o clown e a gestalt-terapia - uma breve apresentação e análise comparativa
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I. O Que é Clown?
Clown, tradução inglesa para o termo palhaço, entretanto as duas palavras se
diferentes etimológicamente. A palavra palhaço deriva do italian do paglia que
significa palha. Os cômicos circenses costumavam preencher suas roupas com palha.
Com isso, além de deformar o corpo com aspectos de grandes nádegas, seios
avantajados ou enormes barrigas, o revestimento de palha amortecia as quedas e dava
proteção para as acrobacias. Para tanto, estes cômicos ficaram conhecidos como
pagliaccio, exatamente pela presença da palha no seu vestuário e é deste termo que,
posteriormente, resulta no termo palhaço. (RUIZ apud SACCHET 2009)
O termo clown começou a ser utilizado na Inglaterra do século XVI. Originou-
se de palavras que indicavam tipos camponeses, rústicos, pessoas que viviam nos
campos, longe das capitais e cidades grandes. Eram pessoas de baixa escolaridade e
cultura rústica, conhecidas por clod e colonus. Esses termos, que podem ser traduzidos
tanto para bronco, estúpidos, grosseiros, como também para matuto, jeca ou caipira
serviam tanto para se referenciar a esse grupo de pessoas quanto para ofender, com
isso os termos passaram a compreender-se com peso pejorativo. (CASTRO apud
SACCHET 2009)
Foi traduzido para o português como palhaço, mas tanto o termo clown
quanto o termo palhaço são usados atualmente no pais. Há uma cisão conceitual
advinda de um distanciamento teórico entre diferentes escolas e tradições artísticas
presentes no Brasil e no mundo, e que dá ao termo clown uma enfase maior. Por um
lado o declínio e a desvalorização do circo tradicional, mambembe, de lona desvaloriza
o termo palhaço. Por outro a ascensão da tradição teatral aliada à produção de
pesquisa acadêmicas, que proporcionaram um aprofundamento teórico, fortaleceram
o termo clown. Com isso, os dois termos passaram a ser utilizados para discriminar as
duas práticas. Clown ficaria para designar a tradição mais teatral, acadêmica e palhaço
para designar o artista de circo e feira. (SACCHET, 2009) Esta pesquisa utilizará os
termos clown e palhaço de forma genérica, sem distingui-los entre si. Podem ser
utilizados livremente, mas sempre designarão o mesmo sentido.
Na tradição circense, até meados do século XIX, o clown caracterizava-se por
satirizar e parodiar os números do próprio circo, com isso, todo artista cômico
responsável por estas sátiras passaram a ser conhecidos como clowns. No campo do
circo, designava-se ao clown a participação em pequenas cenas que exploravam o
caracter lúdico e tolo das experiências humanas. Desde então até a
contemporaneidade
“O jogo do clown se centra no paradoxo de não se levar muito a sério, o que
permite com que ele brinque com o que quer que seja. Desta maneira pode
tocar em tabus e explicitar aquilo que não pode ser dito senão a partir do
próprio fato colocado ao avesso.” (DORNELES, 2003, p.17).
Essas cenas começaram a ser executadas por duas figuras distintas, mas
essencialmente clownescas; O Clown Branco e o Augusto. O Branco personifica o
caráter apolíneo. Seus gestos são exatos e majestosos, educados e com trajes sempre
elegantes. Nomeado assim pelo seu tipo de maquiagem que cobria todo o rosto de um
branco intenso e ressaltava apenas as sobrancelhas e de vermelho intenso a boca e as
orelhas apenas. Essa figura recebe ordem própria e demonstra superioridade em
referência ao Augusto, mas ainda assim cômica. O tipo Augusto, por sua vez, revela o
dionisíaco. Suas características revelam as raízes do nome clown. Bronco, estúpido e
desajustado o Augusto se apresenta como a figura mais próxima do que se pensa
sobre palhaço no senso comum. O seu nariz vermelho remete a estupidez de cair de
cara no chão e do álcool ingerido, que avermelha o nariz e as bochechas. (BOLOGNESI,
2003).
O clown traz consigo uma liberdade cênica e existencial. Mesmo a dialogar
com as técnicas cênicas mais clássicas, onde o texto, marcações dos atores e demais
aspectos desta linguagem são bastante presentes, o clown não recebe este rigor na
execução de seus números e pode negar o virtuosismo das técnicas circenses. Ele
brinca com sua performance tal qual brinca com as questões humanas que aborda.
Cenicamente ele adquire a liberdade de improvisar sem avisar com antecedência aos
seus parceiros, subverte os sentidos originais das palavras e do próprio roteiro e
quebra com as construções predefinidas dos personagens. Espera do público que
apenas não o levem ele tão à sério. Mas enquanto ele demonstra fingir um quadro de
sensações e sentimentos, ao mesmo tempo faz o público desconfiar que aqueles são
realmente os sentimentos que possui (DORNELES, 2003).
Observações genéricas e superficiais podem perceber o clown como um
personagem criado por um ator para ser utilizado num enredo cênico. Reconhece-se o
clown como estado de prontidão e brincadeira em que o sujeito se permite caricaturar
e expandir ele mesmo na sua fragilidade e no seu grotesco. Na busca deste estado se
faz necessário que o individuo entre em contato com o seus fracassos, com o que há
de mais vergonhoso em si e passe a se reconhecer como frágil ao romper com o
próprio narcisismo. Assim “inverte a lógica do fazer para o ser, pois o que ele mostra é
a si mesmo. Precisa ser e não representar. Precisa entrar em ‘estado-clown’, que é o
de ser simplesmente, sem o esforço que existe no ‘parecer’” (DORNELES, 2003, p. 52).
O clown não foi inventado por uma pessoa especifica, tão pouco um produto
exclusivamente ocidental. O arquétipo desta figura vai além da maquiagem já
conhecida, das roupas engraçadas e da voz excêntrica. Elementos que constituem a
base arquetípica do clown são encontrados tanto em figuras da civilização egípcia 2500
a.C. como em tripos Indígenas Norte Americanas. Os ancestrais da figura do clown
estão ligados sempre a indivíduos excêntricos e que permeiam a margem das
civilizações, ou seja, pessoas consideradas esquisitas por beberem demais, serem
loucas, deformadas ou que protagonizam cenas bizarras, elementos ligados à loucura e
aos xamãs que subvertiam a ordem litúrgica e social, mas muitas vezes ligados
também à cura, aconselhamento e vidências. As atitudes cômicas dos clowns
possibilitavam fenômenos terapêuticos. Quando o clown lida com questões de cunho
escatológico ou sexual, por exemplo. "Rindo de assuntos tabus, a comunidade
confronta a inibição de uma maneira aberta e substitutiva" (TOWSEN, apdu DORNELES,
2003. p.19).
Na Idade Média, festas de caráter cômicos eram produzidas e frequentadas
pelo próprio clero católico. O contexto profano e que subvertiam a hierarquia e a
seriedade da Igreja Católica não agradavam à instituição, mas era tolerado. Dentre os
vários tipos que participavam da festa, homens vestidos de mulher, outros com roupas
extravagantes e coloridas, outros a imitar animais, havia também os clowns. Estes
atuavam com gestos obscenos, atos grosseiros e escatológicos (DORNELES, 2003).
Bakhtin (apud DORNELES, 2003) afirma que estas festas davam voz aos
pensamentos, eram a fala do povo. Enquanto a Igreja contemplava o plano espiritual,
eles contemplavam o profano e o grotesco, desmistificavam os jargões religiosos,
colocavam ao avesso a moral e os costumes vigente e mexiam com a estrutura
iconográfica da Igreja. Essa conduta de profanar o divino e colocar as estruturas
clericais faz do clownesco uma religião pelo avesso. Enquanto a Igreja trabalha com o
religare divino, o clown, com o riso, faz o caminho inverso e religa o homem à sua
humanidade. (DORNELES, 2003)
Alguns grupos de clowns passavam a ganhar um poder indireto, mas
oficializado. Quando a Igreja proibiu uma dessas festas, o Duque de Burgundy assinou
um decreto onde ordenava que a festa fosse mantida. Com isso um grupo chamado
Companhia de Fools se consolidou, com um papel excêntrico no social. Os membros
dessa companhia tomavam para si a tarefa de promover shows de humilhação, a
satirizar atos que feriam os bons costumes, como o roubo e espancamento de esposas.
Estas festas começaram a tomar proporções cada vez maiores, desdobrando-se no
carnaval e diversas outras festividades. (DORNELES, 2003)
Com a contra-reforma se baniu esse humor mais chulo e baixo, no entanto no
Carnaval ainda se permitia um humor comedido, um riso subversivo e menos explicito
que nas outras modalidades. O debate que discute até onde pode ir o humor já existe
desde 1558. Até o renascimento as piadas ofensivas eram mais aceitas. Os próprios
padres muitas vezes eram humorados e bufonescos. A ideia de pudor começou a ser
construída durante essa época, já que antes disso até carnificinas eram
proporcionadas para o lazer da corte, junto com bobos, malabaristas e mágicos. Com
uma ideologia que propunha um processo civilizatório, em 1520, os costumes
começam a mudar drasticamente. Proibiu-se o riso e piadas na hora das missas ou que
usasse como tema a religião e os sermões dados pelos padres. Na mesma época
começa o declínio do bobo da corte e aparecem os livros de costumes que delineavam
as atitudes de etiqueta. Estes livros desaconselhavam as gargalhadas e se não contidas,
que ao menos se escondessem os dentes com as mãos (DORNELES, 2003).
II. O Que é Gestalt-terapia?
A Gestalt-terapia conhecida como uma teoria psicoterápica existencial-
fenomenológica, estabelecida por Frederick Perls e Laura Perls, na década de 1940,
utiliza-se do diálogo como instrumento de conscientizaçãodos dos consulentes com o
objetivo de torná-los conscientes do que fazem, como fazem, como podem
transformar-se e, concomitantemente, aprender a aceitar e valorizar a si mesmo.
(YIONTEF, 1998)
A abordagem gestáltica percebe o homem como ser relacional, provido de
singularidade e liberdade para realizar escolhas vividas, entretanto com angústia e
inquietação, já que não pode escolher todas as coisas e precisa renunciar a muitas
possibilidades. (CARDELLA, 2002)
Assim, tanto para a gestalt-terapia como para o existencialismo, o homem se
apresenta como intérprete mais fiel de si mesmo, centro de sua própria liberdade e
libertação, detentor do pode sobre si mesmo, ainda que, momentaneamente, tenha
perdido essa aptidão para autogovernar-se. O homem, ser em projeto, faz-se em
processo, capaz de fazer opções e escolher o que deseja ou pretende ser. Livre para
realizar suas escolhas e, portanto, responsável por suas ações (idem, p.35).
A gestalt-terapia aborda tanto os aspectos subjetivos percebidos no presente,
como os aspectos objetivos observados. Ela lança mão de awarness e/ou insight. O
insight se dá na compreensão clara da estrutura, situação e da formação de padrões
do campo perceptivo, de tal maneira que as realidades significativas ficam aparentes.
A awaraness, por sua vez, se dá na maneira como o individuo se torna consciente,
essencial para a investigação fenomenológica. Com isso, a Gestalt-terapia utiliza-se da
awaraness e da experimentação para alcançar insight. (YONTEF, 1998).
Nota-se, em toda obra de Perls, o cuidado em esclarecer as relações de
individuo e sociedade, e articular os níveis biológico e sociocultural (TELLEGEN, 1984).
Kurt Goldstein é apontado por Perls como o introdutor do conceito de organismo
como um todo e que não se pode separar o organismo do ambiente. “Assim, temos
sempre que considerar o segmento do mundo em que vivemos como parte de nós
mesmos. Aonde quer que vamos, levamos sempre uma espécie de mundo conosco”
(PERLS, 1977. p.21)
O campo é o todo, no qual as partes estão em relacionamento imediato e
reagem umas às outras, e nenhuma deixa de ser influenciada pelo que acontece em
outro lugar do campo. A partir disto, iremos compreender como o individuo faz
contato e como este contato se relaciona nesse campo (YONTEF, 1998).
A palavra contato baliza o intercâmbio entre o individuo e o ambiente que o
circunda dentro de uma visão de totalidade, visto que o organismo e meio são um
todo indivisível. Com isso, o contato se caracteriza como dinâmico, ativo e dependerá
sempre do acordo entre as partes envolvidas (D’ACRI; et. Al. 2012).
O contato não pode aceitar a novidade de forma passiva ou meramente se
ajustar a ela, porque a novidade deve ser assimilada. Ele ocorre no limite denominado
fronteira de contato. A fronteira une e separa tornando-se mais ou menos permeável,
e, dessa forma, favorece, dificulta ou impede o contato (idem)
O contato mostra-se como o reconhecimento do outro, o lidar com o outro, o
diferente, o novo e o estranho. Numa situação de contato, estamos inevitavelmente
sujeitos à possibilidade da novidade e do imprevisto (LOFFREDO, 1994). As trocas
nutritivas entre o organismo e o ambiente contêm experiência que possibilitam o
desenvolvimento do organismo. O que for assimilado pela seletividade do contato,
será aceito como nutritivo na experiência vivida e única deste organismo, e assim, o
significado do nutritivo determina-se a partir do sentido peculiar de organismo, ou
seja, de cada individuo. A troca se faz no diferente, nas possibilidades de mudança, e o
inassimilável será descartado (D'ACRI; et al, 2007).
Esta forma de fazer contato se liga diretamente à identificação e alienação. “Eu
me identifico com meu movimento (...). O eu parece ser mais importante que o outro”
(PERLS, 1977, p.23). A alienação se refere ao estranho, ao inimigo desconhecido que
está além da fronteira.
O contato possibilita que a relação ocorra, e permite a união e a separação
entre as pessoas. O encontro acontece sempre em três direções; comigo, com o outro,
com o mundo. Essa dualidade entre união e separação permitem que o ser humano
possa identificar as diferenças de sua própria identidade com a do outro. O sujeito se
percebe na diferença e na troca se motiva a buscar a mudança (PONCIANO, 1997).
A função do olhar possibilita o contato consigo mesmo e promove o contato
evidencial, descrito como a habilidade do organismo de perceber acontecimentos ou
ações que não pertencem ao próprio ato de olhar. Ambas as formas se fazem
essenciais na existência do sujeito e o equilíbrio se torna crucial. Contudo, o contato
visual nem sempre acontece e levará a experiências desprazerosas àqueles sujeitos
que se encontram em seu limiar. A fim de evitar a sobrecarga, o ser humano faz uso de
dois bloqueios na tentativa de impossibilitar o contato; a deflexão e o olhar fixo.
Ambas objetivam impedir o contato pleno com o outro, no entanto a deflexão consiste
em desviar o olhar do objeto de contato e o olhar fixo em olhar fixamente ao contrair
os músculos oculares que promove o contato morto (POLSTER; POLSTER, 2001).
A Gestalt-terapia baseia-se no conceito de existencialismo dialógico, ou seja, no
processo de contato e de afastamento Eu-tu. Um diálogo existencial acontece quando
dois indivíduos se encontram como pessoas, em que cada um é impactada por e
responde ao outro. Não se trata de monólogos sequenciais preparados. O diálogo na
Gestalt-terapia foi ampliado para incluir um encontro entre duas pessoas, mesmo sem
palavras, como, por exemplo, a usar gestos e sons não-verbais. Um pianista poderia
dialogar com uma orquestra. Dois dançarinos podem dialogar sem palavras (YONTEF,
1998).
A atitude dialógica, assim como a atitude clownesca, dirige-se a outra pessoa
de modo a não trata-la como um objeto a ser manipulado. O Gestalt terapeuta faz o
seu contato com uma atitude eu-tu, em vez de utilizar-se de uma postura
controladora, de condicionamento e manipulação, de exploração do consulente e
outras formas de eu-isto. Os terapeutas que vão ao encontro dos consulentes, com a
visão de que eles não são capazes de se auto-regularem não tratam o outro como uma
pessoa. O compromisso com o diálogo mostra-se no relacionamento baseado no que a
pessoa está a experienciar, e respeito ao que o outro experiencia.
Conforme a terapia gestáltica, a autorregulação se configura como a base para a confiança na
fonte da vida, e por meio dela nos dirigimos à realização como a melhor expressão de nós
mesmos. Uma forma de reconhecermos o que somos e confiar que, se deixar de lado o
controle, chegaremos a ser quem somos (D’ACRI; et. al., 2012, p.32).
Não se mostra necessário programar, incentivar ou inibir de maneira
deliberada. Deixam-se as coisas livres, elas regularão a si próprias de maneira
espontânea, e se elas forem perturbadas, tenderão a reequilibrar-se (PHG, 1997). A
auto-regulação dá-se no processo pelo qual o organismo interage com seu meio, ou
processo pelo qual o organismo satisfaz suas necessidades na busca de um equilíbrio
que se apresenta sempre dinâmico (CARDELLA, 2002).
A vida caracteriza-se por um jogo permanente de estabilidade e desequilíbrio. A
satisfação de uma necessidade traz estabilidade ao individuo, enquanto o surgimento
de uma nova necessidade o desequilibra, gera tensão, e o motiva na busca de uma
nova satisfação (p.46). (Quem é o autor dessa belezinha?).
O ajustamento criativo se dá nesta auto-regulação, na abertura ao novo, no
contato vivo, referindo-se à formação de novas configurações pessoais, ou gestalten, a
partir da entrada de novos elementos através da experiência de contato. Ou seja, o
ajustamento criativo acontece como superação de antigas estruturas relacionais que já
não funcionam, através de um processo de re-estruturação com a integração do novo
(LOFREDO, 1994). Trata-se da auto-regulação do fluxo figura/fundo através do contato.
No livro, Gestalt-terapia os autores definem psicologia como o estudo dos ajustamentos
criativos. Seu tema é a transição sempre renovada entre a novidade e a rotina que resulta em
assimilação e crescimento. Correspondentemente, a psicologia anormal é o estudo da
interrupção, inibição ou outros acidentes no decorrer do ajustamento criativo. (PERLS;
HEFFERLINE; GOODMAN, 1951/1997, p. 45).
O ajustamento criativo se define como característica do processo de
maturidade, como relacionamento entre o individuo e seu meio no qual há
responsabilidade da pessoa em reconhecer e conduzir de modo bem-sucedido sua
própria vida. Além disso, o mesmo se torna capaz de criar condições vantajosas para
seu bem-estar. “No ajustamento saudável, a criatividade pode ser entendida como a
posse pelo individuo da aptidão de se orientar pelas novas exigências das
circunstâncias, possibilitando inclusive uma ação transformadora.” (D’ACRI; et. al.,
2012, p.21). O ajustamento criativo torna-se fundamental à autorregulação humana,
pois, os ajustamentos podem se cristalizar, assumir formas crônicas de relação em
determinado âmbito da vivência e adquirir formas alienadas das condições atuais.
Uma das características que definem um gestalt-terapeuta é a busca do estilo próprio. Nesse
sentido, se as características pessoais do terapeuta são enfatizadas como instrumento de
trabalho numa abordagem fenomenológico-existencial, esse instrumento deve tornar-se cada
vez mais afinado e único, para que ele possa colocar-se na relação terapeuta-cliente de forma
mais genuína (LOFFREDO, 1994, 93).
O terapeuta deve colocar-se, tanto quanto possível, na experiência do outro,
sem julgar, analisar ou interpretar, enquanto retém simultaneamente um sentido da
própria presença, independente e autônoma. A prática desta inclusão fornece um
ambiente de segurança para o trabalho fenomenológico do paciente, e, pela
comunicação da compreensão da experiência do paciente, ajuda-o a tornar mais aguda
a sua auto-awareness. Com regularidade, critério e discriminação ele expressa suas
observações, preferências, sentimentos, experiência pessoal, pensamentos, como
parte do relacionamento terapêutico. (YONTEF, 1998) “O terapeuta também, como o
artista, age a partir de seus próprios sentimentos, usando seu próprio estado
psicológico como um instrumento da terapia” (POLSTER, 2001, p.35).
III. O Clown e a Gestal-terapia.
“Para o inferno então com a lógica analítica universitária!” Esta frase inicia a
introdução sobre a vida e obra de Frederic Perls por Ginger (1995, p. 44). Ela condensa não só
a biografia de Fritz, mas também o modo que a Gestalt-Terapia começou a ser elaborada como
terapia. Fritz pode ser facilmente visto como um grande bufão, o tipo de clown que não segue
as características de beleza, sutileza e fragilidade. Mas sim, se mostra na exacerbação do
grotesco, do feio e da agressividade. Uma energia clownesca que também serve para acessar o
humano. (KASPER, 2004)
Ele era, de fato, capaz de se mostrar egoísta, narcisista, orgulhoso e
avarento; impulsivo, colérico e paranoico; “polimorfo perverso” no plano
sexual (ele se auto definia assim), sedutor impenitente (embora fisicamente
pouco atraente), cabotino, exibicionista e voyer; tomou LSD e outras drogas
psicodélicas, fumava três maços de Camel por dia: foi mal filho, um marido
bem mesquinho e um pai indigno; no plano profissional, se reconhecia como
psicanalista medíocre e escritor confuso. (GINGER, 1995, p. 44)
Fritz não se esforçava para esconder nenhuma dessas características. Pelo contrário,
era na exposição dos próprios conflitos que se teceu a Gestalt-terapia. Fritz se utiliza desses
aspectos para potencializar sua teoria e tentar resolver, paradoxalmente, os mesmos conflitos.
E esse é um aspecto importante do clown. É nesses conflitos que novas descobertas teóricas e
existências ocorrem na sua vida (PERLS, 1979).
O clown é um cômico que se apresenta ao mundo “como a dilatação da ingenuidade e
da pureza inerente a cada pessoa [...] é lírico, inocente, ingênuo, angelical, frágil”. (FERRACINI,
2003, p.217) Alguém que “nunca interpreta, ele [o clown] simplesmente é. Ele não é uma
personagem, ele é o próprio ator expondo seu ridículo, mostrando suas ingenuidades”. Mas
não só isso, este trabalho vê o clown como um estado. O trabalho do clown “busca apreender
a potência – enquanto poder de fazer-, o que se aciona como palhaço, como o clown.” .
(KASPER, 2004). E essa potência não se exprimi apenas na ingenuidade e delicadeza lírica, mas
também no grotesco. Palhaços como Chacovachi e Palhaço Azia trabalham com o grotesco e
com a agressividade. Também conhecidos como bufões, eles são uma outra faceta possível do
estado clown, onde a exacerbação vem do bufo, da agressividade (DORNELES, 2003).
É com essa postura que Fritz se coloca perante o mundo e perante seus clientes. Não
interpreta-se, e se há interpretação essa interpretação é anunciada, como ferramenta
terapêutica. (PERLS, 1979). Na palhaçaria, o nariz vermelho dá ao clown uma liberdade social.
Torna-se um signo que lhe dá licença para brincar com tabus. Quando uma pessoa comum
entrar em um elevador e dá de frente com um outro de bigodes enormes, a etiqueta impede
qualquer comentário. Mas se entra um palhaço e faça “Que dificuldade parar beber sopa, meu
camarada!” provavelmente irá receber um sorriso como resposta. É com essa licença que o
palhaço quebra tabus e acessa temas mais profundos. (MOURÃO, 2005)
Assim como a Gestalt-terapia quebra com o distanciamento terapêutico encontrado na
psicanalise, a palhaçaria quebra com a terceira parede do teatro.
Quarta parede é uma denominação baseada no formato quadrangular de um
palco italiano, que se compõe de três paredes visíveis (o fundo e as duas laterais) e
uma invisível (a quarta) que é a que separa o ator do público. Esta quarta parede
serve para delimitar o campo da atuação e separá-lo do campo do espectador, que
assiste o desenrolar da cena de modo distanciado desta. No clownesco há quebra
com esta quarta parede, já que o palhaço não concebe a separação entre o ser e o
atuar. O público não está separado do que o clown está fazendo, e fica incluído em
todos os momentos, já que é a referência do sucesso ou fracasso do jogo do clown.
(DORLNELES, 2003, p. 69)
Assim como o clown e sua plateia, o cliente e seu terapeuta são dois parceiros
envolvidos mutuamente, uma relação direta em busca de um mesmo alvo. Nos dois casos os
papeis são delimitados e diferentes, mas a relação é dual e autentica, tanto no clown quanto
na Gestalt-terapia. Não há nem primeiro nem segundo, não há clivagem ou discriminação
(GINGER, 1995).
O ator é protegido por esta parede imaginaria que o separa das dezenas ou centenas
de pessoas que o assistem na plateia. O clown não tem esta proteção, mas o que parece
vulnerabilidade de início, se mostra como potência. O Gestalt-terapeuta também não está
isolado pelo silêncio ou pela erudição. Tampouco se aprisiona num posicionamento sempre
otimista de consideração incondicional por seu cliente. Assim também como o clown que não
está aprisionado a uma característica e uma postura cristalizada de delicadeza e meiguice
(ibdem).
O gestaltista estimula uma relação eu-tu com o cliente, se coloca presente como
pessoa. Mostra-se interessado pelo seu parceiro e, assim sendo, está centrado no cliente. Mas
ao mesmo tempo está atento ao que sente na relação, e não hesita em dividir o que sente com
o cliente uma parte do que sente. Com isso, o gestaltista também está centrado em si mesmo.
Nesta dualidade, a atenção do gestaltista está centrada na relação que se forma entre ele e o
cliente. (ibdem)
Mesmo em um espetáculo onde há um roteiro predeterminado, o clown não ignora
sua plateia. Diferente de um ator que está centrado na própria atuação, muitas vezes não
entrando em contato direto nem com a atuação do parceiro de cena, o clown está centrado
nas reações de sua plateia. Ao mesmo tempo ele se centra e conhece as próprias emoções e
não as ignora para seguir à risca o roteiro. O espetáculo do clown não ignora a plateia nem a
ele mesmo, é a relação com a plateia que dá a forma e o caminho. (ibdem)
“O clown é um manifestador de emoções, por isso, um dos estudos desta arte
é a análise minuciosa de como seu corpo (e note-se que isto é muito singular, já
que cada um manifesta de maneira diferente aquilo que sente) reage às afecções
externas. Burnier coloca que isto é aprender a “pensar com o corpo”. Contudo não
é só uma questão de “liberar as emoções”, o clown precisa “sentir” o que se passa
e perceber se está agradando ou incomodando a platéia. Esse vínculo direto com o
público pode aparecer porque sua atuação caracteriza-se pela quebra com a
‘quarta parede’.” (ibdem, p.69)
A leitura do corpo se mostra presenta também na Gestalt-terapia. Não de uma forma
interpretativa, mas de uma forma a analisar. Os movimentos do paciente são observados pelo
gestalt-terapeuta, não para interpretá-los, mas para reagir e trazer à tona esses movimentos.
Laura Perls, que teve uma formação artística e corporal com música e dança, aprofunda as
técnicas que utilizam o corpo. Ela vai além da simples atenção ao corpo e passa a quebrar o
tabu do toque. Deixando claro a importância e eficácia da atenção e do trabalho corporal
(GINGER, 1995).
Não é uma simples análise ou interpretação do corpo. Mas uma relação com o corpo e
com o movimento. Faz parte de estar presente. Quando o Gestalt-terapeuta ou o clown estão
a exercer seu oficio, eles estão presentes não só fisicamente, mas existencialmente.
A presença se mostra como uma qualidade difícil de se descrever. Não se percebe
pela observação superficial do físico, mas sim pela sensação da energia vital do
indivíduo. A presença não se caracteriza pela demonstração corpórea de atenção.
Estar presente é estar disponível e imerso na situação imediata ao mesmo tempo
que se está aberto aos acontecimentos e as mudanças que eles podem
proporcionar. “Estar no jogo desencadeia uma disponibilidade sensorial, motora [e
afetiva] que libera um potencial de experimentação (RYNGAERT, 2009, 55p).
Essa presença finca o indivíduo no aqui e no agora. Não remete ao passado ou ao
futuro, mas coloca o ser no presente. Um exercício de viver o agora, onde as questões fora
deste tempo ou local não importam tanto. O nosso viver neurótico nos proporciona uma
existência quase que totalmente anacrônica ao presente. Qualquer ato relacional, seja na
relação com o gestalt-terapeuta ou com o clown, que volta à experiência ao presente é em si
um ato terapêutico (POLSTER; POLSTER, 2001).
Uma pessoa precisa aprender que não existe um contrato predeterminado na
interação presente, para sentir que ela pode, ou não, inquietar-se, contar histórias
obscenas, ver alguma coisa nos embaraços das outras pessoas, gritar, sentar-se
passivamente, criticar, acolher, desenvolver uma fantasia louca, zombar e todas as
outras possibilidades comportamentais da existência (ibdem, p. 29).
Esta disponibilidade em perceber e estar o outro também se faz na escuta.
“Aparentemente nada mais simples: escutar um parceiro consiste em se mostrar
atento a seu discurso ou a seus atos e, consequentemente, reagir a eles. Muitos
[...] simulam escutar, manifestam por algumas mímicas que são todo ouvidos ou
opinam ostensivamente com a cabeça. [...] A verdadeira escuta exige estar
totalmente receptivo ao outro” (RYNGAERT, 2009, 56p).
REFERENCIAS
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CARDELLA, Beatriz Helena Paranhos. A construção do psicoterapeuta: uma
abordagem gestáltica. São Paulo: Summus, 2002.
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D'ACRI, Gladys; LIMA, Patrícia; ORGLER, Sheila (Org.) Dicionário de gestalt-terapia:
"gestaltês". São Paulo: Summus, 2012.
DORNELES, J. LEAL. Clown, o avesso de si: uma análise do clownesco na pós-
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FERRACINE, RENATO. A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator. 2ª ed.
São Paulo: Editora Unicamp, 2003. 300 p.
LOFFREDO, A.M. A cara e o rosto: ensaio sobre gestalt-terapia. São Paulo: escuta,
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MOURÃO, Mara. Doutores da Alegria. [Filme-vídeo] Produção de Fernando Souza
Dias, direção de Mara Mourão. São Paulo, Doutores da Alegria, 2005. DVD, 96min..
Color. Som.
POLSTER, Erving; POLSTER, Miriam. Gestalt-terapia integrada. São Paulo: Summus,
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