nietzsche -civilização e cultura
TRANSCRIPT
Carlos A. R. de Moura
Nietzsche: civilização e cultura
Martins Fontes
Q u a l o va lor de n o s s a civilização?
É e s s a p e r g u n t a d e f u n d o q u e
nor t e i a a aná l i s e a q u e N i e t z s c h e
s u b m e t e a s " i d é i a s m o d e r n a s " ,
e s s e c o n j u n t o d e c o n v i c ç õ e s q u e
n o r t e i a m a v ida do e u r o p e u cult i
v a d o d e s e u t e m p o , e q u e c o n
t i n u a m a c o m a n d a r a e x i s t ê n c i a
d e s u a p o s t e r i d a d e . E s t e l i v r o
p r o c u r a r e c o n s t i t u i r o s p a s s o s
p r i n c i p a i s da crítica n i e t z s c h i a n a
a n o s s a c iv i l ização e o s e u d i ag
nós t i co s o b r e o m o d o c o m o , cala-
d a m e n t e , a m o r a l a s s u m e a d i a n
teira na tarefa de n o s s a f o r m a ç ã o ,
a o c o n t r á r i o d a o p i n i ã o c o m u m
q u e s e m p r e privi legia a e c o n o m i a
e a po l í t i ca c o m o os e l e m e n t o s
d e c i s i v o s p a r a a c o n s t i t u i ç ã o de
n o s s a v i d a c i v i l i z a d a . É c o n t r a
e s sa c iv i l ização forjada na mat r iz
cristã, d o m e s t i c a d o r a e a p r o p r i a
da a p e n a s p a r a m o l d a r o e sp í r i t o
se rvo , q u e Nie tzsche p r o m o v e r á a
res tauração d e u m a n o ç ã o d e "cul
tu ra" cuja c e r t i d ã o d e n a s c i m e n t o
é escrita em g r e g o ant igo, u m a cul
t u r a c e n t r a d a n a i d é i a d e u m a
d i s p u t a p e r e n e , a p a n á g i o d o s
" s e n h o r e s " , m o d e l o d e u m a o u t r a
fo rma d e ex i s t ênc ia e t a m b é m d e
u m a o u t r a c o m p r e e n s ã o d a filo
sofia.
Carlos A. R. de Moura
I m a g e m da c a p a Albrecht Dürer, SãoJerônimo em seu estúdio, 1514.
Nietzsche: Civilização e Cultura
Carlos Alber to Ribei ro de M o u r a é professor de história da filosofia contemporânea no Departamento de Filosofia da FFLCH da Universidade de São Paulo e pesquisador do CNPq. Foi professor colaborador do Departamento de Filosofia do IFCH da Universidade Estadual de Campinas e professor convidado do Departamento de Filosofia da Université de Provence, Aix-en-Provence, França. Publicou Crítica da razão na fenomenologia (Edusp/Nova Stella) e Racionalidade e crise (Discurso Editorial/Editora UFPR).
Carlos Alberto Ribeiro de Moura
Nietzsche: Civilização e Cultura
Martins Fontes São Paulo 2005
Copyright © 2005, Livraria Martins Fontes Editora Lida..
São Paulo, para a presente edição.
I a edição
fevereiro de 2005
Acompanhamento editorial
Helena Guimarães Bittencourt
Revisões gráficas
Maria Luiza Favret
Ivani Aparecida Martins Cazarim
Dinarte Zorzanelli da Silva
Produção gráfica
Geraldo Alves
Pagin ação/Fotol itos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Moura, Carlos Alberto Ribeiro de
Nietzsche : civilização e cultura / Carlos Alberto Ribeiro de
Moura. - São Paulo : Martins Fontes, 2005. - (Coleção tópicos)
Bibliografia.
ISBN 85-336-2087-X
I. Civilização 2. Cultura 3. Filosofia alemã 4. Nietzsche,
Friedrich Wilhelm, 1844-1900 I. Título. II. Série.
04-8486 CDD-193
índices para catálogo sistemático:
I. Nietzsche : Filosofia alemã 193
Todos os direitos desta edição para a língua portuguesa reservados à Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil Tel. (11)3241.3677 Fax (11) 3101.1042
e-mail: [email protected] http://www.martinsfontes.com.br
ÍNDICE
Apresentação. VII
Introdução. IX
I. O maior dos acontecimentos recentes 1 II. O niilismo europeu 23
III. O privilégio do território moral 57 IV. Ideais de convivência 87 V. Moral de senhores, moral de escravos 111
VI. O sacerdote, o ressentimento e o ideal ascético.. 133 VII. Cristianismo e civilização 159
VIII. Vontade de potência 183 IX. Civilização e cultura 211 X. Vida decadente, vida ascendente 237
XI. Superar o niilismo 263
Conclusão 285
APRESENTAÇÃO
Este livro é uma introdução ao pensamento de Nietz-sche. Ele foi escrito para o estudante ou o interessado em filosofia que deseje um fio condutor para lhe permitir, ao menos, começar a situar-se no interior do cipoal de afo¬ rismos através dos quais a filosofia de Nietzsche ganha seu corpo. Este caráter introdutório é atestado pela certidão de nascimento do texto aqui publicado: ele foi, originalmente , um curso oferecido aos estudantes de graduação do Depar tamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. E, se agora ele surge em letra impressa, é apenas pela generosidade insistente de alguns ex-alunos, que ainda o consideram útil para uma iniciação. Deste curso só retirei as idas e vindas, inevitáveis na exposição oral mas redundantes em um texto escrito, o que por certo não foi o bastante para eliminar o tom coloquial, sempre presente no assunto falado. A finalidade do livro explica a política de referências à obra de Nietzsche aqui adotada. Sempre que possível, reporto o leitor às excelentes traduções disponíveis, como as de Paulo César de Souza, Rubens
VIII NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃOE CULTURA
Rodrigues Torres Filho ou Thelma Lessa Silveira da Fonseca. Invariavelmente, privilegiou-se a referência ao número do aforismo, à parte ou ao capítulo da obra e ao seu parágrafo, para que se possa localizá-la em qualquer edição. E sobretudo quando se trata de obra póstuma, ainda pouco traduzida para o português, a referência é feita pela Sãmtliche Werke, na edição de Colli e Montinari, através da KritischeStudienausgabe. Neste caso, utiliza-se a sigla KSA, antecedida pelo nome da obra ou pelo número do frag¬ mento póstumo e sucedida pelos números do volume e da página, acrescentando-se a referência à tradução, quan¬ do disponível.
INTRODUÇÃO
I
N e n h u m a u t o r p a r e c e s u s c i t a r t a n t a s d i f i c u l d a d e s
m e t o d o l ó g i c a s p a r a o seu i n t é r p r e t e q u a n t o N i e t z s c h e , o
q u e j á s e e v i d e n c i a p e l a e x u b e r a n t e d i v e r s i d a d e d e inter¬
p r e t a ç õ e s a q u e s u a o b r a foi s u b m e t i d a . E s s a d i v e r g ê n c i a
e n t r e a s i n t e r p r e t a ç õ e s p e r m a n e c e t r i bu tá r i a , e m g r a n d e
p a r t e , d e u m a c o n s t a t a ç ã o m u i t o f r e q ü e n t e e n t r e o s s e u s
c o m e n t a d o r e s : N i e t z s c h e se r ia u m a u t o r " c o n t r a d i t ó r i o " .
A s s i m , na i n t r o d u ç ã o ao s e u Nietzsche, Kar l J a s p e r s j á no¬
t ava q u e , p a r a c a d a a s s e r ç ã o d o au to r , n ã o é n a d a difí¬
ci l e n c o n t r a r o u t r a q u e a refute ou c o n t r a d i g a ' . E as di¬
f e ren tes i n t e r p r e t a ç õ e s de N i e t z s c h e se rão , em g r a n d e par¬
te , o r i u n d a s das d i s t i n t a s m a n e i r a s pe l a s q u a i s s e p e n s o u
e m " r e d u z i r " e s s a s s u p o s t a s c o n t r a d i ç õ e s : se j a p o r u m a
a n á l i s e " p s i c o l ó g i c a " , q u e p r o c u r a v i n c u l a r a s d i f e r e n t e s
fases da o b r a a d i s t i n tos p r o b l e m a s p e s s o a i s do autor, c a l -
c a n d o - s e , d e f o r m a a b u s i v a , n a q u i l o q u e N i e t z s c h e c h a -
1. Jaspers, K., Nietzsche, Paris, Gallimard, 1950, p. 18.
X NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
m a v a de " p s i c o l o g i a " ; seja por u m a aná l i s e s o c i o l ó g i c a ,
c o m o a de L u k á c s , v i n c u l a n d o as s u p o s t a s c o n t r a d i ç õ e s
às n e c e s s i d a d e s do c o m b a t e i d e o l ó g i c o ; seja por u m a fi¬
losof ia da f i losofia , q u e i n s c r e v e as d i f i cu ldades da obra
e m u m p ro je to o r i u n d o d o " a c a b a m e n t o d a m e t a f í s i c a " .
E m face d e s s a s d i s t i n t a s i n t e r p r e t a ç õ e s q u e t e n t a m
s o l u c i o n a r as " c o n t r a d i ç õ e s " da dou t r ina , va le a p e n a co¬
m e ç a r por n o t a r q u e N i e t z s c h e , por seu l ado , n ã o se pen¬
sava, d e fo rma a l g u m a , c o m o u m autor c o m p l a c e n t e c o m
as " c o n t r a d i ç õ e s " . E em a l g u m a s de suas ca r t a s e le se de¬
fenderá da a c u s a ç ã o de g o s t o p e l o s p a r a d o x o s e h e t e r o -
d o x i a s . E n t r e e s sa a u t o - i m a g e m de N i e t z s c h e e a q u e l a
forjada por s e u s h i s t o r i a d o r e s , qua l e s c o l h e r ? A l é m do
m a i s , N i e t z s c h e t a m b é m n ã o g o s t a v a n e m u m p o u c o da¬
que l e t ipo de a t l e t i s m o in te lec tua l , exe rc i t ado c o m desen¬
vo l tu ra pe lo s s e u s i n t é rp r e t e s , q u e é o de r a p i d a m e n t e ca¬
t a l o g á - l o e m " e s c o l a s " , s i t u a n d o - o n a va l a c o m u m d o s
" i s m o s " t r ad ic iona i s , c o m o o " p s i c o l o g i s m o " , o " i m o r a l i s -
m o " , o " p e s s i m i s m o " . . . , t a n t a s fac i l idades de in terpre ta¬
ção con t ra as qua i s ele n ã o de ixou de a l e r t a r - n o s 2 . M a s , se
2. Cf. Nietzsche a Carl Fuchs, 29 de julho de 1888, apud Lõwith, K., Nietzsxhes Philosophie der Ewigen wiederkehr des Gleichen, Frankfurt, Kohlhammer, 1953, p. 10: "Se algum dia lhe ocorrer escrever algo sobre mim, caro amigo, então tenha a prudência - que infelizmente ninguém ainda teve - de me caracterizar, me descrever, mas não me depreciar. Faça-o com uma simpática neutralidade: parece-me que para isso precisa-se deixar de lado seu pathos, para que a mais sutil espiri¬ tualidade apareça. Eu ainda não terei sido caracterizado com o título de psicólogo, nem com o de escritor (mesmo com o de poeta), nem com o de descobridor de um novo tipo de pessimismo (um pessimis¬ mo dionisíaco, nascido dos fortes, que se dá o prazer de carregar nos seus chifres o problema da existência); nem como imoralista (até hoje a mais rica forma de integridade intelectual, que deve tratar a moral como ilusão, depois que ela mesma tornou-se instinto e inevitabilida-
INTRODUÇÃO XI
é a s s i m , c o m o " l e r " N i e t z s c h e , u m a u t o r a p a r e n t e m e n t e
c o n t r a d i t ó r i o e c o n f e s s a m e n t e inclass i f icável? A o i n v é s d e
c o m e ç a r e n u n c i a n d o a l g u m p o m p o s o " d i s c u r s o s o b r e o
m é t o d o " , t a l v e z se ja m e l h o r e n t r a r d e s a r m a d o n a se lva ,
s e m q u a l q u e r a r s e n a l , se ja e l e p s i c o l ó g i c o , s o c i o l ó g i c o o u
a t é m e s m o " e s t r u t u r a l i s t a " , p a r a p r o c u r a r ali a l g u m a s r e
g r a s d e l e i tu ra , s e m p r e p a s s í v e i s d e r e v i s ã o . E , e m p r i m e i
ro lugar , va l e a p e n a c o m e ç a r p o r p e r g u n t a r q u a l é o c a m
p o d e " f e n ô m e n o s " q u e N i e t z s c h e p r e t e n d e a n a l i s a r e
q u a l s e r i a a e s p e c i f i c i d a d e d e s e u d i s c u r s o f i losóf ico e m
face d a q u e l e d a t r a d i ç ã o .
I I
" T e n h o o s e n t i m e n t o s e m p r e m a i s c l a ro de q u e o fi
l ó s o f o , q u e é necessariamente o h o m e m de a m a n h ã e de
d e p o i s d e a m a n h ã , a c h o u - s e e devia a c h a r - s e , n ã o i m
p o r t a e m q u a l é p o c a , e m c o n t r a d i ç ã o c o m o p r e s e n t e . A t é
a q u i e s t e s e x t r a o r d i n á r i o s p r o m o t o r e s d a h u m a n i d a d e
q u e c h a m a m o s d e f i l ó so fos e q u e r a r a m e n t e s e a c r e d i
t a r a m ' a m i g o s d a v e r d a d e ' , m a s l o u c o s d e s a g r a d á v e i s e
e n i g m a s p e r i g o s o s , c o l o c a r a m s u a ta re fa , s u a r u d e , i n v o
l u n t á r i a , i n e l u t á v e l t a re fa , m a s f i n a l m e n t e a g r a n d e z a d e
s u a ta re fa , n e s t a a m b i ç ã o : t o r n a r - s e a m á c o n s c i ê n c i a d e
s e u t e m p o . " 3 E s s e a f o r i s m o , a o a p r e s e n t a r o filósofo c o m o
de). Também não é preciso, nem mesmo desejável, tomar partido em relação a mim: ao contrário, parece-me uma atitude incomparavelmente inteligente, em relação a mim, uma certa dose de curiosidade, como diante de uma planta estranha, com uma oposição irônica."
3. Nietzsche, Para além de bem e mal, § 212, Sümtliche Werke, Kri-tische Studienausgabe, Berlin-New York, DTV de Gruyter, 1999, vol. 5, p. 145 (doravante citada como KSA).
XII NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
a m á c o n s c i ê n c i a d e s e u t e m p o , r e t o m a u m t e m a c a r o a
N i e t z s c h e : a s u a filosofia é " i n a t u a l " , q u e r dizer , e s t á s e m
p r e e m d e f a s a g e m e e m c o n t r a d i ç ã o c o m o " t e m p o p r e
s e n t e " . D o n d e a conv icção , e x p r e s s a em Ecce homo, de q u e
a l g u n s h o m e n s n a s c e m p ó s t u m o s . E c o m o n ã o se r i a p ó s
t u m o , q u e r d izer , i n a t u a l , u m p e n s a m e n t o q u e , a o b u s c a r
i n u t i l m e n t e o s s e u s p a r e s , ex ige d a q u e l e s q u e p o s s a m
faze r p a r t e d e s u a f amí l i a q u e t e n h a m u m m o d o d e p e n
s a m e n t o a r i s t o c r á t i c o ; q u e c o n s i d e r e m a e s c r a v i d ã o , o u
q u a l q u e r o u t r o t i p o d e d e p e n d ê n c i a , u m p r e s s u p o s t o d e
t o d a c u l t u r a e l e v a d a ; u m m o d o d e p e n s a m e n t o c r i a d o r
q u e n ã o v i s s e n o m u n d o u m l u g a r d e p a z , o s á b a d o d o s
s á b a d o s , m a s u m t e r r i t ó r i o d e l u t a s ; u m m o d o d e p e n
s a m e n t o q u e o l h a s s e p a r a o f u t u r o e t r a t a s s e o p r e s e n t e
c o m d u r e z a ; u m m o d o d e p e n s a m e n t o s e m e s c r ú p u l o s -
i m o r a l , d i z N i e t z s c h e - , q u e q u i s e s s e a d m i n i s t r a r t a n t o
a s b o a s q u a n t o a s m á s q u a l i d a d e s d o s h o m e n s . O n d e
e n c o n t r a r t a i s e s p í r i t o s g ê m e o s ? O fi lósofo t e m c o n s c i ê n
cia d e q u e b u s c a r á p o r e les i n u t i l m e n t e . N o s s a é p o c a - d i z
N i e t z s c h e - c a m i n h a n a d i r e ç ã o o p o s t a . A f i n a l , n o s s a
é p o c a q u e r c o m o d i d a d e , p u b l i c i d a d e e m e r c a d o ; n o s
s a é p o c a q u e r q u e n o s a j o e l h e m o s d i a n t e d a " i g u a l d a d e
e n t r e o s h o m e n s " e h o n r a e x c l u s i v a m e n t e a s v i r t u d e s d e
m o c r á t i c a s ; n o s s a é p o c a c o n f u n d e c u l t u r a e pol í t ica , e la
n ã o é p r ó p r i a p a r a a p r o d u ç ã o do filósofo, m a s s i m p a r a a
e b u l i ç ã o d o e s p í r i t o d e m a g o g o .
E s s e s c o n t r a s t e s , q u e e x p õ e m u m a p r i m e i r a face ta d a
" i n a t u a l i d a d e " d a d o u t r i n a d e N i e t z s c h e , j á i n d i c a m p e l o
m e n o s em r e l a ç ã o a q u e o f i lósofo é a " m á c o n s c i ê n c i a de
s e u t e m p o " . O a l v o p r i m e i r o d e N i e t z s c h e s e r á a q u i l o
q u e e l e c h a m a d e " i d é i a s m o d e r n a s " , q u e r d i z e r , o c o n
j u n t o d e " c o n v i c ç õ e s " q u e c o m p õ e m a c o n s c i ê n c i a d o h o
m e m c u l t o d e s e u t e m p o . S e n d o a s s i m , s e a fi losofia d e v e
t r a b a l h a r c o n t r a o t e m p o p r e s e n t e e a favor, t a lvez , de um
INTRODUÇÃO XIII
t e m p o f u t u r o , o s " f e n ô m e n o s " a o s q u a i s e l a d i r i g e s u a
a t e n ç ã o s ã o p r i m a r i a m e n t e a q u e l e s q u e c o n s t i t u e m a n o s
s a " c i v i l i z a ç ã o " , t e r m o q u e a b r a n g e a m o r a l , a s a r t e s e a s
c i ê n c i a s , o i d e á r i o s o c i o p o l í t i c o e a r e l ig i ão . E se o f i lósofo
é a m á c o n s c i ê n c i a d e s e u t e m p o é p o r ser, a n t e s d e t u d o ,
a m á c o n s c i ê n c i a d e s u a c ivi l ização: e le s e p e r g u n t a r á p e l o
valor d e s s a c iv i l i zação . N a Genealogia da moral, N i e t z s c h e
a t r i b u i r á c o m o t a re fa a o f i lósofo d o f u t u r o r e s o l v e r o p r o
b l e m a do v a l o r e d e t e r m i n a r a h i e r a r q u i a d o s v a l o r e s 4 . Esse
v í n c u l o e n t r e a fi losofia e a q u e s t ã o da c iv i l ização , N i e t z s
c h e o e s t a b e l e c i a d e s d e o s s e u s p r i m e i r o s e sc r i to s . E m Ecce homo, a o c o m e n t a r O nascimento da tragédia, e l e a f i r m a
q u e e s t a s u a p r i m e i r a o b r a j á t r a t a v a d o m a i o r d e t o d o s o s
d e v e r e s , a " e d u c a ç ã o s u p e r i o r d a h u m a n i d a d e " , q u e r d i
zer , e la j á v i s a v a a q u e s t ã o d a c iv i l i zação . M a s o q u e p e n
sar , e x a t a m e n t e , d e s s a " q u e s t ã o " ?
A s s i m t ã o v a g a m e n t e f o r m u l a d a , e s s a " q u e s t ã o " p o
d e r i a p a r e c e r , à p r i m e i r a v i s t a , r e a t a r c o m a l g u n s t e m a s
c láss icos d a filosofia. Af inal , o q u e fazia R o u s s e a u , n o Discurso sobre as ciências e as artes, s e n ã o e m p r e e n d e r um p r o c e s s o c r i m i n a l c o n t r a n o s s a "c iv i l i zação"? P e r g u n t a n d o ali
s e a s c i ê n c i a s e a s a r t e s c o n t r i b u í r a m p a r a m e l h o r a r o u
p a r a c o r r o m p e r o s c o s t u m e s , R o u s s e a u c h e g a v a à r e s p o s
t a q u e s e c o n h e c e : " n o s s a s a l m a s s e c o r r o m p e r a m n a m e
d i d a e m q u e n o s s a s c i ê n c i a s e n o s s a s a r t e s a v a n ç a r a m e m
d i r e ç ã o à p e r f e i ç ã o " 5 . U m a r e s p o s t a o p o s t a à d e Vol ta i re ,
q u e a p o s t a r a e m u m c a m i n h o p a r a l e l o e n t r e o p r o g r e s s o
d a c iv i l i zação e o m e l h o r a m e n t o d o h o m e m . N i e t z s c h e
n ã o d e i x a d e s u g e r i r q u e a s u a " q u e s t ã o " d a c iv i l i zação
4. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 17, trad. Paulo César de Souza, São Paulo, Brasiliense, 1987, p. 56.
5. Rousseau, J.-J., Discours sur les sciences et les arts, Paris, UGE, Col. 10/18,1963, p. 206.
XIV NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
p o d e r i a s e r f o r m u l a d a e x a t a m e n t e n e s s e s t e r m o s . É a s
s i m , p o r e x e m p l o , q u a n d o e l e s e re fe re a o " p r o b l e m a n ã o
r e s o l v i d o " , p o r e le p r o p o s t o , a saber , "o p r o b l e m a da civili
z a ç ã o , a l u t a e n t r e R o u s s e a u e Vol ta i re p o r vo l t a de 1 7 6 0 " 6 .
E o p a r t i d o q u e N i e t z s c h e t o m a r á n e s s a d i s p u t a p o d e p a
r e c e r b a s t a n t e c l a ro . Af ina l , n ã o f a l t a m t e x t o s e m q u e e l e
cr i t ica o m i t o " i l u s t r a d o " d e u m a h a r m o n i a e n t r e o p r o
g r e s s o d a s l u z e s , d a v e r d a d e e d o b e m d a h u m a n i d a d e ,
i n d i c a n d o s i t u a r - s e c o n t r a V o l t a i r e n e s s e t ó p i c o . C o m o
t a m b é m n ã o f a l t a m t e x t o s e m q u e e l e iden t i f i ca n o s s a c i
v i l i z a ç ã o à " d e c a d ê n c i a " , d a n d o a e n t e n d e r s u a a d e s ã o a
u m d i a g n ó s t i c o d e l i n h a g e m r o u s s e a u i s t a . S e n d o a s s i m ,
a s c a r t a s p a r e c e m l a n ç a d a s : s e N i e t z s c h e va i ava l i a r n o s
s a " c i v i l i z a ç ã o " é p a r a r e t o m a r , p o r s u a p r ó p r i a c o n t a ,
u m a p r e o c u p a ç ã o q u e j á e r a a q u e l a d o s é c u l o XVIII.
M a s i n t e r p r e t a r a s s i m a t ó p i c a n i e t z s c h i a n a ser ia d e s
c o n h e c e r i n t e i r a m e n t e a s u a o r i g i n a l i d a d e . E os s i g n o s
d i s s o s ã o f a c i l m e n t e d e t e c t á v e i s . Po i s q u a n d o s e sa i d a
c o m p a r a ç ã o m e r a m e n t e e x t e r i o r e n t r e o s a u t o r e s p o d e -
s e ver i f ica r q u e , a o s o l h o s d e N i e t z s c h e , Vol ta i re e R o u s
s e a u s ã o , n a v e r d a d e , a p e n a s o s e x t r e m o s d e u m m e s m o
c o n t í n u o , e q u e a p o l ê m i c a e n t r e a m b o s n a d a m a i s e r a d o
q u e u m a q u e r e l a d e f amí l i a . Af ina l , e m n o m e d o q u e
R o u s s e a u a p o n t a v a a c iv i l i zação c o m o " c o r r u p t o r a " e o
q u e s igni f icava , ali , a " d e c a d ê n c i a " ? Se a c o r r u p ç ã o de
n o s s a s a l m a s é a p r e s e n t a d a c o m o d i r e t a m e n t e p r o p o r c i o
n a l ao p r o g r e s s o d a s a r t e s e d a s c i ênc ias , é p o r q u e " v i u - s e
a v i r t u d e d e s v a n e c e r - s e à m e d i d a q u e a l u z d a q u e l a s se
e l e v a v a e m n o s s o h o r i z o n t e , e o b s e r v o u - s e o m e s m o fe
n ô m e n o e m t o d o s o s t e m p o s e e m t o d o s o s l u g a r e s " 7 .
6. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 9 [185], KSA, vol. 12, p. 449. 7. Rousseau, J.J., Discours..., cit., p. 206.
INTRODUÇÃO XV
E s t á a q u i o s e n t i d o da c e n s u r a r o u s s e a u i s t a à c iv i l i zação:
e la é c o n d e n a d a p o r d i s s i p a r a " v i r t u d e " - e e s t e m e s m o
leitmotiv e s t a r á d i r i g i n d o a cr í t ica de R o u s s e a u a o s "f i ló
s o f o s " , e s t e s " d e c l a m a d o r e s f ú t e i s " q u e d i s p e n d e m s e u
t e m p o e s g r i m i n d o s e u s " f u n e s t o s p a r a d o x o s " s o l a p a n d o ,
c o m i s so , " o s f u n d a m e n t o s da f é e a n u l a n d o a v i r t u d e " 8 .
Eis o m a l da c iv i l i z ação : e l a s e o p õ e à v i r t u d e , d i z R o u s
s e a u . Eis o b e m da c iv i l i zação , d i rá Vol ta i re : e la e s t i m u l a a
v i r t u d e . Eis aí, d i r i a N i e t z s c h e , u m a b r i g u i n h a e n t r e m o n
g e s : t o d o s e s t ã o d e a c o r d o q u a n t o a o f u n d a m e n t a l , e n e
n h u m d o s l a d o s c h e g a a c o l o c a r e m e x a m e a p r ó p r i a i d é i a
d e " v i r t u d e " , q u e p a r a a m b o s p e r m a n e c e i n q u e s t i o n á v e l .
N ã o l h e s o c o r r e u n u n c a q u e a i d é i a d e " v i r t u d e " seja e x a
t a m e n t e a q u e l a q u e d e v e s e r p o s t a e m q u e s t ã o p o r q u e m
q u e r a n a l i s a r o v a l o r de n o s s a civi l ização. Q u a l o va lo r d e s
s e i d e a l d e " v i r t u d e " q u e a m b o s q u e r e m p r e s e r v a r ? E a p e
n a s c o m a f o r m u l a ç ã o d e s t a p e r g u n t a q u e s e c o m e ç a a
falar c o m s o t a q u e n i e t z s c h i a n o : q u a n d o , s o b a s q u e r e l a s
de superf íc ie , c o m e ç a r m o s a i nves t i ga r os ideais q u e t á c i t a -
m e n t e a s c o m a n d a m , q u e r d i z e r , a q u i l o q u e é i m p l i c i
t a m e n t e a d m i t i d o p o r t o d o s o s p a r t i d o s c o m o s e n d o o
" d e s e j á v e l " , a q u i l o q u e " d e v e r i a s e r m a s n ã o é " . N a q u e -
re l a e n t r e R o u s s e a u e Vol ta i re , o i d e a l c o m u m de " v i r t u
d e " n ã o é s e q u e r e x a m i n a d o . I s so signif ica d i z e r q u e , ali, a
a n á l i s e d o v a l o r d e n o s s a " c i v i l i z a ç ã o " n a v e r d a d e n ã o foi
n e m m e s m o e s b o ç a d a .
A o c o n t r á r i o , a o s o l h o s d e N i e t z s c h e o s e u m o d o d e
a n a l i s a r a " c i v i l i z a ç ã o " a p o n t a p a r a u m a e s t r a t é g i a d e i n
v e s t i g a ç ã o q u e s e r á i n é d i t a p r e c i s a m e n t e p o r s e u r a d i c a
l i s m o . É e x a t a m e n t e e s s a s i n g u l a r i d a d e q u e e le s u b l i n h a
a o t r a t a r d a m o r a l , i n d i c a n d o o q u e s igni f ica f aze r u m a
8. Rousseau, ].-]., Discours..., cit., p. 216.
XVI NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
"c r í t i c a d o s v a l o r e s m o r a i s " . E s s a cr í t ica , d i z e l e , é " u m a
n o v a e x i g ê n c i a " . E e l a d e s i g n a u m c o n h e c i m e n t o " t a l
c o m o a t é h o j e n u n c a ex i s t iu n e m foi d e s e j a d o " 9 . Af ina l ,
e n q u a n t o p a r a t o d a a t r a d i ç ã o o v a l o r d o s v a l o r e s m o r a i s
e r a v i s t o c o m o u m d a d o i n q u e s t i o n á v e l , a g o r a s e c o l o c a
r á s o b s u s p e i t a o p r ó p r i o v a l o r d e s s e s v a l o r e s . A t é h o j e , a s
f i losofias s ó s e p r e o c u p a r a m c o m a " f u n d a m e n t a ç ã o " d o s
v a l o r e s m o r a i s - n e n h u m a s e p r e o c u p o u c o m o va lo r d e s
s e s v a l o r e s , n e n h u m a e x e r c e u a cr í t ica d a m o r a l , n i n g u é m
t r a n s f o r m o u , e f e t i v a m e n t e , a c iv i l i zação em q u e s t ã o a s e r
i n v e s t i g a d a . P o r i s s o , a o s o l h o s d e N i e t z s c h e a c e n a i n
t e l e c t u a l a l e m ã p e r m a n e c e d o m i n a d a p e l o " l i v re p e n
s a d o r " , a l g u é m q u e n u n c a d e v e r e m o s c o n f u n d i r c o m o
" e s p í r i t o l i v r e " . Q u e m é a q u e l e p e r s o n a g e m ? O " l iv re
p e n s a d o r " é u m "c r í t i co" . M a s u m crí t ico q u e a i n d a t r a b a
l h a a s e r v i ç o d e u m i d e a l e , a s s i m , n u n c a o s u b m e t e r á a
e x a m e 1 0 . A s u a cr í t ica n u n c a é d i r i g i d a a o i d e a l , m a s a p e
n a s à q u e s t ã o d e s a b e r p o r q u e e l e a i n d a n ã o foi a l c a n ç a
d o . E q u e a " l i b e r d a d e de e s p í r i t o " d o s a l e m ã e s n ã o é l i
b e r d a d e o s u f i c i e n t e p a r a q u e e l e s c h e g u e m a c o l o c a r e m
q u e s t ã o o s s e u s p r ó p r i o s " i d e a i s " . E o q u e p e n s a r d e n o s
s o s a t e u s , n o s s o s " s o c i a l i s t a s " ? E l e s c r i t i c a m a origem d o s
v a l o r e s m o r a i s , ta l c o m o a c o n c e b e o c r i s t ão . N ã o - d i z e m
e l e s - , o s v a l o r e s m o r a i s n ã o t ê m q u a l q u e r o r i g e m s u p r a -
s e n s í v e l , é a q u i m e s m o q u e e l e s n a s c e m . B r i l h a n t e ! S ó
q u e e l e s c r i t i c a m a o r i g e m d o s v a l o r e s m o r a i s , m a s a c r e
d i t a m n e s s e s v a l o r e s t a n t o q u a n t o o c r i s t ã o . Q u e s e v e r i
f ique - d i z N i e t z s c h e - o u s o e o a b u s o do e l o g i o ao " a l
t r u í s m o " n o s d i s c u r s o s s o c i a l i s t a s - j u s t o d o a l t r u í s m o ,
e s s e v a l o r c r i s t ã o p o r e x c e l ê n c i a . O soc ia l i s t a c o m p a r t i l h a
9. Nietzsche, Genealogia da moral, cit., Prólogo, § 6, p. 14. 10. Nietzsche, Humano, demasiado humano, I, § 511, KSA, vol. 2,
p. 511.
INTRODUÇÃO XVII
o s m e s m o s v a l o r e s m o r a i s c o m o c r i s tão . A p e n a s c o m u m a
d i f e r e n ç a : o soc i a l i s t a é supe r f i c i a l . " Q u e i n g e n u i d a d e ! "
- d i r á N i e t z s c h e - " c o m o se s u b s i s t i s s e a m o r a l q u a n d o
fal ta u m D e u s q u e a s a n c i o n e . U m além é a b s o l u t a m e n t e
n e c e s s á r i o q u a n d o s e q u e r c o n s e r v a r s i n c e r a m e n t e a f é
n a m o r a l . " 1 1
S e n d o a s s i m , s e N i e t z s c h e va i c o l o c a r e m q u e s t ã o a
n o s s a c iv i l i zação , s u a e s t r a t é g i a c o n s e r v a , a o s s e u s o l h o s ,
u m a e s p e c i f i c i d a d e e u m a o r i g i n a l i d a d e q u e d e v e m s e r
p r e s e r v a d a s , a o i n v é s d e a p r e s s a d a m e n t e i n c l u i r m o s s u a
t ó p i c a n o i d e á r i o t r a d i c i o n a l . A s s i m c o m o o r e s u l t a d o q u e
s e e s p e r a d a i n v e s t i g a ç ã o t a m b é m n ã o s e r á c o m e n s u r á -
ve l a o p r o g r a m a d e n o s s o p a s s a d o f i losofante . O q u e p r e o
c u p a v a R o u s s e a u , n o p r i m e i r o Discurso, a o e m p r e e n d e r
s e u p r o c e s s o da n o s s a c iv i l i zação? Se a c iv i l i zação é ali e s
t i g m a t i z a d a , s e e la é v i s t a c o m o c o r r u p t o r a , o - f u n d o q u e
r e g e a p r e o c u p a ç ã o do f i lósofo é a i d é i a de melhorar a h u
m a n i d a d e : se a c iv i l ização c o r r o m p e , é p r e c i s o c u i d a r p a r a
q u e a h u m a n i d a d e , c o n s c i e n t e d e s e u s p e r i g o s , e m p r e e n
da o a p e r f e i ç o a m e n t o q u e a c iv i l i zação só t e n d e a inibir .
D o n d e o a p e l o f inal d e R o u s s e a u a o s h o m e n s d e E s t a d o :
s ã o e l e s q u e p o d e m cor r ig i r o s r u m o s e , c o n t r o l a n d o o
d e s t i n o , r e c o l o c a r a h u m a n i d a d e n a t r i l h a d o b e m . M a s
s e r á q u e a cr í t ica n i e t z s c h i a n a à c iv i l i zação t a m b é m se r ia
o r i e n t a d a p e l a m e s m a p r e o c u p a ç ã o c o m o " m e l h o r a m e n
t o " d o s h o m e n s ? N ã o . S o b r e t u d o , n ã o . " A ú l t i m a coisa q u e
eu p r o m e t e r i a - d i z N i e t z s c h e - s e r i a ' m e l h o r a r ' a h u m a
n i d a d e . E u n ã o c o n s t r u o n o v o s í d o l o s ; o s v e l h o s q u e
a p r e n d a m o q u e s ignif ica t e r p é s de b a r r o . Derrubar ídolos
( m i n h a p a l a v r a p a r a " i d e a i s " ) - i s s o s i m é m e u o f í c i o . " 1 2
11. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 2[165], KSA, vol. 12, p. 147. 12. Nietzsche, Ecce homo, Prólogo, § 2, trad. Paulo César de Sou
za, São Paulo, Companhia das Letras, 2001, p. 18.
XVIII NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
Q u e r e r " m e l h o r a r " a h u m a n i d a d e é , n a m a i s o t i m i s t a d a s
h i p ó t e s e s , e r ig i r u m n o v o í d o l o , u m n o v o i d e a l a s e r a t i n
g i d o , u m a n o v a " m e t a " p a r a a e x i s t ê n c i a . Q u e m d e s e j a
i s s o n ã o é o " e s p í r i t o l iv re" , m a s s i m o " p r o f e s s o r da m e
t a d a e x i s t ê n c i a " , u m d e s e u s m a i s c l a r o s a n t a g o n i s t a s .
N i e t z s c h e o d e s c r e v e l o g o no in í c io de A gaia ciência. E o
" p r o f e s s o r d a m e t a d a e x i s t ê n c i a " q u e , a i n d a n ã o t e n d o
t o m a d o c o n s c i ê n c i a d a c o m é d i a d a v ida , r e i n v e n t a a t o d o
m o m e n t o u m n o v o f im, u m a n o v a m e t a . E s s e p e r s o n a
g e m a i n d a e s t á p r e s o à é p o c a d a s m o r a i s e d a s r e l i g iõe s ,
e v o l t a e m e i a p r o p õ e u m n o v o " i d e a l " . D e p o i s d e i n s t i
t u í - l o , e l e d i z : " S i m , a v i d a v a l e a p e n a s e r v i v i d a ! S i m , eu
s o u d i g n o de v iver !" ; a v i d a " v o l t a v a a ser, p o r a l g u m t e m
p o , u m a co i sa interessante a o s n o s s o s o l h o s " 1 3 . E foi o s u r
g i m e n t o c o n s t a n t e d e s s e s p r o f e s s o r e s d a m e t a d a e x i s
t ê n c i a , - a s s e g u r a N i e t z s c h e - q u e t e v e p o r e f e i t o a t é
m e s m o m o d i f i c a r a n a t u r e z a h u m a n a : e l a t e m d e a g o r a
e m d i a n t e u m a n e c e s s i d a d e a m a i s , p r e c i s a m e n t e a n e
c e s s i d a d e d a c o n s t a n t e r e a p a r i ç ã o d e s e m e l h a n t e s p r o
f e s s o r e s c o m s u a s l i ções . O h o m e m t o r n o u - s e u m a n i m a l
s i n g u l a r , cuja e x i s t ê n c i a e s t á s u b m e t i d a a u m a c o n d i ç ã o
d e v i d a s u p l e m e n t a r : " é preciso q u e d e t e m p o s e m t e m
p o s e le se f igure s a b e r por que exis te ; s u a e s p é c i e n ã o p o d e
p r o s p e r a r s e m u m a c o n f i a n ç a p e r i ó d i c a n a v i d a ! S e m cre r
e m u m a r a z ã o n a v i d a ! " 1 4 . N ã o . N ã o s e t r a ta , p a r a N i e t z
s c h e , d e p r o p o r u m a n o v a m e t a , u m n o v o " i d e a l " m e l h o -
r a d o r d a e x i s t ê n c i a . E l e n ã o v a i r e a t a r c o m o s s e m p r e e s
p e r a d o s " p r o f e s s o r e s d a m e t a d a e x i s t ê n c i a " . N e s t e p o n
t o , e l e t a m b é m p e r m a n e c e r á " i n a t u a l " .
Se é a s s i m , o e m p r e e n d i m e n t o se r ia p u r a m e n t e nega
tivo? M a s , p e n s a n d o b e m , q u a l o v a l o r d e s s a c e n s u r a ? Ela
13. Nietzsche, A gaia ciência, I, § 1, KSA, vol. 3, p. 372.
14. Nietzsche, A gaia ciência, I, § 1, KSA, vol. 3, p. 372.
INTRODUÇÃO XIX
p o d e m u i t o b e m r e v e l a r a p r i s ã o d o c e n s o r à s u a n e
c e s s i d a d e d e u m a n o v a d o u t r i n a d a " m e t a d a e x i s t ê n
c ia" , a s u a d e m a n d a s i l enc io sa p o r n o v o s í d o l o s . M a s p a r a
N i e t z s c h e t r a t a - s e e x a t a m e n t e d e i m p l o d i r e s t a exigência
p e r s i s t e n t e , e a g o r a o r e s u l t a d o n ã o s e r á d e f o r m a a l g u
m a m a g r o : e l e s ign i f i ca rá u m a t r a n s f o r m a ç ã o d e n o s s a
existência. Af ina l , p o r q u e d e r r u b a r í d o l o s ? N ã o p o r c a u s a
d e a l g u m g r a t u i t o fu ro r i c o n o c l a s t a , m a s s i m p o r q u e a
r e a l i d a d e "foi d e s p o j a d a d e s e u valor , s e u s e n t i d o , s u a v e
r a c i d a d e , n a m e d i d a e m q u e s e forjou u m m u n d o idea l . . .
A mentira do i d e a l foi a t é a g o r a a m a l d i ç ã o s o b r e a r e a l i
d a d e , a t r a v é s d e l a a h u m a n i d a d e m e s m a t o r n o u - s e m e n -
d a z e fa lsa a t é s e u s i n s t i n t o s m a i s b á s i c o s - a p o n t o de
a d o r a r o s v a l o r e s inversos a o s ú n i c o s q u e l h e g a r a n t i r i a m
o f l o r e s c i m e n t o , o f u t u r o , o e l e v a d o d i r e i t o ao f u t u r o " 1 5 .
A o i n v é s d o t ác i to p l a t o n i s m o d e t o d o s o s " p r o f e s s o r e s d a
m e t a d a e x i s t ê n c i a " , o q u e s e b u s c a a g o r a é d e s e n r a i z a r
a exigência m e s m a d e u m i d e a l - n ã o i n s t i t u i r u m n o v o
i d e a l , m a s v o l t a r p a r a a q u i l o q u e N i e t z s c h e c h a m a r á d e
" i n o c ê n c i a d o v i r - a - s e r " : a n t e s d e t u d o , a d e c i s ã o d e n ã o
m e d i r m a i s a r e a l i d a d e s e g u n d o n o r m a s i d e a i s d a s
q u a i s e la e s t á a f a s t a d a , e m d i r e ç ã o à s q u a i s e l a deveria c a
m i n h a r - u m a e s t r a t é g i a q u e s e m p r e t e r á p o r c o n s e q ü ê n
cia condenar o m u n d o d o v i r - a - s e r e m n o m e d e s s e s idea i s .
D e s t a p r i m e i r a a p r e s e n t a ç ã o a i n d a m u i t o e s q u e m á -
t ica , r e t e n h a m o s a p e n a s u m a i d é i a n u c l e a r - m a s u m a
i d é i a q u e t e r á c o n s e q ü ê n c i a s . S e N i e t z s c h e p r e t e n d e fa
z e r u m a a n á l i s e d e n o s s a c iv i l i zação q u e a t é e n t ã o j a m a i s
fora e m p r e e n d i d a , u m a a n á l i s e q u e , p o r s u a r a d i c a l i d a d e ,
d e v e c o l o c a r e m q u e s t ã o t o d o s o s i d e a i s e v a l o r e s v i g e n
t e s , a n t e s d e l o u v a r o u l a m e n t a r a m e g a l o m a n i a d o e m -
15. Nietzsche, Ecce homo, cit, Prólogo, § 2, p. 18.
XX NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
p r e e n d i m e n t o , c o n v é m s u b l i n h a r o p r o b l e m a t e ó r i c o i m e
d i a t o q u e ta l p r o j e t o s u s c i t a . U m p r o b l e m a fi losófico - o u
de cr í t ica da f a c u l d a d e de ju lga r , c o m o d i r i a K a n t : d e onde
fala a q u e l e q u e a s s i m fa la? O n d e s e s i t u a o d i s c u r s o c r í
t i c o q u e a v a l i a a t o t a l i d a d e d e n o s s a " c i v i l i z a ç ã o " , s e m
l a n ç a r m ã o d o s i n s t r u m e n t o s a n a l í t i c o s l e g a d o s p o r e s t a
p r ó p r i a t r a d i ç ã o ? P a r a a n a l i s a r a t o t a l i d a d e d e n o s s a c iv i
l i z ação s e m p e r m a n e c e r p r e s o a o s e u feit iço o fi lósofo p r e
c i sa rá , s o b p e n a d e g r a v e c o n t r a - s e n s o , r e d e f i n i r u m t e r
r i t ó r i o a n a l í t i c o q u e se ja i n c o m e n s u r á v e l à q u e l e q u e n o s
foi l e g a d o . A f i n a l , n o s s a " c i v i l i z a ç ã o " n ã o i nc lu i a p e n a s
a m o r a l , a r e l i g i ã o , o i d e á r i o s o c i o p o l í t i c o e a m ú s i c a de
W a g n e r . T a m b é m faz p a r t e d e l a t o d o o l e g a d o d a re f lexão
f i losóf ica e , p o r i s s o m e s m o , a a n á l i s e d e n o s s a c iv i l i za
ç ã o e x i g i r á u m a r e a v a l i a ç ã o d o d i s c u r s o f i losóf ico e d a
i d é i a m e s m a d e filosofia, q u e r d izer , e la ex ig i rá a e l a b o r a
ç ã o d e u m t e r r i t ó r i o n o v o d e o n d e , a p a r t i r d e a g o r a , s e
fala. S e n d o a s s i m , va l e a p e n a re t raçar , a n t e s d e t u d o , p e l o
m e n o s o c o n t o r n o o m a i s g e r a l d a q u e l e q u e s e r á , p a r a
N i e t z s c h e , o d i s c u r s o f i losófico e n c a r r e g a d o d e " a v a l i a r "
a n o s s a c iv i l i zação . E p a r a fazer i s so , o q u e m a i s i m p o r t a é
d e i x a r o s t e x t o s f a l a r e m , a o i n v é s d e r e a t a r c o m a s u p e r f í
cie e , a p r e s s a d a m e n t e , b a t i z a r u m a filosofia d e " i r r a c i o n a -
l is ta" - c o m o se a l g u é m d e t i v e s s e o s d i re i tos a u t o r a i s s o b r e
a p a l a v r a " r a z ã o " .
I I I
Q u a l i m a g e m p o d e r á t e r a filosofia p a r a e m p r e e n d e r
e s t a crí t ica d a c ivi l ização, e e m q u a i s p o n t o s e la d e v e r á c o
m e ç a r p o r d i s t a n c i a r - s e d a t r a d i ç ã o q u e a n a l i s a ? E m Ecce
homo, a o c o m e n t a r s u a p r ó p r i a o b r a , N i e t z s c h e n o s o f e -
INTRODUÇÃO XXI
r e c e a l g u m a s p i s t a s . E m p r i m e i r o lugar , t r a t a - s e d e u m a
filosofia q u e n u n c a t e r á d i s c í p u l o s , q u e n u n c a f o r m a r á e s
co la . A d e s p r o p o r ç ã o " e n t r e a g r a n d e z a d e m i n h a t a re fa
e a p e q u e n e z de m e u s c o n t e m p o r â n e o s " - d i z N i e t z s c h e
- " m a n i f e s t o u - s e n o f a to d e q u e n ã o m e o u v i r a m , s e q u e r
m e v i r a m " 1 6 . N e n h u m a s u r p r e s a : o " i n a t u a l " n ã o fala a o s
h o m e n s c o n t e m p o r â n e o s , s e m p r e s i d e r a d o s p e l a s " i d é i a s
m o d e r n a s " . M a s h á a i n d a o u t r a r a z ã o p a r a i s so , q u e s e r á
e s s e n c i a l : o s " c o n t e m p o r â n e o s " n u n c a e n c o n t r a r ã o , n a
o b r a d e N i e t z s c h e , a q u i l o q u e g o s t a r i a m d e e n c o n t r a r , a
s a b e r , u m a doutrina, a l g o e m q u e s e p o s s a " a c r e d i t a r " .
G é r a r d L e b r u n ins is t ia n e s s e c a r á t e r a - d o u t r i n a l d a f i loso
fia d e N i e t z s c h e 1 7 . E , d e fa to , q u e m fala p e l a v o z d e Z a r a -
t u s t r a ? A q u i - d i z N i e t z s c h e - n ã o fala u m p r o f e t a , n ã o
fala n e n h u m d a q u e l e s a r r e p i a n t e s h í b r i d o s d e d o e n ç a e
v o n t a d e d e p o t ê n c i a q u e s ã o c h a m a d o s f u n d a d o r e s d e r e
l ig iões . A q u i n ã o fala u m f a n á t i c o , a q u i n ã o s e p r e g a , a q u i
n ã o s e ex ige c r e n ç a . S e r i a Z a r a t u s t r a u m s e d u t o r , a l g u é m
q u e a m a s e r s e g u i d o ? Pe lo c o n t r á r i o . O q u e d iz Z a r a t u s t r a
q u a n d o , p e l a p r i m e i r a v e z , r e t o m a p a r a s u a s o l i d ã o ? Z a
r a t u s t r a fala e x a t a m e n t e o c o n t r á r i o d o q u e d i r i a u m " s á
b i o " , u m " s a n t o " , u m " r e d e n t o r d o m u n d o " o u q u a l q u e r
o u t r o " d e c a d e n t e " . Z a r a t u s t r a n ã o s o m e n t e fala d e o u t r o
m o d o c o m o t a m b é m é d e o u t r o m o d o : " A g o r a p r o s s i g o
s ó , m e u s d i s c í p u l o s ! E v ó s t a m b é m , i d e e m b o r a , e s ó s !
A s s i m o q u e r o . A f a s t a i - v o s d e m i m e d e f e n d e i - v o s c o n t r a
Z a r a t u s t r a ! M e l h o r : e n v e r g o n h a i - v o s d e l e ! Ta lvez e l e v o s
t e n h a e n g a n a d o . " 1 8 Z a r a t u s t r a t a l v e z o s t e n h a e n g a n a d o :
16. Nietzsche, Ecce homo, cit, § 1, p. 17. 17. Lebrun, G., "Por que ler Nietzsche, hoje?", in Passeios ao léu,
São Paulo, Brasiliense, 1983, p. 32. 18. Nietzsche, Ecce homo, cit., Prólogo, § 4, p. 20.
XXII NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
e l e s b u s c a v a m u m a n o v a c r e n ç a , u m a n o v a d o u t r i n a , e
i s s o n ã o l h e s s e r á o f e r t a d o , e l e s n ã o d i s p o r ã o d e u m a i d e o
log ia a m a i s p a r a e n r i q u e c e r o c a r d á p i o de s u a s " o p ç õ e s " .
E s t o u l o n g e d e s e r u m f u n d a d o r d e r e l i g i õ e s , d i z N i e t z
s c h e . N ã o q u e r o c r e n t e s ; e u n ã o c re io e m m i m m e s m o ; e u
n ã o fa lo j a m a i s p a r a a s m a s s a s 1 9 . D e o n d e v e m e s s a d i s
t â n c i a d o d i s c u r s o filosófico d e N i e t z s c h e e m face d o s e m
p r e e n d i m e n t o s d o " s á b i o " , d o " s a n t o " e d o " r e d e n t o r d o
m u n d o " ? E s s e s e m p r e e n d i m e n t o s e s t ã o t o d o s e l e s c a l ca
d o s e m c o n v i c ç õ e s , e m c e r t e z a s , e s ã o e x a t a m e n t e e s s a s
c o n v i c ç õ e s q u e o s d i s c í p u l o s b u s c a m . M a s Z a r a t u s t r a é
cé t i co , e le n ã o f o r n e c e r á c o n v i c ç õ e s a n i n g u é m . L o g o , e l e
n u n c a s e t o r n a r á c h e f e d e s e i t a . " Q u e n i n g u é m s e d e i x e
i n d u z i r e m e r r o : o s g r a n d e s e s p í r i t o s s ã o cé t i cos . Z a r a t u s
t r a é um cé t i co . A força, a liberdade q u e v e m da força e s o -
b re fo rça d o e sp í r i t o prova-se p e l a skepsís. H o m e n s d e c o n
v i c ç ã o , em t u d o o q u e é f u n d a m e n t a l q u a n t o a v a l o r e
d e s v a l o r , n e m e n t r a m e m c o n s i d e r a ç ã o . C o n v i c ç õ e s s ã o
p r i s õ e s . " 2 0 A s s i m , q u e m fala s o b o d i s c u r s o d e N i e t z s c h e
é o o p o s t o d o h o m e m d e c o n v i c ç õ e s d a t r a d i ç ã o : q u e m
fala ali é o " e s p í r i t o l i v r e" , u m a f igura a n t i p l a t ô n i c a p o r
e x c e l ê n c i a . E é a e s t e p e r s o n a g e m q u e se d e v e d i r i g i r a
a t e n ç ã o p a r a ve r i f i ca r o q u e s e t o r n a r á , d o r a v a n t e , a " f i
l o s o f i a " . Q u a l é o r o s t o d o " e s p í r i t o l i v r e" , e s t e i n i m i g o
c o n f e s s o d a s c o n v i c ç õ e s e d a s c e r t e z a s ?
N i e t z s c h e o d e s c r e v e em Humano, demasiado humano.
O e s p í r i t o l ivre é a l g u é m d e d i c a d o ao c o n h e c i m e n t o , q u e
d e s d e n h a a v e n e r a ç ã o d a s m a s s a s e a t r a v e s s a o m u n d o de
f o r m a t ã o s i l e n c i o s a q u a n t o d e l e sa i . S e n d o " i n a t u a l " , o
19. Nietzsche, "Por que sou um destino", in Ecce homo, cit., § 1, ed. supra, p. 109.
20. Nietzsche, O Anticristo, § 54, Obras incompletas, trad. Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo, Abril Cultural, 1983, p. 357.
INTRODUÇÃO XXIII
e s p í r i t o l ivre n ã o t e m a m a r r a s c o m a " o p i n i ã o p ú b l i c a " .
S e u o p o s t o i m e d i a t o , o h o m e m d e c o n v i c ç õ e s , é a q u e l e
q u e c rê e s t a r e m p o s s e d e v e r d a d e s d e f i n i t i v a s e , p o r i s so
m e s m o , t e m p o r p o s t u l a d o n ã o p o d e r se r r e f u t a d o . O e s
p í r i t o l ivre , a o c o n t r á r i o , n u n c a fixa o p i n i õ e s e m c o n v i c
ç õ e s : e l e i m p e d e e s s a f ixação p o r c o n s t a n t e s v a r i a ç õ e s e
s ó t e r á a o s e u d i s p o r p r o b a b i l i d a d e s e x a t a m e n t e m e n s u
r a d a s 2 1 . A s s i m d e s c r i t o , o e s p í r i t o l ivre é , a n t e s d e t u d o ,
u m e x p e r i m e n t a d o r . N i e t z s c h e o o p õ e a o e s p í r i t o s e r v o .
A s c a d e i a s a s m a i s f o r t e s q u e o e s p í r i t o d e v e r o m p e r p a r a
l i b e r t a r - s e s ã o a s c a d e i a s d o s d e v e r e s , q u e r d ize r , o r e s
p e i t o a o s v a l o r e s a n t i g o s e v e n e r a d o s . O e s p í r i t o l ivre va i
d e s i g n a n d o , a s s i m , u m a v o n t a d e d e a u t o n o m i a n a d e
t e r m i n a ç ã o d e s i m e s m o e d e s e u s p r ó p r i o s v a l o r e s , u m a
" v o n t a d e d e v o n t a d e l iv re" . A g o r a o e sp í r i t o l ivre t o r n a - s e
u m e x p e r i m e n t a d o r c u r i o s o e m face d o s f r u t o s p r o i b i
d o s : e l e s e i n t e r r o g a r á e n t ã o s e n ã o p o d e m o s i n v e r t e r
t o d o s o s v a l o r e s ; s e o b e m n ã o s e r i a o m a l ; s e D e u s n ã o
s e r i a u m a i n v e n ç ã o ; s e n ã o p o d e o c o r r e r q u e t u d o se ja
fa lso . S u a l i b e r d a d e d e e s p í r i t o d e v e r á a b r i r - l h e a v ia p a r a
m a n e i r a s de p e n s a r m ú l t i p l a s e o p o s t a s , o q u e l h e d a r á o
p r i v i l ég io de v i v e r a t í t u l o de e x p e r i ê n c i a 2 2 .
E s s a idé ia d e e sp í r i t o l ivre t r a z c o n s i g o u m a r e c u s a d a
n o ç ã o c l á s s i ca d e v e r d a d e , c o m o u m d o s " v a l o r e s " a s e
r e m p o s t o s e m q u e s t ã o , u m d o s i d e a i s d e q u e o e sp í r i t o l i
v r e se l i be r t a . Em A gaia ciência, N i e t z s c h e a p r e s e n t a r á o
" d e s e j o d e c e r t e z a " c o m o s i n t o m a d e u m a " v o n t a d e fra
c a " d o h o m e m d e c o n v i c ç õ e s . O q u a n t o a l g u é m p r e c i
s a d e c r e n ç a , o q u a n t o a l g u é m d e s e j a e l e m e n t o e s t á v e l
21. Nietzsche, Humano, demasiado humano, I, § 292, KSA, vol. 2, p. 322.
22. Nietzsche, Humano, demasiado humano, Prefácio, § 4, Obras incompletas, cit., p. 88.
XXIV NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
p a r a s e a p o i a r , é r e v e l a d o r d o g r a u d e s u a força , o u a n t e s ,
d e s u a f r a q u e z a . E i s so q u e r e s s e d e s e j o d e c e r t e z a s e m a
n i f e s t e c o m o d e s e j o d e c e r t e z a re l ig iosa , fi losófica, c i e n t í
fica ou " i d e o l ó g i c a " . O e s p í r i t o l ivre é o c o n t r á r i o de um
fraco, e l e n ã o d e s e j a c o n v i c ç õ e s e s t á v e i s , e l e n ã o p r e c i s a
d e c e r t e z a s . A c r e n ç a é d e s e j a d a c o m o u m p o n t o d e a p o i o
p a r a a q u e l e q u e c a r e c e d e v o n t a d e , a q u e l e q u e p r e c i s a
o b e d e c e r a a l g o d e e s t á v e l . P o r q u e a v o n t a d e , e n q u a n t o
a fecção d e c o m a n d o - e n ã o d e o b e d i ê n c i a - , é s e m p r e u m
s i g n o d i s t i n t i v o d e s o b e r a n i a e d e força . A s s i m , q u a n t o
m e n o s u m a p e s s o a d e s e j a c o m a n d a r - s e , c o m m a i s u r g ê n
cia e l a e x p e r i m e n t a o d e s e j o d e u m a r e a l i d a d e , u m s e r o u
u m a a u t o r i d a d e q u e a c o m a n d e , e c o m r i g o r : seja u m D e u s ,
u m p r í n c i p e , u m e s t a d o social , u m confesso r , u m p s i c a n a
l i s ta , u m d o g m a o u u m a c o n s c i ê n c i a d e p a r t i d o . E m o u
t r a s p a l a v r a s , q u a n t o m a i s s e é " f r a c o " , m a i s s e n e c e s s i
t a d e u m a c o n v i c ç ã o e m r e l a ç ã o à q u a l s e t e m o d e v e r d e
o b e d i ê n c i a . De ta l f o r m a - d i r á N i e t z s c h e - q u e o c r i s t i a
n i s m o t a l v e z d e v a s e u n a s c i m e n t o a u m m o m e n t o d e e x
t r a o r d i n á r i a a s t e n i a d a v o n t a d e : e s s a r e l i g i ã o e x p l o r a a o
m á x i m o o d e s e j o d e u m " t u d e v e s " , e x a l t a d o d e s e s p e r a -
d a m e n t e a t é o n ã o - s e n s o p e l a d o e n ç a d o q u e r e r . A o c o n
t r á r io , o e sp í r i t o l ivre t e m u m d e s e j o e u m a fo rça d e d e t e r
m i n a ç ã o d e si, t e m u m a l i b e r d a d e d o q u e r e r q u e a fa s t a
t o d a c r e n ç a , t o d o d e s e j o de c e r t e z a . O e s p í r i t o l ivre - d i z
N i e t z s c h e - s e e q u i l i b r a r á s o b r e p o s s i b i l i d a d e s c o m o s o
b r e c o r d a s , d a n ç a r á n a b o r d a d o s a b i s m o s 2 3 . Z a r a t u s t r a é
b a i l a r i n o , e l e é o e s p í r i t o l ivre p o r exce l ênc i a , a l g u é m q u e
n ã o t e m c o n v i c ç õ e s , u m e x p e r i m e n t a d o r , o p r e c u r s o r d o
filósofo d o fu tu ro . Z a r a t u s t r a é , a n t e s d e t u d o , u m p e r s o
n a g e m q u e t e m s e u script c e n t r a d o n a q u i l o q u e a Genea-
23. Nietzsche, A gaia ciência, § 347, Obras incompletas, cit., p. 215.
INTRODUÇÃO XXV
logia da moral d e s c r e v e r á c o m o s e n d o a " v e r d a d e i r a l ibe r
d a d e d e e s p í r i t o " : e l e s a b e q u e , s e n a d a é v e r d a d e i r o ,
e n t ã o t u d o é p e r m i t i d o - e e l e fa rá u m a e x p e r i m e n t a
ç ã o c o m a p r ó p r i a v e r d a d e . M a s d e o n d e v e m o d i r e i t o
d e c i d a d a n i a d e s t e " e s p í r i t o l i v r e" , e n q u a n t o e l e s e o p õ e
a o c o m é r c i o c l á s s i c o c o m a v e r d a d e ? E m u m a p r i m e i r a
a p r o x i m a ç ã o , s u a c e r t i d ã o d e n a s c i m e n t o t e m r e g i s t r o
n a s r e f l exões de N i e t z s c h e s o b r e a fi losofia t r a d i c i o n a l . O
e s p í r i t o l ivre é , em p r i m e i r o lugar , o a n t a g o n i s t a deste h o
m e m d e c o n v i c ç õ e s e m p a r t i c u l a r q u e é o m e t a f í s i c o . S e n
d o a s s i m , é e m f u n ç ã o d a s r a z õ e s q u e l e v a m N i e t z s c h e
a c r i t i car a f i losofia c l á s s i ca q u e se p o d e c o m e ç a r a c o m
p r e e n d e r o e s p a ç o d o e s p í r i t o l ivre , u m e s p í r i t o v i n c u l a d o
a o u t r a n o ç ã o d e " c o n h e c i m e n t o " .
Q u a l e r a o " d e f e i t o h e r e d i t á r i o " d e t o d o s o s f i l ó so
fos? A n t e s d e t u d o - d i r á N i e t z s c h e - , a " fa l t a d e s e n t i d o
h i s t ó r i c o " . E l e s n ã o q u e r e m c o m p r e e n d e r q u e o h o m e m
é o r e s u l t a d o d e u m v i r - a - s e r , q u e a p r ó p r i a f a c u l d a d e d e
c o n h e c i m e n t o t a m b é m v e i o a ser . A s s i m , a q u i l o q u e o fi
lóso fo a p r e e n d e n a r e a l i d a d e d e h o j e , e l e a d m i t e q u e faça
p a r t e d o s d a d o s i m u t á v e i s d a h u m a n i d a d e e p e n s a q u e
e l e s p o d e m f o r n e c e r u m a c h a v e p a r a o e n t e n d i m e n t o d o
m u n d o e m g e r a l . E l e s f a l a m d a ú l t i m a f igu ra d o h o m e m
c o m o s e fo s se a l g o e t e r n o e n ã o r e c o n h e c e m q u e , s e t u d o
v e i o a ser, e n t ã o n ã o e x i s t e m f a t o s e t e r n o s n e m v e r d a d e s
a b s o l u t a s 2 4 . O s f i lósofos s ã o e n g r a ç a d o s : e l e s s e s i t u a m
d i a n t e d o m u n d o d a expe r i ênc i a , d i z N i e t z s c h e - d i a n t e d o
q u e e les c h a m a m d e m u n d o d o s f e n ô m e n o s - , c o m o d i a n
t e d e u m a p i n t u r a q u e e s t a r i a feita d e u m a v e z p o r t o d a s e ,
c o m i n a l t e r á v e l f i rmeza , m o s t r a r i a o m e s m o e v e n t o . A g o -
24. Nietzsche, Humano, demasiado humano, I, § 2, Obras incompletas, cit., p. 92.
XXVI NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
ra, e l e s s e a t r i b u e m c o m o t a r e f a i n t e r p r e t a r c o r r e t a m e n t e
e s s e e v e n t o , p a r a c o m i s s o ex t r a i r u m a c o n c l u s ã o s o b r e o
" s e r " q u e p r o d u z i u a p i n t u r a . E i s a í o d o g m á t i c o c l á s s i co .
E x i s t e m t a m b é m o s " c r í t i c o s " , a q u e l e s q u e p e n s a m n ã o
s e p o d e r c o n c l u i r d a p i n t u r a a l g o s o b r e s e u a u t o r . M a s
e m a m b o s o s c a s o s , d i r á N i e t z s c h e , n ã o é l e v a d a e m c o n
ta a p o s s i b i l i d a d e de q u e a p i n t u r a p o u c o a p o u c o v e i o a
ser , e a l i á s a i n d a e s t á e m p l e n o v i r - a - s e r , e p o r i s s o n ã o
p o d e s e r c o n s i d e r a d a u m a g r a n d e z a f ixa 2 5 . Fo i p o r c a u s a
d e s s e m i t o d e u m a f ix idez d o m u n d o , p o r e s s a r e c u s a d o
v i r - a - s e r q u e o s h o m e n s a c r e d i t a r a m , p o r t a n t o t e m p o ,
n o s c o n c e i t o s e n o m e s d a s c o i s a s c o m o v e r d a d e s e t e r
n a s , e p e n s a r a m t e r e f e t i v a m e n t e , n a l i n g u a g e m , o c o n h e
c i m e n t o d o m u n d o . M a s q u e o h o m e m a c e i t e a r e a l i d a d e
d o p e r p é t u o v i r - a - s e r h e r a c l i t i a n o : a g o r a , e l e j á e s t a r á c o n
d e n a d o a t o r n a r - s e um "esp í r i t o l ivre" , q u e r dizer , o c o n t r á
r io d e u m a r r o g a n t e . Af ina l , s e t u d o v e i o a ser, s e n ã o h á
fa tos e t e r n o s n e m v e r d a d e s a b s o l u t a s , " d e a g o r a e m d i a n
te o fi losofar histórico é n e c e s s á r i o e, c o m e le , a v i r t u d e da
m o d é s t i a " 2 6 .
V i r t u d e d a m o d é s t i a : q u e d o r a v a n t e o fi lósofo r e n u n
cie à p r e t e n s ã o d e e n u n c i a r o c o n j u n t o d a s v e r d a d e s " d e
f in i t ivas" , q u e e l e a b d i q u e à s u a m a n i a d e ed i t a r , a c a d a
m o m e n t o , o " m u n d o v e r d a d e i r o e ú n i c o " . A c o n s c i ê n c i a
d o p e r p é t u o v i r - a - s e r d e v e l e v a r - n o s a u m a r e e l a b o r a ç ã o
d a n o ç ã o d e c o n h e c i m e n t o q u e se ja exc lus iva d o u n i v e r
so c láss ico d a s c e r t e z a s e c o n v i c ç õ e s . E s t a a d m i s s ã o fi lo
sóf ica d o v i r - a - s e r s e r á u m d o s f u n d a m e n t o s d a q u i l o q u e
N i e t z s c h e c h a m a r á d e " p e r s p e c t i v i s m o " d e n o s s o c o n h e -
25. Nietzsche, Humano, demasiado humano, § 16, Obras incompletas, cit, p. 93.
26. Nietzsche, Humano, demasiado humano, § 2, Obras incompletas, cit., p. 92.
INTRODUÇÃO XXVII
c i m e n t o : n ã o s e c o n h e c e m v e r d a d e s i m u t á v e i s e m u m
m u n d o q u e e s t á e m p e r p é t u o v i r - a - s e r . D e s t e m u n d o s ó
t e m o s p e r s p e c t i v a s pa rc ia i s , s e m p r e s i t u a d a s , c o n d e n a d a s
a n u n c a s e c r i s t a l i z a r e m e m v e r d a d e s de f in i t i vas , a p e n a s
u m a m u l t i d ã o d e " p o n t o s d e v i s t a " , q u e t ê m t o d o s o m e s
m o d i r e i t o d e c i d a d a n i a . E , u m a v e z a f a s t a d a a p r e t e n s ã o
r i d í cu l a d e d e c r e t a r q u e n o s s o r e c a n t o é o ú n i c o d e o n d e
s e t e n h a o d i r e i t o d e t e r u m a p e r s p e c t i v a , o m u n d o v o l t a
a s e r i n f i n i t o , n o s e n t i d o d e q u e " n ã o p o d e m o s r e c u s a r -
l h e a p o s s i b i l i d a d e de prestar-se a uma infinidade de interpretações"27. A s s i m , o h o m e m de conv icções , a q u e l e q u e s e
c r ê n a p o s s e d a v e r d a d e , é n o f inal d a s c o n t a s u m p e r s o
n a g e m c u r i o s o : e l e q u e r i m p o r s u a o p i n i ã o p o r q u e n ã o
s a b e q u e necessariamente e x i s t e m o u t r a s o p i n i õ e s . P i o r
a i n d a , e l e é o h o m e m q u e p e r d e u o e s p í r i t o d e i n v e s t i g a
ç ã o : " A s e r p e n t e q u e n ã o t r o c a d e p e l e m o r r e . O m e s m o
o c o r r e c o m o s e s p í r i t o s i m p e d i d o s d e m u d a r d e o p i n i ã o ;
e l e s c e s s a m d e se r e s p í r i t o s . " 2 8 A s c o n v i c ç õ e s s ã o p r i s õ e s , e
é p r e f e r í v e l s u b s t i t u i r a p a i x ã o p o r p o s s u i r a v e r d a d e p o r
a q u e l a o u t r a , m a i s m o d e s t a , p e l a q u a l s e busca a v e r d a d e ,
s e m c a n s a r - s e d e r e v i s a r e r e e x a m i n a r s e u s c o n h e c i m e n
t o s . O e s p í r i t o l ivre é um e x p e r i m e n t a d o r : s u a i n v e s t i g a
ç ã o é u m a p e s q u i s a c o n t i n u a d a q u e n ã o q u e r sol id i f icar-se
e m c e r t e z a s . P o r i s s o , N i e t z s c h e va i c o m p a r á - l o a o a n d a
r i l h o q u e c a m i n h a a o l éu , s e m p o r t o d e c h e g a d a . E t a m
b é m p o r i s s o o e s p í r i t o l iv re n ã o t e r á p a r t i d o , j á q u e e l e
n ã o d i s p o r á d a s a p t i d õ e s r e q u e r i d a s a u m p a r t i d á r i o : r a
p i d a m e n t e s e u p e n s a m e n t o o l e v a r á p a r a a l é m d o s p a r t i
d o s . O "fi lósofo d o f u t u r o " d e s e n h a d o p o r N i e t z s c h e s e m
p r e t e r á i s so e m v i s ta ; e l e s e r á a m i g o d a v e r d a d e , s e m s e r
)
27. Nietzsche, A gaia ciência, § 374, KSA, vol. 3, p. 627. 28. Nietzsche, Aurora, § 573, KSA, vol. 3, p. 330.
XXVIII NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
um dogmático; ele nunca desejará uma verdade válida para todos; ele fará da filosofia uma investigação continuada. É a partir daqui que se pode começar a entender o sentido do "ceticismo" de Zaratustra. Ele não será cético nò sentido clássico da palavra - seu ceticismo não será uma paralisia, um sedativo para quem busca a tranqüilidade. Ele não se comprazerá, como Montaigne, em perguntar "que sei eu?" - este virtuoso e nobre festim da abstinência. Esse ceticismo - diz Nietzsche - é apenas a expressão intelectual daquilo que, em linguagem corrente, se chama neurastenia, e esse cético é o doente da vontade que perdeu o sentido da decisão independente. Zaratustra é um cético de outra linhagem, o experimentador, um investigador que acordou do sono dogmático 2 9 .
O que pensar desse redesenho nietzschiano da "filosofia"? Digamos, antes de mais nada, que ainda não se desvelou nem o seu sentido completo, nem a sua condição de possibilidade, assim como não se formulou sequer a aporia sobre a verdade que tal projeto parece implicar: como decretar que a essência deste mundo é a "vontade de potência" e, ao mesmo tempo, negar valor "ontológi-co" a essa afirmação? Mas, pelo menos, essas indicações sumárias podem indicar um caminho a seguir para a interpretação do pensamento de Nietzsche. Vale a pena manter sempre no horizonte as regras de prudência formuladas por Karl Lõwith, em seu livro já clássico sobre Nietzsche 3 0 . As teses de Nietzsche não são teses filosóficas no sentido tradicional da palavra. Se seu pensamento se apresenta de forma não sistemática, é porque ele coloca em questão a própria idéia de verdade. Todos os pensa-
29. Sobre a oposição entre os dois ceticismos, cf. Para além do bem e do mal, §§ 209/210, KSA, vol. 5, pp. 140-2.
30. Lõwith, K., Nietzsches Philosophie..., cit, cap. II.
INTRODUÇÃO XXIX
d o r e s d o s s é c u l o s a n t e r i o r e s - d i z N i e t z s c h e - m e s m o o s
cé t i cos , a c r e d i t a v a m p o s s u i r a v e r d a d e . " O q u e é n o v o e m
n o s s a p o s i ç ã o a t u a l e m face d a f i losof ia é a c o n v i c ç ã o ,
q u e n ã o foi a d e n e n h u m a é p o c a , d e q u e n ã o p o s s u í m o s
a v e r d a d e . " 3 1 O fi lósofo é a p e n a s o e x p e r i m e n t a d o r , o a n
d a r i l h o q u e t r i lha v á r i o s c a m i n h o s p a r a c h e g a r à s u a " v e r
d a d e " , u m a v e r d a d e q u e a g o r a d e v e se r s e m p r e p e n s a d a e
e s c r i t a e n t r e a s p a s . O r a , n ã o é d e e s p a n t a r q u e e s s a f i lo
sof ia e x p e r i m e n t a l a p r e s e n t e t e s e s d i v e r g e n t e s e n t r e si,
q u e a p e n a s n o e sp í r i t o d o s i s t e m á t i c o s e r ã o t r a d u z i d a s p o r
" c o n t r a d i ç õ e s " . A s s i m , q u e n i n g u é m ve ja " c o n t r a d i ç õ e s "
ali o n d e e x i s t e m a p e n a s d i s t i n t o s e x p e r i m e n t o s , d i f e r en t e s
p e r s p e c t i v a s - p r i m e i r a r e g r a p a r a a l e i tu ra de N i e t z s c h e .
O c a r á t e r e x p e r i m e n t a l d a f i losof ia e x p l i c a a s s u a s p r ó
p r i a s t r a n s f o r m a ç õ e s , a s s i m c o m o a p a r t i c u l a r i d a d e d a for
m a l i t e rá r i a exp l i ca o s e u c o n t e ú d o : e x p e r i m e n t a ç õ e s e x
p r e s s a s e m a f o r i s m o s .
É v e r d a d e q u e , d i a n t e d a o b r a d e N i e t z s c h e , n ã o e s
t a m o s f r e n t e a u m " s i s t e m a " . N i e t z s c h e cr i t ica o s s i s t e
m a s p o r s i m u l a r e m u m m u n d o d o g m a t i c a m e n t e f ixado e
e n c l a u s u r a d o , o q u e faz c o m q u e o p e n s a d o r s i s t e m á t i c o
p e r c a o e s p í r i t o de i n v e s t i g a ç ã o . A q u i , a cr í t ica ao s i s t e m a
c o r r e s p o n d e a u m a v o n t a d e fi losófica d e n o v a s d e s c o b e r
t a s e d e h o r i z o n t e s a b e r t o s d e p e s q u i s a . M a s i s s o s ign i f i
ca r i a q u e e s t a m o s c o n d e n a d o s a u m a a b s o l u t a d e s o r d e m
d e s s a s " e x p e r i m e n t a ç õ e s " e q u e n ã o h a v e r i a fio c o n d u t o r
q u e p e r m i t i s s e a o l e i t o r s i t u a r - s e n o c i p o a l d o s m ú l t i p l o s
a f o r i s m o s ? I s s o se r ia e q u i v a l e n t e a d i z e r q u e e s t a m o s p r e
s o s à a l t e r n a t i v a k a n t i a n a e n t r e o " s i s t e m a " e o " a g r e g a
d o " , o q u e n ã o é o c a s o . C o m o n o t a v a , m a i s u m a v e z , Kar l
L õ w i t h , N i e t z s c h e c o m b a t e , n o s i s t e m a , a p e n a s o fa to d e
31. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 3 [19], KSA, vol. 9, p. 52.
XXX NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
e s t e s e m p r e fixar o m u n d o ; e l e n ã o c o m b a t e a i d é i a d e
u n i d a d e m e t ó d i c a . A s s i m , a s s u a s e x p e r i m e n t a ç õ e s n ã o
s e r ã o d e s p r o v i d a s d e m é t o d o , e l a s n ã o n o s d e i x a r ã o s e m
r u m o . N i e t z s c h e i n d i c a a d i r e ç ã o d e s e u s e x p e r i m e n t o s a o
d e s c r e v e r a s t r ê s t r a n s m u t a ç õ e s d o e s p í r i t o d e Z a r a t u s t r a
q u e d e s i g n a m , a o m e s m o t e m p o , t a n t o a s m e t a m o r f o s e s
d o e s p í r i t o d a h u m a n i d a d e , n o c u r s o d a h i s t ó r i a , q u a n t o
a s t r a n s f o r m a ç õ e s d a p r ó p r i a filosofia d e N i e t z s c h e : c o m o
o e s p í r i t o s e t o r n a c a m e l o , c o m o o c a m e l o s e t o m a l e ã o ,
c o m o o l e ã o s e t o r n a c r i a n ç a 3 2 . O u e n t ã o , t r o c a n d o e m
m i ú d o s : c o m o o e sp í r i t o s e t o r n a c a m e l o , q u e r dizer , c o m o
s e c o n s t i t u i o p e r í o d o e m q u e d o m i n a a m á x i m a " t u d e
v e s " , e m q u e a v o n t a d e é c o m a n d a d a p o r D e u s e p e l a s
m o r a i s ; c o m o o c a m e l o s e t o r n a l e ã o , o u seja , m o m e n t o
e m q u e a m o r t e d o " d e v e r " d á l u g a r a o u t r a m á x i m a , o
" e u q u e r o " , c o m o r e s s u r g i m e n t o d a v o n t a d e e o n a s c i
m e n t o d o n i i l i s m o e u r o p e u ; c o m o o l e ã o s e t o r n a c r i ança ,
i s t o é , o m o m e n t o e m q u e p r e v a l e c e a m á x i m a " e u s o u " ,
q u a n d o s e dá a s u p e r a ç ã o do n i i l i smo , a a f i r m a ç ã o do e t e r
no r e t o r n o e do amorfati. S e g u n d a r e g r a p a r a a l e i t u r a de
N i e t z s c h e : a n a l i s a r a s s u a s e x p e r i m e n t a ç õ e s n o â m b i t o
d e s s a s d i s t i n t a s t r a n s m u t a ç õ e s . S e n d o a s s i m , v a l e a p e n a
c o m e ç a r p o r s i t u a r - n o s n o p e r í o d o i n t e r m e d i á r i o , a q u e l e
do n i i l i s m o e u r o p e u , j á q u e ali c o m e ç a a c o n s t i t u i r - s e a
n o ç ã o m e s m a d e " f i losof ia" , t a l c o m o e s t a é e n u n c i a d a
p e l o e s p í r i t o l iv re . Q u e m v o s fa la - d i z N i e t z s c h e - " é o
p r i m e i r o n i i l i s t a p e r f e i t o d a E u r o p a " 3 3 . C o m e c e m o s p o r
p e r g u n t a r q u e m e l e é .
32. Nietzsche, "Das três transmutações", Assim falou Zaratustra, Obras incompletas, cit., p. 229.
33. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11[411], KSA, vol. 13, p. 189.
CAPÍTULO I
O M A I O R D O S A C O N T E C I M E N T O S R E C E N T E S
"O m a i o r dos a c o n t e c i m e n t o s r e c e n t e s - q u e ' D e u s
es tá m o r t o ' , q u e a c r e n ç a no D e u s c r i s tão caiu em descré¬
di to - já c o m e ç a a l a n ç a r s u a s p r i m e i r a s s o m b r a s s o b r e a
E u r o p a . Rara os p o u c o s , pe lo m e n o s , cujos o l h o s , cuja s u s
pe i ta n o s o l h o s é forte e re f inada o b a s t a n t e para e s s e e s
p e t á c u l o , p a r e c e j u s t a m e n t e que a l g u m sol s e p ô s , q u e
a l g u m a v e l h a , profunda conf i ança v i rou dúv ida : para e les ,
n o s s o v e l h o m u n d o há de a p a r e c e r dia a dia m a i s p o e n t e ,
m a i s d e s c o n f i a d o , m a i s a l h e i o , m a i s v e l h o " 1 . E s t e afo¬
r i s m o de A gaia ciência r e t o m a o t e m a do " a t e í s m o " de
N i e t z s c h e : Z a r a t u s t r a se def ine c o m o o " s e m D e u s " , e a
m o r t e d e D e u s , e s t e " m a i o r d o s a c o n t e c i m e n t o s recen¬
t e s " , c o n d i c i o n a t a n t o os o u t r o s t e m a s q u a n t o a estrutu¬
ra da filosofia de N i e t z s c h e . Em p r ime i ro lugar , c o n d i c i o ¬
na os o u t r o s t e m a s : o a t e í s m o de N i e t z s c h e n ã o é a p e n a s
u m a pa r t i cu l a r i dade ou u m a t e s e en t re ou t r a s de sua fi lo-
1. Nietzsche, A gaia ciência, § 343, Obras incompletas, cit., p. 211.
2 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
sofia. Ao c o n t r á r i o , c o m o já o b s e r v a v a L õ w i t h 2 , e le é o
p r e s s u p o s t o de t o d a s a s s u a s o u t r a s d o u t r i n a s , c o m o o
e t e r n o r e t o r n o , a v o n t a d e de p o t ê n c i a , a t r a n s m u t a ç ã o de
t o d o s os v a l o r e s . Da m e s m a fo rma , o a t e í s m o é o pressu¬
p o s t o d o a d v e n t o d o a l é m - h o m e m . Z a r a t u s t r a p r o c l a m a :
" D e u s m o r r e u , o a l é m - h o m e m p o d e v ive r " , q u e r dizer , o
a t e í s m o é e q u i v a l e n t e a u m a cr í t i ca ao " h u m a n i s m o " . Em
s e g u n d o lugar , o a t e í s m o c o n d i c i o n a a e s t ru tu ra da filoso¬
fia de N i e t z s c h e : a p a s s a g e m do "tu d e v e s " ao "eu q u e r o "
é , e m p r i m e i r o lugar , u m r e s u l t a d o d a m o r t e d e D e u s .
P o r q u e é a n t e s de t u d o a par t i r do D e u s c r i s t ã o q u e se dá
d i r e i t o de c i d a d a n i a a u m a e x t r a p o l a ç ã o m á x i m a da idé i a
de " d e v e r " .
C o m o N i e t z s c h e indica na Genealogia da moral, ain¬
da q u e os s e n t i m e n t o s de " d e v e r " e de " o b r i g a ç ã o pes¬
s o a l " t e n h a m s e o r i g i n a d o n a s m a i s a n t i g a s r e l a ç õ e s en¬
tre o s i n d i v í d u o s , a s r e l a ç õ e s e n t r e c o m p r a d o r e v e n d e ¬
dor, e l e s fo ram m o n o p o l i z a d o s e c o n c e n t r a d o s no d e v e r
e na o b r i g a ç ã o em r e l a ç ã o a D e u s . D e s d e e n t ã o , q u a n t o
m a i s s e e x p o n e n c i a a i dé i a d e D e u s , t a n t o m a i o r se rá ,
p r o p o r c i o n a l m e n t e , o s e n t i m e n t o de deve r e de o b r i g a ç ã o
em r e l a ç ã o a e l e . P o s t o i s so , é p r e c i s o c o n c l u i r q u e o ad¬
v e n t o d o D e u s c r i s t ã o , a e x p r e s s ã o m a i s a l ta d o d i v i n o
a l c a n ç a d a a té e n t ã o , fez surg i r na t e r ra o m á x i m o de sen¬
t i m e n t o d e o b r i g a ç ã o . S e n d o a s s i m , p o d e - s e p r e v e r q u e o
t r iunfo c o m p l e t o e de f in i t ivo do a t e í s m o l i be r t a r i a a hu¬
m a n i d a d e d e t o d o s e n t i m e n t o d e o b r i g a ç ã o e m r e l a ç ã o à
s u a o r i g e m 3 . D e s d e e n t ã o , é po r um ú n i c o e m e s m o m o v i
m e n t o q u e se o b t é m o e c l i p s e do "tu d e v e s " e a e m a n c i ¬
p a ç ã o do "eu q u e r o " : r e n u n c i a r ao d e v e r é r e e n c o n t r a r o
2. Lõwith, K., Nietzsches Philosophie..., cit , cap. III.
3. Nietzsche, Genealogia da moral, cit., II, § 20, p. 98.
O MAIOR DOS ACONTECIMENTOS RECENTES 3
quere r , é r e d e s c o b r i r o lugar p r i v i l e g i a d o do c o n c e i t o de
" v o n t a d e " , q u e n ã o era r e c o n h e c i d o c o m o e s s e n c i a l e x a
t a m e n t e por c a u s a do c r i s t i a n i s m o . E es te se rá o pr imei¬
ro p a s s o para a d e s c o b e r t a s i m é t r i c a de que a r e l ig ião ex¬
p r i m e u m a d e b i l i t a ç ã o d a v o n t a d e , j á q u e a p e n a s u m a
v o n t a d e fraca prefere o b e d e c e r a u m a i n s t â n c i a t r anscen¬
d e n t e a e x e r c e r - s e e n q u a n t o v o n t a d e , quer dizer, a co¬
m a n d a r . D o n d e a r e l a ç ã o q u e N i e t z s c h e e s t a b e l e c e r á en¬
tre a e l e v a ç ã o do " t ipo h o m e m " e o a b a n d o n o de D e u s :
" N u n c a m a i s r e z a r á s , n u n c a m a i s a d o r a r á s , n u n c a m a i s
d e s c a n s a r á s na c o n f i a n ç a s e m fim - te p r o í b e s de parar
d i a n t e d e u m a s a b e d o r i a ú l t i m a , b o n d a d e ú l t i m a , p o t ê n
cia ú l t ima . . . o h o m e m , t a lvez , sub i rá cada v e z m a i s a l to ,
d e s d e q u e de ixe de desaguar em um d e u s . " 4 A s s i m , se o
t e m a d o a t e í s m o in f l ex iona t a n t o a s d e m a i s t e s e s d e
N i e t z s c h e q u a n t o a e s t ru tu ra de sua fi losofia, é p r e c i s o
pe rgun ta r , a n t e s de m a i s nada , o que signif ica esta "mor¬
te de D e u s " . E s s a p e r g u n t a é inev i t áve l , j á que N i e t z s c h e
n ã o é o ú n i c o filósofo a dec l a r a r - s e " s e m D e u s " , o que n o s
ob r iga a i nves t iga r a s i n g u l a r i d a d e de seu a t e í s m o . No fi¬
nal de Fé e saber, H e g e l já se refer ia ao s e n t i m e n t o s o b r e
o qual r e p o u s a a re l ig ião dos n o v o s t e m p o s , o s e n t i m e n t o
de q u e D e u s m o r r e u . S e n d o a s s i m , qual a e s p e c i f i c i d a d e
d o a t e í s m o n i e t z s c h i a n o e m face d o s s e u s h o m ô n i m o s
t r a d i c i o n a i s ?
II
E m u m d e s e u s e n s a i o s , H e i d e g g e r p e r g u n t a v a - s e
p e l o s i gn i f i c ado des ta f ó r m u l a d e N i e t z s c h e , " D e u s es tá
4. Nietzsche, A gaia ciência, § 285, Obras incompletas, cit., p. 203.
4 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃOE CULTURA
m o r t o " 5 . E , c o m o s e m p r e o c o r r e e m s u a s a n á l i s e s , a t e s e
de N i e t z s c h e era ali des t i tu ída de toda e q u a l q u e r s ingula¬
r idade em face de u m a t r ad i ção q u e , no fundo, ela a p e n a s
p ro longa r i a . A m o r t e de D e u s n ã o ser ia s e n ã o a e x p r e s s ã o
final da h i s tó r i a da m e t a f í s i c a e se i n s c r e v e r i a , p o r t a n t o ,
no in te r io r d e s s a h i s t ó r i a : a filosofia de N i e t z s c h e n ã o re¬
p r e s e n t a r i a n e n h u m a rup tu ra c o m u m p a s s a d o q u e ela
a p e n a s levar ia ao seu l imi te e t e rmina r i a , a m o r t e da me¬
taf ís ica s e n d o a s s u n t o d a p róp r i a me t a f í s i c a . M a s s e r á
m e s m o q u e s e p o d e aceitar , s e m m a i s r essa lvas , essa idéia
de q u e o a t e í s m o de N i e t z s c h e n ã o é m a i s do q u e a ex¬
p r e s s ã o c r e p u s c u l a r d e u m m e s m o m o v i m e n t o p r e s e n t e
n a h i s tó r i a d o p e n s a m e n t o ? E s s e m o v i m e n t o , que H e i -
d e g g e r c h a m a d e " m e t a f í s i c a " , t o r n a - s e agora u m a n o i t e
o n d e t o d o s os ros tos p e r d e m sua s i lhue ta própr ia , aplaina¬
dos na m e s m i c e de um diáfano e mi s t e r i o so " e s q u e c i m e n ¬
t o d o se r" . D e s c o n f i e m o s d e s s a s g r a n d e s c o n t i n u i d a d e s
h i s t ó r i c a s que , a q u a l q u e r p r e ç o , q u e r e m fazer c o m que
t u d o seja um. O q u e n ã o s ignif ica , de fo rma a l g u m a , lan¬
çar s u s p e i t a s s o b r e t oda e q u a l q u e r c o n t i n u i d a d e , d e s d e
que esta seja b e m loca l i zada e h i s t o r i c a m e n t e c i rcunscr i ta .
A s s i m , já se af i rmou que o a t e í s m o de N i e t z s c h e ser ia
" p r ó x i m o " à q u e l e da I l u s t r a ç ã o , q u e ao fim e ao c a b o ele
a p e n a s p r o l o n g a r i a 1 . E , por um l ado , n ã o fal tam tex tos que
p o s s a m t razer a l g u m a c a u ç ã o a e s sa i n t e r p r e t a ç ã o . A s s i m ,
N i e t z s c h e n ã o de ixa rá de r e t o m a r , por sua p rópr i a c o n t a ,
o t e m a e o l e m a de Voltaire - écrasez Vinfâme - c o m o a in
dicar sua f i l iação esp i r i tua l à Aufklarung. I m p r e s s ã o t a n t o
m a i s r ea f i rmada q u a n d o se r e c o r d a que a cr í t ica às idé ias
5. Heidegger, M, "Le mot de Nietzsche 'Dieu est mort'", in Che-mins qui ne mènent nuüepari, Paris, Gallimard, 1962, pp. 173-219.
6. Biser, E., "Ni antéchrist ni a la recherche de Dieu", in Nietzsche aujourdhui?, Paris, Plon, 1973, vol. II, p. 258.
O MAIOR DOS ACONTECIMENTOS RECENTES 5
de "dever" e "obrigação" pode ser apresentada como um dos slogans publicitários prediletos dos "ilustrados". Afinal, o que são as "luzes"? Kant as caracterizava, em um opúsculo célebre, como a recusa de toda autoridade exte¬ rior, que deve ser obedecida, e a conseqüente elevação da humanidade. Assim, dizia Kant, se por todos os lados ou¬ vimos gritar: não raciocine, obedeça, se "o oficial diz: não raciocine, faça seus exercícios! O cobrador: não raciocine, pague! O padre: não raciocine, creia!" 7 , as luzes são exa¬ tamente o contramovimento a esse establishment da obe¬ diência cega. "As luzes se definem como a saída do homem para fora do estado de menoridade, onde ele se mantém por sua própria culpa. A menoridade é a incapacidade de servir-se de seu en tendimento sem ser dirigido por outro. Ela é devida à nossa própria culpa quando resulta não de uma falta de entendimento, mas de uma falta de resolução e de coragem para servir-se dele sem ser dirigido por outro. Sa-pere aude! Tenha a coragem de servir-se de seu próprio entendimento! Eis a divisa das luzes ." 8 Não se pense que, nessas páginas, Kant está prestes a defender a desobe¬ diência civil. Ele vai distinguir cuidadosamente entre o uso público e o uso privado da razão, para que a sociedade ilustrada não termine seus dias em estado de natureza. Mas resta que as "luzes" representam uma desconfiança em face de todo "tu deves", paralela a uma emancipação humana. Nenhuma instância exterior à qual eu devo obe¬ diência, nenhum ordenador de meus deveres: o que falta para mencionar o "eu quero" nie tzschiano? Da mesma forma, se o próprio homem é o responsável por sua " m e -
7. Kant, "Réponse à la question: qu'est-ce que les lumières?", in Oeuvresphilosophiques, Paris, NRF, Pléiade, 1985, vol. II, p. 211.
8. Kant, "Réponse...", in Oeuvres philosophiques, cit., p. 209.
6 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
n o r i d a d e " , p a r e c e q u e n ó s j á c o m e ç a m o s a ouv i r N i e t z -
s c h e : a p e n a s a v o n t a d e " f raca" q u e r a s u b o r d i n a ç ã o e
p re fe re o b e d e c e r a c o m a n d a r . M a s b a s t a r i a i s so p a r a fi¬
l iar N i e t z s c h e a o p r o p a l a d o a t e í s m o d o s i l u s t r a d o s ? V a l e
a p e n a p e r g u n t a r , a n t e s de m a i s n a d a , q u a l a n a t u r e z a
d e s s e " a t e í s m o " . E i sso p a r t i c u l a r m e n t e em r e l a ç ã o à ilus¬
t r a ç ã o f r ancesa , j á q u e e m K a n t , c o m o s e s a b e , o D e u s
cuja e x i s t ê n c i a n ã o p o d e se r p r o v a d a p e l a r a z ã o t e ó r i c a
p e r m a n e c e c o m o u m i d e a l e c o m o u m p o s t u l a d o d a ra¬
z ã o p rá t i ca . C o m o di rá N i e t z s c h e , e s s a é a e s p e r t e z a de
K a n t : D e u s n ã o p o d e se r p r o v a d o , m a s t a m b é m n ã o p o d e
s e r re fu tado . . .
C o m o n o t a v a C a s s i r e r , t r a d i c i o n a l m e n t e s e c o n s i d e ¬
ra um t r a ç o e s s e n c i a l da i l u s t r a ç ã o a a t i t u d e cr í t ica e c é t i -
ca em face da r e l i g i ã o 9 . E se i s s o é p a r t i c u l a r m e n t e váli¬
do p a r a a i l u s t r a ç ã o f r ancesa é p o r q u e o écrasez Vinfâme
de V o l t a i r e r e s u m e b e m o s e u e s p í r i t o . P o i s se é v e r d a d e
q u e Vol ta i re a t e n u a sua pa lavra d e o r d e m , e x p l i c a n d o a o
d i s t i n t o p ú b l i c o q u e s u a lu ta é c o n t r a a s u p e r s t i ç ã o , n ã o
c o n t r a a fé, c o n t r a a Igre ja , n ã o c o n t r a a r e l ig i ão , r es ta q u e
sua p o s t e r i d a d e fará letra m o r t a d e s s a s c o n c e s s õ e s a o b o m
t o m e d e m o n s t r a ç õ e s de b o m - m o c i s m o . E s e r á c o n t r a a
r e l i g i ão e sua p r e t e n s ã o de v a l i d a d e q u e se d i r ig i rá o e n -
c i c l o p e d i s m o : o d i s c u r s o r e l i g i o s o s e r á v i s t o a g o r a n ã o
a p e n a s c o m o fa lso , m a s t a m b é m c o m o p e r n i c i o s o a u m a
o r d e m p o l í t i c o - s o c i a l j u s t a . A s s i m , n ã o s e r á difícil reen¬
c o n t r a r , em a l g u m a s p á g i n a s de D ' H o l b a c h , a r e l a ç ã o -
p r é - n i e t z s c h i a n a - e n t r e m a i s r e l i g i ã o , m a i s o b e d i ê n c i a ,
m e n o s força - e s e r í a m o s t e n t a d o s a d izer : m e n o s von ta¬
d e . D ' H o l b a c h a c u s a r á a r e l i g i ão d e e d u c a r o s h o m e n s n o
t e m o r a t i r a n o s i n v i s í v e i s , f a z e n d o - o s s e r v i s e c o v a r d e s
9. Cassirer, E., Filosofia de la ilustración, México, FCE, 1972, p. 156.
O MAIOR DOS ACONTECIMENTOS RECENTES 7
f ren te a o s d é s p o t a s da te r ra , s u f o c a n d o t o d a a força ca¬
p a z de dirigir c o m i n d e p e n d ê n c i a o s e u p r ó p r i o d e s t i n o 1 0 .
Da m e s m a m a n e i r a , s e em N i e t z s c h e a m o r t e de D e u s -
e n q u a n t o r e c u s a d e u m m u n d o s u p r a - s e n s í v e l - t e m c o m o
c o r o l á r i o um r e t o r n o à n a t u r e z a , n ã o é difícil e n c o n t r a r
e s s e m e s m o t e m a n a I l u s t r a ç ã o f rancesa . A s s i m , n o Trai-
té de la tolérance de D i d e r o t há um d i á l o g o e n t r e a natu¬
r eza e o h o m e m , no q u a l se f o r m u l a c l a r a m e n t e a idé ia de
u m a o p o s i ç ã o e n t r e n a t u r e z a e r e l ig i ão , a s s i m c o m o é ex¬
plícita a tese de que a recusa da rel igião é, ipso jacto, u m a
r e c u p e r a ç ã o d o s d i re i tos da n a t u r e z a , i n d e v i d a m e n t e alie¬
n a d o s à q u e l a . Ali , a n a t u r e z a d i r i g e - s e ao h o m e m para di¬
z e r - l h e q u e "é inút i l , ó s u p e r s t i c i o s o , q u e b u s q u e s tua fe¬
l i c i d a d e m a i s a l é m d a s f ron t e i r a s d o m u n d o e m q u e t e
c o l o q u e i . O u s a l i be r t a r - t e d o j u g o d a r e l i g i ão , m i n h a o r
g u l h o s a c o m p e t i d o r a , q u e d e s c o n h e c e m e u s d i r e i tos ; re¬
n u n c i a a o s d e u s e s , q u e se a r r o g a r a m o m e u poder , e v o l t a
às m i n h a s le i s . V o l t a ou t ra v e z à n a t u r e z a , da q u a l fugiste;
e la t e c o n s o l a r á , e s p a n t a r á de t eu c o r a ç ã o t o d a s a s angús¬
t ias q u e te o p r i m e m e t o d a s as i n q u i e t u d e s q u e te ator¬
m e n t a m . E n t r e g a - t e à n a t u r e z a , e n t r e g a - t e a t i m e s m o , e
e n c o n t r a r á s , e m q u a l q u e r lugar , f lores n o c a m i n h o d e tua
v i d a " 1 1 . E , se é a s s i m , os j o g o s p a r e c e m fe i tos : o a t e í s m o
de N i e t z s c h e e a q u e l e d o s i l u s t r a d o s p a r e c e m c o n v e r g i r
e t a lvez p o s s a m o s conc lu i r , c o m E u g e n Bi se r , q u e o a t e í s -
mo de N i e t z s c h e e o da I l u s t r a ç ã o s ã o " p r ó x i m o s " .
M a s tal c o n c l u s ã o ser ia m u i t o p rec ip i t ada . E s s a cons¬
t a t a ç ã o de p r o x i m i d a d e e n t r e N i e t z s c h e e a I l u s t r a ç ã o ,
a t e n d o - s e a p o n t o s de c o n v e r g ê n c i a na v e r d a d e n o m i n a i s
10. D'Holbach, Politique naturelle, Discours III, §§ 12 ss., apud Cassirer, Filosofia..., cit., p. 156.
11. Diderot, D., Traité de la tolérance, apud Cassirer, Filosofia..., cit., p. 157.
8 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
e per i fé r icos , i ncor re em um d u p l o d e s c o n h e c i m e n t o : em
p r i m e i r o lugar, n ã o se l e v a m em c o n t a a s n u a n ç a s do di to
" a t e í s m o " das l u z e s ; e m s e g u n d o , n ã o s e c o n s i d e r a qual
é o v e r d a d e i r o i n t e r l o c u t o r de N i e t z s c h e , a q u e l e para
q u e m ele a n u n c i a que " D e u s es tá m o r t o " . A s s i m , por u m
l a d o , se Vol ta i re e D i d e r o t c r i t i c am a re l ig ião , e les c o m b a
t e m a r e l ig ião positiva, m a s para de f ende r a r e l ig ião natu
ral. A cr í t ica q u e e les d i r i g e m à re l ig ião n u n c a se rá u m a
tarefa p u r a m e n t e nega t i va , e a idé ia de t o l e r â n c i a se rá o
c o n t r á r i o de u m a ind i f e r ença d i a n t e da q u e s t ã o r e l i g iosa .
Em ou t r a s pa l av ras , se as r e l i g iõe s pos i t ivas s ã o a expres¬
s ã o d e u m d e s v a r i o , b e m d e m o n s t r a d o pe la gue r ra e n t r e
as s e i t a s , n a d a i m p e d e , ao c o n t r á r i o , a e x i s t ê n c i a de u m a
r e l ig i ão na tu ra l , c o n s t i t u í d a a part i r da r a c i o n a l i d a d e hu¬
m a n a , n ã o i m p o s t a d o ex te r io r por a c o n t e c i m e n t o s his¬
t ó r i c o s . Por i s so , o m e s m o au to r q u e p r o c l a m a o écrasez
Vinfâme! n u n c a irá r e n u n c i a r à idé ia de q u e a e x i s t ê n c i a
d e D e u s é u m a v e r d a d e r i g o r o s a m e n t e d e m o n s t r á v e l .
Vo l t a i r e de ixa rá c la ro q u e a p r o p o s i ç ã o "eu ex i s to , l o g o
ex is te um ser n e c e s s á r i o e e t e r n o " n ã o pe rdeu para e le s u a
e v i d ê n c i a e força c o n c l u d e n t e s 1 2 . Para o i l u s t r ado , o ho¬
m e m n ã o d e v e se r p o s s u í d o e d o m i n a d o pe l a r e l i g i ã o
c o m o por u m a força e s t r a n h a , m a s e le p o d e e d e v e apo¬
de ra r - s e d o s e n t i m e n t o r e l i g i o s o , c o m l i b e r d a d e in ter ior .
A c e r t e z a r e l ig iosa n ã o p o d e ser p r o d u z i d a por u m a po¬
t ê n c i a s o b r e n a t u r a l , n e m pe la g r a ç a divina , m a s é o pró¬
prio h o m e m q u e m a l c a n ç a essa ce r t eza , naqu i l o que K a n t
c h a m a r á de " re l ig ião n o s l imi t e s da s i m p l e s r a z ã o " . E D i -
derot c o n c o r d a r á : s e a s r e l ig iões h i s t o r i c a m e n t e d a d a s s ã o
indec id íve i s en t re si, se t odas r e c l a m a m para s i a u n i v e r s a -
12. Voltaire, Additions aux remarques sur les pensées de Pascal, apud Cassirer, Filosofia..., cit, p. 168.
O MAIOR DOS ACONTECIMENTOS RECENTES 9
l i dade , a p e n a s a r e l i g i ão na tu ra l a l c a n ç a v e r d a d e i r a m e n ¬
te a u n i v e r s a l i d a d e e a e t e r n i d a d e . "Tudo o q u e t eve um
c o m e ç o te rá t a m b é m um fim e , ao c o n t r á r i o , o q u e n ã o
n a s c e u t a m p o u c o passa rá . O r a , o j u d a í s m o e o cr is t ianis¬
mo t i ve ram um c o m e ç o e n ã o ex i s t e re l ig ião s o b r e a terra
cujo a n o de n a s c i m e n t o n ã o seja c o n h e c i d o , a n ã o ser a
r e l ig ião na tu ra l . É a que n ã o a c a b a r á n u n c a , e n q u a n t o as
d e m a i s p a s s a r ã o . " 1 3
D o n d e o s l i m i t e s d a e x p r e s s ã o " a t e í s m o " , q u a n d o
ap l i cada à I l u s t r a ç ã o , e o q u a n t o é d u v i d o s o c o n s i d e r a r o
s é c u l o X V I I I c o m o f u n d a m e n t a l m e n t e i r re l ig ioso . N ã o h á
ali, p r o p r i a m e n t e f a l ando , um d e s v i o do c a m i n h o da fé,
m a s s im a e l a b o r a ç ã o de um n o v o ideal de fé, u m a n o v a
fo rma de r e l i g i ã o . D e s d e e n t ã o , a cr í t ica à r e l i g i ã o e sbo¬
ç a d a p e l o i lu s t r ado e s t ava inscr i t a e m u m a p r o b l e m á t i c a
a inda r e l i g i o s a . D o n d e a n u a n ç a do d i to " a t e í s m o " da
Aufklàrung e - o que é o m a i s i m p o r t a n t e - a d i s t ânc ia in¬
finita em que a I l u s t r ação es tava da p r o p o s i ç ã o " D e u s es tá
m o r t o " . A t e í s m o , m a s m u i t o m o d e r a d o , con t ra o D e u s de
A b r a ã o e J a c ó , n u n c a c o n t r a o D e u s d o s f i lósofos e dos
c ien t i s t a s . S e n d o ass im, t o d o c u i d a d o é p o u c o ao se t en t a r
i n s c r e v e r N i e t z s c h e , seja m o d e s t a m e n t e , e m a l g u m a pe¬
q u e n a t r a d i ç ã o d o " a t e í s m o " , se ja m e n o s m o d e s t a m e n t e
em u m a g r a n d e e e n f a d o n h a h i s tó r i a da " m e t a f í s i c a " .
M a s há a i n d a um s e g u n d o a s p e c t o a s e c o n s i d e r a r
q u a n d o se q u e r c i r c u n s c r e v e r o s e n t i d o do " a t e í s m o "
n i e t z s c h i a n o e m a r c a r sua d i s t ânc ia em face dos s e u s con¬
g ê n e r e s t r a d i c i o n a i s . Q u a l é o i n t e r l o c u t o r de N i e t z s c h e
e q u e p ú b l i c o p rec i s a ser i n f o r m a d o de q u e " D e u s es tá
m o r t o " ? No afor ismo 125 de A gaia ciência, o " i n s e n s a -
13. Diderot, D., De la suffisance de la religion naturelle, IV parte, in Oevres, apud Cassirer, Filosofia..., cit., pp. 193-4.
10 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
to" não anuncia a morte de Deus a uma platéia de fiéis ou de deístas. Ao contrário, essa morte é anunciada àqueles "que não acreditam em Deus" . Signo suficiente de que o acontec imento tem uma dimensão que passou desper¬ cebida aos próprios ateus, e que por isso mesmo não é inútil repetir-lhes, novamente, aquilo que eles já sabem, que Deus morreu: essa "boa nova" deve revelar-lhes algo com que eles ainda não atinaram. Mas algo para o qual seus ouvidos ainda não estão preparados. Por isso, o "in¬ sensato" declara que veio "muito cedo" e que seu tempo "ainda não chegou". Essa situação não é irrelevante para se saber onde está o verdadeiro interlocutor de Nietzsche: ele deve ser procurado no próprio ateísmo filosófico do século XIX alemão. E em relação a esse ateísmo que vai se desenhando a especificidade do ateísmo nietzschia-no e a dimensão inteira do "maior dos acontecimentos recentes" , sequer suspeitada até mesmo por aqueles que acreditam já saber que "Deus está morto".
III
O "ate ísmo" do século XIX alemão era, antes de tudo, o resultado da crise do sistema hegel iano, quando os "jovens hegelianos" tratam de desfazer a unidade que o mestre instituíra entre cristianismo e filosofia - onde a filosofia apenas diria, com boa gramática, o que o cristia¬ nismo já falava, só que expressando-se mal. E o seu mo¬ delo mais acabado era a dissolução da teologia na antro¬ pologia, tal como Feuerbach a empreendera em A essência do cristianismo, de 1841 . Ali, Feuerbach procurava mostrar que a religião - na verdade uma antropologia que esque¬ ceu sua origem demasiado humana - nasce de um duplo
O MAIOR DOS ACONTECIMENTOS RECENTES 11
movimento, de transposição e de depreciação. Pela anᬠlise do movimento de transposição, Feuerbach pretende indicar que o Deus cristão não é senão a própria essência humana, agora hipostasiada. A operação constitutiva da religião é retirar do homem suas forças, qualidades e de¬ terminações essenciais, para divinizá-las sob a forma de seres independentes . "Tu crês no amor, como em uma propriedade divina, porque tu mesmo amas; tu crês que Deus é um ser sábio e bom porque não conheces nada melhor em ti do que a bondade e a inteligência; e tu crês que Deus existe, que ele é portanto sujeito ou ser... porque tu mesmo existes, tu mesmo és um ser." 1 4 Assim, o obje¬ to religioso não é senão a própria essência do homem, tomada como Gegenstand, e a consciência de Deus é uma consciência de si do homem, mas que se desconhece como tal. E é esse desconhecimento que funda a essência pró¬ pria da religião. O homem projeta fora de si a sua essên¬ cia, antes de reencontrá-la nele mesmo: é a consciência dessa alienação, até então despercebida, que deve trans¬ formar a religião na sua verdade - a antropologia. Mas o que significa, para Feuerbach, essa "essência" do homem?
A essência humana é o homem enquanto "ser genérico", não enquanto indivíduo. Se o indivíduo é limitado, o gênero não o é: se razão, amor e vontade são limitados enquanto atributos do indivíduo, não o são enquanto atri¬ butos do gênero humano, da essência. Se o Deus dos teó¬ logos é construído com predicados humanos pensados como ilimitados, essa i l imitação, ausente do indivíduo, está presente na espécie, e por isso mesmo a oposição en¬ tre o divino e o humano é ilusória: ela só designa a opo-
14. Feuerbach, L., Uessence du christianisme, Paris, Maspero, 1968, p. 135.
12 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
sição entre a essência humana e o indivíduo humano e, se é assim, o objeto e o conteúdo da religião cristã são, do começo ao fim, humanos . E por isso a religião, "pelo me¬ nos a religião cristã, é a relação do homem consigo mesmo ou, mais exatamente , com seu ser, mas uma relação com seu ser que se apresenta como um ser outro que ele. O ser divino não é nada mais que o ser humano, ou antes, que o ser do homem, desembaraçado dos limites do homem in¬ dividual, quer dizer, real e corporal, depois objetivado, quer dizer, contemplado e adorado como um ser próprio, mas outro que ele e distinto dele: é por isso que todas as determinações do ser divino são determinações do ser humano" 1 5 . O teó¬ logo recusa-se a negar o substrato desses predicados. Mas o que é esse substrato senão um nada? Se os atributos de Deus não são senão os atributos de nossa espécie, na ilu¬ são religiosa o homem aliena sua essência, isto é, seu ser genérico - o m e s m o esquema que Marx utilizará para fa¬ zer do trabalho alienado a perda do "ser genérico" do tra¬ balhador. Mas, se é assim, quando se toma consciência de que os predicados divinos são apenas antropomorfismos, representações humanas , deve-se colocar em questão a existência do sujeito desses predicados, que só poderá ser um antropomorfismo a mais, uma pressuposição humana a mais. A existência de Deus deve ser posta em questão, e a teologia deve reconhecer-se como uma antropologia inconsciente. Já para Feuerbach, a tradição era o esqueci¬ mento das origens: a tarefa propriamente materialista da filosofia será restituir à antropologia os seus direitos in¬ devidamente alienados à religião, e alienados unicamen¬ te em razão do esquec imento das origens da própria re¬ ligião, o esquecimento de que aquilo que se toma como
15. Feuerbach, L., Uessence du christianisme, cit., p. 131.
O MAIOR DOS ACONTECIMENTOS RECENTES 13
um p r e d i c a d o s e p a r á v e l do su je i to era, o r i g i n a r i a m e n t e , o
v e r d a d e i r o su je i to , o h o m e m .
E s s a c r í t i ca à t e o l o g i a é u m a tarefa u r g e n t e , v i s t o q u e
o m o v i m e n t o de t r a n s p o s i ç ã o d o s a t r i bu to s h u m a n o s para
D e u s t e m c o m o c o r o l á r i o u m a d e p r e c i a ç ã o d o h o m e m , o
q u e c o n s t i t u i a s e g u n d a c a r a c t e r í s t i c a do f e n ô m e n o reli¬
g i o s o p a r a F e u e r b a c h . A f i n a l , q u e m a n a l i s a a e s s ê n c i a
d a r e l i g i ã o p o d e f a c i l m e n t e p e r c e b e r q u e q u a n t o m a i s s e
a c e n t u a m os a t r i b u t o s de D e u s - q u e c o n s t i t u e m s e u ca¬
r á t e r h u m a n o - , m a i s s e v ê a u m e n t a r a d i s t â n c i a q u e
s e p a r a D e u s do h o m e m , m a i s s e vê a t e o l o g i a n e g a r a
i d e n t i d a d e e n t r e a e s s ê n c i a h u m a n a e a e s s ê n c i a d iv ina ,
m a i s se vê r e b a i x a d o t u d o o q u e é h u m a n o , e n q u a n t o e s s e
h u m a n o é o b j e t o da c o n s c i ê n c i a do h o m e m . E a r a z ã o
d i s s o , p a r a F e u e r b a c h , é s i m p l e s : se t u d o o q u e há de po¬
s i t i vo e e s s e n c i a l na c o n c e p ç ã o q u e se faz do d i v i n o se
r e d u z a o h u m a n o , a g o r a s ó s e p o d e r á te r u m a c o n c e p ç ã o
n e g a t i v a e i n u m a n a d o h o m e m . E m o u t r a s p a l a v r a s , p a r a
e n r i q u e c e r D e u s , o h o m e m d e v e fazer -se p o b r e ; p a r a q u e
D e u s se ja t u d o , o h o m e m n ã o d e v e s e r nada. E p r e c i s o
q u e o h o m e m n ã o se ja n a d a p a r a e le m e s m o , j á q u e t u d o
a q u i l o q u e r e t i r ou d e s i e s t á c o n s e r v a d o e m D e u s . S e o
h o m e m a l i e n o u s u a p r ó p r i a e s s ê n c i a a D e u s , c o m o po¬
de r i a t ê - l a em s i e p a r a s i m e s m o ? N e s s e s e g u n d o a to da
a l i e n a ç ã o , o h o m e m af i rma e m D e u s a q u i l o q u e n e g a e m
s i m e s m o . A s s i m , n e n h u m a s u r p r e s a s e S a n t o A n s e l m o
c o n s i d e r a q u e " q u e m s e d e s p r e z a é e s t i m a d o p o r D e u s .
A q u e l e q u e s e d e s a g r a d a c o n s i g o a g r a d a a D e u s . F a z e -
t e p e q u e n o a o s t e u s o l h o s p a r a ser g r a n d e a o s o l h o s d e
D e u s ; po i s t u s e r á s t a n t o m a i s p r e z a d o p o r D e u s q u a n t o
m a i s d e s p r e z a d o p e l o s h o m e n s " 1 6 . T a n t o m a i s D e u s é h u -
16. Santo Anselmo, Opus Anselmi, Paris, 1721, p. 191, apud Feuerbach, Uessence..., cit, p. 144.
14 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
m a n o q u a n t o m a i s o h o m e m s e des faz d e s u a h u m a n i d a
de , j á q u e D e u s é em s i m e s m o a h u m a n i d a d e a l i e n a d a
do h o m e m . D e s d e e n t ã o , s e a tarefa do m a t e r i a l i s m o é
r e t o r n a r da r e l i g i ão à s u a v e r d a d e na a n t r o p o l o g i a , o n o v o
a t e í s m o se r á i d ê n t i c o ao fim da a l i e n a ç ã o e p r o m o v e r á o
r e e n c o n t r o do i n d i v í d u o c o m a s u a e s s ê n c i a , a r econc i l i a¬
ç ã o d o h o m e m c o m o s e u " s e r g e n é r i c o " . A s s i m c o m o a
s o c i e d a d e c o m u n i s t a , pa ra o j o v e m M a r x , será o m o m e n ¬
t o d o r e e n c o n t r o d o i n d i v í d u o c o m sua e s s ê n c i a g e n é r i c a :
os a t o r e s f e u e r b a c h i a n o s m u d a r a m , m a s a sua t r a m a per¬
m a n e c e i n a l t e r a d a , e o ú l t i m o a t o n o s r e se rva o m e s m o
happy end.
S e r á q u e o " a t e í s m o " de N i e t z s c h e t e r i a a l g u m pa¬
r e n t e s c o c o m o de F e u e r b a c h , e a p r o p o s i ç ã o " D e u s e s t á
m o r t o " ser ia f o r m u l a d a c o m o m e s m o s o t a q u e ? M a i s u m a
v e z , n ã o fa l tam t e x t o s q u e p o s s a m s u g e r i r e s s a in te rpre¬
t a ç ã o . É a s s i m , p o r e x e m p l o , q u a n d o N i e t z s c h e a f i rma
q u e r e r " res t i tu i r a o h o m e m , c o m o p r o p r i e d a d e sua , c o m o
p r o d u ç ã o sua , t oda b e l e z a e s u b l i m i d a d e q u e p ro j e tou so¬
b r e a s c o i s a s r e a i s e i m a g i n á r i a s , p a r a fazer d e s t e m o d o
s u a m a i s b e l a a p o l o g i a . O h o m e m c o m o p o e t a , c o m o
p e n s a d o r , c o m o D e u s , c o m o amor , c o m o p o d e r : oh! , c o m
s u a m a g n a n i m i d a d e r e a l e l e e n r i q u e c e u a s c o i s a s p a r a
e m p o b r e c e r - s e a s i m e s m o , p a r a s e n t i r - s e m i s e r á v e l . E s t a
foi a t é a g o r a a s u a m a i o r a b n e g a ç ã o : a de a d m i r a r e ado¬
rar, e s a b e r o c u l t a r - s e q u e e ra e l e m e s m o o q u e c r i ava
a q u i l o q u e a d m i r a v a " 1 7 . A q u i , N i e t z s c h e p a r e c e r e t o m a r ,
p o r sua p r ó p r i a c o n t a , o s do i s m o v i m e n t o s d e t r anspos i¬
ç ã o e de d e p r e c i a ç ã o q u e c o s t u r a v a m a c r í t i ca f e u e r b a -
c h i a n a à t e o l o g i a . O q u e falta p a r a se a f i r m a r q u e a an¬
t r o p o l o g i a é a v e r d a d e da a l i e n a ç ã o r e l i g i o s a ? M a s e s s a
17. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 12[34], KSA, vol. 9, p. 582.
O MAIOR DOS ACONTECIMENTOS RECENTES 15
i n t e r p r e t a ç ã o se r ia m u i t o a p r e s s a d a . Af ina l , por u m l a d o
o " i n s e n s a t o " se vê na o b r i g a ç ã o de a n u n c i a r a m o r t e de
D e u s a o s p r ó p r i o s a t eus , quer dizer, a o s f e u e r b a c h i a n o s .
Por ou t ro l ado , em OAnticristo, N i e t z s c h e a p r e s e n t a u m a
a v a l i a ç ã o da filosofia a l e m ã q u e l evan t a s u s p e i t a s q u a n t o
ao s e u p r o p a l a d o a t e í s m o . O s a c e r d o t e p r o t e s t a n t e é o
a v ô da filosofia a l e m ã - diz N i e t z s c h e -, e o p r o t e s t a n t i s -
mo é o p e c a d o o r ig ina l des sa filosofia. " B a s t a p r o n u n c i a r
a e x p r e s s ã o ' S e m i n á r i o de T ü b i n g e n ' p a r a s a b e r o q u e
é , no fundo, a filosofia a l e m ã : u m a t e o l o g i a i n s i d i o s a . " 1 8
I s so s ignif ica dizer que se N i e t z s c h e fosse r e e s c r e v e r , por
sua própr ia con ta , a h is tór ia da ideo log ia a l e m ã , ser ia para
classif icar F e u e r b a c h c o m o s e n d o a i n d a a p e n a s u m cris¬
tão a m a i s . A s s i m , para se c o m e ç a r a v i s l u m b r a r o signi¬
f icado do a n ú n c i o da m o r t e de D e u s , é p r e c i s o ver i f icar
c o m o a cr í t ica de F e u e r b a c h à t e o l o g i a p e r m a n e c i a p resa
às i l u s õ e s do o b j e t o c r i t i c ado . A o r i g i n a l i d a d e e a d imen¬
s ã o d o a t e í s m o d e N i e t z s c h e s ã o d a d o s s o b r e t u d o por
sua d is tância em face do " a t e í s m o " da filosofia a l emã , essa
" t e o l o g i a i n s i d i o s a " . Por i s so , v a l e a p e n a vo l t a r , por al¬
g u n s m o m e n t o s , aos t e x t o s d e F e u e r b a c h .
IV
A n a l i s e m o s c o m m a i s d e t a l h e s a idéia de que a an¬
t r o p o l o g i a é a v e r d a d e da t e o l o g i a . E c o m e c e m o s por r e -
t raduzi r e s sa p r o p o s i ç ã o no l éx i co das "Teses p r o v i s ó r i a s "
de F e u e r b a c h : d izer q u e a a n t r o p o l o g i a é a v e r d a d e da
t e o l o g i a é af i rmar que o h o m e m é a v e r d a d e de D e u s , que
18. Nietzsche, OAnticristo, § 10, KSA, vol. 6, p. 176.
16 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
o finito é a v e r d a d e do i n f i n i t o 1 9 . Todav i a , c o m o n o t a v a
G é r a r d L e b r u n , e m u m a a n á l i s e q u e m e r e c e ser a t e n t a
m e n t e s e g u i d a , a t r avés d e s s a s i dé i a s ser ia e r r ô n e o supo r
q u e a n o ç ã o de " in f in i to" se ja s i m p l e s m e n t e a n u l a d a . Se
a s s i m fosse , c o m o e n t e n d e r q u e F e u e r b a c h p o s s a gaba r -
se de unir as e s s ê n c i a s d iv ina e h u m a n a ? Se a part i r de
a g o r a a pa lavra " d i v i n o " deve ser p o s t a en t r e a s p a s , ser ia
a b s u r d o , no e n t a n t o , falar em " u n i f i c a ç ã o " , se o d iv ino , o
r e l i g i o s o , fosse pura e s i m p l e s m e n t e d i s s o l v i d o 2 0 . A l i á s ,
e m sua p o l ê m i c a c o m M a x S t i rne r , F e u e r b a c h s e d e f e n d e
e x a t a m e n t e da a c u s a ç ã o de ter feito essa d i s s o l u ç ã o : " M a s
eu n ã o d igo de forma a lguma . . . D e u s é nada, a T r i n d a d e é
nada, a fala de D e u s é nada, e tc . Eu a p e n a s m o s t r o que
e l e s não são o q u e s ã o na i l u s ã o da t e o l o g i a . " 2 1 A s s i m , o
"ser inf in i to" n ã o é a p e n a s u m a f icção que um crí t ico do
c r i s t i an i smo vola t i l izar ia , ao r e e n c o n t r a r as d e t e r m i n a ç õ e s
finitas que e s t ã o em sua o r i g e m . Da m e s m a forma, para o
p ro je to de F e u e r b a c h n ã o é su f i c i en te r e t raça r o c a m i n h o
da a l i e n a ç ã o , refazer a g ê n e s e das p r o p r i e d a d e s d iv inas a
par t i r do f in i to . O p r o j e t o e x i g e , a i n d a , q u e se d e s v e l e o
v e r d a d e i r o s e n t i d o que t i n h a a i n f in idade de D e u s . Por
i s so , para e s s e p r o j e t o n ã o b a s t a , de fo rma a l g u m a , des¬
t r o n a r D e u s e n q u a n t o p e r s o n a g e m de c o n t o de fadas . E
p r e c i s o d e t e r m i n a r , a inda , e m q u e s e n t i d o d e v e m o s in¬
t e r p r e t a r s e u s a t r i b u t o s , i s to é , sua " t o d a s u f i c i ê n c i a " ,
sua " toda p o t ê n c i a " , sua " toda b o n d a d e " . Q u e s t ã o q u e
19. Feuerbach, L., "Thèses provisoires pour la reforme de la phi-losophie", in Manifestes philosophiques, Paris, PUF, 1960, p. 111.
20. Lebrun, G., "La speculation travestie", in TRANS/FORM/AÇÃO, n? 1, Assis, 1974, p. 63.
21. Feuerbach, L., "Vessence du christianisme dans son rapport à Uunique et sa propriété", in Manifestes..., cit., p. 111.
O MAIOR DOS ACONTECIMENTOS RECENTES 17
Feuerbach não deixava sem reposta: "Ele é infinito no sentido de que o gênero é infinito, não está limitado a um lu¬ gar, um tempo, um indivíduo, uma espécie... ele está aci¬ ma dos homens no mesmo sentido de que a cor está acima das cores, a humanidade acima dos homens. . . ele é o ser perfeito no sentido de que o gênero o é em relação aos in-divíduos.. ." 2 2
É apenas agora que começa a delinear-se a enverga¬ dura da trama toda: uma coisa é provar que o conteúdo do divino tinha a sua verdade apenas no finito; outra coisa é penetrar em sua significação e compreender qual é a verdadeira infinidade, a verdadeira ilimitação. É só então que se pode começar a vislumbrar o significado da "desmis-tificação" feuerbachiana, assim como o sentido de seu "ateísmo": o cristão e seu "crítico" compartilham do mes¬ mo ideal e, em vez de subversão do cristianismo, na ver¬ dade há ali apenas um des locamento , já que o infinito teológico só mudou de lugar, descendo do céu para a ter¬ ra. "O mistério da plenitude inesgotável das determina¬ ções divinas não é, portanto, nada diferente do misté¬ rio da essência humana, enquanto ela é infinitamente variada, infinitamente determinável, mas também, precisa¬ mente por essa razão, enquanto ser sensível. E somente na sensibil idade, no espaço e no tempo, que tem seu lugar um ser infinito, realmente infinito, rico em determina-ç õ e s . " 2 3 Assim, vai se determinando a tarefa daquela que será, para Feuerbach, a "verdadeira filosofia" - e também o sentido último daquele "material ismo" tão celebrado por Marx e Engels: "A tarefa da verdadeira filosofia é re¬ conhecer não o finito no infinito mas, ao contrário, o não-
22. Feuerbach, L., Uessence..., cit., pp. 446-7 .
23 . Feuerbach, L., Uessence..., cit., pp. 140 -1 .
18 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
finito, o inf ini to no finito; em o u t r o s t e r m o s , n ã o t r a n s p o r
o f in i to no in f in i to , m a s t r a n s p o r o in f in i to no f i n i t o . " 2 4
B e l a d e s m i s t i f i c a ç ã o ! Se a par t i r de a g o r a o inf ini to n ã o se
c h a m a m a i s D e u s o u Esp í r i to , m a s s im " g ê n e r o h u m a n o " ,
os a t o r e s m u d a r a m m a s n ã o os p e r s o n a g e n s , e o script
e s c r i t o há do i s mi l a n o s c o n t i n u a i n s p i r a n d o a n o v a no¬
ve la : é a " v e l h a t o u p e i r a " , dir ia N i e t z s c h e , q u e r e s s u r g e ,
m a i s u m a v e z , a t r á s d a n o v a m á s c a r a . C o m p r e e n d e - s e ,
a s s i m , q u e M a x S t i r n e r c o n s i d e r a s s e e s s e s a t e u s " h o m e n s
m u i t o p i e d o s o s " . Q u e F e u e r b a c h t e n h a l i b e r a d o o s é c u l o
X I X d a t e o l o g i a c láss ica , n ã o h á n e n h u m a dúvida . M a s q u e
e l e o t e n h a l i b e r a d o do c r i s t i a n i s m o , e s t a é o u t r a ques¬
t ão . As " a v a l i a ç õ e s " cr i s tãs p e r m a n e c e m d a n d o o t o m do
n o v o " inf in i to r e a l " - o g ê n e r o h u m a n o q u e s u b s t i t u i o
D e u s d o s f i lósofos e d o s c i e n t i s t a s . S o b e s s e â n g u l o , a
" a n t r o p o l o g i a " p a r e c e se r a ú l t i m a m e t a m o r f o s e da reli¬
g i ã o cr is tã , e p o d e - s e d ize r de F e u e r b a c h o q u e N i e t z s c h e
diz d o s l ivres p e n s a d o r e s e m geral , e s s e s j o v e n s h e g e l i a n o s
de e s q u e r d a : a Igre ja os r e p u g n a , m a s n ã o o s e u v e n e n o 2 5 .
Se o f i lósofo se a t r i bu i c o m o tarefa res t i tu i r à e s s ê n c i a di¬
v i n a o s e u " v e r d a d e i r o s e n t i d o " , é p o r q u e e s sa e s s ê n c i a
n ã o e s t a v a d e s t r u í d a , m a s a p e n a s t r ans f i gu rada e r e b a t i -
z a d a . P r o v a s u p l e m e n t a r , F e u e r b a c h n ã o s e c a n s a d e re¬
pe t i r q u e a d e s t r u i ç ã o do su je i to d o s p r e d i c a d o s d i v i n o s
n ã o s ignif ica j a m a i s a d e s t r u i ç ã o d e s s e s p r ó p r i o s predica¬
d o s : a m o r , j u s t i ç a , s a b e d o r i a s ã o t a n t o p r e d i c a d o s q u e
t ê m u m a s i g n i f i c a ç ã o p r ó p r i a e i n d e p e n d e n t e e q u e en¬
c o n t r a r ã o n o g ê n e r o h u m a n o o s e u v e r d a d e i r o s u j e i t o 2 6 .
24. Feuerbach, L., "Thèses provisoires pour la reforme de la phi-losophie", in Manifestes..., cit., p. 111.
25. Nietzsche, Genealogia da moral, cit., I, § 9, p. 33. 26. Feuerbach, L., Uessence..., cit., p. 139.
O MAIOR DOS ACONTECIMENTOS RECENTES 19
Sendo assim, os antigos valores, avaliações e ideais permanecem vivos no "ateísmo" filosófico do século XIX. Desde então, não é surpreendente que seja aos ateus que se precise anunciar a morte de Deus. A Igreja os repugna, mas não o seu veneno e, sob o seu "ateísmo", é a velha civilização cristã que permanece, já que, de Deus ao gêne¬ ro humano, apenas se rebatizou o divino. E isso permite que se comece a vislumbrar qual a dimensão do ateísmo de Nietzsche em face daquele da filosofia clássica alemã e o quanto essa filosofia pouco percebera sobre o verda¬ deiro significado da morte de Deus. Se este é o maior dos acontecimentos recentes, resta que ele "é grande de¬ mais, distante demais, demasiado à parte da capacidade de apreensão de muitos, para que sequer sua notícia pu¬ desse já chamar-se chegada: sem falar que muitos já sou¬ bessem o que propriamente se deu com isso - e tudo quanto, depois de solapada essa crença, tem agora de cair, porque estava edificado sobre ela, apoiado a ela, arraiga¬ do nela; por exemplo, toda a nossa moral européia" 2 7 . Assim, se a dimensão do acontecimento ainda não foi apreendida pelos europeus, é porque eles não se deram conta de que, com a morte de Deus, todos os valores e ideais de sua civilização perderam sua sustentação. Ateus semiconscientes , eles permanecem valorizando os valo¬ res do mundo cristão, sem perceber que a morte de Deus implica uma desvalorização de todos esses valores. To¬ dos são mais ou menos feuerbachianos, deslocam o di¬ vino para outra região, sem j a m a i s fazer a crítica do pró¬ prio ideal de divindade: a sua recusa da religião será ape¬ nas uma secularização do crist ianismo, como já o era a antropologia de Feuerbach. Por isso, como notava Lebrun,
27. Nietzsche, A gaia ciência, § 343, Obras incompletas, cit., p. 211.
20 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃOE CULTURA
a verdadeira tópica da crítica à religião só entrará em cena quando estivermos certos de não pensar mais o infinito teológico sob nenhum disfarce, quando ficarmos segu¬ ros de não ter apenas mudado o nome do divino. Por não ter levado em conta essa tópica, o " a t e í smo" de Feuer-bach e de seus epígonos é passível de uma dupla censu¬ ra, e não é de forma alguma redundante avisá-los de que Deus morreu: 1) sua crítica à religião é apenas a transposição da essência divina para outra região; 2) ao manter todos os valores da antiga civilização, eles incor¬ rem no contra-senso de querer conservar a moral cristã sem o Deus que a sancionava. Assim, ainda não se re¬ nunciou ao "tu deves" da teologia quando se conservou o "dever" da moral que ela fundava. O princípio da von¬ tade, o "eu quero", só estará verdadeiramente liberado quando se levar em devida conta que a conseqüência da morte de Deus é a desvalorização de todos os valores; quando se tomar consciência plena, portanto, de que a conseqüência inevitável da morte de Deus é o advento do "niil ismo europeu".
Donde a amplitude da noção nietzschiana de "ateís-mo" , aquilo que constitui, por assim dizer, a sua tripla face. Essa "morte de D e u s " terá, cer tamente, o sentido tradicional de fim da validade da idéia de um ser transcen¬ dente, criador e origem, Deus da fé ou Deus dos filósofos e dos cientistas; mas ela significará também a recusa de todos os substitutos, mais ou menos disfarçados, do infi¬ nito teológico, todas as versões do "Ser genérico"; enfim, a morte de Deus será indissociável da desvalorização de todos os valores por ele sancionados. Mas se isso delimi¬ ta a amplitude do território desse ateísmo, ainda não se disse palavra sobre os seus motivos. Afinal, por que Deus morreu? E quais são as razões que legitimam a singulari-
O MAIOR DOS ACONTECIMENTOS RECENTES 21
dade desse "ateísmo" de Nietzsche em face dos seus homônimos da tradição, a supressão de todos os substitu¬ tos mundanos do infinito teológico, assim como a desva¬ lorização de todos os valores? E preciso perguntar, antes de mais nada, o que significa - e o que legaliza - o ad¬ vento do "niilismo europeu".
C A P Í T U L O II
O NIILISMO E U R O P E U
I
Se a conseqüência da morte de Deus é a irrupção do "niilismo", quem é, exatamente, esse "mais sinistro de to¬ dos os hóspedes"? "Que significa niilismo? Que os valores supremos se desvalorizaram. Falta o fim; falta a resposta ao porquê . " 1 Ten temos explicitar um pouco o sentido dessa resposta demasiadamente sucinta. Os valores su¬ premos, a cujo serviço o homem consagrava a sua vida, foram criados, enquanto valores sociais, para o fortaleci¬ mento do homem. Enquanto tais, eles eram considerados como mandamentos de Deus, como "realidades", como mundos "verdadeiros", como esperança e vida futuras. Hoje, em regime de niilismo mais ou menos consciente, o universo nos parece desvalorizado, "carente de senti¬ do". E, para Nietzsche, o "pessimismo" de Schopenhauer era a expressão filosófica desse desalento: se os valores se desvalorizam, é a nossa "existência" que também perde o
1. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 9[35], KSA, vol. 12, p. 350.
24 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
s e u va lo r . E m a l g u n s f r a g m e n t o s p ó s t u m o s , N i e t z s c h e
d i rá q u e o n i i l i s m o , e n q u a n t o " e s t a d o p s i c o l ó g i c o " , faz
s e u a p a r e c i m e n t o e m t r ê s s i t u a ç õ e s 2 . E m p r i m e i r o lugar ,
q u a n d o s e t iver b u s c a d o u m " s e n t i d o " e m t u d o o q u e
o c o r r e , s e n t i d o q u e n ã o s e e n c o n t r a ali , a t é o p o n t o em
q u e a q u e l e q u e o b u s c a v a t e r m i n a p o r a b a t e r - s e . O n i i -
l i s m o é a to r tu ra d e s s e " e m v ã o " . E s s e s e n t i d o p o d e r i a se r
o c u m p r i m e n t o de um c â n o n e é t i c o s u p e r i o r em t u d o o
q u e o c o r r e , o u a r e a l i z a ç ã o , m e s m o parc ia l , d e u m e s t a d o
d e f e l i c idade u n i v e r s a l . U m fim, q u a l q u e r q u e seja e l e ,
s e r v e p a r a da r s e n t i d o à s c o i s a s ; m a s o v i r - a - s e r n ã o pa¬
r e c e r ea l i za r fim a l g u m . A g o r a , o n i i l i s m o é a d e c o r r ê n c i a
d a d e c e p ç ã o q u a n t o a u m a s u p o s t a f i na l idade d o v i r - a -
ser . E as f i losofias da h i s tó r i a , q u e de K a n t a H e g e l f azem
da Weltgeschichte a r e a l i z a ç ã o da idé ia m o r a l , d o r a v a n t e só
p o d e m se r v i s t a s c o m o c o n t o s d e fadas . E m s e g u n d o lu¬
gar, o n i i l i s m o faz s u a i r r u p ç ã o q u a n d o o h o m e m , q u e se
a c r e d i t a v a pa r t e d e u m t o d o o r g a n i z a d o , u m t o d o e m q u e
i m p e r a v a u m a u n i d a d e , e m q u e e l e s e s e n t i a e m c o n e x ã o
p ro funda c o m e s s e t o d o q u e l he é i n f i n i t a m e n t e super io r ,
e m q u e e l e e ra u m m o d o d a d i v i n d a d e , d e s c o b r e q u e n ã o
e x i s t e s e m e l h a n t e t o t a l i d a d e . A g o r a o h o m e m p e r d e a
c r e n ç a e m s e u p r ó p r i o va lo r , v i s t o q u e a t r a v é s d e l e n ã o
a t u a n e n h u m t o d o i n f i n i t a m e n t e v a l i o s o . O n i i l i s m o , en¬
q u a n t o e s t a d o p s i c o l ó g i c o , te rá a i n d a u m a te rce i ra e ú l t i m a
fo rma . D a d o o r e c o n h e c i m e n t o de q u e n e n h u m a finalida¬
de e n e n h u m a g r a n d e u n i d a d e p r e s i d e m o m u n d o do vir-
a-ser , r e s t a a e s c a p a t ó r i a d e c o n d e n a r e s s e m u n d o c o m o
i l u só r io e a c r e d i t a r e m u m m u n d o q u e e s t e j a p a r a a l é m
d e l e . M a s q u a n d o s e d e s c o b r e q u e e s s e m u n d o m e t a f í s i -
2. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [99], KSA, vol. 13, p. 380, e
Obras incompletas, cit., p. 380.
O NIILISMO EUROPEU 25
co foi p u r a e s i m p l e s m e n t e i n v e n t a d o , e n t ã o s u r g e a últi¬
m a f o r m a d o n i i l i s m o , q u e e n v o l v e a d e s c r e n ç a e m u m
m u n d o m e t a f í s i c o . A g o r a , a d m i t e - s e o v i r - a - s e r c o m o
ú n i c a r e a l i d a d e , n ã o s e t r i l h a m m a i s o s c a m i n h o s q u e le¬
v a m a o s u l t r a m u n d o s e à s falsas d i v i n d a d e s , m a s n ã o s e
s u p o r t a e s s e m u n d o d o v i r -a - se r , q u e n i n g u é m m a i s p o d e
n e g a r . O q u e p e n s a r d e s s a s t rês f iguras do " n i i l i s m o " ?
A t e r ce i r a e ú l t i m a f igura do n i i l i s m o é a m a i s abran¬
g e n t e de t o d a s e t raz c o n s i g o a v e r d a d e d a s d u a s p r imei¬
r a s . Em p r i m e i r o lugar , é a f igura m a i s a b r a n g e n t e : e l a
d e s i g n a a c o n d e n a ç ã o d o m u n d o d o v i r - a - s e r c o m o u m
t o d o , e n q u a n t o a s o u t r a s f iguras s i g n i f i c a m se ja u m a
c o n d e n a ç ã o d o " p r o c e s s o " , se j a u m a d e s v a l o r i z a ç ã o d o
" h o m e m " . Em s e g u n d o lugar , e la é a v e r d a d e d a s o u t r a s
f iguras , já q u e as d e m a i s t a c i t a m e n t e a s u p õ e m . A pri¬
m e i r a figura a s u p õ e e n q u a n t o d e c e p ç ã o e m face d e u m a
s u p o s t a f i na l idade do v i r - a - s e r . Af ina l , é a u m a t r a n s c e n ¬
d ê n c i a d iv ina q u e d e v e m o s a m a n i a de p e r g u n t a r - n o s pe l a
f ina l idade d o s p r o c e s s o s . " A p e r g u n t a d o n i i l i s m o , ' p a r a
quê?', v e m d o h á b i t o q u e h o u v e a té ago ra , e m v i r t ude d o
q u a l o a lvo p a r e c i a p o s t o , d a d o , e x i g i d o de fora - ou seja ,
p o r a l g u m a autoridade sobre-humana." A s e g u n d a figura
d o n i i l i s m o t a m b é m s u p õ e a terce i ra , a s s im c o m o u m t o d o
o r g a n i z a d o s u p õ e um o r g a n i z a d o r . Po r i s s o , em Pasca l a
i n c e r t e z a c o s m o l ó g i c a o r i u n d a do fim do g e o c e n t r i s m o , o
" s i l ê n c i o d o s e s p a ç o s i n f i n i t o s " , s ó e n c o n t r a v a s u a cu ra
na c e r t e z a o b t i d a p e l a fé. " S e m a fé c r i s tã , p e n s a v a Pas¬
ca l , s e r e i s p a r a v ó s m e s m o s c o m o a n a t u r e z a e a h i s tó r ia ,
um m o n s t r o e um c a o s . N ó s cumprimos e s t a p r o f e c i a . " 4
S e n d o a s s i m , a t e r ce i r a figura do n i i l i s m o r e s u m e t o d a s
3. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 9[43], KSA, vol. 12, p. 355, e Obras incompletas, cit., p. 382.
4. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 9[182], KSA, vol. 12, p. 445.
26 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
as d e m a i s e traz c o n s i g o a v e r d a d e des tas , e por isso n ã o é
à toa q u e N i e t z s c h e a c h a m a de " forma s u p r e m a do n i i -
l i s m o " . D o n d e a o r i g e m d o n i i l i s m o n a n e g a ç ã o d o D e u s
t r a n s c e n d e n t e e a c o r r e l a ç ã o e n t r e a m o r t e de D e u s e a
d e s v a l o r i z a ç ã o d e t o d o s o s v a l o r e s .
Fo i essa c o r r e l a ç ã o , e x a t a m e n t e , que o s e u r o p e u s n ã o
p e r c e b e r a m e , po r i s so , n ã o a t i n a r a m c o m a d i m e n s ã o e
a n o v i d a d e da m o r t e de D e u s . M a s t a m b é m é p r e c i s o re¬
c o n h e c e r que o s " e u r o p e u s " s ã o d e s c u l p á v e i s por essa
s u p o s t a m i o p i a : afinal, à p r i m e i r a v i s t a e s sa " c o r r e l a ç ã o "
n ã o é t ão c la ra q u a n t o se p a r e c e supor . Por que , exata¬
m e n t e , a m o r t e de D e u s d e v e implicar a d e s v a l o r i z a ç ã o
dos v a l o r e s ? N i e t z s c h e p a r e c e e s t a b e l e c e r en t r e o s dois
e v e n t o s u m a r e l a ç ã o d e p r e m i s s a a c o n c l u s ã o : " Q u e in
g e n u i d a d e ! C o m o se s u b s i s t i s s e a m o r a l q u a n d o falta um
D e u s que a s a n c i o n e ! Um além é a b s o l u t a m e n t e n e c e s ¬
sá r io , q u a n d o se quer c o n s e r v a r s i n c e r a m e n t e a fé na m o -
r a l . " 5 M a s e s sa r e l a ç ã o d e f u n d a m e n t o a c o n s e q ü ê n c i a
n ã o é t ão c lara e i m e d i a t a a s s i m , p e l o m e n o s para q u e m
leva em c o n t a a h i s tó r i a da filosofia. Q u e seja p r e c i s o ter
a ce r t eza t eó r i ca da ex i s t ênc i a de D e u s para que os va lo r e s
m o r a i s s e j a m v a l i d a d o s , es ta é , s e m dúvida , u m a evidên¬
cia i m e d i a t a para o t o m i s m o : ali só há " b e m " refer ido ao
B e m S u p r e m o ou, c o m o diria N i e t z s c h e , n ã o h á va lo r s e m
u m a i n s t â n c i a l e g i s l a d o r a q u e o p e r a d o ex ter ior . A s s i m ,
S ã o T o m á s e s t i pu l a r á q u e D e u s , c o m o pe r f e i ção d e t o d a s
as pe r fe ições , é o B e m de t o d o s os b e n s , e tudo o m a i s será
di to " b o m " por p a r t i c i p a ç ã o , que r dizer, por ter s e m e ¬
l h a n ç a c o m a b o n d a d e d iv ina . T o d o b e m , e n q u a n t o a p e -
t e c í v e l , o r i e n t a - s e t e l e o l o g i c a m e n t e a o B e m s u p r e m o ; e
c o m o o s u p r e m o , em q u a l q u e r g ê n e r o , é c a u s a de t u d o o
q u e es tá c o m p r e e n d i d o n e l e , o B e m s u p r e m o é o fun-
5. Nietzsche, Fragmentos póstumos, KSA, 2[165], vol. 12, p. 147.
O NIILISMO EUROPEU 27
damento dos bens 1 . Assim, São Tomás concordaria com Nietzsche: a morte de Deus traduz-se imediatamente na desvalorização dos valores, já que a certeza na existência do Bem supremo é a condição da certeza relativa aos va¬ lores morais.
Todavia, se o teólogo concorda com o diagnóstico de Nietzsche e aceita que a certeza da existência de Deus é o suporte da moral, isso só nos permite compreender a lógica da teologia e nos indicaria apenas o quanto Nietz-sche permaneceu preso a ela. Em outras palavras, se a cor¬ relação entre a morte de Deus e a desvalorização dos va¬ lores é convincente para o tomista, é porque ela apenas reafirma seus pressupostos. Essa correlação não seria con¬ vincente, por exemplo, para o leitor de Kant, e no limite só exprimiria a evidência de que quem a formula não me¬ ditou o suficiente sobre a Crítica da razão pura. Afinal, se ali se proibia todo e qualquer conhecimento teórico sobre a existência de Deus, isso não fazia de Kant um fanfarrão do niilismo, nem tornava a Crítica da razão prática um exemplo gritante de inconsistência na filosofia. Dúvida que não deixou de ser insinuada por Victor Goldschmidt. "Por que - pergunta ele -, se Deus estivesse morto, tudo seria permitido? Para acreditá-lo (e desejá-lo) , é preciso nunca ter compreendido a Crítica da razão prática..." Mas não deixa de ser fácil imaginar a resposta de Nietzsche à objeção. Ele poderia muito bem relembrar que Deus, eli¬ minado do conhec imento teórico pela primeira Crítica, permanece como um "postulado" da razão prática, algo que o agente sempre deve supor para realizar a lei moral.
6. São Tomás, Suma contra los gentiles, Madri, BAC, 1967, caps. 40-41.
7. Goldschmidt, V., Platonisme etpensée contemporaine, Paris, Au-bier, 1970, p. 257.
28 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
Exc lu ído d o d o m í n i o d o c o n h e c i m e n t o t eó r i co , D e u s s u b
siste e n q u a n t o " idea l" - e o ideal t r a n s c e n d e n t a l , não sen¬
do o b j e t o de c o n h e c i m e n t o t e ó r i c o , n e m por i sso de ixa de
ter u m a "s ign i f i cação" . E l i m i n e m o s os pos tu l ados da r azão
prá t ica , diria N i e t z s c h e , e v e j a m o s e n t ã o o q u e a c o n t e c e
c o m a mora l ; e l i m i n e m o s até m e s m o a " s ign i f i cação" D e u s
e v e r i f i q u e m o s o q u e r e s t a do i m p e r a t i v o c a t e g ó r i c o . . .
E s t a r í a m o s a p t o s a g o r a a c o m p r e e n d e r a c o r r e l a ç ã o
e n t r e a m o r t e de D e u s e a d e s v a l o r i z a ç ã o d o s v a l o r e s ?
A i n d a n ã o . C o n c e d a m o s t u d o a N i e t z s c h e : o D e u s clássi¬
c o n ã o figura m a i s e m n o s s o h o r i z o n t e n e m c o m o exis¬
t ênc ia d e m o n s t r a d a , n e m c o m o s ignif icação o u p o s t u l a d o .
N e m a s s i m o n i i l i s m o p a r e c e ser a c o n s e q ü ê n c i a neces sá¬
ria da m o r t e de D e u s . E , para p e r c e b ê - l o , b a s t a c o n s u l t a r
Sa r t r e . Afinal , se Sa r t r e s i tua o " p o n t o de par t ida" do ex i s -
t e n c i a l i s m o na e v i d ê n c i a de q u e "se D e u s n ã o ex i s t e , en¬
tão tudo é p e r m i t i d o " , é para concluir , a p a r e n t e m e n t e c o m
N i e t z s c h e , q u e c o m a m o r t e d e D e u s "não e n c o n t r a m o s ,
d i an t e de n ó s , v a l o r e s ou i m p o s i ç õ e s que n o s l e g i t i m e m o
c o m p o r t a m e n t o " 8 . A s s i m , e m r e g i m e d e m o r t e d e D e u s
n ã o h a v e r á m a i s lugar para o esprit de séríeux, a q u e l e q u e
c o n s i d e r a o s v a l o r e s c o m o d a d o s t r a n s c e n d e n t e s , inde¬
p e n d e n t e s d a s u b j e t i v i d a d e h u m a n a 9 . M a s i sso significa¬
ria q u e o e x i s t e n c i a l i s m o é um n i i l i s m o ? De fo rma algu¬
m a . E o e x i s t e n c i a l i s t a p o d e r á " ju lga r m o r a l m e n t e " as
a ç õ e s h u m a n a s , a v a l i a n d o q u e " c e r t a s e s c o l h a s s ã o fun¬
d a d a s no e r ro , e ou t r a s , na v e r d a d e " 1 0 . E , de fato, por q u e
a m o r t e de D e u s exclu i r ia u m a a v a l i a ç ã o m o r a l fundada
na v e r d a d e e no e r ro , que r dizer, na r a z ã o h u m a n a ? N ã o
8. Sartre, J.-P., O existencialismo é um humanismo, Lisboa, Editorial Presença, 1964, p. 253.
9. Sartre, J.-P., Vêtre et lenéant, Paris, Gallimard, 1943, p. 674. 10. Sartre, J.-P., O existencialismo... , cit., p. 285.
O NIILISMO EUROPEU g
há n e n h u m a i n c o e r ê n c i a em O ser e o nada f indar-se c o m
a p r o m e s s a de u m a o b r a s o b r e a m o r a l . E, se é a s s i m , a
c o r r e l a ç ã o q u e N i e t z s c h e e s t a b e l e c e en t r e a t e í s m o e n i i -
l i s m o n ã o ser ia i n t e i r a m e n t e g r a t u i t a ? Ou e n t ã o o q u e ,
afinal, lhe p e r m i t e afirmar essa c o r r e l a ç ã o ? T e n t e m o s elu¬
c idar i s so , a n t e s de a p r e s s a d a m e n t e c e n s u r á - l o por dei¬
x a r - s e p e g a r e m f lagran te de l i to d e i n c o n s e q ü ê n c i a .
II
C o n v é m i n s t a l a r a p e r g u n t a s o b r e a r e l a ç ã o e n t r e a
m o r t e de D e u s e o a d v e n t o do n i i l i s m o no i n t e r i o r da
"His tó r i a de um e r r o " , que N i e t z s c h e narra no Crepúsculo
dos ídolos". A l i , o D e u s c r i s t ã o en t ra em c e n a r e p r e s e n -
11. Nietzsche, "A razão na filosofia", Crepúsculo dos ídolos, Obras incompletas, pp. 332-3. "História de um erro":
1. O verdadeiro mundo, alcançável ao sábio, ao devoto, ao virtuoso - eles vivem nele, são ele. (Forma mais antiga da Idéia, relativamente esperta, singela, convincente. Transcrição da proposição "eu, Platão, sou a verdade".)
2. O verdadeiro mundo, inalcançável por ora, mas prometido ao sábio, ao devoto, ao virtuoso ("ao pecador que faz penitência"). (Progresso da Idéia: ela se torna mais refinada, mais cativante, mais impalpável - ela vira mulher, ela se torna cristã...)
3. O verdadeiro mundo, inalcançável, indemonstrável, impro-metível, mas já, ao ser pensado, um consolo, uma obrigação, um imperativo. (O velho sol ao fundo, mas através de neblina e skepsis: a Idéia tornada sublime, desbotada, nórdica, kõnigsberguiana.)
4. O verdadeiro mundo - inalcançável? Em todo caso, inalcança-do. E como inalcançado também desconhecido. Conseqüente¬ mente, também não consolador, redentor, obrigatório: a que poderia algo desconhecido nos obrigar?... (Cinzenta manhã. Primeiro bocejo da razão. Canta o galo do positivismo.)
30 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
t a n d o a p e n a s u m d o s c a p í t u l o s d a h i s t ó r i a d o "verdadei¬
ro m u n d o " , u m a h i s t ó r i a q u e se in ic ia c o m P l a t ã o . O cris¬
t i a n i s m o é a p r e s e n t a d o c o m o u m a das p e l e s c o m a s qua i s
a s e r p e n t e p l a t ô n i c a se r eves t iu , e p o r i s so N i e t z s c h e dirá,
a l h u r e s , q u e o c r i s t i a n i s m o é " p l a t o n i s m o pa ra o p o v o " . A
" m o r t e d e D e u s " é , a s s i m , u m e s t á g i o d a m o r t e d o p l a t o -
n i s m o , e é p o r t a n t o n e s s a r u b r i c a do fim do p l a t o n i s m o
q u e se d e v e p r o c u r a r a o r i g e m da " d e s v a l o r i z a ç ã o d o s va¬
l o r e s " . E , se é a s s i m , v a l e a p e n a r e t o m a r a l g u n s a s p e c t o s
d o p r o c e s s o d e N i e t z s c h e c o n t r a P l a t ã o , q u e é a n t e s d e
t u d o a figura m a i s s o l e n e de sua c r í t i ca ao " d o g m a t i s m o "
f i losóf ico - em um s e n t i d o em q u e o p r ó p r i o K a n t s e r á
um d o g m á t i c o a m a i s .
A n a l i s a n d o a filosofia an t iga , G o l d s c h m i d t af i rma q u e
d e s d e "a s u a a u r o r a a c i ê n c i a g r e g a p r o c u r o u p r o t e g e r o
c o n h e c i m e n t o c o n t r a a d i s p e r s ã o , a h e s i t a ç ã o e o e r r o , e
p r o c u r o u a s s e g u r a r - l h e um o b j e t o um no s e io da mult ipl i¬
cidade das coisas , estável através da mudança , real por trás
d e s u a a p a r ê n c i a " 1 2 . P a r a u m o l h a r n i e t z s c h i a n o , e s s a é
u m a a p r e s e n t a ç ã o n o t á v e l do leitmotiv d a f i losof ia gre¬
ga : a e x c l u s ã o de H e r á c l i t o d e s s e t i p o i d e a l da f i losof ia
5. O "verdadeiro" mundo - uma Idéia que não é útil para mais nada, que não é mais nem sequer obrigatória, uma Idéia que se tornou inútil, supérflua, conseqüentemente uma Idéia refuta¬ da: expulsemo-la! (Dia claro; café da manhã; retorno do bon sens e da serenidade; rubor de vergonha em Platão; alarido dos demônios em todos os espíritos livres.)
6. O verdadeiro mundo, nós o expulsamos: que mundo resta? o aparente, talvez? ... Mas não! Com o verdadeiro mundo expulsamos também o aparente! (Meio-dia; instante da mais curta sombra; fim do mais longo erro;
ponto alto da humanidade; INCIP1T ZARATHUSTRA.)
12. Goldschmidt, V., A religião de Platão, São Paulo, Difel, 1963, p. 19.
O NIILISMO EUROPEU 31
grega, o mutismo quanto ao vir-a-ser, marca bem o que será o platonismo e o quanto ele domina esse arquétipo do "grego" forjado por Goldschmidt . O platonismo será, antes de tudo, a identificação do verdadeiro ao estável, do vir-a-ser à aparência. Ele será a radicalização daquilo que Goldschmidt descreve como o modelo do "grego", e que para Nietzsche desenhará o perfil de sua "decadência": as formas são o "ser verdadeiro" 1 3 , elas constituem o "verda¬ deiro mundo" . Radicalização e preparação do cristianis¬ mo: as formas são incorporais e invisíveis, logo, consu¬ ma-se a separação entre o "material" e o "espiritual". Como as formas são o "verdadeiro ser", a ordem material é desacreditada em bloco, a matéria é despojada de razão e de realidade, realidade que se concentra inteiramente nas formas invisíveis, que se deixam imitar ou "partici¬ par": o mundo sensível, enquanto mundo do vir-a-ser, re¬ cebe então a alcunha de "aparência" de uma realidade que não se confunde com ele e está além dele. Se Platão diz que as formas são "reais", é porque elas são eternamen¬ te o que são, porque cada uma delas permanece idêntica a si mesma - porque é "real" o que exclui o vir-a-ser. Por outro lado, as formas também reduzem o múltiplo à uni¬ dade, a alteridade ao mesmo: há uma infinidade de coi¬ sas belas, mas uma só forma do belo, da qual as coisas belas "participam". E o último ato do platonismo já pre¬ parava o primeiro da comédia cristã. Se a forma é "divi¬ na, imortal, inteligível" 1 4 , a multiplicidade das diferentes formas é unificada no "Bem", forma suprema, causa pri¬ meira que dá "existência e essência" às formas inferiores 1 5.
13. Platão, Fedão, 66 C-5, Oeuvres completes, Gallimard, Pléiade,
vol. I, p . 778.
14. Platão, Fédon, 80b, Oeuvres..., cit., p. 799. 15. Platão, República, VI, 509b, Oeuvres..., cit., p. 1098.
32 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
Desde então, o sábio platônico, ao contrário do "amante de espetáculos" , deve desviar sua investigação da aparência para a real idade, da mudança para a estabilida¬ de, da multiplicidade para a unidade, passando do vir-a-ser ao ser.
É esse platonismo, compreendido estri tamente em função da doutrina das formas ou idéias, que para Nietz-sche alonga-se nas metamorfoses do "verdadeiro mundo". Na "História de um erro", esse "verdadeiro mundo" pro¬ longa-se no "além" do cristianismo, nos postulados da ra¬ zão prática de Kant, no incognoscível do positivismo, até a sua supressão. O Deus cristão é apenas uma de suas más¬ caras e a "morte de Deus" deve ser compreendida, antes de tudo, como o fim do "verdadeiro mundo" instituído por Pla tão. Em vários textos, Nietzsche define sua filosofia a partir da idéia de uma "inversão do p la tonismo" . Desde então, é daqui que se precisa partir para compreender a relação entre a morte de Deus e a desvalorização dos va¬ lores. Mas o que significa, exatamente, "inverter" o plato-nismo? Não significa, de forma alguma, colocar o platonis-mo "sobre os seus pés", como um famoso ortopedista ale¬ mão pensou em fazer com a dialética hegel iana. Se fosse apenas isso, o ganho seria bem magro: enquanto Platão valorizava o supra-sensível e desvalorizava o mundo sen¬ sível, Nietzsche faria apenas uma mudança de sinal, man¬ tendo uma hierarquia que já é platônica. A "História de um erro" anuncia o processo no curso do qual o supra-sensí-vel, promovido por Platão a "verdadeiro mundo", foi não apenas destronado de seu cargo supremo e rebaixado na hierarquia, mas sim posto no irreal. "A oposição entre o mundo-aparência e o mundo-verdade - diz Nietzsche -se reduz à oposição entre o mundo e nada." 1 6 Assim, "in-
16. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[185], KSA, vol. 13, p. 371.
O NIILISMO EUROPEU 33
v e r t e r " o p l a t o n i s m o n ã o é i n v e r t e r a h i e r a r q u i a p l a t ô n i c a
e d e c l a r a r a m o r a o m u n d o s e n s í v e l . M a s , e n t ã o , i n v e r t e r
o p l a t o n i s m o ser ia r e c u s a r o d u a l i s m o o n t o l ó g i c o ? Se de¬
c a p i t a m o s o "ve rdade i ro m u n d o " , s o b r a o m u n d o - a p a r ê n -
c ia , e t a l v e z p e r m a n e ç a m o s p l a t ô n i c o s d e s g o s t o s o s , p o r
n ã o t e r m o s m a i s o m u n d o idea l . A "Hi s tó r i a de um e r r o " ,
e m s e u ú l t i m o a t o , t a m b é m afasta e s sa p o s s i b i l i d a d e : c o m
o fim do s u p r a - s e n s í v e l , e l i m i n o u - s e também o m u n d o
" a p a r e n t e " , q u e s ó m e r e c e e s s a q u a l i f i c a ç ã o c o m o con¬
t r a p o s i ç ã o ao m u n d o " v e r d a d e i r o " . M a s o q u e se q u e r de¬
s i g n a r c o m e s s e " m u n d o " q u e r e s t a a p ó s o fim do "ver¬
d a d e i r o m u n d o " , e q u e n ã o é m a i s o m u n d o - a p a r ê n c i a
de um p l a t ô n i c o in fe l i z? Q u a l é, e x a t a m e n t e , o a lvo e o
r e s u l t a d o d o p r o c e s s o n i e t z s c h i a n o c o n t r a P l a t ã o ?
No prefácio a Para além do bem e do mal, P la tão é cen¬
s u r a d o po r se r o r e s p o n s á v e l pe la i n t r o d u ç ã o do " d o g m a -
t i s m o " na filosofia. O s e u p io r e r ro te r ia s ido um e r ro tipi¬
c a m e n t e d o g m á t i c o : a i n v e n ç ã o do esp í r i to p u r o e do B e m
em s i 1 7 . O q u e é o " d o g m a t i s m o " pa ra N i e t z s c h e ? A l g o
m u i t o d i fe ren te do q u e s ign i f icava pa ra K a n t , q u e o iden¬
t i f icava a o d e s c o n h e c i m e n t o d o s l i m i t e s d a r a z ã o . P a r a
N i e t z s c h e , o f i lósofo " d o g m á t i c o " é a q u e l e q u e e s t a b e l e ¬
ce u m a d e t e r m i n a d a r e l a ç ã o c o m a v e r d a d e . O " d o g m a -
t i s m o " é a p r e t e n s ã o à u n i v e r s a l i d a d e da v e r d a d e , e o s e u
o p o s t o i m e d i a t o s e r á o "f i lósofo d o fu turo" . E s t e , m e s m o
s e n d o " a m i g o d a v e r d a d e " , c e r t a m e n t e n ã o s e r á d o g m á ¬
t i co , v i s t o q u e " seu o r g u l h o , a s s i m c o m o s e u g o s t o , s e in¬
surg i rá e m face d a idé ia d e q u e s u a v e r d a d e d e v a se r u m a
v e r d a d e p a r a t o d o s , o q u e , a té aqu i , foi s e c r e t a m e n t e o de¬
se jo e o p e n s a m e n t o r e s e r v a d o de t o d a s as v i s a d a s d o g -
m á t i c a s " 1 8 . A s s i m , s e P l a t ã o é c e n s u r a d o , n ã o é p e l a d u -
17. Nietzsche, Para além do bem e do mal, Prefácio, K S A vol. 5, p. 12.
18. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 43, KSA, vol. 5, p. 60.
34 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
plicação ontológica do mundo, mas por aquilo que o conduzia a essa duplicação, o páthos universalista que o levava a buscar verdades válidas para todos. Era o dogmatismo, assim interpretado, que levava Platão ao essencial ismo, à obsessão pela rubrica "em s i" . Assim, enquanto Platão discorria em tom definitivo sobre o "Bem em si", o discur¬ so do filósofo do futuro será muito diferente; ele dirá que "é preciso desfazer-se desse mau gosto: querer pôr-se de acordo com o grande número. 'Bem' não significa mais bem na boca do vizinho. E como haveria um 'bem co¬ mum'? A expressão envolve uma contradição: o que pode ser comum sempre tem pouco valor" 1 9 .
Isso permite entrever onde estará o centro da "inver¬ são do pla tonismo" proposta por Nietzsche e qual era a démarche de Platão que mais o irritava. Ela estava na cer¬ teza de que a filosofia é capaz de trazer a unanimidade, de estabelecer verdades válidas para todos. O dogmatismo é isso: a convicção de que um dia as polêmicas vão termi¬ nar, e que enfim a filosofia chegará à "unanimidade". E se existe a certeza do fim da polêmica, é porque estamos seguros de que chegaremos a verdades universais, válidas para todos, já que existem essências às quais a dialética,
infalivelmente, nos conduzirá, momento solene em que, enfim, obteremos a definição do "em si". O que é o dog-mat ismo? Antes de tudo, uma confiança cega na palavri¬
nha "razão", acompanhada da certeza acrítica de que existem "essências" às quais nossa razão não deixará de nos conduzir, permitindo que possamos circunscrever definitivamente territórios como o "justo", o "bem", o "belo".. . E isso já começa a indicar onde se localiza uma das raízes do antiplatonismo de Nietzsche: em uma des¬ confiança em face da razão e da verdade, no sentido clás-
19. Nie tzsche , Para além do bem e do mal, § 4 3 , K S A , vol. 5, p. 60 .
O NIILISMO EUROPEU 35
s ico da pa lavra . É a e s sa s u s p e i t a con t r a a r a z ã o q u e se
p r ec i s a dirigir a a t e n ç ã o , para expl ic i ta r o s e n t i d o e o ad¬
v e n t o d o " n i i l i s m o e u r o p e u "
III
A d e s c o n f i a n ç a de N i e t z s c h e em face da " r a z ã o " e da
" v e r d a d e " já v i n h a à t o n a no a n o de 1 8 7 3 , em Sobre ver
dade e mentira no sentido extra-moral, texto que, como ele
m e s m o confessa em Humano, demasiado humano, foi es¬
cri to s o b o i m p a c t o do n i i l i smo . A l i já se a p o n t a v a o "quão
l a m e n t á v e l , q u ã o f a n t a s m a g ó r i c o e fugaz, q u ã o s e m fina
l i dade e g ra tu i to fica o i n t e l e c t o h u m a n o d e n t r o da n a t u -
r e z a " 2 0 . S e m f i n a l i d a d e ? N a v e r d a d e , c o m u m a finalida¬
d e b e m m e s q u i n h a : N i e t z s c h e a p r e s e n t a o i n t e l ec to c o m o
" u m m e i o pa ra a c o n s e r v a ç ã o do i n d i v í d u o " , m a s c o m a
r e s s a l v a de q u e ele só t e m e s sa s e r v e n t i a para os indiví¬
d u o s " f racos" . P io r a inda , e s se i n t e l e c t o , r e d u z i d o a ins¬
t r u m e n t o d e c o n s e r v a ç ã o d a e s p é c i e , e s tá l o n g e d e ter
c o m p r o m i s s o s c o m a v e r d a d e , e o " c o n h e c i m e n t o " é apre¬
s e n t a d o ali c o m o u m i n s t r u m e n t o que s ó d e s d o b r a s u a s
fo rças m e s t r a s "no d i s f a r c e " . E s s a en fá t i ca d e s q u a l i f i c a -
ção da noção clássica de razão é r e tomada em A gaia ciên¬
cia. N ã o t e m o s , diz N i e t z s c h e ali, " n e n h u m ó r g ã o para o
c o n h e c e r , para a ' v e r d a d e ' ; ' s a b e m o s ' (ou a c r e d i t a m o s ou
i m a g i n a m o s ) p r e c i s a m e n t e o t a n t o que , no i n t e r e s s e do
r e b a n h o h u m a n o , da e s p é c i e , p o d e ser útil; e a té m e s m o
o q u e aqu i é d e n o m i n a d o ' u t i l i d a d e ' é , por ú l t i m o , sim¬
p l e s m e n t e u m a c rença , u m a i m a g i n a ç ã o . . . " 2 1 . O n d e s e ori¬
g ina essa d e s c o n f i a n ç a em face da r a z ã o ?
20. Nietzsche, Sobre verdade e mentira no sentido extramoral, Obras incompletas, cit., p. 45.
21. Nietzsche, A gaia ciência, § 354, Obras incompletas, cit., p. 218.
36 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
Por um lado, não faltam textos em que Nietzsche su¬ gere que a confiança na razão permanece tributária da crença em um Deus veraz. É assim, por exemplo, quando ele afirma que a suposição de que "a razão humana está justificada é a suposição de um caráter honrado e fiel, a con¬ seqüência da fé na veracidade divina, da idéia de um Deus criador de todas as co isas" 2 2 . Tese que um cartesiano sempre subscreveria: só se consegue legitimar a razão huma¬ na através da garantia metafísica do Deus veraz e, desde então, o ateísmo é s inônimo de uma suspeita lançada sobre a razão. E a desconfiança de Nietzsche em face da razão proviria de sua recusa em admitir a existência do Deus veraz. Mas essa resposta, aparentemente imediata, apresenta dois inconvenientes graves. Em primeiro lugar, um inconveniente doutrinai: ela faz de Nietzsche alguém que aceita a lógica das Meditações de Descartes, mas não o seu desfecho, e o transforma, por isso mesmo, em um car-tesiano infeliz. Em segundo lugar, um inconveniente me¬ tódico: estaríamos em um flagrante círculo vicioso, já que, para negar o platonismo, quer dizer, o "verdadeiro mun¬ do", no qual o Deus cristão é um dos atores principais, recorre-se a uma desqualificação da razão e, para justifi¬ car a fragilidade da razão, recorre-se à negação de Deus. Assim, antes de acusar Nietzsche quer de incorrer em uma petição de princípio, quer de ser um cartesiano envergo¬ nhado, vale a pena verificar como é, antes de tudo, atra¬ vés de uma determinada análise da linguagem, que ele vai sendo levado a considerar a nossa "razão" como uma ficção que se desconhece como tal.
No Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche identifica a "ra¬ zão" a uma "metafísica da l inguagem" - para apresentá-
22. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 2[132] , KSA, vol. 12, p. 133.
O NIILISMO EUROPEU 37
la como essencialmente fraudulenta. Fala-se ingenuamen¬ te em "razão na l inguagem", sem se dar conta de quão enganadora é essa "personagem feminina". De tal forma, garante Nietzsche, que devemos até temer que "não nos desvencilharemos de Deus, porque ainda acreditamos na gramática..." 2 3. E desde Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, já se estabelecia essa correlação entre razão, l inguagem e engano. Ali, ao perguntar-se de onde provi¬ ria, neste mundo, o "impulso à verdade", Nietzsche res¬ ponde evocando, em primeiro lugar, a oposição clássica entre estado de natureza e estado de sociedade, para en¬ contrar o es tabelecimento da verdade na própria origem da sociedade. Pois enquanto o indivíduo isolado "quer conservar-se, ele usa o intelecto, em um estado natural das coisas, no mais das vezes apenas para a representa¬ ção; mas, porque o homem, ao mesmo tempo por neces¬ sidade e tédio, quer existir socialmente e em rebanho, ele precisa de um acordo de paz e se esforça para que pelo menos a máxima bellum omnium contra omnes desapareça de seu mundo. Esse tratado de paz traz consigo algo que parece ser o primeiro passo para alcançar aquele enigmᬠtico impulso à verdade. Agora, com efeito, é fixado aquilo que doravante deve ser 'verdade', isto é, é descoberta uma designação uniformemente válida e obrigatória das coi¬ sas, e a legislação da l inguagem dá também as primeiras leis da verdade: pois surge pela primeira vez o contraste entre verdade e mentira" 2 4 . Aqui, a referência ao bellum om-nium contra omnes não é de forma alguma gratuita. E em algumas análises de Hobbes que está o quadro completo daquilo que Nietzsche oferece apenas em esboço.
23 . Nietzsche, "A 'razão' na filosofia", Crepúsculo dos ídolos, § 5,
Obras incompletas, cit., p. 331.
24. Nietzsche, Sobre verdade..., § 1, Obras incompletas, cit., p. 46.
38 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
Ao descrever o estado de natureza, Hobbes indicava que nesse estado os homens nunca se entenderão sobre os valores, nunca alcançarão a unanimidade para designar o bem e o mal, o justo e o injusto. Portanto, ali nunca po¬ deria haver, c o m o pensava Platão, uma solução racio¬ nal para o conflito sobre o significado dos valores. Pois o que é o "bem", o "mal" ou a "justiça"? O nominal ismo de Hobbes , quer dizer, a certeza que de universal, no mundo, só existem os nomes , pois as coisas nomeadas são sempre individuais e s ingulares 2 5 , vai proibi-lo de atribuir àquelas palavras o méri to de designar essências univer¬ sais, padrões preexis tentes aos quais os agentes deve¬ riam se submeter enquanto sujeitos racionais. É o nomi-nal ismo que proíbe o "dogmat i smo" , no sentido que Nietzsche dará a essa palavra. A tese nominalista é o pri¬ meiro passo para a bellum omnium contra omnes, já que ela determina a impossibilidade completa de qualquer acor¬ do espontâneo entre os homens . Afinal, o que diferencia o "bem" do "mal"? Hobbes dirá que o "bem" se identifica ao "agradável", quer dizer, os homens chamam de "bem" o que lhes agrada e de "mal" o que lhes desagrada 2 6 . E como os homens diferem entre si em sua constituição, eles não concordarão entre si no que se refere à diferença en¬ tre o bem e o mal. S implesmente não existe aquilo que os gregos chamavam de bem puro e simples, o bem tem sen¬ tido apenas em relação a uma pessoa determinada: "bem" e "mal" são nomes impostos às coisas para exprimir a in¬ clinação ou a aversão daqueles que assim as denominam; e como as inclinações dos homens são diferentes, eles vão
25. H o b b e s , Leviatã, I, 4, São Paulo , Abril Cultural , 1974, p. 2 1 .
26. H o b b e s , Elementos de derecho natural y político, I, 7, 3, Madr i ,
CEC, 1979, p. 142.
O NIILISMO EUROPEU 39
a t r ibu i r d i f e r e n t e m e n t e e s s e s n o m e s p a r a c a r a c t e r i z a r o s
e v e n t o s d e s u a v i d a , v a l o r a d o s s e g u n d o d i f e r e n t e s cr i té¬
r ios , e i s so fará c o m q u e o a n t a g o n i s m o e n t r e e l e s se ja
i n e v i t á v e l : o s h o m e n s "se e n c o n t r a m e m e s t a d o d e guer¬
r a q u a n d o , pe la d i v e r s i d a d e d e s e u s ape t i t e s , m e d e m c o m
d i v e r s a s m e d i d a s o b e m e o m a l " 2 7 . A s s i m , o e s t a d o de
n a t u r e z a é a n t e s de t u d o a a u s ê n c i a de u m a m e d i d a co¬
mum, a s i t u a ç ã o em q u e as p a l a v r a s n ã o t ê m s i g n i f i c a ç ã o
u n í v o c a , j á q u e e las s ã o s e m p r e r e p o r t a d a s à s p r e f e r ênc i a s
d e c a d a u m .
A r e p ú b l i c a s e r á a i n s t i t u i ç ã o de u m a m e d i d a c o m u m
para h o m e n s q u e , n a t u r a l m e n t e , n ã o d i s p õ e m d e n e n h u
m a . U m a v e z o h o m e m n a t u r a l t r a n s f o r m a d o e m "cida¬
d ã o " , e le d e v e r á r e c o n h e c e r q u e "as le is c iv is c o n s t i t u e m
para t o d o s os s ú d i t o s a m e d i d a de s u a s a ç õ e s , a s q u e de¬
t e r m i n a m s e s ã o j u s t a s o u in jus t a s , b e n é f i c a s o u prejudi¬
c ia i s , v i r t u o s a s ou v i c i o s a s ; de f o r m a q u e o u s o e de f in i ção
d e t o d o s o s n o m e s s o b r e o s q u a i s n ã o s e e s t e j a d e a c o r d o
e q u e i n c l i n e m à c o n t r o v é r s i a d e v e m e s t a b e l e c e r - s e se¬
g u n d o e s s e s c r i t é r i o s " 2 8 . Em r e g i m e de r e p ú b l i c a a re ta ra¬
z ã o só p o d e r á s e r a r a z ã o do E s t a d o , e é a s u a l e g i s l a ç ã o
q u e va i e s t a b e l e c e r u m a s i g n i f i c a ç ã o c o m u m para a s pa¬
lavras e d e f i n i ç õ e s . M a s o q u e é e s s a r a z ã o do E s t a d o ? Ela
é a p e n a s a r a z ã o de a l g u m h o m e m ou de a l g u n s h o m e n s
q u e o c u p a m o p o d e r s o b e r a n o . P o r i s so , a v e r d a d e "con¬
s e n s u a l " à q u a l se c h e g a na c i d a d e , e s t e Ersatz da inat in¬
g íve l " u n a n i m i d a d e " p l a t ô n i c a , n u n c a p a s s a r á d e u m a
o p i n i ã o pr ivada q u e c o n s e n t i m o s em t o r n a r púb l i ca e obri¬
g a t ó r i a p a r a t o d o s . S e n d o a s s i m , e s s a " u n a n i m i d a d e " , tal
c o m o é o b t i d a n a r e p ú b l i c a h o b b e s i a n a , n u n c a p o d e r á
27. Hobbes, De eive, I, 3, 31, Paris, Sirey, 1981, p. 118.
28. Hobbes, Elementos de derecho..., cit., II, X, 8, p. 367.
40 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
ser a garantia de uma cidade regida pela "verdade" - no sentido que os "filósofos" gostariam que esta palavra ti¬ vesse. O que Hobbes admitia de bom grado, ao reconhe¬ cer que se o soberano, ao elaborar as leis civis, guia-se pela "reta razão", todavia "a razão de nenhum homem, nem a razão de seja que número for de homens , consti¬ tui a cer teza" 2 9 . A unanimidade a que se chega na repúbli¬ ca nunca passará de um "ponto de vista" particular, pro¬ movido a opinião comum, em benefício do fim da "dis¬ córdia". E isso talvez nos ajude a precisar a posição de Nietzsche. Essa ancoragem do "impulso à verdade" na vida gregária, no "rebanho", onde nos reportamos a significa¬ ções que são unívocas apenas por "convenção", explica o nasc imento da oposição entre verdade e mentira, já que agora há o nascimento de um padrão comum, em função do qual se pode medir os desvios individuais.
Mas a adesão a uma compreensão "convencional is-ta" da linguagem seria suficiente, por si só, para se instalar um divórcio geral e radical entre a l inguagem e a verda¬ de? Essa é outra questão. Para afirmar esse divórcio, não basta ser convencionalista . E preciso assegurar-se, ainda, de que por princípio as palavras nunca poderão ser "ex¬ pressão adequada" das coisas. Será necessário reescrever o Crátilo de Platão. Em que ponto preciso se situa o "an-tiplatonismo" ou o "niilismo" de Nietzsche, quando cen¬ tramos a atenção exclusivamente na sua teoria da lingua¬ gem? Retomemos, por um momento , esse diálogo platô¬ nico. O que se investiga ali é a justeza dos nomes , quer dizer, a adequação entre a l inguagem e aquilo que é de¬ signado por ela. Crátilo crê em uma adequação natural entre o sentido dos nomes e as coisas. Hermógenes é um
29. Hobbes , Leviatã, cit., I, V, p. 28.
O NIILISMO EUROPEU 41
convencionalista e pensa que a justeza das palavras é ape
nas uma convenção ou acordo, e que portanto qualquer
que seja o nome que se dê a algo, este é um nome justo,
já que nenhum objeto tem seu nome da natureza, mas so¬
mente do uso ou do costume daqueles que o empregam 3 0 .
No diálogo, ao ouvir essa tese de Hermógenes, Sócrates
o adverte de que ela talvez lhe traga embaraços quanto à
verdade. Perguntado se para ele há algo assim como di¬
zer o verdadeiro e dizer o falso, Hermógenes diz que sim,
que há o discurso verdadeiro e o discurso falso, que o dis¬
curso que diz as coisas como elas são é verdadeiro, o que
diz aquilo que elas não são é falso. Mas admitindo isso,
não se precisa aceitar que os nomes também podem ser
ditos verdadeiros ou falsos? Será possível - pergunta Só¬
crates - que um objeto tenha tantos nomes quantos se
atribuam a ele, e durante o tempo em que são atribuídos?
"De minha parte - responde Hermógenes - considero
que não existe outra retidão de denominação do que esta:
é meu direito empregar, para cada coisa, um nome estabe¬
lecido por mim; é teu direito empregar um outro, por sua
vez, estabelecido por ti; o mesmo vale também para os
povos, que por vezes vejo atribuir, cada um às mesmas
coisas, nomes que são só deles, gregos paralelamente ao
resto dos gregos, gregos paralelamente aos bárbaros." 3 1
Eis aí: o que é chamado de "bem" aqui é chamado de
"mal" ali, os nomes são convenções arbitrárias, sem qual¬
quer relação com a natureza das coisas. Razão pela qual
Sócrates vai suspeitar de que Hermógenes é discípulo in-
confesso de Protágoras. Se ele concebe assim a lingua¬
gem, então deve pensar que a essência das coisas é rela-
30. Platão, Cratilo, 383a-e, Oeuvres... , cit., p. 613 .
3 1 . Platão, Cratilo, 385d-e, Oeuvres..., cit., p. 615.
42 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
t iva a c a d a i n d i v í d u o , q u e o h o m e m é a m e d i d a de to¬
das as co isas e , p o r t a n t o , ta is c o m o elas parecem para m i m ,
ta i s e las são pa ra m i m , e a s s i m as c o i s a s n ã o t ê m em sua
e s s ê n c i a nada de p e r m a n e n t e . E agora S ó c r a t e s p o d e colo¬
car H e r m ó g e n e s e m u m a s i t u a ç ã o e m b a r a ç o s a . - C a r o
H e r m ó g e n e s , v o c ê n ã o a c r e d i t a q u e e x i s t a m h o m e n s
r u i n s ? - C l a r o q u e a c r e d i t o , j á e n c o n t r e i v á r i o s , a s s im
c o m o j á e n c o n t r e i h o m e n s b o n s . - E v o c ê n ã o a c h a que
os b o n s s ã o r a z o á v e i s , o s m a u s n ã o r a z o á v e i s ? - S i m , é
a m i n h a op in ião , S ó c r a t e s ! - M a s en t ão , caro H e r m ó g e n e s ,
se P r o t á g o r a s e s t i v e s s e c o m a r a z ã o , se as c o i s a s fo s sem
ta is c o m o e las p a r e c e m a c a d a u m , ser ia p o s s í v e l dizer
q u e a l g u n s s ã o r a z o á v e i s , ou t ro s n ã o r a z o á v e i s ? - C la ro
q u e n ã o ! E a s s i m H e r m ó g e n e s deve c o n v e n c e r - s e de que
é i m p o s s í v e l que P r o t á g o r a s t e n h a di to a v e r d a d e , pois um
h o m e m n ã o se r ia j a m a i s r e a l m e n t e m a i s s á b i o q u e ou t ro
se a v e r d a d e fosse , para cada u m , s o m e n t e aqu i lo que lhe
p a r e c e . D a q u i virá o p r ó x i m o round, n e c e s s a r i a m e n t e ven¬
cido por S ó c r a t e s . Se P r o t á g o r a s es tá e r r ado , se o h o m e m
n ã o é m e d i d a , e n t ã o as co i sas t ê m ne l a s m e s m a s u m a "es¬
s ê n c i a f ixa", e l a s n ã o s ã o n e m r e l a t i v a s a n ó s , n e m de¬
p e n d e n t e s de n ó s , m a s e x i s t e m por s i m e s m a s , s e g u n d o a
e s s ê n c i a que l h e s é n a t u r a l 3 2 . E daqu i S ó c r a t e s - P l a t ã o ex¬
trairá c o n s e q ü ê n c i a s r e l a t ivas à l i n g u a g e m .
Se os s e r e s t ê m u m a e s s ê n c i a fixa e e x i s t e m por s i
m e s m o s s e g u n d o e s sa e s s ê n c i a q u e l h e s é na tu ra l , e n t ã o
o c o r r e o m e s m o c o m a s a ç õ e s , que t a m b é m s ã o u m a cer¬
t a e s p é c i e d e s e r e s . D e s d e e n t ã o , se rá p r e c i s o c o n c e d e r
q u e a s a ç õ e s s e f azem s e g u n d o sua própr ia n a t u r e z a , não
s e g u n d o n o s s a s o p i n i õ e s . O r a , falar e n o m e a r s ã o a ç õ e s e
t ê m , p o r t a n t o , u m a n a t u r e z a q u e l h e s é p rópr i a . O s n o -
32. Platão, Cratilo, 386d-387b, Oeuvres..., cit., p. 617.
O NIILISMO EUROPEU 43
mes são instrumentos próprios para enunciar e distinguir a realidade e, desde então, assim como um hábil tecelão se servirá bem do tear, um hábil instrutor se servirá bem do nome - bem, quer dizer, de modo próprio a ensinar. Uma vez concedida essa comparação da linguagem à téc¬ nica, Hermógenes deverá se convencer de que não cabe a qualquer h o m e m estabelecer os nomes . Ou antes, se estabelecer os nomes é obra de um "legislador", ao con¬ trário de seu homônimo hobbesiano esse legislador será um homem raro. Quando fixa os nomes, o legislador pla¬ tônico dirige seus olhos a quê? Ele reproduzirá a forma de nome própria a cada coisa e, sob a direção do dialético, es¬ tabelecerá os nomes conven ien temente . O dialético se serve da linguagem e julga a qualidade de seu instrumen¬ to, assim como o tecelão julga a eficiência do tear. "Em suma, Hermógenes, pode não ser uma pobre tarefa, assim como tu o imaginas, instituir os nomes! Nem mesmo a tarefa de pobres-diabos ou de principiantes! Crátilo diz a verdade quando diz que é por natureza que os nomes pertencem às coisas, e t ambém que não é qualquer um o operário dos nomes , mas somente aquele homem cujo olhar está dirigido para aquilo que, por natureza, é para cada coisa o seu nome; homem capaz de aplicar sobre letras, sobre sílabas, a forma dessa coisa ." 3 3 E agora a lin¬ guagem, segundo o Sócrates platônico, será tecida com nomes justos , nomes que exprimem a essência dos ob¬ je tos . Há uma ciência na origem de nossa linguagem e o "bom Hermógenes" deverá ser informado, por Sócrates, de que há grande chance de que os primeiros a instituir os nomes não eram espíritos medíocres, mas sábios nas coisas celestes.
33 . Pla tão , Crátilo, 390d, Oeuvres..., cit., p. 622.
44 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
Por que Hermógenes é tão facilmente enredado nas teias da dialética platônica, e por que Nietzsche não o se¬ ria j amai s? Vale a pena localizar o ponto preciso em que Hermógenes começa a ceder terreno para Sócrates. Este ponto está, manifestamente, ali onde Sócrates pergunta a Hermógenes se existem discursos verdadeiros e discursos falsos, logo, nomes verdadeiros e nomes falsos. Ao admi¬ tir que sim, Hermógenes entrega o seu j o g o : agora Protá-goras estará refutado, não se poderá mais admitir que o homem é a medida das coisas, logo, devem existir essên¬ cias imutáveis dessas coisas, adequadamente expressas pelos nomes etc. Sendo apenas convencionalista, Hermó-genes só pode ser levado a baixar as armas. O trajeto de -Nietzsche será inverso àquele a que Hermógenes se dei¬ xa submeter por Sócrates : ele partirá da tese de uma ina¬ dequação de princípio entre as palavras e as coisas, para concluir então um divórcio radical entre a l inguagem e a verdade. Ali em Verdade e mentira..., a tese convencionalis-ta é indissociável de uma certa reflexão sobre a l inguagem - reflexão que Hermógenes não fazia, o que terminava por obrigá-lo a curvar-se tão rapidamente às "evidên¬ cias" socráticas. Ao filiar-se ao partido "convencionalista", Nietzsche imediatamente formulava a pergunta que Her-mógenes calava: "o que se passa com aquelas convenções da linguagem? São talvez frutos do conhecimento, do sen¬ so de verdade: as designações e as coisas se recobrem? É a l inguagem a expressão adequada de todas as realida-des?" 3 4 . Se o "convencionalista" Hermógenes , admitindo a existência de "discursos verdadeiros" e de "discursos falsos", era docemente constrangido pelo dialético a ad¬ mitir a existência de uma ciência na origem de nossa lin-
34. Nie tzsche , Sobre verdade..., Obras incompletas, cit., p. 47.
O NIILISMO EUROPEU 45
guagem, o "convencionalista" Nietzsche, caminhando na contramão do roteiro eleito pelo Crátilo, partirá da convic¬ ção de uma inadequação de princípio entre as palavras e as coisas, para concluir o divórcio radical entre a linguagem e a verdade, ou antes, para estabelecer o non sens da oposi¬ ção entre "discursos verdadeiros" e "discursos falsos".
Se em Verdade e mentira... Nietzsche parte da evidên¬ cia de que a l inguagem não é "expressão adequada" da realidade, é porque supõe-se implici tamente ali uma de¬ terminada concepção da l inguagem, que é explicitada no seu Curso de retórica". A tese ali implícita é a de que a re¬ tórica, ao contrário do que pensava a tradição, antes de ser apenas um dos usos da l inguagem, é na verdade a sua essência. O que fará da l inguagem um instrumento próprio para persuadir, não para exprimir o verdadeiro. Era Aris¬ tóteles que delimitava o domínio da retórica, frente àque¬ le do "saber", através da oposição entre dois usos da lin-g u a g e m 3 6 . Alguns discursos - diz Aristóteles - são pró¬ prios para instruir: é o caso do discurso do médico, do geômetra, enfim, daquele que sabe. Aqui, a l inguagem é a designação adequada de certos conteúdos e, por isso mesmo, ela instrui. E se bem que esses discursos possam, além de instruir, também persuadir, existe um uso da lin¬ guagem que é próprio apenas para a persuasão. Esse uso é a retórica, e o discurso retórico descobre, em cada caso, o que é próprio para persuadir. Não sendo um discurso que instrui mas que apenas persuade, o discurso retórico não se prende à expressão adequada das coisas, mas faz livre uso das expressões inadequadas, de figuras como as
35. Nietzsche, Curso de retórica, trad. Thelma Lessa da Fonseca, Cadernos de Tradução, 4,1999, Depto. de Filosofia - USP.
36. Aristóteles, Retórica, livro I, cap. 2, 1355b-1356b, Obras, Madri, Aguilar, 1967, pp. 118 ss.
46 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
metáforas, as metonímias etc. Discurso preso ao veros¬ símil e ao possível, a retórica pertence à dialética, não à analítica, ela não exprime adequadamente nem nos ofe¬ rece demonstrações, apenas obtém a adesão do outro na¬ quelas matérias que não são sujeitas à necessidade.
No seu Curso de retórica, é antes de tudo essa apre¬ sentação tradicional da retórica como um dos usos possí¬ veis da l inguagem que chama a atenção de Nietzsche. Usualmente - diz ele - chamamos um autor ou um livro de "retórico" quando vemos nele a utilização intencional de alguns meios artísticos; e fala-se em um uso intencio¬ nal desses meios por oposição a um uso da l inguagem que se tem por "natural", não por "intencional". Todavia - garante Nietzsche - não é difícil provar que aquilo que se chama de "retórica", como uso de uma arte consciente, designa elementos que atuam na língua como uma arte inconsciente. Em outras palavras, não existe uma "natu¬ ralidade" pré-retórica da língua, mas a própria linguagem é o resultado de uma série de artes retóricas. O que deve levar-nos a suspeitar que a oposição aristotélica entre um "uso instrutivo" e um "uso re tór ico" da língua deve ser rejeitada, e que devemos reconhecer toda l inguagem como sendo essencialmente uma retórica. O que Aristó¬ teles chamava de arte retórica - capacidade de extrair de cada coisa aquilo que tem força e causa impressão - é a essência da linguagem. O que representa dizer que deve¬ mos afirmar, da linguagem em geral, aquilo que os clássi¬ cos afirmavam apenas de seu uso retórico: que ela não está dirigida para a verdade, para a essência das coisas, que ela não instrui, mas apenas provoca nos outros um movimen¬ to subjetivo e uma aceitação. Mas por que, nesses anos iniciais do "nii l ismo", a l inguagem é vista por Nietzsche como sendo essencialmente uma arte retórica?
O NIILISMO EUROPEU 47
Porque aquele que cria a l inguagem não apreende coisas ou processos, mas estímulos; ele não reproduz sensações , mas apenas imagens de sensações . A sensação , provocada por uma exci tação nervosa, não apreende a própria coisa; essa sensação se representa no exterior por uma imagem, e o problema é saber como um ato da alma pode ser representado por uma imagem sonora. "Não seria necessário, quando deve ter lugar uma perfeita e com¬ pleta reprodução, antes de tudo, que o próprio material de que deve se constituir a reprodução seja o mesmo com que trabalha a a l m a ? " 3 7 Todavia, esse material é algo de estranho - ele é um som -, logo, dele só pode resultar uma imagem. Assim, não são as coisas que se tornam presen¬ tes à nossa consciência, mas sim o modo como nos relacionamos com elas. A essência total das coisas nunca é apreen¬ dida por nós. Nossas emissões sonoras não aguardam que novas percepções e experiências nos dêem um co¬ nhec imento respeitável das coisas. Ao contrário, nossas emissões sonoras ocorrem assim que sentimos o estímulo. Assim, a sensação não incorpora as coisas mas apenas um traço delas e, se é assim, a linguagem é retórica, porque ela transmite apenas uma dóxa, não uma epistéme. Por isso, não devemos considerar mais a retórica apenas como um uso da l inguagem, ao lado de outros - particularmente, ao lado de seu suposto uso "instrutivo". Ao contrário, deve¬ mos considerar a l inguagem como essencialmente retórica. Se os principais meios da retórica são os tropos ou deno¬ minações impróprias - s inédoques, metáforas, metoní -mias -, essas figuras não deverão mais ser vistas como usos desviantes de uma l inguagem que, "naturalmente" , operaria por denominações próprias. Ao contrário, é gra-
37. Nietzsche, Curso de retórica, cit., p. 37.
48 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
ç a s a o p e r a ç õ e s de m e t á f o r a s , s i n é d o q u e s e m e t o n í m i a s
q u e se c o n s t i t u i a l i n g u a g e m em g e r a l - e t o d a s as pala¬
v ras , do p o n t o de v i s ta de sua s ign i f i cação , s ã o t r o p o s . As¬
s i m , u s u a l m e n t e d i z e m o s q u e o r e t ó r i c o fala " o n d a " n o
l u g a r d e " m a r " , f a z e n d o u m a s i n é d o q u e , o n d e a p a r t e
o c u p a o l u g a r do t o d o . E d i z e m o s t a m b é m q u e e l e faz
u m a m e t á f o r a q u a n d o t o m a u m a c o i s a p o r o u t r a . M a s ,
o b s e r v a n d o b e m - d iz N i e t z s c h e - , e s s e s p r o c e d i m e n t o s
e s t ã o n a o r i g e m d e c a d a pa l av ra . P o i s t o d a s a s p a l a v r a s ,
e m v e z d e e x p o r o v e r d a d e i r o p r o c e s s o , e x p õ e m u m a ima¬
g e m s o n o r a , q u e r dizer , t o m a m u m a c o i s a p o r o u t r a ; e a
l i n g u a g e m n u n c a e x p r i m e a l g o c o m p l e t a m e n t e , m a s ape¬
n a s d e s t a c a u m a m a r c a d a co i sa , q u e p a r e c e s e sob re s sa i r ,
i s to é , e la t o m a a pa r t e p e l o t o d o , pa r t e q u e se s o b r e s s a i
em r e l a ç ã o a q u e m fala. A s s i m , é super f ic ia l o p o r signifi¬
c a ç õ e s " p r ó p r i a s " a s i g n i f i c a ç õ e s " i m p r ó p r i a s " j á q u e , n o
fundo , t o d a a l i n g u a g e m se c o n s t i t u i a par t i r de t r o p o s .
São essas teses do Curso de retórica, subjacentes a Ver
dade e mentira, que l evam à c o m p r e e n s ã o niil ista da ina¬
d e q u a ç ã o en t r e l i n g u a g e m e v e r d a d e . S ã o e s s a s t e s e s q u e
a f a s t a m N i e t z s c h e d e H e r m ó g e n e s , j á q u e e l a s t ransfor¬
m a m a l i n g u a g e m e m a l g o o r i g i n a r i a m e n t e i n c o m p a t í v e l
c o m o s e u " u s o i n s t r u t i v o " , ta l c o m o e s t e era s o n h a d o
p e l o s g r e g o s . A g o r a , o e s s e n c i a l é q u e n a s pa l av ra s "nun¬
ca i m p o r t a a v e r d a d e " , a " e x p r e s s ã o a d e q u a d a " , v i s to q u e
o " f o r m a d o r da l i n g u a g e m " , l o n g e de e x p r i m i r a d e q u a ¬
d a m e n t e a l g u m a v e r d a d e , " d e s i g n a a p e n a s a s r e l a ç õ e s
d a s c o i s a s a o s h o m e n s e t o m a e m auxí l io p a r a e x p r i m i -
las a s m a i s a u d a c i o s a s m e t á f o r a s " 3 8 . ' " É e s sa c o m p r e e n s ã o
d a l i n g u a g e m c o m o e s s e n c i a l m e n t e r e tó r i c a q u e va i j u n ¬
ta r - se ao n o m i n a l i s m o p a r a t e c e r a cr í t ica n i e t z s c h i a n a ao
38. Nietzsche, Sobre verdade..., Obras incompletas, cit., p. 47.
O NIILISMO EUROPEU 49
conceito. E s t e n a s c e no m o m e n t o em q u e a pa l av ra n ã o
d e v e d e s i g n a r m a i s a v i v ê n c i a p r i m i t i v a e i nd iv idua l q u e
e s t a v a n a s u a o r i g e m , m a s s i m i n ú m e r o s c a s o s s e m e ¬
l h a n t e s , q u e r dizer , c a s o s r i g o r o s a m e n t e d e s i g u a i s . O
c o n c e i t o é a i g u a l a ç ã o do n ã o - i g u a l , q u e p a s s a r á a d e s i g
n a r c e r t o s u n i v e r s a i s q u e n u n c a e x i s t i r a m na n a t u r e z a . E
s e r á a par t i r d e s s a v o l a t i l i z a ç ã o da i m a g e m s i n g u l a r em
um c o n c e i t o q u e se i n i c i a r á a c o n s t r u ç ã o da g r a n d e pirâ¬
m i d e d o s g ê n e r o s e das e s p é c i e s , c o m a q u a l se p e n s a r á
e m r e g u l a r o m u n d o in tu i t i vo . M a s o s h o m e n s s e e s q u e
c e r ã o d e q u e s e u s c o n c e i t o s s ã o a p e n a s r e s í d u o s d e m e
tá foras ; e o j o g o de d a d o s do c o n c e i t o n o s e n s i n a r á q u e
d e v e m o s c h a m a r d e " v e r d a d e " o u s o d e c a d a d a d o c o m o
e le é d e s i g n a d o , a s s i m c o m o o r e spe i to às c l a s se s h ie rá r
qu i ca s d o s c o n c e i t o s . O i m p u l s o à v e r d a d e surgi rá do es¬
q u e c i m e n t o d e s s e j o g o pr imi t ivo , u m j o g o q u e p o d e r i a n o s
e n s i n a r c o m o , o r i g i n a r i a m e n t e , era P r o t á g o r a s q u e m esta¬
va c o m a r azão , po i s n ã o ex is te pa lavra q u e n ã o seja fruto
de u m a relação com o mundo, a n t e s de d e s i g n a r "o m u n d o " .
M a s , se é a s s im , o q u e N i e t z s c h e p o d e r á c o m p r e e n d e r po r
" v e r d a d e " ? A p e n a s u m " b a t a l h ã o m ó v e l d e me tá fo ras , m e -
t o n í m i a s , a n t r o p o m o r f i s m o s , enf im, u m a s o m a d e r e l a ç õ e s
h u m a n a s , q u e fo ram e n f a t i z a d a s p o é t i c a e r e t o r i c a m e n t e ,
t r a n s p o s t a s , e n f e i t a d a s , e q u e , a p ó s l o n g o u s o , p a r e c e m a
um p o v o só l idas , c a n ô n i c a s e ob r iga tó r i a s : a s v e r d a d e s s ã o
i l u sões das qua i s se e s q u e c e u q u e o s ão , m e t á f o r a s q u e se
t o r n a r a m g a s t a s e s e m força s e n s í v e l , m o e d a s q u e perde¬
r a m sua efígie e a g o r a só e n t r a m em c o n s i d e r a ç ã o c o m o
m e t a l , n ã o m a i s c o m o m o e d a s . " 3 9
F r u t o d e u m a l e g i s l a ç ã o q u e n ã o era p r e s i d i d a p o r
n e n h u m sabe r , a l i n g u a g e m n ã o s e c o a d u n a m a i s à s e x i -
39. Nietzsche, Sobre verdade..., Obras incompletas, cit., p. 48.
50 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
g ê n c i a s do Crátilo p l a t ô n i c o , v i s t o q u e " n ã o é l o g i c a m e n ¬
te q u e o c o r r e a g ê n e s e da l i n g u a g e m , e o m a t e r i a l i n t e i r o
no q u a l e c o m o qua l m a i s t a rde o h o m e m da v e r d a d e , o
p e s q u i s a d o r , o f i lósofo , t r a b a l h a e c o n s t r ó i , p r o v é m , se
n ã o d e C u c o l â n d i a das N u v e n s , e m t o d o c a s o n ã o d a es¬
s ê n c i a d a s c o i s a s " 4 0 . D e l i m i t a ç ã o i n s t i t u c i o n a l d e signifi¬
c a ç õ e s a rb i t r á r i a s , a l i n g u a g e m n ã o p o d e e l idi r s u a pre¬
c a r i e d a d e c o n g ê n i t a , e é a p e n a s g r a ç a s à sua c a p a c i d a d e
de e s q u e c i m e n t o q u e o h o m e m p ô d e c h e g a r a c re r q u e e le
p o s s u i u m a v e r d a d e . E i s a í o g rau z e r o do " d o g m a t i s m o " ,
q u e o f i lósofo p l a t ô n i c o n ã o fará s e n ã o e x a c e r b a r . O q u e
é o d o g m a t i s m o , e n q u a n t o p r e t e n s ã o às v e r d a d e s univer¬
s a l m e n t e v á l i d a s ? E le é a p e n a s o c o m e n t á r i o f i losófico do
e s q u e c i m e n t o d a o r i g e m d e m a s i a d o h u m a n a d a s signifi¬
c a ç õ e s d e n o s s a l i n g u a g e m : g r a ç a s a e s s e e s q u e c i m e n t o ,
o d o g m á t i c o ac red i t a r á p o d e r refer i r -se "a n o r m a s q u e va¬
l e m p a r a t o d o s , a c o n c e i t o s q u e t ê m o m e s m o s e n t i d o
p a r a t o d o s , e le a c r e d i t a r á q u e n a ra iz d e n o s s o d i s c u r s o
e x i s t e a l g u m a c o i s a - r a z ã o pu ra , su je i to u n i v e r s a l - ca¬
p a z de diluir t o d a s a s m e n t i r a s , de d e n u n c i a r t o d a s a s ilu¬
s õ e s , profer i r a ú l t i m a pa l av ra . Em s u m a , e l e a c r e d i t a r á
q u e o h o m e m é c a p a z de c o n h e c e r o S e r e de d i z ê - l o em
n o m e d e t o d o s " 4 1 . M a s e s s a r a z ã o n ã o p a s s a d e u m a "me¬
tafís ica d a l i n g u a g e m " q u e , p o r a m n é s i a , p e n s a ter a c e s s o
a o " e m s i " .
M a s e n t ã o é c l a r o q u e , n o i n t e r i o r d e s s a c o n c e p ç ã o
n i e t z s c h i a n a d a l i n g u a g e m , n ã o p o d e h a v e r lugar pa ra ne¬
n h u m " v e r d a d e i r o m u n d o " . D o n d e o n o v o s i g n i f i c a d o
q u e d e v e ser d a d o à n o ç ã o de " n i i l i s m o " , e o q u e se d e v e
40. Nietzsche, Sobre verdade..., Obras incompletas, cit., p. 48. 41. Lebrun, G., "Por que ler Nietzsche, hoje?", Passeios ao léu,
cit., p. 35.
O NIILISMO EUROPEU 51
compreender pela morte do Deus cristão, enquanto esse Deus era a expressão e a figura mais sublime do "verdadeiro mundo". O que é o niilismo, esse fenômeno euro¬ peu? Ele é a convicção de que "não existe verdade algu¬ ma; de que não existe nenhuma qualidade absoluta nas coisas, de que não existe 'coisa em si'. Isso é o niilismo e, na verdade, o niilismo o mais ex t remo" 4 2 . Mas isso res¬ ponde imediatamente à questão da qual se partiu. Per¬ guntava-se qual era a relação entre a morte de Deus e a desvalorização de todos os valores. Essa relação não re¬ presenta qualquer retomada envergonhada do tomismo, nem uma falta de reflexão sobre a Crítica kantiana. A morte de Deus e a desvalorização dos valores são even¬ tos simultâneos, enquanto ambos habitam o "verdadeiro mundo". Se não existe "verdadeiro mundo", não há nem Deus nem valores absolutos. E isso porque somos deten¬ tores de uma linguagem, não de um logos.
IV
Essa explicitação do niilismo é, ao mesmo tempo, uma primeira chave para se compreender o "perspecti- ' v ismo" de Nietzsche. O "filósofo do futuro" não deseja a unanimidade porque sabe que não existe o "verdadeiro mundo", que somos capazes de obter apenas "perspec¬ tivas" sobre as coisas, pontos de vista localizados e nunca universalizáveis. Esse perspectivismo é uma conseqüên¬ cia imediata do ant ipla tonismo. Aquilo que os filósofos chamavam de "essências" eram apenas as suas perspec¬ tivas sobre as coisas - a just iça "em si" de Platão era ape-
42. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 9[35], KSA, vol. 12, p. 350.
52 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
nas a perspectiva de Platão sobre a justiça ou, então, a sua "interpretação". Mas agora é preciso reconhecer que uma "coisa em si" é tão absurda quanto um "sentido em si", quanto uma "significação em si". Não existe nenhum "fato em si", porque para que um fato possa dar-se, é preciso sempre interpretá-lo de algum modo. Assim, contra o po¬ sitivismo, que se limita ao fenômeno e afirma que "só há fatos", devemos afirmar que "só existem interpretações"; não conhecemos nenhum fato em si, o mundo não tem nenhum sentido fundamental, mas muitíssimos sentidos - isso é o "perspect iv ismo" 4 3 . E esperemos que doravante, com a morte de Deus, quer dizer, com o fim do "ver¬ dadeiro mundo" , o dogmático ceda seu lugar ao filósofo do futuro, e que hoje em dia não t enhamos mais "a ridí¬ cula pretensão de decretar que nosso pequeno canto é o único de onde se tenha o direito de ter uma perspectiva. Muito pelo contrário, o mundo, para nós, voltou a ser in¬ finito, no sentido de que não podemos recusar-lhe a possi¬ b i l idade de prestar-se a uma infinidade de interpretações'*. Isso também é o niilismo em suas conseqüências . A acli¬ matação dessa idéia de "interpretação" só é cabível em re¬ gime de niil ismo, em clima de fim de festa para a noção clássica ou dogmática de "verdade".
Mas, se é assim, a partir de agora será preciso redefi¬ nir a própria tópica dá filosofia: doravante ela deve trans¬ formar-se em "filologia". Se os "ideais" estipulados como universais são na verdade uma determinada "perspecti¬ va", se só existem "interpretações", perguntemos o que quer aquele que assim interpreta, que tipo de vida ali se exprime: saúde ou doença, degenerescência ou fortaleci-
43. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 7[60], KSA, vol. 12, p. 315.
44. Nietzsche, A gaia ciência, § 374, KSA, vol. 3, p. 627.
O NIILISMO EUROPEU 5 3
mento? Qual o valor de nossos valores, inclusive daquele que atende pelo nome de "verdade"? Se só existem inter¬ pretações, é lícito perguntar que tipo de vida quer aque¬ le que assim valoriza, que chama "bem" ao altruísmo e "mal" ao egoísmo, que promove o desinteresse como va¬ lor, ou mede a origem das ações pela "utilidade", que cla¬ ma pela igualdade e pelos direitos. O que revelam seme¬ lhantes discursos? Ana l i semos as interpretações como filólogos, e verifiquemos quem fala, por exemplo, ao inter¬ pretar assim a "justiça". Enquanto a tópica do filósofo dog¬ mático centra-se na pergunta "o quê?", a tópica do primeiro niilista perfeito será "quem fala?"; se só existem interpretações, o que elas exprimem e o que elas valem? Já que não existe mais céu inteligível, aquilo "que" se fala, os ideais professados são apenas a expressão de seu autor, e toda grande filosofia é uma confissão do filósofo, um livro de memórias involuntário, onde se pode reconhecer que as intenções morais (ou imorais) "constituíam o germe pro¬ priamente dito de toda filosofia" 4 5. Assim, antes de lamen¬ tar o fim de nossos "ideais", façamos a filologia dessas inter¬ pretações, verifiquemos o que se exprime através delas, quem assim interpreta. Se Deus morreu, só nos resta in¬ terpretar as interpretações - e apenas quando fizermos isso começaremos a falar com o "sotaque" de Nietzsche.
Isso basta para indicar que a análise nietzschiana de nossa civilização nunca se confundirá com a "crítica da ideologia", no sentido habitual da expressão. Religiões, morais e filosofias nunca serão vistas como representações "falsas", por oposição a uma ciência que desmascararia todas as ilusões. Essa maneira de tratar a ideologia, por oposição à ciência, como uma representação falsa, é inge-
4 5 . Nie tzsche , Para além do bem e do mal, § 6, KSA, vol . 5, p. 19.
54 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
n u a m e n t e g rega , e o cr í t ico da i d e o l o g i a é a p e n a s um pla¬
t ô n i c o a m a i s , c o m a s s e n t o no fim da h i s tó r i a u n i v e r s a l . A
f a l s idade de um j u í z o - diz N i e t z s c h e - " n ã o é p a r a n ó s
n e n h u m a o b j e ç ã o c o n t r a e s s e j u í z o : é n i s s o , t a l v e z , q u e
n o s s a l í n g u a n o v a s o a m a i s e s t r a n g e i r a " 4 1 . O q u e impor¬
ta é s a b e r se e s s e j u í z o é a p t o ou n ã o a p r o m o v e r a v ida ,
a c o n s e r v a r a e s p é c i e . Pa ra q u e s e rve e s s a o b s e s s ã o p e l o
v e r d a d e i r o e o fa lso , s e n ã o p a r a r e i t e r a r o p l a t o n i s m o ? O
q u e i m p o r t a é r e c o n h e c e r a q u i l o q u e P l a t ã o e s e u s ep ígo¬
n o s j a m a i s q u i s e r a m , n e m p u d e r a m admi t i r , a sabe r , q u e
" e m t o d o filosofar, a té agora , n u n c a se t r a tou de ' v e r d a d e ' ,
m a s d e a l g o o u t r o , d i g a m o s s a ú d e , futuro, c r e s c i m e n t o ,
p o t ê n c i a , v i d a . . . " 4 7 H á a i n d a u m a s e g u n d a v e r t e n t e pla¬
t ô n i c a da "cr í t ica da i d e o l o g i a " . A p ó s reduz i r os " i d e a i s " a
r e p r e s e n t a ç õ e s fa lsas , o c r í t i co va i se p e r g u n t a r q u e m es¬
tava i n t e r e s s a d o e m e n g a n a r o s p o b r e s m o r t a i s : o h o m e m
da doxa s a b e t ã o p o u c o de s e u s i n t e r e s s e s q u e q u a l q u e r
a s t u t o p o d e i l u d i - l o . M a s o " c r e n t e " n i e t z s c h i a n o n ã o é
e n g a n a d o p o r n i n g u é m e o " i d e a l " q u e e le a d o t a co r r e s¬
p o n d e a u m a necessidade sua , a um d e t e r m i n a d o m o d o de
v ida . A s s i m , se o c r i s t i a n i s m o s o b r e v i v e na " v e l h a Euro¬
p a " , é p o r q u e e l e a i n d a é n e c e s s á r i o à m a i o r p a r t e das
p e s s o a s e p o r q u e o h o m e m é tal q u e , se r e f u t á s s e m o s c e m
v e z e s um ar t igo de s u a c r e n ç a , "se e le p r ec i s a de le n ã o ces¬
s a d e c o n s i d e r á - l o a i n d a c o m o v e r d a d e i r o " 4 8 . A s s i m , re¬
l i g i õ e s , m o r a i s e f i losofias n ã o t ê m c o m o e s s ê n c i a s e r e m
e r r o s o u m e n t i r a s , m a s c o r r e s p o n d e m à n e c e s s i d a d e d e
um t ipo de v ida . Po r i s s o , o p r o c e d i m e n t o de N i e t z s c h e
46. Nietzsche, Para além de bem e mal, § 4, Obras incompletas, cit., p . 270.
47. Nietzsche, A gaia ciência, prefácio da 2a ed., § 2, Obras incom¬ pletas, cit., p. 190.
48. Nietzsche, A gaia ciência, § 347, KSA, vol. 3, p. 581.
O NIILISMO EUROPEU 55
será sempre o de regredir da obra ao criador, da ação ao agente, do ideal àquele que necessita dele, "de todo modo de pensar e de valorar à necessidade que comanda por trás de le" 4 9 . Isso sendo dito, tratemos de acompanhar Nietzsche na análise do valor de nossa civilização. Já que esta¬ mos em regime de niilismo, já que nossos valores se des¬ valorizaram, convém perguntar se, de fato, há algo a la¬ mentar com o fim da civilização judaico-cristã.
49. Nie tzsche , A gaia ciência, § 370, Obras incompletas, cit., p. 2 2 1 .
C A P Í T U L O III
O PRIVILÉGIO DO TERRITÓRIO MORAL
I
A análise nietzschiana do valor de nossa civilização suscita uma questão prévia, que não é de método, mas de tema. Entre todos os conteúdos que compõem a "civilização ocidental", a moral será o "objeto" privilegiado pela investigação de Nietzsche. Se nossa civilização é um mapa-múndi composto dos territórios filosofia, ciência, arte, política e moral, é a moral que merecerá a atenção especial do filólogo. E isso é patente para o leitor da Genealogia da moral. Temos necessidade de uma crítica dos valores morais - diz Nietzsche. O valor desses valores deve ser posto em questão, é a "interpretação moral do mundo" que deve ser analisada, visto que "não existem coisas que mais compensem serem levadas a sério" do que os "problemas da moral" 1. De onde vem essa precedência do território moral diante das outras regiões de nossa "civilização"? Por um lado, não se deve imaginar que essa precedência
1. Nietzsche, Genealogia da moral, c i t , Prólogo, § 7, p. 15.
58 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
da moral seja sinônima de uma exclusão, do campo da análise, dos demais territórios. Ao contrário, se a moral é privilegiada é porque, através dela, todos os outros conteúdos de nossa civilização estarão sendo visados. Como não existem fatos, mas apenas interpretações, não existem "fatos morais", e a moral é apenas uma interpretação dos fenômenos. E Nietzsche observará que a interpretação moral conserva um valor imenso enquanto "semiótica". A moral é uma "linguagem de signos", uma "sintomatologia" e, através dela, revelam-se "as mais preciosas realidades da civilização"2. Assim, se a moral é privilegiada na análise é porque nela temos o núcleo da tarefa formadora de nossa civilização. Por isso Nietzsche dirá que as morais "são o principal meio de moldar o homem ao gosto de um poder criador" - logo, o principal meio de formação da humanidade 3.
As morais são o principal meio para se fazer do homem o que se quer? Nada deve ser mais levado a sério do que os problemas da moral? Deve-se confessar que, para nós, à primeira vista esse privilégio e esse poder formador atribuído à moral têm algo de assombroso. E, talvez, já por essas afirmações Nietzsche nos pareça um "inatual". Pelo menos para nós, leitores do "outro lado" do século XIX, já suficientemente acostumados a relegar a "questão moral" entre os epifenômenos da "superestrutura". Para nós, são a instância econômica e a instância política que comandam tudo, e nosso discurso predileto seria mais ou menos assim: "a infra-estrutura econômica é o principal meio para se fazer do homem o que se quer, logo, nada
2. Nietzsche, "Os melhoradores da humanidade", Crepúsculo dos
ídolos, § 1, KSA, vol. 6, p. 98. 3. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 37[8], KSA, vol. 11, p. 580.
O PRIVILÉGIO DO TERRITÓRIO MORAL 59
deve ser mais levado a sério que os problemas da economia política". Os problemas da moral como os que mais se deve levar a sério? Isso seria colocar novamente as coisas de cabeça para baixo, depois de tanto trabalho para se afastar o "idealismo" e dar direito de cidadania à verdade "materialista". Qual a relevância de se dedicar atenção a certas noções como "piedade", "altruísmo", "desinteresse"? Que importância poderia ter analisar a origem da repugnância moderna pelo "egoísmo"? Para nós, que freqüentamos outra região da ideologia alemã, tudo isso só pode parecer irrelevante, gratuito e - por que não dizê-lo? - de mau gosto.
Mas será que podemos estar tão seguros assim de nossas "evidências", tão certos de que a moral é um simples epifenômeno e não uma instância formadora? É essa segurança, exatamente, que Nietzsche nunca poderia ter. Ao contrário, uma vez o filósofo situado em um regime em que "tudo é interpretação", é a tese oposta àquela a que nos acostumamos que necessariamente se impõe. Uma vez aceito o império inconteste da "interpretação", é inevitável situar-se contra "a doutrina da influência do meio e das causas exteriores: a força interior é infinitamente superior; muito do que se considera como influência exterior é apenas adaptação. Meios completamente iguais podem ser interpretados e utilizados de maneiras contrárias: não há fato positivo" 4. Se não há fato positivo, se todo fato é interpretado e apenas após sua interpretação ele pode influir, então no fundo o que exerce influência é aquilo que rege as diferentes interpretações: os "ideais" que comandam aquele que interpreta. Se contra o positivismo afirmamos que não existem fatos, mas só interpretações, uma
4. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 2[175], KSA, vol. 12, p. 154.
60 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
vez abandonada a mitologia do fato puro, são os ideais in-terpretadores que detêm a última palavra. É por isso que o pequeno positivista, certo de que os fatos econômicos determinam tudo, não cessará de ter surpresas desagradáveis. O xá da Pérsia caiu, agora o motor infra-estrutural da história só poderá levar o Irã à modernização. Surpresa! O que vem depois do xá é uma república teocrática... Os ideais tingem os fatos com a coloração que quiserem. Por isso, deixemos de supor um sentido unitário nas coisas - o mundo é passível de infinitas interpretações. Deixemos de ser platônicos! Deixemos também de ser positivistas: abandonemos este prejuízo que é a doutrina da influência do meio e das causas exteriores sobre o homem, esqueçamos a causalidade infra-estrutural. Os ideais comandam mais do que o meio e a sociedade. Por isso, não há nada que mereça ser mais levado a sério do que o problema moral.
Mas será que já estamos prontos para aceitar a legitimidade dessa tese de Nietzsche? Por um lado, é certo que a partir da idéia de que não há fatos puros, mas apenas interpretações, começamos a compreender o direito desse privilégio do território moral no interior da doutrina. Mas, por outro lado, também é verdade que a resposta a essa questão, situada nesse grau de generalidade, pode parecer bastante insatisfatória. Pois estaríamos condenados a escolher entre duas fórmulas gerais: ou existem fatos puros que determinam as interpretações, a infra-estrutura comanda a superestrutura, e a moral é um epifenô-mcno derivado e secundário; ou não existem fatos puros mas apenas interpretados, são os ideais que determinam o sentido dos processos, e agora a moral é o que mais deve ser levado a sério. Mas, então, existem fatos puros ou só interpretados? Assim formulada, a questão pode pare-
O PRIVILÉGIO DO TERRITÓRIO MORAL 61
cer insolúvel: Tales dizia que tudo é água, Heráclito que tudo é fogo... Façam seus jogos... Sendo assim, em vez de se manter a discussão exclusivamente no plano muito geral dos "princípios", vale a pena particularizá-la, tentando exercitar com Nietzsche, em um setor determinado, aquele que seria o seu estilo de suspeita.
Foi dito que, para nós, habitualmente situados em um determinado lado da "ideologia alemã" - o lado oposto àquele onde residem Nietzsche e Max Stirner -, afirmar que nada deve ser tão levado a sério quanto o problema moral é fazer uma asserção no mínimo extravagante. Para nós, cientes de que o fundamental está na questão socioeconômica, sabedores de que a moral é apenas epi-derme, a ciência da infra-estrutura social é o fundamental. Mas será que podemos estar inteiramente seguros de que nossa "ciência" está desligada de tácitas valora-ções morais? Será mesmo que podemos ter a certeza de que nosso socialismo - aquele mesmo que se autopro-clama "científico" - não está dominado pela moral? E isso não na retórica de campanha, mas mesmo ali onde ele pensa fazer uma análise "objetiva", uma investigação "científica"? Sabe-se que essa purificação da ciência diante das valorações morais, do "ideológico" no sentido amplo da palavra, é um dos principais leitmotives de Althusser 5. Quem se atreve a percorrer as páginas de Lire le capital vai encontrar ali a tese segundo a qual Marx, ao instituir uma "ciência" do social, rompeu todo e qualquer elo com o "ideológico" em geral, logo, desfez todo e qualquer compromisso também com a moral. Para se constituir como "ciência", um discurso deveria romper as amarras de seu passado com o "ideológico", deveria higienizar qualquer
5. Althusser, L., Lire le capital, Paris, Maspero, 1965.
62 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
relação com os "valores", vestindo aquela improvável carapuça que os weberianos apelidarão de "neutralidade axiológica". E essa ruptura da ciência com o seu passado "ideológico" que Althusser chamará - seguindo Bache-lard - de "corte epistemológico". Após fazer tal "corte", ao construir seu objeto como um "objeto de conhecimento", o socialismo científico se tornaria um discurso purificado de qualquer "ideologia", logo, não contaminado por tácitas "valorações morais". Mas será mesmo que podemos estar tão certos assim da eficácia desses "cortes epistemológicos", vislumbrados pelo famoso alfaiate francês?
E essa certeza, justamente, que Nietzsche nunca teria. O que faz com que o território moral passe a ter uma extensão insuspeitada pelo crítico da ideologia: as interpretações morais podem estar sorrateiramente presentes, mesmo ali onde expressamente se pensou em excluí-las. Para Nietzsche, aquilo que Althusser chama de "ideológico" está presente mesmo ali onde ele pensa ouvir um discurso puramente científico, visto que "os juízos morais cristãos voltam a aparecer nos sistemas socialistas e positivistas. Falta uma crítica da moral cristã"6. Tal será a suspeita de Nietzsche: em que medida toda ciência e toda filosofia estiveram, até hoje, sob a influência de juízos morais? Tentemos compreender o alcance dessa suspeita verificando, por exemplo, como o ideal de "sociabilidade" construído por filósofos e "cientistas" é um ideal comandado e determinado pela moral. E, para isso, voltemos a algumas páginas de Rousseau, já que ele teve importância na constituição do ideal de sociabilidade adotado por "nossos socialistas". Que ideal de sociabilidade regia a cidade oriun-
6. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 2(127], KSA, vol. 12, p. 125.
O PRIVILÉGIO DO TERRITÓRIO MORAL 63
da do contrato social? Quando Rousseau descreve sua cidade, vai ficando claro que, para ele, a sociabilidade perfeita exige do indivíduo nada mais, nada menos do que o "esquecimento de si", quer dizer, a supressão pura e simples de sua própria individualidade. E esse ponto merece alguma atenção.
Com efeito, que problema Rousseau pretendia resolver no Contrato social? Simplesmente, o de encontrar "uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, todavia só obedeça a si mesmo, e permaneça tão livre quanto antes" 7. Assim, a associação desejada é um certo todo ao qual eu obedeço mas em que, estranhamente, minha obediência não será vivida por mim sob a figura da coerção: devo ao todo social uma completa obediência, mas obedecendo a ele não obedeço senão a mim mesmo. E uma estranha situação... Que tipo de relação deve existir entre o indivíduo e a sociedade para permitir tal resultado? Como pode haver completa coincidência entre cada um e iodos? A única possibilidade é que este cada um não seja de fato levado em consideração e anule-se diante da associação: de alguma forma, minha particularidade deve desaparecer diante desse todo social, para que obedecer a ele seja equivalente a obedecer a mim mesmo; minha particularidade, quer dizer, minhas inclinações, meus desejos, tudo aquilo que me singulariza ou me individualiza em relação aos outros. E minha individualidade que deve desaparecer para que a cidade se torne efetiva. Em outros termos, para que a cidade seja possível é necessário que o interesse privado seja sempre
7. Rousseau, ].-)., Du contraí social, Paris, UGE, Col. 1 0 / 1 8 , 1 9 6 3 ,
p. 61 .
64 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
idêntico ao interesse geral, é preciso que a vontade particular seja sempre idêntica à vontade geral: apenas sob essa condição aquilo que a sociedade quer não é diferente do que eu quero, apenas assim a finalidade da cidade e a finalidade do indivíduo coincidem. Mas coincidem desde que o indivíduo renuncie à sua individualidade, a tudo aquilo que faz dele um particular diante dos demais. E por isso que esse contrato singular terá apenas uma cláusula, ou antes, terá cláusulas que se reduzem a uma só, e que será o comentário dessa absorção de cada um no todo: "a alienação total de cada associado com todos os seus direitos a toda a comunidade; pois, primeiramente, cada um se doando inteiramente, a condição é igual para todos; e a condição sendo igual para todos, ninguém tem interesse em torná-la onerosa aos outros" 8. E apenas graças a essa alienação integral que a sociedade torna-se possível. E agora essa sociedade será o contrário mesmo de um agregado de indivíduos em que cada parte permanece independente em relação ao todo. A verdadeira sociedade é uma associação: um todo orgânico, algo muito diferente de um somatório de individualidades, constituído por partes que não serão mais independentes de seu todo. E esse modelo orgânico que fará com que não seja arbitrário falar em "membros" do "corpo político". Em um organismo o membro é o corpo e o corpo é o membro; aqui não há distância concebível entre a parte e o todo. Logo, é por princípio que a vontade da sociedade coincide com aquela de seus membros, é por princípio que o interesse comum recobrirá o meu interesse. O corpo nunca vai querer o que não é o bem de seus membros e, obedecendo a ele, é a mim mesmo que obedeço. Mas a condição para
8. Rousseau,}.-]., Du contrai social, cit., p. 61 .
O PRIVILÉGIO DO TERRITÓRIO MORAL 65
9. Cf. Goldschmidt, V., Anthropologie et politique - les príncipes du système de Rousseau, Paris, Vrin, 1974, pp. 569 ss.
que essa cidade se realize é a transformação do indivíduo em cidadão, a renúncia de cada um à sua particularidade, aos seus interesses e inclinações, para então, perfeitamente identificado aos outros, comungar com todos no universal. Não há cidade autêntica sem o "esquecimento de si" - aquilo mesmo que definirá a "virtude" para Robespierre.
Sabe-se que para Rousseau essa sociabilidade absoluta perseguida no Contrato sempre permanecerá um ideal nunca perfeitamente realizável. Se a socialização exige uma transformação do indivíduo, uma mutação do homem natural que o faça perder a sua singularidade, Rousseau tem plena consciência de que essa transformação nunca será completa. Se a sociedade é artificial, ela jamais anulará inteiramente o natural. Os cidadãos poderão chamar-se membros do corpo político; mas a metáfora orgânica não poderá mascarar o fato de que eles jamais poderão unir-se ao corpo político como os verdadeiros membros se unem ao corpo natural, e cada um sempre terá uma existência individual separada da sociedade. Se ávida social é uma desnaturação, ela jamais poderá instalar-nos no artificial puro, e o estado social, mesmo que ele iniba nossas inclinações, nunca poderá pura e simplesmente anulá-las 9. O ideal de socialização absoluta fracassa porque sempre sobrará algo de natureza em mim, algo de indivíduo em mim, oposto aos desígnios da sociedade. E o que permanece de natureza em nós, o que permanece de individualidade exclusiva, será sempre fonte de tensões na vida social. É nessa oposição renitente entre indivíduo e cidadão, entre o natural e o artificial, que estará a origem da "miséria humana". Mas, se é verdade que o ideal de so-
66 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
ciabilidade construído no Contrato nunca será inteiramente realizável, não é menos verdade que, enquanto ideal, ele é algo em direção ao qual devemos caminhar. Devemos caminhar para o "esquecimento de si". Por isso a cidade deve exorcizar as inclinações individuais desses átomos turbulentos que são os indivíduos naturais, a sociabilidade exige a neutralização das particularidades que individualizam os seus membros. Donde os inúmeros textos em que Rousseau vai vituperar contra tudo que individualiza os cidadãos, quer dizer, contra tudo que torna uns diferentes dos outros: contra a divisão do trabalho que, ao fazer de um agricultor e de outro, comerciante, individualiza as pessoas, as particulariza e institui novas barreiras à sociabilidade completa. Donde os elogios de Rousseau a Roma: um romano não era nem Caius nem Lucius, era um romano. O aborrecido é que hoje em dia eles são Caio ou Lúcio, enquanto um é agricultor e o outro é comerciante. A miséria é a indfvidualização.
O que pensar desse ideal de sociabilidade, inteiramente construído sobre uma suspeita lançada contra o indivíduo? Antes de verificar a resposta de Nietzsche a essa pergunta, convém notar que, para ele, "nossos socialistas" apenas farão eco a Rousseau, e também modelarão a sua comunidade futura a partir de uma desconfiança diante do indivíduo. E agora eles pensarão em tornar inteiramente realizável aquele ideal que, para Rousseau, deveria ser sempre perseguido, mas infelizmente nunca seria completamente efetivado. E, para convencer-se disso, basta verificar o significado da categoria de "emancipação humana" em um texto como A questão judaica de Marx. Ali, Marx critica Bruno Bauer por reduzir a questão da cidadania das minorias não cristãs à emancipação política do Estado, quer dizer, à sua laicização. E ele indicará que a emancipação política nunca se confundirá com a eman-
O PRIVILÉGIO DO TERRITÓRIO MORAL 67
cipação humana. Se com a emancipação política o Estado se liberta de um limite, isso não significa que os homens também se libertem desse limite: a religião, suprimida da esfera pública, permanece firme na esfera privada. Mas por que a religião é apresentada ali como um "limite" cuja superação seria por princípio desejável? Simplesmente porque ela diferencia os indivíduos, os particulariza e por isso mesmo os dissocia. Assim, a "questão judaica" perde sua autonomia e se dissolve em um problema mais geral. Afinal, a diferença religiosa é apenas uma entre tantas outras que subsistem de fato na sociedade civil, apesar de terem sido abolidas no Estado: diferença entre proprietários e não proprietários, diferença de cultura, diferença de profissão... A oposição básica que caracteriza o mundo moderno é aquela entre o indivíduo e o cidadão, uma oposição que de forma alguma se limita ao código econômico, mas envolve também a distância entre o judeu e o cidadão, entre o protestante e o cidadão, entre o jornaleiro e o cidadão 1 0. E daqui que decorrerá a implicância de Marx com a distinção entre direitos do homem e direitos do cidadão, esse subproduto da Revolução Francesa que apenas consuma o divórcio entre o homem e ele mesmo. Os direitos do homem são aqueles do "indivíduo egoísta" e exprimem uma sociedade patológica em que os outros são vistos não como minha realização, mas como limitação de minha independência. Donde a precariedade da emancipação política: a verdadeira emancipação humana só chegará quando não houver mais nem Caius nem Lucius. A boa sociabilidade exige a supressão do indivíduo. Mas por que "avaliar" a individualidade como um mal, a ponto de se desejar suprimir até mesmo a divisão do trabalho?
10. Marx, K„ La question juive, Paris, UGE, Col. 10 /18 ,1968 , p. 24.
68 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
Esse resultado a que os teóricos chegam lhes teria sido sussurrado pela pesquisa pura? Ao contrário, dirá Nietzsche, o enfraquecimento e a supressão do indivíduo são uma das últimas "ressonâncias do cristianismo na moral". Se bem que a renúncia ao ego, observa ele, não fosse ponto doutrinai do cristianismo primitivo, logo em seguida ela se tornou uma das marcas registradas da religião cristã. E hoje em dia positivismo, utilitarismo e socialismo prolongam essa herança, e até mesmo reforçam o pathos cristão pelo nivelamento. Deus morreu, mas os homens permaneceram iguais e semelhantes, como eram sob seu olhar. Por isso doutrinas e partidos são melodiosamente unânimes ao "exigir que o ego se renegue" em benefício de uma sociedade harmoniosa, até que o indivíduo "se tenha tornado algo inteiramente novo e outro" 1 1. E, de fato,
11. Nietzsche, Aurora, § 132, Obras incompletas, c i t , pp. 172-3: "Parece agora que faz bem a todos ouvir dizer que a sociedade está em vias de adaptar o indivíduo às necessidades gerais e que a felicidade e ao mesmo tempo o sacrifício do indivíduo consistem em sentir-se como um membro e instrumento útil do todo: só que no presente ainda se oscila muito sobre onde esse todo deve ser procurado, se em um Estado vigente ou a ser fundado, ou na nação ou em uma irmandade de povos ou em novas pequenas comunidades econômicas. Sobre isto há agora muita meditação, dúvida, combate, muita excitação e paixão; mas admirável e melodiosa é a harmonia em exigir que o ego se renegue até que, na forma da adaptação ao todo, receba também de volta seu firme círculo de direitos e deveres - até que se tenha tornado algo inteiramente novo e outro. Não se quer nada menos - quer se confesse ou não - do que uma transformação radical, e mesmo enfraquecimento e supressão do indivíduo; não se cansam de enumerar e acusar tudo que há de mau e hostil, de perdulário, de dispendioso, de luxuoso, na forma que teve até agora a existência individual, esperam dispor de uma economia mais barata, menos perigosa, mais equilibrada, mais uniforme, quando só houver ainda grandes corpos e seus membros. Como bom é sentido tudo aquilo que de algum modo corresponde a esse impulso formador de corpo e membros e seus impulsos auxiliares - esta é a correnteza moral básica de nossa época..."
O PRIVILÉGIO DO TERRITÓRIO MORAL 69
em nome do que exigir o "esquecimento de si"? Se o sentimento de comunidade se traduz por um certo "exercício do olhar", pela vontade de uma ótica com a qual se quer tornar impossível olhar a si mesmo, é porque a individualidade foi avaliada e interpretada como o oposto da moral altruísta, como a sede do egoísmo, e é somente em nome dessa moral que o indivíduo é visto como algo a ser suprimido. O cristão e o socialista são representantes do mesmo ideal moral, e é este ideal que trabalha do interior, fornecendo as avaliações tácitas que comandam a construção de um modelo de sociabilidade. Mas esse rancor contra o egoísmo também é instinto de conservação dos "fracos", o culto ao altruísmo é uma "forma específica do egoísmo", que sempre se manifesta sob certas "condições fisiológicas"1 2. Sendo assim, ao afirmar que nada deve ser mais levado a sério do que o problema moral, longe de flertar com o "idealismo", Nietzsche está apenas sendo fiel à própria história da moral. Afinal, o "traço comum na história da moral, desde Sócrates, é a tentativa feita para levar os valores morais à hegemonia sobre todos os demais valores, de maneira que eles sejam não apenas guias e juizes da vida, mas também guias e juizes: 1) do conhecimento; 2) das artes; 3) das aspirações políticas e sociais. 'Chegar a ser melhor', considerado como a única tarefa, não sendo todo o restante mais que um meio para esse fim (ou perturbação, dificuldade, perigo: e deve, por conseguinte, ser combatido até a destruição...)" 1 3.
O teórico do "socialismo científico" responderia que qualquer contaminação de Marx pelo "ideológico" vale apenas para os textos de "juventude"? Ele diria que um "corte epistemológico" torna o socialismo científico intei-
12. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14 [29], KSA, vol. 13, p. 231.
13. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 9[159], KSA, vol. 12, p. 429.
70 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
ramente purificado em relação aos valores? Ora, se é verdade que nos textos da maturidade não há mais qualquer menção ao conceito de "ser genérico" do homem, não émenos certo que o "velho" Marx nunca fez qualquer recusa expressa do ideal de sociabilidade presente na obra da "juventude". E isso porque, na verdade, se os "cortes epistemológicos" representam alterações de conceitos, eles deixam intactos os ideais. E por isso existe um nível da análise em que se pode verificar que o jovem e o velho Marx comungam no mesmo a priori. Prova? Que se veri-fiquem as suspeitas que as obras da maturidade ainda lançam contra a divisão do trabalho, e se encontrará ali o mesmo acento que comandava as análises do jovem Marx ou de Rousseau. Assim, A ideologia alemã sublinha que a divisão do trabalho implica "a contradição entre o interesse do indivíduo singular ou da família singular e o interesse coletivo de todos os indivíduos que estão em relaçõesentre s i" 1 4 . E Marx lamentará que na repartição do trabalho cada um tenha "uma esfera de atividade exclusiva e determinada", uma esfera que lhe é imposta e da qual ele não pode sair, sendo obrigado a ser ou caçador, ou pescador, ou pastor, ou crítico, se não quiser perder seus "meios de existência" 1 5. Da mesma forma, em O capital ele discordará alegremente da economia política que, miope-mente preocupada apenas com a "quantidade" e o valor de troca, "não acerta" ao encarar a divisão do trabalho apenas "como um meio para produzir com a mesma quan-tidade de trabalho mais mercadorias, com o conseqüente barateamento destas" 1 6. Em vez desse viés tacanhamen-
14. Marx, K., Vidéologie allemande, Paris, Éditions Sociales, 1968, p. 61 .
15. Marx, K., Vidéologie allemande, c i t , p. 63. 16. Marx, K., El capital, México, FCE, 1968,1 .1 , p. 297.
O PRIVILÉGIO DO TERRITÓRIO MORAL 71
te "produtivista" da economia política, Marx preferirá sublinhar ali que a especialização no trabalho é o "parcelamento do homem", que a divisão do trabalho converte o operário "em um monstro, fomentando artificialmente uma de suas habilidades parciais", às custas do aplaina-mento de "todo um mundo de fecundos estímulos e capacidades". E por isso ele não terá dúvidas em apresentar a divisão do trabalho como "inseparavelmente" ligada a "certa degeneração física e espiritual do homem" 1 7 . Um eco simétrico e renovado daquela "sociedade comunista" em que ninguém terá uma "esfera de atividade exclusiva", mas em que, ao contrário, poderei fazer hoje uma coisa, amanhã outra, "caçar de manhã, pescar depois do meio-dia, pastorear à tarde, fazer crítica depois da refeição, segundo meu arbítrio, sem nunca tornar-me caçador, pescador ou crítico" 1 8.
Quem escreve essas linhas contra a divisão do trabalho? A "ciência" econômica que se costurou através dos "cortes epistemológicos"? Ora, a estrita racionalidade econômica, ao contrário, patrocina a divisão do trabalho enquanto fator de produtividade. Quem escreve essas linhas não é a ciência econômica, é a moral. E sempre ela que está fornecendo a avaliação da individualidade como um mal a ser exorcizado - e é para melhor exorcizá-lo que se pensa em abolir até a divisão do trabalho. "Ninguém se tornará caçador, pescador ou crítico": essas são as últimas ressonâncias do cristianismo na moral. É sempre a recusa moral do indivíduo que está na origem de nosso ideal de sociabilidade, não a razão pura. Por isso, não é nada absurdo reconhecer que os juízos morais cris-
17. Marx, K., £/ capital, cit., pp. 288, 293 e 296.
18. Marx, K., Vidéologie allemande, cit., p. 63.
72 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
tãos voltam a aparecer nos sistemas socialistas e positivistas, e que falta uma crítica da moral cristã. Se "nossos socialistas" criticam a origem dos valores morais, eles continuam acreditando nesses valores tanto quanto o cristão. Talvez paguemos caro termos sido cristãos por dois mil anos: se afastamos a religião, não afastamos ainda a sua moral, e o livre pensador continua detestando a Igreja, mas não o seu veneno. E se a moral nos domina, a vontade permanece paralisada: o propalado "esquecimento de si" é idêntico à anulação do princípio da vontade.
Compreende-se assim porque, para Nietzsche, nada deve ser tão levado a sério quanto o problema moral: se os valores morais têm hegemonia sobre os demais valores, se eles são guias e juizes não só da vida mas também do conhecimento, das artes e das aspirações políticas e sociais, então eles só poderão estar no centro da investigação desta estratégia de formação que é a nossa "civilização". O que se torna mais evidente ainda quando se tem no horizonte aquilo que significa, para Nietzsche, a moral enquanto tal. Formulemos a pergunta nietzschiana por excelência: quem fala? O que quer aquele que abomina a individualidade? Quem fala é o "instinto de rebanho"; é ele quem diz "tu deves"; é ele que quer que o indivíduo só tenha valor em relação com o todo, para proveito do todo; é ele que odeia a independência individual. O que ele quer? O domínio, nada mais 1 9 . Mas, então, o que será a "moral" para Nietzsche? A doutrina das relações de dominação sob as quais se desenvolve o fenômeno "vida" 2 0.
19. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 7[6], KSA, vol. 12, p. 273.
20. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 19, KSA, vol. 5, p. 34.
O PRIVILÉGIO DO TERRITÓRIO MORAL 73
II
Isso permite compreender por que Nietzsche será levado a recusar a distinção entre teoria e prática, tal como a tradição a entendia. Aristóteles já distinguia rigidamente entre o domínio da teoria puramente contemplativa, cujo objeto é o universal e o necessário, daquele da prática e da produção, que dizem respeito à contingência 2 1 . E, só por isso, para ele seria impensável qualquer influência da prática sobre a teoria, da doutrina do contingente sobre o pensamento do necessário, cada um deles exigindo diferentes disposições da alma. Distinção retomada por Kant, que vai estabelecer, ele também, uma rígida separação entre teoria e prática. A prática pode ser a aplicação da teoria, mas o interesse prático nunca pode determinar a direção da teoria. Por isso, Kant protestará contra aqueles que, desconhecendo como o valor da prática repousa inteiramente em sua conformidade à teoria, põem tudo a perder ao autorizar, absurdamente, a prática a "reger a teoria autônoma" 2 2. Mas é essa distinção rígida entre teoria e prática, assim como a proibição kan-tiana de qualquer contaminação do teórico pelo prático, que necessariamente desaparece quando se reconhece que os valores morais comandam todos os demais.
Afinal, o que se precisa reconhecer agora é que o pretenso "instinto de conhecimento" dos filósofos é regido por suas verdades morais, e por isso mesmo é só "aparentemente independente" 2 3. Por isso, Nietzsche só poderá
21 . Aristóteles, Éthique à Nicomaque, Paris, Garnier, 1965, Livro VI, caps. 1 a 5.
22. Kant, I., "Sur le lieu commun: il se peut que ce soit juste em théorie, mais, en pratique, cela ne vaut point", in Oeuvres phüosophi-ques, Paris, Gallimard, 1986, vol. III, p. 254.
23. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14 [143], KSA, vol. 13, p. 327.
74 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
considerar "funesta" a distinção entre teoria e prática: como se houvesse por um lado um "instinto próprio do conhecimento", que se precipitaria cegamente em direção à verdade, sem perguntar-se sobre o que é útil e prejudicial, e, por outro lado, inteiramente à parte, "todo o universo dos interesses práticos" 2 4. Se o elemento moral domina, não existem conhecimentos desvinculados dos interes-sespráticosque, de fato, os comandam. Assim, ao ronffaTio da tradição, o que se trata de investigar é quais instintos estavam subjacentes ao trabalho dos pretensos "teóricos puros". Como para Nietzsche o ponto de vista do valor é o ponto de vista da conservação e do crescimento, não poderá haver separação entre "conhecimento" e "interesse": o pretenso "instinto de conhecimento pode se reconduzir a um instinto de apropriação e de dominação". Por isso, a "probidade intelectual" é abandonada assim que a moral exige suas respostas: "A moral diz: eu preciso de numerosas respostas - de razões e de argumentos. Escrúpulos poderão sobrevir depois - ou talvez não." 2 5 Donde os protestos de Nietzsche contra Kant e contra os antigos, que estabeleciam uma distinção rígida entre teoria e prática e procediam como se fosse a "intelectualidade pura" que lhes apresentava os problemas do conhecimento e da metafísica, fazendo como se, qualquer que fosse a resposta dada pela teoria, a prática deveria ser julgada segundo esses critérios, quando é exatamente o contrário que ocorre: a "intelectualidade" dos filósofos é apenas a impressão pálida de um "fato fisiológico", visto que o decisivo não é a "verdade", mas o fer por verdadeiro, e essa decisão é sempre interessada 2 6. Desde então, não é surpreendente
24. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14 [142], KSA, vol. 13, p. 325. 25. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14 [142], KSA, vol. 13, p. 325. 26. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14 [107], KSA, vol. 13, p. 285.
O PRIVILÉGIO DO TERRITÓRIO MORAL 75
Nietzsche afirmar que as intenções morais são a verdadeira semente da qual brota toda filosofia. É por isso que vale a pena perguntar sempre como se formaram as afirmações metafísicas as mais distantes de um filósofo, a qual moral ele quer chegar. São sempre outros instintos que se servem do "instinto de conhecimento", como de um instrumento 2 7. Por isso, não deve surpreender ninguém que para Hegel a história, rebatizada agora com o nome de "filosofia", se ponha a serviço da idéia moral, e seja considerada a realização progressiva dessa idéia: desde Platão a filosofia está sob o domínio da moral. Em todos os tempos nossos filósofos tomaram os "belos sentimentos" por argumentos, a mera convicção por critério da verdade. E as nossas doutrinas políticas - democráticas, anarquistas ou socialistas - não serão exceções a esse império da moral.
Se esse império vem de tão longe, é porque a moral está presente na própria constituição da idéia de "filosofia", enquanto toda filosofia, até hoje, faz a separação entre "mundo aparente" e "mundo verdadeiro". De fato, em nome do que separar aparência e realidade verdadeira? De onde vem a exigência dessa separação, sob qualquer uma de suas figuras históricas, a platônica, a cartesiana ou a marxista? Essa exigência provém de um sistema encadeado de valorações: hostilidade cega em relação aos sentidos; construção de um verdadeiro mundo a fim de denegrir e sujar o mundo dado. "Os filósofos nunca hesitaram em aprovar um mundo, sob a condição de que ele contraste com este mundo, que ele forneça um meio cômodo de falar mal deste mundo." E por que a história da filosofia foi até hoje uma "escola da calúnia"? Se em todas
27. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 6, KSA, vol. 5, p. 20.
76 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
as épocas os filósofos desempenharam com tanta desenvoltura o papel de detratores, foi porque eles acreditaram nas verdades morais e por isso só lhes restava dizer "não" à existência2 8. Sócrates já dizia que "a vida não vale nada", ele já era um "decadente". Assim como é de origem moral o privilégio arcaico da razão, privilégio contemporâneo ao nascimento da filosofia. Na República, Platão define a justiça, na cidade e nos indivíduos, como sendo o predomínio da razão sobre as paixões. Isso é puro moralismo, dirá Nietzsche: essa necessidade de transformar a razão em tirano das paixões vem da certeza prévia - e certeza moral - de que as paixões e os instintos conduzem ao abismo 2 9 . A confiança na razão é puramente moral, e por isso Nietzsche não deixará de sublinhar, no Crepúsculo dos ídolos, a corrupção do gosto grego no momento em que começa a preponderar a dialética, o vício dos "raciocínios" e das "demonstrações" para convencer as pessoas. Antes de Sócrates virar sucesso de público e de crítica, na boa sociedade grega se desconfiava dessa maneira de apresentar raciocínios, se considerava que as coisas boas e os homens honrados não trazem as suas "razões" assim tão à mão, e que as coisas suscetíveis de demonstração têm pouco valor. E que ali onde a autoridade ainda faz parte dos bons costumes não se "demonstra", se manda30. Foram certamente esses textos que inspiraram Foucault, quando ele analisa a mudança de regime do discurso verdadeiro, apontando para o momento em que a verdade deixa de reportar-se à autoridade de quem fala para inte-
28. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14 [134], KSA, vol. 13, p. 317. 29. Nietzsche, "O problema de Sócrates", Crepúsculo dos ídolos,
§ 10, KSA, vol. 6, p. 72. 30. Nietzsche, "O problema de Sócrates", Crepúsculo dos ídolos,
§ 5, KSA, vol. 6, p. 69.
O PRIVILÉGIO DO TERRITÓRIO MORAL 77
riorizar-se na proposição 3 1. Para Nietzsche, a vitória da dialética e de suas verdades "universais" significará a preponderância da "plebe" em face dos poderosos, e por isso haverá correlação estrita entre dogmatismo filosófico, democratismo e vontade de potência do rebanho. A "vontade de verdade" nos remete diretamente para o terreno da moral 3 2.
Donde o quadro mais amplo no interior do qual ganha sentido afirmar que nada deve ser mais levado a sério que o problema moral. Se as intenções morais estão na origem da constituição da própria idéia histórica de "filosofia", compreende-se que a moral seja o objeto privilegiado na análise de nossa "civilização". Isso significa reconhecer que o problema dos valores é mais fundamental que o da certeza: a questão da certeza só adquire importância supondo-se respondida a pergunta sobre os valores 3 3. O que é apenas dizer, com outras palavras, que tudo é interpretação; que as filosofias são confissões deseu autor; que não há verdade mas apenas o ter por ver-dadeiro; ou, ainda, que Deus morreu. E se a questão do valor tem precedência sobre todas as outras, não é surpreendente que Nietzsche conceba as morais como o principal meio para se fazer do homem o que se quer. Tese que também pode ser formulada de outra maneira: já está mais do que na hora de dar um basta a este prejuízo que é a doutrina da influência do meio e das causas exteriores sobre o homem, visto aue os ideais comandam mais queo meio ou a sociedade. Mas uma vez estabelecido o privilégio do território moral, é preciso perguntar com que método Nietzsche vai analisá-lo.
31 . Foucault, M., Uordre du discours, Paris, Gallimard, 1971. 32. Nietzsche, A gaia ciência, § 344, Obras incompletas, cit , pp. 212-3. 33. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 7[49], KSA, vol. 12, p. 311.
78 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
III
O significado do método de Nietzsche é indissociável de sua crítica ao tratamento dispensado pelos filósofos ao país da moral; essa crítica não só singulariza a análise de Nietzsche como também determina o seu sentido. Esse novo ato se desdobra a partir da contraposição entre duas teses. Em primeiro lugar, o reconhecimento de que nada merece ser mais levado a sério que a moral. Em segundo lugar, a constatação de que, até hoje, a moral nem sequer foi um problema, já que ela era, ao contrário, "precisamente aquilo em que, depois de toda desconfiança, discórdia, contradição, entrava-se em acordo, uns com os outros, o lugar santificado da paz, onde os pensadores também repousavam de si mesmos, respiravam, reviviam" 3 4 . Esse contraste entre a relevância da questão moral e a ausência de um problema moral em toda a tradição vai desenhar a originalidade da posição de Nietzsche. Mas o que significa, exatamente, afirmar que até hoje a moral nem sequer foi um problema? A primeira vista essa afirmação é surpreendente, já que a reflexão moral tem uma longa história, desde Sócrates. Em que sentido, então, todos os autores refletiam sobre a moral, mas não faziam dela um problema? Para onde se quer apontar quando se afirma que o terreno da moral é aquele onde cessam todas as oposições, onde todos se põem de acordo, onde se dá fim ao pólemos, onde por princípio existe "unanimidade", quer dizer, onde o dogmatismo melhor se exprime? E como existem diferentes filosofias morais no curso da história, o que se pretende, aparentemente, é delimitar o terreno de um acordo de fundo entre todos, si-
34. Nietzsche, A gaia ciência, § 345, Obras incompletas, c i t , p. 214.
O PRIVILÉGIO DO TERRITÓRIO MORAL 79
tuado aquém das diferenças doutrinais, onde convergiriam platônicos e estóicos, utilitaristas e kantianos. Mas onde localizar esse solo comum?
Em Para além do bem e do mal, Nietzsche indica que os filósofos, antes de mais nada, exigiam muito de si mesmos; quando se ocupavam da moral, exigiam de si algo muito alto, muito presunçoso, muito pomposo. O que quiseram os filósofos? Eles quiseram "fundar a moral - e não importa qual filósofo do passado acreditou que tinha fundado a moral" 3 5 . Digamos então que, doravante, devemos abandonar essa pretensão arrogante, e que a análise da moral não deverá desaguar mais em nenhuma "fundação". Mas essa simples acusação de megalomania ainda não nos auxilia muito: o que este projeto funda-cionista clássico tem de censurável, para além de sua presunção? Talvez uma das críticas que Nietzsche dirige a Kant e a Hegel nos auxilie a compreendê-lo. Em um de seus fragmentos póstumos, ele diz não querer deixar-se enganar nem à maneira kantiana, nem à maneira hege-liana, visto que "já não cremos, como eles, na moral e, por conseguinte, não temos que fundar nenhuma filosofia para fundamentar a moral" 3 6. Isso parece sugerir que a fundamentação da moral deixa de ter sentido quando não se acredita mais nos valores morais. E, agora, os filósofos seriam censuráveis menos pela megalomania do empreendimento fundacionista e mais pelo pressuposto deste: só quem crê na moral pode pensar em fundá-la. Mas então seria por isso que até hoje a moral não foi um problema, e seria essa crença na moral o solo comum a todos os filósofos, aquém de suas diferenças doutrinais?
35. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 186, KSA, vol. 5, p. 105.
36. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 2[195], KSA, vol. 12, p. 162.
80 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
Essa interpretação imediata parece confirmar-se no aforismo 186 de Para além do bem e do mal, onde, após lamentar o projeto fundacionista dos filósofos, Nietzsche observa que para todos eles a moral era sempre um "dado".
Todavia, essa interpretação é tão imediata quanto fal-sificadora, e tem ainda o inconveniente grave de impor a Nietzsche duas máscaras que não têm nada a ver com seu personagem. Em primerio lugar, a interpretação é falsifi-cadora, já que, ao se aceitá-la, a originalidade de Nietzsche se resumiria a descrer daquilo em que a tradição crê, sua filosofia se limitaria a uma negação simples da tradição, seu ato inaugural seria apenas o de dizer que os filósofos levaram a sério a moral, em vez de livrar-se dela. E é dessa simplificação que decorrem dois contra-sensos: a ima-gem do Nietzsche libertário e aquela do Nietzsche des-mistificador. Em primeiro lugar, a imagem do "libertário": como se a escolha primeira de Nietzsche fosse pura e simplesmente afastar os valores morais, sob o argumento deque a moral é uma "tirania". O próprio Nietzsche não deixa de advertir-nos contra essa imagem. Para ele, o libertário é apenas um moralista a mais. Pois, se toda moral é uma tirania que se exerce contra a natureza e contra a razão, "isso não é uma objeção contra ela, pois apenas alguma moral permitiria decretar a interdição de toda espécie de tirania ou de desrazão" 3 7. E se o anarquista protesta contra a "tirania das leis arbitrárias", Nietzsche, por seu lado, prefere observar que tudo o que há de grande no pensamento e nas artes se desenvolveu graças à "tirania" dessas leis. Afastemos, portanto, a imagem do Nietzschelibertário. E também aquela do "desmistificador": como se a posição de Nietzsche com relação à moral fosse a de
37. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 188, KSA, vol. 5, p. 108.
O PRIVILÉGIO DO TERRITÓRIO MORAL 81
decretar que os valores não são nada. Se o ato inaugural de sua filosofia fosse declarar a nulidade dos valores, nem se compreende como se poderia falar, ainda, em um "problema" moral. Da mesma forma, a crítica ao universo cristão do "dever ser" não significará a censura a todo e qualquer valor, a transvaloração dos valores não será a negação da idéia mesma de valor, ao contrário, criar valores sempre será, para ele, o "verdadeiro direito do senhor".
Mas, então, qual é o solo comum a todos os filósofos, o terreno inquestionado que fez com que, até hoje, a moral não tenha sido um problema? Tomar a moral como um dado não é simplesmente crer na moral. É acreditar em uma moral válida para todos. Como fazem os utilita-ristas ingleses, que dão razão à moralidade inglesa porque ela serviria melhor à "humanidade", ou ao "bem comum", ou à "felicidade da maioria", e por isso despendem todas as suas forças para provar "que a aspiração à felicidade inglesa, quer dizer, ao confort e à fashion (no fim com um lugar no Parlamento) é também o verdadeiro caminho da virtude, melhor: que jamais houve virtude no mundo que não tenha consistido em semelhante aspiração" 3 8. Se a moral surge como um dado, é a partir do prejuízo univer-salista, que leva a falar na moral, em vez de reconhecer a existência de morais. Assim, o pecado capital dos filósofos é prévio à sua megalomania: se eles pretendem fundar a moral, é porque partem do prejuízo de que existe, por princípio, uma moral universal, logo, única. E esse o ponto em que todos terminam por estar de acordo, o solo de paz para aquém das divergências doutrinais: por mais que os sistemas difiram, todos convergem no prejuízo de uma moral que estabeleça preceitos obrigatórios para não im-
38. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 228, KSA, vol. 5, p. 164.
82 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
porta qual indivíduo. Por isso, a moral nunca entrou na cena filosófica como um problema. E que para Nietzsche os verdadeiros problemas da moral "só se deixam apreender comparando diversas morais" 3 9 .
Mas, se é isso, o resultado pode parecer bem magro: se o verdadeiro problema da moral só surge com o reconhecimento de que existem diversas morais, nos limitaríamos a exclamar, com Pascal, que o "justo" aquém dos Pirineus é "injusto" para além deles, que os valores são por isso mesmo relativos etc. Mas será que o essencial, para Nietzsche, está na consciência prévia de uma relatividade dos valores? Existem razões para se duvidar: o relativismo é um subproduto do historicismo do século XIX, e Nietzsche nunca manifestou simpatia por essa seita. O historicismo leva ao relativismo, e este ao ceticismo moral, à idéia de que, se existem várias morais, então nenhuma é a "verdadeira", nenhuma efetivamente obriga ninguém. Ora, tanto o "dogmático", que afirma a existência de uma moral única e verdadeira, que por isso mesmo obriga a todos, quanto o historicista cético, que reconhece a existência de uma pluralidade de morais, logo, afirma a inexistência de uma moral verdadeira para obrigar alguém, são pseudo-antagonistas que pertencem ao mesmo sistema de pensamento, o sistema que se contenta em opor o verdadeiro ao falso. Por isso, Nietzsche recusará os dois partidos: entre aquele que afirma uma moral única que obrigaria a todos e aquele que, ciente da variabilidade das morais, conclui que nenhuma moral obriga, temos apenas "dois pontos de vista igualmente infantis" 4 0. Apenas saindo desta pré-escola da
39. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 186, KSA, vol. 5, p. 106.
40. Nietzsche, A gaia ciência, § 345, KSA, vol. 3, p. 579.
O PRIVILÉGIO DO TERRITÓRIO MORAL 83
filosofia se poderá reconhecer os problemas da moral e, enfim, fazer a sua crítica. Assim, se a crítica da moral exige a comparação entre diversas morais, também exige outra coisa: exige que se saia para uma posição fora da moral, assim como o andarilho que deixa a cidade para saber a altura de suas torres 4 1.
O que é situar-se fora do terreno da moral? Não é apenas recusar-se a proceder como o anarquista ingênuo, que critica a moral em nome de outra moral. Não é somente deixar de mimetizar o socialista, que critica a origem transcendente dos valores morais, mas acredita neles tanto quanto o cristão. Sair fora do terreno da moral é tudo isso, mas também muito mais do que isso: é precaver-se contra a ilusão a mais tenaz que nos afasta da verdadeira questão crítica, que é a pergunta pelo valor de nossos valores. A verdadeira questão crítica exige uma "liberdade" diante de toda "Europa", entendida como "uma soma de juízos de valor imperativos, que nos entraram na carne e no sangue". A ilusão a mais tenaz veiculada pela Europa, aquela que faz dogmáticos e céticos comungarem nos mesmos pressupostos, é não se situar para além de bem e mal para analisar a moral, é não sair da cidade para conhecê-la. O que é situar-se para além de bem e mal? E situar-se para além da "vontade de verdade" e reconhecer que a mentira é uma condição vital 4 2. É exatamente isso que os teóricos da moral nunca fazem: para o dogmático, a verdade universal obriga a todos; para
41 . Nietzsche, A gaia ciência, § 380, Obras incompletas, cit., p. 222. 42. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 4, Obras incompletas,
cit., p. 270: "Admitir a inverdade como condição de vida: isto significa, sem dúvida, opor resistência, de uma maneira perigosa, aos sentimentos de valor habituais; e uma filosofia que se atreve a fazê-lo se coloca, simplesmente com isso, para além de bem e mal."
84 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
o historicista, o conjunto das inverdades não obriga a ninguém; para nenhum deles a mentira pode ser vista como uma condição vital, como útil sob algum aspecto. E por isso ninguém fez uma verdadeira crítica da moral, ninguém sequer atinou com o verdadeiro problema que a moral suscita, que é aquele do valor dos valores. Os dogmáticos nem imaginam fazer uma crítica da moral. Os historicistas, quando pensam empreendê-la, o fazem de maneira ingenuamente intelectualista. Pois como eles procedem? Eles criticam a opinião de um povo sobre sua moral, ou de um homem sobre toda moral, e pensam que com isso criticaram a própria moral. Mas o valor de um "tu deves" é independente das opiniões do usuário e de seu possível erro, assim como o valor de um medicamento para um doente não depende de suas opiniões médicas. O que se precisa reconhecer é que uma moral "poderia ter crescido a partir de um erro: mesmo com essa noção, o problema de seu valor ainda não teria sido sequer tocado" 4 3 . Por isso, ninguém examinou, até hoje, o valor da moral, esta "mais célebre de todas as medicinas". Dogmáticos e historicistas rezam pela mesma cartilha, permanecem cativos das armadilhas da oposição entre verdade e falsidade. Que se celebre, portanto, nos dois antago-nistas, mais uma vitória do platonismo: a verdade obriga, o erro não obriga, é este sistema, mais uma vez, que impede a crítica da moral, é por ele que o problema da moral nem mesmo vem à tona. Que voz fala através de dogmáticos e historicistas, sem que eles percebam? E a voz de Sócrates. Pois o que é o socratismo moral? Nietzsche o descreve no aforismo 190 de Para além do bem e do mal. Ele é a associação espontânea entre, por um lado, o erro, o mal
43. Nietzsche, A gaia ciência, § 345, Obras incompletas, cit., p. 214.
O PRIVILÉGIO DO TERRITÓRIO MORAL 85
e o inútil e, por outro, entre a verdade, o bem e o útil. Uma vez feitas essas associações, não ocorrerá a ninguém perguntar por que certas mentiras foram adotadas, que condição vital elas preenchiam. Por isso, os verdadeiros problemas da moral só surgem para quem afasta de seu horizonte o dogmatismo e o historicismo - essas duas formas ainda platônicas da filosofia moral. Apenas depois desse gesto se pode perguntar pelo valor dos valores e, efetivamente, fazer a crítica da moral. Esta, garante Nietzsche, é justamente nossa obra.
CAPÍTULO IV
IDEAIS DE CONVIVÊNCIA
I
Qual é o campo semântico da palavra "bom"? Ela designa o não-egoísmo, a piedade, a renúncia, o altruísmo e a abnegação, valores que formam o a priori de nossa civilização, descritos e divinizados por Schopenhauer. No que, aliás, ele não inovava: todos consideram como um dado, como real o valor desses valores; este é um ponto acima de toda disputa; cegamente se atribui ao "bom" um valor superior ao "mau", superior no sentido do progresso, da utilidade, da influência fecunda no desenvolvimento do homem. Estão aqui os nossos lugares comuns. "Dizemos boas as virtudes de um homem não por causa dos resultados que elas podem ter para ele, mas por causa dos resultados que elas podem ter para nós e para a sociedade." 1 O "bom" é sempre associado ao altruísmo, e não há bem senão universal, a serviço de todos. A virtude é sempre o sacrifício do indivíduo à sociedade, e a moral
1. Nietzsche, A gaia ciência, § 21, KSA, vol. 3, p. 391.
88 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
da piedade sempre fará do auxílio ao próximo o leitmotiv da ação justa. É em torno desses valores que se tece a exigência de "humanização", tão propalada pelos "europeus", pela qual ingenuamente se acredita saber o que é o humano2. E que a moral supõe que se saiba, de uma vez por todas, o que é o bom e o mau, o que implica saber algo mais, implica pretender saber qual o destino do homem, quais são os seus fins, supõe já saber que o homem tem um fim, um destino. Nenhuma surpresa, então, se filosofia moral e filosofia da história são velhas cúmplices. Um casamento que Nietzsche já comentava nas Considerações extemporâneas, ao analisar os "homens históricos": para estes, a observação do passado sempre os leva a prejulgar o futuro, eles têm a esperança de que o Bem terminará por chegar, que a felicidade está atrás da montanha em direção à qual eles caminham 3. Saudemos Kant por ter introduzido, na Alemanha, esta "evidência" a mais: se existe uma "história universal", ela só testemunha a tendência da humanidade a caminhar em direção ao Bem. Afinal, para ele, a razão que se exibe na natureza não pode estar ausente da saga humana, e é uma hipótese altamente racional considerar que o gênero humano progride "em direção ao melhor no que concerne ao fim moral de sua existência". Uma hipótese tão racional que Kant nem se preocupa em prová-la: cabe a quem a combate demonstrar o contrário 4. Já nos acostumamos às filosofias do "melhoramento" do homem, a essa idéia de que a história será a realização da moral.
2. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 9[173], KSA, vol. 12, p. 437. 3. Nietzsche, Considerações extemporâneas, II, § 1, Obras incomple
tas, cit, p. 59. 4. Kant, "Sur le lieu commum...", in Oeuvres philosophiques, cit.,
p. 294. «
IDEAIS DE CONVIVÊNCIA 89
É essa mesma convicção de que o bem e a felicidade estão logo ali, atrás da montanha em direção à qual caminhamos, que preside também o discurso político. Em nossa época "antiidealista", é a política que vai permitir a realização do "reino dos fins", no interior da história universal. Através dela, o homem "bom" finalmente se tornará real e a humanidade ganhará nova face: passaremos todos da pré-história à história. Isso é dito e repetido sem se levar em conta que, através da ruptura política, são sempre os velhos valores que permanecem: altruísmo, desinteresse, não-egoísmo... E já seria uma investigação à parte perguntar por que, em nossa época, a política tornou-se uma atividade tão superestimada. Afinal, admite-se tacitamente que um acontecimento político pode alterar profundamente a civilização e a humanidade. Nunca, como agora, o político foi tão visto como o responsável pela solução de todas as mazelas humanas. Ele adquiriu uma extensão terapêutica desconhecida anteriormente, quando resolvia a questão da comunidade, mas não era o responsável por uma nova humanidade. De onde vem esse lugar privilegiado da instância política? Nietzsche já se insurgia contra isso nas Considerações extemporâneas, ao criticar aqueles filósofos crentes de que um acontecimento político poderia resolver a questão da "existência". Certamente, diz Nietzsche, uma "estupidez" oriunda do hegelia-nismo, com sua pregação de que "o Estado é o alvo supremo da humanidade e de que não há para homem nenhum dever superior ao de servir o Estado" 5. E é um fato que, no século XIX, a política tornou-se uma instância superestimada, até mesmo pelos críticos de Hegel que, como
5. Nietzsche, Considerações extemporâneas, III, § 4, Obras incompletas, cit., p. 74.
90 N1ETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
sempre, combatem o "idealismo" mas não os "ideais". Afinal, é nada mais nada menos do que a "emancipação humana" que se decide no interior dos acontecimentos políticos, é toda a questão da existência que se resolve graças à política. Onde se origina esse poder excepcional atribuído ao fenômeno político até mesmo por nossos "materialistas", até mesmo pelos críticos de Hegel? O que fez da política, no mundo "ateu" e materialista, esse tipo de panacéia universal?
Feuerbach já indicava, candidamente, a razão. No universo "ateu" oriundo de sua crítica à teologia, no domínio enfim reencontrado da antropologia, como o gênero humano é o único objeto real, e não mais o velho Deus das teologias, agora a política deve tomar o lugar da religião. "Pois precisamos voltar a ser religiosos - a política deve tornar-se nossa religião -, mas ela só o poderá quando tivermos um ideal que transformará para nós a política em religião."6 Agora temos esse ideal: se o homem, com suas necessidades terrestres, substitui o cristão, a comunidade do trabalho também deve substituir a comunidade da prece, e a política pode tornar-se nossa religião. Como nota Lõwith, com a mesma lógica que leva Kierkegaard a explicar a politização como uma conseqüência do desaparecimento da fé cristã, Feuerbach deduz, da fé no homem enquanto tal, a necessidade da politização. Mas se a política deve tornar-se religião, então não é nada surpreendente que se pense o político como a instância capaz de resolver todas as questões da existência. Se isso ocorre é porque a política, ao substituir a religião, herda
6. Feuerbach, L., Briefwechsel und Nachlass, K. Grün (ed.), Hei-delberg, 1874, p. 409, apud Lõwith, K„ De Hegel à Nietzsche, Paris, Gal-limard, 1969, p. 107.
IDEAIS DE CONVIVÊNCIA 91
seus privilégios arcaicos, assim como o "gênero humano" já herdava a infinidade de Deus. O que pensar dessa su-perestimação do político? "A ilusão política, diz Nietzsche, da qual sorrio do mesmo modo como os contemporâneos sorriem da ilusão da religião de outros tempos, é antes de tudo mundanização, a crença no mundo e o tirar da cabeça 'além' e 'ultramundo'. Seu alvo é o bem-estar do indivíduo fugaz: por isso o socialismo é seu fruto, isto é, os indivíduos fugazes querem conquistar sua felicidade, por associação." 7 Se a ilusão política é apenas a ilusão religiosa tornada mundana, não é de espantar que ela apenas prolongue os velhos valores.
Por isso o socialista permanece preso ao "ridículo otimismo" do homem "bom", que espera escondido a abolição da ordem atual. Pois a convicção do socialista sempre parte desta antropologia tácita: o homem é "bom", são as instituições que o corrompem - o que era exatamente a certeza da qual Rousseau já partia no Discurso sobre a origem da desigualdade. Alteremos as instituições, e a bondade natural encontrará seu escoadouro. E esse ideário que "nossos socialistas" prolongam, sem qualquer reflexão. Essa é a tese de Nietzsche desde as Considerações extemporâneas: é sempre o homem de Rousseau que se agita sob todas as convulsões socialistas. Esse homem bom é aquele que recebeu seu cetro da Revolução Francesa, que não fez senão promover este "asilo alienado das idéias modernas" 8. Afinal, quem é esse homem "bom" da Revolução Francesa e de Rousseau, que é herdado pelo imaginário do socialismo? Ninguém mais senão o homem cris-
7. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [163], KSA, vol. 9, p. 504, Obras incompletas, cit., p. 390.
8. Nietzsche, A gaia ciência, § 350, KSA, vol. 3, p. 586.
92 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
tão. Por mais que se pense o contrário, aquele homem natural não passa de uma idealização cristã. O que não é surpreendente, se formos fiéis ao preceito nietzschiano de procurar o cristianismo mesmo ali onde este não se reveste mais de sua forma dogmática. Afinal, qual era o procedimento de Rousseau? Para melhor enraizar a humanidade sonhada pela moral cristã, ele pensa em extraí-la da Natureza. E, para isso, ele forja o conceito de uma Natureza que seria liberdade, bondade, inocência, justiça, idílio. No fundo, essa Natureza imaginária já é o culto da moral cristã9. O restante da operação já se conhece: após conceber a Natureza como a boa Natureza de antes da queda, a "instituição" entra no lugar do pecado original, como origem da corrupção. E por isso a Revolução Francesa, promovendo o homem bom de Rousseau, foi mais uma vitória insidiosa do cristianismo.
É esse homem "bom" que "nossos socialistas" querem prolongar e disseminar, agora em escala planetária, sem ao menos se perguntar que tipo de "civilização" eles consolidam com esse gesto. Sem perceber que o "bom" construído pelo cristianismo é expressão apenas de uma moral, que não é única, sem se perguntar assim pelo valor dos valores, nossos ideólogos afetam saber hoje em dia aquilo que até Sócrates reconhecia ignorar: eles sabem o que é o "bom" e o "mau". Cristãos, democratas ou socialistas, todos se reportam ao mesmo dicionário para traduzir a palavra "bom", todos lhe atribuem o mesmo campo semântico. Por isso as querelas serão sempre de família e só dirão respeito à questão de se saber qual o melhor meio para promover esse fim comum. Mas é preciso levantar a questão que importa: qual o valor desses valores? E essa
9. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10[170], KSA, vol. 12, p. 558.
IDEAIS DE CONVIVÊNCIA 93
pergunta deve ser formulada levando-se em conta o método de Nietzsche. A primeira condição é reconhecer que a moral atual não é mais do que um tipo particular de moral humana, e não a "moral mesma", como alguns desejariam. A segunda condição é tomar consciência de que os verdadeiros problemas da moral só emergem quando se comparam várias morais. E, se é assim, comecemos por contrapor dois ideais bem distintos de convivência entre os homens, sussurrados por diferentes morais.
II
Qual é, para nossa moral, o ideal de convivência desejável? Para vislumbrá-lo, vale a pena seguir, por um momento, a análise que Nietzsche faz das transformações morais em Roma, no aforismo 201 de Para além do bem e do mal. A tópica de Nietzsche ali é uma daquelas que guiará Foucault em sua História da sexualidade: trata-se de investigar como, a partir de determinado momento, um certo domínio de ações, que não pertencia ao reino das preocupações morais, passa a fazer parte do campo de olhar da moral. Particularmente, trata-se de assinalar como é só a partir de determinado momento que a ação "piedosa" passa a ser vista como uma ação moral. Na época florescente de Roma, garante Nietzsche, quando o olhar estava voltado exclusivamente para a manutenção da comunidade, quando se localizava o imoral apenas no que podia ser perigoso para a comunidade, ainda não se podia falar em uma moral de amor ao próximo. Mesmo se já existissem ali práticas de clemência, de eqüidade, de compaixão e de ajuda mútua, essas práticas não pertenciam, ainda, ao domínio dos juízos morais, ainda estavam fora da moral. As-
94 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
sim, na melhor época de Roma, "uma ação piedosa não é nem boa nem má, nem moral nem imoral, e se a louvam, o elogio acomoda-se muito bem com uma espécie de desdém involuntário, particularmente quando se compara essa ação com uma outra que presta serviço à coletividade, à res publica. No final das contas, o 'amor ao próximo' é sempre coisa secundária, em parte convencional, arbitrária e ilusória em comparação ao temor do próximo"10. Ora, foi somente quando a estrutura da sociedade romana pareceu solidamente estabelecida e plenamente assegurada contra o perigo externo que o temor do próximo sofre um deslocamento e "abre novas perspectivas ao julgamento moral". O que acontece na Roma consolidada? Agora, os instintos potentes e perigosos, como o gosto pelo risco, a coragem temerária, a paixão de dominar, instintos que eram honrados, cultivados e fortificados por serem essenciais contra o inimigo externo, não tendo mais o antigo canal de escoamento, são pouco a pouco taxados de imorais e abandonados à calúnia. E doravante passam a ser honrados e tidos por morais os instintos opostos: a eqüidade, a modéstia, o que inclina os homens a se nivelar aos outros, todas as aspirações medíocres são então honradas e saudadas como morais. O que se deseja é o espírito tolerante, modesto, submisso e igualitário, o que possui desejos "medidos e medíocres". Simetrica-mente, a partir de então será considerado mau tudo aquilo que eleva o indivíduo diante dos outros e causa temor ao próximo.
E a partir desse sistema criado na Roma consolidada que se desenha o nosso ideal de vida comunitária: todos não querem ter mais nada a temer na convivência. Por isso,
10. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 201, KSA, vol. 5, p. 122.
IDEAIS DE CONVIVÊNCIA 95
dirá Nietzsche, aquele "que examina a consciência do europeu moderno, descobrirá nas mil pregas e recantos da moralidade o mesmo, sempiterno imperativo, aquele do temor gregário: 'Nós queremos, um dia, não ter mais nada a temer.' Um dia... A vontade e o caminho que conduzem a este ponto se chamam hoje em dia, em toda a Europa, o 'progresso'" 1 1. Nada a temer na convivência: é aqui que se instala o imaginário social do europeu, aqui está o território de sua felicidade, e não é por acaso se, para Nietzsche, a religião da compaixão remete ao culto do bem-estar 1 2 . Mas o que é que se supõe para que não haja mais nada a temer na convivência? Nada mais, nada menos que a vida comunitária possa ser por princípio não conflituosa, que se possa exorcizar dela todo e qualquer polemos. E isso nos leva a um pressuposto mais remoto. Se imaginam uma convivência por princípio não conflituosa, é porque se supôs, desde o início, que os átomos que compõem essa comunidade nunca serão turbulentos, nunca aspirarão a nada e, por isso, nunca entrarão em conflito, por isso a convivência nunca será polêmica. Nada a temer na convivência, se os indivíduos dessa comunidade são os sujeitos da "felicidade" espinosana, sempre definida pelo repouso, se todos aspiram apenas à "conservação de si", e nunca a um acréscimo de poder13. A paz certamente reinará no estábulo se as vontades estiverem paralisadas e se o homem for por princípio um "esgotado". E, se a convivência não for mais conflituosa, se enfim as "contradições" forem todas superadas, livre curso poderá ser dado às fantasias sobre o futuro. Se a moral do rebanho aspira como sua "felicidade" à segurança, à falta de perigos, ao bem-estar, à facilidade
11. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 201, KSA, vol. 5, p. 123. 12. Nietzsche, A gaia ciência, § 338, KSA, vol. 3, p. 567. 13. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[121], vol. 13, p. 300.
96 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
da vida, no final, se tudo der certo, ela "espera subtrair-se também a todo gênero de pastores e de guias" 1 4. Em outras palavras, o "nada a temer na convivência" desenha agora o estado futuro de um rebanho tão bem domesticado que pode dispensar-se até mesmo de qualquer chefia. E todas as doutrinas da paz perpétua, todas as teorias da "morte do Estado", tacitamente supõem esta antropologia para que seu enredo chegue ao happy end desejado: quando se fala em morte do Estado, é porque se imagina uma convivência futura que, por princípio, não será mais conflituosa; e se o conflito pode diluir-se no horizonte é porque se supõe que os cidadãos da nova Polis serão todos sujeitos da felicidade espinosana, indivíduos com a vontade paralisada.
III
Esse ideal de uma convivência por princípio não conflituosa seria o único presente em nossa história? Não. E é o ideal oposto que Nietzsche pensa encontrar na Grécia antiga, onde a boa convivência era inseparável da idéia de uma disputa sem fim, onde a "decadência" dos indivíduos e das cidades sobrevinha com o fim dos conflitos 1 5. Para Nietzsche, a "porta de entrada" da ética grega são as duas Uris, as duas deusas da discórdia que Hesíodo descreve em Os trabalhos e os dias. Se uma delas é odiosa, é porque fomenta a guerra e o dissenso entre os homens; se a outra é amada, é porque incita até mesmo o homem inábil ao trabalho. Mas a boa Eris consegue esse resultado de uma maneira que só poderá parecer absurda
14. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 37[8], KSA, vol. 11, p. 580. 15. Nietzsche, "A disputa em Homero", in Escritos póstumos, KSA,
vol. 1, p. 783.
IDEAIS DE CONVIVÊNCIA 97
para a ética de hoje em dia: instilando nos espíritos a inveja e o ciúme. Era graças a esses sentimentos, hoje tão vilipendiados, que o mundo começava a se mover: o pobre inveja o rico e procura imitá-lo, semeando e plantando; o vizinho rivaliza com o vizinho que aspira ao bem-estar; o carpinteiro rivaliza com o carpinteiro. Para Nietzsche, é toda a Antigüidade grega que difere de nós na apreciação da inveja e do ciúme. Essa Antigüidade partilha o sentimento de Hesíodo, que "tinha julgado má a primeira Eris, quer dizer, aquela que leva os homens a matar-se raivosamente, mas logo depois tinha enaltecido como boa uma outra Eris que, pelas qualidades da ambição, do ciúme e da inveja, incita os homens a agir; ela não os leva ao combate mortal mas à disputa"16. Um grego separava muito bem as duas discórdias, a disputa e a guerra mortal. Somos nós que só podemos conceber o conflito sob o horizonte da guerra hobbesiana de todos contra todos. Donde o "abismo" que Nietzsche verá entre o juízo moral dos gregos e o nosso. O grego é invejoso, e sente isso não como um traço ruim, como nos adestraram a vê-lo, mas sim como a influência de uma divindade benfeitora. Assim, quanto mais um grego é nobre e grande, "mais é luminoso o fogo da ambição que jorra dele, e que devora quem quer que siga o mesmo caminho" 1 7 .
Donde a distância imensa que Nietzsche verá entre a pedagogia grega e a nossa. Enquanto nossos educadores temem a ambição e vituperam incansavelmente contra o "egoísmo", a pedagogia grega pensa que todo talento necessariamente deve desabrochar na luta. E não há aqui
16. Nietzsche, "A disputa em Homero", in Escritos, cit, KSA vol. 1, p. 787.
17. Nietzsche, "A disputa em Homero", in Escritos, cit., KSA, vol. 1, pp. 787-8.
98 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
qualquer celebração precoce do "individualismo burguês". Ao contrário, a meta da educação na disputa era o bem-estar de todos, da cidade em geral, e a glória era ao mesmo tempo do ateniense e de Atenas. E se a disputa formava os jovens, os educadores também competiam entre si, os sofistas se afrontavam na liça e o drama só era ofertado ao povo "sob a forma de uma luta grandiosa de grandes artistas, músicos e dramaturgos" 1 8, visto que apenas no combate o grego reconhece o artista. Donde o único semi-elogio que Nietzsche dirige a Sócrates, no Crepúsculo dos ídolos: se esse "repulsivo" ainda podia fascinar é porque, com a dialética, ele tinha inventado uma nova espécie de agon, de disputa 1 9. Aos olhos de Nietzsche, para os gregos a necessidade da disputa era vista como essencial para a saúde do Estado, e isso é algo que se atesta prestando atenção no sentido original que tinha, para eles, o ostracismo. Foi esse sentido original do ostracismo "que exprimiram por exemplo os efésios, banindo Fíer-modoro: 'Junto a nós, ninguém deve ser o melhor; mas se alguém se torna o melhor, que ele o seja alhures e junto a outros.' Por que ninguém teria então o direito de ser o melhor? Porque assim a disputa terminaria por desaparecer e o fundamento eterno que está no princípio da vida do Estado grego estaria posto em perigo" 2 0 . Assim, se posteriormente o ostracismo adquiriu outro sentido, o importante é que, originalmente, ele não significava uma medida de segurança, mas um meio de emulação: "afasta-se o
18. Nietzsche, "A disputa em Homero", in Escritos, cit., KSA vol. 1, p. 790.
19. Nietzsche, "O problema de Sócrates", Crepúsculo dos ídolos, § 8, KSA, vol. 6, p. 71.
20. Nietzsche, "A disputa em Homero", in Escritos, cit., KSA, vol. 1, p. 788.
IDEAIS DE CONVIVÊNCIA 99
indivíduo que ultrapassa os outros para que o jogo das forças rivais reencontre seu vigor" 2 1. Mas por que a idéia grega de disputa execra a supremacia de um só? Porque a supremacia de um só é não apenas o fim da disputa, como também a porta de entrada para a desmedida, quer dizer, para a Eris da guerca mortal. Na idéia grega de disputa, os atores provocam-se mutuamente à ação, mantendo-se reciprocamente nos limites da justa medida. São esses limites que se diluem com o fim da disputa. Por isso, dirá Nietzsche, quando subtraímos a disputa da vida grega, o resultado é a crueldade selvagem, o prazer destruidor. É o que acontece quando o indivíduo que triunfa por uma ação grandiosa não é posto no ostracismo e passa a ser considerado, por si mesmo e por seus concidadãos, como alguém que está fora da disputa. Agora, assegura Nietzsche, o resultado é quase sem exceção horrível, o resultado é a desmedida, a selvageria. E o que vale para os indivíduos também vale para as cidades. Como Atenas e Esparta que, chegadas ao "templo da Vitória", provocam sua própria queda por atos de desmedida. "Isso prova que, sem a inveja, o ciúme e a ambição da disputa, a cidade grega, assim como o homem grego, degeneram." 2 2 Por isso, ninguém deve dizer que os gregos eram incapazes de suportar a glória e o sucesso. O que eles não suportavam era a glória sem que continue a disputa, nem o sucesso como o ponto final da disputa.
O que se passou da Grécia antiga aos nossos dias? O europeu moderno perdeu o sentido grego da disputa na justa medida e, desde então, só pode enxergar no conflito a sombra projetada pela má Eris, o prenuncio da
21. Nietzsche, "A disputa em Homero", in Escritos, cit., KSA, vol. 1, p. 789.
22. Nietzsche, "A disputa em Homero", in Escritos, cit., KSA vol. 1, p. 792.
100 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
guerra mortal de todos contra todos, a "contradição" a ser sempre superada. Graças a essa singular miopia, o conflito só pode ser visto como fonte de temor na convivência, nunca um estimulante para a ação, tal como o compreendiam na Grécia antiga. Donde a oposição integral entre os juízos morais do europeu de hoje e dos gregos a respeito do ciúme, da ambição e da inveja. Mas o que levou os europeus a essa espécie de cegueira? Por que terminou por triunfar, no imaginário moderno, aquele ideal da ausência de conflitos, que no mundo grego sinalizava a "decadência"? Antes de responder a essas perguntas, vale a pena assinalar que esses dois ideais de convivência estão associados a dois "modos de pensamento" bem distintos.
IV
O ideal da neutralização dos conflitos está presente na reflexão filosófica desde o platonismo até hoje em dia. É sempre a oposição e o conflito que devem ser suprimidos, este leitmotiv fornece até mesmo uma espécie de a priori de nosso modo de pensamento. É esse tema que Gérard Lebrun analisa em "A dialética pacificadora", texto que seguiremos agora como fio condutor e como guia 2 3. Assim, diz Lebrun, se Hegel afirma que o Estado não é um "extremo isolado", é porque não pode haver oposição e conflito entre ele e os membros da sociedade civil 2 4. Essa exigência de diluição dos conflitos já comandava Rousseau, no Contrato social, no qual se procurava fun-
23. Lebrun, G., "A dialética pacificadora", in Almanaque, n? 3, São Paulo, Brasiliense, 1977, pp. 24-42.
24. Hegel, Príncipes de la philosophie du droit, § 302, Paris, Galli-mard, 1966, p. 334.
IDEAIS DE CONVIVÊNCIA 101
dar uma associação em que, obedecendo ao todo, cada um obedeça apenas a si mesmo, e permaneça tão livre quanto antes. É exatamente nessa idéia de que o poder não domina do alto, de que o Estado não é um extremo isolado, que se enraiza a crítica hegeliana à dominação e à submissão. E bem verdade, diz Hegel, que há uma diferença entre os que comandam e os que obedecem. Todavia, é preciso fazer com que a obediência seja apenas minimamente exigida do cidadão: os súditos devem viver na obediência, mas sob o mínimo de coerção possível. E isso porque, mesmo o Estado sendo representado por uma força exterior às esferas particulares, como na monarquia centralizadora moderna, essa força deve exercer-se sobre súditos já concordes e integrados. Está exatamente aqui a diferença que Hegel verá entre a monarquia e o feudalis-mo. Enquanto o "princípio" do feudalismo é o "poder exterior" de indivíduos isolados, estamos no reino da oposição e do conflito. Ali, os indivíduos são vassalos de um suserano, em relação ao qual eles têm obrigações, mas essas obrigações só são cumpridas pela coerção da força. Reciprocamente, os direitos do suserano são obtidos pela violência e sua efetivação só pode ser garantida por uma coerção contínua. Não há nada de semelhante a isso na monarquia centralizadora moderna. Pois se o "princípio" monárquico também consiste em uma "potência superior", na monarquia a servidão é dissolvida pela prevalência do direito e da lei. Assim, se a autoridade feudal é uma poliarquia em que só existem senhores e servos, na monarquia, ao contrário, apenas um é senhor, e ninguém é servo 2 5. Assim, a distância entre feudalismo e monarquia
25. Hegel, Leçons sur la philosophie de 1'histoire, Paris, Vrin, 1946, p. 363.
102 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
está na oposição entre dois tipos de poder, um coercitivo e um não coercitivo.
Essa oposição entre dois tipos de poder já era estabelecida por Platão, a quem Hegel se refere explicitamente. Platão já opunha dois extremos do poder: o tirânico, idêntico à pura coerção, e o poder político, aquele que é livremente aceito pelos homens e instaura uma harmonia, não uma dominação 2 6. Idéia que ressurge na análise platônica da temperança. A temperança, enquanto virtude, é o estabelecimento de uma ordem, mas a ordem que ela estabelece, longe de ser uma relação de força, é o acordo natural entre "o menos bom e o melhor, para saber a quem deve pertencer o comando, tanto no Estado quanto em cada indivíduo"2 7. Assim, a temperança é definida como uma concórdia e, através dela, o pensamento político platônico condena todas as formas de dominação, seja por um indivíduo, seja por um grupo, que não tenham em vista o interesse comum - todas as formas de dominação que não merecem o nome de dominação política. Nessa idéia de concórdia há uma opção bem clara sobre a natureza da potência política: existe aqui a sedução pela idéia de uma autoridade que fizesse a norma ser aceita por todos os cidadãos, sem coerção. E exatamente essa a liberdade que se realiza no Estado hegeliano. No Estado livre, a autoridade está tão bem infundida no corpo social, que no final das contas ela não é mais que o símbolo da unificação de suas diferentes esferas; o corpo político por princípio exclui toda coerção e a palavra "poder" não pode significar mais a supremacia de fato dos mais fortes, na qualidade de mais fortes 2 8.
26. Platão, O político, 276e, Oeuvres completes, cit., vol. II, p. 371. 27. Platão, República, FV, 432ab, Oeuvres completes, cit., vol. I, p. 997. 28. Hegel, Príncipes de la philosophie du droit, § 278, cit., p. 309.
IDEAIS DE CONVIVÊNCIA 103
Que o poder não possa ser mais a supremacia dos mais fortes, na qualidade de mais fortes. Nietzsche comenta este ponto de unanimidade entre os modernos. Movimento democrático, "cães anarquistas", socialistas "broncos", todos eles são unânimes "na fundamental e instintiva hostilidade contra toda outra forma de sociedade que não a do rebanho autônomo (chegando até a própria rejeição dos conceitos 'senhor' e 'servo' - ni dieu ni maitre, diz uma fórmula socialista); mas igualmente unânimes na tenaz resistência contra toda pretensão particular, todo direito particular e privilégio..."29. Essa idéia de que o poder não pode ser a supremacia dos mais fortes, na qualidade de mais fortes, já estava presente em Platão, quando ele apresentava o rei como servidor da lei. Ela estava presente em Rousseau quando, no Contrato social, ele afirma que somos livres quando obedecemos às leis, mas não quando obedecemos a um homem. E se Hegel admite um senhor à frente do Estado, ele não se esquece de opor o senhor - dominador que se impõe - ao príncipe -dominador que se justifica. Os indivíduos não são destinados a funções por sua personalidade natural ou pelo nascimento 3 0 . Qual a idéia comum a Platão, a Rousseau e a Hegel? A idéia comum a todos eles é a de que o poder não pode ser uma mera disposição da natureza. Ele é uma função, um mandato que o chefe sempre pode dizer a que título exerce. Se o poder não é mais o resultado de uma simples preponderância, aquele que comanda deve estar em condições de apresentar as suas razões, e aquele que obedece, de apreciá-las. Nietzsche não deixará de apontar, aqui, o surgimento de uma con-
29. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 202, Obras incompletas, cit., p. 282.
30. Hegel, Príncipes de la philosophie du droit, §§ 281-291, cit., p. 309.
104 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
cepção bem particular de "potência", contemporânea a Sócrates. É apenas com a dialética que surge a idéia de um poder que dá a razão de si, por oposição àquilo que era classicamente a autoridade, um poder que dispensava qualquer justificação. "Antes de Sócrates, na boa sociedade, se afastavam os procedimentos dialéticos; eram considerados como procedimentos maus, comprometedores. Prevenia-se a juventude contra a dialética. Também se desconfiava dessa maneira de apresentar os raciocínios. As coisas honestas, como os homens honrados, não trazem assim suas razões tão à mão. E pouco decente mostrar assim os cinco dedos. Precisamente as coisas que são suscetíveis de demonstração têm pouco valor. Ali onde a autoridade ainda faz parte dos bons costumes não se 'motiva', se manda." 3 1 O que aconteceu com o advento da dialética? Simplesmente, o nascimento de um novo gênero literário, desde então batizado de "filosofia política", um discurso da razão que marca o esquecimento da idéia pura de comando em benefício de um comando que se justifica, mostra suas razões e não se afirma mais pela mera potência.
Como nota Lebrun, pode-se apontar o momento preciso dessa transformação da idéia de poder no Górgias. Ali, Sócrates e Cálicles concordam em que os melhores detenham a potência. Mas quem são os melhores? Basta essa pergunta para prejulgar o resultado: quais as razões que o poder enuncia e que o justificam? Agora os dados estão lançados e Cálicles se confunde por não recusar a questão de saber quem está no direito de comandar 3 2 .
31. Nietzsche, "O problema de Sócrates", Crepúsculo dos ídolos, § 5, KSA, vol. 6, p. 69.
32. Platão, Górgias, 491a-c, Oeuvres completes, cit., vol. II, p. 437.
IDEAIS DE CONVIVÊNCIA 105
Aceitando a questão, ele aceita que, por essência, o poder é algo que deve apresentar suas razões. E o resultado platônico se conhece: o chefe deve ser o técnico e, por isso, nenhum chefe comanda em vista de seu interesse. O médico não trabalha sempre tendo em vista apenas o interesse do paciente? Ao contrário do tirano, que sempre age em benefício de seu interesse próprio, o domínio exercido pelo técnico está sempre a serviço de todos. Nietzsche também comentará essa potência que pensa exercer-se apenas sob a forma de uma obediência, e que só quer desdobrar-se em nome do interesse alheio e de uma norma superior. Nascida no platonismo, quer dizer, na decadência grega, essa figura da potência atinge seu ponto mais alto na Europa de hoje. O que aconteceu? Simplesmente, a prevalência crescente do instinto gregário, adestrado para a obediência, em detrimento da arte de comandar. O que subjaz a esse sentido tradicional de uma potência que diz suas razões, neutraliza todas as tensões, todos os conflitos? Para responder a essa pergunta, voltemos a Hegel e ao comentário de Lebrun.
Segundo a Filosofia do direito, a autoridade do Estado deve se exercer sobre indivíduos semelhantes. Mas o que significa essa semelhança, que ninguém deve confundir com a "igualdade"? O Estado sanciona a igual impotência, em que se encontram os súditos, de infringir a regra da justiça. Assim como na cidade aristotélica, deve haver a impotência dos iguais de reivindicar a igualdade em todas as partes, e a impotência dos desiguais de pretender a superioridade em tudo. Já era essa a função da semelhança em Platão: ninguém deve obter mais do que a parte de potência que lhe é outorgada. Os "semelhantes" são antes de tudo aqueles que entram em acordo para não rivalizarem sem regra de jogo, aqueles para quem o exerci-
106 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
cio do poder é por natureza não conflituoso. Por isso, o técnico platônico é o oposto do tirano. Para o tirano, toda relação é de força ou de jogo: quem vencerá? O injusto pretende triunfar tanto sobre o seu semelhante, o injusto, quanto sobre seu dessemelhante, o justo. O técnico é o inverso: ele triunfa apenas sobre o ignorante, seu dessemelhante. E esse técnico nem pensa em distinguir-se de seu semelhante, sua prática neutraliza as idéias de conflito ou de preferência e o ensina a espontaneamente situar-se em equivalência com o outro. Hegel vai indicar que essa semelhança não pode ser decretada, mas é sempre o resultado de uma aculturação. E essa "cultura" ministrada pelo Estado hegeliano terá a função da sabedoria assimi-lante de Platão: o homem culto é aquele que nunca põe a sua "particularidade" em destaque. Se a cultura é uma liberação, no súdito essa liberação é "o trabalho penoso contra a subjetividade da conduta, contra as necessidades imediatas e também contra a vaidade subjetiva da impressão sensível e contra o arbitrário da preferência" 3 3. Enquanto o estado de natureza apagava a noção de semelhança, o cidadão culto nunca pode agir distinguindo-se como indivíduo, e esta volatilização do ego comandará tanto o comportamento dos dominantes quanto aquele dos dominados. Para Hegel, assim como para os gregos pós-socráticos, as diversas figuras da potência devem tomar a forma apaziguadora de uma permuta ou, pelo menos, de uma comunicação entre os "semelhantes".
O texto de Nietzsche sobre a disputa homérica deve levar-nos a levantar algumas questões sobre a tradição filosófica platônico-hegeliana, de que somos herdeiros. Por que, para essa tradição, o comando, se não for aquele da
33. Hegel, Príncipes de la philosophie du droit, § 187, cit., p. 222.
IDEAIS DE CONVIVÊNCIA 107
lei, deve necessariamente ser situado no horizonte da tirania? Por que compreender a potência como o apaga-mento da força? O mundo descrito pela disputa homéri-ca mostra que os gregos antigos não viam o dominador como sendo, necessariamente, o opressor possível. Se eles baniam da cidade o homem que se distinguia, o ostracismo, em seu sentido original, não era uma medida de segurança, mas de revitalização da disputa. Em suma, se a representação helênica da luta execra a supremacia de um só, é porque a disputa pela supremacia é vista como comportamento político usual. O texto sobre a disputa em Homero é, assim, a descrição de um mundo oposto ao platônico-hegeliano. E, como nota Lebrun, ele já mostra um dos traços característicos do conceito de "vontade de potência": uma vontade mais próxima do paradigma do jogo que do modelo da guerra, onde a luta é sempre pela dominação, não pelo aniquilamento do adversário. No mundo helênico, a disputa era pensada no modo da mera tensão, é apenas para nós que ela é imediatamente sinônima de guerra. Não conseguimos nos representar uma civilização que tenha podido viver segundo o livre jogo das tensões, um jogo indefinido, que não permite nem mesmo pensar em uma solução das crises. Por que essa estranheza do mundo homérico para nós? O que, em nosso modo de pensamento, nos torna espontaneamente mais platônicos ou hegelianos do que homéricos?
Para Nietzsche, há um filósofo que exprimiu muito bem o mundo de Homero: Heráclito, tal como ele o analisa em A filosofia na época trágica dos gregos. O vir-a-ser heraclitiano é a figuração do mundo da disputa, tal como este era vivido pelo grego antigo. Pois o que dizia Heráclito? Ele nos ensinava que, ao contrário da opinião popular, que pensa conhecer algo de rígido e permanente, "na verdade há a cada instante luz e escuro, amargo e doce
108 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
lado a lado e presos um ao outro, como dois contendores dos quais ora um, ora outro tem a supremacia... Da guerra dos opostos nasce todo o vir-a-ser: as qualidades determinadas, que nos aparecem como duradouras, exprimem apenas a preponderância momentânea de um dos combatentes, mas com isso a guerra não chegou ao fim, a contenda perdura pela eternidade" 3 4. Nessa figuração do vir-a-ser, estão presentes duas idéias profundamente opostas ao establishment filosófico que herdamos do pla-tonismo: nenhuma "justiça" preside mais a essa disputa, em que as preponderâncias de um contendor sobre outro simplesmente se sucedem; a luta perdura pela eternidade sem que exista, portanto, qualquer momento da solução final dos conflitos.
O que essa imagem do vir-a-ser coloca em questão? Simplesmente, aquilo que a filosofia nos adestrou a chamar de "razão". No combate heraclitiano, em que os lutadores vencem cada um por sua vez e não há mais que uma alternância de dominações, cada episódio marca apenas uma nova repartição da potência, desenha um novo desequilíbrio, e nada nos autoriza a perguntar por que foi este, e não o outro, que venceu agora, por que não triunfou mais cedo... O vir-a-ser heraclitiano exclui um certo número de perguntas. Precisamente aquelas perguntas oriundas do princípio de razão suficiente: por que isto e não aquilo, por que aqui e não em outro lugar, por que agora e não antes? No mundo homérico ou heraclitiano, o lugar posteriormente habitado pela razão era ocupado apenas por um jogo. Afinal, um "vir-a-ser e perecer, um construir e destruir, sem nenhuma prestação de
34. Nietzsche, A filosofia na época trágica dos gregos, § 5, Obras incompletas, cit., pp. 35-6.
IDEAIS DE CONVIVÊNCIA 109
contas de ordem moral, só tem neste mundo o jogo do artista e da criança. E assim como joga a criança e o artista, joga o fogo eternamente vivo, constrói em inocência -e esse jogo joga o Aion consigo mesmo" 3 5 . Em regime de jogo, a preponderância não é decidida por qualquer justiça, e por isso cai por terra toda questão do tipo "por que... e não?". Agora, a dominação é reportada à mera potência, quer dizer, a uma potência que não precisa nem pode declinar suas "razões". Mas o que marca a distância entre o espaço da razão e o espaço do jogo? Antes de tudo, duas maneiras muito distintas de compreender o que é um acontecimento.
Como observa Lebrun, o adepto do princípio de razão suficiente prejulga o modo como o acontecimento deve ser visado. Afinal, por que compreender o acontecimento como o vencedor de um concurso arbitrado com justiça? Aqui, projeta-se um horizonte em que as várias ocorrências possíveis estão em um equilíbrio de direito, e concebe-se o acontecimento como a ruptura de fato daquele equilíbrio, um desvio que desde logo não pode ser originário, mas precisa resultar de um excesso do qual se deve sempre poder "dar a razão". Essa interpretação do "acontecimento" é exatamente aquela veiculada pela metáfora da balança, freqüentemente evocada por Leibniz como emblema do "grande princípio" de razão suficiente. O "postulado" de Arquimedes, diz Leibniz, aquele segundo o qual "sendo iguais os braços da balança e os pesos depositados de um lado e de outro, tudo permanecerá em equilíbrio", é "o corolário, ou antes, o exemplo" do axio-ma segundo o qual "nada é sem razão" 3 6. Se há um equi-
35. Nietzsche, A filosofia na época..., § 7, Obras incompletas, cit., p. 36. 36. Leibniz, "Príncipes logico-métaphysiques", in Kechercb.es gé-
nérales sur Yanalyse des notions et des vérités, Paris, PUF, 1998, p. 460.
110 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
líbrio de direito das chances, graças a que houve um acontecimento? Mas é exatamente esse modo de visar o acontecimento que Heráclito nega. Ele não define o acontecimento como ruptura de um equilíbrio, logo, não tem o dever de mostrar o que rompeu uma igualdade de direito das chances, o que pôs fim a uma neutralização de direito das forças. Por isso, dirá Nietzsche, "se se quisesse propor a Heráclito a questão: por que o fogo não é sempre fogo, por que ora é água, ora é terra? - ele responderia apenas: 'É um jogo, não o tomeis tão pateticamente e, antes de tudo, não o tomeis moralmente!'" 3 7. Agora, o originário não é o equilíbrio, mas o desequilíbrio, e este não deve ser compreendido a partir de outra coisa que não ele mesmo. Falar em jogo é eliminar a questão da razão suficiente: desaparece a exigência de justificar o desvio e o excesso, porque eliminou-se o suposto de um equilíbrio originário entre as ocorrências possíveis. Ninguém deve tomar o vir-a-ser moralmente: ele é apenas um jogo. Sob o "por quê?", não se deve entender "em virtude de que justiça", basta conhecer quem domina, sem se preocupar em saber se isso acontece por causa de alguma sentença. E nesta distância entre dois ideais de convivência e dois modos de pensamento que vai se delineando o "lugar espiritual" da oposição que Nietzsche estabelecerá entre moral de senhores e moral de escravos.
37. Nietzsche, A filosofia na época..., § 7, Obras incompletas, cit., p. 37.
CAPÍTULO V M O R A L DE SENHORES, M O R A L DE ESCRAVOS
I
No prólogo à Genealogia da moral, ao anunciar a "nova exigência" de uma crítica dos valores morais, Nietzsche afirma que para tal empreendimento é necessário um conhecimento das condições e circunstâncias nas quais esses valores nasceram, sob as quais eles se desenvolveram e se modificaram1. Esse exíguo "discurso sobre o método" suscita uma dupla questão preliminar. Em primeiro lugar, essa análise da origem e do desenvolvimento dos valores morais será, grosso modo, uma análise histórica, e por isso Nietzsche censurará os historiadores ingleses da moral justamente por faltar-lhes o "espírito histórico" 2. Todavia, não faltam textos em que o próprio Nietzsche critica a "cultura histórica", apresentando-a como um mal, uma enfermidade e um vício, levando a supor que, através da expressão "espírito histórico", ele entende algo bem dis-
1. Nietzsche, Genealogia da moral, Prólogo, § 6, cit, p. 14. 2. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 2, p. 21.
112 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
tinto do que os historiadores suspeitariam. E, se é assim, o que será, exatamente, essa investigação histórica chamada de "genealogia"? Em segundo lugar, por que a crítica dos valores morais supõe o conhecimento das condições e circunstâncias de seu nascimento? A necessidade dessa correlação e subordinação da tarefa crítica a um conhecimento da origem e do desenvolvimento dos valores morais não é, à primeira vista, muito clara, a menos que se suponha, dogmaticamente, que a história é uma nova mathesis uniuersalis, fonte de direito de toda e qualquer inteligibilidade.
Foucault nos dá algumas pistas sobre a especificidade desta análise histórica chamada de "genealogia" 3 . A que Nietzsche se opõe quando censura os historiadores ingleses por serem "essencialmente a-históricos"? Ele critica o modo como eles procedem ao investigar a origem do conceito e do juízo "bom". Segundo esses historiadores, originalmente as ações não egoístas foram consideradas "boas" por aqueles para os quais elas eram "úteis". Uma vez decretada essa tolice, os semi-hábeis dirão que mais tarde essa origem foi "esquecida", e que o costume levou os homens a considerar aquelas ações boas, como se elas o fossem em si mesmas, sem qualquer referência a uma utilidade adventícia. Mas como esse "esquecimento" é psicologicamente inexplicável, ao erro dos semi-hábeis é preferível o erro coerente de Herbert Spencer, "que estabelece o conceito 'bom' como essencialmente igual a 'útil', 'conveniente', de modo que nos conceitos 'bom' e 'ruim' a humanidade teria sumariado e sancionado precisamente as suas experiências inesquecidas e inesquecíveis
3. Foucault, M., "Nietzsche, a genealogia e a história", in Micro-física do poder, Rio de Janeiro, Graal, 1979, pp. 15-38.
MORAL DE SENHORES, MORAL DE ESCRAVOS 113
acerca do útil-conveniente e do nocivo-inconveniente" 4. Mas, se é assim, o que será a história da moral para esses historiadores? Ela será o desdobramento de um único te-los, a "utilidade", que seria, ela mesma, meta-histórica. Por isso o historiador carece de espírito histórico: ele não reconhece o devir como um fluxo em que todas as significações são datadas e procura, custe o que custar, o mesmo sob a alteridade. Assim, saudemos, nesse historiador, um discípulo a mais de Platão.
A verdadeira genealogia, ao contrário, pretenderá antes marcar as diferenças do que forjar identidades, ela será atenta às mutações das significações e desconfiada diante dos conceitos supostamente unívocos. Por isso, ela não decretará a existência de nenhuma finalidade meta-histórica a orientar o vir-a-ser, ela investigará a história sem a pretensão de reencontrar ali a realização de qualquer ideal eterno. Afinal, a história dos historiadores, ao procurar ler nos eventos a realização progressiva de uma finalidade imutável, é apenas uma metafísica travestida. Por isso Nietzsche oporá o "filosofar histórico" a toda pretensão metafísica de reencontrar dados eternos, e insistirá na denúncia de que qualquer teleologia é construída sobre o erro de se imaginar um homem eterno, em torno do qual todas as coisas do mundo estariam alinhadas desde o começo 5 . Assim, a genealogia será a história desembaraçada da metafísica, uma história que não busca essências mas investiga, ao contrário, os diferentes sentidos que preencheram o vazio de certas palavras, que presta atenção nas significações discordantes, não nas identidades preconcebidas. Logo, a genealogia não colocará o nosso
4. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 3, cit, p. 23. 5. Nietzsche, Humano, demasiado humano, I, § 2, KSA, vol. 2, p. 24.
114 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
presente lá na origem, como se houvesse uma destinação a ser realizada, um sentido prévio a ser desdobrado. Ela mostrará, antes, que a história é uma sucessão de sentidos díspares, sem qualquer unificação predeterminada, uma sucessão de interpretações, dominações que se alternam. A história liberada da metafísica é um jogo de dominações, ela é o vir-a-ser de Heráclito, não o desvelamento progressivo de alguma idéia, nunca o curso apaziguador da história hegeliana.
É essa oposição entre a história serva da metafísica e a verdadeira genealogia que explica a presença, na obra de Nietzsche, de duas séries de textos aparentemente conflitantes entre si, aqueles em que faz a crítica da "cultura histórica" e os outros, em que tece a apologia ao "sentido histórico". É isso que Foucault sublinha de forma sucinta, mas precisa6. Segundo Nietzsche, o verdadeiro sentido histórico é aquele que reintroduz no devir tudo o que se tinha acreditado eterno; ele não se apoia em permanências e perde, com isso, as formas do reencontro e da reconciliação. Por isso Foucault reconhecerá ali o elogio do "descontínuo", confirmado pelo seu próprio modo de fazer "arqueologia". O verdadeiro espírito histórico será sempre o espírito de Heráclito. Ao contrário da história dos historiadores, que dissolve o acontecimento singular
6. Foucault, M, "Nietzsche, a genealogia e a história", in Microfí-sica do poder, cit., p. 26: "De fato, o que Nietzsche não parou de criticar desde a segunda das Considerações extemporâneas é esta forma histórica que reintroduz (e supõe sempre) o ponto de vista supra-histórico: uma história que teria por função recolher em uma totalidade bem fechada sobre si mesma a diversidade, enfim reduzida, do tempo; uma história que nos permitiria nos reconhecermos em toda parte e dar a todos os deslocamentos passados a forma da reconciliação; uma história que lançaria sobre o que está atrás dela um olhar de fim de mundo."
MORAL DE SENHORES, MORAL DE ESCRAVOS 115
em uma continuidade ideal, a genealogia faz ressurgir o acontecimento naquilo que ele tem de único. Esse acontecimento será agora uma relação de forças que se inverte, na qual as forças que estão em jogo na história não obedecem a qualquer destinação, mas apenas ao acaso da luta. Nessa história não há providência nem causa final, apenas o jogo da necessidade gerindo o acaso 7. Assim, que ninguém exija, do verdadeiro sentido histórico, o que se pede aos historiadores que Nietzsche critica: não se peça que ele nos convença de que nosso presente se apoia em intenções e necessidades estáveis, não se peça metafísica! Um apelo que os filósofos nunca podem acatar de bom grado, visto que todos eles têm como marca registrada o ódio ao devir, o páthos egípcio que os leva a retirar tudo do vir-a-ser, a transformar qualquer coisa em múmia.
Essa especificidade do verdadeiro "espírito histórico" já fornece os elementos para responder à segunda questão levantada, que era a de saber por que a crítica dos valores morais deve começar com uma investigação sobre a origem desses valores. É que a análise da origem dos valores morais, tal como ela é feita pela genealogia, vai se opor frontalmente a um certo privilégio da origem, patente na investigação conduzida pela história serva da metafísica. Pois o que faz a história teleológica, que vai buscar na origem o momento de nascimento de um ideal eterno, que o tempo não faz senão desdobrar e confirmar? Essa história sempre apresentará a "origem" como algo eminente e sublime, como algo extraordinariamente "alto". Um vício presente até mesmo nos pseudo-antimetafísi-cos, como Heidegger: afinal, o que ele faz senão celebrar a alta origem do "pensar", hoje em dia infelizmente es-
7. Nietzsche, Aurora, § 130, Obras incompletas, cit, p. 172.
116 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
quecida? Nossos metafísicos amam acreditar que em seu início as coisas já tinham um pacto com a perfeição, idéia que o cristianismo utilizará ao descrever o seu mundo antes da queda. Esse apreço à origem é congênito à história enquanto reconhecimento, enquanto metafísica. E Nietzsche já se insurgia contra ele ao indicar que a "alta origem" é o exagero metafísico que reaparece na concepção de que, no começo de todas as coisas, se encontra o que há de "mais precioso e de mais essencial" 8. Em regime de genealogia, é essa dignidade da origem que vai desaparecer. E não sem tempo: se os metafísicos se compra-zem em elogiar essa "alta origem" do homem que é Deus, já está mais do que na hora de avisá-los de que na origem do homem só existe o macaco. Assim, a análise da origem, em regime de genealogia, poderá indicar que certas origens são baixas - e por isso mesmo esse conhecimento da origem já será uma instância de crítica da moral. Agora, analisar a origem dos valores morais será mostrar as circunstâncias sofríveis de seu nascimento, circunstâncias nem um pouco louváveis. Já é criticar os valores morais mostrar que eles não têm qualquer origem sublime, mas nascem apenas de um conjunto de jogos de dominação.
II
"Em uma perambulação através das muitas morais, mais refinadas e mais grosseiras, que até agora dominaram sobre a terra ou ainda dominam, encontrei certos traços retornando juntos regularmente e ligados um ao outro; até que, por fim, dois tipos fundamentais se denun-
8. Nietzsche, "O andarilho e sua sombra", Humano, demasiado humano, II, § 3, KSA, vol. 2, p. 540.
MORAL DE SENHORES, MORAL DE ESCRAVOS 117
ciaram a mim, e ressaltou uma diferença fundamental. Há moral de senhores e moral de escravos."9 Essa determinação das duas morais como "tipos" é fundamental. É ela que permitirá à investigação da origem ser, ao mesmo tempo, um diagnóstico de toda a nossa civilização. E toda a análise abandonará a matéria bruta para dirigir-se ao "tipo", já que Sócrates e "nossos socialistas" poderão muito bem estar na mesma gaveta. E também graças a esse caráter típico que Nietzsche poderá dizer que, em toda civilização apresentando características misturadas, podemos reconhecer tentativas de acomodação entre as duas morais, freqüentemente uma confusão entre ambas, e até mesmo uma justaposição entre elas. E será igualmente por isso que poderemos encontrar as duas morais em um mesmo homem. Seus mais remotos exemplares doutrinais foram o estoicismo e o primeiro-cristianismo1 0. E se a Europa de hoje em dia é censurável por chamar de moral aquele que apenas é um dos tipos de moral, como se não pudesse existir outro, essa é uma miopia em certo sentido descul-pável: afinal, para o próprio Nietzsche a moral que predomina no presente é a de escravos, enquanto na antigüidade pré-cristã predominava a moral de senhores. Por isso, a seu juízo o homem antigo, sob a coação pedagógica de sua moral, era mais forte e mais profundo que o homem de hoje, assim como não é de espantar que o niilismo moderno, enquanto niilismo "fraco", seja um subproduto necessário de nossa moral de escravos. Mas se existe moral de senhores e moral de escravos, o que, exatamente, as diferencia? A distinção entre ambas se estrutura em diversos níveis: existe uma diferença relativa ao significado
9. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 260, Obras incompletas, cit, p. 291.
10. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 15[29], KSA, vol. 13, p. 422.
118 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
dos valores; uma distinção que diz respeito ao princípio diretor das valorações; uma oposição quanto à origem da apreciação moral.
A primeira diferença é a mais óbvia: a noção de "bom" é apenas homônima em uma moral e na outra. Mas essa diferença só se torna relevante quando se leva em conta o "princípio" diretor das valorações. Quando são os dominadores que determinam o conceito de "bom", os estados de alma apreciados são os altivos e sublimes. Quando são os escravos que o determinam, o "bom" é associado ao não-egoísmo, ao altruísmo. Mas essa dupla semântica é oriunda de uma diferença de princípio: a moral de escravos "é essencialmente utilitária" 1 1. Vem daqui o elogio escravo à compaixão, à humildade, à amabilida-de, todas elas qualidades úteis para tornar mais leve o peso da existência. A moral de senhores, ao contrário, não se rege pela utilidade, o seu princípio de valoração não se institui tendo em vista o útil. É por desconhecer essa diferença fundamental que os ingleses são censurados por Nietzsche: ao afirmar que a moral em geral está fundada na utilidade, eles universalizam, fraudulentamente, um princípio que é particular. A moral inglesa associa espontaneamente o "bom" àquilo que é "útil" e, neste ponto, os "moralistas" seguem os passos dos ingleses; todos eles são, no fundo, utilitaristas1 2.
Os moralistas são todos "utilitaristas"? Essa tese de Nietzsche não pode deixar de surpreender. Afinal, a moral estabelecida não deixa de fazer o elogio do "desinteresse", e a Crítica da razão prática, ao opor o imperativo categórico ao hipotético, indicava suficientemente que o "interes-
11. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 260, Obras incompletas, cit., p. 293.
12. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 228, KSA, vol. 5, p. 164.
MORAL DE SENHORES, MORAL DE ESCRAVOS 119
se", o "patológico", para Kant, estava fora do campo moral. Como compreender esse traço utilitarista do "t ipo" moral de escravo, diante do contra-exemplo kantiano? Nietzsche responde no aforismo 21 de A gaia ciência, dedicado aos "professores de desinteresse". Deve-se alertar os incautos que, sob essa figura do "desinteresse" temos, na verdade, uma moral em que seus motivos estão em contradição com seu princípio. O "professor de desinteresse" afirma que as virtudes de um homem são boas, não por causa dos resultados que elas possam ter para ele? Na verdade ele quer dizer que as virtudes de um homem são boas pelos resultados que elas podem ter para os outros, para a sociedade. Assim, o elogio da virtude não é, ele mesmo, nem desinteressado nem "altruísta": se as ditas "virtudes", como a obediência, a piedade, a justiça, podem ser prejudiciais àquele que as possui, o vizinho as elogia, já que elas não são prejudiciais a ele. A recusa da utilidade privada, o "desinteresse", é sempre calcada na utilidade pública, da qual o sujeito "virtuoso" não é mais que o instrumento. O professor de desinteresse apenas desloca a utilidade do privado para o público, ele não a elimina enquanto código de interpretação. Em outros termos, o elogio que se faz do "altruísta", do homem virtuoso, daquele que se esquece de si - do desinteressado - nunca é um elogio que parte do próprio princípio do desinteresse. Por isso, os motivos dessa moral se opõem ao seu princípio, o argumento do qual ela se serve para se legitimar é refutado por seu critério do "bom". O princípio do desinteresse - "tu deves renunciar a ti e sacrificar-te" - só não se oporia à própria moral do desinteresse se ele fosse decretado por alguém que renunciasse à sua vantagem pessoal. Mas a partir do momento em que o próximo ou a sociedade recomendam o altruísmo em função de sua utilidade, termina-se por aplicar o princípio inverso: busca teu
120 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
benefício pessoal mesmo às expensas de todos os demais. Assim, entre o utilitarismo inglês, que vê o bom como o útil a mim, e a doutrina do desinteresse, pela qual o bom é o útil aos outros, temos morais apenas aparentemente opostas: as duas ensinam a mesma lição, o utilitarismo ingênuo é a verdade final de seu pseudo-antípoda, em qualquer caso a utilidade é o princípio da valoração, estamos diante de duas figuras da mesma moral de escravos.
Nietzsche separa a natureza "nobre" da "vulgar" exatamente através do conceito de utilidade. "A natureza vulgar se reconhece por nunca perder de vista sua vantagem, por essa obsessão pela meta, pelo benefício, que nela é mais forte que o instinto o mais violento." 1 3 Por isso, se aos olhos do vulgo os sentimentos nobres parecem destituídos de pertinência e de verossimilhança, é porque não se consegue discernir ali nenhuma utilidade. Donde a "sabedoria" vulgar por excelência: ninguém deve deixar-se levar a ações intempestivas por um impulso desrazoá-vel, a cada vez é preciso verificar a utilidade da ação. A "razão" escrava é sempre o cálculo dos meios para alcançar fins úteis, a natureza vulgar já é aquela do sujeito hobbesiano, que pode chegar até mesmo à mais absoluta sujeição se puder vislumbrar ali alguma utilidade para a conservação da vida. Ao contrário, na natureza nobre a paixão predomina frente à razão calculadora, o instinto toma a dianteira em face da utilidade - a natureza superior não é "razoável", se por razoável se entender um cálculo da utilidade.
Mas essa oposição entre moral de senhores e moral de escravos permanecerá abstrata e vaga enquanto nos limitarmos a sublinhar diferentes significados dos valores
13. Nietzsche, A gaia ciência, § 3, KSA, vol. 3, p. 374.
MORAL DE SENHORES, MORAL DE ESCRAVOS 121
ou distintos princípios de valoração. É que essas diferenças só ganham a sua chave no terceiro tópico a ser investigado, a origem das valorações morais. Na Genealogia da moral, Nietzsche analisa a criação dos valores tanto no âmbito de senhores quanto naquele de escravos, apontando o ressentimento como a origem das valorações morais plebéias. Ali, inicialmente o método da investigação será apenas filológico: trata-se circunscrever os sentidos da palavra "bom". Mas a filologia, ao mesmo tempo que nos apresenta os significados da palavra, também ensina algo sobre o modo de criação dos valores. Assim, a etimologia da palavra "bom", em diferentes línguas, indica uma característica constante: são sempre as idéias de nobreza e de aristocracia que formam a matriz a partir da qual se desenvolve o "bom", no sentido de espiritualmente nobre, espiritualmente bem nascido, espiritualmente privilegiado. São os nobres que designam a si mesmos como os "senhores", os "possuidores", os "verazes", o "homem da disputa, da dissensão". Assim, através da etimologia da palavra "bom" surge a matriz a partir da qual os nobres se sentiam homens de uma categoria superior, "um desenvolvimento que sempre corre paralelo àquele outro que faz 'plebeu', 'comum', 'baixo', transmutar-se finalmente em 'ruim'" 1 4 .
Mas isso já nos instrui sobre a origem do juízo "bom", uma origem muito distinta daquela que lhe atribuem os ingleses que, definitivamente, não são mesmo uma "raça filosófica". Pois o que dizem eles? Que o juízo "bom" tem sua origem naqueles a quem se prodigalizou a bondade, ele emana do beneficiário da ação, e não de seu autor. Para os ingleses, no princípio as ações não egoístas foram
14. Nietzsche, Genealogia da moral, I, % 4, cit, p. 24.
122 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
elogiadas e ditas "boas" por seus beneficiários, aqueles para quem elas seriam úteis. A filologia mostra o contrário: a origem do juízo "bom" não está no suposto beneficiário da ação, mas no próprio nobre, ao considerar-se a si mesmo, sem menção a qualquer utilidade. "Foram os 'bons' mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, vulgar e plebeu. Desse páthos da distância é que eles tomaram a si o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores: que lhes importava a utilidade!" 1 5. É o prejuízo utilitarista que proíbe aos ingleses o acesso à verdadeira origem. E essa origem do juízo "bom" não é de forma alguma irrelevante para uma genealogia da moral, visto que é sobretudo através dessa origem que se pode distinguir os tipos de moral, sem mascarar suas diferenças. O importante aqui não é apenas que o juízo "bom", quando dito pelo escravo para designar a si mesmo, terá um significado inteiramente diverso do "bom" proferido pelo senhor. O mais importante é que a "criação dos valores" é muito distinta quando nos situamos no território dos senhores ou naquele dos escravos. O mais importante é que o juízo "bom" origina-se de dois modos bem diversos: enquanto o senhor diz "eu sou bom, então tu és ruim", o escravo afirma "tu és mau, então eu sou bom". Para onde aponta essa diferença na criação do valor?
A moral de senhores nasce de uma consideração de si mesmo, de um sim que o senhor dirige a si mesmo. Seu modo de valoração "age e cresce espontaneamente, busca seu oposto apenas para dizer sim a si mesmo ainda
15. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 2, cit, pp. 21-2.
MORAL DE SENHORES, MORAL DE ESCRAVOS 123
com maior júbilo e gratidão - seu conceito negativo, o 'baixo', 'comum', 'ruim', é apenas uma imagem de contraste, pálida e posterior, em relação ao conceito básico positivo, inteiramente perpassado de vida e paixão, 'nós, os nobres, nós, os bons, os belos, os felizes'" 1 6 . É do procedimento contrário que se origina a moral de escravo, que nasce de uma consideração do outro, de um não dirigido ao outro. "Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesmo, já de início a moral escrava diz Não a um 'fora', a um 'outro', um 'não eu' - e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores - este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si - é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, falando fisiologicamente, requer estímulos exteriores para poder agir em absoluto - sua ação é no fundo reação." 1 7 Sendo assim, nesse nível da análise nietzschia-na, a oposição entre senhor e escravo não se resume a uma diferença de valores, mas se traduz também por dois modos distintos de reconhecimento: o senhor reconhece a si mesmo, enquanto o escravo, para reconhecer-se, precisa passar antes pela mediação de seu oposto, o senhor. Assim descrita, a relação que Nietzsche estabelece entre senhor e escravo nunca se confundirá com sua homônima hegeliana, ali na Fenomenologia do espírito. O senhor he-geliano traz as marcas do escravo de Nietzsche, enquanto ele é uma consciência que está em relação consigo mesmo apenas pela mediação de seu outro. A dialética do senhor e do escravo consistirá essencialmente em mostrar que o senhor se revela em sua verdade como o escravo do
16. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 10, cit., p. 34. 17. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 10, cit., p. 34.
124 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
escravo, o escravo como o senhor do senhor. Como nota Hyppolyte, através disso a desigualdade presente na forma unilateral do reconhecimento é ultrapassada, e a igualdade é restabelecida 1 8 . Se na dialética, como sempre, a oposição se revela aparente, o senhor e o escravo de Nietzsche permanecem opostos tanto no modo de reconhecimento quanto nos valores morais.
Essa diferença de modos na criação dos valores não será indiferente para se compreender as relações especiais que Nietzsche sempre verá entre moral de escravos e "filosofia". A inferência feita pelo escravo - "tu és mau, logo eu sou bom" - supõe todas as falácias da linguagem constitutivas da "razão" filosofante, todos os elementos que fazem do sacerdote o avô do filósofo. Afinal, o que o escravo pressupõe, já na sua premissa, ao afirmar que "tu és mau"? Ele simplesmente supõe que o senhor é o sujeito de um "livre-arbítrio", que ele é "mau" porque poderia ter agido de outro modo, visto ser uma "vontade livre". Prestemos nossa homenagem ao sacerdote, pois não foi por acaso que a noção de "livre-arbítrio" foi forjada no âmago do cristianismo. Como nota Hannah Arendt, o livre-arbítrio era uma faculdade virtualmente desconhecida para a Antigüidade clássica e foi somente com o cristianismo, com Agostinho, que a liberdade desprendeu-se de seu domínio original, a vida política, para transformar-se em um fenômeno da vontade 1 9 . O que pensar desse primeiro pressuposto do escravo? Nietzsche não nutria nenhuma simpatia pelo "livre-arbítrio e o apresentava como
18. Hyppolite, ]., Gênese et structure de la phénoménologie de Vesprit de Hegel, Paris, Aubier-Montaigne, 1967, vol. I, p. 166.
19. Arendt, H., "O que é liberdade?", in Entre o passado e o futuro, São Paulo, Perspectiva, 1972, p. 204.
MORAL DE SENHORES, MORAL DE ESCRAVOS 125
um artifício, inventado pelos teólogos, para tornar a humanidade 'responsável' pelos seus atos. O sacerdote busca responsabilidades para poder castigar e julgar, a teoria da vontade livre foi inventada tendo em vista o castigo, por uma vontade de encontrar culpados. Para que os homens pudessem ser culpáveis, era preciso imaginar que toda ação é querida, que a origem de toda ação se encontra na consciência, no livre-arbítrio2 0. É esta ficção, imaginada pelo teólogo, que está no interior da lógica do ressentimento: se "tu és mau", é porque poderias ter agido de outro modo; se poderias agir de outro modo, é porque tens um livre-arbítrio. Mas qual é exatamente a intenção de Nietzsche ao apresentar o livre-arbítrio como uma ficção - o que é bem mais que denunciá-lo como instrumento da vontade de potência do sacerdote? Por um lado, Nietzsche censura o livre-arbítrio em nome da "necessidade". O escravo quer dar a impressão de que seu ser, sua atividade são, eles também, o resultado de uma escolha livre; o escravo quer tomar sua debilidade por uma liberdade, sua realidade "inevitável" por uma decisão, um mérito21. Mas isso significaria que Nietzsche, com esse gesto, estaria se situando em um dos partidos daquela guerri-nha, sempre presente nos manuais de filosofia, que opõe o "determinismo" à "liberdade"? Não. E este ponto é importante, pois, a partir dele, pode-se vislumbrar que na verdade o "escravo" está sendo censurado, antes de tudo, por ser o usuário de um certo "modo de pensamento", de um cacoete do qual a doutrina do livre-arbítrio é apenas um dos rebentos. Assim, em Para além do bem e do mal, a
20. Nietzsche, "Os quatro grandes erros", Crepúsculo dos ídolos, § 7, KSA, vol. 6, p. 95.
21. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 13, cit., p. 45.
126 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
crítica ao livre-arbítrio é seguida por uma igual censura ao "determinismo", à idéia de que as ações são determinadas por causas exteriores. Ao semi-instruído que já se livrou desse "monstro" que é o livre-arbítrio como causa sui, solicita-se que dê um passo a mais na sua "instrução" e abandone também o determinismo, enquanto abuso das noções de causa e efeito. Causa e efeito são "ficções convencionais" que designam os fenômenos mas não os explicam, conceitos forjados por nós, um mero sistema de signos. Enquanto o "ser em si" é alheio a todas as relações causais, livre-arbítrio e determinismo são duas figuras do mesmo mundo de signos, fraudulentamente incorporados por nós às coisas "em si". Por isso, não é surpreendente que eles sejam duas expressões da "fraqueza": os adeptos do livre-arbítrio nunca querem abandonar a sua "responsabilidade", como o cristão clássico; os crentes do determinismo não querem ser causa de nada, não desejam responder por nada, como o socialista que transforma o "social" em causa de tudo 2 2 .
Mas o que significa apresentar livre-arbítrio e determinismo como membros do mesmo sistema de signos, ilusões provenientes da mesma gramática? Na Genealogia da moral, se Nietzsche apresenta o livre-arbítrio como uma ficção, ele não deixa de reportá-lo a uma ilusão anterior e mais tenaz, que lhe atribui a sua cidadania relativa no universo intelectual do escravo. O pecado original da moral de escravos é discriminar "entre a força e as expressões da força, como se por trás do forte houvesse um substrato indiferente que/osse livre para expressar ou não a força" 2 3 . O cacoete fundamental do escravo é separar
22. Nietzsche, Para além do bem e do mal, % 21, KSA, vol. 5, p. 35. Cf. também A gaia ciência, § 112, KSA, vol. 3, p. 472.
23. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 13, cit., p. 43.
MORAL DE SENHORES, MORAL DE ESCRAVOS 127
a força de suas manifestações, o agente de suas ações: é só depois de estabelecido esse divórcio que se pode imaginar algum "substrato livre". Mas de onde essa separação entre o agente e a ação extrai sua aparente legitimidade? Nietzsche a atribuirá às falácias da linguagem e aos erros fundamentais da razão que nela se consolidaram. O que significa dizer que moral de escravos e "filosofia" são irmãs gêmeas, têm a mesma certidão de nascimento. Qual o papel da linguagem nessa constituição do universo escravo?
III
As falácias da linguagem começam quando, esquecendo-se que ela é essencialmente retórica, pensa-se que a língua nos apresenta a denominação própria ou a expressão adequada da realidade. Agora, as oposições presentes na língua são dadas como oposições presentes nas coisas, as diferenças inscritas na linguagem são espontaneamente vistas como diferenças inscritas no mundo. A linguagem nos convida a confundir, fraudulentamente, a gramática com a própria estrutura da realidade, é espontaneamente que projetamos no real as articulações gramaticais da língua - e agora a linguagem se torna legis-ladora. Este tema de um condicionamento do pensamento pelas estruturas da língua, do filósofo "preso nas teias da linguagem", já estava presente em todo um setor da filologia alemã da época, que já tentara mostrar, por exemplo, como as categorias de Aristóteles eram inseparáveis de certos traços da língua grega. E este movimento que Nietzsche prolonga ao sublinhar que, quando há parentesco lingüístico, "é inevitável que uma filosofia comum da gramática - eu quero dizer a preponderância e a ação
128 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
das mesmas funções gramaticais - predispõe o pensamento a produzir sistemas filosóficos que se desenvolvem da mesma maneira e se seguirão na mesma ordem, quando a via parece barrada a certas outras possibilidades de interpretar o universo." 2 4
O homem do ressentimento que entrava em cena na Genealogia da moral já era espontaneamente filósofo, alguém preso às malhas da linguagem legisladora, este subsolo que garantia livre curso às ficções do escravo, que serão as próprias ficções da razão, esta metafísica da linguagem. É a linguagem que vê por toda parte agente e ato; que acredita na vontade como causa em geral; é ela que promove a crença no "eu" , no eu como ser e substância, e projeta a crença na substância-eu sobre todas as coisas. "O ser é por toda parte pensado-junto, introduzido sub-repticiamente; somente da concepção 'eu' se segue, como derivado, o conceito 'ser'"... No início está a grande fatalidade do erro, de que a vontade é algo que faz efeito - de que a vontade é uma faculdade." 2 5 Essas teses extremamente sumárias ganharão alguma precisão ao serem retomadas em alguns fragmentos póstumos, em que Nietzsche apresenta as categorias filosóficas como meros hábitos gramaticais2 6. A distinção entre o fazer e aquele que faz, a distinção entre o processo e aquilo que não é processo, mas substância duradoura, a tentativa de compreender o fenômeno como um tipo de deslocamento daquilo que é e permanece - foi essa velha mitologia, garante Nietzsche, que consolidou a crença na causa e no efeito,
24. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 20, KSA, vol. 5, p. 34. 25. Nietzsche, "A razão na filosofia", Crepúsculo dos ídolos, § 5, Obras
incompletas, cit, p. 331. 26. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 40[22], KSA, vol. 11, p. 639.
Cf. também 10[19], KSA, vol. 12, p. 465.
MORAL DE SENHORES, MORAL DE ESCRAVOS 129
depois que essa crença já tinha encontrado uma forma fixa nas funções gramaticais da linguagem. Donde a crítica de Nietzsche a Descartes: concluir que, se pensamos, então há algo que pensa, uma substância pensante, é fazer uma inferência que vem do velho hábito gramatical de atribuir um ator a toda ação. É a partir desse hábito que se chega à idéia de uma substância pensante, de um sujeito do ato de pensar, e um sujeito distinto desse ato. A noção filosófica de substância é apenas um resultado derivado da noção gramatical de sujeito. E agora a idéia de sujeito, vinculada à gramática que separa o ator da ação, passa a exprimir a crença em uma unidade entre diferentes momentos. O "sujeito" será a ficção que nos quer fazer crer que muitos estados, similares em nós, são o efeito de um mesmo substrato idêntico e inalterável. Agora, o eu enquanto substância poderá ser visto como a causa de toda ação, como aquele agente cuja vontade será interpretada como uma "faculdade". Para Nietzsche, é aqui que começará a derivação daquele sistema de postulados lógico-metafísicos que são as "categorias da razão", tais como substância e atributo, causa e efeito. Essas categorias falaciosas têm sua matriz formadora na apreensão do eu como substrato idêntico: a crença na substância, no atributo, no acidente ganha sua força persuasiva do hábito de considerar tudo o que fazemos como conseqüência de nossa vontade, de modo que o eu, enquanto substrato idêntico, não desaparece na multiplicidade do vir-a-ser, quando o contínuo devir, bem compreendido, não permite sequer que se fale em "indivíduos" 2 7. Por isso, as oposições categoriais da razão serão sempre "estabiliza-doras", sempre exprimirão a obsessão pelo permanen-
27. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 36[23], vol. 11, p. 561.
130 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
te e o medo do vir-a-ser. Isso não tem nada de surpreendente. Se para Nietzsche a linguagem é essencialmente retórica, é porque não existe expressão adequada da realidade; e se não existe expressão adequada é porque o mundo é um perpétuo vir-a-ser. Donde o inevitável "protagorismo" do conhecimento: se não há expressão adequada é porque não existe percepção " justa" - uma percepção impossível em um mundo em perpétuo vir-a-ser e que, por isso mesmo, só permite que se tenha sobre ele "perspectivas" mutáveis e sempre situadas. Quando a linguagem se esquece enquanto retórica, se pensa como expressão adequada e legisla sobre o mundo, ela paralisa o devir, já que se tornou linguagem para um mundo perene e seus meios de expressão não são utilizáveis para significar o vir-a-ser 2 8 .
Quando o escravo cria valores segundo a lógica do ressentimento, dirige um não ao senhor e afirma que "tu és mau, logo eu sou bom", ele deseja que o senhor aja de outra maneira. Mas isso é absurdo, dirá Nietzsche. Afinal, exigir da força "que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força" 2 9 . Se o escravo não se dá conta desse "absurdo" é porque, prisioneiro das falácias da linguagem, ele separa o agente da ação, a força de suas manifestações, e é essa separação, essa distância fictícia, que cria o espaço para se alojar ali o livre-arbítrio e compreender toda ação como o resultado de uma escolha. Aqui é a linguagem que opera como interpretação do mundo, ao projetar nele as
28. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [73], KSA, vol. 13, p. 36. 29. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 13, cit., p. 43.
MORAL DE SENHORES, MOK4L DE ESCRAVOS 131
suas estruturas - e por isso não existem fenômenos morais, mas apenas interpretações morais dos fenômenos. E se há este entrelaçamento íntimo entre moral de escravos e razão filosofante, não é surpreendente que o processo nietzschiano contra nossa civilização atinja a ambas na mesma cena. Qual universo o escravo se constrói, apoiado em suas ficções? Para apreendê-lo, basta extrair as conseqüências de seu pressuposto básico, a separação entre o agente e a ação, entre a força e sua manifestação. O escravo procede "como se por trás do forte houvesse um substrato indiferente que fosse livre para expressar ou não a força" 3 0 , e o próprio escravo também seria um substrato indiferente que seria livre para ser forte. Assim, todos os substratos estariam originariamente em uma situação de equilíbrio; nesse universo do escravo há sempre uma igualdade de direito das chances, uma neutralização de princípio das forças. Logo, se o equilíbrio de direito entre os substratos for rompido, se houver uma preponderância de fato, é preciso aplicar o princípio de razão suficiente e indicar por que o equilíbrio foi rompido, por que este e não outro prepondera: porque é sábio, porque é prudente, porque venceu as eleições, tantos motivos que afastam da cena a potência nua. Se a preponderância do senhor é apenas uma dominação do forte na qualidade de forte, uma dominação que não declina suas razões, então ela é um escândalo a ser vilipendiado: "tu és mau".
E essa questão que o "senhor" nietzschiano não se põe, e nem precisa se formular. Seu universo é homérico, heraditiano, nunca platônico; seu mundo é o palco de um jogo, não o campo de aplicação do princípio de razão. Ele não visa um equilíbrio de princípio entre os agentes, equi-
30. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 13, cit, p. 43.
132 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
líbrio que seria rompido por um excesso que estaria na obrigação de declinar suas razões. Ao contrário, no universo dos senhores o desequilíbrio é o fato originário e não deve ser compreendido a partir de outra coisa que ele mesmo, não representa qualquer desvio diante de um mítico equilíbrio de direito das chances. Aqui a sucessão das dominações se faz como em um jogo, e ninguém precisa justificar o desvio e o excesso; aqui o vir-a-ser é apenas uma sucessão de dominações, de diferentes configurações de potência, nunca um equilíbrio rompido. Por isso, pode-se até prever o discurso que o "senhor" nietzschiano dirigiria a esse "escravo" racionalista: não tomeis o devir moralmente, ele é apenas um jogo; sob o "por que" de uma dominação, ninguém deve entender alguma justiça; basta saber quem domina, sem precisar perguntar em virtude de qual sentença se domina.
CAPÍTULO VI O SACERDOTE, O RESSENTIMENTO E O IDEAL ASCÉTICO
I
Qual o papel do sacerdote na construção do universo "escravo"? Que exista um papel a ser desempenhado por este personagem não é nada surpreendente, já que, aos olhos de Nietzsche, a análise da constituição da moral de escravos é, desde o início, uma investigação sobre a gênese do cristianismo, visto que o juízo moral do escravo já é aquele do cristão. Em Ecce homo, Nietzsche afirma que a verdade da primeira dissertação da Genealogia da moral é a "psicologia" do cristianismo, o seu nascimento no "espírito do ódio" e não, como se poderia crer, pura e simplesmente no "espírito". O espírito do ódio do qual brota o cristianismo é o "ressentimento", aquele mesmo do qual nascia a valoração moral do escravo. E isso não deve surpreender a ninguém, já que, para Nietzsche, o cristianismo enquanto "ideologia" é "platonismo para o povo", é coisa que precede a figura histórica de Cristo. Da mesma forma, se a Genealogia da moral discorre apenas sobre o "sacerdote judeu", na verdade fala-se ali também do pa-
134 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
dre cristão, este sendo o legítimo herdeiro daquele, o seu prolongamento natural. Como, exatamente, compreender isso? E esse jogo em que diversos atores representam um mesmo personagem que Nietzsche deixa claro para o leitor de O Anticristo.
E o cristianismo - diz Nietzsche - que declara uma guerra mortal ao homem de "tipo superior", desterra todos os instintos fundamentais desse tipo e considera o forte como reprovável, tomando o partido dos débeis e fracassados. E o instinto teológico que faz com que o mais nocivo à vida seja chamado de "verdadeiro" 1. Mas o problema do nascimento do cristianismo só pode ser compreendido a partir do terreno em que este cresceu - o cristianismo é a conseqüência lógica do instinto judaico. Nasce aqui a fórmula do Redentor: "a salvação virá dos hebreus". Em outras palavras, o cristianismo pode nutrir sentimentos antijudaicos, sem compreender que ele é, na verdade, a última conseqüência do judaísmo. Pois o que fazem os hebreus, enquanto povo? Colocados diante do problema do ser e do não-ser, eles preferiram o ser a todo custo. E este "a todo custo" significou a falsificação de toda a natureza, de todo o mundo interior e exterior. Eles traçaram um limite contra todas as condições nas quais, até então, seu povo vivia, e criaram para si uma noção oposta de "condição natural". Eles disseram não à natureza 2. Ora, é este mesmo fenômeno, só que em proporções maiores, que reencontramos no cristianismo. E a moral judaico-cristã que diz não a todo movimento ascendente da vida, ao poder e à afirmação de si. E agora o instinto de ressentimento inventa outro mundo, um
1. Nietzsche, O Anticristo, § 5, KSA, vol. 6, p. 171. 2. Nietzsche, O Anticristo, § 24, KSA, vol. 6, p. 192.
O SACERDOTE, O RESSENTIMENTO E O IDEAL ASCÉTICO 135
mundo a partir do qual a afirmação da vida apareceria como um mal, como algo reprovável. Tal é, para Nietzsche, a imensa sutileza do povo judeu: eles tomam partido pelos instintos de decadência, não se deixando dominar por eles, mas utilizando-os como instrumentos contra o mundo.
O que o povo hebreu promove é a desnaturalização dos valores naturais. Seu Deus da justiça é um Deus sob condições: ele é um instrumento nas mãos do sacerdote, que então interpreta toda fortuna como um prêmio, toda desventura como castigo por uma desobediência a Deus. Agora, sua moral já não é mais expressão das condições de vida e de crescimento de um povo, mas se torna contrária à vida. Toda fortuna como prêmio, toda desventura como castigo... Nessas condições, o que é a moral judaica, o que é a moral cristã? E o acaso que perde a sua inocência; é a desventura travestida pelo pecado; é o bem-estar considerado como perigo, tentação; é o mal-estar fisiológico envenenado pelo remorso. Os sacerdotes judeus foram os artífices dessas invenções: eles transferiram o passado de seu povo para o campo religioso, com incom-parável desprezo pela realidade histórica. O que eles fizeram? Fizeram do passado de seu povo um estúpido mecanismo de salvação, um mecanismo de culpa diante do Deus da justiça e seu conseqüente castigo, de devoção a Deus e seu conseqüente prêmio. Foi essa interpretação do passado histórico, tal como foi disseminada pela Igreja, que os filósofos docemente prosseguiram, com sua idéia de uma "ordem moral do mundo". Segundo essa doutrina, existiria uma vontade de Deus em relação à qual o homem deve agir ou não agir, o valor de um povo ou de um indivíduo se mediria pelo grau de obediência à vontade divina, nos destinos de um povo ou de
136 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
um indivíduo a vontade de Deus seria dominante, punitiva ou recompensadora.
Na origem de toda essa litania está o sacerdote. Mas a realidade é bem mais crua do que essas ficções a que fomos acostumados. É a casta dos sacerdotes que, abusando do nome de Deus, chama de reino de Deus um estado social no qual o sacerdote fixa o valor das coisas, chama de "vontade de Deus" os meios graças aos quais esse estado é obtido ou conservado. São eles que medem os tempos, os povos e os indivíduos segundo o metro de ajudar ou contrariar o predomínio dos sacerdotes. E agora o sacerdote se apresenta ao seu distinto público como um personagem indispensável. Todo costume natural, toda instituição natural - como o Estado, os tribunais, o casamento, a assistência aos doentes -, toda exigência inspirada pelo instinto de vida, tudo que tem em si mesmo um valor é privado de seu valor pelo sacerdote ou pela "ordem moral do mundo". Agora é necessária uma sanção, um poder que cria um valor para tudo, depois de se negar o valor da natureza. O sacerdote desvaloriza, retira o valor da natureza, e é a este preço que ele existe. De agora em diante a desobediência a Deus - ou ao sacerdote -, a desobediência à lei recebe o nome de "pecado". Os meios para reconciliar-nos com Deus serão os meios pelos quais será garantida a sujeição ao sacerdote, o único que pode salvar. A partir desse momento os pecados se tornam indispensáveis, já que eles são os meios de que a casta sacerdotal se serve para manipular o poder: o sacerdote vive de pecados, ele precisa da existência de pecadores. Donde a tradução que Nietzsche dará do lema supremo: "Deus perdoa os penitentes." Leia-se: "Deus perdoa quem se submete aos sacerdotes." 3 Para Nietzsche, o
3. Nietzsche, O Anticristo, § 26, KSA, vol. 6, p. 197.
O SACERDOTE, O RESSENTIMENTO E O IDEAL ASCÉTICO 137
cristianismo será o prolongamento dessa maquinaria infernal imaginada pelo sacerdote judeu.
II
O "cristianismo" - algo que ninguém deve confundir com a figura histórica do Cristo. Porque em sua origem, antes de sua apropriação pelo espírito judaico, o cristianismo era outra coisa. O cristianismo primitivo, diz Nietzsche, nega a Igreja, a insurreição de Cristo foi contra a Igreja judaica, contra a casta sacerdotal. Originalmente, a "boa nova" era precisamente a de que não há contradições: o reino dos céus pertence aos fiéis, a fé não é algo conquistado, mas existe desde o princípio. E essa fé não se encoleriza, não censura, não se defende, não empunha a espada. Ela também não se "demonstra" com milagres, com prêmios ou com promessas - e muito menos com as Escrituras. Essa fé nem sequer se formula, ela se vive. O Jesus histórico, tal como Nietzsche o descreve no aforismo 32 de O Anticristo, já era quase um "espírito livre": ele recusa todo dogmatismo. Esse "simbolista" está fora de todo prejuízo eclesiástico, fora de toda religião, de toda idéia de culto. Ele nunca pensou em negar o mundo, nem sequer suspeitou o conceito eclesiástico de mundo. O Cristo histórico desconhece as idéias de culpa, castigo e recompensa. Ele abole qualquer relação de distância entre Deus e o homem e é precisamente esta a "boa nova": a felicidade não é prometida, não está sujeita a condições. O resultado é uma nova prática. O que distingue primitivamente o cristão não é uma fé, mas outro modo de atuar, que prescinde de toda doutrina judaica da penitência e da reconciliação. Uma nova prática: Cristo não se defen-
138 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
de, não se indigna, não atribui responsabilidades, ele roga, sofre e ama naqueles que fazem o mal. Mas depois...
Depois, o Cristo degenera no cristianismo e na Igreja, ele degenera no ódio instintivo contra toda a realidade. O Cristo degenera em São Paulo. Pois foi Paulo quem deu ao cristianismo uma "interpretação" bem determinada. A "boa nova" foi sucedida pela "péssima nova", formulada por esse gênio do ressentimento que foi Paulo: a história de Cristo foi reinterpretada no mesmo espírito com que os judeus reescreveram a história de seu povo. Foi Paulo que inventou uma história do primeiro cristianismo e ainda falsificou, mais uma vez, a história de Israel, para que ela parecesse a pré-história de seu presente. Com Paulo, o tipo do redentor, sua doutrina, sua prática, sua morte e o sentido de sua morte - e até mesmo o que ocorre depois da morte -, nada permaneceu intacto. O que ele fez? Simplesmente transferiu o centro de gravidade da existência de Cristo para a mentira do Jesus ressuscitado. Paulo precisava da morte de Cristo. Jesus ressuscitado... E afirmar isso em pleno mundo estóico! Paulo nem devia acreditar nessa bobagem. Ele apenas queria o fim, e para isso precisava dos meios - foram os tolos que o levaram a sério. Paulo queria o fim, isto é, ele queria o poder; com ele, mais uma vez é o sacerdote quem quer o poder. Para isso, ele precisava das idéias e dos símbolos com os quais se tiranizam as massas e se formam os rebanhos. A crença na imortalidade foi o meio de que ele se serviu para reatar com a tirania do sacerdote. Com a crença na imortalidade, quer dizer, com a doutrina do juízo, é a velha litania do sacerdote judeu que retorna, porque a crença na imortalidade desqualifica a natureza, ao colocar o centro de gravidade da vida não na própria vida, mas em um além. Agora, o sentido da vida é viver de modo que a vida não
O SACERDOTE, O RESSENTIMENTO E O IDEAL ASCÉTICO 139
tenha sentido. É neste momento que o cristianismo reata com o judaísmo, que o sacerdote cristão torna-se o herdeiro natural do sacerdote judeu. Mas, se é assim, será que já temos os elementos para responder à questão da qual se tinha partido, que era a de saber qual o papel do sacerdote na constituição do universo "escravo"? Ainda não. Para isso, é preciso levar em conta também as idéias de "culpa" e "má consciência", tal como Nietzsche as analisa na segunda dissertação da Genealogia da moral.
III
De onde provém a noção de "culpa"? Ao procurar responder a essa questão, o método de Nietzsche será, mais uma vez, filológico. A etimologia da palavra "culpa" indica que ela vem de dívida. Na origem - diz Nietzsche - o castigo enquanto reparação desenvolveu-se afastado de toda e qualquer consideração sobre a liberdade da vontade. Durante o mais longo período da história humana, não se punia porque se considerava o malfeitor "responsável", não se supunha que apenas o culpável devia ser punido. Punia-se por cólera, por ter sofrido um dano, desafogava-se a cólera em quem a havia causado. Foi essa cólera que se encontrou limitada e modificada pela idéia de que todo dano encontra seu equivalente em uma dor imposta ao seu autor 4. Mas de onde provém essa idéia, tão enraizada, de que existiria uma equivalência entre o dano e a dor? Ela vem da relação contratual entre credor e devedor, dessa relação em que se promete alguma coisa; o castigo é, antes de tudo, a dor imposta ao devedor que não
4. Nietzsche, Genealogia da moral, II, § 4, cit., p. 65.
140 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
cumpre sua promessa. Sendo assim, para procurar a origem dos conceitos morais de culpa, consciência e dever, precisa-se ir buscá-la no domínio do direito das obrigações. Foi precisamente ali - garante Nietzsche - que se celebrou, pela primeira vez, esse sinistro casamento das idéias de culpa e de dor - um casamento que já penetrou em nosso sangue. E se na origem o sofrimento podia ser uma compensação para as dívidas, é porque fazer sofrer dava prazer aos homens. Assim, o sentimento de culpa, de obrigação pessoal, tem sua origem na relação entre comprador e vendedor, credor e devedor: é daqui que nasce a idéia de equivalência que, logo depois, se generaliza na máxima segundo a qual tudo tem seu preço, tudo pode ser pago - este mais antigo cânone moral da justiça. Essa generalização é fundamental: primitivamente, a comunidade também está, diante dos seus membros, em relação de credor a devedor. Mas ninguém deve procurar, na origem, as "idéias modernas": aquele que não cumpre o contrato sofre uma punição, mas o punido ainda não era visado como o é por nós. Em outras palavras, a noção de "castigo" é algo de fluido, que no curso da história adquiriu vários sentidos. Hoje em dia, admite-se que o castigo despertaria no castigado o sentimento de culpabilidade, que ele seria o instrumento desse evento psíquico chamado "má consciência" ou "remorso". Mas é uma grande bobagem universalizar essa idéia moderna, pois durante a maior parte da história não existiam "culpáveis", não havia, na consciência dos que julgavam e puniam, nada a indicar que eles tratavam com um culpável. Com o que eles lidavam? Apenas com parcelas irresponsáveis do destino. Assim, não é no castigo que se pode encontrar o nascimento da má consciência, do remorso. Na origem, o punido - parcela do destino -
O SACERDOTE, O RESSENTIMENTO E O IDEAL ASCÉTICO 141
não experimentava nenhuma dor interior diferente daquela provocada por um acontecimento imprevisível, como
uma catástrofe natural contra a qual não se pode lutar, De onde teria surgido, então, a má consciência? So
bre essa questão, Nietzsche adianta uma "hipótese" - é só isso que pode fazer o "espírito livre", este antidogmá-
tico por excelência, que trabalha apenas com "probabili- dades". A má consciência seria a doença oriunda da pres
são exercida sobre o homem pela mais profunda das transformações a que ele se submeteu quando se viu sob o constrangimento da sociedade e da paz. O que aconte- ceu? Esses animais habituados à guerra tiveram agora
seus instintos desvalorizados, eles foram reduzidos a pen- sar, concluir, calcular - eles foram reduzidos à "consciên- cia". Mas os antigos instintos reclamam satisfação e, sob
a paz da vida social, eles se voltam para o interior. "Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro - isto é o que chamo de interiorização do ho- mem: é assim que no homem cresce o que depois se de
nomina sua 'alma' ." 5 É esse "mundo interior" que vai se expandindo, na medida em que se impede o homem de liberar-se para o exterior; agora os instintos do homem
voltam-se contra o próprio homem. "A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudan- ça, na destruição - tudo isso se voltando contra os possui- dores de tais instintos: esta é a origem da má consciên
cia". 6 Eis a origem da má consciência para uma doutrina da vontade de potência: a ausência de inimigos externos, a ausência de resistência faz com que os instintos se vol
tem contra o próprio homem. Assim, os organizadores dos
5. Nietzsche, Genealogia da moral, II, § 16, cit., p. 90. 6. Nietzsche, Genealogia da moral, II, § 16, cit., p. 90.
142 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
Estados primitivos desconhecem o que é culpabilidade, responsabilidade. A má consciência, enquanto instinto de liberdade tornado latente e reprimido, não germina neles- mas sem eles não teria nascido. A mesma força que seexterioriza nos fundadores de Estados, uma vez interiorizada, cria a má consciência; é o mesmo instinto de liberdade ou vontade de potência que se exterioriza ou volta-secontra seu detentor. Assim, a má consciência não é as-sunto de dominadores, mas de dominados, não é coisa de senhores, mas de escravos. Uma força voltada contra simesma: agora a má consciência será a matriz desses fe-nômenos expressos pelas idéias de "desinteresse", "es -quecimento de si", "sacrifício de si", "não-egoísmo" -apenas a má consciência, essa vontade de maltratar a simesmo, fornece a condição primeira para fixar o valordesses valores. O que acontece quando a má consciência cruza seu caminho com aquele da religião? A religião vai levar a má consciência ao paroxismo, à sua maximização.O que ela faz?
A relação de direito privado entre credor e devedor encontrou uma nova aplicação histórica muito importante na relação entre os vivos e os ancestrais. No seio da tri-bo primitiva, garante Nietzsche, cada geração viva se re-conhece com uma obrigação jurídica diante da geração precedente e diante da primeira geração, a fundadora detudo. Agora prevalece a convicção de que a tribo só sub-siste graças aos sacrifícios e aos trabalhos dos ancestrais. Reconhece-se assim uma dívida em relação a estes, que deve ser quitada mediante novos sacrifícios e traba-lhos. São esses ancestrais que terminam por assumir a fei-ção de deuses. E a história mostra que o eclipse da forma primitiva de comunidade, fundada nos elos de sangue, não faz com que desapareça a consciência de uma dívida
O SACERDOTE, O RESSENTIMENTO E O IDEAL ASCÉTICO 143
diante da divindade. E foi esse sentimento de dívida em relação à divindade que não cessou de crescer, na proporção em que o conceito de Deus e o sentimento de divindade aumentaram em importância e foram exaltados. Ora, com o aparecimento do Deus cristão - o mais alto grau de divindade alcançado até hoje - o sentimento de dívida também foi levado ao seu limite máximo. É esse sentimento de dívida em relação a Deus que vai cruzar seu caminho com a má consciência. E a moralização da dívida e do dever que fará com que essas idéias se voltem contra o devedor em quem a má consciência se enraiza até que, finalmente, para esse devedor a idéia da impossibilidade de pagar a dívida engendra a idéia da impossibilidade de expiação - a idéia do castigo eterno. Agora entra em cena o cristianismo: Deus se sacrificando para pagar a dívida do homem, Deus pagando, Deus como o único capaz de resgatar o homem, Deus se sacrificando pelo devedor - e tudo isso por amor!
Essa, evidentemente, é a história superficial, sob a qual se pode adivinhar a história real, que se desenrola sob esse véu. É o homem da má consciência, com sua vontade de se torturar, que lança mão da hipótese religiosa para alçar seu suplício ao grau máximo. A idéia de dívida em relação a Deus torna-se, para ele, um instrumento de tortura. O homem da má consciência projeta, fora de si, um Deus que é a antítese de seus instintos, e compreende esses instintos como culpa em relação a Deus. "Há uma espécie de loucura da vontade nessa crueldade psíquica que é simplesmente sem igual: a vontade do homem de sentir-se culpado e desprezível, até ser impossível a expiação, sua vontade de crer-se castigado, sem que o castigo possa jamais eqüivaler à culpa, sua vontade de infectar e envenenar todo o fundo das coisas com o
144 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
problema do castigo e da culpa, para de uma vez por todas cortar para si a saída desse labirinto de 'idéias fixas', sua vontade de erigir um ideal - o do 'santo Deus' - e em vista dele ter a certeza tangível de sua total indignidade . " 7 De onde decorre tudo isso? Da condição primeira da má consciência. Tudo decorre desse homem impedido de ser um animal de ação, desse indivíduo em que a vontade de potência não pode se exteriorizar e que por isso mesmo se torna contemplativo, interiorizado - assume o tipo "espiritual". O sacerdote judeu será o líder desse rebanho de "interiorizados". E agora se poderá começar a vislumbrar o seu papel na constituição do universo "escravo".
IV
É na passagem da filologia à genealogia, enquanto transição da investigação do "sentido" para a análise da "origem", que o sacerdote judeu entra na cena nietzschia-na. O que os judeus fizeram? Seus profetas "fundiram em uma só noção aquelas de 'rico', 'ímpio', 'mau', 'violento', 'sensual', e pela primeira vez deram um sentido infaman-te à palavra 'mundo'. Esta transmutação dos valores (que também quer que 'pobre' seja sinônimo de 'santo' e de 'amigo') faz toda a importância do povo judeu: com ele começa a revolta dos escravos na ordem moral"8. Assim, o que o sacerdote judeu faz é uma determinada interpretação, ele rearticula o campo semântico das palavras, im-põe-lhes um novo sentido ao associá-las diferentemen-
7. Nietzsche, Genealogia da moral, II, § 22, cit., p. 100. 8. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 195, KSA, vol. 5, p. 117.
O SACERDOTE, O RESSENTIMENTO E O IDEAL ASCÉTICO 145
te. Através dessa rearticulação, opera-se uma inversão dos valores aristocráticos. Essa interpretação e essa inversão caminham para um mesmo resultado: colocar no "mundo" a efígie da vergonha. Mas o que é o "mundo" para Nietzsche? O mundo é a vontade de potência, é contra ela que o sacerdote se dirige9. A Genealogia da moral retoma esse tema do ódio sacerdotal contra as castas. O modo de apreciação do sacerdote se distingue daquele da aristocracia guerreira, e o sacerdote judeu vai se opor aos seus inimigos e dominadores por um ato de vingança estritamente espiritual, uma transmutação dos valores que im-plode a equação aristocrática entre "bom", "nobre", "poderoso", "belo", "feliz", "amado por Deus". O discurso do sacerdote será mais ou menos assim: os miseráveis são os únicos bons, os que sofrem, os necessitados, os doentes, são também os únicos piedosos, os únicos benditos por Deus; ao contrário, os nobres e poderosos serão per-petuamente maus, cruéis, avarentos, insaciáveis, eternamente réprobos, malditos, condenados 1 0. Esse discurso do sacerdote, nascendo do ódio e sendo apresentado por Nietzsche como um ato de vingança puramente espiritual, remete ao ressentimento. Mas qual é, exatamente, a relação do sacerdote com o escravo e o filósofo?
O descontentamento do escravo diante de sua sorte não foi inventado pelo sacerdote 1 1. Mas, se é assim, qual o papel desse personagem? Para percebê-lo, vale a pena dirigir-se aos textos em que Nietzsche analisa a religião. As-
9. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 38[12], KSA, vol. 11, p. 610, Obras incompletas, cit, p. 397: "E sabeis sequer o que é para mim 'o mundo'? ... Esse mundo é a vontade de potência - e nada além disso! E também vós próprios sois essa vontade de potência - e nada além disso!"
10. Nietzsche, Genealogia da moral, I, §§ 6 a 8, cit., pp. 27-32. 11. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 18, cit., p. 153.
146 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
sim, em A gaia ciência Nietzsche aponta quais são as duas verdadeiras invenções dos fundadores de religião. Em primeiro lugar, "um modo de vida determinado, um costume quotidiano, que disciplinam a vontade e ao mesmo tempo banem o tédio; em segundo lugar, uma interpretação que aureola essa regra como um objeto do mais alto preço, e que faz dela um bem supremo pelo qual poder-se-á combater e, se preciso, dar a vida" 1 2 . Dessas duas invenções, a segunda é de longe a mais importante. Enquanto o gênero de vida em geral preexiste à sua regulamentação, mas como um gênero de vida entre outros, sem consciência de seu suposto valor, a originalidade do fundador de religião está em ver e escolher esse gênero de existência e adivinhar o que se pode fazer com ele, em que sentido interpretá-lo. Como Jesus, que encontra à sua volta a vida do pequeno povo romano e a interpreta, lhe atribui um sentido e um valor supremos, dando-lhes assim a coragem de desprezar todo outro modo de existência. Um gênero de vida acrescido de uma interpretação que o valorize: está aqui o segredo da fundação das religiões. E, se é assim, isso permite responder à questão de saber o que é preciso para fundar uma religião e qual será o papel do sacerdote no mundo escravo. "Para fundar uma religião é preciso possuir uma infalibilidade psicológica que saiba descobrir com segurança uma certa categoria de almas medianas que ainda não reconheceram seu parentesco. É o fundador de religião que as aglutina; a fundação de uma religião torna-se sempre, a este respeito, uma longa festa de 'reconhecimento'." 1 3 Qual o papel do sacerdote, para que essas almas irmãs reconheçam seu parentesco? As
12. Nietzsche, A gaia ciência, § 353, KSA, vol. 3, p. 589. 13. Nietzsche, A gaia ciência, § 353, KSA, vol. 3, p. 590.
O SACERDOTE, O RESSENTIMENTO E O IDEAL ASCÉTICO 147
comunidades eclesiais de base têm longa data: o sacerdote é o organizador desse rebanho de enfermos 1 4 . Um organizador, desde que não se esqueça a condição para essa empreitada: a interpretação glorificadora de determinado modo de vida, que ao mesmo tempo lhe dá unidade e significação. Agora, com o entre-reconhecimento, os escravos podem se sentir como um rebanho.
Mas o que garante o sucesso do sacerdote no desempenho de sua função de vanguarda do proletariado? Antes de mais nada, a demanda de seu público por uma religião, as relações especiais que unem a religião à fraqueza em geral. Em Para além do bem e do mal, Nietzsche apresenta as religiões como estratégias de conservação dos fracassados. Elas por princípio tomam partido a favor dos fracassados, são religiões dos "sofredores" e dão razão a todos aqueles que sofrem com a vida, como se esta fosse uma doença, e gostariam que todo outro tipo de sentimento em relação à vida fosse considerado falso e se tornasse impossível 1 5. E se a platéia da religião está entre os "fracos", isso não é mera casualidade, mas exprime uma relação de essência entre religião e fraqueza em geral. A fraqueza se exibe na própria "necessidade de crença", e por isso pode-se muito bem medir a força de um homem, ou antes, a sua fraqueza, pelo grau de fé do qual ele tem necessidade para se desenvolver. Por isso o cristianismo se mantém firme e forte ainda hoje em dia: ele é necessário à maior parte das pessoas, ele é uma crença que corresponde a exigências bem determinadas. Quais são essas exigências? Um desejo de apoio suscitado por um instinto de fraqueza, uma necessidade de fé. É sempre onde
14. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 18, cit., p. 154. 15. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 62, KSA, vol. 5, p. 82.
148 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
mais falta a vontade que a fé é o mais desejado, o mais necessário, pois a vontade, sendo associada à idéia de comando, é signo distintivo de domínio e de força; desde então, quanto menos se sabe comandar, mais se aspira a ser comandado. De tal forma, garante Nietzsche, que as grandes religiões devem ter nascido de uma extraordinária astenia da vontade, que está na origem da busca de imperativos. Quando um homem se convence de que deve ser comandado, ele já é um crente. Donde a correlação que Nietzsche estabelecerá entre a fé cristã e o sacrifício da independência 1 6 . Vem daqui o casamento perfeito entre o sacerdote judeu e o escravo: a fraqueza, com sua necessidade de crença, a vontade astênica, consegue enfim o seu comandante-em-chefe. É a relação de essência entre religião e anemia da vontade que está na origem do sucesso com que o sacerdote realiza a sua tarefa, pois o "organizador" do rebanho de escravos responde a uma exigência precisa de suas ovelhas. Para Nietzsche, é essa função do sacerdote judeu que o cristianismo não fará senão prolongar. Mas o que, exatamente, ali se prolonga?
Se o sacerdote atribui uma "interpretação" ao modo de vida do escravo, qual o sentido desse gesto? Isso significa que o sacerdote judeu é o primeiro ator a desempenhar o papel de um personagem pelo qual já se passou lá no início - ele é o primeiro "professor da meta da existência" com certidão de nascimento autenticada por nossa estúpida história. Pois o que faz o fundador de morais e religiões? Ele promove a vida da espécie renovando a fé na vida. E o discurso que ele dirige ao seu rebanho visa alertar a todos que a vida vale a pena ser vivida, a vida é importante, há algo atrás de sua aparência que sem-
16. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 46, KSA, vol. 5, p. 66.
O SACERDOTE, O RESSENTIMENTO E O IDEAL ASCÉTICO 149
pre se desvela a quem lhe presta a devida atenção. O que ele faz? "E para que aquilo que acontece sempre necessariamente, aquilo que acontece por si mesmo e sem nenhuma espécie de meta apareça doravante como tendendo para um fim e pareça ao homem razão e lei suprema, é para isso que o mestre de moral sobe em sua cátedra de professor da 'meta da vida'."17 Atribuindo uma finalidade a um jogo que se rege pelo acaso ou pela necessidade, em todo caso, nunca pela teleologia, o professor da meta da existência "interpreta" ao máximo, já que a atribuição de fins é o mais alto grau da interpretação. O seu propósito é fazer com que a vida se torne "interessante" aos olhos dos alunos, e ele pensa conseguir isso atribuindo-lhe uma finalidade, instituindo uma razão na vida. E o que faz o sacerdote judeu. Afinal, o animal doente não tem como problema o próprio sofrimento, mas sim a falta de resposta à pergunta "para que sofrer?". "O homem, o animal mais corajoso e mais habituado ao sofrimento, não nega em si o sofrer, ele o deseja, ele o procura inclusive, desde que lhe seja mostrado um sentido, um para quê no sofrimento. A falta de sentido do sofrer, não o sofrer, era a maldição que até então se estendia sobre a humanidade." 1 8 A tarefa do sacerdote judeu foi responder a essa pergunta, atribuir um sentido ao sofrimento, uma meta à existência, uma teleologia ao acaso. E o meio do qual ele se serviu para obter esse resultado foi o "ideal ascético". Para onde aponta esse "ideal" e que uso o sacerdote faz dele?
17. Nietzsche, A gaia ciência, § 1, KSA, vol. 3, p. 371. 18. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 22, cit., p. 184.
150 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
V
Na Genealogia da moral, a oposição entre a aristocracia guerreira e a casta sacerdotal é comentada por Nietzsche através da distância entre vida e ascetismo. O sacerdote é alguém que parte da oposição entre o "puro" e o "impuro", procurando acentuá-la e espiritualizá-la: sua primeira marca registrada é a hostilidade em face da ação, seguida peia hostilidade aos sentidos e pela disciplina que fabrica uma "inferioridade" 1 9. É a oposição entre a vida guerreira e a vida ascética que está na origem das diferenças de apreciação existentes entre os nobres e os sacerdotes. Enquanto os juízos de valor da aristocracia guerreira são fundados na constituição do corpo, na saúde e em tudo o que implica atividade, elementos essenciais ao agon ho-mérico, os juízos de valor do sacerdote se baseiam na censura à atividade, no elogio à pureza, na "espirituali-zação" acarretada pela impotência de agir. Assim, já se pode suspeitar o que será o ideal ascético: antes de mais nada uma estratégia de desnaturalização, o que significará para Nietzsche, como sempre, uma negação da vontade. Tentemos elucidar o significado disso através de diversas figuras do ideal ascético.
A figura que mais interessa é, antes de tudo, o ascetismo do sacerdote enquanto modo de apreciação da vida. Qual é a valoração de nossa vida por parte dos sacerdotes ascéticos? Agora a nossa vida, com tudo aquilo que lhe pertence, como natureza, mundo e vir-a-ser, "é por eles colocada em relação com uma existência inteiramente outra, a qual exclui e à qual se opõe, a menos que se volte contra si mesma, que negue a si mesma: neste caso, o caso
19. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 6, cit., p. 27.
O SACERDOTE, O RESSENTIMENTO E O IDEAL ASCÉTICO 151
de uma vida ascética, a vida vale como uma ponte para essa outra existência" 2 0 . Assim descrito, o sacerdote só pode ser o campeão do ressentimento. Através dele se exprime um ressentimento sem exemplo, que através da negação quer dominar não algo na vida, mas a própria vida, as suas condições mais fundamentais. Agora, o que se busca com prazer é o dano voluntário, a mutilação, a mor-tificação, e é este ascetismo, preexistente no sacerdote judeu, que está na origem daquele cristianismo "hipocondríaco", com suas torturas e tormentos de consciência 2 1 . Por isso o cristianismo também será negativo diante da natureza, ele avaliará o natural como indigno e o hostilizará. É aqui que se enraíza a distância na avaliação das paixões entre a Antigüidade grega e o mundo judaico-cris-tão: enquanto a "aspiração ideal" dos gregos se dirigia às paixões, junto às quais eles se sentiam não apenas mais felizes, mas também mais puros e mais divinos, a "aspiração ideal" dos cristãos os leva a destruir as paixões, a vê-las como algo sujo e a decretar a sua total ausência no divino 2 2. E é esta mesma diluição das paixões, como meta a ser sempre perseguida, que se exprime, por exemplo, nas filosofias da arte. O ascetismo na arte prolonga aquela mesma ideologia, como em Kant, quando este define o Belo como o que agrada sem interesse, estabelecendo sempre a equivalência entre o passional, o patológico e o interessado.
Se o ascetismo é antes de mais nada uma desnatu-ralização, não é nem um pouco surpreendente que o sacerdote mantenha relações privilegiadas com o filósofo,
20. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 11, cit., p. 129. 21. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10[96], KSA, vol. 12, p. 510. 22. Nietzsche, A gaia ciência, § 139, KSA, vol. 3, p. 488.
152 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
a ponto de ambos se confundirem no leitmotiv comum da luta contra o natural, contra a sensualidade e a favor da espiritualização a qualquer custo. O rancor contra toda e qualquer atividade também estava presente na filosofia, e já era este rancor que Aristóteles alardeava na Ética a Nicômaco, ao apresentar a "vida contemplativa" como a forma mais elevada de existência. O "filósofo", enquanto desdobramento do "tipo eclesiástico", traz consigo a herança do sacerdote ascético, e este serviu, "até a época mais recente, como triste e repulsiva lagarta, única forma sob a qual a filosofia podia viver e rastejar" 2 3 . Vem daqui sua atitude negadora do mundo, sua hostilidade à vida, a descrença nos sentidos e o horror à sensualidade. Os filósofos vêem no ideal ascético um optimum das condições da mais alta espiritualidade, o personagem que todos eles devem representar, aquilo que garante a todos a "objetividade", a "contemplação desinteressada", a recusa das paixões e do perspectivismo.
Como compreender o asceta? Se ele parece um personagem autocontraditório, por desempenhar o papel de uma luta da vida contra a vida, para Nietzsche isso é pura aparência. Porque, bem medidas as coisas, na realidade "o ideal ascético nasce do instinto de cura e proteção de uma vida que degenera, a qual busca manter-se por todos os meios, e luta por sua existência" 2 4 . Ele indica uma fadiga de vida que os instintos mais profundos combatem, ele é um dos meios desse combate, uma astúcia de conservação da vida. O sacerdote ascético é o desejo encarnado de viver de outro modo, mas é exatamente a potência de seu desejo que o liga ao mundo, faz com que ele se torne o ins-
23. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 10, cit., p. 129. 24. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 13, cit., pp. 134-5.
O SACERDOTE, O RESSENTIMENTO E O IDEAL ASCÉTICO 153
trumento que trabalha para criar condições melhores para se viver no mundo. E é com essa potência que ele mantém ligado à vida todo o rebanho dos descontentes, malogrados, os sofredores de toda espécie, fazendo-se espontaneamente seu pastor e seu guia. Assim, esse aparente inimigo da vida é, na verdade, uma potência conservadora e afirmativa da vida. Mas da vida adoecida... O rebanho dos enfermos precisa de um enfermeiro que seja, ele mesmo, um doente; se o sacerdote é um médico, ele será um mau médico, aquele que combate a dor mas não as causas da dor, nunca o verdadeiro estado de doente. Mas nessa perspectiva de combater os efeitos e não as causas, a dor e não a doença, a imaginação do sacerdote será realmente admirável. Ele vai adocicar o sofrimento, oferecer consolos de todo tipo - e o cristianismo será uma mina inesgotável de consolos e estimulantes, de meios para lutar contra o sentimento de mal-estar. Nietzsche não deixa de recen-sear os meios dos quais o sacerdote se serve nessa missão de reconciliar os sofredores com a existência.
Em primeiro lugar existem os meios inocentes. Por exemplo, combater o mal-estar dominante com recursos que reduzam o sentimento de vida ao seu grau mais baixo: nenhum querer, nenhum desejo, nenhuma paixão, não amar nem odiar. Como resultado da terapia se tem a im-passibilidade, a renúncia a si, essa hipnose de uma tranqüilidade enfim conquistada, o sono profundo no qual a alma se desliga do corpo, a união mística, o sentimento do nada, logo, ausência de sofrimento - e agora os doentes só podem ver nisso um bem supremo 2 5 . Eis aí um primeiro treinamento contra a depressão. Existe outro, como o elogio e a promoção da atividade maquinai. Essa ativida-
25. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 17, cit., pp. 149-52.
154 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
de diminui o sofrimento e é por isso que se fala em "bênção do trabalho". O princípio dessa anestesia é afastar a atenção do sofredor de seu próprio sofrimento, ocupar sua consciência com uma atividade constante, de modo tal que sobre pouco espaço para o sofrimento. E a nossa sociedade "disciplinar" que promove o trabalho maquinai, com tudo aquilo que lhe é próprio: regularidade, obediência pontual e incondicional, um modo de vida inteiramente fixado, um tempo totalmente ocupado. Como conseqüência, tem-se a impessoalidade, o esquecimento de si imposto pela disciplina. Tudo isso - garante Nietzsche - o sacerdote soube utilizar muito bem em sua luta contra a dor. Para tanto, ele necessitava de muito pouco além da "pequena arte de mudar os nomes e rebatizar as coisas, para fazer com que vissem benefício e relativa felicidade em coisas até então odiadas" 2 6 . Mas a farmácia do sacerdote não se limita a esse repertório, existe ainda a prescrição da "pequena alegria", como um remédio muito apreciado contra a depressão. Essa "pequena alegria" é a alegria de causar alegria ao próximo, fazendo algum benefício, presenteando, aliviando, socorrendo ou consolando. Ao recomendar esse "amor ao próximo", o sacerdote prescreve uma estimulação moderada da vontade de potência. Essa felicidade de uma "pequena superioridade", sempre embutida em todo ato de ajuda ao próximo, é um bom meio de consolo dos fracos - donde a multiplicação das associações de beneficência mútua na Roma do começo do cristianismo. Com a "vontade de reciprocidade", a vontade de potência, minimamente estimulada, alcança nova figura na formação do rebanho, este santo remédio contra a depressão, já que ele desvia o
26. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 18, cit., p. 153.
O SACERDOTE, O RESSENTIMENTO E O IDEAL ASCÉTICO 155
olhar do doente de seu próprio desalento, de sua aversão a si. Por isso, todos os doentes "buscam instintivamente organizar-se em rebanho, na ânsia de livrar-se do surdo desprazer e do sentimento de fraqueza: o sacerdote ascético intui esse sentimento e o promove; onde há rebanho, é o instinto de fraqueza que o quis, e a sabedoria do sacerdote que o organizou" 2 7 .
O sacerdote ascético não é apenas esperto, ele é espertíssimo - e ainda não chegamos perto de seu estratagema fundamental. O recalque do sentimento de vida, a promoção da atividade maquinai e da pequena alegria no amor ao próximo são os meios ainda inocentes de sua luta contra o mal-estar. Mas o seu método principal não será nada inocente, visto que ele consistirá em uma certa utilização do ideal ascético como meio de um desregra-mento afetivo. O sacerdote fará com que a alma humana saia de sua prisão, escape como por encanto de seu mal-estar e desgosto, através de uma interpretação religiosa, uma justificação religiosa, um remédio que deixará o doente ainda mais doente. Se o homem pena pela falta de um sentido em seu sofrimento, pela ausência de resposta à pergunta "para que sofrer?", com o ideal ascético o sofrimento ganhava um sentido, o sacerdote se fazia professor da meta da existência, o sofrimento era interpretado segundo a perspectiva da culpa2*. Com a invenção do "pecado", todo sofrimento passa a ser visto como castigo por uma culpa, e se certamente essa "interpretação" trouxe um novo sofrimento, ainda mais nocivo à vida, pelo menos a porta se fechava ao mais extremo niilismo: o homem tinha um sentido, ele podia querer alguma coisa.
27. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 18, cit., p. 154. 28. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 28, cit., p. 184.
156 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
Para Nietzsche, o pecado é uma invenção judaica, herdada e exponenciada pelo cristianismo. Esse sentimento não existia na Antigüidade grega, em que a idéia de um Deus que só perdoa quem se arrepende seria recebida como cômica, ou como irritante, de qualquer forma como um sentimento de escravo, que supõe um Deus ávido por honra-rias, dado a vinganças apesar de todo-poderoso, sempre preocupado consigo, nunca com a própria humanidade. E o espírito judaico, para quem tudo o que é natural é em si mesmo indigno, que leva a proclamar que toda ação deve ser considerada apenas "do ponto de vista de suas conseqüências sobrenaturais, nunca das outras" 2 9 .
Para obter o resultado desejado, qual será a estratégia do sacerdote ascético? O seu método será mudar a direção do ressentimento. Se todo sofredor busca a causa de seu sofrimento, e particularmente uma causa viva e responsável, um culpável contra o qual se possa dirigir o ressentimento, o sacerdote lhe ensina que é ele mesmo o culpado de seu próprio sofrimento, e com isso a direção do ressentimento é mudada 3 0 . Com a introdução do pecado como interpretação dos fatos, como novo nome da má consciência, a dor é interpretada como castigo, a nova imagem do enfermo é a de pecador, e o sofrimento adquire "sentido" quando reportado a um mundo extranatural. O triunfo do ideal ascético, enquanto método de culpabilidade, é transformar a dor em desejo de dor, junto a um sofredor que é sempre culpado. E por isso o sacerdote ascético, apesar de representar uma contradição diante da vida, é um dos instrumentos de conservação da própria vida, já que ele consegue dar um sentido à existên-
29. Nietzsche, A gaia ciência, § 135, KSA, vol. 3, p. 487. 30. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 15, cit., p. 144.
O SACERDOTE, O RESSENTIMENTO E O IDEAL ASCÉTICO 157
cia escrava. Agora, garante Nietzsche, a vida não parece mais um joguete do acaso, ela tem um sentido, uma finalidade, uma "razão".
Para Nietzsche, o "filósofo", o "sacerdote" e o "es cravo" são personagens estritamente correlacionados, que colaboram entre si na constituição da idéia de "outro mundo", cada um colorindo uma de suas faces. O filósofo inventa um mundo da razão, onde a razão e as funções lógicas são adequadas, e daqui procede o "mundo verdade"; o homem religioso inventa um "mundo divino", e assim nasce o mundo desnaturalizado, contra a natureza; o homem moral simula um mundo do "livre-arbítrio", e daqui se origina o mundo bom, perfeito, justo 3 1 . Esses três mundos fictícios confluem em um único "outro mundo", eles são três maneiras convergentes de negar o mundo do vir-a-ser. O mundo-verdade, o filósofo e a razão; o mundo divino, o sacerdote e a virtude; o mundo moral, o escravo e a felicidade; são esses três mundos que se identificam na equação socrática entre razão, virtude e felicidade. Para Nietzsche, é essa tríplice aliança que forma a unidade constitutiva de nossa "civilização". O que significa reconhecer que a civilização ocidental é originalmente determinada pelo cristianismo, esta imensa conspiração contra o "tipo superior" de homem. Qual o valor dessa civilização? A Genealogia da moral, enquanto análise daquela tríplice aliança, traz os elementos básicos de uma crítica a nossa civilização. Se as morais e religiões são os principais meios para fazer do homem o que se quer, se a civilização é formação, a questão de fundo será sempre a de saber que tipo de homem nossa civilização produz através de seus ideais.
31. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[168], KSA, vol. 13, p. 350.
CAPÍTULO VII CRISTIANISMO E CIVILIZAÇÃO
I
Para compreender por que nossa civilização é um prolongamento natural do cristianismo, deve-se sempre levar em conta o princípio hermenêutico que norteia as análises de Nietzsche, e que ele enuncia em alguns fragmentos póstumos: é preciso identificar o ideal cristão mesmo ali onde se eliminou completamente a "forma dogmática" do cristianismo - como na música, no romantismo, na natureza de Rousseau ou no socialismo 1. É antes de tudo essa separação entre os ideais cristãos e a forma dogmática da religião que permitirá a Nietzsche reconhecer o cristianismo até mesmo entre seus supostos opositores, como naquele livre pensador que repudia a Igreja, mas não o seu veneno. O "cristianismo" que entra em cena a partir de agora é constituído por um conjunto de ideais civilizadores, um repertório de valores que se mantêm vivos, aquém ou além do dogma religioso. E o que mais interes-
1. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10[2], KSA, vol. 12, p. 453.
160 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
sa analisar são as "avaliações" cristãs, não os seus dogmas, os "ideais", não a seita. O objeto privilegiado da análise de Nietzsche serão as "idéias modernas", o repertório intelectual do século XLX, exatamente aquilo através do qual nossa civilização se opõe epidermicamente ao cristianismo para, secretamente, prolongá-lo. Aqui se desenha a rota de nossa "decadência" - o que nossos filósofos não podem perceber, visto que consideram de uma evidência "apodíctica" o valor dessa civilização. E existem várias maneiras de perseverar nessa miopia.
A primeira delas é a ideologia do "progresso", que terá na doutrina nietzschiana da "decadência" o seu evidente contratema. O progresso é uma das "idéias modernas", quer dizer, uma idéia falsa, mas uma idéia falsa bastante especial: através dela, é uma valoração tácita que se apresenta, em que sub-repticiamente já se dá por resolvido o problema da civilização, como se o que vem depois fosse necessariamente melhor do que veio antes, um otimismo temporal destituído de qualquer fundamento. E nada como o pensamento histórico do século XIX, esta metafísica do vir-a-ser ensinada pelos herdeiros do professor Pangloss, para colocar de escanteio tanto a questão do valor da civilização com aqueles temas que lhe são tão caros, como o da história enquanto superação dos erros, o do futuro como progresso, o homem "bom" prestes a ser realizado. São essas "evidências" que espontaneamente levam ao crédito incontestado da civilização, entenda-se, que proíbem que se formule em seus devidos termos o problema suscitado por ela. Donde o mau humor de Nietzsche com as filosofias do "melhoramento do homem", que sempre partem da "evidência" de que melhorar o homem é realizar os valores do universo escravo. E sem contar que a questão do melhoramento do homem sempre foi levanta-
CRISTIANISMO E CIVILIZAÇÃO 161
da por todos de maneira ingênua, como se por uma espécie de intuição estivéssemos acima da questão de saber por que se deve melhorar o homem, como se fosse de uma clareza meridiana que a "humanização" e a suavi-zação do europeu é de direito seu aperfeiçoamento 2. Essa é uma certeza grande o suficiente para que os sacerdotes - e os semi-sacerdotes, os filósofos -, em todos os tempos, chamem de "verdade" a uma doutrina cujo efeito educador parecia ser benéfico, uma doutrina que nos tornaria "melhores": o que nos faz bem deve ser bom, o que dá bons frutos deve ser verdadeiro, não há outro "critério da verdade".
E ninguém pense que essa valorização espontânea e acrítica da civilização seja monopólio das doutrinas do progresso indeterminado. Ela ressurge, sob outras formas, nas filosofias da história mais confessamente cristãs, aquelas que se pautam pela idéia de um acabamento do devir. Karl Lõwith aponta essa valorização em Hegel, quando este analisa a história3, e nas Considerações extemporâneas Nietzsche já protestava contra o hegelianismo, por conduzir a uma idolatria dos fatos 4 . Em vez de se contentar com uma memoração de "antiquário", o europeu quer hoje em dia uma consciência histórica que se revela como uma vontade de futuro. Nunca, como agora, os discursos dos chefes de Estado se fizeram acompanhar tanto da consciência de ser "históricos", quer dizer, são discursos dirigidos ao futuro, nos quais se admite que apenas os tempos futuros poderão apreciar corretamente o que se faz hoje. Espera-se sempre que o futuro conferirá aos fatos do
2. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10[124], KSA, vol. 12, p. 528. 3. Lõwith, K., De Hegel à Nietzsche, cit., pp. 265 ss. 4. Nietzsche, Considerações extemporâneas, II, § 8, Obras incomple
tas, cit., p. 68.
162 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
presente um direito histórico, uma justificação histórica, acredita-se mais do que nunca que a história é o tribunal que julga em última instância. De onde vem essa "evidência" a mais que o século XLX nos legou, segundo a qual o significado do presente só pode ser corretamente formulado pelo futuro? Ela se origina no modo como Hegel elaborava a noção de acontecimento histórico. Como ele procedia? Hegel media o curso da história pelo progresso temporal, do último elo ele deduzia os precedentes, pelo fato de levarem necessariamente àquele. Como observa Lõwith, orientar-se assim na sucessão temporal supõe que só vale na história aquilo que é rico em conseqüências, que a série dos acontecimentos históricos deve ser avaliada em razão do sucesso. Assim, o triunfo do cristianismo sobre o mundo antigo, sua expansão planetária e sua duração são uma prova inconteste de sua superioridade espiritual. E o sucesso é também uma medida constante da vida quotidiana, em que também se admite que o sucesso de algo prova o seu direito superior diante daquilo que não teve sucesso. A convicção do século XLX é a de que apenas o que tem sucesso tem o direito, a mesma "evidência" que está na origem do darwinismo, com sua seleção natural: as espécies que sobrevivem são por princípio as "melhores". Donde o a priori comum a Hegel e a Darwin: em qualquer um dos casos, caminha-se do sucesso de fato à sua necessidade presumida e ao direito profundo a esse sucesso. Em qualquer um dos casos, dirá Nietzsche, existe uma idolatria da força que se encontra vitoriosa, e afirmar que todo real é racional é apenas outra vertente dessa mesma legitimação do fato consumado. Inversamente, para o hegeliano, aquilo que escapou da memória histórica, estando anulado ou sendo infrutífero, torna-se uma "existência injustificada".
CRISTIANISMO E CIVILIZAÇÃO 163
É essa "certeza" que Nietzsche visa ao afirmar que o sucesso sempre foi o maior dos mentirosos. Quando se associa o sucesso ao valor e ao direito, simplesmente se sanciona a civilização dada, sem realmente avaliá-la. Tanto as doutrinas do progresso indeterminado quanto o hege-lianismo nem chegam a formular o problema. Mas haveria algo de surpreendente nisso? Ninguém coloca em questão seu próprio a priori, ninguém corta o galho em que está sentado. O professor do "sentido da história", qualquer que seja o matiz com que ele se apresenta, é um professor da meta da existência a mais, ele apenas prolonga a tradição inaugurada pelo sacerdote ascético, que é a de atribuir uma finalidade à gesta da humanidade. Desde então, não é grande surpresa se, para ele, a civilização for objeto de um culto espontâneo, nunca de uma tematização.
É essa mesma despreocupação com a civilização que Nietzsche denuncia em "nossos socialistas" que, com seu "otimismo econômico", sempre supõem que o crescimento da economia pode ser matriz de civilização. Gé-rard Lebrun analisa esse tema das heranças de civilização entre o socialismo e a sociedade que critica 5. Assim, Engels afirma que, com o advento do socialismo, a anarquia da produção social será substituída pela organização planificada consciente. Se admitirmos essa convicção, e também que a exploração da maioria será substituída pela igualdade entre os novos atores sociais, o que nos garante que a organização planificada da economia não irá apenas acentuar os traços da era mercantil? Para "nossos socialistas" parece uma evidência inquestionável que o crescimento econômico ininterrupto dará vazão ao má-
5. Lebrun, G., "Surhomme et homme total", in Manuscrito, vol. II, n? 1, Campinas, 1978, pp. 31-58.
164 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
ximo de cultura e de qualidade humana. É esse otimismo econômico que Marx exprime ao ligar a civilização à expansão constante e ao desenvolvimento contínuo do mercado mundial, visto que a base do mercado mundial contém a possibilidade do desenvolvimento universal do indivíduo. Donde a série de "evidências" que decorrem daqui: para Marx é "evidente" que o sistema de exploração geral da natureza e do homem desembocará na possibilidade de um aperfeiçoamento humano ilimitado; é "evidente" que a liberação de cada indivíduo em particular é comandada pela transformação da história em história mundial, visto que esta colocará esse indivíduo "em relações práticas com a produção do mundo inteiro, compreendida aí a produção intelectual"; enfim, é "evidente" que "a verdadeira riqueza intelectual do indivíduo depende inteiramente da riqueza de suas relações reais" 6 . Como observa Lebrun, aquilo que Nietzsche chama de "otimismo econômico", essa avaliação espontânea que consiste em privilegiar no absoluto o crescimento econômico e apresentá-lo como única matriz da civilização, é uma opção que aparece claramente nos elogios - de en-rubescer petistas - que Marx dirige à burguesia, esta "classe eminentemente revolucionária". Foi ela a primeira a demonstrar o que a atividade dos homens pode realizar; foi ela que calou as literaturas nacionais e locais em benefício de uma literatura universal; foi ela "que criou verdadeiramente a história mundial, na medida em que ela fez cada nação civilizada depender do mundo inteiro e, para a satisfação de suas necessidades, cada indivíduo dessa nação" 7 .
6. Marx, Uidéologie allemande, cit., p. 67. 7. Marx, Uidéologie allemande, cit., p. 89.
CRISTIANISMO E CIVIIIZAÇÂO 165
Mas, se é assim, nota Lebrun, é cabível perguntar de qual cultura o comércio universal era a condição automá- tica, e quem é esse "homem total" que só pode surgir no eixo do mercado mundial. É cabível perguntar que idéia
o marxismo faz da civilização, para que o reino da liber- dade, por ele prometido, só possa surgir no seio do modo de produção capitalista, de tal forma que por vezes o ad
vento do socialismo possa parecer uma simples correção de rumo, que será exigida mais cedo ou mais tarde pela
Revolução Industrial. E agora surgem alguns temas inquie- tantes. Como o elogio de Marx ao "zelo pelo trabalho im
posto pela severa disciplina do capital às gerações sucessivas", aquisição que ele não tem dúvidas em apresentar
como "o bem comum da nova humanidade". Ou o elogio de Lenine à disciplina da manufatura enquanto modo de
formação, tantas continuidades com nossa "sociedade disciplinar" que indicam o quanto o marxismo deixou de tematizar a relação de civilização entre o socialismo e o modo de produção que o precede. Não se nota qualquer
empenho em indicar pelo menos aquilo que se aceitará e aquilo que se recusará da herança, para que a subversão não seja mais que uma forma de continuidade da mes
ma civilização. Tanto mais que a revolução é apresentada como o fim dos bloqueios que impediam o desenvolvi- mento total das forças e da humanidade já dadas. Sendo
assim, se a liberação dos entraves do modo de produção à plena expansão das forças deixa intocada a questão do
"modo de vida" e da qualidade humana, é porque na ver- dade apenas se prolonga a mesma civilização.
Para Nietzsche, o que se prolonga é a civilização cristã, são os ideais cristãos. Afinal, subsiste sempre a ilusão
de ótica de procurar o valor do homem em sua aproxima- ção a um ser ideal. Mas essa fé, precisamente, é a conse-
166 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
qüência de uma enorme perversão trazida pelo cristianismo. Em primeiro lugar, acredita-se saber que é desejável a aproximação a um tipo ideal; em segundo lugar, acredita-se saber qual é esse tipo; em terceiro lugar, considera-se que todo desvio em relação a esse tipo é um retrocesso, uma perda de força e de potência. "Sonha-se com Estados nos quais este tipo de homem perfeito tenha a seu favor uma enorme maioria: não fizeram outra coisa nossos socialistas, nem os senhores utilitaristas. Com isso parece assinalar-se um fim à evolução humana: em todo caso, a fé em um progresso até o ideal é a única forma em que hoje se concebe o fim da história. Tn summa': colocou-se o 'reino de Deus' no futuro, na terra, no humano, mas no fundo conservou-se a fé no antigo ideal." 8 Por isso, os ataques de Nietzsche às "idéias modernas", como o socialismo ou a democracia, devem ser vistos como censuras a figuras do cristianismo despojadas de sua forma dogmática, últimas ressonâncias da vitória da moral de escravos que, depois de preponderar em Roma, deu um passo a mais com a Revolução Francesa. Pois são exatamente os cacoetes da moral de escravos que permanecem no ideário sociopolítico moderno: a virtude é sempre o sacrifício do indivíduo à sociedade, a moral só compreende como valor o que é útil ao rebanho, ela continua ensinando o indivíduo a só se atribuir valor em função do rebanho 9.
Assim, sob as oposições de superfície, Nietzsche sempre detectará a continuidade profunda entre as diferentes seitas. Democratas, anarquistas e socialistas antagonizam entre si? Apenas epidermicamente, já que, no fundo, todos rezam pela mesma cartilha, que é a moral de animal
8. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [226], KSA, vol. 13, p. 87. 9. Nietzsche, A gaia ciência, § 116, KSA, vol. 3, p. 474.
CRISTIANISMO E CIVILIZAÇÃO 167
de rebanho. É que o predomínio dessa moral na Europa, auxiliado por uma religião que adula as massas, fez com que ela passasse a exprimir-se até mesmo nas instituições políticas e sociais. Assim, o movimento democrático é o herdeiro do cristão. Os "cães anarquistas" aparentemente se opõem aos "pacífico-laboriosos democratas" e, mais ainda, aos broncos e "fanáticos de irmandade" que se denominam "socialistas"? Mas se os anarquistas se aborrecem, é apenas porque o movimento democrático lhes parece muito lento e sonolento para atingir a meta; e na verdade os três antagonistas convergem todos "na fundamental e instintiva hostilidade contra toda outra forma de sociedade que não a do rebanho autônomo"10. Por isso, não é nada surpreendente que existam tantos pontos de unanimidade entre os pretensos rivais: são todos unânimes na "tenaz resistência" a todo direito particular e privilégio; unânimes na desconfiança contra a justiça penal, sempre vista como uma violência contra os mais fracos; unânimes na compaixão e na crença no rebanho, em uma comunidade redentora. Por isso, o papel das instituições civis é proteger os medíocres contra as exceções; elas prolongam a tarefa do juízo moral como meio de debilitação dos poderosos. Quando o escravo quer dominar ele diz "tu deves", e agora a moral se traduz nas palavras de ordem "liberdade", "justiça", "igualdade", que para Nietzsche nada mais serão do que três formas de manifestação da vontade de potência do escravo.
Quem se libertou do "ilusionismo moral", garante Nietzsche, sabe que no primeiro grau de metamorfose da vontade de potência - naqueles que dela carecem - se pede "justiça" da parte dos que detêm o poder; no segundo grau
10. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 202, KSA, vol. 5, p. 125.
168 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
se quer "liberdade", quer dizer, se pede independência com respeito aos detentores do poder; no terceiro grau se fala em "igualdade de direitos", isto é, se deseja que, enquanto não se tenha conseguido o equilíbrio, se impeça os pretendentes de crescer em poder 1 1 . É nessa recusa do ilusionismo moral que se origina a crítica que Nietzsche dirigirá à noção de "direito individual" - como se houvesse direito fora de um contrato, como atributo estável e eterno dos indivíduos. Também nasce aqui a sua recusa do léxico da "injustiça social", esta mais recente manifestação do ressentimento. Foi no século XIX que nasceu esse "pessimismo por indignação", esse clamor contra a injustiça social, como se o fato de alguém nascer sob condições favoráveis ou com tais qualidades - bonito e inteligente - e outro sob condições desfavoráveis ou com outras qualidades - feioso e burrinho - fosse automaticamente uma "injustiça". Com essa atitude se procura julgar a história, despojá-la de sua fatalidade e torná-la responsável, culpável. Pois é exatamente disso que se trata: os decadentes precisam procurar culpados, os responsáveis pela sua própria existência. Esse responsável pode ser o próprio Deus - e não faltam, no mundo de hoje, esses "ateus por rancor". Ou então, o responsável é a ordem social, a educação, os aristocratas, os judeus, o que se quiser, desde que seja algo sobre o qual se possa exercer a vingança. O socialista apenas faz sua escolha no amplo cardápio dos cul-páveis; esse novo sacerdote ascético muda para a "sociedade" a direção do ressentimento. E se o socialista tem um crescente público de ouvintes, é porque seu ardil é recorrer ao instinto cristão. Pois foi o cristianismo que nos habituou ao conceito de "alma", que por natureza habita ou-
11. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10[66], KSA, vol. 12, p. 495.
CRISTIANISMO E CIVILIZAÇÃO 169
tros mundos e só casualmente vem à terra, sem que sua essência seja condicionada; e se nessas curtas viagens as relações sociais, de parentesco ou de história são "ocasiões" para as almas, em todo caso a alma nunca é obra de si mesma. E o que mais o cristianismo ensinou à modernidade? Nada mais, nada menos que "a 'igualdade das almas ante Deus'. Nela, encontramos o protótipo de todas as teorias da 'igualdade de direitos'; primeiro se ensinou à humanidade o princípio de igualdade de uma maneira religiosa, depois se construiu uma moral sobre essa idéia" 1 2 . Desde então, não é surpreendente se, sob a influência do cristianismo, as pessoas tenham terminado por levar a sério essa idéia, querendo torná-la efetiva através da prática política, democrática ou socialista, todas estas vertentes do "pessimismo por indignação". Nietzsche sempre insistirá nesta tese: a idéia de igualdade entre os homens, não tendo nenhum fundamento natural, é apenas uma "interpretação" metafísica, que remonta ao cristianismo e tem neste a sua única garantia. Por isso, a "Declaração dos Direitos do Homem", ao proclamar a liberdade e a igualdade, repousa inteiramente na idéia cristã de que todos os homens, sendo criaturas de Deus, nasceram iguais e não têm privilégios uns sobre os outros. É por esse caminho que a Revolução Francesa prolonga o cristianismo: agora a cidade de Deus sobre a terra torna-se contrato social, o cristianismo torna-se humanismo, a criatura de Deus torna-se homem natural, a liberdade devida a cada cristão torna-se liberdade cívica no Estado. Esta descendência cristã já se revela no primeiro princípio da Declaração, onde se afirma que os homens nascem livres e permanecem iguais em direitos, uma ruptura deliberada
12. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 15 [30], KSA, vol. 13, p. 422.
170 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
com a concepção política paga, que admite a existência natural de livres e escravos. E será exatamente em nome da natureza que Nietzsche criticará a "igualdade" entre os homens, enquanto a mais nefasta das "interpretações" cristãs, defendendo, contra essa "idéia moderna", a "hierarquia" e a justiça aristotélica.
Mas qual será o perfil do paraíso prometido pelos "livre pensadores" ou o rosto do "homem do futuro", tal como este é preparado no laboratório das idéias modernas? Se nossa civilização traduz sua tarefa formadora na "humanização", quer dizer, na promoção do homem bom, altruísta, virtuoso por servir ao todo, bonachão e igualita-rista, seu produto final será um "tipo" bem determinado. O resultado desta Bildung, garante Nietzsche, será "a de-generação geral do homem, até chegar àquilo que hoje aparece aos broncos e cabeças rasas do socialismo como seu 'homem do futuro', seu ideal! - essa degeneração e ape-quenamento do homem em completo animal-de-rebanho (ou, como eles dizem, em homem da 'sociedade livre'), essa animalização do homem em animal anão dos direitos e pretensões iguais..." 1 3 O diagnóstico é severo. Mas o que o legitima? Por um lado, que nossa civilização promova e intensifique a formação do animal de rebanho, isso é algo que já se podia inferir das tarefas do "professor da meta da existência", cuja pedagogia era destinada a proteger e garantir o "interesse da espécie" - e a própria moralidade era apresentada por Nietzsche como "o instinto gregário junto ao indivíduo" 1 4. Por isso, não é nenhuma surpresa que as doutrinas da destinação do homem, do
13. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 203, Obras incompletas, cit., p. 283.
14. Nietzsche, A gaia ciência, §§ 1 e 116, KSA, vol. 3, pp. 372-475.
CRISTIANISMO E CIVILIZAÇÃO 171
idealismo alemão a Marx, insistam em que a finalidade do homem só pode realizar-se em uma gregarização, em uma inserção perfeita do indivíduo no gênero. Mas por que, exatamente, essa promoção do animal de rebanho é descrita por Nietzsche com a linguagem da "degeneração"?
II
É bem verdade que, na expressão "animal de rebanho", Nietzsche visa atacar o igualitarismo, o elogio à supressão das particularidades e à perfeita absorção do indivíduo naquele "ser genérico" que povoa o imaginário socialista. E sabe-se que o enfraquecimento e a supressão do indivíduo está entre as últimas "ressonâncias" do cristianismo na moral 1 5 . Essa "correnteza moral básica" de nossa época é expressamente censurada por Nietzsche. Exigir que o ego se renegue? Desde as Considerações extemporâneas ele protestava contra o culto democrático da espécie. E, pior ainda que o culto da espécie, a ladainha secular contra o egoísmo, em benefício dos instintos gregários do homem, terminou por fazer mal a esse sentimento, principalmente por tê-lo despojado de sua boa consciência, orde-nando-lhe que buscasse, em si mesmo, a verdadeira fonte de todos os males 1 6 . Mas para Nietzsche o egoísmo é parte integrante da alma aristocrática, que o aceita sem problemas e acha natural precisar que outros lhe sejam submetidos e se sacrifiquem por ela 1 7 . Mas isso, por si só, permite falar em "degenerescência"? Essa primeira aproximação ainda não nos ensina nada sobre as razões da
15. Nietzsche, Aurora, § 132, Obras incompletas, cit., pp. 172-3. 16. Nietzsche, A gaia ciência, § 328, KSA, vol. 3, p. 555. 17. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 265, KSA vol. 5, p. 219.
172 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
crítica ao rebanho e ao igualitarismo que lhe é congênito. Pior ainda, assim apresentada a questão parece reduzir-se a um torneio esportivo entre "senhores" e "escravos", em que o espectador Nietzsche torce pelo primeiro time, infelizmente notório perdedor de campeonatos.
Mas em outra série de textos, Nietzsche vai apresentar a idéia de que o indivíduo se propõe o benefício da espécie, às custas de seu próprio sacrifício, como sendo uma pura "aparência" 1 8 . Na verdade, ninguém contribui efetivamente para o interesse da espécie, cada um sempre contribui para o mais alto interesse do próprio indivíduo, sua mais alta expressão de potência. E tudo se passa agora como se Nietzsche subvertesse a doutrina kantiana da "insociável sociabilidade", aquela teoria segundo a qual cada um, perseguindo o seu interesse pessoal, termina por realizar os fins do "todo". Não, dirá Nietzsche. O fim do todo é apenas aparente, só são efetivos os interesses individuais - e com este gesto todas as figuras da "astúcia da razão" estarão expressamente interditadas. Era esse movimento, como se viu, que já se esboçava na análise que Nietzsche fazia do altruísmo: o elogio do altruísmo nunca é feito em nome do universal, é sempre o interesse individual do beneficiário que discorre sobre a utilidade do "desinteresse" de um vizinho tolo 1 9 . Mas isso significaria que Nietzsche, protestando contra o enfraquecimento e supressão do ego, estaria fazendo a defesa do "individualismo", tal como este se constituiu historicamente? Não. Sobretudo, não. E este ponto é importante para se circunscrever corretamente o ponto de incidência de sua crítica às idéias modernas.
18. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 7[9], KSA, vol. 12, p. 294. 19. Nietzsche, A gaia ciência, § 21, KSA, vol. 3, p. 391.
CRISTIANISMO E CIVILIZAÇÃO 173
Quando Nietzsche afirma que seu projeto é "distanciar-se de sua própria época", isso significa situar-se "fora destes dois movimentos, da moral individual e da coleti-vista, porque tampouco a primeira conhece a hierarquia e quer dar a todos a mesma liberdade" 2 0 . Assim, a crítica ao socialista, siderado pelo "ser-genérico" do homem, herdeiro do movimento cristão e promotor do enfraquecimento e da supressão do indivíduo, longe de preparar uma defesa do "individualismo", parece terminar, de maneira à primeira vista surpreendente, por apresentar esses dois antagonistas como extremos de um mesmo contínuo. Como compreender e compatibilizar essas duas séries de textos, em que uma lamenta o enfraquecimento do indivíduo, enquanto a outra apresenta o individualismo como tão severamente criticável quanto o seu oponente? Há aqui uma aporia. E de sua solução depende o sentido que se vai atribuir à crítica nietzschiana de nossa civilização. Se a depreciação cristã do ego é censurada, não é para fazer a apologia de seu oposto temático. Se tanto a moral coletivista quanto a moral individualista são criticáveis, é porque o essencial da expressão "animal de rebanho" está aquém ou além dessas duas opções interpretativas. Em outras palavras, por detrás da censura à civilização, enquanto enfraquecedora do ego, é preciso procurar um sentido que não é imediatamente dado através da simples oposição entre o indivíduo e o ser genérico, o particular e o universal, e que deve ter nessa oposição apenas o seu primeiro estágio. Mas então, reformulemos a questão de que partimos: em que, exatamente, nossa civilização está sendo censurada, quando se recrimina sua promoção do enfraquecimento do indivíduo, sendo que este pito não
20. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 7[6], KSA, vol. 12, p. 273.
174 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
deve significar, de forma alguma, qualquer entusiástica adesão ao "individualismo"? Para começar a responder a essa pergunta, vale a pena prestar atenção aos textos em que Nietzsche analisa o "individualismo", esta outra ideologia do século XIX.
O "individualismo", diz Nietzsche, "é uma forma modesta e ainda inconsciente da 'vontade de potência'; aqui, ao indivíduo já lhe parece suficiente o desembaraçar-se de uma predominância da sociedade (seja do Estado, seja da Igreja). Ele se põe em contraste não como pessoa, mas apenas como particular; ele representa todos os particulares contra a coletividade" 2 1. Este indivíduo que se apresenta como o "particular" é aquele indivíduo pré-político que as doutrinas liberais querem, a todo custo, salvaguardar do Estado, que sempre ameaça invadir a esfera de sua particularidade e dissolvê-la. A querela ideológica do século XLX pauta-se pela tensão entre estes dois extremos: ou a supressão completa da particularidade do indivíduo, com a sua absorção no "ser genérico", como pregam "nossos socialistas", ou a preservação e a autonomia do indivíduo privado diante do "social", como preconizam os liberais. As seitas solucionam, à sua maneira, a oposição que Rousseau formulara entre o indivíduo e o cidadão, o particular e o universal, cada uma escolhendo um dos lados da "tragédia" rousseauísta. Para onde Nietzsche aponta, ao distanciar-se dos dois lados da contenda? Para responder a essa pergunta, vale a pena observar o detalhe desta dupla recusa do "coletivismo" e do "individualismo".
Em que sentido, precisamente, morais e ideais políticos promovem o enfraquecimento e até mesmo a su-
21. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10[82], KSA, vol. 12, p. 502.
CRISTIANISMO E CIVILIZAÇÃO 175
pressão do indivíduo? A moral promove esse enfraquecimento por meio da "desrazão da virtude, graças à qual o indivíduo se deixa tratar em função do conjunto" 2 2 . E já em Aurora era através desse mecanismo de transformação do indivíduo em uma função do todo social que se traduzia, na prática, a última ressonância do cristianismo na moral. O que se propala com insistência cada vez maior, diz Nietzsche, é a necessidade de "adaptar o indivíduo às necessidades gerais e que a felicidade e ao mesmo tempo o sacrifício do indivíduo consistem em sentir-se como um membro e instrumento útil do todo" 2 3 . E desde Humano, demasiado humano Nietzsche já apresentava o socialismo como um herdeiro do despotismo, que ele até mesmo superaria, por aspirar ao aniquilamento formal do indivíduo, visto pelo socialista como um "injustificado luxo da natureza" que deveria, por isso mesmo, ser "transformado e melhorado por ele em um órgão da comunidade adequado a seus f ins" 2 4 . Essa linguagem organicista, sabe-se, já era aquela de Rousseau ao apresentar a cidade oriunda do seu contrato social. Mas, se o modo fundamental de superação do ego é a transformação do indivíduo em membro de um organismo, em um órgão da comunidade adequado aos seus fins, como entender que o "individualismo" possa ser apresentado por Nietzsche como outro membro dessa mesma família ideológica? Afinal, historicamente o "individualismo" foi a recusa sistemática em aceitar essa transformação radical do indivíduo em membro do todo, do indivíduo em cidadão, para voltarmos ao jargão de Rousseau. Ou então, reformulemos
22. Nietzsche, A gaia ciência, § 21, KSA, vol. 3, p. 392. 23. Nietzsche, Aurora, § 132, Obras incompletas, cit., p. 172. 24. Nietzsche, Humano, demasiado humano, I, § 473, Obras incom
pletas, cit., p. 115.
176 NIETZSCHE: CMLIZAÇÃO E CULTURA
a questão e perguntemos em que, aos olhos de Nietzsche, o "individualismo" pode ser superficialmente antagônico mas profundamente cúmplice de seu oposto "coletivista", duas vertentes de uma mesma estratégia, extremos de um mesmo contínuo, opositores que perseguem sempre o mesmo ideal civilizador. E com isso talvez possamos indicar por que, para Nietzsche, nossa civilização é censurável e "decadente" para aquém de suas querelas de superfície, como esta que opõe liberais a socialistas.
Afinal, o que pensar do "individualismo"? Em alguns fragmentos póstumos da época de A gaia ciência, Nietzsche dirá que seu progresso sobre a barbárie consiste em ter renunciado à crença na responsabilidade absoluta do indivíduo e em acreditar na "inadmissibilidade do individual" 2 5 . O que isso significa? Antes de tudo, que o "indivíduo" do individualismo, decodificado por este como uma instância pré ou extra-social, é na verdade uma ficção produzida pela própria sociedade, ficção à qual se deu autonomia graças à idéia, bastante absurda, de que a sociedade surgiu do contrato, e não da conquista. "A sociedade educa primeiro os indivíduos, os reforma como indivíduo médio ou total, ela não se forma de indivíduos isolados, nem por contratos entre eles. Somente como ponto nuclear é necessário, no topo, um indivíduo. Por conseguinte, o Estado originariamente não oprime o indivíduo, porque este não existe." 2 6 E o libertário individualista que parte da idéia ingênua de pessoa privada, como uma unidade pré-constituída e atômica, tal como esta foi sedimentada em nosso imaginário pelo contratualismo, e desde então sente-se à vontade para forjar, através dela, uma
25. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [182], KSA, vol. 9, p. 509. 26. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [182], KSA, vol. 9, p. 509.
CRISTIANISMO E CIVILIZAÇÃO 177
oposição de princípio entre o indivíduo e os poderes sociais, sem se dar conta de que esse indivíduo foi produzido e construído pela própria sociedade, e por isso mesmo não pode ser, de forma alguma, seu oposto ou rival -outro tema nietzschiano que, como se sabe, Michel Fou-cault retomará e prolongará. É aqui que se enraíza uma tese provocadora de Nietzsche: o homem ainda não é realmente um indivíduo, um ego, o egoísmo ainda é infinitamente débil, o "indivíduo" do individualismo, a pessoa privada, ainda é um ego que se desenvolve apenas graças aos sentimentos que formam o "animal de rebanho". Donde as afirmações de Nietzsche que, aparentemente, diluem sua crítica ao cristianismo, enquanto este seria um aniquilador do indivíduo: descobrir o erro do ego, ver o egoísmo como um engano, não significa de forma alguma compreender o "altruísmo" como seu real opositor, já que o altruísmo representa somente o amor a outros supostos indivíduos. Assim, o que se recusa, na verdade, é tanto o universalismo quanto o individualismo. Pois se com a degradação moral do ego a ciência da natureza promove uma superestimação da espécie, é preciso reconhecer que "a espécie é coisa tão ilusória quanto o ego: se fez uma falsa distinção" 2 7. Se a crítica ao universal parecia preparar um desenlace nominalista, isso era pura ilusão: o "indivíduo" do nominalismo também será recusado por Nietzsche.
Essa recusa do indivíduo se enraíza nas premissas primeiras da doutrina nietzschiana. Se para ele existe um "dogmatismo equivocado" em relação ao ego é porque este, tomado em sentido atomista, é um falso contrário do "não-eu"; afinal, este ego está tão divorciado do vir-a-ser quanto a coisa, ele é uma coisa entre as coisas, uma subs-
27. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10 [136], KSA, vol. 12, p. 533.
178 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO £ CULTURA
tância imune ao tempo e ao devir, e por isso não é de espantar que ele possa se apresentar com roupagem religiosa, como o objeto da crença na imortalidade individual 2 8. O indivíduo do "individualismo" é, antes de tudo, a seqüela ontológica da separação entre ego e vir-a-ser, ele é apenas um capítulo a mais na história das ficções subs-tancialistas. É essa ficção do ego que, uma vez consolidada, vai se alojar na base do discurso ideológico, como aquela pessoa privada que se opõe aos poderes sociais. Por isso o resultado da crítica de Nietzsche, enquanto ela se dirige tanto ao universal quanto ao particular, terá como resultado a recusa dos dois termos da oposição rous-seauista entre o indivíduo e o cidadão. Assim apresentada, a posição de Nietzsche parece não ter rosto definido, e o seu leitor não apreende imediatamente onde ele pretende chegar. Pode-se apenas suspeitar que, se ainda houver ali lugar para um "indivíduo", este será apenas o homônimo da pessoa privada de democratas e liberais, um "indivíduo" que sempre se deve pensar e escrever entre aspas, livre de todo substancialismo e só assim aclimata-vel a uma filosofia do vir-a-ser. Mas ainda não se sabe por que caracterizar a civilização cristã, enquanto ela promove estes dois valores opostos que são o indivíduo e o cidadão, como produtora da "decadência". Também não se sabe muito bem qual é a unidade dessa civilização, o que há de comum a esses temas aparentemente opostos, a supressão do indivíduo e a defesa da pessoa privada. Mas talvez se possa começar a atalhar a questão por este último ponto.
O que eu "terminei por compreender" - garante Nietzsche - foi que os dois traços característicos dos "europeus modernos", o individualista e aquele que consiste
28. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10[57], KSA, vol. 12, p. 485.
CRISTIANISMO E CIVILIZAÇÃO 179
em reclamar a igualdade dos direitos, são apenas "aparentemente" opostos. Ambos confluem em um comum "igualitarismo", todas as morais "ignoram o que é uma 'hierarquia' entre os homens" 2 9 . E, se é assim, este ponto comum pode nos ensinar algo sobre esses supostos anta-gonistas, por exemplo, que eles são, na verdade, dois ramos de uma mesma árvore chamada "cristianismo". São os motivos cristãos que se prolongam nos motivos sociais e políticos. Assim, é o tema cristão do aniquilamento do ego, da equalização depois da queda, que se prolonga no motivo político da supressão da individualidade na vontade geral, da perfeita integração ao todo como membro de um organismo, socialização absoluta que infelizmente fracassará para um homem pensado sob o signo da queda. Como também é o tema cristão da igualdade on-tológica de todas as almas diante de Deus que se prolonga no ideário dos indivíduos naturais e iguais do primeiro Discurso, aqueles que eram naturalmente bons mas foram corrompidos pelas instituições, que introduziram a desigualdade, o que a integração no todo social autêntico virá ao menos corrigir, reencontrando um Ersatz daquele estado originário de equilíbrio, hoje infelizmente perdido.
Assim, aqueles dois personagens que Rousseau opunha - o indivíduo e o cidadão - na verdade são falsos an-tagonistas, são cúmplices profundos. Eles são as duas faces de uma mesma moeda, o homem cristão antes e depois da queda, interpretado ora como indivíduo natural e pré-político, ora como o cidadão da Polis moderna. Estas são as duas faces de uma mesma antropologia, e por isso a crítica nietzschiana atira para os dois lados. Desde então, a questão de saber o que, no final das contas, nossos ideais civilizadores promovem é idêntica àquela de reco-
29. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 40[26], KSA, vol. 11, p. 642.
180 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
nhecer quem é esse "homem" do cristianismo, o produto daquela antropologia idealizada pelo sacerdote. E se esse homem é apresentado como imagem de Deus, é antes de tudo naquilo que é o Deus segundo os cristãos que encontraremos o texto princeps de sua antropologia, o original de onde se copiam os traços daquele homem do "humanismo". Nossa civilização será a promotora do humanismo que, para Nietzsche, é a antropologia cristã por excelência. Por isso, a "morte de Deus" só estará completa com a "morte do homem" - e quando Nietzsche afirma que "o homem deve ser superado" 3 0, esta proposição só ganha sentido no horizonte desta convicção de que o "humanismo" é uma antropologia essencialmente cristã.
Mas então quem é este personagem, o "Deus cristão"? "O conceito cristão de Deus - diz Nietzsche - o Deus entendido como um Deus dos enfermos, como aranha, como espírito - c um dos conceitos mais corrompidos da divindade que se inventou sobre a terra; talvez represente o nível mais baixo na evolução descendente do tipo dos deuses. Deus, degenerado até ser a contradição da vida, em vez de ser sua glorificação e sua eterna afirmação. A hostilidade declarada à vida, à Natureza, à vontade de viver, no conceito de Deus." 3 1 E, se é assim, o cristianismo, ao forjar o seu conceito de Deus como sendo o opositor da natureza, fará com que o "natural" torne-se sinônimo de reprovável - precisamente o que não ocorria com os deuses gregos, que eram inteiramente passionais, ao contrário deste "puro espírito" imaginado pelos cristãos. O Deus cristão será, antes de tudo, o resultado de uma seleção arbitrária de instintos, e é este princípio de seleção que preocupa Nietzsche; as morais, coerentes com o Deus que as
30. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 24[16], KSA, vol. 10, p. 653. 31. Nietzsche, O Anticristo, § 18, KSA, vol. 6, p. 185.
CRISTIANISMO E CIVILIZAÇÃO 181
sustenta, também serão condenações dos instintos de vida; e o homem, imagem de seu Criador, será concebido segundo os mesmos princípios seletivos. O homem "bom" também será o produto de uma abstração, e a condenação de Nietzsche dirige-se, antes de tudo, a essa abstração que estabelece distinções, privilegia uma parte e infiexiona o homem cristão na direção de um animal parcial: a desna-turalização de Deus só poderá se traduzir na desnatura-lização do homem. Enquanto para todos os homens que "permaneceram próximos da Natureza", o amor e o ódio, a gratidão e a vingança, a bondade e a cólera, a ação afirmativa e a ação negativa são "inseparáveis", visto que só se'é bom "sob a condição de que também se saiba ser mau", só se é mau "porque de outra maneira não se poderia ser bom", a desnaturalização, a invenção do homem "bom", se traduz nesse estado mórbido que recusa a dupla tendência e ensina, como virtude suprema, possuir apenas um meio valor. E a isso que se chama de "huma-nização": a amputação dos instintos que permitem ao homem impor dano, ter cólera, exigir vingança 3 2. O ideal de homem "bom", tal como ele é desenhado pelo cristianismo, é aquele em que os instintos valorizados dominam de maneira absoluta. Essa idéia é fundamental: o homem cristão exige uma vitória definitiva dos instintos valorizados sobre os demais, o que supõe o fim de toda resistência feita pelos instintos opostos. A "doença" é exatamente o fim dessa resistência. E como a "resistência" é algo constitutivo da "vontade de potência", é a esta difícil noção da doutrina nietzschiana que se precisa dirigir a atenção para perceber qual é, afinal, o trabalho de toupeira de nossa "civilização".
32. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 15[133], KSA, vol. 13, p. 471.
CAPÍTULO VIII VONTADE DE POTÊNCIA
I
O conceito de "vontade de potência" é bastante complexo e, por isso mesmo, induz facilmente o leitor de
Nietzsche a descaminhos. Antes de tudo, guardemo-nos do erro capital - no mesmo sentido de que existem "pe
cados" capitais - de interpretar essa noção segundo os hábitos intelectuais que herdamos do mainstream da filo- sofia. Pois a primeira dificuldade desse conceito está exa
tamente no seu contraste diante da compreensão tradicional daquilo que é a "vontade", uma compreensão tão
enraizada que temos dificuldade até mesmo em imagi- nar qualquer noção de vontade que seja exclusiva desse
ideário tradicional. Porque de fato o que é, tradicionalmente, a "vontade"? O leitor de Descartes, por exemplo,
vai vê-la entrar em cena, ali nas Meditações, como algo bem determinado. Trata-se de um conceito cuja extensão é an
tropológica e teológica, pois ele denota um dos poderes presentes nos homens e em Deus, sendo até mesmo o ponto de semelhança máxima entre o Criador e as criatu-
\
184 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
ras. Sendo um dos modos da substância pensante, a vontade é uma "faculdade", um atributo exclusivo da inteligência humana ou divina, nunca um atributo da natureza. O lugar da vontade enquanto faculdade é imediatamente dado pela oposição entre res cogitam e res extensa: enquanto modo da substância pensante, ela é uma faculdade da inteligência, finita ou infinita. Essa maneira de compreender a vontade é tradicional o suficiente para seduzir-nos espontaneamente: a vontade é um poder, uma faculdade, e uma faculdade dos seres pensantes.
Primeiro dépaysement que Nietzsche impõe ao seu leitor: a vontade como uma faculdade? Não. Antes de tudo ela não é uma faculdade. Nietzsche caracteriza essa doutrina tradicional como uma falsificação funesta da vontade, feita por toda psicologia até hoje. Nessa concepção, diz Nietzsche, a vontade é vista como algo que atua e que movimenta, ela é vista como causa e é pensada como um poder entre outros poderes. Esse conceito de vontade orienta-se segundo o modelo da razão filosofante, que sempre explicita uma atividade como sendo a ação de um ator, e de um ator que persegue uma meta, em vez de apreender ofazer-algo como o próprio fazer. Nietzsche vai se esforçar para libertar o conceito de vontade dessa coisi-ficação falsificadora, procurando determiná-lo para aquém dos esquemas da razão instituída. Primeira dificuldade para o leitor de Nietzsche: o que designa essa vontade que não é mais uma faculdade? Essa dificuldade entrelaça-se a outra que lhe é correlata. Se para Descartes a vontade é uma faculdade, ela designa um poder presente na esfera dos seres pensantes, não na natureza em geral. Ao recusar que a vontade seja uma faculdade, Nietzsche vai negar também que ela seja um conceito exclusivamente antropológico ou teológico. Não: o domínio de aplica-
VONTADE DE POTÊNCIA 185
ção do conceito de vontade vai se libertar dessas regionalizações abruptas. A partir de agora, a vontade de potência passará a determinar a realidade em geral; ela designará, pura e simplesmente, o "mundo". Como Nietzsche o atesta em alguns fragmentos póstumos: "E sabeis sequer o que é para mim 'o mundo'? Devo mostrá-lo a vós em meu espelho? Este mundo: uma monstruosidade de força, sem início, sem fim, uma firme, brônzea grandeza de força, que não se torna maior, nem menor, que não se consome, mas apenas se transmuda... quereis um nome para esse mundo? Uma solução para todos os seus enigmas? Uma luz também para vós, vós, os mais escondidos, os mais fortes, os mais intrépidos, os mais da meia-noite? - Esse mundo é a vontade de potência, e nada além disso! E também vós próprios sois essa vontade de potência - e nada além disso!" 1 Sendo assim, doravante a "vontade" passa a ser uma determinação que deve recobrir a totalidade da realidade, para aquém das oposições tradicionais entre alma e corpo, res cogitans e res extensa, homem e mundo. Segundo embaraço para quem lê Nietzsche a partir do ideário tradicional: como determinar a totalidade do real através do conceito de "vontade"?
Digamos, em uma primeira aproximação, que essa recusa em ilhar a "vontade" no âmbito dos sujeitos pensantes é, pelo menos, coerente com o projeto geral de elaborar uma filosofia que promova a naturalização integral da existência. De fato, como regionalizar conceitos, tal qual Descartes o fazia, sem com isso estabelecer uma distinção ontológica entre o mundo natural e o mundo humano? A separação entre natureza em geral e natureza humana, entre predicados naturais e predicados humanos, já é tes-
1. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 38[12], KSA, vol. 11, p. 610.
186 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
temunho de "humanismo", já é seqüela do cristianismo. E eu rio - dirá Nietzsche - quando vejo a expressão "homem e mundo", separados pela ridícula pretensão da palavrinha " e " . A oposição cartesiana entre res cogitans e res extensa era apenas uma instância a mais dessa ridícula pretensão da palavrinha " e " . Construir o conceito de vontade sobre essa separação, apresentando-a como um atributo exclusivo das substâncias pensantes, já é desnaturalizar o suficiente a existência. Sendo assim, quando se recusa o cristianismo - esta matriz primeira da desnatu-ralização - não é surpreendente que a vontade passe a designar algo presente na totalidade da realidade, e não apenas nos seres pensantes.
Louvemos a coerência da doutrina. Mas concedamos também, ao leitor de Nietzsche, o seu direito de relembrar-nos que existem loucuras coerentes... A totalidade da realidade determinada através do conceito de vontade? O "mundo" descrito como sendo essencialmente um querer? O leitor de boa vontade pode até aceitar que nós mesmos somos "vontade de potência, e nada além disso". Mas admitir que o "mundo" é vontade de potência, e nada além disso, é algo que parece exigir boa vontade além do tolerável. Agora, não há como evitar que venha à memória a observação que Descartes dirigia contra os físicos que admitiam a "atração" entre os corpos: para que um corpo possa atrair outro é preciso que ele saiba, pelo menos, onde encontrá-lo. A tese de que "o mundo" é vontade de potência parece testemunhar apenas um ani-mismo tacanho, um ridículo antropomorfismo: afirmando que tudo é querer, atribui-se às coisas predicados exclusivamente humanos.
Mas, pensando melhor, essa impressão do "bom senso" pode muito bem exprimir a sua inserção nos marcos
VONTADE DE POTÊNCIA 187
2. Descartes, Les príncipes de la philosophie, I, art. 53, Oeuvres et Lettres, Paris, NKF, 1953, p. 595.
tradicionais da filosofia. A sua estranheza nasce exata- mente da "evidência" segundo a qual a vontade é uma "faculdade", e uma faculdade humana ou divina. Essa estranheza poderá começar a desaparecer, quando se le
var realmente a sério que essa "vontade" não é mais uma faculdade. Fazendo isso, pode-se começar a perceber que esta "vontade" é apenas homônima daquela noção psi
cológica de vontade como "faculdade", e por isso não im- plica mais nenhum animismo, nenhum antropomorfismo. Afinal, a "vontade" que está fazendo sua aparição aqui não tem mais muito a ver com a velha vontade-faculdade
dos psicólogos e dos filósofos. Pois o que levava o leitor de "bom senso" a recordar a objeção de Descartes à doutri- na da atração entre os corpos, senão a sua prisão à noção
clássica da vontade como faculdade? O que podia seduzir o objetor de Nietzsche na censura cartesiana era essa
idéia de que um corpo precisaria representar o outro como meta consciente de sua ação, e meta distinta dessa própria
ação. É exatamente esta separação entre a ação e o seu fim conscientemente representado que está na origem do conceito de vontade enquanto "faculdade". É essa distin
ção que se exprime na diferença que Descartes instituía entre a essência e os modos da substância. Se o pensa-
mento é a essência da alma, enquanto a vontade é apenas um de seus modos, é porque o ato de querer pressupõe
o ato de representar. Assim, o pensamento não precisa da vontade, enquanto a vontade precisa do pensamento 2 . Mas é só com este pressuposto da vontade como faculda- de que a tese de Nietzsche parecerá antropomórfica, só
assim afirmar que o mundo é vontade de potência soará
188 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
como um escândalo. Se levarmos a sério a tese de que a vontade de potência, tal como Nietzsche a concebe, não é uma faculdade - tese estritamente solidária à afirmação de que o mundo é vontade de potência -, agora o escândalo se desfaz.
Pois afirmar que a vontade de potência não é uma faculdade significa recusar-se, antes de tudo, a decodificar a vontade a partir da "razão" forjada pelos filósofos. É deixar de apreender a vontade como a ação de um ator que persegue uma meta representada, é apreender o fa-zer-algo como o próprio fazer, sem separar a ação dos fins da ação. Agora, a vontade não designa mais nenhuma faculdade, e o "querer" será o nome com o qual se designará algo que não atua mais, não move o que lhe seria exterior. A meta não é mais exterior à ação, não existe um sujeito que quer algo, mas a vontade é sempre um querer algo, em que não se deve separar a meta do próprio ato de querer. Assim, se a vontade não é mais uma faculdade, é todo e qualquer contexto antropomórfico que se esvai, dando lugar à idéia de uma ação que não pode mais ser comentada segundo o léxico da finalidade consciente. Por isso, na expressão "vontade de potência", não se dá um novo conteúdo à velha vontade, como se Nietzsche se limitasse a trocar os personagens de uma antiga trama, atribuindo outro fim à vontade. Como se os clássicos dissessem que a meta da vontade fosse a felicidade, ou os bens, ou a verdade e Nietzsche apenas enriquecesse o cardápio dos fins da vontade com outro prato - a "potência" -, novo fim atribuído à vontade que viria disputar, com os outros fins possíveis, o paladar do distinto público. Na expressão "vontade de potência" não é nomeado um novo conteúdo da vontade, um novo fim consciente que ela perseguiria, mas, ao contrário, começa-se
VONTADE DE POTÊNCIA 189
a determinar, de um modo novo, o que é a vontade em sua essência. Não se trata mais de atribuir diferentes fins à vontade, diferentes conteúdos representados, mas sim de se perguntar por que, em geral, se quer, por que fins determinados da vontade precisam ser postos, e por que a totalidade da vida só pode ser explicitada quando o seu processo é compreendido como um percurso de permanentes posições de vontade, que são diferentes configurações de um único querer fundamental - a vontade de potência. Apenas em suas configurações secundárias essa vontade apresenta fins, surge como um querer algo como a verdade, os bens, a felicidade. Potência não designará, assim, um conteúdo determinado chamado de "potência", mas a configuração formal de qualquer posição do querer. A vontade de potência descreve a estrutura "formal" de toda e qualquer posição do querer, na qual a vida se desenvolve. Assim, com o conceito de "vontade de potên-
• cia", não se quer dizer que a vontade se dirija à potência como ao seu "fim", segundo o velho esquema da vonta-de-faculdade. No Zaratustra, Nietzsche deixa claro que a expressão "desejar a potência" é tão absurda quanto a expressão "querer a existência" 3. Uma "vontade de existência", diz Nietzsche, simplesmente não existe, pois o que não é não pode querer - e como aquilo que está na existência poderia desejar a existência? Como nota De-leuze, é por esta distância entre a vontade de potência e a noção tradicional de vontade que, malgrado as aparências, Nietzsche estima forjar um conceito inteiramente novo diante do passado da filosofia4.
3. Nietzsche, "Da superação de si", Assim falou Zaratustra, II, Obras incompletas, cit, p. 238.
4. Deleuze, G., Nietzsche et Ia philosophie, Paris, PUF, 1970, p. 90.
190 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
II
Mas é certo que o resultado a que se chegou é bem magro, já que puramente negativo: sabemos o que a vontade de potência não é, mas ainda não se conhece nada do que ela positivamente é. Pior ainda, a bem considerar as coisas, se este sobrevôo pelas primeiras dificuldades parece começar a dissolvê-las, é preciso confessar que é ao preço de se criar uma nova dificuldade, mais embaraçosa que as outras. Afinal, se a vontade de potência, não sendo mais uma faculdade antropológica, pode agora estender-se à totalidade do mundo, isto redunda em reconhecer que, a partir deste momento, Nietzsche começa a elaborar uma metafísica, uma doutrina da essência do "ser em geral". Mas justo ele, o crítico da filosofia? Em outras palavras, Nietzsche parece voltar agora ao leito da filosofia tradicional, já que, se ainda não sabemos o que designa a vontade de potência, pelo menos sabemos que através desse conceito se pensa em decodificar a totalidade do ser em geral. Desde então, não haveria nenhuma diferença entre a doutrina de Nietzsche e a filosofia tradicional. Alguns afirmam que tudo é matéria, outros que tudo é espírito. Nietzsche diz que tudo é vontade de potência, o que nos reconduz à tradição filosófica, naquilo que ela tem de mais arraigado: o discurso metafísico.
Sendo assim, não é nada surpreendente se, em seu Nietzsche, Karl Jaspers conclua que a doutrina da vontade de potência faz Nietzsche reatar com o "dogmatismo", por ele mesmo anteriormente criticado. E não seria mesmo uma reedição do dogmatismo afirmar, como em Para além do bem e do mal, que o mundo "visto de dentro, o mundo determinado e designado por seu 'caráter inteligível' - seria justamente 'vontade de potência', e nada além
VONTADE DE POTÊNCIA 191
disso" 5? Poderíamos dizer que o "espírito livre" se conserva inteiro, por tratar-se apenas de uma "hipótese" sobre o mundo? Mas é certo também que se trata de uma hipótese metafísica, e por isso o espírito livre, que se apresentava como "bailarino", alguém que nunca se fixa em convicções, agora parece dançar ao som da velha música. Schopenhauer já identificava o ser ao querer e pretendia, através da vontade, apreender o ser "do interior". Em O mundo como vontade e representação, ele adiantava a idéia de que temos um conhecimento bastante significativo da essência e da atividade de nosso corpo, que nos fornece a chave para penetrarmos em todos os fenômenos e objetos da natureza. Julgaremos por analogia com nosso corpo, diz Schopenhauer, e diremos que a essência das coisas deve ser a mesma que, em nós, é chamada de vontade 6. Apesar do cuidado com que Nietzsche recusa a caracterização da vontade como uma "faculdade", quer com ele, quer com Schpenhauer, é inevitável a impressão de que, no fundo, o que se faz é selecionar uma qualidade de um ser, descoberta no interior da experiência humana, e conferir a essa qualidade o valor de uma determinação que se aplica depois à totalidade dos seres. Mas este, justamente, é um procedimento usual do "dogmatismo": aqui o ser não é senão a totalidades dos seres, ou a redução de todas as realidades a uma realidade única que é confundida com a totalidade do ser. Assim, qual a diferença entre Schopenhauer e Nietzsche? Um fala em "vontade", outro em "vontade de potência", mas esta nuança
5. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 36, Obras incompletas, cit, p. 275.
6. Schopenhauer, Le monde comme volonté et comme représenta-tion, II, § 18, Paris, F. Alcan, 1912, vol. I, pp. 103 ss.
192 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
na coloração dos conceitos não alteraria em nada o ânimo filosófico comum aos dois. Sendo assim, parece que devemos tratar a vontade de potência como uma simples propriedade do ser e concluir, com Jaspers, que a doutrina da vontade de potência é um novo avatar do dogmatismo.
Heidegger também interpretará a doutrina da vontade de potência como a expressão mesma da permanência de Nietzsche no leito da filosofia tradicional7. A doutrina da vontade de potência - assegura Heidegger - é essencialmente metafísica, pois com ela se investiga a arché dos entes em sua totalidade. Se a pergunta por excelência da metafísica é "que é o ente?", Nietzsche prossegue por sua própria conta esta tópica tradicional, integra-se à estrutura dessa questão. A filosofia de Nietzsche constituiria o fim da metafísica ao reatar com a questão metafísica, tal como esta foi originalmente formulada pelos gregos. Se Nietzsche define sua filosofia como um pla-tonismo invertido, esta inversão não suprime a posição fundamental platônica, mas, ao contrário, a consolida. Por isso, aos olhos de Heidegger, Nietzsche será o último metafísico do ocidente, já que a vontade de potência é um princípio que determina a essência e o fundamento dos entes em sua totalidade.
O que pensar dessa nova dificuldade? Que existe aqui um problema é evidente para quem contrapõe as afirmações de Nietzsche sobre o "mundo" como vontade de potência aos textos em que ele critica a metafísica. E assim quando Nietzsche aponta a falta de sentido histórico como o "defeito hereditário dos filósofos", relembrando-lhes que, se tudo veio a ser, então não há fatos eternos, assim como
7. Heidegger, M., Nietzsche, Paris, Gallimard, 1971, vol. I, pp. 340-80.
VONTADE DE POTÊNCIA 193
não há verdades absolutas 8. O "espírito livre" era sobretudo alguém que levava a sério esta máxima e se tornava, por isso mesmo, um experimentador. Mas nos textos em que a vontade de potência é apresentada como essência do "mundo", a experimentação parece terminar, já que o filósofo confere a uma qualidade o valor de uma determinação que se aplica à totalidade dos seres, e parece decodificá-la para aquém de todo vir-a-ser. Agora, é inevitável supor que o "filosofar histórico" cessou e, com ele, a "virtude da modéstia", Nietzsche retomando, por sua própria conta, o defeito hereditário dos filósofos: dogmatismo, metafísica... O espírito livre, doravante, tornou-se espírito cativo.
Mas será mesmo que Nietzsche reataria com a tradição filosófica que ele criticara? Se certamente existe aqui uma dificuldade, talvez não seja tão fácil, todavia, apanhá-lo em flagrante delito de inconseqüência. Segundo a interpretação de Jaspers e de Heidegger, Nietzsche retornaria ao leito tradicional da filosofia porque a vontade seria uma qualidade que se decretaria constituir a essência dos seres em geral, uma determinação metafísica no sentido clássico da palavra... O que significa dizer que Nietzsche seria tão "metafísico" quanto Schopenhauer, já que ambos reduziriam as realidades a uma realidade única, que se confundiria com a totalidade do ser. Mas será que Nietzsche se conformaria em ser tão rapidamente assim catalogado na mesma estante que Schopenhauer? Desconfiemos sempre destas grandes doutrinas da "metafísica" que, embrulhando todos os autores em um mesmo pacote filosófico, transformam a história da filosofia em mais uma noite em que todos os gatos são pardos. Assim,
8. Nietzsche, Humano, demasiado humano, I, § 2, Obras incompletas, cit., p. 92.
194 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
antes de incluir Nietzsche, rápido demais, em alguma grande história da "metafísica", pelo menos convém verificar, previamente, se ele dava alguma caução ao estilo shopenhaueriano de "filosofar".
III
Por um lado, não faltam textos em que Nietzsche elogia Schopenhauer. É assim, por exemplo, quando ele afirma que a interpretação shopenhaueriana do "em si das coisas" como "vontade" significa um "progresso essencial" diante da afirmação de um " e m si" que fosse " n e cessariamente bom, feliz, verdadeiro, único" 9. Mas deve-se notar que esses elogios são sempre precedidos ou seguidos por restrições que atenuam muito a apologia inicial. É verdade que Schopenhauer representa um "progresso" em relação à tradição. Mas é verdade também, assegura Nietzsche, que o seu "instinto" e o de Schopenhauer caminham em direções contrárias. Será que a "vontade" reencontrada por ambos no interior do ser seria a mesma vontade? Nietzsche não deixa de se colocar a questão. "A 'vontade de potência' é uma espécie de vontade ou é idêntica ao conceito de vontade? Ela significa o mesmo que aspirar a mandar? Ela é a 'vontade' de que Schopenhauer faz o 'em si' das coisas?" 1 0 Este fragmento póstumo formula a pergunta, mas não adianta qualquer resposta. Por isso, vale a pena perguntar, em primeiro lugar, se é a mesma intenção teórica que anima ambos ao afirmarem que a realidade, vista do interior, é vontade. Essa questão é fundamental, já que da intenção teórica que
9. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 9[42], KSA, vol. 12, p. 354. 10. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[121], KSA, vol. 13, p. 300.
VONTADE DE POTÊNCIA 195
preside a afirmação depende o projeto de elaborar ou não uma nova metafísica. Formulemos então a pergunta: quando Nietzsche afirma que o mundo é vontade de potência, é no mesmo sentido em que Schopenhauer afirmava que o 'em si' das coisas é vontade? Sobre esta questão, Nietzsche não nos deixa sem resposta. Em um aforismo intitulado "O pecado hereditário dos filósofos", que evoca diretamente aquele outro sobre o "Defeito hereditário dos filósofos", em que se reclamava contra a falta de sentido histórico dos filósofos e se relembrava que não há fatos eternos nem verdades absolutas, ele dirá que a "vontade" de Schopenhauer "tornou-se, entre as mãos de seu autor, pelo furor de universalização que é próprio do filósofo, perdição para a ciência: pois dessa vontade se faz uma metáfora poética quando se afirma que todas as coisas da natureza teriam vontade; finalmente, para fins de uma aplicação em toda sorte de excessos místicos, ela foi usada abusivamente para uma falsa coisificação - e todos os filósofos da moda repetem e parecem saber com toda precisão que todas as coisas teriam uma vontade, e até mesmo seriam essa vontade única"11. O Nietzsche que aqui censura Schopenhauer por seu "universalismo", quer dizer, pelo seu dogmatismo de metafísico impenitente, é o mesmo que, algum tempo depois, declarará que o "mundo" é vontade de potência, e nada além disso. Mais uma vez, que ninguém veja aqui uma "contradição" ou, pior ainda, uma apressada "evolução" no pensamento do autor. Na verdade, as afirmações de Nietzsche e de Schopenhauer sobre o mundo como "vontade" são presididas por intenções teóricas absolutamente distintas.
11. Nietzsche, Humano, demasiado humano, II, § 5, Obras incompletas, cit., p. 129.
196 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
A tese de Schopenhauer é essencialmente metafísica. Ao contrário, quando Nietzsche descreve o mundo como vontade de potência sua intenção não é, de forma alguma, reduzir as realidades a uma realidade única, não é conferir a uma qualidade o valor de uma determinação que se aplica à totalidade dos "seres", não é insinuar uma nova metafísica. E, se é assim, a "vontade" que Schopenhauer e Nietzsche pensam reencontrar no interior do ser não pode ser a mesma. É porque os dois conceitos de vontade são apenas homônimos entre si que, em um caso, afirmar que o mundo é vontade não passa de " m e táfora poética"; no outro, não. Mas, então, o que designa esta vontade de potência? Agora os resultados meramente negativos não deixam de trazer uma informação que deve ser levada em consideração, porque eles terminam por indicar, pelo menos, o âmbito do conceito de vontade de potência. Assim, se Schopenhauer é criticado por afirmar que tudo é vontade, enquanto Nietzsche, aparentemente, faz a mesma afirmação, é porque essa "vontade de potência" não é qualquer conceito ontológico. Ela não designa um ser, um conteúdo ôntico ou uma qualidade qualquer. Será fundamental, para reconstituir o perfil da noção de vontade de potência, esse esvaziamento de toda e qualquer conotação ontológica, a atenção ao fato de que o conceito não designa qualquer qualidade determinada, assim como, para Descartes, a "extensão" era a qualidade que constituía a essência dos corpos e era, por isso mesmo, um conceito ontológico. Com a noção de vontade de potência não se dá início a qualquer ontologia, e afirmar que "o mundo é vontade de potência" não será equivalente, de forma alguma, a afirmar que "o mundo é matéria", ou que "o mundo é espírito". É exatamente isso que Nietzsche deixa claro em um fragmento póstumo, ao sublinhar que a vontade de potência "deveria ser
VONTADE DE POTÊNCIA 197
algo, não um sujeito, não um objeto, não uma força, não uma matéria, não um espírito, não uma alma; mas, dir-me-ão, poder-se-ia confundir algo desse gênero com uma quimera. Eu mesmo o creio. E seria ruim se não fosse assim: é preciso mesmo que ela possa confundir-se com tudo o que existe e pudesse existir, e não somente com a quimera. Ela deve ser o grande traço de família com o qual todas as coisas se reconhecem como aparentadas com e la" 1 2 . Mas o que significa essa vontade de potência, enquanto operadora de um entre-reconhecimento das coisas entre si? Ao comentar os conceitos físicos com os quais se descreve a natureza, tais como "coisa", "causa" ou "átomo", Nietzsche adianta que, uma vez eliminadas essas ficções substancialistas, restam na natureza apenas quantidades dinâmicas em uma relação de tensão com outras quantidades dinâmicas, e cuja essência consiste em sua relação com as demais quantidades, em seu atuar sobre elas. Mas, se é assim, qual o perfil da vontade de potência? "A vontade de potência não é um ser, não é um vir-a-ser, mas um 'pathos'; ela é o fato elementar do qual resulta precisamente um vir-a-ser, um atuar." 1 3 Assim, a vontade de potência designa, antes de tudo, o conceito de uma relação, decodificada no horizonte da tensão. Através da noção de vontade de potência, a natureza é determinada como uma unidade que, ao mesmo tempo, é o princípio de sua multiplicidade, ela é a forma na qual o processo natural realiza-se como um processo de diferenciação, como um vir-a-ser. Por isso Nietzsche dirá que a vontade de potência só pode manifestar-se quando encontra resistência e, assim, ela procura o que resiste 1 4.
12. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 40[31], KSA, vol. 12, p. 644. 13. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[80], KSA, vol. 13, p. 260. 14. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 9[151], KSA, vol. 12, p. 124.
198 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
Portanto, ao afirmar que o "mundo" é vontade de potência, Nietzsche procura compreender um conceito de natureza - na qual nos incluímos - como processo do vir-a-ser na forma dessa vontade, vir-a-ser que é superação de si e necessária autodestruição. A tarefa de compreender a vontade de potência como o princípio de todo vir-a-ser e de todo agir pressupõe que se possa reconduzir a totalidade dos fenômenos naturais a essa vontade, e por isso o mundo, "visto de dentro", determinado e designado por seu "caráter inteligível", será vontade de potência, e nada além disso 1 5 . Para Nietzsche, essa "forma fundamental do querer" é aquela em que a natureza se produz em seus fenômenos orgânicos, assim como é nela que encontra sua expressão a moralidade do indivíduo autônomo, o indivíduo supramoral. Assim, quando Nietzsche se pergunta que valor têm as nossas valorações morais e o que se ganha em sustentá-las, é para indicar que essa pergunta supõe uma questão prévia, que é a de saber quem ganha com esses valores. Ora, se alguém tivesse que ganhar algo seria a "vida". E, se é assim, diz Nietzsche, impõe-se a necessidade de um novo e mais exato conceito de vida. "Minha fórmula é esta: a vida é vontade de potência." 1 6 A vida é a própria fenomenalidade da vontade de potência e, conseqüentemente, a sua verdadeira realidade. Nietzsche reconhece na vida a vontade de potência em sua facticidade, enquanto a vida naturalmente se relaciona e, em seu relacionar-se, exprime a vontade de potência: viver é essencialmente apropriação, violação, dominação do outro e do mais fraco, ela é opressão, severidade. Em todo corpo vivo realiza-se este caráter fun-
15. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 36, Obras incompletas, cit, p. 275.
16. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 2[190], KSA, vol. 12, p. 161.
VONTADE DE POTÊNCIA 199
damental: ele precisará crescer, alcançar a preponderância - e isso não por alguma moralidade ou imoralidade, mas porque ele vive e a vida é vontade de potência. Mas, se a vida é relação de tensão, a preponderância nunca será total, o opositor nunca será eliminado, caso em que a tensão e a relação desapareceriam. Se a vontade de potência requer a resistência, existe aqui um jogo, nunca uma guerra total. Por isso, Nietzsche dirá que "viver" deveria ser definido "como uma forma duradoura dos processos das fixações de força em que os diversos combatentes crescem desigualmente. Investigar em que medida na obediência também existe uma oposição; a própria força não é completamente eliminada. Assim, também no comando existe uma confissão de que a força absoluta do adversário não é vencida, não é incorporada, dissolvida. 'Obedecer' e 'comandar' são formas do jogo da luta" 1 7 .
Assim, a estrutura fundamental visada pelo conceito de vontade de potência é a limitação de uma ambição ilimitada. Digamos que o conceito comporta dois momentos, a própria ambição, que é ambição de potência, e a limitação dessa ambição pela posição de uma potência determinada, que busca ampliar-se e também ambiciona uma potência maior. Por isso, a determinação formal da noção de potência é um "superar-se". Com isso, a "potência" não nomeia propriamente nenhum estado ao qual se possa aspirar, nenhuma finalidade determinada, mas apenas um momento do próprio aspirar - a saber, o momento da superação de um estado por outro mais elevado - e, com isso, o momento da abolição de um limite da aspiração através de uma nova limitação. Essa limitação é compreendida como a posição de uma nova resistência que deve ser ultrapassada, e apenas uma potência pode
17. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 36[22], KSA, vol. 11, p. 560.
200 N1ETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
opor resistência a outra potência. E, se é assim, como a vontade de potência, para poder exteriorizar-se, tem como condição uma resistência, e como uma resistência só pode ser feita por outra potência, então toda a vida será compreendida por Nietzsche como uma luta de potências, em que diferentes centros de força se determinam por sua relação a potências antagônicas. Assim caracterizado, o conteúdo essencial da vontade de potência está na idéia de "superação de si". Nietzsche caracteriza essa compreensão da vida como vontade de potência pela lei da necessária superação de si, inscrita na essência da própria vida. Isso já indica para onde apontará o além-ho-mem de Nietzsche, e por que ele será muito diferente de um novo "ideal" de humanidade, de uma nova "imagem" do homem, que viria pura e simplesmente substituir-se à sua imagem atual. Com o conceito de além-homem se estará designando uma perpétua superação de si, e por isso esse além-homem nunca terá rosto definido, nem poderia tê-lo. Com esse conceito não se traça nenhuma imagem de um novo homem divino, a idéia de superação de si proíbe toda e qualquer cristalização de uma figura determinada, algo do qual se possa repertoriar os traços, e por isso o espírito livre - viajante sem porto de chegada -era a sua melhor prefiguração.
Isso é o suficiente para se indicar como aquilo que se pensou ser a marca mesma do reingresso de Nietzsche no dogmatismo e na metafísica é, na verdade, o princípio de subversão de todo dogmatismo, de toda metafísica. Segundo a interpretação de Heidegger e de Jaspers, ao identificar a totalidade do ser à vontade de potência Nietzsche retornaria ao leito tradicional da "filosofia", por ressuscitar a idéia de uma única interpretação válida do ser, um sentido único que seria privilegiado. O que seria contraditório com sua tese de que o mundo comportaria uma in-
VONTADE DE POTÊNCIA 201
finidade de interpretações, contraditório com a imagem anteriormente dada do "espírito livre", este personagem que não se fixa em convicções e experimenta as mais variadas perspectivas. Ora, uma vez o conceito de vontade de potência reinstalado em sua neutralidade ontoló-gica, pode-se verificar que, ao contrário de suprimir a diversidade das perspectivas, ele é exatamente aquilo que está na raiz da infinidade das interpretações. Pois, quando se leva a sério que vontade de potência não é qualquer conceito ontológico, não designa um ser ou uma qualidade dos seres, mas apenas o movimento da superação de si, então pode-se verificar que é exatamente por haver este superar-se que as perspectivas, os sentidos, as interpretações são por princípio infinitos, e o dogmatismo necessariamente precisa ser rejeitado: as diversas interpretações superam-se em direção a outras interpretações. Da mesma forma, porque o espírito livre exprime a vontade de potência, ele jamais se fixará em alguma certeza, supe-rando-se perpetuamente em direção a novas opiniões, novas perspectivas. É porque a vontade de potência é superação de si que as convicções são prisões, e o espírito livre estará condenado a ser um experimentador.
Assim, a vontade de potência, em vez de representar o fim do perspectivismo do conhecimento, será para Nietzsche exatamente o princípio que fará com que todo conhecimento seja sempre perspectivo, isto é, parcial e provisório, destinado a superar-se em direção a outra interpretação, outra perspectiva. É isso que Nietzsche indica em um fragmento póstumo, de forma concisa mas precisa, ao afirmar que o próprio "interpretar" é uma forma da vontade de potência, que tem existência não como ser, mas como processo, como vir-a-ser. "Meus escritos afirmam constantemente que o valor do mundo se
202 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
encontra em nossa interpretação (que talvez, em qualquer outro lugar, são possíveis outras interpretações, distintas das simplesmente humanas); que as interpretações até agora admitidas são avaliações perspectivas, em virtude das quais nos conservamos na vida, ou seja, na vontade de potência, no aumento da potência; que toda elevação do homem traz consigo a superação de interpretações mais restritas; que cada consecução de nova força e de extensão da potência abre novas perspectivas e significa crer em novos horizontes. O mundo que nos interessa é falso, isto é, não é um fato mas uma fantasia e um ajuntamento de uma escassa soma de observações; ele é fluido, como coisa que devêm, como uma falsidade que continuamente se desvia, que não se aproxima nunca da verdade, porque não há 'verdade' alguma." 1 8 A vontade de potência, em vez de significar a reedição de um novo "verdadeiro mundo", na velha linhagem platônica, como pensavam todos aqueles que queriam, a todo custo, reins-crever Nietzsche na história da metafísica, é antes de tudo a reafirmação de que não há verdade alguma. Aquilo que os filósofos chamam, com muita pompa, de "verdades sobre o ser", são apenas episódios, muito transitórios, no movimento geral da perpétua superação de si.
IV
Poderíamos dizer que a "vontade de potência" é um conceito especialmente psicológico, e que os fenômenos psíquicos seriam sua origem primeira? Por um lado, é incontestável que a vontade de potência tenha um âmbito
18. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 2[108], KSA, vol. 12, p. 114.
VONTADE DE POTÊNCIA 203
psicológico para sua atuação. Nos textos que vão de Humano, demasiado humano a Assim falou Zaratustra, pode-se estabelecer certa filiação de temas, centrados na busca de uma impulsão psicológica fundamental, e que teriam se cristalizado no conceito de vontade de potência. Assim, em Humano, demasiado humano Nietzsche estabelecia, em termos psicológicos, que a luta pelo prazer é a luta pela própria vida, e que esse prazer consiste em experimentar "o sentimento da própria potência" 1 9 . E doravante começará uma série de investigações sobre esse "sentimento de potência", particularmente em Aurora. O sentimento de potência, diz Nietzsche, desenvolveu-se de forma tão sutil que se tornou a inclinação mais violenta do homem, a tal ponto, assegura ele, que os meios descobertos para buscá-lo desenham quase toda a história da cultura 2 0 . A partir de agora, dir-se-á que todas as condutas humanas, morais ou imorais, são presididas por esse "sentimento de potência". "Se, ao fazer bem ou mal, fazemos sacrifícios, isso não altera o valor último de nossas ações, mesmo se pomos nisso nossa vida, como o mártir por sua Igreja - é um sacrifício feito ao nosso desejo de potência ou para fins de conservação de nosso sentimento de potência." 2 1 Agora este sentimento surgirá como a base sobre a qual tudo repousa, e Nietzsche dirá que ele é fundamental para o estabelecimento dos elos morais, para a submissão a um chefe, a uma família, a uma comunidade: nós nos submetemos para ganhar sentimento de potência. É ainda essa idéia que Nietzsche subli-
19. Nietzsche, Humano, demasiado humano, I, § 104, KSA, vol. 2, p. 101.
20. Nietzsche, Aurora, § 23, KSA, vol. 3, p. 35. 21. Nietzsche, A gaia ciência, § 13, Obras incompletas, cit, p. 193.
204 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
nhará em Assim falou Zaratustra, ao afirmar que o fraco serve ao forte porque é inclinado a isso por sua vontade que, por sua vez, quer dominar as vontades mais fracas do que ela. Este, garante Nietzsche, "é o único prazer ao qual ela não pode renunciar" 2 2 .
Assim, se é verdade que a expressão "vontade de potência" entra em cena pela primeira vez no Zaratustra, não parece ser menos certo que o conceito de vontade tem sua introdução facilmente justificável no plano da análise psicológica, visto que as fórmulas que Nietzsche utilizara antes já a continham implicitamente. Assim, Aurora falava em "impulsão" e outros textos abusarão da fórmula "aspirar a", termos que já exprimem as idéias de esforço e de tensão, exatamente o que a noção de "vontade" sublinhará. E são esses mesmos termos que voltarão à cena na Genealogia da moral, quer dizer, depois de forjada a expressão "vontade de potência". Todo animal, diz Nietzsche ali, "aspira instintivamente a um optimum de condições favoráveis em que possa expandir sua força e alcançar seu máximo de sentimento de potência" 2 3. Sendo assim, se nos situamos no terreno da experiência psicológica, parece que podemos considerar a fórmula "vontade de potência" como a expressão abreviada de "vontade de sentimento de potência".
Todavia, é pura ilusão pensar que a noção psicológica de "sentimento de potência" possa oferecer algum fio condutor sólido para se interpretar a noção de vontade de potência. Para os apressados que querem, rápido demais, reconduzir a vontade de potência ao terreno mais co-
22. Nietzsche, "Da superação de si", Assim falou Zaratustra, KSA, vol. 4, p. 148.
23. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 7, cit., p. 118 (modificada).
VONTADE DE POTÊNCIA 205
nhecido e confortável da psicologia, e se comprazem em identificar vontade de potência a sentimento de potência - para estes Nietzsche não deixava de observar que o "sentimento de potência" não é qualquer absoluto que se prestaria a experiências intercambiáveis entre uma pessoa e outra, não é um dado psicológico neutro que se esgotaria em si mesmo. É o que se pode ler no aforismo 348 de Aurora: "Sentimento de potência. - Que se distinga bem: aquele que quer adquirir o sentimento de potência lança mão de todos os meios e não despreza nada do que possa alimentar esse sentimento. Mas aquele que possui esse sentimento tornou-se muito difícil e nobre em seu gosto; é raro que alguma coisa o satisfaça ainda." Assim, para Nietzsche o sentimento de potência não é algo em si mesmo inteiramente desenhado, ele não é nada de absoluto, mas está, antes, subordinado à qualidade da alma que o experimenta. Um certo apetite por sentimento de potência é até mesmo signo de vulgaridade - e o asceta, segundo Nietzsche, chega a um sentimento de potência inaudito. Portanto, a vontade não poderia tender para o sentimento de potência como para algo que lhe conferisse sua verdade intrínseca. O sentimento de potência representa apenas um fenômeno concomitante e derivado, que extrai seu valor da qualidade intrínseca do querer, mas não oferece a matriz do próprio querer. Renunciemos, então, a procurar a origem do conceito de vontade de potência no domínio da psicologia.
O conceito não poderia ser oriundo de uma reflexão sobre as estruturas políticas e sociais? Mais uma vez, não faltam textos que pareçam dar caução a esta suspeita. É assim quando Nietzsche diz que qualquer que seja a parte que o utilitarismo e a vaidade de povos e indivíduos tomem na "grande política", a força viva "que os impulsiona adiante é a 'necessidade de potência', que, não so-
206 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
mente na alma dos príncipes e dos poderosos, mas também, e não em pequena parte, nas camadas inferiores do povo, brota, de tempos em tempos" 2 4 . Da mesma forma, quando Nietzsche for tratar do "grande homem", será para caracterizá-lo como aquele que se arroga o direito de sacrificar homens como um general o faz, quer dizer, não a serviço de uma idéia, mas porque quer dominar. Diríamos então que a vontade de potência seria essencialmente vontade de dominação, e que os "potentes" seriam aqueles que detêm o poder, as "classes dirigentes"? São muitos os textos que parecem dirigir-nos para essa assimilação entre potência e classes poderosas. A revolta contra a ordem estabelecida, diz Nietzsche, apenas traduz o ressentimento dos deserdados que, em nome de ideais igualitários, se insurgem contra uma hierarquia natural e legítima. É assim quando Nietzsche discute a insurreição cristã contra Roma, ou mesmo a Revolução Francesa. Em ambos os casos, ele verá a mesma vingança plebéia contra os poderosos do momento, a mesma hostilidade cristã às castas, aos aristocratas, aos privilégios. Da mesma forma, parece evidente que, na Genealogia da moral, o senhor e o escravo têm um status sociológico bem definido. Enquanto os nobres são aqueles que extraem o seu nome simplesmente da superioridade de seu poder - os "comandantes" - ou dos signos exteriores dessa superioridade - "os ricos", "os possuidores" -, o "ruim" designa o homem comum que é escravo de seu trabalho 2 5 . E, sendo assim, os jogos parecem feitos: o conceito de vontade de potência se origina na reflexão sobre a política, que lhe ofereceria seu conteúdo essencial.
24. Nietzsche, Aurora, § 189, KSA, vol. 3, p. 161. 25. Nietzsche, Genealogia da moral, I, §§ 5 e 10, cit., pp. 26-35.
VONTADE DE POTÊNCIA 207
Nova ilusão, e um engano contra o qual Nietzsche não se cansou de nos prevenir. Quando pensou em escrever um livro intitulado A vontade de potência, ele lhe daria um prefácio em que se pode ler a seguinte advertência: "Um livro para pensar, nada mais: ele pertence àqueles para quem pensar é uma alegria, e nada mais. Que ele seja escrito em alemão, isso é pelo menos inatual: eu desejaria tê-lo escrito em francês, para que ele não apareça como reforço a não sei quais aspirações do Reich alemão." 2 6 E ele não deixará de observar que o poder político embrutece, que as classes dirigentes são eminentemente criticáveis. Seus textos são suficientemente claros para diluir a interpretação ingênua segundo a qual ele identificaria os "potentes" aos "ricos" e aos "dirigentes", colocando em questão a leitura de todos aqueles que estipulam o sociopolítico como única matriz das significações. A estes é recomendável uma consulta a Zaratustra: "Vejam estes supérfluos! Eles adquirem riquezas e só se tornam mais pobres. Eles querem o poder e, antes de tudo, a alavanca do poder, muito dinheiro - estes incapacitad o s ! " 2 7 Se Nietzsche defende a hierarquia, isto não significa a apologia do modelo de ordenação derivado do privilégio econômico, e ele encontrará mais exemplares do "tipo superior" de homem nas classes trabalhadoras do que na burguesia. Mas este homem de tipo superior não terá nenhum perfil socioeconômico definido, seu rosto não se delineia por ocupar qualquer lugar determinado no sistema de produção. " O s operários viverão um dia como agora vivem os burgueses; mas sobre eles, e distin-
26. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 9[188], KSA, vol. 12, p. 450. 27. Nietzsche, "Do novo ídolo", Assim falou Zaratustra, KSA, vol.
4, p. 63.
208 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
guindo-se por sua falta de necessidades, as castas superiores: portanto viverão mais pobres e mais simplesmente, mas na posse da potência." 2 8 E que ninguém confunda esta potência com poder ou chefia política. "Rara além dos dominadores, desligados de todo vínculo, vivem os grandes homens: e nos dominados têm seus instrumentos." 2 9
Por isso o Estado, longe de ser o lugar natural do "tipo superior" de homem, será o seu perfeito antagonista. E desde as Extemporâneas, passando por Humano, demasiado humano, o Estado será considerado por Nietzsche como um inimigo do tipo superior de homem, uma barreira ao surgimento do além-homem que, aliás, só terá lugar ali onde o Estado termina30 e, por isso mesmo, não pode ser qualquer personagem essencialmente político. Assim, nenhuma impostura maior do que assimilar a vontade de potência a uma vontade de Império. Ao contrário, este suposto ideólogo do Reich preconizava o enfraquecimento sistemático do Estado. Assim, renunciemos à idéia de que o conceito de vontade de potência tenha uma origem e um significado primariamente político. O que já era evidente para quem levava em conta que "potência" não pode se confundir com "poder", esta finalidade consciente de alguma ação.
Enfim, poderíamos concluir que o conceito de vontade de potência se enraíza no domínio biológico? "Onde eu encontrei vida", diz Nietzsche, "ali encontrei vontade de potência" 3 1 . E é à linguagem organicista que ele recorrerá
28. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 9[47], KSA, vol. 10, p. 361. 29. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 25 [270], KSA, vol. 11, p. 82. 30. Nietzsche, "Do novo ídolo", Assim falou Zaratustra, KSA, vol.
4, p. 64. 31. Nietzsche, "Da superação de si", Assim falou Zaratustra, Obras
incompletas, cit, p. 238.
VONTADE DE POTÊNCIA 209
ao identificar a "vontade da vida" à própria vontade de potência. É preciso - dirá Nietzsche - ir até o fundo das coisas e proibir-se toda fraqueza sentimental: viver é essencialmente despojar, ferir, dominar ou pelo menos explorar. Pois a exploração é inerente à própria natureza da vida, é uma "função orgânica" essencial, uma conseqüência da vontade de potência, que é a própria vontade da vida 3 2 . Tais teses não nos permitem reconduzir Nietzsche ao "biologismo"? Agora a "luta pela proeminência" de Nietzsche viria tomar o lugar da "luta pela vida" de Dar-win. Todavia, se ninguém deve negar que a vontade de potência se refira também à esfera biológica, não se segue daí que o "biológico" seja o seu campo de origem e nos ofereça o sentido último do conceito. Mais ainda, esta significação preferencialmente biológica do conceito, quando levada às últimas conseqüências, nos induziria a conclusões expressamente recusadas por Nietzsche. Pois uma vez admitida essa hipótese, seríamos levados a teses próximas às de Darwin: se a vontade de potência é essencialmente biológica, então a vida deveria selecionar, automaticamente, o elenco dos escolhidos, e os de fato potentes coincidiriam com os potentes de direito. Mas exatamente essa conclusão, de espírito darwinista, é afastada por Nietzsche: "O que mais me surpreende quando contemplo os grandes destinos dos homens é perceber sempre o contrário daquilo que Darwin e sua escola vêem ou querem ver hoje: a seleção em benefício dos mais fortes, dos mais bem dotados, o progresso da espécie. Pode-se apreender o contrário em todas as partes: a supressão dos casos felizes, a inutilização dos melhores tipos, o inevitável dominar dos tipos médios, e até dos tipos inferiores à
32. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 259, KSA, vol. 5, p. 208.
210 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
média." 3 3 Ora, se o resultado que Nietzsche percebe é o inverso do que faria supor uma apreciação exclusivamente biológica da vontade de potência, é porque este conceito não tem sua origem nem se define no interior do terreno da biologia.
Mas por que insistir tanto em desenraizar a vontade de potência das representações habituais da "potência", e fazer questão de frisar a irredutibilidade do conceito às suas fenomenalizações mais imediatas, ali na esfera da psicologia, da política ou da biologia? Simplesmente, para dar ao conceito um perfil mais definido. Todavia, novamente, só se procedeu negativamente, afastando algumas representações habituais, muito enraizadas a partir de certos comentários sobre a obra de Nietzsche. Mas em que, mais uma vez, conclusões meramente negativas podem auxiliar a compreender positivamente um conceito? Essas conclusões negativas oferecem um resultado histo-riográfico do qual se pode derivar um significado do conceito de vontade de potência. Se a origem desse conceito, no interior da obra de Nietzsche, não está nem na psicologia, nem na política, nem na biologia, é porque quem elabora a noção é, antes de tudo, o Nietzsche filólogo, o analista da vida helênica. É ali nas investigações sobre a disputa em Homero, no elogio à competição perpétua na Polis, na oratória ou nos concursos trágicos, que vai se forjando a idéia de vontade de potência como superação de si. O que significa reconhecer os elos especiais da noção de vontade de potência com aquilo que Nietzsche entenderá ser a "cultura". E isso não nos deixa distantes da questão de que se tinha partido, que era a de saber por que a nossa "civilização" promove a "decadência".
33. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14 [123], KSA, vol. 13, p. 303.
CAPÍTULO IX CIVILIZAÇÃO E CULTURA
I
"Os cumes da cultura e da civilização separam-se: não devemos nos deixar induzir a erro sobre o abissal antagonismo entre cultura e civilização. Os grandes momentos da cultura foram sempre, moralmente falando, tempos de corrupção; e, ao contrário, as épocas de maior disciplina e domesticação do animal homem ('civilização'), tempos de intolerância para as naturezas mais espirituais e audaciosas. A civilização quer algo de outro do que quer a cultura: talvez algo contrário..." 1 E a esta oposição entre cultura e civilização que vale a pena dirigir a atenção, para verificar em que sentido o "animal de rebanho", este produto final do laboratório civilizador, exprime a decadência. Afinal, para onde aponta essa idéia de "decadência"? "O resultado ao qual cheguei" diz Nietzsche, "foi tão surpreendente quanto possível, mesmo para mim, que já me sentia familiarizado com mundos bastante estranhos;
1. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 16[10], KSA, vol. 13, p. 485.
212 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
compreendia que todos os juízos superiores, todos esses juízos que se apossaram da humanidade, pelo menos da humanidade domesticada, podiam ser reduzidos a juízos de esgotados... Atrás dos nomes mais sagrados encontrei as tendências mais destruidoras; se chamou de Deus a tudo o que debilita... compreendi que o 'homem bom' era uma forma de autoafirmação da 'decadência'." 2 Essa associação entre "decadência" e "debilidade" já indica que decadência é um contratema da vontade de potência, o que é expressamente assumido pelo autor. Minha afirmação - diz Nietzsche - "é que todos os valores nos quais a humanidade enfeixa agora sua mais alta deseja-bilidade são valores de décadence... Uma história dos 'sentimentos superiores', dos 'ideais da humanidade'... seria quase que também a explicação de por que o homem é tão corrompido. Ávida mesma vale para mim como instinto de crescimento, de duração, de acumulação de forças, de potência: onde falta a vontade de potência há declínio" 3 . Mas em que sentido nossos valores apontam para a decadência e, antes de tudo, o que significa opor-se à vontade de potência?
Guardemo-nos da tentação de simplificar a questão, afirmando que a decadência é a negação pura e simples da vontade de potência, como se os dois conceitos fossem mutuamente exclusivos. Se fosse assim, Nietzsche teria se limitado a elaborar a noção de vontade de potência para, logo depois, tachar de "decadente" o que não a corrobora, e tudo seria bem simples, mas também bastante vácuo. E ainda terminaríamos presos a aporias insolúveis. Pois o mesmo Nietzsche que, em O Anticristo e em vários outros
2. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 15 [13], KSA, vol. 13, p. 412. 3. Nietzsche, O Anticristo, § 6, Obras incompletas, cit, p. 347.
CIVILIZAÇÃO E CULTURA 213
textos, afirma que onde falta vontade de potência há decadência, ao indicar que o ideal ascético tem sua origem em uma vida que degenera, não deixa de sublinhar que na vida ascética há uma vontade de potência que deseja assenhorar-se da própria vida. Para o sacerdote, o ideal ascético é "seu melhor instrumento de potência" e também sua suprema autorização à potência 4. O ideal ascético, originado na degenerescência, tem sua parte na vontade de potência. Assim, a decadência, oposta por Nietzsche à vontade de potência, não pode ser a sua exclusão pura e simples. Afinal, quem diz que a totalidade da vida é vontade de potência não poderia afirmar que a decadência é sua negação absoluta. E vale a pena recordar que quando Nietzsche for distinguir entre a saúde e a doença, ele sublinhará que entre ambas há apenas uma diferença de graus 5. Isso permite formular a questão em seus termos mais gerais: o que significa a "decadência", se ela nega a vontade de potência sem ser a sua pura e simples exclusão? Tentemos atalhá-la por caminhos menos inóspitos, voltando ao "homem bom" forjado pelo cristianismo e pelos nossos ideais democráticos.
O movimento democrático - diz Nietzsche - é não apenas um estágio decadente da organização política, mas também uma forma de degradação em que o homem se apequena, cai na mediocridade e se deprecia6. Quem é este homem forjado pelas idéias modernas, este "decadente"? Ele é aquele homem "bom", mas corrompido pelas instituições; o homem que elege a razão como a autoridade; ou então o romântico, que santifica a paixão
4. Nietzsche, Genealogia da moral, III, §§ 1 e 11, cit, pp. 107 e 130. 5. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[119], KSA, vol. 13, p. 296. 6. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 203, KSA, vol. 5, p. 126.
214 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
como sendo a "verdadeira natureza"; ele é o que canta loas ao "altruísmo", e sempre toma o partido dos "oprimidos"; o que acredita no "desinteresse" na arte e no conhecimento. E ele a auto-afirmação da decadência: o animal de rebanho que, ao contrário de um estóico, a todo momento declara seus padecimentos ("a vida é dura!"), que quer distinguir-se pela moralidade das virtudes de rebanho (compaixão, moderação), pelo "sentimento de coletividade" (o animal de rebanho sempre quer fazer trabalho em grupo), o patriotismo - enfim, tudo aquilo em que o indivíduo não é levado em conta. Essa "decadência" cristalizada no ideário do homem moderno já era a decadência cristã. Pois o cristianismo já valorizava e promovia - com sua beleza doentia, dirá Nietzsche - todas estas virtudes das almas cansadas: a confiança, a ingenuidade, a modéstia, a paciência, o amor ao próximo, a abnegação e a submissão à vontade de Deus, uma espécie de abdicação de todo o nosso ego - quer dizer, o desinteresse -, como se tudo isso fosse, em si mesmo, algo útil e desejável. Como se esta alma humilde e abortada - este animal virtuoso e medíocre -, um carneiro de rebanho que se atreve a chamar-se "homem", fosse o ideal absoluto, o fim, a medida, o objeto do mais alto desejo. Mas por que, afinal, tanto as idéias modernas quanto o cristianismo, no qual estas se originaram, promovem a "decadência"? Qual o conteúdo dessa noção?
"Modesto, aplicado, benévolo, moderado, cheio de paz e cordialidade: assim quereis o homem? E assim que pensais vosso 'homem bom'? Mas o que se alcança com isso é apenas o chinês do futuro, o 'carneiro de Cristo', o socialista consumado." 7 O que é o "decadente"? Antes de
7. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 16 [13], KSA, vol. 13, p. 486.
CIVILIZAÇÃO E CULTURA 215
tudo, alguém formado para a obediência, o indivíduo preparado apenas para obedecer. A obediência é o traço fundamental do instinto gregário, o instinto do rebanho e, para Nietzsche, a formação para a obediência é a característica essencial das "idéias modernas", de todos os nossos ideais civilizadores. Estes ideais reafirmam e promovem nossa vocação para a obediência, a ponto de colocarem o "comando" na gaveta da má consciência. Afinal, desde que existem homens, garante Nietzsche, sempre existiram rebanhos humanos - associações raciais, comunidades, tribos, nações, Estados, Igrejas. E como sempre houve uma grande maioria de súditos para uma pequena minoria de senhores, a obediência foi a coisa mais incul-cada nos homens, a mais praticada por eles. De forma que até se poderia concluir legitimamente que, hoje em dia, cada um de nós experimenta uma necessidade inata de obedecer, algo, diz Nietzsche, como uma consciência formal que ordena: "Tu deves absolutamente fazer tal coisa, tu deves absolutamente te abster de tal outra", logo: "Tu deves". Essa necessidade de obedecer sempre busca saciar-se e, para isso, ela procura preencher sua forma por algum conteúdo, aceitando tudo que as instâncias de comando lhe sussurram aos ouvidos - os pais, os professores, os prejuízos de classe, a opinião pública. Na evolução humana, o instinto gregário de obediência é aquele que se fortifica, em detrimento da arte de comandar. Este movimento - garante Nietzsche -, levado às últimas conseqüências, só terá dois desenlaces possíveis: ou aqueles que mandam, os independentes, terminam por faltar, ou aqueles que de fato detêm o comando sofrem interiormente de má consciência e, para comandar, precisam da auto-ilusão de que também eles apenas obedecem. "Esse estado existe hoje de fato na Europa: denomino-o a hipocrisia moral dos que mandam. Não sabem proteger-se de
216 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
sua má consciência, a não ser portando-se como executores de mais antigos e mais altos mandos (dos antepassados, da Constituição, do direito, da lei ou até de Deus),ou mesmo emprestando da maneira de pensar do reba-nho máximas de rebanho, sendo, por exemplo, 'primeiros servidores de seu povo' ou 'instrumentos do bem geral'..."8
O comando tornou-se de tal forma vergonhoso, tão con-taminado pela má consciência, que hoje em dia ninguémmais manda, todos obedecem. Apenas a obediência tem ao seu lado a boa consciência. Ninguém pode meramentepreponderar - e se alguém prepondera, isso é pura apa-rência, na verdade se obedece também, só que a uma instância superior. Nós nos tornamos cada vez mais platônicos: o rei platônico também só obedecia - ele obedeciaà "verdade". Quem promoveu esta valorização da obe-diência, esta desvalorização do comando? É este o trabalho fundamental de nossos ideais civilizadores: fazer com que a boa consciência esteja apenas ao lado da obediên-cia. O "homem bom" é o escravo ideal, alguém preparadoapenas para obedecer. Mas, se o comando é a marca distintiva da vontade de potência, nossos ideais de civiliza-ção caminham na contracorrente dessa vontade.
E, mais uma vez, louvemos o cristianismo, enquanto a grande matriz formadora deste indivíduo dócil, previsí-vel, regular e obediente. Pois foi o cristianismo que lançouo anátema sobre o nobre, o que comanda - foram os cris-tãos que associaram, pela primeira vez, a nobreza à má consciência. "O que não me agrada em Jesus de Nazaré,ou em seu apóstolo Paulo - diz Nietzsche -, é que elesencheram com tantas coisas a cabeça das pobres pessoas,
8. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 199, Obras incompletas, cit, p. 281.
)
CIVILIZAÇÃO E CULTURA 217
que poderia acreditar-se que suas humildes virtudes têm alguma importância. Tiveram que pagá-lo caro, pois puseram em descrédito as qualidades mais preciosas da virtude e do homem; excitaram, um contra o outro, a má consciência e o sentimento de dignidade da alma nobre; extraviaram as inclinações de bravura, de generosidade, de intrepidez, as inclinações excessivas das almas nobres, até a destruição do indivíduo..." 9 Eis aí o que produz o ideário cristão, enquanto promotor do tipo débil, do homem "bom", quer dizer, do homem que só quer obedecer. O que é o cristianismo? Apenas uma "domesticação" do homem. O que é nossa "civilização", enquanto ela é fundamentalmente cristã? Apenas a continuação da domesticação iniciada pelo cristianismo, uma construção do indivíduo obediente, uma debilitação da vontade. O cristianismo - diz Nietzsche - quer dominar as aves de rapina: seu procedimento é convertê-las em doentes. O debilitar é a receita cristã para a domesticação, para a civilização1 0. É para essa domesticação que o cristianismo vai promover a sua desnaturalização, associando o "natural" ao "reprovável". E para essa domesticação que ele vai empreender uma guerra mortal ao tipo superior de homem, fazendo dos instintos fundamentais desse tipo o seu "mau" dos homens maus, considerando o forte como réprobo, os valores dos fortes como pecaminosos. E a sua teoria da igualdade das almas perante Deus será o fundamento metafísico para fazer de toda preponderância um escândalo, de todo comando um não-senso.
É exatamente esta debilitação que nossos ideais civilizadores vão retomar, sob diversas formas, ao promo-
9. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10[86], KSA, vol. 12, p. 506. 10. Nietzsche, O Anticristo, § 22, KSA, vol. 6, p. 190.
218 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
verem o homem bom, o igualitarismo, o desinteresse. É sobre este solo que trabalham todos os teóricos do " m e lhoramento" do homem. Em todos os tempos, diz Nietzsche, se quis "melhorar" o homem, e foi particularmente a isso que se chamou de "moral". Mas esse melhoramento não é senão uma domesticação: "Tanto o amansamento da besta homem, quanto o aprimoramento de um determinado gênero de homens é denominado 'melhoria': somente estes termos zoológicos exprimem realidades, realidades, sem dúvida, das quais o típico 'melhorador', o padre, não sabe nada - nem quer saber... Denominar o amansamento de um animal sua 'melhoria' é, a nossos ouvidos, quase uma piada. Quem sabe o que acontece nas ménageries duvida de que ali a besta seja 'melhorada'. Ela é enfraquecida, tornada menos danosa, torna-se, pelo sentimento depressivo do medo, pelas feridas, pela fome, uma besta doentia. - Não é diferente com o homem amansado, que o padre 'melhorou'." 1 1 Para Nietzsche, este trabalho já se iniciava com a constituição da moral de escravos. O "mau" da moral de escravos era justamente o "bom" da outra moral, o homem aristocrático, o potente, o senhor, o que comanda, agora apresentado com outras cores, reinter-pretado e deformado pelo olhar rancoroso do ressentimento 1 2 . Ao contrário do que ocorria no mundo homérico, assegura Nietzsche, hoje em dia se tem por verdade que o sentido de toda civilização é fazer do homem um animal doméstico. De forma que se poderia considerar como os verdadeiros instrumentos da civilização todos aqueles instintos de reação e de ressentimento com os quais as ra-
11. Nietzsche, "Os melhoradores da humanidade", Crepúsculo dos ídolos, § 2, Obras incompletas, cit, p. 335.
12. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 11, cit., p. 38.
CIVILIZAÇÃO E CULTURA 219
ças aristocráticas e seus ideais foram liquidados e vencidos. Agora, efetivamente, não se tem mais nada a temer na convivência, com este animal domesticado, este animal irremediavelmente medíocre, que se considera como a meta e o sentido da história.
Para Nietzsche, também era esta domesticação que comandava o sentido da terapia que o sacerdote ascético oferecia aos seus fiéis. De fato, o que fazia o sacerdote, na sua mais fecunda terapia, aquela que Nietzsche não classificava entre as "inocentes"? Vimos que ele inventava o "pecado" e, em um só gesto, transformava o sofrimento em "castigo", fazia do sofredor a causa do sofrimento. E desde então, dizia Nietzsche, há dois mil anos não escapamos mais do espetáculo deste novo doente, o "pecador": para onde quer que nos dirijamos encontramos sempre o olhar hipnótico do pecador, fixado na mesma direção, na culpa como única causa do sofrimento; em todas as partes a má consciência, o olhar ruim sobre toda ação, sempre o pavor, o castigo, a disciplina, a contrição. E agora o pecador já não reclama da dor, ele deseja a dor merecida. O homem submetido a tal terapia tornou-se " m e lhor"? Não discordo, dirá Nietzsche, "apenas acrescento que, para mim, 'melhorado' significa o mesmo que 'domesticado', 'enfraquecido', 'desencorajado', 'refinado', 'embrandecido', 'emasculado' (ou seja, quase o mesmo que lesado...)"13. A terapia torna o doente mais doente, e o ideal ascético só promove uma debilitação. Rimos se um domador fala que seus animais foram "melhorados", porque sabemos que a domesticação tem um preço elevado para eles. Mas não rimos quando se fala em " m e lhoramento" dos homens. Achamos até mesmo "eviden-
13. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 21, cit., p. 162.
220 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
te " que a domesticação do homem seja um melhoramento, que a produção de um animal pronto para obedecer seja um progresso. Não estranhamos que aquele indivíduo das sociedades disciplinares, tal como Foucault os descreve, nos seja apresentado como "melhor". Marx, pelo menos, não estranhava, ao elogiar a "severa disciplina das manufaturas". Mas qual a surpresa, se nossa "civilização" sempre promoveu a domesticação, a debilitação da vontade? Não estranhamos... Mas, pelo menos, podemos conceber o direito a uma outra idéia de "aperfeiçoamento". Podemos, na contracorrente, perguntar, com Nietzsche, se não se pode conceber o "aperfeiçoamento" da humanidade como uma maior potência, como a produção de indivíduos mais poderosos. Podemos pelo menos conceber a idéia de uma "cultura", que seria muito diferente de nossa "civilização".
II
"A mim mesmo, essa irreverência de pensar que os grandes sábios são tipos de declínio ocorreu pela primeira vez precisamente em um caso em que mais fortemente o preconceito erudito e não erudito se contrapõe a ela: reconheci Sócrates e Platão como sintomas de caducidade, como instrumentos da dissolução grega, como pseudogre-gos, como antigregos." 1 4 Esta primeira vez que Nietzsche considerou Sócrates e Platão como "decadentes" foi no seu primeiro trabalho publicado, Nascimento da tragédia. E a observação sobre a irreverência do diagnóstico é um lem-
14. Nietzsche, "O problema de Sócrates", Crepúsculo dos ídolos, § 2, Obras incompletas, cit., p. 329.
CIVILIZAÇÃO E CULTURA 221
brete de sua inatualidade: considerar Sócrates e Platão decadentes e antigregos, em pleno século XTX alemão... é preciso coragem! Mas, pensando bem, a inatualidade do diagnóstico é significativa: se os "doutos" consideram extravagante o anátema lançado contra Sócrates e Platão, é porque sua admiração pela dupla não é senão o testemunho de que eles se consideram seus continuadores, o reconhecimento implícito de que a cultura alemã também é an-tigrega e decadente. O consenso dos doutos a favor de Sócrates e Platão indica que a Alemanha ainda carece de uma verdadeira "cultura" - algo que não se confunde, de forma alguma, com a tagarelice de universitários a que eles conferem este nome. Mas, então, qual é exatamente o "problema" de Sócrates, que sempre poderá ser visto como o problema dessa falsa cultura européia em geral?
O que eu procuro discernir, diz Nietzsche, é de qual idiossincrasia provém aquela equação socrática - razão = virtude = felicidade -, uma equação "a mais extravagante que existiu, que particularmente tem contra si todos os instintos dos antigos helenos" 1 5 . O que se censura em Sócrates? Antes de tudo, Sócrates é recriminado por recomendar a racionalidade a todo custo e, assim, querer fazer da razão um tirano dos apetites, um tirano dos outros instintos. Tal é a lição básica de Sócrates enquanto professor, enquanto civilizador: a razão deve dominar absolutamente os demais instintos, ela promove a vida prudente e sem instintos, em oposição aos instintos. Lição que Platão aprendeu muito bem, ao apresentar a "justiça", na Polis ou no indivíduo, como a preponderância do melhor sobre o menos bom, a precedência e o domínio da razão
15. Nietzsche, "O problema de Sócrates", Crepúsculo dos ídolos, § 4, KSA, vol. 6, p. 69.
222 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
sobre as demais partes da alma. Sócrates quer estabelecer a luz do dia da razão contra os apetites obscuros, contra os instintos. Mas isso, garante Nietzsche, foi uma doença, de forma alguma um retorno à virtude e à felicidade. "Ter de combater os instintos - eis a fórmula para a décadence: enquanto a vida se intensifica, felicidade é igual a instinto." 1 6
Como interpretar este diagnóstico sobre a decadência, e o que pensar desta caracterização da "doença"?
Guardemo-nos, antes de tudo, dos lugares-comuns jornalísticos. Sócrates é censurado por promover a razão como tirano em face dos demais instintos. Mas será que Nietzsche estaria insinuando, como cura para a doença socrática, que nos filiemos ao partido oposto, e façamos a apologia das paixões e dos instintos contra a razão, o elogio do corpo contra o espírito? Agora, a palavra de ordem de Nietzsche seria mais ou menos assim: façamos das paixões o tirano da razão - e com tal terapia daremos adeus à "decadência". Mas isso seria desconhecer inteiramente o pensamento de Nietzsche, significaria transformá-lo em ideólogo parisiense e opor, ao plato-nismo, uma caricatura de Cálicles. Não. Não se subverte o platonismo apenas trocando os sinais, torcendo pela "paixão" contra a "razão", como se estivéssemos diante de uma pelada entre rivais. Razão e paixão não são adversárias - e já é conceder em demasia ao platonismo encará-las sob o prisma da mútua exclusão. Paremos com a mania de transformar Nietzsche em precursor de Wilhelm Reich - este platônico a mais da história do pensamento. Deixemos o Nietzsche pré-reichiano para a conversa de namoradinhos no bar, e voltemos aos textos - a única "realidade" na história da filosofia.
16. Nietzsche, "O problema de Sócrates", Crepúsculo dos ídolos, § 11, Obras incompletas, cit., p. 330.
223
No Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche critica Sócrates por promover a racionalidade a todo custo, por fazer da razão um tirano dos demais instintos. Mas essa censura é a expressão secundária e derivada de outra, que no fundo é a principal. O verdadeiro problema é que "quando há necessidade de se fazer da razão um tirano, como Sócrates fez, há grande perigo de que qualquer outra coisa se faça também de tirano" 1 7 . O desvio de conduta visado por Nietzsche, antes de ser a promoção da razão a tirano dos outros instintos, é a admissão da própria idéia de tirania de uma parte da alma sobre as demais. O importante não é qual personagem exerce a tirania, não é saber qual o rosto do rei, mas sim o fato de haver tirania de um instinto sobre outros. Por isso, aos olhos de Nietzsche, o jovem parisiense apenas prolongaria a doença socrática, ao fazer da paixão um tirano diante da razão, invertendo a tradição sem abandonar a sua linguagem. O jovem parisiense permanece tão infiel à "cultura" quanto Sócrates ou o cristão: ele também separa, opõe, valoriza, escolhe e reprime instintos. Mais importante que a questão material - quem tiraniza quem? - é a própria idéia de tirania, e o "homem bom" do cristianismo será sempre o resultado da tirania de certos instintos sobre os demais.
É isso que Nietzsche confirma nos textos em que trata da oposição entre saúde e doença. Entre ambas não há qualquer diferença qualitativa, como pensava a medicina antiga, e a razão está, antes, do lado de Claude Bernard: entre saúde e doença só existe diferença de graus, e o que constitui a morbidez é o exagero, a desproporção, a falta de harmonia. De tal forma, dirá Nietzsche, que se pode
17. Nietzsche, "O problema de Sócrates", Crepúsculo dos ídolos, § 10, KSA, vol. 6, p. 72.
CIVILIZAÇÃO E CULTURA
224 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
considerar o "mal" como sendo o exagero, a discordância, a desproporção, assim como o "bem" pode ser um regime protetor contra os perigos do exagero, da discordância, da desproporção 1 8. Aqui já se apresenta um dos significados da "decadência", da "degenerescência", e vai se desenhando, em negativo, o que será para Nietzsche a vida "ascendente". Mas qual é a relação entre essas considerações sobre Sócrates e a tirania de um instinto sobre os demais, e aquilo que Nietzsche chama de "cultura"? Para perceber qual é essa relação, vale a pena levar em conta as observações de Nietzsche sobre estes sucessores de Sócrates que são os "doutos", os "eruditos", aqueles mesmos que estranhavam a apresentação de Sócrates e de Platão como "decadentes", "antigregos". Para isso, voltemos, por um momento, aos panfletos de Nietzsche contra a "falsa cultura alemã", onde já vai se delineando a idéia do filósofo como "médico da civilização".
III
Nas "Extemporâneas", ao caracterizar a cultura alemã como uma "falsa" cultura, Nietzsche delineia o projeto de uma nova concepção de educação, que certamente jamais poderia ser implementada pelas universidades - este lugar natural do "filisteu". Uma concepção de educação que também teria contra si o Estado - que só se interessa por uma cultura que produza indivíduos dóceis e úteis ao próprio Estado, e por isso mesmo só promove a falsa cultura. Em Ecce homo, ao comentar as suas "Extemporâneas", Nietzsche dirá que seu objetivo ali era formular "um problema
18. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[65], KSA, vol. 13, p. 250.
CIVILIZAÇÃO E CULTURA 225
de educação sem equivalente, um novo conceito de cultivo de si, defesa de si até a dureza, um caminho para a grandeza e para as tarefas histórico-universais exigia a sua primeira expressão" 1 9 . Se este propósito não é insensato é porque Nietzsche parte da convicção de que "o homem é o animal cujo caráter próprio ainda não está fixado"10 e que portanto há lugar para uma tarefa educadora, para uma formação. Não existe "natureza humana" preexistente a uma cultura, que pode modelá-la para o bem ou para o mal. Estabelecida esta tarefa, em que a cultura alemã é censurável e inadequada para o trabalho de formação que se exige de toda cultura autêntica?
Em Ecce homo, Nietzsche também sublinha a biparti-ção que ele vê em suas "Extemporâneas", enquanto elas tratam da baixa e da alta cultura. As duas primeiras "Extemporâneas" descrevem a nossa "decadência". O panfleto contra David Strauss, garante Nietzsche, era dirigido, na verdade, contra a "cultura alemã" em geral, considerada por ele sem sentido nem substância, uma mera "opinião pública". As observações sobre a história, por outro lado, põem em destaque o que há de perigoso, o que envenena e corrói a vida no modo "alemão" de fazer ciência: a vida enferma da "impessoalidade" do laboratório, a falsa economia da divisão do trabalho. Agora, a ciência torna-se um meio que nos faz bárbaros, e um meio incapaz de atingir o seu fim, que deveria ser a produção da cultura. Nesta Consideração, diz Nietzsche, o "sentido histórico", este orgulho do século, "foi pela primeira vez reconhecido como doença, como típico sinal de declínio"2 1. Nas duas últimas
19. Nietsche, "As extemporâneas", Ecce homo, § 3, cit., p. 70. 20. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 62, KSA, vol. 5, p. 81. 21. Nietzsche, "As extemporâneas", Ecce homo, § 1, cit., p. 67.
226 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
Extemporâneas, ao contrário, Schopenhauer e Wagner são contrapostos enquanto indícios de uma "alta idéia de cultura", de uma reconstrução do conceito de cultura. E Nietzsche vai apresentar Schopenhauer e Wagner como "duas figuras do mais duro egoísmo, da autodisciplina, tipos inatuais por excelência, plenos de soberano desprezo por tudo o que à sua volta se chama 'império', 'cultura', 'cristianismo', 'Bismarck', 'sucesso'." 2 2 E quem são Schopenhauer e Wagner? Schopenhauer e Wagner, diz Nietzsche, são..."Nietzsche"! Respeitemos a bipartição que o autor dá às suas "Extemporâneas", e também a convicção de que quem fala, através de Schopenhauer e Wagner, é o próprio Nietzsche. E tratemos de recuperar, nestes escritos, os elementos fundamentais da oposição entre verdadeira e falsa cultura.
Nietzsche censura ali a cultura alemã por seu artifi-cialismo, sua exterioridade e independência em face da natureza. A falsa cultura visada é essencialmente a "cultura histórica", que se reduz ao conhecimento livresco e jornalístico, aquele que sucumbe à erudição. Sendo mero acúmulo de informações, essa cultura é apenas uma justaposição de conhecimentos, carente de qualquer unidade. Essa cultura histórica é desprovida de "estilo", ou antes, ela só pode ser o resultado da mistura de diferentes estilos. E este ponto, justamente, será fundamental para se compreender a oposição que Nietzsche estabelece entre a verdadeira e a falsa cultura. A verdadeira cultura será o contrário de uma mistura de estilos. "Cultura é, antes de tudo, a unidade do estilo artístico em todas as manifestações da vida de um povo. Mas ter muitos sábios e ter aprendido muito não é nem um meio de cultura, nem um
22. Nietzsche, "As extemporâneas", Ecce homo, § 1, cit, p. 67.
CIVILIZAÇÃO E CULTURA 227
signo de cultura, e muitas vezes está bem próximo do contrário da cultura, a barbárie, isto é: a falta de estilo ou a confusão caótica de todos os estilos." 2 3 A cultura do fi-listeu, sendo essencialmente histórica, acúmulo de informações díspares, sem a unidade do estilo, só poderá surgir como o nome new wave da velha barbárie. A primeira tarefa do filósofo, enquanto médico da civilização, é restaurar o sentido autêntico da cultura. E isso porque a cultura, longe de ser um acréscimo exterior e independente da natureza, deve vir em auxílio a ela, e tem um papel a cumprir na produção da humanidade. A cultura deve perseguir os mesmos fins que a natureza, valendo-se de meios mais eficazes. Qual é o fim da natureza? Antes de tudo, dirá Nietzsche, produzir os exemplares mais bem sucedidos, os mais raros e preciosos da espécie 2 4 . Mas como esta produção natural é regida pelo acaso, a finalidade da cultura é auxiliar a natureza na consecução dos seus fins, transformando este acaso em necessidade. A verdadeira cultura não visa a "felicidade", o "bem-estar" da maioria ou o lucro do negociante: seu fim é transformar a natureza em uma obra de arte acabada. Porque a natureza, por si mesma, não é uma "boa" natureza, como imaginava Rousseau, e também não é "má" , mas simplesmente indiferente, sem desígnios, fecunda e estéril, sem piedade nem justiça, incerta 2 5 .
Mas o que significa apresentar a "verdadeira cultura" como sendo a unidade do estilo artístico em todas as manifestações da vida de um povo? Guardemo-nos de com-
23. Nietzsche, Considerações extemporâneas, I, § 1, KSA, vol. 1, p. 163.
24. Nietzsche, Considerações extemporâneas, III, § 6, KSA, vol. 1, p. 384.
25. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 9, KSA, vol. 5, p. 21.
228 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
preender a noção de estilo artístico em um sentido trivialmente estetizante. Na expressão estilo artístico, o "artístico" não designa a "beleza" no sentido da estética. Nietzsche dirá que um estilo é artístico quando ele dá uma determinada unidade a um todo, fazendo com que ele deixe de ser um mero somatório ou um agregado de partes. Esta unidade é aquela de uma justa proporção no interior do desenvolvimento de uma multiplicidade natural. Se a cultura é antes de tudo a unidade do estilo artístico, é porque ela vai dar unidade, justa proporção a uma multiplicidade natural que, por si mesma, é caótica. Como esta unidade do estilo artístico torna-se possível? Ela só se torna possível com um domínio tal dos instintos que se coíba a pretensão, presente em cada um deles, de desenvolver-se ao infinito, em detrimento dos demais. Para Nietzsche, era exatamente este sentido de "cultura" que moldava a vida dos gregos na boa época, quando ainda existia um "querer" helênico: "O problema da cultura raramente foi bem apreendido. Ela não tem por meta assegurar o máximo de felicidade possível para um povo, nem o livre desenvolvimento de seus dons, mas uma justa proporção no interior desse desenvolvimento. Ela tem por fim a produção de grandes obras. Em todos os instintos gregos descobre-se uma unidade que os disciplina: chamemo-la o querer helênico. Cada um de seus instintos tende a existir solitário até o infinito. A cultura de um povo se manifesta na unidade disciplinada dos instintos desse povo." 2 6 Eis aí o momento histórico em que existia uma verdadeira cultura, uma verdadeira civilização - e não o simulacro que hoje em dia atende por este nome. A cultura dos gregos do bom período tinha a unidade do estilo
26. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 19[41], KSA, vol. 7, p. 432.
CIVILIZAÇÃO E CULTURA 229
artístico: se ali havia uma justa proporção no desenvolvimento dos dons, é porque o "querer helênico" disciplinava a tendência de crescimento ao infinito de cada instinto em detrimento dos demais.
Mas isso mostra imediatamente qual a relação entre o "problema" de Sócrates, este decadente típico, e a questão da cultura. Por que Sócrates foi levado a fazer da razão um tirano dos instintos? Antes de tudo, deve-se notar que Sócrates se dirigia e falava a uma platéia bem determinada, aquela dos nobres da velha Atenas, que caminhava para o seu fim. Sócrates era um degenerado, mas com um bom senso de marketing. Ele percebeu que na Atenas terminal, em silêncio já se preparava, em todas as partes, a mesma degenerescência. Sócrates soube ler muito bem a alma dos nobres atenienses, e reconheceu nelas almas irmãs: ele compreendeu então que todos tinham necessidade dele, de seus remédios, de seus artifícios para a au-toconservação. O que ocorria na Atenas terminal? Por toda parte, diz Nietzsche, os instintos em anarquia; "por toda parte se estava a cinco passos do excesso: o monstrum in animo era o perigo geral. 'Os impulsos querem fazer-se tiranos; temos de inventar uma contratirania que seja mais forte... '" 2 7 . O que tinha sucedido a Atenas? Ela tinha perdido a unidade do estilo artístico, tinha perdido a sua "cultura". Uma vez desaparecido o "querer helênico", não havia mais a disciplina que limitava a tendência de crescimento ao infinito de cada instinto - e, desde então, não havia mais justa proporção no desenvolvimento dos dons, mas tiranias cegas. E, se é assim, o que foi o socratismo? O Ersatz de uma cultura que não existia mais, um substi-
27. Nietzsche, "O problema de Sócrates", Crepúsculo dos ídolos, § 9, Obras incompletas, cit, p. 330.
230 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
tuto da cultura que, doravante, chamou-se de "civilização". Pois qual foi o remédio prescrito por Sócrates? Diante do espetáculo da anarquia e indisciplina dos impulsos, ele fez da razão um tirano dos instintos, e agora viu-se na racionalidade uma tábua de salvação tanto para Sócrates quanto para os seus doentes. No lugar da disciplina dos instintos, que os continha na justa proporção, entra em cena a tirania da razão sobre os instintos, quer dizer, a domesticação, a civilização.
O que pensar desta terapia socrática? Nietzsche dirá que é um erro dos filósofos e moralistas acreditar que se sai da decadência fazendo-lhe a guerra. Afinal, o que se escolhe como remédio e salvação contra a decadência é apenas outra expressão dessa mesma decadência. Com essa terapia, não se elimina a decadência, apenas se altera a sua expressão. Por isso, Sócrates "foi um mal-entendido; a inteira moral-da-melhoria, também a cristã, foi um mal-entendido... A luz do dia mais crua, a racionalidade a todo preço, a vida clara, fria, cautelosa, consciente, sem instinto, oferecendo resistência aos instintos era, ela mesma, apenas uma doença, uma outra doença - e de modo nenhum um caminho de retorno à 'virtude', à 'saúde', à 'felicidade'... Ter de combater os instintos - eis a fórmula para a décadence: enquanto a vida se intensifica, a felicidade é igual a instinto" 2 8 . Sim, Sócrates foi um equívoco. E como não seria? Para combater a anarquia dos instintos e o risco de tirania por parte de algum deles, Sócrates faz da razão um tirano. Mas quando há necessidade de se fazer da razão um tirano, há grande perigo de que qualquer outra coisa também se faça de tirano. Enquanto médico, Sócrates foi um grande charlatão: ele nunca combateu a
28. Nietzsche, "O problema de Sócrates", Crepúsculo dos ídolos, § 11, Obras incompletas, cit., p. 330.
CIVILIZAÇÃO E CULTURA 231
necessidade de se fazer de algo um tirano, sua cura não é a restauração da unidade perdida do estilo artístico, a disciplina e a justa proporção. Sua terapia é apenas outra forma de tirania, uma nova expressão da decadência, a domes-ticação, a civilização.
Desta análise nietzschiana do "problema de Sócrates" parecem decorrer duas imagens distintas daquilo que seria a "decadência". Por um lado, a decadência é a anarquia dos instintos, tal como ela é encontrada nos nobres da Atenas terminal. Por outro lado, a decadência é a solução socrática, é exorcizar a anarquia dos instintos graças à tirania de uma parte da alma sobre as demais. Mas, de fato, essas duas imagens da decadência reduzem-se a uma só: a anarquia dos instintos, ao dar livre curso à tendência de cada um deles a desenvolver-se ao infinito, em detrimento dos demais, favorece a tirania de uma parte sobre as demais. E isso é a decadência. Assim, a distância que Nietzsche estabelece entre "civilização" e "cultura" se exprime, neste nível da análise, através de dois distintos tratamentos que se pode conferir às multiplicidades naturais. Dada a multiplicidade natural dos instintos, que é anárquica e permite a cada um desenvolver-se ao infinito, emudecendo os demais, a história nos apresenta duas terapias para neutralizar esta anarquia original. Pode-se fazer de uma parte o tirano absoluto das demais - é a solução socrática, a saída civilizadora, que domestica os instintos. Mas pode-se também disciplinar esses instintos, para que nenhum deles se desenvolva ao infinito, subjugando os demais. Agora haverá justa proporção entre os instintos, e nenhum dominará absolutamente e para sempre, e não haverá domesticação: esta é a solução he-lênica, pré-socrática, a "cultura". Mas, se é assim, a civilização, sendo apenas a legalização da tendência à supremacia absoluta de uma parte sobre as demais, não é se-
232 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
não um modo a mais de consumar aquilo que já estava inscrito na anarquia original, a "decadência". Por isso, Nietzsche falará de "nossa barbárie civilizada". A verdadeira superação da barbárie só poderá ser obra da cultura: disciplina dos instintos que inibe a tendência de cada um deles a infinitizar-se e tiranizar os demais, disciplina que preserva a oposição entre os instintos, em vez de neutralizá-la através da supremacia de um só. Aqui sempre haverá hierarquias, sempre haverá preponderâncias, mas nunca perpétuas, nunca desproporcionais.
É este modelo helênico que Nietzsche opõe aos fi-listeus cultivados. A cultura alemã, enquanto produto do sacrossanto "sentido histórico", é desprovida de estilo, é apenas outro nome da barbárie. A nova educação deverá restaurar a idéia de cultura com estilo artístico, uma cultura que prolonga a natureza sem domesticá-la, disci-plinando-a para torná-la uma obra de arte acabada. Esta pedagogia será o oposto de nossa modernidade. Afinal, o moderno pode muito bem ser definido como a "autocon-tradição fisiológica". "A razão da educação quereria que, sob uma férrea pressão, pelo menos um desses sistemas de instintos fosse paralisado, para permitir a outro criar forças, tornar-se forte, tornar-se senhor. Hoje seria preciso, primeiro, tornar possível o indivíduo, amputando-o; possível, isto é, inteiro... O inverso acontece: a pretensão à independência, ao livre desenvolvimento, ao laisser-aller é mais ardente precisamente da parte daqueles para quem nenhum freio seria rigoroso demais - isso vale in politicis, isso vale na arte. Mas é um sintoma da décadence: nosso moderno conceito 'liberdade' é uma prova a mais de dege-neração dos instintos" 2 9 . Eis o que falta na Alemanha:
29. Nietzsche, "Incursões de um extemporâneo", Crepúsculo dos ídolos, § 41, Obras incompletas, cit., pp. 341-2.
CIVILIZAÇÃO £ CULTURA 233
uma educação que não consagre nem a supremacia de um só instinto, nem o laisser-aller, a anarquia que só redundará em dominações selvagens. O que falta é uma educação que garanta a livre manifestação de todos os instintos, pela qual as dominações sempre existirão, mas nunca serão absolutas, nunca serão perenes.
Essas indicações são suficientes para sugerir qual é o leümotiv subjacente à insistência, da parte de Nietzsche, em caracterizar a cultura através da noção de "estilo". Esta noção é retomada no aforismo 290 de A gaia ciência, onde Nietzsche afirma que "dar estilo" ao caráter é uma arte muito considerável, mas raramente encontrada. É através desta arte de dar estilo ao caráter que Nietzsche distinguira os "fortes" dos "fracos". "Serão as naturezas fortes e dominadoras que saborearão as alegrias as mais sutis neste constrangimento, nesta escravidão, nesta perfeição ditadas por sua lei pessoal; o aspecto de toda natureza estilizada, de toda natureza enfim vencida e subjugada, alivia a paixão de sua forte vontade; se elas precisam construir palácios, se elas precisam plantar jardins, repug-na-lhes também deixar a natureza livre. Ao contrário, os caracteres fracos, aqueles que não se dominam, detestam a servidão do estilo: eles sentem que se tornariam inevitavelmente vulgares se esse amargo constrangimento lhes fosse imposto; eles não poderiam servir sem tornar-se escravos, por isso detestam fazê-lo. Tais espíritos - e eles podem ser de primeira ordem - aplicam-se sempre a dar a si mesmos e atribuir à sua vizinhança o aspecto de naturezas livres."30 O que é esta cultura enquanto estilização da natureza, o contrário mesmo do laisser-aller? O "estilo" é antes de tudo a expressão da vontade de potência,
30. Nietzsche, A gaia ciência, § 290, KSA, vol. 3, p. 530.
234 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
como Nietzsche indica em alguns fragmentos póstumos. "Partir dos estados 'estéticos' em que o mundo é visto mais pleno, mais arredondado, mais perfeito - o ideal pagão: nele predomina a afirmação de si... O tipo superior: o ideal clássico - como expressão de uma prosperidade de todos os instintos principais. Aqui, de novo o estilo superior: o grande estilo. Expressão da própria vontade de potência." 3 1
Esta correlação entre o "estilo", enquanto disciplina dos instintos, e a vontade de potência não é nem um pouco surpreendente quando se levam em conta as análises de Nietzsche sobre a disputa no mundo homérico. A estiliza-ção dos instintos vai reproduzir, no interior de cada indivíduo, aquilo que ocorria na vida da polis helênica: sempre o conflito, sempre a hierarquia, mas nunca a dominação absoluta, que põe fim à disputa. A decadência de Alexandre prefigura a decadência de Sócrates: seja com a supremacia absoluta de um só homem na cidade, seja com a tirania da razão sobre os instintos, há o fim da resistência, o fim da disputa, o término da superação de si, a "decadência" . Mas a consideração do indivíduo e a da cidade não são simplesmente paralelas, elas são interiormente relacionadas. Se o grego do mundo homérico sempre vivia sob o horizonte da disputa, se ele não conhecia felicidade sem luta posterior, e nunca poderia viver em regime de felicidade espinosana, era porque cada heleno, em seu interior, era uma natureza culta: a multiplicidade de seus instintos, sempre disciplinada, tornava sua vida uma perpétua disputa entre os instintos, uma perpétua superação de si. A disputa na cidade correspondia ao agón originário interior à vida de cada um. Fazer da razão o tirano dos ins-
31. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11[138], KSA, vol. 13, p. 63.
CIVILIZAÇÃO E CULTURA 235
tintos, como preconizava o domesticador Sócrates, significava neutralizar a resistência interior, eliminar a possibilidade mesma da disputa, pôr fim à vontade de potência, à superação de si. "Civilizar", enquanto estratégia exclusivamente apolínea, é impedir uma verdadeira criação. Ao contrário, a cultura, enquanto disciplina dos instintos, que os mantém na perpétua disputa e superação de si, é a fórmula da criação. Era isso o "querer helênico": a multiplicidade anárquica dos instintos era sempre disciplinada, Dioníso era inseparável de Apoio.
CAPÍTULO X VIDA DECADENTE, VIDA ASCENDENTE
I
E a noção de vida como vontade de potência, como perpétua superação de si, que dá a chave para se compreender o regime dos "valores" no interior da filosofia de Nietzsche. Em uma filosofia da vontade, todos os valores serão reportados à vontade de potência. Zaratustra afirma que acima de cada povo está inscrita uma tábua de valores; esta, diz ele, é a tábua de suas superações, a voz de sua vontade de potência 1 . Assim, a "superação de si" é uma estrutura refletida em todas as morais. E como seria diferente, se a essência de toda moralidade está na obrigação, imposta ao homem, de vencer sua natureza, disci-plinando-a ou dominando-a? Ao contrário do laisser-aller, diz Nietzsche, toda moral é uma tirania contra a natureza e o caráter essencial de toda moral é ser uma longa coação 2.
1. Nietzsche, "Dos mil e um fins", Assim falou Zaratustra, KSA, vol. 4, p. 74.
2. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 188, Obras incompletas, cit., p. 280.
238 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
Por isso, os múltiplos valores, que correspondem a diferentes manifestações da vontade de potência, não são nada de dado, que simplesmente se ofereceria à nossa contemplação, mas são antes aquilo que mede a aptidão de alguém a ultrapassar-se, sua aptidão à superação de si. O único fundamento dos valores está na vontade de potência, enquanto superação de si. Na verdade, diz Zaratustra, foram os homens que deram a si mesmos a regra do bem e do mal. Eles não a tomaram de empréstimo, nem a encontraram em algum céu inteligível, ela não lhes foi sussurrada por qualquer voz celeste 3. O que significa "valor"? O valor designa apenas a distância que separa alguém das suas próprias possibilidades, ele é a projeção daquilo que atribuímos a nós mesmos como sendo nossos fins, e por isso mesmo ele aponta, antes de tudo, para a tarefa ilimitada de sua realização. Se a tábua de valores de um povo é aquela de suas superações de si, se a voz que ali fala é a da vontade de potência, então no modo pelo qual um povo fábula seus deuses, ou formula um código moral, temos um signo para apreciar a potência de sua vontade. Por isso, um valor é tanto mais expressivo quanto maior for o esforço de superação de si que ele exige. Assim, diz Zaratustra, chamamos de louvável tudo o que parece difícil; o que é ao mesmo tempo indispensável e difícil, chamamos de bem; e aquilo que nos livra da mais alta necessidade, o mais raro e mais difícil, chamamos de sagrado 4. O valor é algo proporcional ao grau de potência que alguém manifesta ao superar-se, e se há um critério de escolha entre os valores, ele não estará neles mesmos, mas
3. Nietzsche, "Dos mil e um fins", Assim falou Zaratustra, Obras incompletas, cit., p. 232.
4. Nietzsche, "Dos mil e um fins", Assim falou Zaratustra, Obras incompletas, cit., p. 232.
VIDA DECADENTE, VIDA ASCENDENTE 239
no grau de esforço exigido para efetivá-los, na superação de si que eles nos impõem.
Isso é suficiente para indicar a falsidade de um lugar comum, que é o de se associar a crítica nietzschiana à moral com algum tipo de laxismo. Como se Nietzsche, pelo simples fato de autoproclamar-se "imoralista", estivesse situando-se fora do campo da moralidade em geral, e não apenas fora da jurisdição de determinada moral. Pelo contrário, no lugar de qualquer laxismo o que vai se desenhando ali é a linha dura da moralidade. E, para todos aqueles que associam, rápido demais, imoralismo a laxismo, Nietzsche não deixava de indicar que eles caminhavam na contracorrente de sua filosofia. Justo ele, que sempre se manifestou contra qualquer versão do laisser-aller, ele que, ao criticar os valores morais vigentes, nunca criticou a noção mesma de valor e, aliás, atribuía como tarefa, ao filósofo do futuro, precisamente a criação de valores5; ele, enfim, que já indicara expressamente aos seus leitores que seu trabalho de toupeira, para minar a confiança na moral, era realizado em nome da... moralidade!6
II
Se a essência de toda e qualquer moral implica a "superação de si", isso pode começar a indicar em que sentido a "decadência", sendo negação da vontade de potência, não é sua pura e simples exclusão. Se a diferença entre a saúde e a doença é apenas quantitativa, então a deca-
5. Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 211, Obras incompletas, cit, p. 284.
6. Nietzsche, Aurora, Prefácio, § 4, Obras incompletas, p. 157.
240 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
dência deve representar o grau o mais baixo da vontade de potência. Mas como esta vontade se exprime, em regime de doença? Apenas com a resposta a esta pergunta se poderá enxergar com clareza o que se pretende apontar ao falar em "vida decadente". Em diversos textos, Nietzsche associa a decadência a uma condenação da vida. Assim, no Crepúsculo dos ídolos, ao afirmar que a moral, tal como foi entendida até hoje, é "negação da vontade de vida", Nietzsche conclui que esta moral "é o próprio instinto de décadence"7. E esta vertente da noção de decadência que agora deve chamar nossa atenção. E fala-se aqui em "vertente", porque não se trata de outro significado de "decadência", simplesmente situado ao lado daquele já mencionado. Ao contrário, trata-se de outro ângulo do mesmo fenômeno, uma explicitação daquilo que estava subjacente ao socratismo enquanto domesticação, promoção da tirania de uma parte da alma sobre as demais. E este mesmo fenômeno que, melhor considerado, vai se revelar como negação da vontade de viver - que não é, por sua vez, senão outro nome da negação da vontade de potência, encarada agora sob uma luz peculiar.
Sob essa ótica, a decadência, enquanto é um não dirigido à vida, vai se revelando como aquilo que estava na origem do platonismo, enquanto este foi uma grande estratégia de negação do vir-a-ser. E o momento em que a decadência, enquanto negação dos instintos, negação da vida, reata com a sua ideologia justificadora: negação do mundo dado em benefício de um "verdadeiro mundo", ficção de um além que virá legitimar a negação do mundo "aparente". Mas não é inútil relembrar que, para Nietz-
7. Nietzsche, "Moral como contranatureza", Crepúsculo dos ídolos, § 5, Obras incompletas, cit., p. 334.
VIDA DECADENTE, VIDA ASCENDENTE 241
sche, o platonismo - filosofia da decadência - tinha sua origem em uma negação dirigida ao mundo do vir-a-ser. Afinal, o platonismo não estava só, enquanto produto de um ato de negação. A moral de escravos também era inaugurada por um juízo negativo, ela se assentava em um não dirigido ao outro, ao contrário da moral de senhores, que se fundava em uma afirmação de si. Assim, tanto o platonismo quanto a moral de escravos convergiam no mesmo princípio gerador, ambos originavam-se em um ato de negação. E exatamente isso permite que se comece a vislumbrar qual é a modulação da vontade de potência, tal como esta se manifesta na decadência, e qual é o significado essencial dessa doença. O que se precisa entender é por que o escravo estava condenado a ter, como sua única forma de ação, uma reação 8.
Como se traduz, na economia dos instintos, a oposição nietzschiana entre senhores e escravos, fortes e fracos? O senhor, o forte, é o indivíduo cujos instintos são disciplinados, em quem impera a unidade do estilo artístico, a justa proporção que lhes garante o curso indefinido do agon, em quem a preponderância sempre passageira de algum instinto nunca se torna tirania selvagem sobre os demais. Ao contrário, o escravo, o fraco, é aquele em quem a anarquia caótica dos instintos sempre termina por levar à dominação absoluta de uma parte da alma sobre as demais. Doravante, é sempre em função desta economia dos instintos que se deve procurar compreender as diferenças entre o "mundo" dos senhores e o "mundo" dos escravos. Quais são essas diferenças? Em primeiro lugar, o senhor é detentor de um amplo campo de experiências, enquanto o escravo vive em um mundo limitado. E o fato de nenhum
8. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 10, cit., p. 34.
242 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
instinto dominar tiranicamente os demais que garante a amplidão do campo de experiência dos senhores. Afinal, sob este ângulo, o que é ter diversas "perspectivas" sobre o mundo, senão admitir que os instintos se alternam na dominação dos demais, possibilitando assim a diversidade das "interpretações"? Ao contrário, um decadente - como Sócrates e seus doentes, uma vez consumada a tirania da razão sobre os demais instintos - estará submetido a um estreitamento de seu campo de experiências, a um afunilamento das perspectivas, até que a "interpretação" oriunda desta supremacia da razão seja vista como a única admissível. É aqui que nasce o "dogmatismo", a ridícula pretensão de se tomar uma só perspectiva como sendo a única válida para todos, por oposição à "verdadeira liberdade do espírito", que é patrimônio dos "fortes" e reflete a flutuação indeterminada, o livre " jogo" entre os diferentes candidatos à dominação. Em segundo lugar, o senhor, enquanto livre jogo dos instintos, nunca será um eu substancial, o sujeito idêntico de propriedades permanentes, mas sim o que Nietzsche chamará de "individualidade forte", aquela que reflete um perene descontentamento consigo, que se traduz na superação de si, alguém que por princípio não exclui a chance de sua indefinida diferenciação de si, o contrário mesmo de um "fraco", no qual um instinto, tiranizando os demais, fixa, de uma vez por todas, um ego unívoco - o indivíduo standard, o "animal de rebanho".
A terceira diferença entre o senhor e o escravo será essencial. No escravo, a ausência de disciplina dos instintos acarreta uma perturbação daquilo que assegura o controle das reações. Enquanto a verdadeira reação é a ação, o decadente não responde às solicitações externas, não reage mais. O decadente é dominado por sua memória - esta faculdade produzida pelo processo civiliza-
VIDA DECADENTE, VIDA ASCENDENTE 243
dor. Em vez de ajustar suas reações aos estímulos reais, sua consciência rumina as recordações, não mais barradas pela proteção do esquecimento. Agora entra em cena o ressentimento: sente-se, mas não se age. Para o fraco, a realidade não é aquilo que provoca a sua vontade, ela é apenas o que tortura sua sensibilidade. Decadência e ressentimento convergem: o decadente é aquele para quem as impressões do exterior são recebidas como choques que provocam o sofrimento. Tal é a ótica da decadência: a realidade é fonte de sofrimentos. "Não se sabe nada rechaçar, de nada se desvencilhar, de nada dar conta - tudo fere. A proximidade de homem e coisa molesta, as vivências calam fundo demais, a lembrança é uma ferida supuran-te . " 9 Agora o decadente precisará de ópios - como o romantismo ou a música wagneriana -, já que para ele a existência só se coloca como problema em termos de dor e de prazer. Se a vida é ressentida como causa de males, o decadente vai aspirar então a um estado em que não se sofreria mais. Seu discurso será mais ou menos assim: "O mundo é algo que racionalmente não deveria existir, visto que ele causa, ao sujeito que sente, mais dor do que prazer." Agora, imbuído deste seu "sentimento do mundo", o decadente vai precisar de proteção, cuidado e consolo. Será preciso eliminar tudo o que obrigaria o ego a afirmar-se em sua singularidade irredutível, o que traria o risco de atrair sobre ele a hostilidade do grupo. É então que nasce o altruísmo; o eu renuncia ao seu egoísmo natural, o que ele faz facilmente, já que perdeu até mesmo o sentido daquilo que é o próprio ego. E doravante ele buscará na "comunidade social" quais deverão ser seus valores e seus fins. Por isso, é a própria decadência que se expri-
9. Nietzsche, "Por que sou tão sábio?", Ecce homo, § 6, cit., p. 30.
244 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
me na apologia daquelas virtudes mentirosas, tais como Nietzsche as descreve na Genealogia da moral: a impotência mascarada em "bondade", a baixeza em "humildade", a submissão em "obediência", o desejo de vingança mascarado em reivindicação de "justiça", o temor em "altruísmo" 1 0 . Sob as diversas grandes palavras, o que se exprime, na verdade, é a mesma astenia da vontade, a mesma apreciação da realidade como algo do qual se ressente, a mesma recusa.
III
Detenhamo-nos um pouco nesta idéia de que o decadente é essencialmente um reativo, alguém para quem a verdadeira reação, a ação, está excluída, e que apenas ressente-se do mundo, sofre com a realidade; é alguém para quem a existência está ligada a um desprazer. Na Genealogia da moral, é antes de tudo este decadente que, fazendo sua aparição sob a figura do "escravo", vai comportar-se de um modo bem determinado ao defrontar-se com o "nobre" , com o homem de linhagem homérica, quer dizer, alguém para quem o comércio com a realidade significa sempre a superação de si, através de uma vitória sempre renovada sobre as forças hostis do mundo. Ele traduzirá sua vontade em vontade de vingança, em vontade que busca culpados. E que em todas as partes onde há insucesso, garante Nietzsche, "busca-se a culpa, pois o insucesso traz consigo um descontentamento, contra o qual se emprega involuntariamente o único remédio: uma nova excitação do sentimento de potência - e essa
10. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 6, cit., p. 45.
VIDA DECADENTE, VIDA ASCENDENTE 245
excitação se encontra na condenação do culpável" 1 1. Ao medir-se com os fortes, a desigualdade das condições e dos talentos parecerá ao fraco um escândalo, e ele se porá em busca dos culpáveis por semelhante injustiça. Esta será a astúcia do ego doentio: ele escolherá dominar indiretamente seus instintos caóticos, colocando-os sob o jugo da vontade de vingança. Uma meta artificial é atribuída aos instintos, que agora vão poder descarregar-se no exterior, em vez de lutarem entre si. Mas o que significa essa vontade de vingança? Ela vai representar uma tentativa de inverter a situação, já que ela vai oferecer, ao ego decadente, a chance de flertar com o universo dos senhores, a chance de dominar, subjugar e triunfar. Aqui, a paixão não se traveste em ação, a vingança é essencialmente reativa, mas ela tomará da ação a sua maquiagem. O decadente quer os signos exteriores da potência, não a verdade do domínio. Para o decadente, afirmar seu ego será, antes de tudo, descobrir o meio de fazer com que os outros sofram. "O homem vê em tudo mal-estar, em toda calamidade do acaso, algo pelo qual é preciso fazer sofrer algum outro, não importa quem - é assim que ele se presta contas da potência que lhe resta ainda, e isso o consola." 1 2 E, se é assim, o que é, para Nietzsche, a vontade de vingança? Ela é o grau mais baixo da vontade de potência, ela é esta vontade no estágio da doença. E já em suas análises sobre a disputa no mundo homérico Nietzsche apresentava a crueldade, através do exemplo de Alexandre, como sendo o exercício da potência sob a figura da decadência.
E o que falta para o fraco exercer a sua vontade de vingança? "Do que acreditais que ele precisa, que ele tenha absoluta necessidade para conservar frente a si mesmo
11. Nietzsche, Aurora, § 140, KSA, vol. 3, p. 132. 12. Nietzsche, Aurora, § 15, KSA, vol. 3, p. 28.
246 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
uma aparência de superioridade sobre espíritos mais fortes que o seu, para se dar, pelo menos na imaginação, a voluptuosidade da vingança saciada? Da moralidade, sempre dela, pode-se colocar a mão no fogo, ele precisa das grandes palavras da moral, da grande caixa da justiça, da sabedoria, da santidade, da virtude." 1 3 Sendo assim, o que é, propriamente falando, a moral? "O instinto de decadência; são os homens esgotados e deserdados que dessa maneira se vingam e se comportam como senhores. É o instinto da decadência sob a forma da vontade de potência. Visão de conjunto: os valores estimados até o presente como superiores são um caso particular da vontade de potência." 1 4 A moral será a ideologia legitimadora da vontade de vingança. Oferecendo-lhe a noção de "justiça" - aquela noção, dirá Nietzsche, que agrupa em torno de si todas as "tarântulas do igualitarismo" - sob o pretexto de reivindicar a igualdade, agora os fracos se vingarão dos senhores, lançando o descrédito sobre todas as virtudes aristocráticas. Sob o discurso manifesto que reivindica a justiça, há o discurso latente que quer a vingança contra todos os que não são iguais. E, desde então, a "virtude" consistirá em querer a igualdade para todos, ou seja, será perseguir e vingar-se de todos os que detêm a potência. "Eu sou justo", diz o decadente. Traduza-se, dirá Zaratustra: "eu estou vingado" 1 5 . E para que sua reprovação e condenação ganhem então seu máximo direito de cidadania e sua legitimidade última, o decadente vai inventar a hipóstase de um mundo diferente do mundo dado, em função do qual a afirmação da vida seja vista como algo
13. Nietzsche, A gaia ciência, § 359, KSA, vol. 3, p. 606. 14. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[137], KSA, vol. 13, p. 321. 15. Nietzsche, "Dos virtuosos", Assim falou Zaratustra, Obras in
completas, cit, p. 236.
VIDA DECADENTE, VIDA ASCENDENTE 247
em si reprovável. Nascerá o platonismo como imensa estratégia justificadora. Para poder dizer não a tudo que representa o movimento ascendente da vida, diz Nietzsche, "o instinto de ressentimento, tornado gênio, inventou-se um outro mundo, um outro mundo a partir do qual essa afirmação da vida pudesse nos aparecer como o mal, como algo em si reprovável" 1 6.
Na Genealogia da moral, o ideal ascético era apresentado por Nietzsche como negação do mundo e hostilidade aos sentidos - e por isso mesmo ele era o a priori comum ao sacerdote e ao filósofo. Com o ideal ascético, se colocava a vida em relação a uma existência inteiramente diversa, à qual ela se opunha, a menos que essa vida se voltasse contra si mesma, se negasse enquanto vida e assumisse a forma de uma vida ascética, vista então como ponte para outra existência. E Nietzsche insistia em que essa contradição de uma vida contra a vida era apenas aparente, já que havia ali um interesse da própria vida. Na verdade, o ideal ascético tem sua fonte no instinto de defesa de uma vida que degenera e luta por sua própria existência. E a vida dos ressentidos, dos que sofrem com a existência, que é salva pelo ideal ascético. Se o problema do homem não é o sofrimento, mas a falta de "sentido" do sofrer, o ideal ascético lhe oferecia esse sentido, lhe dava uma "interpretação". E se essa interpretação trouxe um novo sofrimento, ainda mais danoso à vida, apesar de tudo o homem estava salvo, ele não era mais personagem de teatro do absurdo, tinha "sentido". Este - garante Nietzsche - foi o único sentido que o homem teve até hoje, mas qualquer sentido é melhor do que nenhum. E por quê? Porque agora o homem podia querer algo, a sua vontade estava salva. O ódio à vida veiculado pelo ideal
16. Nietzsche, O Anticristo, § 24, KSA, vol. 6, p. 192.
248 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
ascético, "esse ódio ao que é humano, mais ainda ao que é animal, mais ainda ao que é matéria, esse horror aos sentidos, à razão mesma, o medo da felicidade e da beleza, o anseio de afastar-se do que seja aparência, mudança, morte, devir, desejo, anseio - tudo isto significa, ousemos compreendê-lo, uma vontade de nada, uma aversão à vida, uma revolta contra os mais fundamentais pressupostos da vida, mas é e continua sendo uma vontadel... E... o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer..."17. O que significa isso? Que o ideal ascético, oferecendo o único "sentido" que o homem teve até hoje, era aquilo que fechava as portas ao "niilismo". Mas, se é assim, qual a relação que Nietzsche estabelece entre decadência e niilismo? "O niilismo não é uma causa, mas somente a lógica da déca-dence."18 Isso nos reconduz ao nosso ponto de partida, o "niilismo europeu". Este produto final da Europa já estava inscrito em surdina no seu começo, e apenas neutralizado pela "interpretação" que atribuía um sentido ao sofrimento - mas jamais desenraizava a idéia de que o mundo é causa de sofrimentos, de que a existência é ruim. Com a morte de Deus e a desvalorização dos valores, a vida que se experimenta como sofrimento perde o "sentido" que lhe edulcorava a feição: a decadência reaparece nua e crua, sem a glosa interpretadora que tornava a vida tolerável.
IV
Em Nietzsche et la philosophie, Deleuze resenha os dois sentidos fundamentais da noção nietzschiana de "niilis-
17. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 28, cit., pp. 184-5. 18. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[86], KSA, vol. 13, p. 264.
VIDA DECADENTE, VIDA ASCENDENTE 249
m o " 1 9 . Em primeiro lugar, o niilismo significa a negação e a depreciação da vida, que adquire valor de nada, de mera aparência, por oposição a um "verdadeiro mundo" de valores superiores, em função dos quais esta vida é desvalorizada. Em segundo lugar, o niilismo designa a desvalorização dos próprios valores supremos, a negação de sua existência e validade. Neste segundo sentido de niilismo, não se trata mais de desvalorizar a vida em nome dos valores supremos, mas de negar esses próprios valores: negação de Deus, da moral e da verdade. Esses dois sentidos de "niilismo" são contraditórios apenas na aparência e estão intimamente relacionados entre si. Na "História de um erro", que Nietzsche narra no Crepúsculo dos ídolos, os dois sentidos do niilismo são dois momentos de um mesmo processo, dois extremos de um mesmo contínuo. O niilismo enquanto desvalorização da vida inaugura esta história com o nascimento do platonismo e a conseqüente negação do mundo aparente em função do "verdadeiro mundo". E o niilismo enquanto desvalorização dos valores é o quinto capítulo desta mesma história, quando o "verdadeiro" mundo finalmente se revela "uma Idéia que não é útil para mais nada, que não é mais nem sequer obrigatória - uma Idéia que se tornou inútil, supérflua, conseqüentemente uma Idéia refutada: expulsemo-la! (Dia claro; café da manhã; retorno do bon sens e da serenidade; rubor de vergonha em Platão; alarido dos demônios em todos os espíritos livres)"20. Aqui, a menção à serenidade não é gratuita: ela já figurava no título do aforismo de A gaia ciência, em que Nietzsche relacionava a morte de Deus ao eclip-
19. Deleuze, G., Nietzsche et Ia philosophie, cit., pp. 169 ss. 20. Nietzsche, "Como o 'verdadeiro mundo' acabou por se tor
nar em fábula", Crepúsculo dos ídolos, Obras incompletas, cit., p. 332.
250 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
se iminente da moral européia 2 1 . Assim, no processo descrito na "História de um erro", é a primeira figura do niilismo, a desvalorização da vida em nome de valores superiores, que deságua na segunda figura do niilismo, que é sua negação aparente: a desvalorização desses próprios valores. Portanto, é um mesmo processo unitário que nasce com o "verdadeiro mundo" e termina com sua morte, é um só curso histórico que leva do niilismo, enquanto desvalorização da vida pelos valores supremos, ao niilismo como desvalorização desses próprios valores. Como entender essa passagem do pró ao contra?
O que explica o advento do niilismo enquanto desvalorização dos valores, e por que a sua irrupção é necessária? É um erro - garante Nietzsche - considerar como causas do niilismo a miséria social, a degeneração fisiológica ou a corrupção. Nada disso tem poder suficiente para produzir o niilismo, para promover a desvalorização dos valores. Afinal, miséria social, degeneração fisiológica ou corrupção são coisas que permitem múltiplas interpretações22. Na verdade, o niilismo é a "conseqüência lógica" de nossos próprios valores e ideais, é o próprio cristianismo que leva à supressão do cristianismo2 3. Com essa tese, Nietzsche reata com um dos cacoetes intelectuais mais caros ao século XTX e, sem dúvida, paga o seu tributo a ele: as coisas vão ao fundo por si mesmas, não por qualquer causa exterior. Para Marx, o capitalismo também caminhava para a dissolução graças às suas contradições internas, não por alguma influência exógena. É essa idéia que Nietzsche
21. Nietzsche, A gaia ciência, % 343, Obras incompletas, cit., p. 211. 22. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 2[27], KSA, vol. 12, p. 125,
Obras incompletas, cit., p. 379. 23. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11[412], KSA, vol. 13, p. 190.
VIDA DECADENTE, VIDA ASCENDENTE 251
reabsorve em sua filosofia da vontade de potência. "Todas as grandes coisas perecem por obra de si mesmas, por um ato de auto-supressão: assim quer a lei da vida, a lei da necessária 'auto-superação' que há na essência da própria vida." 2 4 Esta autofagia do cristianismo se dá por etapas e corresponde a um declínio do princípio do dever em benefício do princípio do querer. O que resta após o fim da fé cristã, que comandava ao homem o que ele devia fazer, é apenas um "eu quero"; mas este resto é o seu momento nuclear, já que o cristianismo nasceu graças a uma as-tenia da vontade, uma necessidade de apoio por parte dos que não podem comandar, mas só obedecer. Por isso, nesta autodestruição do cristianismo caminha-se do niilismo imperfeito ao niilismo perfeito.
Em primeiro lugar, o cristianismo como dogma perece por obra e graça da própria moral cristã 2 5. E a vontade de verdade, a veracidade cristã que proíbe a mentira da crença em Deus. Afinal, o que é, para Nietzsche, a "vontade de verdade"? Um fenômeno essencialmente moral, já que ela se reduz, no fundo, à vontade de não enganar nem sequer a si mesmo 2 6 . Assim, o que triunfou sobre o Deus cristão foi a própria moralidade cristã, "o conceito de veracidade, tomado cada vez mais rigorosamente, o refinamento de confessores da consciência cristã, traduzido e sublimado em consciência científica, em asseio intelectual a qualquer preço" 2 7 . É a veracidade cristã, exponen-ciada em consciência científica, que agora proíbe ver a natureza como prova da bondade de Deus, ou interpretar a
24. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 27, cit., p. 183. 25. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 27, cit., p. 183. 26. Nietzsche, A gaia ciência, % 344, Obras incompletas, cit., p. 213. 27. Nietzsche, A gaia ciência, % 357, Obras incompletas, cit., p. 219.
252 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
história como o desdobramento de uma teleologia ética. Este momento é aquele do positivismo ou do ateísmo científico do século XIX. Mas esta consciência científica ainda não está inteiramente desvinculada do cristianismo, ela é apenas um niilismo imperfeito. Afinal, a ciência não é antagonista do ideal ascético, pelo contrário. Se ela o combate, é apenas em seus adereços exteriores, como o dogmatismo. A consciência científica permanece cativa da vontade de verdade, mas este resto do ideal é justamente o seu âmago, é fé em um valor metafísico da verdade, e por isso o "verídico", tal como o pressupõe a crença na ciência, afirma outro mundo que não o da vida, da natureza e da história, e com isso nega o mundo dado. Este antimetafísico, anticristão e ateu apenas prolonga a crença cristã e platônica de que a verdade é divina 2 8. Por isso, o último ato da comédia cristã só acontecerá quando a veracidade tirar a "sua mais forte conclusão, aquela contra si mesma; mas isso ocorre quando coloca a questão: 'que significa toda vontade de verdade?'... Nesta gradual consciência de si da verdade - disso não há dúvida - perecerá doravante a moral" 2 9 . Agora se concluirá que nada é verdadeiro, tudo é permitido, a fé na própria verdade é abandonada e surge a autêntica liberdade de espírito, quando o dever que ainda restava em relação à verdade dá lugar ao puro querer. E o nascimento do niilismo perfeito.
O que ressurge do niilismo enquanto desvalorização dos valores é o niilismo como desvalorização da vida. O último niilista, o niilista perfeito, sabe que o cristianismo morreu, mas ainda vive sob o signo de uma exigência cristã. Na negação dos valores, na consciência de que a exis-
28. Nietzsche, A gaia ciência, § 344, Obras incompletas, cit., p. 213. 29. Nietzsche, Genealogia da moral, III, § 27, cit., p. 183.
VIDA DECADENTE, VIDA ASCENDENTE 253
tência não tem sentido, ele mantém sobre si a sombra de Deus como a experiência de uma ausência - prova de que a morte de Deus ainda não foi efetivamente completada, visto que ainda se necessita dele. O último niilista superou o cristianismo, mas não a exigência que lhe dera origem: o sentimento de que a vida não vale a pena, de que o mundo, tal como deveria ser, não existe, e de que o mundo existente não deveria ser. Como os valores que davam sentido ao sofrimento se desvalorizaram, a vida retorna nua e crua como ausência de sentido da dor, niilismo como desvalorização da vida. Sócrates e Schopenhauer são os símbolos do início e do fim deste movimento, que vai da decadência edulcorada à decadência que perdeu a ideologia que lhe atribuía um "sentido", e se revela como niilismo completo. Sócrates, dirá Nietzsche, o mais sábio de todos os charlatães, apresenta apenas uma questão de fundo: para ele a vida era uma enfermidade de que padeceu 3 0 . Era essa apreciação da vida como uma doença, como fonte de males, que estava na origem de todas as suas elucubrações. No pessimismo filosófico do século XIX, é esta mesma experiência da vida como enfermidade que se apresenta, agora, como experiência que não poderá mais ser interpretada e justificada.
Donde a correlação estrita que Nietzsche estabelecerá entre os dois sentidos do "niilismo", a desvalorização dos valores e a desvalorização da vida, ao analisar as três figuras em que surge o niilismo como "estado psicológic o " 3 1 . É a desvalorização dos valores que acarreta a desvalorização da vida. Assim, quando surge a consciência de
30. Nietzsche, A gaia ciência, § 340, Obras incompletas, cit., p. 208. 31. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [99], KSA, vol. 13, p. 46,
Obras incompletas, cit., p. 381.
254 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
que no vir-a-ser nenhuma meta se realiza, se a categoria "fim" revela-se inaplicável e se desvaloriza, o niilismo enquanto estado psicológico é o tormento do "em vão". Com o reconhecimento de que não há qualquer todo unitário sob o acontecer, com a desvalorização da categoria "unidade", o niilismo como estado psicológico é a perda da crença do homem no seu valor, já que ele concebera esse todo unitário para poder acreditar em seu próprio valor. Enfim, quando a descrença em um mundo metafísico proíbe a crença em um "verdadeiro mundo", quando a categoria "ser" se desvaloriza e se tem de admitir o vir-a-ser como única realidade, o niilismo enquanto estado psicológico é não suportar este mundo do vir-a-ser, que todavia não se pode mais negar. A desvalorização dos valores, no caso, o fim da crença nas "categorias da razão", é a causa do niilismo, visto que "as categorias 'fim', 'unidade', 'ser', com as quais tínhamos imposto ao mundo um valor, foram outra vez retiradas por nós - e agora o mundo parece sem valor..."32.
O essencial está menos na desvalorização dos valores e mais naquilo que ela acarreta, o niilismo enquanto desvalorização da vida. E isso porque, profundamente, Nietzsche se pensa como quem nos propõe uma "filosofia da existência", não uma filosofia do conhecimento ou uma filosofia da ação. Donde o sumo ridículo desta espécie de escroquerie intelectual que procura extorquir, de seus textos, uma "teoria do conhecimento" ou uma doutrina da "praxis", coisas com as quais ele se preocupou tanto quanto Espinosa com o marketing do MacDonald's. A tarefa da filosofia é recuperar um certo modo de situar-se diante
32. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [99], KSA, vol. 13, p. 46, Obras incompletas, cit., p. 381.
VIDA DECADENTE, VIDA ASCENDENTE 255
da existência: enquanto a décadence se resume em um não dirigido à vida, para Nietzsche a sua filosofia "quer, em vez disso, atravessar até ao inverso - até a um dionisíaco dizer-sim ao mundo, tal como é, sem desconto, exceção e seleção" 3 3 . É para exprimir essa nova atitude diante da existência que Nietzsche recorrerá à fórmula amorfati. A filosofia assim concebida implica compreender os lados da existência até agora negados não só como necessários, mas também como desejáveis: estes são os lados da existência mais poderosos, mais verdadeiros, mais fecundos, aqueles em que a vontade da existência se exprime mais claramente. Esta filosofia também deverá investigar de onde provém a valoração dos lados da existência até hoje afirmados e como essa valoração não é exigida para uma medição de valor dionisíaca: é nessa valoração que se exprime o instinto dos que sofrem, o instinto de rebanho da maioria contra as exceções. Donde o significado que se deve atribuir aos conceitos de "nobre", "clássico", "pa-gão": eles designam seres superiores que se situam para além de bem e mal, quer dizer, para além dos valores que se originam no sofrer, no rebanho, na maioria 3 4 . Por isso Nietzsche oporá Dioniso ao Crucificado como dois tipos de homem religioso, dois modos muito distintos de convivência com o sofrimento, de sentido do sofrer. Em um caso, o culto pagão como afirmação religiosa da vida, da vida inteira, não negada e pela metade, o espírito bem sucedido que acolhe e redime em si as contradições e problemas da existência, o homem trágico que é forte e pleno o bastante para afirmar o mais acerbo sofrer. No outro
33. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 16[32], KSA, vol. 13, p. 492, Obras incompletas, cit., p. 393.
34. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 16[32], KSA, vol. 13, p. 492, Obras incompletas, cit., p. 393.
256 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
caso, ao contrário, o sofrer, "o 'crucificado como inocente', vale como objeção contra esta vida, como fórmula de sua condenação" 3 5 .
Recuperar o estilo dionisíaco diante da existência será equivalente a desenraizar a apreensão da vida como algo condenável, aquilo mesmo que fazia do decadente alguém inclinado ao cristianismo. Era esta mesma apreensão que estava na origem de toda ética, enquanto ela é uma doutrina do desejável que insiste em pregar que "deveria ser de outra maneira", deveria "chegar a ser de outra maneira", o que só exprime o descontentamento com a realidade. Assim como era esta apreensão da vida que estava na origem daquele construto intelectual ao qual se deu o nome de "filosofia". Por isso Nietzsche dirá que "a história da filosofia é uma raiva secreta contra as condições da vida, contra os sentimentos de valor da vida, contra a decisão a favor da vida" 3 6 . As fabulações do "verdadeiro mundo" só exprimem esta birra com o mundo efetivo e, enquanto "escola da calúnia", a filosofia impôs de tal forma a sua pedagogia, que até mesmo a nova ciência, que se fazia passar por intérprete da vida, aceitou sem mais a calúnia originária, e manipula o mundo como se ele não fosse mais que aparência. O homem busca um "verdadeiro mundo" onde não se padeça da contradição, da ilusão e da mudança - causas do sofrimento. Mas por que é precisamente o sofrimento que ele deriva da mudança, da ilusão, da contradição? Por que ele não deriva dali a sua felicidade? Se pudesse fazê-lo, o niilismo estaria superado. Mas foi o contrário que aconteceu, a vontade do verdadeiro foi traduzida em vontade do permanente, ela foi
35. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[89], KSA, vol. 13, p. 265, Obras incompletas, cit., p. 394.
36. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[134], KSA, vol. 13, p. 317.
VIDA DECADENTE, VIDA ASCENDENTE 257
o desejo de um mundo onde tudo fosse duradouro, um mundo cujo caminho fosse traçado pela razão, não pelos sentidos, sempre enganadores. Compreendeu-se que a felicidade só podia estar garantida pelo que é: a mudança e a felicidade se excluiriam reciprocamente, e desde logo a ambição a mais alta foi conseguir a identificação com o "ser". Por isso, a crença dos filósofos no "ser" foi uma conseqüência, algo de derivado em face de uma convicção prévia: a desconfiança diante do vir-a-ser, oriunda da apreciação de que dali só se deriva o sofrimento, a apreciação mesma da "decadência". Mas agora que Deus morreu, que a veracidade cristã tirou a sua mais forte conclusão, aquela contra si mesma, agora que os "verdadeiros mundos" se inscreveram na história de um erro, não se terminou ainda com a apreciação da vida que tornava o cristianismo um ópio necessário aos sofredores. O niilista é na verdade um cristão infeliz, alguém para quem o mundo, tal como deveria ser, não existe, e o mundo, tal como existe, não deveria ser. Se o niilismo vem à tona neste momento, não é porque o desgosto com a existência seja maior hoje em dia do que outrora, mas porque surgiu uma suspeita em relação ao "sentido" do mal e da existência. "Uma interpretação sucumbiu: mas, porque ela valia como a interpretação, parece como se não houvesse nenhum sentido na existência, como se tudo fosse em vão."3,7
V
Quem vos fala - diz Nietzsche - é "o primeiro niilista perfeito da Europa, mas que já superou o niilis-
37. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 5[71], KSA, vol. 12, p. 211, Obras incompletas, cit., p. 383.
258 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
m o " 3 8 . Superar o niilismo não será, de forma alguma, reeditar um novo platonismo, voltar a vestir a velha casaca de professor da meta da existência e redescobrir outro sentido para a vida. A superação do niilismo será um assunto interior ao próprio niilismo. O que se trata de fazer é pôr fim à associação entre o vir-a-ser e o sofrimento, aquilo mesmo que levava à condenação do mundo e dava origem ao cristianismo, à moral e à filosofia. Era isso que facultava a culpabilização, o ressentimento e a vontade de vingança. Superar o niilismo será substituir a negação e condenação do mundo pela sua afirmação. Como empreender essa superação? Essencialmente, exercitan-do-se em uma nova "perspectiva". O importante é adquirir "uma elevação e uma perspectiva de observação tal que se compreenda que tudo caminha como deve caminhar; que toda espécie de 'imperfeição' e os sofrimentos que esta produz fazem parte das coisas que mais se deve desejar" 3 9 . Aqui Nietzsche estabelece uma relação de premissa a conseqüência: se tudo caminha como deve caminhar, quer dizer, se existe coincidência estrita entre ser e dever-ser, então desejar será sempre desejar o que é, mesmo a imperfeição e o sofrimento. Esta nova perspectiva em que termina toda e qualquer distância entre ser e dever-ser será uma certa interpretação do vir-a-ser, agora deliberadamente despojado de todo e qualquer finalis-mo. Afinal, se o vir-a-ser fosse interpretado, na linguagem finalista, como a realização progressiva de alguma meta, o presente seria medido por um ideal futuro que deveria ser mas ainda não é, e voltaria a cisão entre ser e dever-ser. Essa nova perspectiva sobre o vir-a-ser é oriunda do nii-
38. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11[411], KSA, vol. 13, p. 189. 39. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11[30], KSA, vol. 13, p. 17.
VIDA DECADENTE, VIDA ASCENDENTE 259
lismo como desvalorização dos valores, consciência da inaplicabilidade da categoria "fim". E ela não deverá mais admitir qualquer nostalgia de niilista fraco por uma nova finalidade, que viesse substituir aquela que decepcionou. "A pergunta do niilismo, 'para quê?', vem do hábito que houve até agora, em virtude do qual o alvo parecia posto, dado, exigido de fora - ou seja, por alguma autoridade sobre-humana. Depois que se desaprendeu de acreditar nesta, procurou-se no entanto, segundo o velho hábito, por uma outra autoridade, que soubesse falar incondicionalmente e pudesse comandar alvos e tarefas. A autoridade da consciência entra agora em primeira linha (quanto mais emancipada da teologia, mais imperativa se torna a moral), como indenização por uma autoridade pessoal. Ou a autoridade da razão. Ou o instinto social (o rebanho). Ou a história dotada de um instinto imanente tendo seu alvo em si, e à qual é possível abandonar-se."40 Se o niilista consumado abandona não só o finalismo teológico, como também todas as suas metamorfoses no finalismo moral, social ou histórico, é porque ele não formulará mais a própria pergunta que ainda atormentava a consciência do niilista fraco e indicava o quanto ele ainda não se libertara das últimas sombras do Deus morto. O niilista consumado não perguntará mais "para quê?" - precisamente a tópica que, uma vez formulada, nos reinscrevia na órbita da tradição, da decadência, da fraqueza.
Essa recusa radical do finalismo terá uma conseqüência relativa ao valor do mundo. Agora não haverá mais qualquer meta ideal em função da qual se possa medir o valor do presente, segundo sua proximidade ou distância
40. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 9[43], KSA, vol. 12, p. 355, Obras incompletas, cit., p. 382.
260 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
em relação a um fim a ser realizado. Se o vir-a-ser deve ser compreendido sem se recorrer a intenções finais, então ele "deve aparecer justificado em todo momento (ou então deve aparecer não valorável: o que nos leva à mesma conclusão); não podemos de modo algum justificar o presente por um futuro ou o passado com o presente" 4 1 . Se cada momento do vir-a-ser está justificado, visto que ali não se explicita nenhuma meta, então todos os momentos do vir-a-ser têm igual valor, e a soma de seu valor permanece sempre igual. Isso significa reconhecer que o vir-a-ser não tem nenhum valor, porque falta algo com o qual se possa medir e em relação ao qual a palavra "valor" tenha sentido. Em outros termos, o valor completo do mundo não é nada de valorável, e por isso mesmo o "pessimismo filosófico" não passa de comédia. Mas daqui decorre outra conseqüência. Será preciso renunciar à mania de julgar a história, de despojá-la de sua fatalidade, de torná-la responsável. "Nós, que queremos devolver ao vir-a-ser a sua inocência, queremos ser os apóstolos de uma idéia mais pura: a de que ninguém deu suas qualidades ao homem, nem Deus, nem a sociedade, nem seus pais, nem seus antepassados, nem ele mesmo; que ninguém tem culpa disso... Não existe um ser ao qual tornar responsável de que outro ser exista, de que um indivíduo esteja conformado de determinado modo, de que tenha nascido em tal ou qual situação ou ambiente. E é um grande consolo que falte semelhante ser.. ." 4 2 Como é a vontade de vingança que procura os culpáveis, os responsáveis, é a ela que se precisa renunciar na nova perspectiva sobre o vir-a-ser, que representará o fim dos culpáveis, do ressentimento e da própria vontade de vingança. Reuna-
41. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [72], KSA, vol. 13, p. 34. 42. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 15[30], KSA, vol. 13, p. 422.
VIDA DECADENTE, VIDA ASCENDENTE 261
mos as características exigidas por esta nova compreensão do vir-a-ser: recusa do finalismo; impossibilidade de valorar o todo; fim da vontade de vingança. Para Nietzsche, apenas um modo de se pensar o vir-a-ser reúne em si estas três condições: é compreender o vir-a-ser sob a forma do eterno retorno do mesmo.
CAPÍTULO XI SUPERAR O NIILISMO
I
Como observava Karl Lõwith, a doutrina nietzschiana do eterno retorno tem duas faces, uma cosmológica e outra antropológica1. Ou, antes, ela é uma doutrina cosmológica que terá conseqüências antropológicas, na medida em que sua admissão trará reflexos para a existência humana. E essa duplicidade que está na origem das distintas apresentações, por Nietzsche, do estatuto da doutrina, aparentemente conflitantes entre si. Assim, em alguns fragmentos póstumos ela é apresentada como "a mais científica de todas as hipóteses possíveis" 2. O que aponta para uma doutrina que pelo menos flerta com a ciência, ou partilha daquilo que, para Nietzsche, é o espírito científico; e ela vai ser elaborada a partir de conceitos tomados de empréstimo à física - como o conceito de "força" - e será de-liberadamente apresentada como uma alternativa à com-
1. Lõwith, K., Nietzsche's Philosophie..., cit., III, cap. 2, § 3. 2. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 5[71], KSA, vol. 12, p. 211,
Obras incompletas, cit., p. 383.
264 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
preensão mecânica do universo. Mas em flagrante contraste com esse recorte "cientificista", em outros textos Nietzsche afirma que só terá direito à idéia do retorno quem já tiver atravessado todos os graus do ceticismo. E ele apresentará a sua doutrina como a religião das almas livres, serenas e sublimes. E guardemo-nos - diz Nietzsche - "de ensinar um tal ensinamento como uma súbita religião! Ele tem de embeber lentamente, gerações inteiras têm de edificar nele e nele tornar-se fecundas..." 3 A mais científica das hipóteses e a religião das almas livres? Antes de verificar se esta dupla apresentação do estatuto da doutrina envolve ou não uma aporia, vale a pena constatar que ela decorre de sua duplicidade original. Da mesma forma, é esta dupla face cosmológica e antropológica que Nietzsche sublinha quando apresenta o pensamento do eterno retorno como sendo a união dos dois mais importantes pontos de vista filosóficos descobertos pelos alemães, o do vir-a-ser e o do valor da existência4.
Mas para compreender a doutrina do retorno com suas duas faces e verificar ainda a sua própria condição de possibilidade, é preciso levar em conta que ela é, para Nietzsche, um pensamento que só pode ser formulado após o advento do niilismo e, por assim dizer, em seu bojo. A doutrina só se sustenta sob o horizonte da morte de Deus, ela só recebe seu direito de cidadania em um universo inteiramente desdivinizado, sendo uma conseqüência da consideração de um mundo para o qual Deus morreu. A superação do niilismo não será a descoberta de qualquer horizonte extraniilista, mas a transição daquilo que Nietzsche chama de "niilismo fraco" para o "niilismo
3. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [158], KSA, vol. 9, p. 503, Obras incompletas, cit., p. 390.
4. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 24 [7], KSA, vol. 10, p. 646.
SUPERAR O NIILISMO 265
forte". Por isso ele apresentará a doutrina do eterno retorno como "a mais extrema forma do niilismo: o nada (o 'sem sentido') eterno!" 5 . Essa dependência do eterno retorno ao ateísmo é expressamente assumida por Nietzsche em textos nos quais ele apresenta, como alternativas mutuamente exclusivas, ou Deus ou o eterno retorno. "Quem não acredita em um processo circular do todo tem de acreditar no Deus voluntário - assim minha consideração se condiciona na oposição a todas as considerações teístas que houve até agora." 6 Será essencial nunca perder de vista que, para Nietzsche, a doutrina do retorno se constitui por oposição às hipóteses teístas. Porque é exatamente essa oposição que vai definir o estilo argumentativo que Nietzsche utilizará para estabelecer sua doutrina. Os argumentos que "demonstram" o eterno retorno serão essencialmente negativos: o filósofo considerará uma tese legitimada porque a tese contrária implicaria alguma hipótese teológica. Desde então, é exclusivamente a idéia de que o eterno retorno se condiciona na oposição a todas as considerações teístas que estará, no limite, legitimando a doutrina. E isso fica claro no modo como Nietzsche constrói a doutrina do retorno em sua faceta cosmológica, como a "mais científica das hipóteses".
II
A afirmação de que "tudo retorna" é a resultante do entrelaçamento entre duas teses principais, dois princí-
5. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 5 [71], KSA, vol. 12, p. 211, Obras incompletas, cit., p. 383.
6. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [312], KSA, vol. 9, p. 561, Obras incompletas, cit., p. 388.
266 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
pios: 1) o tempo é infinito; 2) as forças são finitas. Uma vez admitidas essas teses, delas decorrerá que "tudo retorna". Mas para a admissão desses dois princípios, justamente, não se apresentará nenhuma prova positiva: se eles são legitimados por Nietzsche, é apenas porque as teses contrárias implicariam hipóteses teístas. E é isso que se pode verificar nos textos que Nietzsche dedica ao tempo, ao anunciar a sua nova concepção do mundo. "O mundo subsiste; não é nada que vem a ser, nada que perece. Ou antes: vem a ser, perece, mas nunca começou a vir a ser e nunca cessou de perecer - conserva-se em ambos. . . " 7 O que se recusa nessa nova concepção de um mundo que nunca começou a vir a ser é a noção clássica de "criação". A hipótese de um mundo criado, diz Nietzsche, não deve afligir-nos nem por um instante. "O conceito 'criar' é hoje perfeitamente indefinível, inexeqüível; meramente uma palavra ainda, rudimentar, dos tempos da superstição." 8 A palavra "criação" nos reporta apenas ao período cristão da humanidade, mas hoje em dia, em regime de niilismo, ela não pode servir para mais nada. Se Deus morreu, a idéia de um universo criado deve ser guardada na galeria dos preconceitos. Mas a recusa da noção de criação é, imediatamente, a admissão de que o tempo é infinito, pois somente sob o horizonte criacionis-ta tem cabimento falar em um começo do tempo. Se em regime de niilismo Deus está morto, junto com ele foram enterradas as idéias de criação e de tempo finito; se o universo não foi criado, então há uma infinidade temporal do
7. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[188], KSA, vol. 13, p. 374, Obras incompletas, cit., p. 396.
8. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[188], KSA, vol. 13, p. 374, Obras incompletas, cit., p. 396.
SUPERAR O NIILISMO 267
mundo para trás, e deve-se conceber como legítima a idéia de um regressus in infinitum. É bem verdade, diz Nietzsche, que recentemente ainda se fez uma última tentativa de conceber um mundo que começa, através de um procedimento lógico - e sempre com uma segunda intenção teológica. Simplesmente, tentou-se encontrar uma contradição no conceito de regresso ao infinito. Mas a suposta contradição é puramente ilusória: afinal, nada nos impede de calcular, de um instante dado para trás, e dizer que nunca se chegará ao fim; assim como nada impede de calcular, do mesmo instante para a frente, ao infinito. Se Dühring enxerga uma contradição no regresso ao infinito, é ao preço de equipará-lo, fraudulentamente, a um progressus finito, e de considerar a direção do tempo, para a frente ou para trás, como logicamente indiferente. Tomando o regresso ao infinito por um progresso finito, Dühring já teologiza, já concebe o tempo como finito e o mundo como tendo um começo. Mas, se Deus morreu, e com ele a idéia de um começo do mundo, é forçoso compreender o tempo como infinito. Donde a aclimatação do primeiro princípio da doutrina do retorno, pela recusa da tese contrária, contaminada pelo teísmo.
A justificação do segundo princípio, a tese da finitude das forças que se desdobram no vir-a-ser, seguirá a mesma estratégia. Outrora, diz Nietzsche, "se pensava que a atividade infinita no tempo requer uma força infinita, que nenhum consumo esgotaria. Agora pensa-se a força constantemente igual, e ela não precisa mais tornar-se infinitamente grande"9. Por que houve esta mudança de perspectiva? Essencialmente, porque agora prevalece o espírito
9. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11[269], KSA, vol. 9, p. 544, Obras incompletas, cit., p. 387.
268 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
científico sobre o espírito religioso, fabulador de deuses. É o espírito científico que leva a conceber o mundo como uma força que não pode ser ilimitada. Era o deus cristão que os homens concebiam como uma força infinita. Hoje, em regime de morte de deus, o espírito religioso quer ainda que o mundo, mesmo sem deus, herde seus atributos arcaicos e seja apto à divina força criadora, à infinita força de transmutação. "E sempre ainda a velha maneira religiosa de pensar e desejar, uma espécie de aspiração a acreditar que, em alguma coisa, o mundo é igual ao velho, querido, infinito deus ilimitadamente criador - que em alguma coisa 'o velho deus vive ainda' -, aquela aspiração de Espinosa, que se exprime na palavra 'deus sive natura' (ele chegava mesmo a sentir: 'natura sive deus')."10 Mas com a exclusão do espírito religioso, será forçoso reconhecer que o mundo, como força, não pode ser concebido como ilimitado, e será preciso concluir que a noção de força infinita é agora até mesmo incompatível com o conceito de força. O mundo como força é uma quantidade finita. Finita e fixa. Pois, se as forças tendessem a aumentar, teríamos de supor uma fonte das forças e voltaríamos à hipótese teológica; se elas tendessem a diminuir, como já transcorreu um tempo infinito, o mundo teria sucumbido 1 1 .
Da conjunção entre os dois princípios decorrerá que tudo já retornou infinitas vezes, o vir-a-ser comporta repetições, já que agora o mundo perdeu a faculdade da eterna novidade. Afinal, se as forças são finitas e se desdobram em um tempo infinito, a força é eternamente ativa "mas não pode mais criar infinitos casos, tem de se repetir: essa
10. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 36[15], KSA, vol. 11, p. 556, Obras incompletas, cit., p. 395.
11. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11[148], KSA, vol. 9, p. 498, Obras incompletas, cit., p. 389.
SUPERAR O NIILISMO 269
é a minha conclusão" 1 2 . Assim, já existiram muitos sistemas de forças, mas não infinitos sistemas, pois isso suporia uma força indeterminada. Mas a medida da força total é determinada, ela não é infinita. Conseqüentemente, o número de combinações e situações dessa força também é determinado, não infinito. "Se todas as possibilidades na ordem e relação das forças já não estivessem esgotadas, não teria passado ainda nenhuma infinidade. Justamente porque isto tem de ser, não há mais nenhuma possibilidade nova e é necessário que tudo já tenha estado aí, inúmeras vezes." 1 3 Sob esta "perspectiva", um vir-a-ser sempre novo ao infinito é uma contradição: ele suporia uma força que crescesse ao infinito. Mas de onde poderia sair essa força, senão do velho deus? Assim, quem aceita a legitimidade dos princípios antiteológicos da infinidade do tempo e da finidade das forças, terá de admitir um vir-a-ser que forçosamente perdeu a faculdade da eterna novidade, terá de admitir que tudo já se repetiu e já se repetiu infinitas vezes. Quem vive em regime de morte de deus precisa extrair esta última conseqüência: o vir-a-ser não é a produção do novo, mas o retorno do mesmo.
Com isso, já disporíamos de uma doutrina do eterno retorno? É evidente que não. Por enquanto, temos apenas uma teoria que faculta um vir-a-ser em que tudo já se repetiu infinitas vezes, não uma doutrina do retorno eterno. Para isso, é preciso dar um passo a mais, visto que nada ainda proíbe que exista um fim do vir-a-ser. Para que o retorno possa ser eterno, é esta possibilidade que é preciso
12. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [269], KSA, vol. 9, p. 544, Obras incompletas, cit., p. 387.
13. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11[152], KSA, vol. 9, p. 500, Obras incompletas, cit., p. 387.
270 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
anular, é preciso ter a certeza de que o vir-a-ser não caminha em direção a uma meta. Mas este novo passo não exigirá a introdução de qualquer novo princípio, ele será uma simples decorrência dos dois princípios da doutrina. Como se traduz, na linguagem das forças, a tese de que o vir-a-ser é regido por uma finalidade e caminha em direção a uma meta? Ela se traduz na hipótese mecânica de Thompson, aquela segundo a qual o mundo das forças caminha em direção a um estado terminal, em que as forças entrariam em um estado de equilíbrio em que nada mais adviria, o vir-a-ser se condensando e se paralisando, ou então tendo seu desenlace final na pura e simples extinção das forças. O vir-a-ser teria uma meta, que seria o ser ou o nada. Que pensar dessa hipótese mecânica? Simplesmente, ela não resiste à tese da infinidade do tempo. Afinal, se o vir-a-ser tivesse uma meta, como já transcorreu um tempo infinito, ela já devia ter sido alcançada. "Se o mundo pudesse enrijecer, secar, morrer, tornar-se nada, ou se pudesse alcançar um estado de equilíbrio, ou se tivesse em geral algum alvo que encerrasse em si a duração, a inalterabilidade, o de-uma-vez-por-todas (em suma, dito metafisicamente: se o vir-a-ser pudesse desembocar no ser ou no nada), esse estado teria de estar alcançado. Mas não está alcançado: de onde se segue..." 1 4 Se o mundo não deságua no ser ou no nada, se as forças não caminham para sua extinção nem para um estado de equilíbrio no qual se solidificariam, então o desequilíbrio das forças é originário e eterno, tal como no vir-a-ser descrito por Heráclito: o mundo não tem nenhum alvo, não caminha para nenhum estado final.
14. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14 [188], KSA, vol. 13, p. 374, Obras incompletas, cit., p. 396.
SUPERAR O NIILISMO 271
Sim, o mundo não tem qualquer alvo. Mas que ninguém interprete isso segundo as velhas mitologias. Um risco que sempre se corre, garante Nietzsche, já que é tão forte e arraigado o antigo hábito de pensar alvos sob todo acontecimento, assim como supor um deus criador e dirigente do mundo, que "o próprio pensador tem dificuldade para não pensar a ausência de alvo do mundo, mais uma vez, como intenção" 1 5 . Como se fosse voluntariamente que o mundo se afasta de um fim, e até mesmo sabe evitar o entrar em um curso circular. Quem pensa um mundo que se afasta intencionalmente tanto de um estado final quanto do retorno do mesmo? Certamente, todos aqueles que querem impor ao mundo, por decreto, a faculdade da eterna novidade. Para eles, o mundo deve voluntariamente proteger-se tanto da repetição quanto de um alvo final. Aos seus ouvidos, o pensamento do retorno soará como uma extravagância. Mas deve-se reconhecer que é uma maneira "imperdoavelmente maluca de pensar e desejar" querer "impor a uma força finita, determinada, de grandeza inalteravelmente igual, tal como é o mundo, a miraculosa aptidão à infinita nova configuração de suas formas e situações" 1 6 . Se o tempo é infinito e as forças são finitas, se além disso o mundo não caminha para qualquer alvo final, mas mantém um permanente desequilíbrio das forças, então tudo retorna e retorna eternamente. "Se o mundo pode ser pensado como grandeza determinada de força e como número determinado de centro de força - e toda outra representação permanece indeterminada e conse-
15. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 36[15], KSA, vol. 11, p. 556, Obras incompletas, cit, p. 395.
16. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 36[15], KSA, vol. 11, p. 556, Obras incompletas, cit., p. 395.
272 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
qüentemente inutilizável -, disso segue que ele tem de passar por um número calculável de combinações, no grande jogo de dados de sua existência. Em um tempo infinito, cada combinação possível estaria alguma vez alcançada; mais ainda: estaria alcançada infinitas vezes. E como entre cada combinação e o seu próximo retorno todas as combinações teriam de estar transcorridas e cada uma dessas combinações condiciona a seqüência inteira das combinações da mesma série, com isso estaria provado um curso circular de séries absolutamente idênticas: o mundo como curso circular que infinitas vezes já se repetiu e que joga seu jogo in infinitum."17 Não há saída: quem não acredita no deus voluntário, tem de acreditar no eterno retorno do mesmo.
III
Da doutrina do retorno se espera, antes de tudo, um determinado efeito sobre a existência. Do ponto de vista "antropológico" o pensamento do eterno retorno, definido agora como a religião das almas libérrimas, deve exercer uma ação ético-pedagógica sobre a humanidade. E este aspecto é até mesmo o essencial, já que para Nietzsche o efeito "existencial" da doutrina estaria garantido, mesmo se ela se mostrasse cientificamente indemonstrá-vel e se impusesse apenas como uma mera probabilidade. Enquanto religião das almas libérrimas, seu efeito sobre a humanidade não é algo estritamente dependente de qualquer certeza especulativa. "Mesmo admitindo que a re-
17. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[188], KSA, vol. 13, p. 374, Obras incompletas, cit., pp. 396-7.
SUPERAR O NIILISMO 273
petição cíclica seja apenas uma verossimilhança ou uma possibilidade, basta o pensamento de uma possibilidade para nos emocionar e nos transformar, da mesma forma como sentimentos e esperanças." 1 8 Afinal, é apenas um prejuízo intelectualista - ingenuamente platônico - acreditar que é o grau de certeza de um pensamento que está na origem do efeito que ele possa produzir sobre alguém. Isso é crer que apenas o constrangimento do verdadeiro é eficaz, o que é uma grande tolice: o cristianismo exerceu imensa influência enquanto idéia - o que não tem absolutamente nada a ver com a "verdade", nem com o índice de certeza de sua doutrina. Que se pense, dirá Nietzsche, na ação que exerceu a simples possibilidade da danação eterna. Neste momento, a doutrina do retorno reata profundamente com o "perspectivismo" de Nietzsche. Como ele anunciara, com essa doutrina trata-se apenas de recuperar uma certa perspectiva sobre o vir-a-ser. Se a doutrina é compatível com a morte de deus, ela não é menos compatível com o perspectivismo que o fim do "verdadeiro mundo" impunha ao conhecimento. Por isso, não se deve de forma alguma reinscrevê-la em uma nova ordem dogmática: trata-se apenas de uma interpretação possível, uma experimentação possível. E assim como outras interpretações nos reportavam a determinado modo de vida, independentemente de seu valor de verdade, é lícito esperar que a idéia do retorno exerça influência sobre a existência, mesmo como simples possibilidade.
E porque a doutrina do retorno deve exercer uma ação sobre a existência que Nietzsche a apresentará como um tipo de postulado prático. "Meu ensinamento diz: viver de tal modo que tenhas de desejar viver outra vez é a tarefa
18. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [203], KSA, vol. 9, p. 523.
274 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
- pois assim será em todo caso!"19 Este é o momento em que a doutrina do eterno retorno, cosmologicamente concebida, passará a ter um significado para a vida. Para que tal postulado seja efetivo, ele exige uma transformação na atitude diante da existência, o oposto de uma condenação da vida: ele implica, da parte do homem, uma tal aprovação da existência que ele viverá de modo a desejar viver, outra vez, aquilo mesmo que sucedeu. De fato, o que é preciso para viver de modo a desejar viver tudo outra vez? É preciso, dirá Nietzsche, que todo traço característico que está no fundamento de cada acontecer seja sentido por um indivíduo como seu traço característico fundamental; isso impeliria esse indivíduo a achar bom, triunfalmente, cada instante da existência universal; isso dependeria, justamente, de sentir em si esse traço característico fundamental como bom, valioso, com prazer 2 0. Assim, a outra face do eterno retorno será o amor fati, aprender a sempre ver o belo na necessidade das coisas, com tudo o que isso implicará: renúncia ao ressentimento, à culpa, à vontade de vingança. Afirmação da vida e não sua negação, fim das acusações contra a existência - tal seria o resultado do pensamento do eterno retorno. O amor fati retoma aquela atitude dionisíaca diante da existência, o dionisíaco dizer-sim ao mundo, e ao mundo tal como ele é, sem desconto, exceção e seleção.
O pensamento do eterno retorno é seletivo, ele é dirigido aos happyfews, o que não é de estranhar em uma filosofia da hierarquia como a de Nietzsche, na qual o que
19. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [163], KSA, vol. 9, p. 504, Obras incompletas, cit., p. 390.
20. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 5[71], KSA, vol. 12, p. 211, Obras incompletas, cit., pp. 383-4.
SUPERAR O NIILISMO 275
importa é não deixar que a parcela sã da humanidade seja contaminada pela degenerada. Por isso, a "mais insalubre espécie de homens na Europa", aquela em que se assenta o niilismo, "sentirá a crença no eterno retorno como uma maldição"21. Para estes, o pensamento do retorno será o mais pesado dos pesos; mas para outros ele será leve: aqueles que amam a vida o bastante "para não desejar outra coisa que não esta suprema e eterna confirmação" 2 2 . Estes são os fortes, os "mais ricos de saúde, os que estão à altura do maior dos malheurs e por isso não têm medo dos malheurs - seres humanos que estão seguros de sua potência e que representam, com consciente orgulho, a força alcançada do homem" 2 3 . É por isso que a crise do niilismo será apresentada por Nietzsche como purificadora: ela condensará os elementos aparentados e os fará corromperem-se uns aos outros, ela fará uma ordenação hierárquica das forças, do ponto de vista da saúde, reconhecendo e separando os que mandam e os que obedecem - e isso, é claro, "à margem de todas as ordenações sociais vigentes". É aos que acham a doutrina do retorno leve que Nietzsche se dirige: são estes que devem ser preservados do contágio pelo niilismo, da condenação da vida, da de-generescência. Mas se a doutrina do retorno é um meio para se obter a afirmação da vida, por oposição àquela condenação da existência que estava na origem do cristianismo, é preciso distingui-la daquele outro modo de afirmação da vida que Nietzsche apresentará como oriundo do "pessimismo da força".
21. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 5 [71], KSA, vol. 12, p. 211, Obras incompletas, cit., pp. 383-4.
22. Nietzsche, A gaia ciência, § 341, KSA, vol. 3, p. 570. 23. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 5 [71], KSA, vol. 12, p. 211,
Obras incompletas, cit., p. 385.
276 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
A afirmação e a negação do mundo dependem de diferentes regimes com os quais se estabelece uma relação com o mal. Mas o que é o mal? Três coisas, dirá Nietzsche: o acaso, o incerto, o súbito 2 4. E existem diferentes maneiras de combatê-lo. Assim, para combater o mal o homem primitivo vai concebê-lo como razão, como potência, como pessoa. Com isso, ele ganha a possibilidade de estabelecer uma espécie de pacto com o mal e, assim, atuar previamente sobre ele. Mas existem as maneiras "civilizadas" de combater o mal. Pode-se afirmar que o mal é pura aparência e interpretar as conseqüências do acaso, do incerto e do súbito como bem intencionadas, plenas de sentido; ou então pode-se interpretar o mal como merecido, justificá-lo como castigo. Atribuir um bom sentido ao mal é renunciar a combatê-lo, e por isso a interpretação moral e religiosa é apenas uma forma de submissão ao mal. Mas o importante é que a história da civilização, enquanto progressivo aumento da calculabilidade e conseqüente aprendizado da crença na necessidade, representa uma diminuição daquele medo do acaso, do incerto, do súbito. A partir deste momento, aquela submissão ao mal e justificação do mal, chamadas de religião e moral, tornam-se supérfluas, visto que agora pura e simplesmente se abole o mal. O "pessimismo da força" será um sintoma desse estágio de "altíssima civilização" e representará uma passagem do pró ao contra: ele designa "um estado de segurança, de crença em lei e calculabilidade, que chega à consciência como fastio - em que o gosto pelo acaso, pelo incerto e pelo súbito sobressai como excitante" 2 5 . Nesse estágio,
24. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10 [21], KSA, vol. 12, pp. 466-7, Obras incompletas, cit., p. 391.
25. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10[21], KSA, vol. 12, pp. 466-7, Obras incompletas, cit., p. 391.
SUPERAR O NIILISMO 277
diz Nietzsche, o homem não precisa mais de uma justificação do mal, como aquela que lhe oferecia a moral e a religião - ele não precisa mais encontrar um "bom sentido" no mal. Pelo contrário! Agora se abominará qualquer "justificação", se fruirá o mal, se achará o mal sem sentido o mais interessante. "Se antes teve necessidade de um deus, delicia-o agora uma desordem do mundo, sem deus, um mundo do acaso, em que o terrível, o equívoco, o sedutor, faz parte da essência." 2 6 Um exemplo desse "pessimismo da força"? Basta ler Mallarmé ou seguir a história do movimento surrealista.
O que pensar desse "pessimismo da força"? Ele termina em um absoluto dizer-sim ao mundo, em uma afirmação da existência, ao contrário do homem moral ou religioso. Mas na verdade ambos são extremos de um mesmo contínuo, eles se opõem conservando o fundamental, traduzem o mundo pelo mesmo dicionário. Nesse estágio de altíssima civilização, diz Nietzsche, o homem é forte o suficiente para envergonhar-se de uma crença em deus. Mas se agora ele pode desempenhar o papel de advogado do diabo e chegar a um absoluto dizer-sim ao mundo, isso se dá "pelas mesmas razões em função das quais outrora lhe foi dito não" 2 7 . Se antes queriam combater o acaso, agora se faz sua apologia - e precisamente esta tenaz representação do acaso é o a priori comum ao religioso e ao novo ateu. Todos falam segundo as regras da mesma gramática - e este absoluto dizer-sim ao mundo, tal como proferido pelo pessimismo da força, antes de ser uma subversão da antiga interpretação, assenta-se justamente sobre ela. Trata-se apenas de uma troca de sinais, de um
26. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10[21], KSA, vol. 12, pp. 466-7, Obras incompletas, cit., p. 391.
27. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10[21], KSA, vol. 12, pp. 466-7, Obras incompletas, cit., p. 391.
278 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
"sim" enunciado na mesma linguagem do antigo "não" . Enquanto não desenraizarmos essa linguagem, o niilismo não terá sido efetivamente superado: a afirmação da existência se fará sob a sombra da antiga negação.
O que Nietzsche chama de atitude dionisíaca diante da existência não terá nada a ver com esta elegia adolescente ao mundo do acaso. E já se podia desconfiar disso, observando que a doutrina do eterno retorno exige a idéia de uma necessidade absoluta, regendo todos os acontecimentos. Na verdade, o pensamento do retorno será a dissolução da representação do "acaso". Afinal, se Nietzsche pensa estar "provando" o mundo como curso circular que infinitas vezes já se repetiu, um curso circular de séries absolutamente idênticas, é porque "entre cada combinação e seu próximo retorno todas as combinações ainda possíveis teriam de estar transcorridas e cada uma dessas combinações condiciona a seqüência inteira das combinações da mesma série" 2 8 . E é evidente que esta rigidez do círculo é essencial à doutrina: sem ela a sucessão dos acontecimentos seria aleatória e alguns poderiam não retornar. Mas o que se pretende demonstrar é o eterno retorno do mesmo, "um curso circular de séries absolutamente idênticas". Para tanto, é preciso que uma necessidade absoluta costure todos os eventos que se desdobram nesse vir-a-ser. Por isso, a interpretação do eterno retorno feita por Deleuze é infiel ao espírito e à letra de Nietzsche. Segundo Deleuze, o eterno retorno seria "seletivo" e, por isso, nem tudo retornará: as forças reativas não retornarão, o "Homem pequeno, mesquinho, reativo não retornará" 2 9 . Um eterno retorno seletivo? Isso seria equivalente a re-
28. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 14[188], KSA, vol. 13, p. 374, Obras incompletas, cit., p. 397.
29. Deleuze, G., Nietzsche et la philosophie, cit., p. 80.
SUPERAR O NIILISMO 279
introduzir uma finalidade intencional no vir-a-ser, aquela mesma que Nietzsche banira desde o início. Para Nietzsche, o eterno retorno é do mesmo, as séries que retornam são absolutamente idênticas, algo de igual não retornar é coisa que não poderia ser explicada pelo acaso, "mas somente por uma intencionalidade posta na essência da força: pois, pressuposta uma descomunal massa de casos, o alcançamento casual do mesmo lance de dados é mais verossímil que a absoluta nunca-igualdade" 3 0 .
É essa volatilização do acaso, em benefício de uma necessidade absoluta presidindo os eventos do mundo, que Nietzsche exprime ao indicar que, em regime de eterno retorno do mesmo, "acontecer" e "acontecer necessariamente" é pura tautologia31. Esta necessidade absoluta de que as coisas aconteçam de modo igual no curso do mundo não é de forma alguma um "determinismo" do que acontece, mas a simples expressão do fato de que "o impossível não é possível": uma força determinada não pode ser outra coisa senão esta força determinada, ela não se conduz, em relação a uma quantidade de resistência, de um modo diverso daquele que exige a sua própria dimensão. Por isso, acontecer e acontecer necessariamente só pode ser uma tautologia. Nesse sistema de forças há uma estrita dependência dos eventos entre si, uma estrita inter-relação das partes que compõem esse todo. Em outras palavras, Nietzsche terá a sua versão de um "princípio de plenitude" regendo o universo. "Se supomos que o mundo dispõe de uma certa quantidade de força, é evidente que todo dispêndio de força, em qualquer lugar, condiciona todo o sistema; por conseguinte, além da cau-
30. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11[245], KSA, vol. 9, p. 534, Obras incompletas, cit., p. 388.
31. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 10[138], KSA, vol. 12, p. 135.
280 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
salidade das coisas que se sucedem umas às outras, haveria uma dependência das coisas umas com as outras." 3 2 É deste princípio de plenitude que decorre a censura que Nietzsche dirige a toda "filosofia do desejável", este descontentamento com uma "parte" do mundo que se desconhece como inevitável condenação do todo, visto que tudo é ligado no mundo. "São poucos os que compreendem que o ponto de vista do desejável, quer dizer, todo 'devia ser assim, mas não é', implica uma condenação da marcha geral das coisas. Pois nesta não há nada isolado, o menor serve de base ao maior; em teu pequeno canto está edificado todo o futuro; por conseguinte, a crítica que condena o pequeno condena também o grande. Supondo agora que a norma moral, como imaginava Kant, nunca chegue a realizar-se completamente e deva permanecer sempre como um além da realidade, a moral encerrará então um juízo sobre o todo em si . " 3 3
Assim, ao contrário da afirmação da existência proferida pelo "pessimismo da força", aquele dizer-sim ao acaso, o que Nietzsche chama de afirmação dionisíaca da vida se assenta em uma transformação do acaso em destino. E por isso este dizer-sim ao mundo será incomparavelmente mais radical. Em regime de pessimismo da força, dizer-sim ao mundo do acaso é afirmar apenas um momento pontual da existência, sem qualquer conexão com os outros momentos; é afirmar apenas uma parte destacada do todo. E também por isso que o pessimismo da força é um dizer-sim ao mundo pelas mesmas razões que outro-ra levavam a dizer não. A afirmação dionisíaca da vida será a afirmação do todo da existência, não de um segmento destacado e isolado. Era exatamente isso que Zaratustra
32. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 2[143], KSA, vol. 12, p. 137. 33. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 7[62], KSA, vol. 12, p. 316.
SUPERAR O NIILISMO 281
deixava claro. "Dissestes alguma vez sim a um prazer? Oh, meus amigos, então dissestes sim também a toda dor. Todas as coisas estão encadeadas, enoveladas, enamoradas - quisestes alguma vez uma vez duas vezes, falastes alguma vez 'tu me agradas, felicidade! Vem! instante!', então quisestes tudo de volta! - Tudo de novo, tudo eternamente, tudo encadeado, enovelado, enamorado, oh, então amastes o mundo - vós, eternos, o amais eternamente e todo o tempo: e também à dor vós falais: passa, mas retorna! Pois todo prazer quer - eternidadel"34 Se o acaso se transforma em destino, se no vir-a-ser suceder é suceder necessariamente, se cada momento é interiormente relacionado aos demais, então a afirmação do presente é ipso facto a afirmação da eternidade. "Se nós dizemos sim a um único instante, nós dizemos sim, através disso, não apenas a nós mesmos, mas a toda a existência. Pois nada existe por si só, nem em nós nem nas coisas; e se nossa alma, uma única vez, vibrou e ressoou de alegria como uma corda, todas as eternidades colaboraram em determinar este único fato - e nesse único instante de afirmação, toda a eternidade se encontra aprovada, resgatada, justificada, afirmada." 3 5
Se do ponto de visto cosmológico o eterno retorno implica uma neutralização do acaso, na perspectiva antropológica esta metamorfose do acaso em destino deverá conduzir ao fim da vontade de vingança. Sob o ângulo da influência da doutrina do retorno sobre a vida, o que é vencer o acaso? Será triunfar sobre a necessidade que faz com que a contingência, transformada pelo tempo em passado inerte, adquira a figura do irremediável. Se pode-
34. Nietzsche, "A canção bêbada", Assim falou Zaratustra, IV, § 10, Obras incompletas, cit., p. 264.
35. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 7[38], KSA, vol. 12, p. 307.
282 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
mos prevenir o acaso futuro, aquele que se cristalizou em passado está fora da esfera de nossa ação. O querer liberta? Sim, responde Zaratustra, para acrescentar: "mas como se chama aquilo que acorrenta ainda o próprio libertador? 'Foi': assim se chama o ranger de dentes e a mais solitária aflição da vontade. Impotente contra aquilo que está feito - ele é, para tudo o que passou, um mau espectador. Para trás não pode querer a vontade; não poder quebrar o tempo e a avidez do tempo - eis a mais solitária aflição da vontade" 3 6 . Que momento é este? O homem do ressentimento, tal como Nietzsche o descrevera na Genealogia da moral, era essencialmente alguém ligado à memória, um prisioneiro do tempo passado. Por isso esta consciência de não se poder fazer nada com o que já passou no tempo, esta mais solitária aflição da vontade, é o momento em que a vontade de potência se traduz em vontade de vingança. E assim que Zaratustra prossegue. "Que o tempo não corre para trás, tal é seu rancor; 'Aquilo que foi' - assim se chama a pedra que ela não pode rolar. E assim ela rola pedras por rancor e despeito e exerce vingança sobre aquele que não sente como ela rancor e despeito. Assim a vontade, o libertador, se torna um malfeitor: contra tudo que pode sofrer toma vingança por não poder voltar para trás. Isto, sim, isto somente é a própria vingança: a má vontade da vontade contra o tempo e seu 'Foi'. Em verdade, uma grande parvoíce reside em nossa vontade; e em maldição se tornou para todo humano que essa parvoíce tenha aprendido a ter espírito. O espírito da vingança: meus amigos, tal foi até agora a melhor meditação dos homens; e onde havia sofrimento, devia haver sempre castigo." 3 7
36. Nietzsche, "Da redenção", Assim falou Zaratustra, II, Obras incompletas, cit., p. 240.
37. Nietzsche, "Da redenção", Assim falou Zaratustra, II, Obras incompletas, cit., pp. 240-1.
SUPERAR O NIILISMO 283
O que é a vingança? Ela traduz a atitude reativa diante desta inevitável transformação do acaso na necessidade do "foi". E como o vir-a-ser sempre será esta perene cristalização do acaso em um passado irremediável, ele será visto como a encarnação do mal. A vontade de vingança buscará culpáveis, responsáveis por um mundo que é ressentido como ruim, a existência no vir-a-ser será interpretada como o resultado de um pecado original, o ser verdadeiro será confundido com o intemporal. Onde havia sofrimento, exigiu-se que ele fosse castigo, a vida inteira era um castigo. E, se é assim, pode-se vislumbrar o modo pelo qual o pensamento do eterno retorno exercerá sua função de postulado prático. Todo "foi", diz Zaratustra, "é um fragmento, um enigma, um horrível acaso - até que a vontade criadora lhe diz: 'Mas assim eu o quis!' - Até que a vontade criadora lhe diz: 'Mas assim eu o quero! Assim eu o quererei!'" 3 8 . Viver de modo a querer que tudo retorne: doravante o passado será um perpétuo futuro. Será preciso amar a idéia do retorno e amar a própria vida para desejar esta "suprema e eterna confirmação" 3 9 . Agora a vontade de vingança cederá lugar à plena vontade de potência. Sob a égide do eterno retorno, querer será sempre querer o necessário: amorfati. É aqui que está o segredo da superação do niilismo, assim como a dificuldade final da filosofia de Nietzsche: fazer com que coincidam o querer e o destino, a liberdade e a necessidade. É apenas ao preço desta dificultosa reconciliação que o "cume da meditação" nos levará, enfim, a sentir como leve o peso da existência.
38. Nietzsche, "Da redenção", Assim falou Zaratustra, II, Obras incompletas, cit., p. 241.
39. Nietzsche, A gaia ciência, § 341, KSA, vol. 3, p. 570.
CONCLUSÃO
Que sentido pode ter o amor fati, esta vontade que quer aquilo que é preciso querer? Haveria alguma consistência nesta vontade de destino? A libertação do princípio do querer, com o advento do niilismo e o conseqüente eclipse do dever, apontava para uma vontade de vontade livre, uma vontade que se dá seus próprios fins, em vez de recebê-los prontos de alguma autoridade externa como Deus, a moral ou a verdade. O que se torna esta vontade quando, na última metamorfose do espírito, este se torna "criança", afirma o "eu sou" e faz de seu querer uma vontade de destino? Neste derradeiro desenlace da história do espírito, na superação final do niilismo, Nietzsche tem perfeita consciência de que seu difícil projeto é unir, em uma só trama, a tradição filosófica antiga, que apostava na existência de um destino que tudo rege, à tradição filosófica moderna, pós-agostiniana, aquela que nasce com a descoberta da vontade e da liberdade do querer. É neste setor da "querela" entre os antigos e os modernos que Nietzsche pretende se infiltrar, unindo os dois partidos opostos nesta estranha tese de um querer a necessidade. E
286 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
claro que não se deixou de ver nesta idéia uma típica missão impossível. Como conciliar - pergunta Lõwith - um mundo sem meta, sem finalidade, sem sentido, um processo perfeitamente circular, com aquela vontade que vem ao centro da cena em regime de niilismo, uma vontade que se dá seus próprios fins? 1. Para Lõwith, esta incoerência seria apenas um reflexo da falta de coesão entre o aspecto cosmológico e o lado antropológico da doutrina do eterno retorno. Afinal, não se pode falar em "vontade", deixando de lado a intencionalidade e a finalidade do querer humano, que sempre visa a um fim futuro. Toda "metafísica do querer inspira-se no modelo da teologia cristã e de sua escatologia, colocando na origem do mundo uma vontade criadora, que por amor ao homem produziu o mundo como meta final" 2. No interior deste marco intelectual, o homem é feito para realizar a vontade de Deus e o pecado é afirmar o próprio querer. Na origem da "metafísica da vontade", tal como esta se desdobra em Schel-ling, Schopenhauer e Nietzsche, está a teologia agostinia-na, que define o homem pela trindade vontade-desejo-amor. E, se Nietzsche experimenta esta teologia em um mundo ateu, ele não renuncia a definir o homem e o mundo pela vontade, mesmo negando à vontade cósmica a intencionalidade e a finalidade, para afirmar o ciclo autárquico do universo. Daí a duplicidade irredutível da doutrina, em que a vontade finalizada do homem não se coaduna muito bem com a vontade sem fim do mundo circular.
Uma oposição irreconciliável entre o aspecto cosmológico e o antropológico da doutrina do retomo? Mas o
1. Lõwith, K., "Nietzsche et sa tentative de récupération du monde", in Nietzsche, Cahiers de Royaumont, Paris, Minuit, 1967, p. 61.
2. Lõwith, K., "Nietzsche et sa tentative...", in Nietzsche, cit., p. 61.
CONCLUSÃO 287
que é esta vontade de vontade livre que emerge com a morte de deus e o eclipse do "dever"? Ela é livre por não ser mais uma vontade tutelada, cujos fins seriam ditados do exterior. Mas ela nunca se confundirá com o "livre-ar-bítrio" cristão. Este, para Nietzsche, é uma invenção funesta de sacerdote à caça de "culpáveis", que forja o conceito com o auxílio das distinções arbitrárias cultivadas pela razão filosofante. O livre-arbítrio supõe a cisão, inteiramente fictícia, entre a força e suas expressões, ele se assenta na idéia de um substrato indiferente que seria livre para exprimir ou não a sua força3. A "vontade livre" de Nietzsche não é este livre-arbítrio que se representa e escolhe seus fins. Ela é antes o desdobramento não impedido de uma natureza, de uma determinada força. A vontade de potência não é uma "faculdade" que se definiria por alguma finalidade consciente; se ela se fenomenaliza em fins particulares e sempre transitórios, estes não caracterizam a sua essência. Afirmar que a vontade de potência é a perpétua "superação de si" é concebê-la como a subversão permanente de todo e qualquer fim determinado: sua essência está no aspirar em geral, que não se cristaliza em nenhuma meta alcançada. Falta a esta vontade o essencial da vontade cristã: sua subordinação a uma meta final. Por isso o modelo da vida ascendente nunca se confundirá com a felicidade espinosana, e será mais próximo da sua homônima hobbesiana: antes de ser desejo de algo, ela é desejo do desejo, que não repousará em nenhuma conquista. Por isso esta vontade não apenas é compatível com o processo circular do todo, como até mesmo o exige: não poderá haver nenhuma meta final orientando a vontade cósmica ou a vontade humana.
3. Nietzsche, Genealogia da moral, I, § 13, cit., p. 43.
288 NIETZSCHE: CIVILIZAÇÃO E CULTURA
Mas, afinal, por que tanto esforço para superar o niilismo? Onde está a exigência pela qual não se pode conviver com o "mais incômodo de todos os hóspedes"? O que se procura fazer é voltar a dar um sentido à existência humana, assumindo a ausência de sentido do processo circular do todo. Mas o importante é que o não-senso da existência humana ainda é visado como algo a ser ultrapassado. E, se esta superação do niilismo não é mais nenhuma reedição atualizada do cristianismo, ela ainda nos trará algo. Qual é a tranqüilidade que a superação do niilismo nos dará, para fazer com que seu advento seja não apenas desejável, mas até mesmo inadiável? Que tudo retorna - diz Nietzsche - "é a mais extrema aproximação de um mundo do vir-a-ser ao mundo do ser: cume da meditação"4. Doravante, a "vontade de nada" que dominava o período niilista da humanidade cederá seu lugar a uma vontade de eternidade. Uma das formas pelas quais irrompia o niilismo, enquanto "estado psicológico", era quando o indivíduo, que se acreditava parte de um todo infinitamente superior, perdia a crença em seu próprio valor ao descobrir que, através dele, não atuava nenhum todo infinitamente valioso5. Mas, se é assim, deve-se confessar que de agora em diante esse desespero acabou: é a cada instante de sua existência que esse indivíduo vai testemunhar sua integração ao todo, a este vir-a-ser que eternamente retorna, suprema aproximação ao ser. Deus morreu? Sim, sem dúvida. Mas que ninguém se aborreça muito com isso. Encontramos um substituto à altura para garantir a união de nossa existência ao todo do ser: um vir-a-ser como tota-
4. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 7[54], KSA, vol. 12, p. 312. 5. Nietzsche, Fragmentos póstumos, 11 [99], KSA, vol. 13, p. 46,
Obras incompletas, cit., p. 380.
CONCLUSÃO 289
lidade que recupera em si todos os seus momentos, o vir-a-ser sob a forma do eterno retorno do mesmo. Que ninguém se preocupe, portanto: o universo permanece uma imensa comunidade eclesial de base. E, se Deus morreu, é preciso reconhecer que no fundo, no fundo, ele ganhou a guerra.