tor-naram-se populares na década de 1960. Na actualidade, há mais de trezentos parques com mamíferos marinhos no mundo. Noventa por cento dos cetáceos em cativeiro são golinhos; a restante percentagem inclui belugas e botos.

*ESTIMATIVA REFERENTE A JANEIRO DE 2015; VÁRIOS PAÍSES NÃO MANTÊM REGISTOS. ÁLVARO VALIÑO E TONY SCHICK. FONTES: CETA-BASE; ORCA HOME

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TILIKUM Estados Unidos

Este macho do SeaWorld matou um treinador em 2010. Em cativeiro há mais de trinta anos, provavelmente não sobreviveria no mar. Os seus defensores argumentam que ele deveria ser retirado para uma gaiola no mar, idealmente nas águas islandesas onde cresceu.PHELAN M. EBENHACK, AP IMAGES

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KSHAMENK Argentina

Encalhado em 1992, Kshamenk vive no Mundo Marino em Buenos Aires. Devolvê-lo à sua família seria vital, mas sabe-se pouco sobre o seu grupo social nativo.

Os três golinhos estavam bem treinados e em boas condições e tinham sido capturados mais velhos e com mais experiência. Por conseguin-te, a estratégia para devolvê-los à vida selvagem seria mais simples do que a utilizada com Tom e Misha: reduzir ao máximo o contacto humano e assegurar que os golinhos estavam preparados para sobreviver com uma dieta de peixes vivos e locais. No espaço de algumas semanas, os goli-nhos tornaram-se proicientes na perseguição e alimentação com peixes vivos, aprendendo até a comer evitando as espinhas, tal como os seus parentes selvagens. “A princípio, pareceu-me um disparate soltar Jedol, porque ele adaptara-se à piscina, estava habituado a comer peixes mortos e quatro anos é muito tempo”, diz o treinador. “Du-

vidava que ele fosse capaz de reaprender a caçar peixes vivos. No entanto, na gaiola, compreendi a rapidez de aprendizagem dos golinhos.”

Tal como acontecera com Tom e Misha, a ingestão de alimento, a forma física, o peso e a saúde foram cuidadosamente monitorizados para deinir critérios para a libertação. Sampal, con-tudo, tinha os seus próprios critérios e fugiu por um pequeno buraco da gaiola no dia 22 de Junho, após uma grande refeição. Alguns dias mais tarde, recorrendo a técnicas de identiicação fotográi-ca, investigadores conirmaram que se juntara a um grupo de golinhos selvagens. Três semanas mais tarde, Jedol e Chunsam foram libertados. A barbatana dorsal de ambos foi gravada com um número e ixaram-lhes etiquetas para transmissão

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via satélite que deveriam cair passados cerca de três meses. Não tardariam a juntar-se a Sampal no grupo selvagem.

A libertação dos goli nhos coreanos veio de-monstrar que, com goli nhos saudáveis, apoio local e um grupo de golfinhos na vizinhança, a transição do cativeiro para a natureza é rela-tivamente simples e demora poucos meses. Isto reforçou a ideia de os goli nhos cativos não terem de permanecer assim para sempre.

“Provavelmente um terço dos golfinhos de cativeiro satisfaz requisitos sui cientes para uma candidatura à libertação”, defende Naomi Rose, bióloga marinha do Instituto para o Bem-Estar Animal, que a associação coreana aconselhou no processo de libertação.

Embora Jef Foster assegure que não voltará a ajudar a capturar goli nhos para espectáculos e pense que a libertação é uma opção viável para

muitos goli nhos de cativeiro, incluindo algumas orcas, ele ainda acredita que a exibição em cativei-ro pode ajudar seres humanos e goli nhos a criar uma ligação positiva. Jef gostaria de ver o mo-delo da indústria de cativeiro, à base de piscinas artii ciais e espectáculos de estilo circense, subs-tituído por gaiolas instaladas no oceano com por-tões abertos, bem como programas de formação e investigação. “Damos uma opção aos animais e, para mim, esse é o feliz meio-termo”, diz.“É provável que o Tom i casse. Misha desapareceria.”

Estas questões serão debatidas no futuro, mas Tom e Misha desempenharam o seu papel. O anonimato é uma característica importante da vida selvagem e é inspirador poder oferecer-lhes a liberdade de desaparecerem.

Existe também uma certa beleza em conhecer o resto da história. Num agradável dia de Maio no ano passado, um pequeno navio pesqueiro en-controu 60 a 70 goli nhos-nariz-de-garrafa junto da costa nordeste da ilha de Jeju. Alguns caça-vam. Outros brincavam. Com os movimentos frenéticos e ligeiramente cómicos da juventude, pequenas crias tentavam acompanhar as progeni-toras. Eram goli nhos selvagens num dia como os outros: uma comunidade complexa, com os seus costumes, ritmos e prioridades.

Subitamente, um goli nho com um pequeno “1” branco claramente gravado na barbatana emergiu nas proximidades do navio. Era Jedol. Pouco depois, apareceu um “2”, anunciando a presença de Chunsam. Os números pareciam deslocados no meio da confusão selvagem. Mas eram uma prova profundamente comovente de que os dois goli nhos estavam exactamente no sítio certo: o oceano selvagem, onde nasceram e onde irão agora passar o resto das suas vidas. j

INGRID VISSER

MAIS ONLINE nationalgeographic.pt

Perdeu a primeira reportagem desta série? Encontre-a no nosso arquivo.

BRIAN SKERRY

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KEIKO (DE “LIBERTEM WILLY”) Noruega

A orca nadou em liberdade em 2002, após mais de vinte anos em cativeiro. Nunca se integrou num grupo selvagem, tendo continuado a procurar compa-nhia humana e entrega de alimento. Keiko morreu apenas ao im de um ano, mas a sua libertação abriu o caminho de regresso à natureza para outros golinhos.GORM KALLESTAD, AP IMAGES

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O lago O’Hara aninha-se no sector canadiano das montanhas Rochosas a mais de dois mil metros de altitude, “como uma esmeralda numa taça de montanhas”, escreveu o paleontólogo Charles Walcott em 1911. Gerações de artistas criaram neste miradouro.

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Antigamente, era um mero ponto de passagem numa região onde o comboio mal parava.

Agora, Yoho é um lugar de ciência e beleza natural.

53

As maravilhas do

pequeno parquedo Canadá

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Em Yoho, mais de duas dezenas de picos erguem-se acima de 3.050 metros, incluindo os rochedos da cordilheira Ottertail. Erguidas por forças tectónicas, estas rochas foram em tempos um leito marinho.

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national geo graphic Junho

Texto de McKenzie FunkFotografias de Peter Essick

Há um século, nas encostas do monte Field, no Parque Nacio-

nal Yoho, Charles Doolittle Walcott, um dos mais famosos

paleontólogos do seu tempo, foi autor de dois achados que

mudaram a sua vida. O primeiro é hoje, na opinião de mui-

tos especialistas, a principal jazida de fósseis do mundo.

O segundo foi… a sua terceira mulher, Mary Vaux, cujo apelido viria a designar um género de esponjas fossilizadas: Vauxia.

Os visitantes contemporâneos deste sublime e menosprezado parque nas montanhas Rochosas canadianas interessam-se sobretudo pela primei-ra destas descobertas. A formação Burgess Sha-le, que abrange a pedreira Walcott, recebeu da UNESCO a designação de Património Mundial em 1980. Anos mais tarde, num livro muito bem sucedido, o biólogo Stephen Jay Gould referiu-se a Burgess Shale como “a mais preciosa e impor-tante de todas as jazidas de fósseis”. É um baú do tesouro com criaturas marinhas do Câmbrico perfeitamente conservadas. Encontraram-se aqui mais de duzentos mil espécimes de aspecto in-vulgar e há inúmeros outros ainda por descobrir.

No entanto, a maioria das formas de vida dos Xistos de Burgess (desde o Wiwaxia, com a sua carapaça coberta de espinhos, ao Opabinia, um habitante do leito marinho com corpo mole, cinco olhos e uma garra na ponta de uma trom-ba elefantina) pareciam, na opinião de Stephen Gould, becos sem saída da evolução, espécies sem descendentes contemporâneos. Na sequência da sua relexão, Stephen Gould utilizou mesmo a explosão da vida no Câmbrico e o subsequente desaparecimento da maioria das linhagens evo-

lutivas para argumentar que “a sobrevivência dos mais aptos” tem uma contrapartida importante: a sorte. Será a evolução, em parte, uma lotaria? Será a história natural governada pelo acaso? O debate cientíico aqueceu desde então, mas quase sempre bem longe das fronteiras deste parque natural.

Para compreendermos o encanto de Yoho pro-priamente dito, é melhor concentrarmo-nos na mulher notável que também esteve na encosta daquela montanha, Mary Vaux, cuja própria fa-mília tem uma história que mostra como o acaso pode intar o destino.

Num dia de Agosto soalheiro, mas frio, acor-dei em Field, na Colúmbia Britânica, uma aldeia com 150 habitantes que alberga a sede do parque de Yoho e um hotel, um café, um restaurante, uma estação de correios e uma escola primária. Dirigi-me, de carro, ao vale de Yoho, nos arre-dores. Aproximadamente na viragem do século XIX, Mary, a ilha mais velha de uma destacada família quaker de Filadélia, foi a primeira mu-lher branca a visitar o vale. “Para mim, é o sítio mais bonito que vi e sinto sempre o sangue correr mais depressa nas minhas veias quando falo ou ouço falar sobre ele”, escreveu mais tarde numa carta endereçada a Charles Walcott. “Não ima-gino alegria maior do que acampar ali, longe dos turistas e do barulho do cavalo de ferro.”

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Na encosta do monte Stephen, trilobites com o comprimento de um punho integram a Burgess Shale, uma formação com mais de quinhentos milhões de anos, rica em vida marinha do Câmbrico.

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As cabras-monteses não se assustam com as alturas de Yoho, mas a altitude é perigosa até para esta espécie de patas irmes: avalanchas, quedas, predadores e clima extremo matam muitas cabras no primeiro ano de vida.

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national geo graphic Junho

PARQUE NAC. DE YOHOOs Parques das Montanhas Rochosas Canadianas foram classii cados como Patrimó-nio Mundial pela UNESCO. Yoho é pequeno, mas sublime, com quedas de água, dezenas de picos glaciários e uma das jazidas de fósseis mais importantes do mundo.

No meu trajecto até lá, passei pelo veículo do seu sobrinho-neto, Henry Vaux, Jr., estacionado à porta de uma hospedaria. Atravessei depois a linha férrea que trouxe a este local os primeiros membros curiosos da família Vaux há 128 anos. Virei à direita para a auto-estrada 1, que atravessa o parque. Yoho é uma área pequena, com cerca de 1.300 quilómetros quadrados. O nome do ter-ritório provém de uma expressão dos índios cree para demonstrar espanto e revela a densa con-centração das suas maravilhas: há pelo menos 25 picos baptizados com mais de 3.050 metros, dois albergues de montanha históricos, construídos junto de dois lagos glaciários cuja água é de um azul-turquesa sobrenatural, e centenas de quedas

de água, incluindo Takakkaw, uma das mais altas do Canadá, que vi no i nal do meu passeio de automóvel pelo vale Yoho acima. As multidões são pequenas quando comparadas com os 3,5 mi-lhões de pessoas que visitam anualmente Banf , de tal forma que os caminhantes não se conse-guem retrair. Por vezes, ao passarem uns pelos outros, ouvi-os exclamar “Yoho!” em vez de “Olá”.

A reacção dos Vaux ao visitarem a Colúmbia Britânica pela primeira vez em 1887, pouco após a abertura da linha ferroviária, foi uma versão mais refinada da actual. As montanhas eram “frias, austeras, belas, grandiosas e intangivel-mente majestosas”, escreveu o irmão do meio de Mary, George Jr. O mais novo, William, concen-

93

1

1

0 mi 5

0 km 5

LagoMcArthur

LagoEmerald

LagoO'Hara

CascataTakakkaw

CascataLaughing

Camposgelados deWapta

Vale

Yoho

Xistos deBurgess

Field1.253 m

LakeLouise

Pass.KickingHorse

1.629m

Pass.´

Yoho

Pass

agem

Burg

ess Mt. Field

2.642m

Mt. Goodsir3.567m

Mt. Vaux3.310m

Mt. Stephen3.201m

Mt. Burgess2.588m

Mt. Wapta2.782m

C o r d i l h e i r a

O t t e r t a i l

CordilheiraPresident

Cord ilhe ira Verm i l ion

MONTANHAS

ROCHOSAS

P A R Q U E

N A C I O N A L

Y O H O

PARQUE

NACIONAL

KOOTENAY

P A R Q U E

N A C I O N A L

B A N F F

ESTRADA

ICEFIELDS

Y

ESTRADA TRANSCANADIANA

Mt. Robson3.959m

1

1

0 mi 50

0 km 50

Jasper

Calgary

Kelowna

Edmonton

Banff

ALBERTA

COLÚMBIABRITÂNICA

MONTANHAS ROCHOSAS P. N.BANFF

P. N.GLACIARES

PARQ. NACIONALMT. REVELSTOKE

P. N.JASPER

P. N.KOOTENAY

PARQUENACIONAL

YOHO

OCEANO PACÍFICO

ÁREA EMDESTAQUEEM BAIXO

OtavaVancouver

CANADÁ

EUA

A travessia de Wapta é uma das rotas de montanhismo sobre esquis mais popu-lares da América do Norte.

MARTIN GAMACHE

FONTES: GEOBC; NATURAL RESOURCES CANADA

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Parque Nacional Yoho

trou-se no “ar impregnado pelo delicioso odor da l oresta… e a maravilhosa harmonia entre luz e sombra”. Os Vaux i zeram aquilo que qualquer turista contemporâneo faria perante tamanha be-leza: fotografaram-na. A diferença é que, no início do século XX, uma máquina fotográi ca era uma grande caixa de madeira e a maioria da “película” consistia em placas de vidro que tinham de ser cuidadosamente transportadas para a montanha e da montanha até à civilização. Naquele instante, a família Vaux captava algumas das primeiras ima-gens de uma natureza até então não documenta-da. “Está tão pouco explorado que cada visitante é praticamente um descobridor”, escreveu George Jr. Assim começava a transformação dos Vaux em cientistas amadores.

Quando ali regressaram em 1894, durante um dos quase quarenta verões que Mary pas-sou nos “Alpes” canadianos, i caram admirados por descobrir que o Illecillewaet tinha encolhi-do. As suas fotograi as provavam-no. A máquina fotográi ca, perceberam então, poderia ser um instrumento cientíi co. William, que era enge-nheiro, i cou particularmente intrigado com o recuo dos glaciares e os Vaux começaram a do-cumentar as alterações da paisagem com aquilo que apelidaram de “fotograi as de teste”: a mes-ma imagem captada no mesmo local, ano após ano, durante quase duas décadas. Também car-tografaram cuidadosamente glaciares e moreias com equipamento topográi co.

De regresso a Filadéli a, apresentaram dia-positivos utilizando um projector conhecido como Lanterna Mágica a um público curioso e, liderados por William, escreveram ensaios cientíi cos bem recebidos. No Canadá, o seu trabalho foi o primeiro estudo contínuo de um glaciar do seu género e ainda hoje é uma referên-cia cientíi ca. Pelo menos oito décadas antes das preocupações contemporâneas relativamente ao aquecimento global, “um enorme conjunto de glaciares no continente norte-americano está a recuar”, ai rma o sobrinho-neto Henry Jr., pro-fessor jubilado da Universidade da Califórnia, especialista em economia dos recursos naturais. “Ainda hoje seria uma descoberta signii cativa e foi feita por amadores.”

Mesmo após a morte prematura de William em 1908, vítima de tuberculose, e o regresso gradual de George Jr. ao seu escritório de advogados em Filadéli a, Mary continuou a visitar Yoho. Ca-minhou quilómetros por trilhos nas montanhas Rochosas antes da sua morte, em 1940. Tornou-se a primeira mulher a subir ao monte Stephen, com 3.200 metros de altitude, e consequentemente a primeira mulher a escalar um grande pico cana-diano. Acampou em tendas de lona junto do ma-jestoso lago O’Hara, enquanto porcos-espinhos “provavam o nosso bacon e experimentavam a macieza da cama dos guias”, escreveu. Publicou relatos das suas aventuras, fazendo “mais pela promoção das montanhas através de artigos para revistas e fotograi as do que possivelmente qual-quer outro autor vivo”, segundo o jornal “Banf ”, dessa época. Mary começou também a interessar--se por desenho botânico e publicou um conjunto de ilustrações em cinco volumes.

Não era suposto que os quakers vitorianos se dedicassem a tais frivolidades como a arte pelo simples gosto pela arte, mas nas fotografias a preto e branco captadas pelos Vaux da paisagem montanhosa, há uma atenção inegável à compo-nente estética. “Eram quakers liberais”, comenta Henry Jr. Talvez “i zessem arte sob o pretexto da ciência”, diz. Foi este aspecto das suas imagens que o fez retomar a obsessão dos seus antepassa-dos por Yoho um século mais tarde. Desde 1997, passa quase um mês no local todos os verões, ten-tando recriar 50 das imagens mais belas dos Vaux com a sua máquina fotográi ca de médio formato. São as suas próprias “fotograi as de teste”.

Yoho é pequeno e terá um quinto do tamanho

do adjacente Ban� . No entanto, o seu nome,

a expressão cree para demonstrar espanto, indica

a densa concentração das suas maravilhas.

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Na região ocidental de Yoho, a loresta alpina cede o lugar a peculiares totens de pedra, as chaminés de fada. São particularidades geológicas formadas quando a chuva e o vento esculpem rocha sedimentar macia encimada por pedra dura.

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national geo graphic Junho

Podemos então agora identiicar o que mudou em Yoho, com a autoridade de um cientista ama-dor, no último século: surpreendentemente pou-co. Agora há aviões no céu. Os glaciares recuaram mais. “O que me surpreendeu mais foi quão pou-co tudo o resto mudou”, diz Henry Jr. Refere-se à fotograia recente na cascata Laughing, a poucos quilómetros de Takakkaw. “Poderia pô-la no chão ao lado da que eles tiraram e não conseguiríamos distinguir qual era a antiga.”

No vale de Yoho, naquela manhã de Agosto, encontrei-me com um guia junto da base da cascata Takakkaw. Ziguezagueámos pela en-costa acima e irrompemos na zona alpina ime-diatamente a seguir à passagem de Yoho, a 300 metros de altitude. Enquanto atravessávamos as encostas íngremes cobertas de cascalho da mon-tanha de Wapta, uma vasta bacia abriu-se diante dos nossos olhos, emoldurada pelos glaciares e pelos picos altíssimos da cordilheira President. O deslumbrante lago Emerald vislumbrava-se em baixo. A pedreira e o acampamento Walcott, onde Charles e Mary permaneciam meses a io, icavam mesmo adiante.

“Das redondezas do acampamento da passa-gem Burgess, desfrutavam-se os panoramas mais belos e diversiicados, que mudavam de hora a hora consoante as diferentes condições atmosfé-ricas”, escreveu Charles nesta revista em Junho de 1911. Até ele, o grande paleontólogo, não icou imune à estética de Yoho. Foi também aqui que Charles captou uma das primeiras fotograias pa-norâmicas publicadas na revista. “A panorâmica do Sr. Walcott é a perspectiva de montanha mais maravilhosa que alguma vez publicámos”, escre-veram os editores. Em privado, porém, Charles admitia que Mary era melhor fotógrafa do que ele.

Ainda estávamos na jazida de fósseis quando o Sol se pôs. Gostaria de lhes dizer que passámos horas no local examinando as trilobites, relec-tindo sobre a evolução e o papel do acaso. Mas icámos sobretudo sentados em silêncio, a ver a luz cor de laranja que banhava a bacia. Depois, dos nossos bolsos saíram telemóveis e máquinas fotográicas digitais e, em nome da ciência, ize-mos aquilo que os visitantes destas montanhas naturalmente fazem. j

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Montanhas austeras em redor do lago McArthur revelam a história da Terra em camadas de pedra, uma das razões que levaram Charles Walcott a considerar Yoho “o paraíso de um geólogo”.

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Cercado por juncos, o lago Emerald relecte o céu azul e o cume nevado do pico Michael, ladeado por bosques (à esquerda). Os raios do im da tarde sulcam o campo gelado de Wapta (em baixo, à esquerda), um conjunto de glaciares ao longo da Divisória Continental. A cascata Takakkaw (à direita), uma das mais altas do Canadá, apresenta-se parcialmente congelada numa tarde de Março.

national geo graphic Junho

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Durante milénios, o mar de Aral foi uma das maiores superfícies

interiores de água do planeta. Localizado entre o Cazaquistão

e o Usbequistão, a sua decadência vale como aviso global.

Pecados do mar de Aral

No Cazaquistão, um sector do antigo leito marinho transformou-se numa depressão salgada, poluída por substâncias químicas utilizadas no cultivo do algodão.

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 “Écom isto que o im do mundo se pa-rece”, diz Yusup Kamalov, varrendo num gesto a paisagem coberta de arbustos que se espraia diante dos nossos olhos. “Se alguma vez acon-

tecer o Armagedão, o povo do Karakalpakstão será o único a prevalecer, porque já está a vivê-lo.”

Do alto de uma falésia arenosa nesta região do Norte do Usbequistão, com um nome tão prová-vel que poderia provir de uma banda desenhada de Hergé, o panorama poderia ser o de quase qualquer deserto, excepto pelos montes de con-chas marinhas e barcos de pesca em seco, enca-lhados, enferrujando sobre a areia. Este lugar foi, antigamente, a ponta de uma península que entra-va pelo mar de Aral. Até à década de 1960, era a quarta maior superfície de água do mundo, abran-gendo cerca de 67 mil quilómetros quadrados. Atrás de nós, situa-se a vila de Muynoq, uma antiga aldeia piscatória próspera com uma gran-de indústria conserveira que, na década de 1980, enlatava milhares de toneladas de peixe por ano. Há 50 anos, a costa meridional do mar de Aral localizava-se exactamente onde hoje pomos os pés: agora, ica 90 quilómetros para noroeste.

Yusup trouxe-me aqui para eu ver o que resta-va de um mar outrora rico. Este investigador especialista em energia eólica da Academia das Ciências do Usbequistão é, aos 64 anos, um ambientalista militante. Preside à União para a Defesa do Mar de Aral e do Amu Darya e des-cende de uma inluente família usbeque: o seu pai

foi um historiador famoso na era soviética e o avô foi o último khan (chefe) eleito da república semiautónoma do Karakalpakstão, antes de esta ser integrada na República Soviética Socialista do Usbequistão durante a década de 1930.

O seu país ainda não possui um único parque eólico, mas isso não fez esmorecer o entusiasmo de Yusup pela sua área profissional de eleição A obsessão pelo vento levou-o a construir duas asas-delta, com as quais costuma voar para melhor compreender as correntes atmosféricas.

“Quero conhecer o vento tão bem como uma ave”, afirma. Mas os seus interesses abrangem todas as componentes do ambiente: por isso, Yusup pôs de lado a sua investigação para me mostrar o que resta hoje de uma antiga massa de água cheia de vida e sobretudo o rasto que as águas em retrocesso deixaram para trás.

O mar de Aral está implantado entre o Ca-zaquistão e o Usbequistão e, durante milhares de anos, foi alimentado por dois rios – o Amu Darya e o Syr Darya. Sem escoamento, o nível das águas do mar era mantido graças a um equilíbrio natural entre o aluxo de água e a sua evaporação.

Durante séculos, o mar de Aral e os seus deltas asseguraram o sustento de uma miríade de povoa-dos distribuídos ao longo da Rota da Seda, que unia a China à Europa. Estas antigas populações de tajiques, usbeques e cazaques e outros grupos étnicos prosperaram como agricultores, pesca-dores, pastores, mercadores e artesãos.

Texto de Mark SynnottFotografias de Carolyn Drake

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No Museu Histórico de Aral, no Cazaquistão, está exposta uma carpa, uma das espécies desapareci-das na década de 1980, quando o mar de Aral encolheu e se dividiu em dois. Do lado cazaque, uma barragem restaurou algumas populações de peixe. Do lado usbeque, só subsistem invertebrados.

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Um homem poda um ulmeiro em Kazanketken, no Usbequistão. Estas árvores, resistentes à seca, ainda ladeiam algumas das valas de irrigação que realizavam os transvases dos rios Amu Darya e Syr Darya para as explorações de algodão.

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U S B E Q U I S T Ã O

T U R Q U E M E N I S T Ã O

TAJIQUISTÃO

QUIRGUÍZIA

C A Z A Q U I S T Ã O

ral meridiação de sup

Amu

Darya

S

y r Darya

Nukus

Aral

Muynoq

Daşoguz

Qozonketkan (Kazanketken)

UrganchTashkent

Dushambe

Tastubek

BARRAGEMKOKARAL

Kubla-Ustyurt

AqbastyÁREA DAIMAGEMDE CIMA

Linhacosteira de 1960

IlhaVozrozhdeniya

QORAQALPOGISTON (KARAKALPAKSTÃO)

Adelunga Toghi4.301 m

1977 1987 1998

ÁSIA

EUROPA

ÁFRICA

ÁREAEM DESTAQUEEM BAIXO

Em quatro décadas

Os cazaques e os usbeques seguiram rumos divergentes a partir de 1987, quando o mar de Aral se dividiu em duas metades. A i nalização da barragem de Kokaral, no Cazaquistão, em 2005, agravou a separação, revitalizando o mar setentrional, mas isolando o mar meridional do rio Syr Darya. Em 2014, o lado oriental e menos profundo do mar de Aral meridional secou por completo.

IMAGENS DE SATÉLITE: USGSRYAN MORRIS

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Mar de Aral

A situação alterou-se quando a República Soviética Socialista dos Usbeques passou a fazer parte do então frágil império soviético, na década de 1920, e Estaline decidiu transformar estas repú-blicas da Ásia Central em gigantescas plantações de algodão. O clima árido desta zona do planeta está mal talhado para acolher uma cultura tão sedenta de água e os soviéticos desenvolveram um dos mais ambiciosos projectos de engenharia da história mundial, escavando à mão milhares de quilómetros de canais de irrigação para trans-vasar as águas do Amu Darya e do Syr Darya para o deserto circundante.

“Até ao início da década de 1960, o sistema manteve-se estável”, explicou Philip Micklin, quando o contactei por telefone. Professor de geograi a na Universidade de Western Michigan, Philip passou a sua carreira a estudar questões associadas à gestão dos recursos hídricos na anti-ga União Soviética. Realizou cerca de 25 viagens à Ásia Central. Ao longo dos anos, foi assistindo, em primeira mão, à destruição do mar de Aral. “Quando, na década de 1960, acrescentaram ain-da mais canais, aconteceu a proverbial gota de água que fez transbordar o copo”, ai rmou. “De repente, o sistema deixou de ser sustentável. Os engenheiros sabiam bem o que faziam, mas não tinham consciência das consequências ecológicas em toda a sua amplitude, nem da rapidez com que o mar desapareceria.”

Em 1987, o nível das águas baixou drastica-mente, dividindo o mar em dois: um mar seten-trional, localizado no Cazaquistão, e um mar meridional, nas fronteiras do Karakalpakstão. Em 2002, o mar meridional ficou tão baixo que se dividiu em mares oriental e ocidental. No passado mês de Julho, o mar oriental secou por completo.

A única luz brilhante nesta triste saga é a recu-peração recente do mar setentrional. Em 2005, após i nanciamento do Banco Mundial, os caza-ques i nalizaram a construção de uma barragem de 13 quilómetros na margem sul do mar seten-trional, criando assim uma superfície de água totalmente distinta, alimentada pelo Syr Darya. Desde a construção da barragem que o mar seten-trional tem recuperado mais depressa do que se previa. Mas a barragem separou o mar meridional das suas fontes de abastecimento de água, tornan-do o seu destino dei nitivo.

“O aspecto mais frustrante da tragédia do mar de Aral é que os funcionários soviéticos do Minis-tério dos Recursos Hídricos que projectaram os canais de irrigação sabiam que o estavam a con-denar”, ai rma Yusup. Entre as décadas de 1920 e 1960, os funcionários costumavam citar o mais famoso climatologista da Rússia, Alexander Voeikov, que certa vez se referiu ao mar de Aral como “evaporador inútil” e “erro da natureza”. O senso comum soviético dessa época entendia que as culturas agrícolas valiam mais do que o peixe.

2006 2010 2014

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Cada um destes barcos costumava capturar toneladas de peixe todos os anos. A frota tem enferrujado perto do antigo porto usbeque de Muynoq desde que o mar de Aral secou aqui, na década de 1980.

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Um pescador cazaque é carregado às cavalitas para um barco (em cima) em Tastubek, no sector setentrional do mar de Aral. Graças a uma barragem, a pesca ainda é possível nesta zona, mas, na aldeia usbeque de Kubla-Ustyurt, onde o mar quase desapareceu, os aldeãos que viviam da pesca dependem agora da caça, com restrições, para obter rendimento (em cima, à direita).

E as colheitas do algodão subsistem até aos dias de hoje. Todos os outonos, cerca de dois dos 29 milhões de cidadãos do Usbequistão oferecem-se como “voluntários” para a safra de três mil milhões de quilogramas da cultura nacional de algodão. O país encerra praticamente as portas, enquanto funcionários públicos, crianças em ida-de escolar, professores, médicos, enfermeiros, engenheiros e até cidadãos idosos são conduzidos aos campos para colher a sua quota diária.

“O Usbequistão é um dos únicos lugares que conheço no mundo onde os trabalhos forçados são organizados e impostos, com o próprio pre-sidente a actuar como responsável máximo pelo tráico”, airmou Steve Swerdlow, director do gabi-nete da Human Rights Watch para a Ásia Central.

Yusup volta-se para trás, enquanto fala no ban-co da frente do nosso Land Cruiser. “Consegue imaginar uma profundidade de 30 metros há 40 anos aqui mesmo?”

O nosso motorista aponta na direcção de uma espessa nuvem castanha que atravessa o deserto soprando. Poucos segundos depois, vemo-nos envoltos numa poeira nociva que rapidamente se iniltra na viatura. O pó aguilhoa-me os olhos e consigo sentir o sabor do sal pesado, que me enjoa instantaneamente até às profundezas do estômago.

Este remoinho é apenas uma das muitas con-sequências ecológicas que os responsáveis sovié-ticos pelo planeamento não puderam prever. “Os peritos em geoquímica pensaram que, à medida que o mar secava, uma crusta dura de cloreto de sódio se formaria sobre a superfície e nunca mais aconteceriam tempestades de sal”, contou Philip Micklin. “Enganaram-se redondamente.”

Além dos níveis tóxicos de cloreto de sódio, a poeira apresenta-se impregnada de pesticidas, muitos dos quais carcinogénicos. As substâncias químicas infiltraram-se em todos os níveis da cadeia alimentar.

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Mar de Aral

Na actualidade, registam-se em Karakalpaks-tão níveis de cancro esofágico 25 vezes superiores à média mundial. A tuberculose multirresistente constitui um problema grave e as doenças respi-ratórias, os cancros, as anomalias congénitas e as doenças do foro imunológico generalizaram-se.

Talvez mais assustadora ainda seja a revelação de que no mar de Aral esteve instalada, em tem-pos, uma unidade secreta soviética de testes com armas biológicas. Localizada na ilha Vozrozhde-niya, a unidade era o principal local de testes do Grupo de Guerra Microbiológica das Forças Armadas soviéticas. Dezenas de milhares de ani-mais foram transportados para a ilha, ali sendo infectados com carbúnculo, varíola, peste bubóni-ca, brucelose e outros agentes biológicos.

Temendo que contentores enferrujados de car-búnculo pudessem cair nas mãos erradas, o Departamento de Estado dos EUA enviou para o local uma equipa de limpeza em 2002. Desde

então, não foram encontrados na poeira quais-quer agentes biológicos, mas a região circundan-te é esporadicamente afectada por surtos de peste bubónica.

À medida que avançamos rumo ao mar, pas-samos por dezenas de plataformas de extracção de petróleo e gás espalhadas pelo terreno que, de outro modo, seria um deserto de areia esbranqui-çada pelo sol, quebradiço e liso como uma pan-queca. Segundo Yusup, as plataformas foram instaladas logo que o mar começou a regredir e todos os anos são construídas mais. “Como é óbvio, elas representam um importantíssimo incentivo para que o governo nada faça para o reenchimento do mar”, airma.

Viajamos horas a io aos solavancos sobre os rodados abertos pelos pneus na terra batida. Além da areia branca e do céu azul, as únicas cores que consigo distinguir são o verde-pálido e o cor- -de-rosa dos arbustos esporádicos.

Os funcionários soviéticos costumavam citar o climatologista Alexander Voeikov, que chamava ao mar de Aral “erro da natureza”.

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Aldeãos celebram um casamento em Tastubek, onde as condições de vida estão a melhorar. A barragem de Kokaral produz energia eléctrica e o peixe está de volta. As fazendas de criação de camelos, que substituíram os arrastões há 35 anos, impulsionam a economia local.

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Por im, uma linha prateada brilha no horizon-te, crescendo até alcançarmos um acampamento chinês composto por várias iurtas, instalado na orla do mar. Os chineses encontram-se aqui para pescar um tipo de camarão-de-salmoura que é agora a única criatura viva remanescente no mar. Quando o mar de Aral era rico, as suas águas salo-bras tinham um nível de salinidade de dez gramas por litro (a média do oceano oscila entre 33 e 37 gramas por litro). Hoje, a salinidade ultrapassa 110 gramas por litro, tornando o mar mortífero para todos os peixes.

Perto da orla costeira, a areia lamacenta mos-tra-se húmida, como a de uma praia na vazante. Mas no mar de Aral não existem marés percep-tíveis: o que vemos, em rigor, é o mar a recuar diante dos nossos olhos.

“Faça o que fizer, não pare”, grita Yusup, enquanto caminha através da areia movediça que lhe dá pelos joelhos, vestindo apenas a roupa inte-

rior. Arrasto penosamente os pés no seu encalço, até que a água me chega aos joelhos. Tento nadar, mas as pernas icam a boiar e é impossível bater os pés. “Vire-se de costas e ique assim, nada mais”, airma Yusup. Faço como ele diz e tenho a sensa-ção de estar em cima de um colchão de piscina. A minha cabeça repousa sobre uma almofada de água. Mal consigo romper a superfície.

Nessa noite, acampamos no planalto e cozi-nhamos o jantar numa fogueira. Sentado sobre um tapete persa, de olhar pousado ao longe, no mar, Yusup vai servindo shots de vodka.

Quando o mar era saudável e os pescadores navegavam pelas águas férteis, a humidade eva-porava todos os dias. “Agora, em vez de vapor de água, há poeira tóxica na atmosfera”, diz Yusup.

Desde a derrocada da União Soviética cinco países desentenderam-se sobre a gestão do recur-so mais precioso da região. Para complicar a situa-

Em Aqbasty, no Cazaquistão, um aldeão banha-se numa nascente de águas termais (em cima), uma das poucas fontes de água subsistentes após décadas de irrigação e evaporação. Antigamente, Aqbasty icava na orla costeira do mar de Aral. Agora, situa-se onze quilómetros para o interior. Muynoq, no Usbequistão (à direita), sofre mais. O mar recuou, a vegetação não retém o solo e as tempestades de areia são vulgares.

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Mar de Aral

ção, os rios Amu Darya e Syr Darya seguem os seus cursos através de vários países e cada um reivindica a propriedade das águas que percorrem o seu território. Na esperança de resolverem o problema crónico de escassez de água da Ásia Central, em 1992, o Tajiquistão, o Cazaquistão, o Usbequistão, o Turquemenistão e a Quirguízia constituíram a Comissão Intergovernamental para a Coordenação dos Recursos Hídricos. Os debates tendem a centrar-se em torno de duas questões centrais: quem é o dono da água e que responsabilidades têm os países a montante de proteger o recurso para os países a jusante?

No caso do mar de Aral, os habitantes do Karakalpakstão, não têm aparentemente o direi-to de se exprimir quanto ao destino das águas do Amu Darya a montante, uma vez que outros paí-ses as reivindicam para si. “Trata-se de discrimi-nação causada pela localização geográica”, airma Yusup. “Essa água pertence ao Aral.”

Todos os peritos que entrevistei previram que o sector do mar de Aral pertencente ao Usbequis-tão não encherá novamente num horizonte pre-visível na escala temporal humana. Yusup parece conformado com esta constatação.

Odeia as políticas que estão a matar o mar, mas confessa que, quando a safra outonal do algodão chegar, prestará o serviço nacional, à semelhança do que sucedeu em todos os outonos dos últimos 50 anos. Aliás, segundo Steve Swerdlow, se Yusup não se oferecesse como “voluntário”, arriscar-se-ia a ser despedido ou detido. “Ninguém está isento”, diz Yusup. “Até um nonagenário com um olho e uma só perna é obrigado a participar na colheita.”

Quando me mostro reticente por publicar os comentários de Yusup, pergunto-lhe, de novo, se vê algum problema em tornar as declarações oi-ciais. “No Karakalpakstão, temos todos medo de Tashkent”, responde, referindo-se à capital dos Usbeques. “Cá para mim, estou farto disso.” j

“Agora, em vez de vapor de água, há poeira tóxica na atmosfera”, diz Yusup Kamalov, enquanto engole de um só trago um copo de vodka.

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Os pastores vão conduzindo as ovelhas pelas terras ressequidas do Karakalpakstão. O Usbequistão arrenda este território para a agricultura, sobretudo do algodão. “Se eles privatizassem a terra e deixassem os agricultores escolher o que querem cultivar, haveria usos mais eicientes da água”, diz Philip Micklin, especialista em temas desta região.

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O regresso do fantasma

Já foi considerado um caso perdido. Tornara-se até tema de mitos, mas há sinais positivos no horizonte. O lince-ibérico ainda não perdeu a batalha.

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O EMBAIXADOR GAMMAInapto para o programa de reprodução, devido à sua condição genética desfavorável, o macho Gamma (fotografado em cativeiro) foi para o Jardim Zoológico de Lisboa, onde se tornou um embaixador da sua espécie.

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Texto e fotografias de

LUÍS QUINTA

 As nuvens negras toldam a luz e os pin-gos grossos e pesados da chuva não tardam. Os relâmpagos mudam a cor do céu e fazem estremecer a terra. In-diferente à meteorologia, Francisco

Caim, do Clube de Tiro e Caça de Vila Nova de Milfontes, cumpre a tarefa a que tem sido iel há vários anos: veriica metodicamente as câmaras fotográicas remotas que espalhou por uma vasta área da herdade. Procura retratos de um amigo que se habituou a estimar apesar da sua extrema timidez. Será que o Hongo hoje tirou o retrato?

No dia 8 de Maio de 2013, uma das suas câ-maras accionadas por movimento captou uma imagem inédita. Como numa aparição divina, um dos icheiros revelou a silhueta de um lince-ibéri-co, vulto há muito desaparecido da região. Aqui, como noutras zonas de Portugal, o lince tornou-se mitológico, uma criatura quase fantasmagórica. Até o Hongo começar a mostrar-se.

As suspeitas tinham começado em Fevereiro desse ano. Durante uma caçada nos arredores de Milfontes, um cão levantara um animal do ma-tagal que pareceu, naquela fracção de segundo, correspondente à morfologia do lince. Como o olho humano não possui a capacidade de parar e rebobinar, icou a dúvida no espírito.

Em Março, porém, o avistamento de pegadas invulgares reforçou a sugestão de que andaria no território um grande gato. As autoridades foram contactadas e, com mais esforços no terreno, iden-tiicou-se um lince-ibérico – o Hongo.

Resgatado ainda muito jovem de uma charca no Sul de Espanha, o Hongo é um macho nascido em 2011. Foi monitorizado com a ajuda de uma coleira, enquanto a bateria durou. Desde então, caminhou como um fantasma até à orla costeira portuguesa, vencendo obstáculos naturais.

Os cientistas interrogam-se sobre o trajecto que realizou e sobre os factores que o motivaram a ins-talar-se neste território improvável. Os censos de coelhos no território onde o Hongo circulava não eram animadores. O que comeria o lince se a sua presa escasseava? As análises aos dejectos deste macho revelaram que a sua dieta é ainal variada: inclui 80% de coelho, mas chega a abranger 10% de lebre e até alguns micromamíferos ou aves.

Para conhecer melhor o animal, foram ins-taladas quase três dezenas de câmaras remotas. A monitorização por esta via é um exercício de paciência: as fotograias e vídeos bem sucedidos são irregulares. Por vezes, Hongo mostra-se com meses de intervalo. Mas sempre que se obtém uma imagem dele, o sorriso dos envolvidos no projecto, como Francisco Caim, abre-se de orelha a orelha. Hongo vai revelando um aspecto saudável e ro-busto e até já foi visto na zona de Sines, onde nem a imaginação do biólogo mais optimista o previa.

Apesar de raros, os avistamentos deste felino em Portugal vão sendo relatados por agricultores, caçadores e outros indivíduos. Em 2010, Caribu, um lince oriundo de Espanha, também deambu-lou alguns dias por terras de Noudar e Barrancos. São observações como estas no Alentejo profundo que alimentam a esperança de que ainda não é tarde de mais e de que há territórios saudáveis para este animal se manter entre nós.

A de Dezembro de , as nuvens escuras carregam o céu de Mértola, ameaçando estragar com a sua inclemência insolente o programa fes-tivo dos homens. A chuva, porém, contém-se – talvez por decreto. E a Herdade das Romeiras assiste a um momento solene. Na presença de Jorge Moreira da Silva, ministro do Ambiente, e de Miguel de Castro Neto, secretário de Es-tado do Ordenamento do Território e da Con-servação da Natureza, procede-se à libertação dos primeiros dois linces-ibéricos em Portugal. Em rigor, os animais serão para já libertados num cercado de dois hectares construído para o efeito, mas a abundância de câmaras, microfones e de fatos de tailleur em território rural sugere que os holofotes do país se voltaram momenta-neamente para estes dois animais que, no inte-rior de jaulas, certamente assustados por todo o ruído, parecem demasiado pequenos para a responsabilidade que lhes cabe.

Enquanto permanecem em ambiente controlado, os felinos são monitorizados por técnicos do Insti-tuto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e são alimentados com coelhos bravos trazi-dos de parques de criação pela IBERLINX, um con-sórcio de autarquias, empresas e institutos públicos

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lince-ibérico

O APOIO DA GENÉTICA A este lince com mais de cem anos, pertencente à colecção particular de António Fialho (Herdade das Russia-nas), foram retirados pequenos frag-mentos de uma unha para estudos de genética. Através da recolha de amostras orgânicas de mais de cinco dezenas de animais de colecções públicas e privadas, foi possível cimentar o conhecimento sobre a distribuição histórica desta espécie.

CORTESIA: ANTÓNIO FIALHO

que juntou dinheiro e vontades para que o aconte-cimento desta tarde de Mértola pudesse ter lugar.

A etapa é um pequeno passo num longo pro-grama ibérico para contrariar o carimbo de ex-tinção que já parecia inevitável para esta espécie. Em rigor, os sinais de alarme já tinham soado há muitos anos. Na década de 1970, o biólogo Luís Palma alertou para o decréscimo que ameaçava a espécie. No ano 2000, existiriam, com optimismo, 150 animais em liberdade e, em 2002, a União Mundial para a Conservação da Natureza clas-siicou a espécie como “Criticamente em Perigo”. O censo posterior conirmou o cenário mais dra-mático e o lince parecia seguir o rumo de outros mamíferos que, um pouco por todo o planeta, se esfumam entre os nossos dedos.

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national geographic junho

A porta abre-se com solenidade e o primeiro lince faz jus à reputação de velocista mais rá-pido do que Usain Bolt. Dispara velozmente e refugia-se nos primeiros tufos de vegetação cer-rada que encontra no cercado. Nos dias seguin-tes, reconhecerá metodicamente o seu território provisório. Mas lembrar-se-á ele do que deixou para trás?

Para chegar a este desfecho, implemen-tou-se o Centro Nacional de Reprodução do Lince-Ibérico em Silves, que recorreu ao impres-sionante conhecimento técnico acumulado em Espanha sobre o comportamento reprodutivo da espécie. Jacarandá foi uma das crias nascidas em Portugal em 2012. Desde esse ano zero do projecto, a maternidade high tech instalada na serra de Monchique tem excedido as estimativas. Já nasceram aqui 52 animais.

O sucesso da reprodução – e sobretudo a impressionante taxa de sobrevivência das crias – permitiu acelerar as reintroduções no terri-tório histórico do lince. À data do fecho desta edição, já foram soltos 31 animais em Espanha e três em Portugal. O cercado da Herdade das Romeiras permitiu a libertação condicional de dez linces (cinco machos e cinco fêmeas), o que nos transporta para a segunda metade desta equação: quais as expectativas de que os animais libertados não venham a morrer atrope-lados, envenenados ou abatidos, como sucedeu regularmente desde a década de 1960?

No inal de Março deste ano, um lince tor-nou-se notícia de primeira página e trouxe estas questões de regresso. A fêmea Kayakwero, pro-veniente do segundo lote de animais libertados, foi encontrada sem vida. Dias depois, a necrop-sia comprovou que fora envenenada.

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lince-ibérico

AJUDAR A NATUREZAO Centro Nacional de Reprodução do Lince-Ibérico (à esquerda) foi inaugurado em Outubro de 2009 com16 animais fundadores oriundos deEspanha. Actualmente, este espaçoem Vale Fuzeiros, nos arredores deSilves, é um exemplo de sucessomundial. Já nasceram aqui 52 linces eregistou-se, até à data, a ninhada maisnumerosa: cinco crias.Em cima, uma perspectiva de um doshabitats possíveis para a libertação deanimais – a região de Noudar e Bar-rancos. O lince ocupou em tempos umterritório considerável na PenínsulaIbérica (à direita). A sua recuperaçãotem sido morosa, mas promissora. ESPANHA

PORTUGAL

1

222

5

83

77

66

9

4

1 Algarve-Odemira-Vale do Sado

2 Gata-Malcata-S. Pedro-S. Mamede

3 Sierra Morena Ocidental-Guadiana

4 Alberche

5 Gredos

6 Subbéticas

7 Doñana

8 Sierra Morena Central

9 População central

Distribuição das populações de lince-ibérico

Distribuição (1980)

Distribuição (2010)

Reintrodução

Reintrodução (2015)

FONTE: INSTITUTO DA CONSERVAÇÃO DA NATUREZA E DAS FLORESTAS

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A escolha do vale do Guadiana e da região de Mértola para esta reintrodução seguiu um pro-tocolo internacional que Pedro Rocha, director do Departamento de Conservação da Natureza e Florestas do Alentejo, enuncia: “Proximidade de outras populações; qualidade do habitat (tranquili-dade); densidade de coelhos em extensão; acordos com proprietários; baixo perigo de mortalidade (estradas menos movimentadas), entre outros parâmetros.” A lista é também um lembrete da montanha de obstáculos que o lince tem pela frente.

Estes critérios, já testados em Espanha, foram avaliados noutros locais de Portugal e concluiu- -se que o vale do Guadiana reunia mais condições, começando pelos dez mil quilómetros quadrados de áreas nas quais os proprietários se comprome-teram a não desenvolver práticas desfavoráveis à conservação do lince. É a parte menos mediática do projecto, mas é a mais importante: com esse com-promisso, o território pode albergar trinta a qua-renta territórios de machos. Se tudo correr bem…

Estes prognósticos reservados emergem em quase todas as conversas que mantenho com os especialistas do projecto do lince-ibérico. “Se tudo correr bem”, lembram. Se as doenças que afectam as presas do lince, como a mixomatose e a hemor-rágica viral, acalmarem (no inal da década pas-sada, esta doença vitimou 80 a 99% da população de coelho no território do lince). Se os atropela-mentos e a caça furtiva abrandarem. Se se travar a fragmentação do habitat. E mesmo com todas estas ameaças Hongo, Jacarandá e outros como eles continuam a prosperar.

No ano passado, um artigo na revista Fo-reign Afairs, escrito pelo conservacionista Jon Hoekstra, colocou o dedo na ferida. A inovação tecnológica fornece esperança a quem está no terreno lutando contra a perda de biodiversidade. Da tecnologia de mapeamento de ecossistemas completos às comunicações de satélite para acompanhar a deslocação de espécies fugidias, tudo mudou num piscar de olhos. O lince é um desses casos de sucesso.

As novas tecnologias têm sido essenciais para conhecer melhor os padrões e localizações de cada animal marcado. Escolha um dia e uma hora e os técnicos do projecto conseguirão dizer-lhe em que ponto do território estava cada lince reintroduzido, graças às coleiras colocadas e a um dispositivo que

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lince-ibérico

OBSERVAÇÕES REMOTAS Francisco Caim só viu o Hongo uma vez, mas conhece-o melhor do que ninguém. Todos os dias, veriica as câmaras remotas com a esperança de obter novas imagens do lince. No dia 8 de Maio de 2013, teve uma surpresa.

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Enquanto as libertações vão decorrendo e as reproduções se multiplicam em Silves, uma bióloga escolheu voltar atrás no tempo. Margarida Fernandes trabalha no ICNF e procura conhecer melhor o passado desta espécie na Península Ibérica e concretamente em Portugal. Integra vários grupos de trabalho com o país vizinho com o objectivo de resolver melhor alguns enigmas sobre o território desta espécie.

Há um século, o lince era uma espécie cine-gética e tinha uma população bem estruturada, com ocorrência em quase todo o país. Algumas investigações anteriores sugerem que o animal terá até partilhado território com o lince-europeu, que a tradição medieval apelidava de lobo-cerval.

Margarida Fernandes registu 57 exemplares em colecções museológicas ou privadas portuguesas, recolhendo amostras de unhas sempre que possí-vel, e conseguiu “recuar até ao ano de1880”, diz.

emite um sinal VHF e um logger que produz dados para a rede GSM duas vezes por dia de 12 em 12 horas, com uma vida útil de dois a quatro anos.

O biólogo Pedro Sarmento estuda o lince-ibé-rico há mais de vinte anos e coordena a equipa de monitorização da espécie. Cabe-lhe avaliar a dis-persão dos animais reintroduzidos ao abrigo deste programa . “As soltas de animais serão efectuadas a 5 anos se a mortalidade anual for inferior a 20% e os nascimentos ultrapassarem as perdas”, diz. Passarão a 10 anos “se a taxa de mortalidade for superior a 20% e inferior a 30%. E mortalidades anuais supe-riores a 35 tornariam o programa inviável”, conclui.

Ao contrário do que se poderia imaginar, cada animal não circula livremente para territórios afastados dos rivais. O seu processo de dispersão corresponde ao “efeito mancha de óleo”, pois os animais vão-se organizando em redor do local da libertação e vão ocupando cada vez mais área.

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lince-ibérico

UMA IMAGEM VALE MIL PALAVRASDuas semanas antes de ser solta na natureza, esta fêmea (página anterior), Jacarandá, é examinada por veteriná-rios e recebe uma coleira que vai permitir aos investigadores a monitori-zação dos seus movimentos dia a dia. Em cima, a primeira libertação de um lince foi protagonizada pelo secretário de Estado Miguel de Castro Neto, em Dezembro do ano passado. A mediati-zação deste acto simbólico expressa a singularidade das metas de conser-vação previstas para o lince.

Em escavações arqueológicas, já foram encon-trados vestígios osteológicos de linces com mais de oito mil anos e, na gruta do Caldeirão, “foi identiicada a presença de lince com 27 mil anos, altura em que a espécie convivia com hienas e leões”, recorda a bióloga. Com os dados dos es-tudos da Estação Biológica de Doñana em mente, Margarida sumariza que “os estrangulamentos ge-néticos, que debilitam seriamente a sobrevivência da espécie, terão ocorrido ao longo dos muitos séculos de existência do Lynx pardinus e não são um fenómeno recente do século XX”. Por outras palavras, está tudo em aberto no futuro do lince e não há uma bola de cristal que garanta a sua sobrevivência ou condenação.

No fundo, resta continuar a abrir a porta das jaulas da Herdade das Romeiras e esperar que cada animal que dali saia preserve a pegada do lince no território português. j

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Olhos penetrantes

 Oolho é um órgão de per-feição extrema. Interes-sa-me muito a evolução e as adaptações assom-brosas que os olhos de-

senvolveram ao longo do tempo. Este efemeróptero é um macho com olhos muito ampliados no topo da cabeça, que tem o formato de um turbante. O macho serve-se destes olhos para localizar a silhueta da fêmea à luz ténue do crepúsculo. Ele nem sequer possui uma boca funcional. Quando se vive apenas um dia, como normal-mente sucede aos machos adultos, não é preciso comer. Mas são necessá-rios olhos magníficos para descobrir uma fêmea antes de morrer.

Sou investigador oncológico, mas também trabalho em fotograia cientí-ica com o pseudónimo “Micronauta”. “Micro” porque me especializei na foto-grafia de objectos ínfimos com um microscópio de varrimento electrónico na Faculdade de Ciências da Vida de Muttenz (Suíça). “Nauta” porque me sinto um astronauta quando trabalho com o microscópio. O dispositivo de varrimento cria imagens a preto e bran-co que podem levar uma semana em processos de melhoramento de cor. Este tipo de investigação não é só cientiica-mente importante. É também belo. j

Texto e fotografias de

MARTIN OEGGERLI

Adaptados a fraca luminosidade, olhos como estes conhecem-se apenas em alguns machos de efemerópteros.

NOTAS DIÁRIO DE UM FOTÓGRAFO nationalgeographic.pt

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A mosca-da-fruta possui um olho composto, com lentes autónomas que lhe conferem uma visão semelhan- te a uma grelha. Os cientistas suspeitam que as cerdas sirvam para proteger as lentes (desprovidas de pál- pebras) da sujidade e partículas.

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O escorpião-dos-livros possui um conjunto primitivo de olhos equipa-dos com um número reduzido de receptores. Noutras espécies de pseudo-escor-piões, os olhos externos são inexistentes. Os receptores são utilizados mesmo abaixo da pele para detectar a luz.

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As aranhas da família salticidae

possuem oito olhos, que lhes permitem uma visão de 360 graus. As retinas dos seus olhos ajudam-nas a calcular distân- cias. Estes peque- nos predadores conseguem saltar numa extensão dez vezes superior ao seu tamanho.

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Uma abordagem polida sobre o amor e a luxúria no reino animal

Instinto básico

JOEL SARTORE, NATIONAL GEOGRAPHIC CREATIVE

HABITAT/DISTRIBUIÇÃOFlorestas de Madagáscar.

ESTATUTOO lémure é o mamífero maisameaçado do planeta.

OUTROS FACTOSNove espécies de lémures sãoconhecidas por sifakas devido aosom que produzem quando sesentem em perigo.

Os lémures têm origem num dos mais antigos ramos da árvore geneológica dos primatas: os seus antepassados viveram no Eocénico há 55 milhões de anos. Evoluíram durante milhares de anos, modificado comportamentos e refinando os sistemas sociais. E onde é que tudo isso os levou? À supremacia feminina.

Embora o matriarcado seja raro entre os primatas, a dominância feminina é a norma para a maior parte das espécies de lémures, nomeadamente para o Propithecus coquereli (em baixo). Até mesmo as fêmeas mais jovens podem im-por-se aos machos. As fêmeas são também as primeiras a escolher os alimentos e locais de descanso, diz Chris Smith, do Centro de Lémures de Duke. “Já vimos fêmeas roubando comida da boca de machos. E se este estiver no ponto enso-larado que ela deseja, a fêmea dirige-se para lá, e o macho afasta-se com um ca-carejar submisso.” Se um macho desagradar a uma fêmea ela pode empurrá-lo, esbofeteá-lo e até mesmo arrancar-lhe pedaços de pêlo. No breve período anual em que querem acasalar, as fêmeas são “pequenas manipuladoras”, diz Lydia Greene, da Universidade Duke. “Elas controlam por completo com quantos e com que machos querem acasalar.”

Em Madagáscar, a desflorestação e as queimadas destruíram 90% do seu ha-bitat. Das 103 espécies e subespécies de lémures sobreviventes, 20 são “Vulnerá-veis”, 49 estão “Em Perigo” e 24 “Criticamente em Perigo”. — Patricia Edmonds

A menina é que manda

Se um macho desagradar a uma fêmea, ela pode empurrá-lo, esbofeteá-lo e até arrancar-lhe pedaços de pêlo.

Este lémure da espécie Propithecus coquereli

foi fotografado no Zoológico de Houston.

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DE CIMA PARA BAIXO: LUÍS QUINTA; ANTÓNIO LUÍS CAMPOS; ROBERT F. SISSON/NATIONAL GEOGRAPHIC CREATIVE

9 ilhas, 9 mesesDurante nove meses, entre Maio eJaneiro do próximo ano, os Açoresserão desvendados em fotografiapor António Luís Campos napágina www.cronicasdaatlantida.org. Será uma imagem por dia,uma ilha por mês, da maior àmais pequena, de leste para oeste.Com apoio da agência Nomad eda edição portuguesa da NationalGeographic, esta será uma jornadavisual pelas nove ilhas, com oquotidiano das suas gentes comofio condutor.

CRÓNICAS DA ATLÂNTIDA

Através de fotograia, multimédia e escrita, o fotógrafo António Luís Campospropõe-se registar o quotidiano da cultura açoriana para lá dos estereótipos.

REPORTAGEM ESPECIAL

Junto do linceO repórter Luís Quintaacompanhou a preparação dafêmea Jacarandá para a libertaçãono vale do Guadiana. “Para entrarna sala de operações, tive de meequipar a rigor, com fato e botasespeciais para o efeito”, conta.A presença de um felinoclassificado como “Criticamenteem Perigo” na maca foi ummomento de tensão e ansiedadepara todos. “Só respirámos quandotodas as intervenções terminarame o lince despertou”, diz.

Jacarandá tem sobre si uma pesada responsabilidade. A sua libertação – e a deoutros linces – constituem uma das últimas hipóteses de conservação da espécie.

Os nossos repórteres em missão, procurando histórias que mais ninguém conta

NGS em acção

Eco da históriaO director da edição portuguesa da National Geographic, Gonçalo Pereira, lançou o livro “Parem as Máquinas!”, um volume com rela-tos sobre episódios memoráveis do jornalismo português, incluindo a odisseia em torno da erupção do vulcão dos Capelinhos em Setem-bro de 1957 (à esquerda).

LIVRO

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No baúCom Bill Bonner, arquivista da National Geographic

SERVIÇOS FLORESTAIS DOS EUA/NATIONAL GEOGRAPHIC CREATIVE

A plataforma na copa pro-porcionava uma perspectiva abrangente ao vigilante da na-tureza na Floresta Nacional do Monte Shasta, na Califórnia, em 1924. Mas como conse-guiu ele subir tão alto?

“As primeiras torres foram construídas com os materiais disponíveis”, explica Cheryl Oakes, da Sociedade Histórica Florestal. “Porém, esta pla-taforma estava junto de uma estufa e talvez algum metal ali disponível tivesse sido usado”.

A detecção precoce de incêndios tornou-se uma prioridade para o Serviço Florestal dos EUA depois de as chamas terem consumido três milhões de hectares em Idaho, Montana e Washington em Agosto de 1910. O incên-dio lorestal de dois dias, que icou conhecido como o “Big Blowup” [A grande explosão], ainda é considerado o maior da história do país.

— Margaret G. Zackowitz

Olhar vigilante

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DE CIMA PARA BAIXO: © DR. PHILLIP MANNING; © NATIONAL GEOGRAPHIC CHANNELS/GEORGE VERSCHOOR; © CINTV/LUIS MIGUEL RUIZ GORDON

Wild Menu

Dias de semana,8 a 24 de Junho, às 19h

Segunda temporada

do programa de

construção mais puro

e duro jamais emitido.

Vinte e seis episódios para

descobrir as propriedades

nutricionais de refeições

inesperadas.

A empresa escolhida trabalha há 25 anos com a indústria cinematográica e televisiva, com participações nas sagas da “Guerra das Estrelas” e de James Bond.

Durante anos, os paleontólogos tentaramjuntar as peças para conseguir formar umaimagem consistente de um dos maiorescarnívoros de sempre. Agora, pela primeiravez, o inimaginável vai acontecer: umaautópsia completa a um dinossauro. Nesteprograma, tentaremos descobrir o quecomeu na última refeição, como funcionava a estrutura interna do olho, a morfologia dos genitais e do coração. Cirurgiões, veterinários e especialistas em anatomia, em articulação com a empresa Crawley Creatures, tentarão construir o primeiro T. Rex anatomicamente correcto.

Autópsia ao T. Rex7 de Junho, às 22h10

National Geographic na televisãoProcure a programação completa em natgeotv.com/pt

Construção em

Estado Selvagem 2

5.as feiras, às 22h10

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RENA EFFENDI

O legado de GandhiO espírito de Mahatma Gandhi continua vivo numa Índia em constante transfor-mação. Os ensinamentos do homem que mudou o destino do país inspiram hoje aqueles que trabalham para melhorar a justiça e a igualdade numa nação dividida.

Missão a PlutãoNo dia 14 de Julho, está previsto que a New Horizons, uma sonda da NASA, atinja o planeta-anão. Os dados recolhidos pela missão poderão revelar os segredos de um dos últimos conins inexplorados do nosso sistema solar.

A marijuana em debateA legalização da marijuana em vários países do mundo avivou o debate cientíico sobre os seus benefícios e inconvenientes. De que forma o consumo afecta realmente o nosso organismo e quais são os seus possíveis usos terapêuticos?

O banquete das orcasNa hora de comer, as orcas colaboram para rodear cardumes de arenques até os encurralarem, forçando os peixes a formar grupos compactos mais fáceis de controlar.

Ammaia, cidade romana Duas décadas depois das primeiras escavações organizadas em Ammaia, nos arre- dores de Marvão, a cidade romana continua a desaiar a imaginação. Projectos de geofísica, escavações arqueológicas e novos métodos de “ler” epigraias produzem resultados todos os dias. E ainda só está escavada uma ínima parte da cidade.

Liberta das tarefas agrícolas, Geeta Bhen tece um sari para uma mulher da cooperativa de Sinhol, no estado indiano de Guzerate, inspirada pelo pensamento de Mahatma Ghandi.

Julho 2015PRÓXIMO NÚMERO

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À VENDADIA 18 DE JUNHO

EDIÇÃOESPECIAL N.º 3

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