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Número de Classe e o Teorema de Dirichlet 1
João Guerreiro 2
LMAC
Instituto Superior Técnico
2010
1Este trabalho foi desenvolvido sob orientação do Professor João Pedro Boavida no âmbito das disciplinas
de Projecto em Matemática e Seminário e Monogra�[email protected]
1
Conteúdo
1 Introdução 3
2 Conceitos fundamentais 3
3 Teorema de Minkowski e suas consequências 7
3.1 Teorema de Minkowski . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
3.2 Teorema dos quatro quadrados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8
3.3 Espaço Lst . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
4 Factorização única e �nitude do número de classe 11
4.1 Factorização única . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
4.2 Ideais fracionários . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
4.3 Grupo e número de classe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
5 Aplicações do número de classe 18
6 Teorema de Dirichlet 21
6.1 Euclides e Dirichlet . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
6.2 Ferramentas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
6.3 Teorema de Dirichlet . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
7 Comentários �nais 28
2
1 Introdução
O presente texto descreve alguns dos principais resultados de Teoria de Números com ênfase
numa perspectiva algébrica.
As primeiras secções seguem uma abordagem algébrica culminando na compreensão do
número de classe e suas aplicações. Na secção 2, introduzem-se os conceitos básicos de
teoria algébrica de números, tais como, corpo de números, inteiro algébrico, norma e discri-
minante. Apresentam-se ainda várias proposições e lemas que serão utilizados nas secções
posteriores. Nas secções 3 e 4, começa-se a construir o caminho em direcção ao número de
classe. Demonstra-se o teorema de Minkowski e faz-se uma aplicação curiosa ao teorema dos
quatro quadrados de Lagrange. O problema da factorização única é apresentado na secção 4,
onde também se de�ne ideal fracionário e número de classe, duas ferramentas que permitem
estudar o problema anterior. A secção 5 contém dois exemplos de aplicação dos resultados
sobre o número de classe a equação diofantinas não lineares. Quanto à secção 6, ao con-
trário das restantes secções, tem um carácter mais analítico e é dedicada exclusivamente à
demonstração do teorema de Dirichlet. Na secção �nal, fazem-se alguns comentários a este
texto com destaque para a bibliogra�a utilizada.
2 Conceitos fundamentais
De�nição 2.1. Um corpo de números K é uma extensão algébrica �nita (em C, por exem-
plo) do corpo Q.
De�nição 2.2. Seja K um corpo de números. Um elemento x ∈ K diz-se inteiro algébrico
se é raíz de um polinómio mónico de coe�cientes inteiros.
Proposição 2.3. Seja V um Z-módulo �nitamente gerado contido em C. Seja ω ∈ C; seωV ⊂ V então ω é um inteiro algébrico.
Demonstração. Suponha-se que V = Zx1 + · · ·+ Zxs. Sejam aij ∈ Z tais que
ωxi =
s∑j=1
aijxj ⇔s∑j=1
(aij − δijω)xj = 0.
3
Portanto, det(aij − δijω) = 0 e ω satisfaz um polinómio mónico de coe�cientes inteiros.
Conclui-se que ω é inteiro algébrico.
Usando a proposição anterior conseguimos estabelecer o seguinte resultado:
Teorema 2.4. O conjunto dos inteiros algébricos forma um anel.
Demonstração. Sejam α e β inteiros algébricos. É imediato veri�car que −α e −β são
também inteiros algébricos. Resta provar que α + β e αβ são inteiros algébricos. Sabemos
que αn + an−1αn−1 + · · ·+ a0 = 0 e βm + bm−1β
m−1 + · · ·+ b0 para alguns ai e bj inteiros.
Seja W o Z módulo gerado por Z combinações lineares de αiβj com 0 ≤ i < n, 0 ≤ j < m.
Observe-se que αW ⊂W e βW ⊂W . Portanto, (α+ β)W ⊂W e (αβ)W ⊂W . Usando a
proposição anterior conclui-se que α+ β e αβ são inteiros algébricos.
Corolário 2.5. O conjunto dos inteiros algébricos de um corpo de números K forma um
anel. Esse anel designa-se por anel dos inteiros OK de K. Um elemento invertível de OK
diz-se uma unidade.
Facto 2.6. Seja K um corpo de números de dimensão n sobre Q. Existe θ ∈ K tal que
K = Q(θ). Existem exactamente n homomor�smos injectivos de K em C e cada um deles
envia θ numa raíz do polinómio mínimo de θ.
A demonstração deste facto não é trivial.
De�nição 2.7 (Norma). Seja K um corpo de números e α ∈ K. Sejam σi : K → C os
homomor�smos injectivos de K em C. De�ne-se a norma de α,
N(α) =
n∏i=1
σi(α).
Facto 2.8. A norma é multiplicativa, N(αβ) = N(α)N(β) para todo o α e β em K. Se
α ∈ OK então N(α) ∈ Z. Se α ∈ OK então N(α) = 1 se e só se α é unidade.
Exemplo 2.9. Existem 2 homomor�smos injectivos de Q(√
3) em C, σ1 e σ2.
σ1(a+ b√
3) = a+ b√
3 e σ1(a+ b√
3) = a− b√
3.
Logo, N(a+ b√
3) = (a+ b√
3)(a− b√
3) = a2 − 3b2.
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Exemplos 2.10. Q(√−2) é uma extensão quadrática de Q portanto é um corpo de números.
O seu anel dos inteiros é Z[√−2].
Q(√
5) é um corpo de número com anel de inteiros igual a Z[1+√5
2 ].
Q(ζn) é um corpo de números, onde ζn designa uma raíz da unidade de ordem n. O seu
anel de inteiros é Z[ζn].
A caracterização destes anéis de inteiros não é trivial. No entanto, esses anéis podem
ser caracterizados facilmente no caso de uma extensão quadrática. Precisamos somente de
duas proposições auxiliares. Como vimos no exemplo, o anel dos inteiros de uma extensão
quadrática Q(√D) não é necessariamente Z[
√D].
Proposição 2.11. Um polinómio p(x) ∈ Z[x] diz-se primitivo se o máximo divisor comum
dos seus elementos é 1. O produto de dois polinómios primitivos é também primitivo.
Demonstração. Sejam f(x) = a0xn+· · ·+an e g(x) = b0x
m+· · ·+bm polinómios primitivos.
Seja p um números primo e sejam ai e bj os coe�cientes de menor índice tais que p não divide
ai, bj . O coe�ciente de xi+j em f(x)g(x) é:
i+j∑k=0
akbi+j−k =
i−1∑k=0
akbi+j−k +
i+j∑k=i+1
akbi+j−k + aibj .
A primeira soma do lado direito é um múltiplo de p porque p divide ak para 0 ≤ k < i.
A segunda soma do lado direito é um múltiplo de p porque p divide bk para 0 ≤ k < j. Mas
p não divide aibj portanto também não divide a soma do lado esquerdo.
Conclui-se que f(x)g(x) é primitivo.
Proposição 2.12. Seja ω um inteiro algébrico e p(x) ∈ Q[x] mónico de grau mínimo tal
que p(ω) = 0. Então, p(x) ∈ Z[x].
Demonstração. Como ω é inteiro algébrico existe f(x) ∈ Z[x] mónico tal que f(ω) = 0.
Como p(x) tem grau mínimo, então existe g(x) ∈ Q[x] mónico tal que f(x) = p(x)g(x).
Existem m,n ∈ Z tais que mp(x) ∈ Z[x], ng(x) ∈ Z[x] e são ambos primitivos. Pela
proposição anterior, (mp(x))(ng(x)) = (mn)f(x) é primitivo. Conclui-se que mn = 1 e
p(x) ∈ Z[x].
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Teorema 2.13. Seja D um inteiro livre de quadrados, K = Q(√D).
Se D ≡ 2, 3 mod 4 então OK = Z[√D].
Se D ≡ 1 mod 4 então OK = Z[√D−12 ]
Demonstração. Sejam y, r, s ∈ Q, entãoN(y−(r+s√D)) = (y−(r+s
√D))(y−(r−s
√D)) =
y2 − 2ry + (r2 −Ds2). De�nimos o polinómio seguinte f(x) = x2 − 2rx+ (r2 −Ds2).
f(r + s√D) = (r + s
√D − 2r)(r + s
√D) + (r2 −Ds2) = (Ds2 − r2) + (r2 −Ds2) = 0.
Pela proposição anterior, r + s√D é inteiro algébrico se e só se 2r e r2 −Ds2 são inteiros.
Podemos escrever r = a2 com a ∈ Z e s = b
c com b, c ∈ Z coprimos.
r2 −Ds2 =a2
4− Db2
c2=a2c2 − 4Db2
4c2∈ Z
c2|a2c2 − 4Db2 ⇒ c2|4D ⇒ c|2 porque D é livre de quadrados.
Portanto, r = a12 e s = a2
2 onde a1, a2 ∈ Z. Sabemos ainda que a21−Da224 ∈ Z.
Note-se que os quadrados módulo 4 são 0 e 1. Se D ≡ 2, 3 mod 4 então
a21 ≡ a22 ≡ 0 mod 4⇒ r, s ∈ Z.
Se D ≡ 1 mod 4 então
a21 ≡ a22 ≡ 0, 1 mod 4.
Neste caso, k = a1+a22 ∈ Z portanto r + s
√D = k + a2
√D−12 .
Para terminar a demonstração basta veri�car que os elementos de Z[√D] e Z[
√D−12 ],
respectivamente, são inteiros algébricos.
De�nição 2.14. Seja K = Q(θ) e {α1, · · · , αn} uma Z-base de K sobre Q. De�ne-se o
discriminante da base {α1, · · · , αn} como
∆[α1, · · · , αn] = |σi(αj)|2.
Pode-se mostrar que o discriminante não depende da base escolhida, portanto denotamos
esse discriminante simplesmente por ∆.
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3 Teorema de Minkowski e suas consequências
3.1 Teorema de Minkowski
O teorema de Minkowski tem um enunciado bastante simples, mas consequências importan-
tes. Informalmente, o teorema diz que dado um reticulado em Rn e um conjunto su�cien-
temente grande e �regular� então esse conjunto contém um ponto não nulo do reticulado.
Começamos por introduzir algumas de�nições e proposições.
De�nição 3.1. Um reticulado R de dimensão m em Rn é um subgrupo aditivo de (Rn,+)
gerado por m vectores linearmente independentes.
A proposição seguinte con�rma que a de�nição corresponde à nossa intuição geométrica
de reticulado.
Facto 3.2. Um subgrupo aditivo de Rn é um reticulado se e só se é discreto.
De�nição 3.3. A região fundamental F de um reticulado R gerado por {e1, · · · , en} é o
conjunto dos pontos da forman∑i=1
aiei, 0 ≤ ai < 1
Geometricamente, a região fundamental é um dos �quadradinhos� do reticulado.
Facto 3.4. Se R é um reticulado de dimensão n então Rn/R é isomorfo ao toro-n, Tn.
Podemos de�nir a projecção no toro-n, π : Rn → Tn. Esta projecção dá-nos uma bijecção
entre a região fundamental e o toro-n.
De�nição 3.5. O volume v(X) de um subconjunto X de Rn é∫X dx. O volume v(Y ) de um
subconjunto Y de Tn é igual a v(π−1(Y )∩F ), ou seja, ao seu volume na região fundamental.
Facto 3.6. Seja X um subconjunto limitado de Rn tal que v(X) existe. Se v(π(X)) 6= v(X)
então π|X não é injectiva.
O facto anterior é muito intuitivo apesar dos pormenores da demonstração pouco ajuda-
rem à sua compreensão. O facto vai ter um papel fulcral na demonstração do teorema que
se segue.
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Teorema 3.7 (Minkowski). Seja R um reticulado de dimensão n em Rn com região fun-
damental F . Seja X um subconjunto limitado, convexo e simétrico em relação à origem de
Rn. Se
v(X) > 2nv(F )
então X contém um ponto não nulo de R.
Demonstração. Seja R′ = 2R um novo reticulado. A sua região fundamental é F ′ = 2F
com volume v(F ′) = 2nv(F ). Seja π′ a projecção associada ao novo reticulado.
Note-se que v(X) > 2nv(F ) = v(F ′) ≥ v(π(X)). Pela proposição anterior, sabemos que
π′|X não é injectivo, ou seja, existem x, y ∈ X distintos tais que π′(x) = π′(y).
Isto implica que x− y ∈ R′ = 2R logo x−y2 ∈ R.
Por outro lado, pela simetria deX sabemos que−y ∈ X e pela convexidade que x−y2 ∈ X.
Conclui-se que x−y2 é um ponto não nulo de X que pertence ao reticulado R, como
desejado.
3.2 Teorema dos quatro quadrados
Uma consequência curiosa do teorema de Minkowski é o teorema dos quatro quadrados de
Lagrange.
Teorema 3.8 (Lagrange). Todo o número natural pode ser escrito como uma soma de quatro
quadrados perfeitos.
Demonstração. Usando a identidade seguinte veri�camos que basta provar o teorema para
números primos,
(x21 + x22 + x23 + x24)(y21 + y22 + y23 + y24)
= (−x1y1 + x2y2 + x3y3 + x4y4)2 + (x1y2 + x2y1 + x3y4 − x4y3)2
+(x1y3 − x2y4 + x3y1 + x4y2)2 + (x1y4 + x2y3 − x3y2 + x4y1)
2
Provemos o teorema para um dado número primo p.
Se p é par, 2 = 12 + 12 + 02 + 02.
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Se p é ímpar, sabemos que a equação x2 +y2 +1 ≡ 0 mod p tem solução. Basta observar
que x2 e −1 − y2 podem tomar p+12 valores distintos. Se a equação não tivesse soluções
então obteríamos p+ 1 classes de congruência distintas mod p.
Considere-se o reticulado R ⊂ Z4 tal que (a, b, c, d) ∈ R se e só se
c ≡ ax+ by mod p, d ≡ bx− ay mod p.
R é um subgrupo de Z4 com índice p2 portanto a sua região fundamental tem área p2.
Sabemos ainda que a esfera-4 de raio r tem volume π2r4
2 .
Escolhemos r2 = 1.9p. Então, π2r4
2 ≈ 17.81p2 > 16p2 = 24p2.
Pelo teorema de Minkowski, existe um ponto não-nulo (a, b, c, d) ∈ R tal que a2 + b2 +
c2 + d2 ≤ r2 ≤ 1.9p < 2p.
Como (a, b, c, d) 6= 0 temos 0 < a2 + b2 + c2 + d2 < 2p e
a2+b2+c2+d2 ≡ a2+b2+(ax+by)2+(bx−ay)2 ≡ a2(1+x2+y2)+b2(1+y2+x2) ≡ 0 mod p.
Logo, a2 + b2 + c2 + d2 = p, como desejado.
3.3 Espaço Lst
Voltando a ter em vista a caracterização do grupo de classe fazemos uma interpretação
geométrica dos subgrupos de um corpo de números.
Seja K = Q(θ). Dizemos que σi : K → C é um monomor�smo real (resp. complexo)
se σi(θ) é real (resp. não real). Se σi é complexo então σi(α) = σi(α) é também um
monomor�smo de K em C. Como σi = σi, podemos dividir os monomor�smos de K em Cem monomor�smos reais e em pares conjugados de monomor�smos complexos.
Seja s o número de monomor�smos reais de K em C e t o número de pares conjuga-
dos de monomor�smos complexos de K em C. Note-se que n = s + 2t. Enumeramos os
monomor�smos do seguinte modo: σ1, · · · , σs, σs+1, σs+1, · · · , σs+t, σs+t.
De�nição 3.9. O espaço Lst de�ne-se como Rs × Ct, com a seguinte norma:
N(x1, · · · , xs, xs+1, · · · , xs+t) = x1 · · ·xs|xs+1|2 · · · |xs+t|2
9
Este espaço permite-nos trabalhar com todos os monomor�smos de K em C simultane-
amente. Para tal de�nimos σ : K → Lst como
σ(α) = (σ1(α), · · · , σs(α), σs+1(α), · · · , σs+t(α)).
Como os σi são homomor�smos de Q-álgebras é fácil veri�car que σ também o é. Temos
ainda
N(σ(α)) = σ1(α) · · ·σs(α)|σs+1(α)|2 · · · |σs+t(α)|2
= σ1(α) · · ·σs(α)σs+1(α)σs+1(α) · · ·σs+t(α)σs+t(α) = N(α).
Esta última norma é a norma usual de K.
Proposição 3.10. Se α1, · · · , αn é base de K sobre Q então σ(α1), · · · , σ(αn) são linear-
mente independentes sobre R.
Demonstração. Escrevemos σj(αl) = x(l)j para 1 ≤ j ≤ s e σs+j(αl) = y
(l)j + iz
(l)j para
1 ≤ j ≤ t onde x(l)j , y(l)k , z
(l)k são reais.
Queremos veri�car que o determinante
D =
∣∣∣∣∣∣∣∣x(1)1 · · · x
(1)s y
(1)1 z
(1)1 · · · y
(1)t z
(1)t
· · · · · · · · ·x(n)1 · · · x
(n)s y
(n)1 z
(n)1 · · · y
(n)t z
(n)t
∣∣∣∣∣∣∣∣é não nulo. Note-se que
D′ =
∣∣∣∣∣∣∣∣x(1)1 · · · x
(1)s y
(1)1 + iz
(1)1 y
(1)1 − iz
(1)1 · · · y
(1)t + iz
(1)t y
(1)t − iz
(1)t
· · · · · · · · ·x(n)1 · · · x
(n)s y
(n)1 + iz
(n)1 y
(n)1 − iz(n)1 · · · y
(n)t + iz
(n)t y
(n)t − iz(n)t
∣∣∣∣∣∣∣∣=
∣∣∣∣∣∣∣∣σ1(α1) · · · σs(α1) σs+1(α1) σs+1(α1) · · · σs+t(α1) σs+t(α1)
· · · · · · · · ·σ1(αn) · · · σs(αn) σs+1(αn) σs+1(αn) · · · σs+t(αn) σs+t(αn)
∣∣∣∣∣∣∣∣Logo, D′2 = ∆[α1, · · · , αn] 6= 0. É um exercício de álgebra linear veri�car que D′ =
(−2i)tD portanto D 6= 0, como desejado.
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Mais importante do que o teorema anterior vai ser o seguinte corolário.
Corolário 3.11. Se G é um subgrupo �nitamente gerado de (K,+) com Z-base {α1, · · · , αm}então σ(G) é um reticulado de Lst.
4 Factorização única e �nitude do número de classe
4.1 Factorização única
Quando fazemos contas com números inteiros estamos habituados a que estes números te-
nham uma única factorização em número primos (a menos de factores 1 e −1). Em geral,
esta propriedade não se veri�ca em anéis de inteiros de um certo corpo de números.
De�nição 4.1. Um inteiro algébrico x ∈ OK diz-se irredutível se x = yz com y, z ∈OK implica que y ou z é unidade. Todo o inteiro algébrico em OK tem factorização em
irredutíveis.
Para um certo corpo de números os elementos irredutíveis fazem o papel dos números
primos em Z. Estamos interessados em estudar as factorizações em elementos irredutíveis.
De�nição 4.2. Um anel A diz-se um domínio de factorização única se qualquer elemento
de A tem uma única factorização em irredutíveis, a menos de unidades.
O seguinte é um teorema elementar de álgebra.
Teorema 4.3. Todo o domínio de ideais principais é um domínio de factorização única.
Exemplos 4.4. Z[i] é um domínio de factorização única.
Z[√−3−12 ] é um domínio de factorização única. Apesar de 2 · 2 e (1 +
√−3)(1 −
√−3)
parecerem factorizações distintas de 4 elas são equivalentes porque 1+√−3
2 e 1−√−3
2 são uni-
dades.
Z[√−5] não é domínio de factorização única. Temos 6 = 2 · 3 = (1 +
√−5)(1−
√−5).
Estas factorizações são, de facto, distintas. Podemos veri�car que N(2) = 4, N(3) = 9,
N(1 +√−5) = N(1−
√−5) = 6.
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4.2 Ideais fracionários
Vamos agora tentar perceber se um dado anel de inteiros é um domínio de factorização única
e, em caso de resposta negativa, quão �longe� está de ter factorização única.
De�nição 4.5. Um ideal fraccionário de O é um O-submódulo a de O tal que existe um
elemento não nulo c ∈ O tal que ca ⊂ O.
Se a é um ideal fraccionário então ca = b é um ideal de O. Podemos escrever a = c−1b.
Se a1 = c−11 b1 e a2 = c−12 b2 então a1a2 = (c1c2)−1b1b2.
De�nição 4.6. O inverso de um ideal a de�ne-se como
a−1 = {x ∈ K : xa ⊂ O} .
O inverso de a é um ideal fraccionário. Note-se que aa−1 ⊂ O e a ⊂ b⇒ a−1 ⊃ b−1
Teorema 4.7. Os ideais fraccionários não nulos de O formam um grupo abeliano para a
multiplicação. Além disso, todo o ideal de O pode ser escrito como um produto de ideais
primos, único a menos de permutação.
Ideia da demonstração: A demonstração é um pouco extensa portanto está separada em
pequenos lemas, alguns dos quais não serão demonstrados.
• Seja a 6= 0 ideal de O. Existem ideais primos p1, · · · , pr tais que p1 · · · pr ⊂ a:
Suponha-se que tal não é verdadeiro. Como O é Noetheriano (porque os seus ideais
são �nitamente gerados) então existe um ideal a maximal entre os que não veri�cam a
a�rmação. Como a não é primo, existem b e c ideais de O tais que bc ⊂ a, b 6⊂ a, c 6⊂ a.
Sejam a1 = a + b e a2 = a + c. Então, a1a2 ⊂ a, a ( a1, a ( a2. Pela escolha de a
sabemos que existem p1, · · · , pj , pj+1, · · · , pr tais que
p1 · · · pj ⊂ a1
pj+1 · · · pr ⊂ a2.
Portanto,
p1 · · · pr ⊂ a1a2 ⊂ a.
Obtemos uma contradição.
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• Se a é um ideal próprio então a−1 ) O e se a é ideal não nulo então aa−1 = O :
Prove-se primeiro para a maximal.
• Todo o ideal fraccionário a tem inverso a−1 tal que aa−1 = O:
Escreva-se a = c−1b onde b é ideal. Então, a′ = cb−1 é inverso de a porque aa′ =
(c−1c)(bb−1) = O.
• Todo o ideal não nulo a é um produto de ideais primos:
Suponha-se que existe a que contradiz a a�rmação. Como O é Noetheriano podemos
supor a maximal entre os que não veri�cam a a�rmação. Como a não é primo então
está contido num ideal maximal (e primo) p. Se a = ap−1 então p−1 ⊂ O pelo terceiro
passo, contradizendo o segundo passo.
Portanto, a ( ap−1. Pela escolha de a, existem ideais primos p1, · · · , pr tais que
ap−1 = p1 · · · pr
⇒ a = pp1 · · · pr
• A factorização em ideais primos é única.
Note-se que se a = c−1b é um ideal fraccionário e 〈c〉 = p1 · · · pr, b = q1 · · · qs então
a = p−11 · · · p−1r q1 · · · qs.
De�nição 4.8. A norma de um ideal não nulo a de�ne-se como |O/a|.
Proposição 4.9. A norma de um ideal é �nita.
Demonstração. Seja a um ideal não nulo. Basta considerar O e a como grupos abelianos.
Como grupo abeliano, O ∼= Zn. Seja x ∈ a não nulo, então m = N(x) ∈ a é um inteiro não
nulo. Como 〈m〉 ⊂ a então |O/a| ≤ |O/ 〈m〉| = mn <∞.
Pode-se demonstrar que esta norma, tal como todas as outras, é multiplicativa.
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Proposição 4.10. Seja a ideal de O com Z-base {α1, . . . , αn}. Então,
N(a) =
∣∣∣∣∆[α1, . . . , αn]
∆
∣∣∣∣1/2onde ∆ é o discriminante de K.
Demonstração. Como |O/a| < ∞ então a ∼= Zn como grupo abeliano portanto tem uma
Z-base {α1, · · · , αn}.Seja {e1, · · · , en} uma Z-base de O. Suponha-se que αj =
∑ni=1 cijei.
N(a) = |O/a| = |det(cij)| .
Por outro lado,
∆[α1, · · · , αn] = (det(cij))2∆[e1, · · · , en] = N(a)2∆.
Como N(a) > 0 obtemos o pretendido.
Corolário 4.11. Se a = 〈a〉 é ideal principal então N(a) = N(a).
Demonstração. Uma Z-base de a é {ae1, · · · , aen}.
N(a) =
∣∣∣∣∆[α1, · · · , αn]
∆
∣∣∣∣1/2 =
∣∣∣∣∣∣(
n∏i=1
σi(a)
)2∣∣∣∣∣∣1/2
= |N(a)|.
Vamos tirar partido desta nova norma para estabelecer um resultado importante.
Teorema 4.12. A factorização em irredutíveis em O é única se e só se todo o ideal de O
é principal.
Demonstração. Já sabemos que se os ideais de um anel são principais então temos facto-
rização única. O contrário não é verdade em geral mas podemos prová-lo para anéis de
inteiros.
Como qualquer ideal de O é um produto de ideais primos basta provar que todo o ideal
primo é principal.
14
Seja p um ideal primo não nulo. Sabemos que m = N(p) ∈ p e m = π1 · · ·πk factoriza-
-se em irredutíveis. Como a factorização em irredutíveis é única então os πi são primos e,
consequentemente, os 〈πi〉 são ideais primos. Então,
p ⊃ 〈m〉 = 〈π1〉 · · · 〈πk〉 .
Como p é ideal primo, então existe um 〈πi〉 tal que 〈πi〉 ⊂ p. Como os ideais primos são
maximais, p = 〈πi〉.
4.3 Grupo e número de classe
Podemos agora de�nir o grupo de classe, que vai permitir compreender quando é que o anel
de inteiros tem factorização única.
De�nição 4.13. Seja O um anel de inteiros. Seja F o grupo dos ideais fraccionários com
multiplicação e P o subgrupos dos ideais fraccionários principais. O grupo de classe de O
é o grupo quociente
H = F/P.
O número de classe de O é h(O) = |(H)|.
Podemos reescrever o teorema anterior da seguinte forma:
Teorema 4.14. A factorização em O é única se e só se h(O) = 1.
As proposições que se seguem têm como objectivo �nal demonstrar que o grupo de
classe de um anel de inteiros é um grupo �nito. Começamos com um resultado geométrico,
consequência do teorema de Minkowski.
Proposição 4.15. Seja R um reticulado em Lst de dimensão n = s+ 2t cujo região funda-
mental tem volume V . Seja c real positivo tal que
cn >
(8
π
)tn!V.
Então, existe x = (x1, · · · , xs+t) ∈ R não nulo tal que
|x1|+ · · · |xs|+ 2|xs+1|+ · · ·+ 2|xs+t| < c.
15
Demonstração. Seja Xc ⊂ Lst o conjunto dos pontos que veri�cam
|x1|+ · · · |xs|+ 2|xs+1|+ · · ·+ 2|xs+t| = |x1|+ · · · |xs|+ 2√y21 + z21 + · · ·+ 2
√y2t + z2t < c.
Observe-se que Xc é limitado, convexo e simétrico em relação à origem. É um exercício de
cálculo integral (usando coordenadas polares e indução em s+ t) veri�car que
v(Xc) = 2s(π
2
)t cnn!.
O teorema de Minkowski dá-nos o resultado desejado se
v(Xc) > 2s+2tV ⇔ 2s(π
2
)t cnn!> 2s+2tV ⇔ cn >
(8
π
)tn!V.
Para demonstrar o teorema que se segue enunciamos o seguinte lema, sem demonstração.
Lema 4.16. Seja R um reticulado de dimensão n em Rn com base {e1, · · · , en}. Se
ei = (a1i, · · · , ani)
então o volume da região fundamental de R é |det aij |.
Teorema 4.17. Seja K um corpo de números de grau n = s+ 2t com anel de inteiros O e
seja a um ideal não nulo de O. O volume da região fundamental de σ(a) em Lst é igual a
2−tN(a)√|∆|
onde ∆ é o discriminante de K.
Demonstração. Seja {α1, · · · , αn} uma Z-base de a. Usando a notação de 3.10, uma Z-basepara σ(a) é gerada pelos elementos
(x(i)1 , · · · , x(i)s , y
(i)1 , z
(i)1 , · · · , y(1)t , z
(i)t ).
Usando a notação de 3.10, pelo lema anterior o volume da região fundamental é
|D| = |(−2i)−tD′| = 2−t√
∆[α1, · · · , αn].
Como
N(a) =
∣∣∣∣∆[α1, · · · , αn]
∆
∣∣∣∣1/2obtemos o desejado.
16
Teorema 4.18. Se a 6= 0 é um ideal de O então a contém um inteiro algébrico α tal que
|N(α)| ≤(
4
π
)t n!
nnN(a)
√|∆|.
Demonstração. Seja ε > 0 e c real positivo tal que
cn =
(4
π
)tn!N(a)
√|∆|+ ε.
Com V = 2−tN(a)√|∆| aplica-se a proposição 4.15 para concluir que existe α tal que
σ1(α) + · · ·+ σs(α) + 2σs+1(α) + · · ·+ 2σs+t(α) < cn
⇔ |σ1(α)|+ · · ·+ |σs(α)|+ |σs+1(α)|+ |σs+1(α)|+ · · ·+ |σs+t(α)|+ |σs+t(α)| < c.
Pela desigualdade aritmética-geométrica,
|N(a)| = |σ1(α) · · ·σs(α)σs+1(α)σs+1(α) · · ·σs+t(α)σs+t(α)|
<( cn
)n=
(4
π
)t n!
nnN(a)
√|∆|+ ε
nn.
Como o reticulado é discreto, o conjunto Aε dos α para os quais a desigualdade se veri�ca
é �nito e não vazio. Portanto, A =⋂εAε é também não vazio. Escolhendo α ∈ A obtemos
o resultado.
Corolário 4.19. Todo o ideal não nulo a de O é equivalente a um ideal com norma menor
ou igual a(4π
)t n!nn
√|∆|.
Demonstração. Observe-se que a−1 = bc implica que a−1 é equivalente a c. Portanto, ac é
equivalente a O.
Pelo teorema anterior, existe um inteiro algébrico α ∈ c tal que
|N(α)| ≤(
4
π
)t n!
nnN(c)
√|∆|.
Como α ∈ c temos 〈α〉 = bc para algum ideal inteiro b. Observe-se que b é equivalente a
c−1 e, consequentemente, equivalente a a. Por outro lado,
N(b) =N(〈α〉)N(c)
≤(
4
π
)t n!
nn
√|∆|.
17
Teorema 4.20 (Finitude do número de classe). O grupo de classe de um corpo de numeros
é um grupo �nito.
Demonstração. Seja a um ideal com norma igual a k. Então, a é factor de 〈k〉. Pela
factorização única de ideais, há um número �nito de possibilidades para a.
Pelo corolário anterior, toda a classe de equivalência do grupo de classe tem um repre-
sentante com norma menor ou igual a(4π
)t n!nnN(a)
√|∆|. Conclui-se que há um número
�nito de classes de equivalência, isto é, o grupo de classe é �nito.
5 Aplicações do número de classe
Nesta secção iremos utilizar a �nitude do número de classe para resolver equações dio-
fantinas. Serão exempli�cadas situações em que o número de classe é 1 (quando temos
factorização única de elementos) e em que o número de classe é superior a 1.
Comecemos por enunciar dois lemas que nos serão úteis nos cálculos posteriores.
Lema 5.1. Seja a um ideal de O e n ∈ a ∩ Z. Então, 〈n〉 ⊂ a, ou seja, a é um divisor de
〈n〉.
Demonstração. A primeira observação é imediata, a segunda segue da factorização única em
ideais primos.
Lema 5.2. Seja K um corpo de números de grau n, com O = Z[θ]. Dado um primo racional
p, seja f ∈ Z[t] o polinómio mínimo de θ sobre Q e f a projecção de f em (Z/pZ) [t].
Suponha-se que f tem a seguinte factorização em irredutíveis em (Z/pZ) [t]:
f = f1e1 · · · ft
et
onde fi é a projecção em (Z/pZ) [t] de um polinómio fi ∈ Z[t].
Então, o ideal gerado por p tem a seguinte factorização em ideais primos em O:
〈p〉 = p1e1 · · · ptet
onde pi = 〈p〉+ 〈fi(θ)〉.
18
A demonstração deste último lema pode ser lida em [1].
Considere-se a seguinte equação nos números inteiros:
x2 + 2 = y3.
Podemos factorizar o lado esquerdo da equação em (x−√−2)(x+
√−2), emO = Z[
√−2].
Recorde-se que este anel é o anel dos inteiros de Q(√−2).
Usando a estimativa dada por 4.19, sabemos que todo o ideal de O é equivalente a um
ideal com norma inferior a 4π24
√8 ≈ 1.80. O único ideal com norma igual a 1 é o O. Como
todos os ideais são equivalentes a O então o número de classe de Z[√−2] é 1, logo é um
domínio de factorização única.
Suponha-se que mdc(x+√−2, x−
√−2) 6= 1. Seja z um factor primo comum de x+
√−2
e x−√−2 (e de y). Então,
z|(x+√−2)− (x−
√−2) = 2
√−2⇒ z|8.
Analisando a equação mod 4 observamos que x ≡ 1 mod 4 e y ≡ −1 mod 4. Como y é
impar e z divide y e 8 então z é invertível. Conclui-se que x +√−2 e x −
√−2 não têm
factores em comum.
Como x+√−2 e x−
√−2 não têm factores em comum, então existem a e b inteiros tais
que
x+√−2 = (a+ b
√−2)3
⇒ x = a3 − 6ab2, 1 = 3a2b− 2b3 = b(3a2 − 2b2).
Da segunda equação retiramos a = ±1 e b = 1, logo x = ±5. Substituindo na equação
original obtemos as soluções (x, y) = (5, 3), (−5, 3).
Vamos agora estudar outra equação que não permite (pelo menos de forma óbvia) utilizar
factorização única de elementos. Teremos de nos contentar com factorização única de ideais.
Eis a equação:
x2 + 21 = y3.
Factorizamos novamente o lado esquerdo da equação, desta feita em (x +√−21)(x −
√−21) no anel O = Z[
√−21]. Este anel é o anel de inteiros de Q(
√−21).
19
Usando a estimativa dada por 4.19, sabemos que todo o ideal de O é equivalente a um
ideal com norma inferior a 4π24
√84 ≈ 5.83. Esses representantes de cada classe são divisores
de um dos seguintes ideais 〈2〉, 〈3〉, 〈4〉 e 〈5〉.Usando o lema 5.2 obtemos as seguintes factorizações em ideais primos,
〈2〉 =⟨2, 1 +
√−21
⟩2= a2
〈3〉 =⟨3,√−21
⟩2= b2
〈5〉 =⟨5, 2 +
√−21
⟩ ⟨5, 3 +
√−21
⟩= cd
Portanto, todo o ideal de O é equivalente a um dos seguintes ideais, O, a, b, c e d. Isto
implica que h(O) ≤ 5.
Denotemos por [a] a classe de equivalência de a no grupo de classe.
Fazemos agora algumas observações acerca das normas destes ideais.
N(a)2 = N(〈2〉) = 4⇒ N(a) = 2
N(b)2 = N(〈3〉) = 9⇒ N(a) = 3
Se a ou b são ideais principais então a sua norma é igual à norma de um elemento α ∈ O,
ou seja, da forma a2 + 21b2 para a e b inteiros. Mas 2 e 3 não podem ser escritos dessa
forma, logo [a], [b] 6= [O].
Veri�quemos que [a] 6= [b]. Suponha-se que [a] = [b], então [ab] = [a2] = [O]. Como
N(ab) = N(a)N(b) = 6 e 6 também não é da forma a2 + 21b2 então [ab] = [a2] 6= [O].
Concluímos que h(O) ≥ 3 porque os ideais O, a e b estão todos em classes distintas.
Como o grupo de classe tem elementos de ordem 2 ([a], por exemplo) então h(O) é par.
Concluímos que h(O) = 4.
Voltemos a olhar para a equação, desta vez como uma equação de ideais de O:⟨x+√−21
⟩ ⟨x−√−21
⟩= 〈y〉3
Comecemos por provar que⟨x+√−21
⟩e⟨x−√−21
⟩não têm factores em comum.
Seja p um ideal primo que divide⟨x+√−21
⟩e⟨x−√−21
⟩. Observe-se que p divide 〈y〉.
20
A partir da equação inicial é imediato veri�car que mdc(x, y) = 1, mdc(x, 21) = 1 e
mdc(y, 21) = 1. Analisando-a mod 4 conclui-se que y é ímpar. Observe-se que
(x+√−21)− (x−
√−21) = 2
√−21 ∈ p⇒ 84 ∈ p
y ∈ p
Como mdc(y, 84) = 1 então 1 ∈ p. Conclui-se que⟨x+√−21
⟩e⟨x−√−21
⟩não têm
factores em comum.
Da factorização única de ideais reparamos que existe ideal a1 tal que⟨x+√−21
⟩= a31.
Como h(O) = 4 então
[a1] = [a13]−1 = [
⟨x+√−21
⟩]−1 = [O]−1 = [O].
Seja a1 =⟨a+ b
√−21
⟩onde a e b são inteiros. Obtemos as seguintes equações (note-se
que 1 e −1 são as únicas unidades em Z[√−21]):
x+√−21 = (a+ b
√−21)3
⇒ 1 = 3a2b− 21b3
Como a equação acima não tem soluções inteiras concluímos que a equação x2 + 21 = y3
também não tem soluções inteiras.
6 Teorema de Dirichlet
Esta secção afasta-se um pouco do caminho seguido até agora. Trata-se de uma versão
resumida do seminário �Teorema de Dirichlet� apresentado no Seminário Diagonal do IST.
6.1 Euclides e Dirichlet
Começamos com a demonstração de Euclides da in�nitude dos primos. Suponha-se que
existe um número �nito de primos,
{p1, p2, · · · , pn} .
21
Tomamos
x = p1p2 · · · pn + 1
e veri�camos que pi não divide x. Conclui-se que x tem um divisor primo diferente dos pi
portanto a lista de primos apresentada não é exaustiva.
Podemos repetir este mesmo argumento para os primos da forma 4n − 1. Suponha-se
que existe somente um número �nito de primos dessa forma,
{p1, p2, · · · , pn} .
Escolhemos
x = 4p1p2 · · · pn − 1 ≡ −1 mod 4
e veri�camos que pi não divide x. Conclui-se que x tem um divisor primo congruente com
−1 mod 4 diferente dos pi, portanto a lista de primos apresentada não é exaustiva.
Para primos de outras formas não conseguimos replicar este argumento. Podemos tentar
fazê-lo para primos da forma 5n + 2. Suponha-se que existe um número �nito de primos
dessa forma,
{p1, p2, · · · , pn} .
De�nimos
x = 5p1p2 · · · pn − 3 ≡ 2 mod 5
e veri�camos que pi não divide x. No entanto, neste caso x pode não ter factores congruentes
com 2 mod 5. Tome-se o seguinte exemplo:
5× 2× 7× 37− 3 = 2587 = 13× 199.
Apesar desta di�culdade, iremos conseguir demonstrar nesta secção alguns casos parti-
culares do teorema seguinte:
Teorema 6.1 (Dirichlet). Dados naturais coprimos a e b, existem in�nitos primos da forma
an+ b.
22
6.2 Ferramentas
Começamos por desenvolver algumas ferramentas para poder atacar este teorema.
De�nição 6.2 (Função Zeta). Seja s tal que <(s) > 1,
ζ(s) =∞∑n=1
n−s.
Proposição 6.3. Seja s tal que <(s) > 1. Então,
ζ(s) =∏p
(1
1− p−s
).
Demonstração. Fazemos esta demonstração ignorando as questões de convergência. Veri�car
a convergência não tem qualquer di�culdade adicional.
∏p
(1
1− p−s
)=∏p
∞∑k=0
p−sk =∞∑n=1
n−s.
A última igualdade segue da factorização única dos inteiros em números primos.
Usando a proposição anterior podemos demonstrar novamente que os números primos
são um conjunto in�nito. Suponha-se que só existe um número �nito de primos:
lims→1
ζ(s) = lims→1
∏p
(1
1− p−s
)=∏p
(1
1− p−1
)<∞.
Por outro lado,
lims→1
ζ(s) =
∞∑n=1
1
n=∞.
Vamos tentar repetir este género de argumento utilizando um conjunto de funções inti-
mamente relacionadas com a função Zeta.
De�nição 6.4 (Funções-L de Dirichlet). Para s > 1,
L(s, χ) =
∞∑n=1
χ(n)
ns
onde a função χ é completamente multiplicativa e será de�nida mais à frente.
23
Podemos também escrever estas funções como produtos sobre os números primos.
Proposição 6.5.
L(s, χ) =∏p
1
1− χ(p)ps
Demonstração. Análoga à da proposição 6.3.
De�nimos agora as funções que surgem nas funções L-Dirichlet.
De�nição 6.6. Seja G um grupo abeliano �nito. Um caracter χ é um homomor�smo de
G para C×. O caracter χ1 tal que χ1(g) = 1 para todo o g ∈ G é o caracter principal.
Seja n a ordem do grupo G. Observe-se que
χ(g)n = χ(gn) = χ(e) = 1,
ou seja, a imagem de χ está contida nas raízes n da unidade.
Usando a observação anterior e as propriedades do grupo (Z/5Z)× conseguimos calcular
a tabela de caracteres desse grupo:
1 2 3 4
χ1 1 1 1 1
χ2 1 −1 −1 1
χ3 1 i −i −1
χ4 1 −i i −1
Uma das propriedades mais importantes dos caracteres é a que enunciamos de seguida.
Proposição 6.7 (Ortogonalidade). Sejam χ e ψ caracteres de G e g, h ∈ G.
∑χ
χ(g)χ(h) =
{|G| se g = h
0 se g 6= h
∑g
χ(g)ψ(g) =
{|G| se χ = ψ
0 se χ 6= ψ
24
Demonstração da segunda relação de ortogonalidade: Se χ = ψ então χ(g)ψ(g) = 1 para
todo o g ∈ G. Nesse caso, ∑g
χ(g)ψ(g) =∑g
1 = |G|.
Se χ 6= ψ então existe h ∈ G tal que χ(h)ψ(h) 6= 1. Seja S =∑
g χ(g)ψ(g).
S = χ(h)ψ(h)∑g
χ(gh−1)ψ(gh−1) = χ(h)ψ(h)S
Conclui-se que S = 0.
De�nimos uma extensão dos caracteres χ : (Z/aZ)× → C a Z.
De�nição 6.8 (Caracter de Dirichlet).
χ(n) =
{f(n mod a) se (n, a) = 1
0 se (n, a) > 1
As relações de ortogonalidade anteriores podem-se adaptar facilmente aos caracteres de
Dirichlet.
Proposição 6.9 (Ortogonalidade).
∑χ
χ(n)χ(m) =
{φ(n) se n ≡ m mod a, (n, a) = 1
0 caso contrário
∑n mod a
χ(n)ψ(n) =
{φ(a) se χ = ψ
0 se χ 6= ψ
A primeira destas duas equações vai ser útil mais à frente, para ��ltrar� os primos com
uma dada congruência mod a.
Precisamos ainda de mais alguns resultados de carácter analítico antes de iniciarmos a
demonstração do teorema de Dirichlet.
Proposição 6.10. A função ζ(s) tem uma extensão meromorfa na região {s : <(s) > 0}.
25
Esboço da demonstração: Exibimos somente os cálculos sem nos preocuparmos com as ques-
tões de convergência.
ζ(s) =∞∑n=1
n
(1
ns− 1
(n+ 1)s
)= s
∞∑n=1
n
∫ n+1
n
1
xs+1dx
= s
∫ ∞1
[x]
xs+1dx =
s
s− 1− s
∫ ∞1
(x)
xs+1dx
O termo ss−1 corresponde a uma função meromorfa em C com um pólo simples no ponto 1. O
termo com o integral corresponde a uma função analítica em {s : <(s) > 0} (esta a�rmação
não é trivial mas a sua veri�cação é um exercício de análise).
Proposição 6.11. Seja χ 6= χ1. Então, L(s, χ) tem continuação analítica na região
{s : <(s) > 0}.
Esboço da demonstração:
L(s, χ) =∞∑n=1
S(n)
(1
ns− 1
(n+ 1)s
)
= s∞∑n=1
S(n)
∫ n+1
n
1
xs+1dx
= s
∫ ∞1
S(x)
xs+1dx
Este integral corresponde a uma função analítica em {s : <(s) > 0}.
6.3 Teorema de Dirichlet
Usando 6.5 e a fórmula de Taylor,
logL(s, χ) =∑p
∞∑n=1
1
n
χ(pn)
pns.
1
φ(a)
∑χ
χ(b) logL(s, χ) =∑p
∑pn≡b mod a
1
n
1
pns=
∑p≡b mod a
1
ps+O(1) (1)
26
A primeira igualdade segue da primeira relação de ortogonalidade e a segunda igualdade
obtém-se com cálculos de séries geométricas e majorações simples.
O que acontece quando s→ 1? Se provarmos que o lado esquerdo da equação tende para
in�nito quando s → 1 então o lado direito também diverge e podemos concluir o teorema
de Dirichlet. Para o caso do caracter trivial,
L(s, χ1) =∏p
1
1− 1ps
= ζ(s)∏p|a
(1− 1
ps
)
L(s, χ1) tem um pólo de ordem 1 no ponto 1.
Quando s→ 1:
L(s, χ1)→∞
logL(s, χ1)→∞
Se provarmos que logL(s, χ) tem limite �nito quando s → 1 para χ 6= χ1 então o lado
esquerdo da equação 1 diverge, como desejado. Para veri�car que esse limite é �nito basta
demonstrar que L(1, χ) 6= 0.
Temos dois casos distintos a tratar, χ caracter real e χ caracter não real.
Comecemos pelo segundo caso. Para s > 1, segue da equação 1 com b = 1:
∏χ
L(s, χ) ≥ 1.
Se L(1, χ) = 0 então L(1, χ) = 0.
Quando s→ 1,
∏χ
L(s, χ)→ 0
porque o produto contém uma função meromorfa com pólo simples em 1, sendo as restan-
tes funções analíticas numa vizinhança de 1 e duas dessas funções anulam-se no ponto 1.
Contradição!
27
Para o caso em que χ é um caracter real fazemos a demonstração no caso em que a = 5.
Nesse caso, χ(n) =(n5
).
L(s, χ) =
(1− 1
2s− 1
3s
)+
(1
4s+
1
6s− 1
7s− 1
8s
)+ · · ·
>
(1− 1
2s− 1
3s
)>
1
6
Esta demonstração serve somente para casos particulares em que a é primo. No caso geral
pode haver vários caracteres reais. A demonstração não é complexa mas envolve alguns
cálculos trabalhosos que preferimos omitir.
7 Comentários �nais
Os resultados apresentados neste texto não são originais e alguns deles podem ser encontra-
dos na bibliogra�a. Algumas demonstrações dos resultados também seguem demonstrações
feitas na bibliogra�a, possivelmente com uma notação um pouco diferentes e com um nível
de detalhe diferente (com mais ou menos detalhe conforme a escolha do autor).
A secção 2 apresenta de�nições e resultados fundamentais de teoria algébrica de números
que podem ser também lidos no capítulo 2 de [1] ou no capítulo 6 de [2]. Em particular, as
proposições 2.11 e 2.12 e o teorema 2.13 são exercícios de [2] resolvidos pelo autor.
A secção 3, na qual se demonstra o teorema de Minkowski segue as linhas dos capítulos
6 e 7 de [2]. As demonstrações que são omitidas no presente texto podem ser encontradas
nesses capítulos.
O problema da factorização única e a introdução dos ideais fraccionários para o estudo
desse problema podem ser encontrados nos capítulos 4 e 5 de [1]. A demonstração da �nitude
do número de classe feita no presente texto baseia-se na que está feita no capítulo 9 de [1].
A principal diferença é a estimativa feita no teorema 4.18 que só é apresentada em [1] no
capítulo 10.
28
Em [5], pode-se encontrar também a demonstração da �nitude do número de classe, bem
como a sua relação com a função zeta de Dirichlet do corpo respectivo.
Na secção 5, os dois exemplos descritos são originais tendo sido motivados pela discussão
da secção 6.3 de [7].
Na secção 6, a demonstração do teorema de Dirichlet segue os passos apresentados no
capítulo 16 de [2]. Em [4], também se pode ler uma demonstração semelhante à de [2], um
pouco mais resumida. E em [3], encontra-se uma demonstração do teorema de Dirichlet que
utiliza vários resultados assimptóticos sobre funções que ocorrem em Teoria de Números.
Referências
[1] Stewart I., Tall D. (2001) Algebraic Number Theory and Fermat's Last Theorem.
[2] Ireland K., Rosen M. (1990) A Classical Introduction to Modern Number Theory.
[3] Apostol T. (1976) Introduction to Analytic Number Theory.
[4] Davenport H. (1980) Multiplicative Number Theory.
[5] Borevich Z., Shafarevich I. (1966) Number Theory.
[6] Stillwell J. (2003) Elements of Number Theory.
[7] Ram Murty M., Esmonde J. (2005) Problems in Algebraic Number Theory.
29