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Nicol Ljubić Ein Mensch brennt Uma pessoa em chamas Dtv Verlag, Munique, 2017 ISBN 978-3-423-281-300 Excerto traduzido por Paulo Rêgo E-mail: [email protected] Páginas 7-14 | 179-183 | 194-199

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Page 1: Nicol Ljubić - Goethe-Institut€¦ · Texto: © 2017 dtv Verlag Tradução: © 2019 Paulo Rêgo Nicol Ljubić Ein Mensch brennt Uma pessoa em chamas Dtv Verlag, Munique, 2017

Texto: © 2017 dtv Verlag Tradução: © 2019 Paulo Rêgo

Nicol Ljubić

Ein Mensch brennt

Uma pessoa em chamas

Dtv Verlag, Munique, 2017

ISBN 978-3-423-281-300

Excerto traduzido por Paulo Rêgo

E-mail: [email protected]

Páginas 7-14 | 179-183 | 194-199

Page 2: Nicol Ljubić - Goethe-Institut€¦ · Texto: © 2017 dtv Verlag Tradução: © 2019 Paulo Rêgo Nicol Ljubić Ein Mensch brennt Uma pessoa em chamas Dtv Verlag, Munique, 2017

Texto: © 2017 dtv Verlag Tradução: © 2019 Paulo Rêgo

[Págs. 7-14]

Nas semanas que se seguiram a Fukushima, a minha mãe sentiu manifestamente

a necessidade de falar comigo a respeito de Hartmut. Hoje é para mim claro que estava

a despedir-se, mas de um modo diferente daquele que me deu a entender. Ao contrário

do que eu esperava, não era de Hartmut que estava a despedir-se, mas sim da vida. No

entanto, só mais tarde me apercebi disso. Ela sabia bem que a única possibilidade de

conquistar a minha boa vontade para com Hartmut era criar em mim a expetativa de,

desse modo, conseguir de uma vez por todas livrar-me dele. Depois de Hartmut ter

sido referido em diversos jornais, achei que a minha mãe alcançara o seu objetivo ou

que poderia, pelo menos, convencer-se de tê-lo alcançado. Assim, interpretei o facto de

ela me querer falar acerca dele como uma vontade de desembaraçar a sua alma daquele

peso, para se poder libertar e dedicar a uma vida para lá de Hartmut. Foi só por isso

que aceitei. Afinal, e é surpreendente que não me tenha apercebido disso logo, a minha

mãe apenas queria garantir que eu estaria bem preparado para assumir o legado que

ela iria deixar-me. E aqui estou eu agora, sentado diante de todas as pastas e

recordações, e bem poderia tentar libertar-me de tudo isso, porém ainda nem sequer

consegui começar por deitar fora a papelada. Não sei como me desembaraçarei das

recordaçõesmuito menos depois de a minha mãe me ter habilitado como herdeiro

único e universal de tudo o que respeita a Hartmut. A tentativa de passar tudo a escrito

é uma forma de conseguir ultrapassá-lo e de, ao mesmo tempo, cumprir a obrigação

que, sem sequer me perguntar, a minha mãe me impôs. Ainda que a história daí

resultante venha a ser diferente da que a minha mãe tinha em mente e mesmo que ela

viesse a ficar desiludida por esta minha história não servir propriamente o propósito

de exibir qualquer heroicidade. O facto de a minha mãe já não estar viva permite-me

escrever com maior liberdade, pois não preciso de recear a sua perspetiva das coisas, a

sua crença incondicional na verdade — como se em relação a Hartmut houvesse apenas

uma única verdade. Prefiro, porém, fiar-me nas minhas recordações e na fantasia; a

possibilidade de que as coisas tenham sido ditas tal como as recordo constitui para

mim verdade suficiente.

Hartmut, há que reconhecê-lo, acertara. Previra a catástrofe. Trinta e três anos

depois de ele se ter autoimolado ou, para ser mais exato, trinta e três anos e um terço

— como, de resto, a minha mãe fizera notar —, a terra tremera no Japão e desencadeara

uma catástrofe.

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Texto: © 2017 dtv Verlag Tradução: © 2019 Paulo Rêgo

Trinta e três e um terço. Era mais do que uma mera previsão. O três é o número

do divino, basta pensar na Santíssima Trindade! Não poderia ser uma coincidência.

Hartmut tinha um dom que, não sendo propriamente divino, seria pelo menos

profético. Fora assim que, ao longo de toda a sua vida, a minha mãe entendera a

situação — tendo sido, provavelmente, a única —, mas a catástrofe de Fukushima em

março de 2011 veio confirmar esse seu modo de ver as coisas. Poder-se-ia achar que,

face a uma situação em que a realidade veio dar-lhe razão, a minha mãe se contentaria

em recostar-se deleitosamente na cadeira da cozinha, saboreando em silêncio o seu

triunfo e acompanhando-o talvez até com um sorriso modesto. A respeito de quem

achasse isso posso afirmar com segurança que nunca conheceu a minha mãe.

Quando a visitei alguns dias após o desastre nuclear, encontrei-a à minha espera

no limiar da porta do seu apartamento. Já com 71 anos de idade e sem se ter muito bem

em pé, a minha mãe estava apoiada com a mão na ombreira. Enquanto me fitava, bem

segura da sua vitória, como quem tivesse acabado de ganhar uma aposta, e antes

mesmo de eu ter podido cumprimentá-la com um abraço, ela tratou logo de dizer o

seguinte:

— Ele bem que sabia! O Hartmut sabia!

E é claro que fora ela a única a ter acreditado em Hartmut e a ver nele mais do

que um doido varrido — era escusado referi-lo expressamente. Talvez até estivesse

certa nessa sua apreciação, mas não consigo simplesmente esquecer tudo o que se

passou durante os anos em que vivemos em função de Hartmut, durante os quais

Hartmut foi a medida de todas as coisas. Que me caiba agora a mim tentar interpretar

o que foi a sua vida será porventura uma ironia do destino, ou talvez só uma espécie de

privilégio reservado a quem nasceu mais tarde.

Nesse dia cumprimentei a minha mãe como sempre o fazia. Pousei as mãos ao de

leve sobre os seus ombros, aproximei a minha face da sua e disse:

— Trouxe bolo, sem ovos nem manteiga nem leite, tal como tu gostas.

«Bolo zebra», assim se chamava aquele bolo, que era cem por cento vegano, como

me assegurara a vendedora, uma jovem com rastas. Resistira ao impulso de lhe explicar

que o bolo não era para mim, mas antes para a minha mãe, uma mulher de 71 anos,

que, por ocasião daquele dia em que ocorrera uma catástrofe de dimensões mundiais,

tinha qualquer coisa para festejar e que, por isso mesmo, me pedira para trazer bolo.

A história que conto acerca de Hartmut é diferente daquela que a minha mãe teria

contado. De início as nossas histórias ainda se assemelhariam, também a dela teria

começado por falar da morte, como se fosse sobretudo a morte que tivesse conferido

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Texto: © 2017 dtv Verlag Tradução: © 2019 Paulo Rêgo

um sentido à vida de Hartmut. Também ela teria referido Helmut Schmidt, que era

então o chanceler federal e tomava pessoas como Hartmut por doidos verdes, tendo já,

antes daquela convenção decisiva que o partido realizou em novembro de 1977,

ameaçado opor-se a qualquer deliberação maioritária que contrariasse a sua política

de energia atómica. Contudo, tínhamos pontos de vista diferentes quanto ao papel que

Helmut Schmidt desempenhou nesta história. A minha mãe estava convencida que

fora a obstinação dele que empurrara Hartmut para a morte e que, por isso mesmo,

recaía sobre Schmidt uma parte da culpa. Já eu via nele um político reacionário, cuja

atuação nada tem que ver com a sua perceção pública, um político face ao qual Hartmut

simplesmente desesperou. Uma interpretação que a minha mãe sempre rejeitou

energicamente. Para ela, não se tratara de um ato motivado pelo desespero. Insistia

que a atitude de Hartmut estava em linha com a de Rudolf Bahro, o dissidente da RDA1,

confiando no efeito de longo prazo daquele tipo de ideias que vão bem até ao cerne de

um problema. Achava que Hartmut abordara as coisas com absoluta seriedade, com

toda a sinceridade e de um modo consequente. Empenhara não só o seu discernimento,

como também a sua existência enquanto cidadão. Quem lhe imputasse ter cedido ao

desespero demonstrava não conhecer o verdadeiro Hartmut; ao considerar que este

cedera à fraqueza humana, estaria a inverter o sentido do seu ato. E, no entanto, só

dificilmente se conseguiria estimar a magnitude desse ato. Fora uma manifestação de

coragem, de convicção e de amor. E então ela transformou Hartmut numa espécie de

segundo Jesus, pois na verdade este dissera: «Ninguém tem mais amor do que quem

dá a vida pelos seus amigos.» Hartmut era assim: «Ele entregou a sua vida por todos

nós», dizia ela. Quase 34 anos volvidos, também isso vejo eu de um modo um pouco

diferente. Na minha versão da história fomos nós que entregámos as nossas vidas por

Hartmut. Não foi tanto a sua vida que ele sacrificou, mas sim as nossas, as vidas

daqueles que — quiséssemos ou não — lhe estavam próximos.

Desde sempre tem sido assim: seja a quem for que conte a minha história, é

inevitável que essa pessoa fique com a impressão de que a minha mãe não estava no

seu perfeito juízo. Uma conclusão que francamente se impõe, mas que ninguém se

atreve a expressar com tal clareza, pelo menos à minha frente. Em vez disso, as pessoas

andam em busca de palavras que lhes permitam, o mais cuidadosamente possível,

parafrasear a conclusão a que chegaram. «Isso soa mesmo trágico» é uma frase que

oiço com frequência. Ou então perguntam-me como foi viver com uma mãe assim.

1 Rudolf Bahro (1935-1997) começou por integrar o SED, o partido do regime da RDA, mas foi-se afastando cada vez mais. Simpatizante da Primavera de Praga, criticou a invasão da Checoslováquia, foi preso, mais tarde amnistiado e por fim deportado para a RFA, onde veio a juntar-se aos Verdes. (N. do T.)

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Perguntam-me pelo meu pai. Houve até quem se deixasse levar pelo entusiasmo e

perguntasse se a minha mãe já alguma vez recebera tratamento; e como se eu pudesse

ter entendido mal o que estava a tentar dizer, acrescentou ainda: «Não me refiro a um

médico comum, mas sim a… Tu entendes.» Uma conhecida acreditava que fora por

amor que a minha mãe fizera tudo isso, por amor a Hartmut — um amor que não vivera

abertamente e que talvez nem sequer perante si mesma ousasse admitir. No fundo,

poder-se-ia interpretar o seu comportamento como uma espécie de «atividade

deslocada»2 A seguir, essa tal conhecida olhou para mim e só então pareceu tomar

consciência do que acabara de me dizer, tendo depois conseguido reunir a empatia

necessária para se abster de prosseguir com a explanação da sua teoria. Que haveria eu

de dizer a propósito de tudo aquilo? Nenhuma das reações me surpreendia, pois

também eu próprio já me ocupara com todos esses pensamentos. Tenho entretanto 44

anos de idade, poder-se-á dizer que sou um homem crescido. Tal como se esperaria, já

fiz psicoterapia, tendo a frequência das sessões começado por ser semanal. Logo

aquando da primeira consulta, a psicóloga tratou de identificar a minha mãe como a

figura que, ao tentar pôr a minha cabeça em ordem, maior estafa me causaria. Para

descrever o meu estado de espírito de um modo que me permitisse visualizá-lo mais

facilmente, comparou-me a Obélix, cabendo à minha mãe o papel do menir que, dia

após dia, eu tinha de carregar aos ombros; infelizmente, porém, ao contrário de Obélix,

eu não tinha caído num caldeirão repleto de poção mágica em criança. Por conseguinte,

eram duas as possibilidades que tinha: ou me fortalecia a ponto de o menir já não

representar para mim um fardo, ou então tinha de desbastá-lo até este perder o

tamanho e o peso que me oprimiam. Não tardou a deixar bem claro que qualquer

dessas possibilidades necessitaria, pelo menos, de duas sessões por semana. Não sei

quantas horas passei no sofá do seu consultório, já foi há alguns anos, mas o que sei é

que, em retrospetiva, esta não é a forma de tentar superar que considero mais correta.

Porque se regride. Falar da própria mãe quando já se é adulto dá a sensação de se estar

aninhado no sofá, com um pijama de pelúcia demasiado apertado e com o motivo do

Winnie the Pooh no peito, coberto com uma manta e a comer fatias de maçã já

descascada. Em substituição dessa terapia, tinha começado a praticar boxe. Fi-lo até o

velho treinador dos tempos da RDA me trazer para dentro do ringue, para um primeiro

desafio amigável, e me ter explicado a importância de manter sempre a guarda,

agarrando para esse efeito os meus pulsos e erguendo-os até diante do meu rosto; de

seguida, ainda à experiência, desferiu um golpe com a sua esquerda contra a minha

2 No âmbito da psicologia, a «atividade deslocada» designa um ato inesperado, um comportamento que pode ser considerado fora do contexto. (N. do T.)

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guarda e eu, por não estar preparado para tal ímpeto, dei com a luva uma pancada no

meu próprio nariz, a ponto de ficar a sangrar. A seguir inscrevi-me num ginásio e passei

a treinar com halteres de um modo absolutamente excessivo. Realizei assim um

belíssimo passe que a psicóloga teria decerto sabido concretizar, rematando-o com a

palavra-chave: menir.

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[Págs. 179-183]

Não deverá haver um dia da minha vida de que consiga lembrar-me mais

nitidamente do que aquele 16 de novembro. Em retrospetiva, esse dia foi o ponto de

partida para uma alteração fundamental que se operou na minha vida. Todas as linhas

de acontecimentos futuros podem ser traçadas a partir desse momento, embora

naquela altura obviamente não me tivesse apercebido disso. E como poderia

aperceber-me? Para mim, Hartmut fora o primeiro. Não sabia que, antes dele, já tinha

havido outros: só mais tarde a minha mãe me falou a respeito de Jan Palach, em Praga,

ou de Oskar Brüsewitz, em Zeitz.3 Se já então soubesse dos outros dois, quando a minha

mãe veio ter comigo ao quarto para me dizer que Hartmut ateara fogo a si mesmo,

talvez tivesse percebido logo que tipo de ato heroico ele acabara de levar a cabo. Assim,

porém, tudo começou com um mal-entendido.

Enquanto em Hamburgo Hartmut se convertia num herói, eu estava sentado

diante da minha secretária, irritado por causa do Hitzfeld em triplicado. Uma vez mais

não estivera atento ao trocar os cromos, recebera mais um Hitzfeld pelo Hölzenbein e

pelo Höttges, quando na realidade precisava era do Hattenberger. O número 80 da

caderneta. Decorria então a época de 1977/78, no fim de semana anterior o VfB

Stuttgart perdera em Düsseldorf e, após quinze jornadas, estava no sétimo lugar da

tabela. No sábado seguinte, o FC Köln, que liderava a tabela, iria jogar a Estugarda. O

meu pai prometera-me que iríamos ao estádio ver o jogo. É claro que nessa tarde não

fazia ideia que, por causa do que aconteceu com Hartmut, tal nunca viria a concretizar-

se. A caderneta da editora Bergmann estava aberta à minha frente, ao lado a pilha de

cromos em duplicado e em triplicado. Estava eu a pensar a quem poderia impingir os

Hitzfelds a mais, quando a minha mãe entra pelo quarto. Deteve-se, de pé, ao meu lado.

Pelo tom da sua voz teria porventura podido aperceber-me da seriedade do que a seguir

me disse, mas para ser sincero não estava a prestar atenção nem tão-pouco me dei

conta de que ela estava a falar. Na minha memória ouço a sua voz abafada, como

quando, ainda eu criança, ela se sentava à beira da minha cama e eu me escondia sob

o espesso edredão de penas.

Com uma das mãos, a minha mãe alcançou o encosto da cadeira giratória

amarelo-limão que estava diante da minha secretária, rodou-a, obrigando-me assim a

ficar de frente para ela; por fim, pôs-se de cócoras. Com a outra mão, segurou-me a

3 Jan Palach (1949-1969), jovem estudante checo, autoimolou-se como forma de protesto contra a invasão soviética da República Checa, na sequência da Primavera de Praga. Oskar Brüsewitz (1929-1976), pastor evangélico alemão, autoimolou-se como forma de protesto contra a repressão religiosa levada a cabo pelo regime comunista da RDA. (N. do T.)

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Texto: © 2017 dtv Verlag Tradução: © 2019 Paulo Rêgo

cara pelo queixo, para se certificar de que não me escaparia nada do que iria dizer. Não

tive outro remédio a não ser olhar para ela. Para os seus olhos grandes, de um azul

aquoso. Não consegui deixar de pensar na minha caixa das aguarelas. Era como se

misturasse demasiada água no azul-escuro, traçando depois uma linha no papel até

esta empalidecer: de início a cor ainda forte, para o fim já difícil de distingui-la. Tivesse

eu de descrever a cor dos olhos da minha mãe e diria que se situava algures no último

terço desse traço azul.

— Ouviste o que eu disse? — perguntou ela. Acenei afirmativamente com a cabeça,

embora soubesse bem que a minha mãe não se contentaria com um simples aceno. —

Que foi que ouviste? — insistiu.

— Que não sei quem se queimou4 — respondi.

— Não foi uma pessoa qualquer — corrigiu ela. — Foi o Hartmut.

Embora quase todas as equipas tivessem um ou mais Helmuts, havia apenas um

único Hartmut, que jogava no VfL Bochum. Chamava-se Hartmut Fromm, era o

número 310 da caderneta. Nunca contei à minha mãe que comecei por pensar no tal

Hartmut Fromm, que jamais conseguira prender a minha atenção enquanto jogador e

cujo nome eu apenas conhecia em virtude da caderneta. A minha mãe nunca mo

perdoaria.

Quando os olhos dela se encheram de lágrimas, apercebi-me de que afinal não

deveria ter sido o Hartmut Fromm que se queimara, mas sim o nosso Hartmut, a quem

de início o meu pai se referia como «o Gründler», para mais tarde passar a ser chamado

«o maluco do Gründler».

— Isso não é assim tão grave — declarei, por querer consolar a minha mãe e por

achar que, provavelmente, o que Hartmut fizera fora assentar a mão na placa do fogão

ainda bem quente. O quarto em que ele então vivia estava repleto de livros. Espalhados

pelo chão, encostados às paredes, por todo o lado havia pilhas de livros, até por cima

do fogão havia prateleiras cheias deles. Imaginei que Hartmut quisesse agarrar um

livro e, distraído, sem sequer se dar conta de que a placa ainda estava quente, se tivesse

apoiado no fogão. Sabia que, justamente para tais eventualidades, a minha mãe

guardava no armário da casa de banho uma pomada para queimaduras.

A minha mãe não morria de amores pela minha caderneta dos cromos. Na

verdade, nem sequer gostava de futebol e também não foi essa a primeira vez que me

tirou a caderneta. Pôs-se de pé e saiu do quarto. Fiquei sentado na minha cadeira,

4 Em alemão, “sich verbrennen” pode significar apenas “queimar-se superficialmente, por contacto” ou, acrescentando-se eventualmente o pronome demonstrativo “selbst” (“a si mesmo”), dar-se-á a entender que alguém se mata de modo voluntário por autoimolação. (N. do T.)

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Texto: © 2017 dtv Verlag Tradução: © 2019 Paulo Rêgo

diante da secretária, de olhos cravados no montinho dos duplicados que ali se erguia,

sem a mais pálida ideia do que fizera de errado.

Só depois, durante a tarde, fiquei a saber que, no caso de Hartmut, um tubo de

pomada para as queimaduras não teria feito diferença, nem mesmo um barril cheio

dela. Hartmut regara o seu corpo com gasolina e em seguida chegara-lhe fogo. Ao fazê-

lo, enviara um sinal, erigira um fanal. Um sinal de protesto, como explicou a minha

mãe, de protesto contra a política nuclear. E, em termos de grandeza e heroísmo, nada

superava o que Hartmut fizera. Porque ele fizera-o por nós, por nós todos, para que

pudéssemos viver num mundo melhor, no qual não tivéssemos de ter medo de morrer

em resultado da energia atómica.

Mais tarde, ainda nesse dia, a minha mãe veio ter comigo ao quarto e disse que

precisava da minha ajuda, que tínhamos ainda de tratar de um assunto. Fiquei

contente por manifestamente já não estar furiosa comigo e não queria, de todo, que

essa situação se alterasse. De resto, não era a primeira vez que ela afirmava precisar da

minha ajuda.

Já no carro, a minha mãe pousou no banco de trás, ao meu lado, uma caixa de

cartão com panfletos. Deveria ter sido ela a redigir o texto depois de ter saído do meu

quarto à pressa. Tinha no seu quarto uma máquina de escrever diante da qual se

sentava com frequência e no escritório do meu pai havia uma copiadora, que ela

costumava usar quando ele não estava. Sei exatamente o que estava escrito naqueles

panfletos, pois no meio de todos os escritos que a minha mãe recolheu consegui

encontrar um exemplar:

«Acerca da autoimolação pelo fogo de um defensor da vida. A energia atómica

reclama as suas vítimas.»

Esse título encontra-se sublinhado. E a seguir:

«Hartmut Gründler imolou-se pelo fogo em Hamburgo, por ocasião do

congresso do SPD, no Dia da Penitência e Oração5, em defesa da verdade na política

nuclear levada a cabo pelo Governo federal, em defesa da autenticidade na relação

entre governantes e cidadãos. Sacrificou-se para que não tenhamos de ser nós as

vítimas. O Grupo de Trabalho pela Defesa da Vida exprime o seu respeito por este

5 O chamado Buß- und Bettag é observado anualmente na Alemanha pelos fiéis da igreja evangélica, na quarta-feira entre 16 e 22 de novembro. (N. do T.)

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Texto: © 2017 dtv Verlag Tradução: © 2019 Paulo Rêgo

coerente ato de luta, até às últimas consequências, contra uma ameaça à vida,

representada por tecnologias que não se domina por completo.»

O texto está assinado como «Grupo de Trabalho pela Defesa da Vida». Segue-se

a nossa morada de então, na Keplerstraße. E, mais abaixo:

«De acordo com os princípios de Hartmut Gründler, solicitamos que apoie a luta

contra a energia atómica através de um donativo. Referência bancária: Hartmut

Gründler.»

A seguir é indicado o número de uma conta na Caixa de Poupança Estadual.

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[Págs. 94-199]

O dia estava frio, tínhamos puxado os fechos de correr dos nossos casacos até à

altura do queixo. Ali em cima da ponte sentia-se o vento, que não tardou a deixar os

dedos hirtos. A minha mãe, que segurava a caixa de cartão debaixo do braço esquerdo,

entregou-me um molho de panfletos. Por experiência, sabia que o melhor seria

separarmo-nos. A minha mãe atravessou a estrada, postou-se no outro lado da ponte.

Por imbecil que pareça, só então chegámos à conclusão óbvia de que éramos os únicos

ali presentes, o que provavelmente se devia ao facto de ser feriado. Fui segurando as

folhas ora com uma mão, ora com a outra, de modo a poder ir enfiando no bolso a que

estava livre. Olhei para o outro lado, para a minha mãe. Tal como ali estava, sozinha

com os seus panfletos, não pude deixar de sentir alguma pena dela. No fim de contas,

o que pretendia é que o sacrifício de Hartmut não tivesse sido em vão. Este ateara fogo

a si mesmo e agora não passava ali ninguém. Também senti alguma pena dele. Por que

razão escolhera Hartmut logo o Dia da Penitência e Oração?

Visto que continuava sem aparecer fosse quem fosse, dei meia volta e encostei-

me ao parapeito. Olhei para o rio Neckar, que apresentava um aspeto negro e frio.

Imaginei aquilo que sempre imaginava quando me encontrava em cima de uma ponte

que atravessasse um rio: como seria saltar para dentro de água. Não é que me atrevesse

sequer a fazê-lo: se na piscina nem me atrevia a saltar da prancha dos três metros…

Gostava apenas de imaginá-lo, não havia volta a dar. Era como se dentro de água, lá

bem no fundo, estivesse um íman que sobre mim exercesse a sua poderosa atração. O

importante era resistir a essa força. Até mesmo na piscina. Só que os outros pareciam

ser incapazes de entender isso. «Vais criar raízes aí parado?», «Anda, despacha-te!»,

«Ainda vai ser este ano?» — fora isso que tinham gritado os outros que estavam à

espera na fila, atrás de mim. Quando, a dada altura, dei meia volta, dei-me conta de

que metade dos que ali havia na piscina aguardavam na fila. Passei então junto a todos

eles, ali à espera, desci as escadas e senti-me deveras orgulhoso por ter resistido ao

fascínio exercido pelas profundezas. Ali encostado ao parapeito da ponte, a sentir a

força daquele íman, imaginei como seria se saltasse. Como simplesmente me deixaria

cair do cimo do parapeito. Qual seria a sensação de cair; é certo que não voaria como

um pássaro, caindo antes como uma pedra. E então chegaria o momento em que,

primeiro com os pés, entraria em contacto com a água. Em que mergulharia. Seria

arrastado pela corrente. A minha mãe nem sequer se daria conta de nada. Iria ser

obrigado a gritar. E então ela ver-me-ia a ser levado para longe. E iria chorar. Tinha

perfeita consciência de que não iria simplesmente conseguir nadar até à margem e sair

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Texto: © 2017 dtv Verlag Tradução: © 2019 Paulo Rêgo

de dentro de água, pois a corrente era demasiado forte e as águas do rio demasiado

frias. No entanto, já ouvira dizer que, pouco antes de se sucumbir ao frio, se sente calor.

E que, a maior parte das vezes, se adormece. No preciso momento em que me

imaginava a ser arrastado Neckar abaixo, adormecido, ouvi a minha mãe a chamar-

me:

— Hanno! Olha além!

Olhei em redor. Uma senhora de idade, apoiada num andarilho, vinha na minha

direção. Acenei com a cabeça. Demorou ainda alguns instantes até me alcançar e outros

tantos ainda até se dar conta da minha presença. Avançava com uma postura

encurvada e só se deteve depois de quase me pisar com o andarilho. Ergueu a cabeça e

fez um aceno, como se me tivesse reconhecido, mas isso não era possível, pois na

verdade eu nem sequer a conhecia. Ainda assim, por breves instantes puxei pela

cabeça, não fosse dar-se o caso de alguma vez a ter visto na companhia da minha avó.

Uma vez por semana havia umas quantas senhoras de idade que vinham jogar canasta

com ela. Costumava sentar-me à mesa, ia espreitando as cartas delas e, quando via que

a minha avó queria jogar uma determinada carta, acenava ou abanava a cabeça,

obviamente sem que as outras senhoras ali sentadas se dessem conta. A minha mãe

não achava de todo boa ideia que eu ficasse ali sentado à mesa, já que as velhotas se

punham a beber aguardente e a fumar. Já o meu pai, por sua vez, divertia-se com isso,

pois ele próprio também bebia e fumava. Em todo o caso, a mulher do andarilho não

fazia parte do grupo da canasta. Entreguei-lhe um panfleto. Ela endireitou-se com

dificuldade, apoiou-se na estrutura do utensílio com uma das mãos, enquanto com a

outra segurava a folha diante dos olhos.

— Lamento, rapaz — disse ela —, a letra é demasiado pequena, não sou capaz de

lê-la. Consegues ler-me o que aí diz?

É claro que conseguia. Ao contrário do que acontecia em matemática, na leitura

eu era um dos melhores da turma. Tirei-lhe o panfleto da mão. E por saber que as

pessoas de idade não ouvem bem, pus-me a ler devagar e bem alto:

— A-cer-ca da au-to-i-mo-la-ção pe-lo fo-go de um de-fen-sor da vi-da. A e-ner-

gi-a a-tó-mi-ca re-cla-ma as su-as ví-ti-mas…

A mulher acenou com a cabeça. E fiquei sem perceber se acenou porque eu estava

a ler suficientemente alto ou porque achava acertado o que estava a ouvir.

— Hart-mut Gründ-ler i-mo-lou-se pe-lo fo-go em Ham-bur-go, por o-ca-si-ão

do con-gres-so do S-P-D, no Di-a da Pe-ni-tên-ci-a e O-ra-ção, em de-fe-sa da ver-da-

de na po-lí-ti-ca nu-cle-ar le-va-da a ca-bo pe-lo Go-ver-no fe-de-ral…

Quando terminei, ela comentou:

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Texto: © 2017 dtv Verlag Tradução: © 2019 Paulo Rêgo

— Leste isso muito bem.

A seguir agarrou o andarilho com ambas as mãos e fez menção de prosseguir.

Com isso é que eu não contara. Pelos vistos, a senhora não entendera que se tratava de

Hartmut, do facto de ele ter ateado fogo a si mesmo por todos nós. E, portanto, também

por ela. Olhei em redor. A minha mãe continuava do outro lado da rua, com a caixa de

cartão debaixo do braço e um panfleto na mão, a olhar para mim. Tinha de fazer

qualquer coisa, por isso disse:

— Helmut Schmidt é mentiroso.

A senhora idosa abanou a cabeça.

— Helmut Schmidt é um bom homem — contrapôs ela.

— Ele é um mentiroso — insisti.

— Não é nenhum Willy Brandt — admitiu ela. — O Willy Brandt foi o melhor.

Já antes ouvira o nome, mas não sabia em que contexto fora. Na verdade, era-me

indiferente saber quem era Willy Brandt, afinal a razão para eu ali estar era Hartmut.

Acrescentei então:

— Ele queimou-se.

Aquilo produziu efeito. Ela deteve-se e ficou a olhar para mim.

— Quem? — perguntou. — O Willy Brandt?

— Não — respondi eu —, não foi o Willy Brandt, foi o Hartmut que se queimou.

— Não conheço nenhum Hartmut — disse ela.

— Ele viveu em nossa casa — expliquei —, o Gründler, viveu na cave, era defensor

da vida e de vez em quando também passava fome, para obrigar o Helmut a finalmente

dizer a verdade. Ele também me falou das varetas de combustível. E disse que todos

nós corremos perigo.

— Estás aqui sozinho? — perguntou ela.

— Não — respondi, apontando na direção da minha mãe. — Estamos a recolher

donativos para o Hartmut.

A idosa olhou para o outro lado da estrada, mas fiquei sem saber se ela conseguia

ver a minha mãe, já que não fora capaz de reconhecer as letras quando segurara o papel

diante dos olhos. Parecia estar a refletir. A seguir afirmou:

— Vê aí na mala, onde haverá de estar o meu porta-moedas. Tira de lá uma moeda

de um marco.

A mala estava pendurada numa das pegas do andarilho. Hesitei, pus-me a

considerar se deveria mexer na mala de uma senhora idosa e desconhecida. Contudo,

no fim de contas fora ela mesma que me dissera para fazê-lo. Abri a mala e logo

descobri o porta-moedas. Era um daqueles com as duas estúpidas hastes torcidas e

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uma esfera na ponta, nada fáceis de abrir. Questionei-me sobre como ela faria para

conseguir abri-lo. Ou será que pedia sempre a outros para lhe abrirem o porta-moedas?

Pensei em Hartmut e no seu sacrifício. Pressionei as esferas com tanta força e durante

tanto tempo que estas lá se afastaram. As esferas deixaram-me marcas nas pontas dos

dedos, mas a minha atenção foi de imediato desviada para aquilo que me foi dado a

ver: um molho de notas, de dez, de cinquenta, até mesmo duas de cem marcos, e

algumas moedas. Nesse mesmo instante não pude deixar de pensar no Robin dos

Bosques, no facto de existirem diferentes maneiras de se poder ser herói. A minha mãe

sempre me explicara que o mundo era injusto, porque havia uns que tinham muito

dinheiro e, por isso, havia outros que tinham bem menos. Afinal de contas não era

infinita a quantidade de dinheiro que existia no mundo e, assim sendo, quando uns

tinham muito, era menos o que restava para os outros. Para mim a explicação fizera

todo o sentido. Era evidente que aquela idosa fazia parte dos que tinham muito

dinheiro. Se eu doava dinheiro da minha mesada, seria de simples justiça que, com

uma nota de cem, ela fizesse um donativo para ajudar na luta contra os perigos da

energia atómica. Afinal, ela estava tão ameaçada como todos os demais. Era também a

vida dela que estava em risco.

Teria de arranjar maneira de distrair a velhota. Certa vez, quando ninguém estava

por perto, palmara uma nota de dez do porta-moedas da minha avó, que estava

pousado no aparador do corredor. Esta situação era diferente. A idosa estava a olhar

para os meus dedos, que procuravam uma moeda de um marco no dinheiro trocado

que ali havia. Deixei cair o porta-moedas.

— Peço desculpa — disse eu, enquanto recolhia as moedas que se haviam

escapado.

Fiz de conta que uma delas teria ido parar mais longe e, ajoelhado no chão,

afastei-me do campo de visão dela, ainda com o porta-moedas na mão. Guardei a nota

de cem no bolso do meu casaco. A seguir pus-me novamente de pé, fechei o porta-

moedas e entreguei-o à idosa.

— Obrigado — agradeci, mostrando-lhe a moeda de um marco.

— Tenho de continuar — anunciou a senhora de idade. — Desejo-vos boa sorte, a

ti e a esse Hartmut Brandt.

— Gründler — corrigi. — Hartmut Gründler.

Não sei, no entanto, se ela ainda me ouviu.

Depois de a idosa se afastar, a minha mãe atravessou a estrada e eu estendi-lhe a

nota de cem, tendo guardado para mim a moeda de um marco.

— Para o Hartmut — disse eu.

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A minha mãe tirou-me a nota da mão, segurou-a contra a luz, como se não fosse

capaz de acreditar que era verdadeira.

— Como vês, há pessoas para quem o Hartmut não é indiferente — afirmou ela.

Acenei com a cabeça. A minha mãe guardou a nota no bolso do seu casaco.

— Anda daí — disse ela —, por hoje já chega.

Segui-a de volta ao carro.

Embora tivesse sido por uma boa causa, vi-me obrigado, ao contrário do Robin

dos Bosques, a lidar com o fardo de uma consciência pesada. Roubar uma avozinha

quase cega só dificilmente resultará numa história de contornos heroicos. E é por essa

razão que jamais a contei, fosse a quem fosse. No entanto, quando penso na história,

esta demonstra-me que, já em criança, eu vivia na crença de que tinha de fazer por

merecer a boa vontade da minha mãe, a sua atenção e, no fim de contas, também o seu

amor. Também isso, tal como tantas outras coisas, tinha que ver com Hartmut.

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