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1 O ENSINO DE HISTÓRIA REGIONAL E A PATRIMONIALIZAÇÃO DAS MEMÓRIAS NO VALE DO TAQUARI-RS Cristiano Nicolini UFSM [email protected] Resumo: O ensino de História Regional vem adquirindo espaço nos currículos principalmente a partir do surgimento da Nova História, que oportunizou a inclusão de novos objetos, novos problemas e novas abordagens à pesquisa e ao ensino de História. A partir desta constatação, propõe-se tecer algumas considerações sobre a prática de ensino da História Regional na região do Vale do Taquari (RS), utilizando-se da análise prévia de alguns manuais destinados ao ensino da História dos Municípios, direcionados a alunos do 4º ano do Ensino Fundamental. Estes portadores de narrativas contribuem, por sua vez, para o processo de patrimonialização das memórias na região, considerando as representações que propõem acerca da História Regional. Palavras-chave: História regional; memórias; patrimonialização. As salas de aula dos municípios do Vale do Taquari, região situada na porção central do estado do Rio Grande do Sul (Brasil), são espaços privilegiados para a construção e a afirmação da identidade regional. Os diferentes sistemas e redes de ensino propõem, desde o 4º ano do Ensino Fundamental, o ensino da história do município no qual estão situados. Muitos professores desconhecem a trajetória histórica das localidades em que atuam, bem como não têm formação específica na disciplina, o que os leva a elaborar o seu planejamento e a sua prática pedagógica a partir de manuais oferecidos pelas administrações municipais, estaduais ou pelas redes privadas ou comunitárias. No caso da não existência dos referidos manuais, os profissionais recorrem a outros recursos e fontes de pesquisa, disponíveis em bibliotecas, museus e outros acervos das localidades. Nesta análise, selecionamos alguns manuais didáticos destinados ao estudo da história do município, disponibilizados para consulta pelas respectivas administrações através das Secretarias Municipais de Educação. São eles: Teutônia: nosso município, de Siziane Koch e Susiane Wink (2000); Educação, a base para o desenvolvimento de um povo, elaborado pela Secretaria Municipal de Educação de Estrela (1992); Estrela: nosso município, de Siziane Koch e Susana Mendoza (1999); Arroio do Meio: sua História, sua Geografia, elaborado pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura de

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1

O ENSINO DE HISTÓRIA REGIONAL E A PATRIMONIALIZAÇÃO DAS

MEMÓRIAS NO VALE DO TAQUARI-RS

Cristiano Nicolini

UFSM

[email protected]

Resumo: O ensino de História Regional vem adquirindo espaço nos currículos

principalmente a partir do surgimento da Nova História, que oportunizou a inclusão de

novos objetos, novos problemas e novas abordagens à pesquisa e ao ensino de História.

A partir desta constatação, propõe-se tecer algumas considerações sobre a prática de

ensino da História Regional na região do Vale do Taquari (RS), utilizando-se da análise

prévia de alguns manuais destinados ao ensino da História dos Municípios, direcionados

a alunos do 4º ano do Ensino Fundamental. Estes portadores de narrativas contribuem,

por sua vez, para o processo de patrimonialização das memórias na região, considerando

as representações que propõem acerca da História Regional.

Palavras-chave: História regional; memórias; patrimonialização.

As salas de aula dos municípios do Vale do Taquari, região situada na porção

central do estado do Rio Grande do Sul (Brasil), são espaços privilegiados para a

construção e a afirmação da identidade regional. Os diferentes sistemas e redes de

ensino propõem, desde o 4º ano do Ensino Fundamental, o ensino da história do

município no qual estão situados. Muitos professores desconhecem a trajetória histórica

das localidades em que atuam, bem como não têm formação específica na disciplina, o

que os leva a elaborar o seu planejamento e a sua prática pedagógica a partir de manuais

oferecidos pelas administrações municipais, estaduais ou pelas redes privadas ou

comunitárias. No caso da não existência dos referidos manuais, os profissionais

recorrem a outros recursos e fontes de pesquisa, disponíveis em bibliotecas, museus e

outros acervos das localidades.

Nesta análise, selecionamos alguns manuais didáticos destinados ao estudo da

história do município, disponibilizados para consulta pelas respectivas administrações

através das Secretarias Municipais de Educação. São eles: Teutônia: nosso município,

de Siziane Koch e Susiane Wink (2000); Educação, a base para o desenvolvimento de

um povo, elaborado pela Secretaria Municipal de Educação de Estrela (1992); Estrela:

nosso município, de Siziane Koch e Susana Mendoza (1999); Arroio do Meio: sua

História, sua Geografia, elaborado pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura de

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Arroio do Meio (2000); e um livro com textos elaborado pelos alunos do Ensino

Fundamental, denominado O lugar onde vivo, um projeto desenvolvido pela Secretaria

Municipal de Educação, Cultura e Desporto com as Escolas Municipais de Westfália

(2004-2005).

Conforme afirma Pinsky (1992), as noções históricas trabalhadas em sala de aula

são fortes elementos que agem na construção de concepções de mundo:

Estas concepções ficaram a tal ponto arraigadas, de tal maneira elas

continuam sendo reproduzidas pelos manuais didáticos, que se torna difícil

mostrar aos estudantes que são falácias, representações decorrentes de uma

visão ideológica. (1992, p. 12).

Assim ocorre nos anos iniciais do Ensino Fundamental do Vale do Taquari, em

cuja etapa da aprendizagem os estudantes têm contato com as primeiras noções sobre a

história regional. Nestes estudos acerca da formação histórica do município onde

vivem, juntamente com o desenvolvimento de noções geográficas sobre a região, são

disponibilizadas aos estudantes possibilidades de construção acerca do passado. São

nestes estudos que eles sistematizam as primeiras noções sobre o espaço em que vivem,

bem como sobre o sentido do passado e as suas relações com o presente.

Apesar de encontrarem-se no nível concreto do desenvolvimento cognitivo1, são

propostos conteúdos bastante subjetivos, os quais são pretensamente simplificados nos

manuais didáticos para que, a partir de atividades de cunho mais prático, os estudantes

tenham a possibilidade de “construir” conhecimento histórico e geográfico. Porém, cabe

questionar e analisar quais são as propostas destes manuais, ou seja, quais histórias são

apresentadas aos estudantes e de que forma eles recebem estas informações

disponibilizadas.

1 “De acordo com Piaget, o indivíduo (a criança) aprende construindo e reconstruindo o seu pensamento,

através da assimilação e acomodação das suas estruturas. Esta construção do pensamento, Piaget chamou

de estágios: estágio sensório -motor, estágio simbólico e estágio conceitual. Segundo Piaget, no estágio

sensório-motor, que vai do zero até os 2 anos de idade, é onde se inicia o desenvolvimento das

coordenações motoras, a criança aprende a diferenciar os objetos do próprio corpo e o pensamento das

crianças está vinculado ao concreto. Já no estágio simbólico, que é dos 2 até por volta dos 7 anos, o

pensamento da criança está centrado nela mesma, é um pensamento egocêntrico. E é nesta fase que se

apresenta a linguagem, como socialização da criança, que se dá através da fala, dos desenhos e das

dramatizações. No estágio conceitual, que é dos 7 até por volta dos 11, a criança continua bastante

egocêntrica, ainda tem dificuldade de se colocar no lugar do outro. E a predominância do pensamento está

vinculado mais acomodações do que as assimilações”. (PORTAL EDUCAÇÃO. Disponível em:

http://www.portaleducacao.com.br. Acesso em: 9 jul.2016).

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Os manuais analisados apresentam diversas semelhanças quanto ao conteúdo,

abordagens e atividades propostas aos alunos. Todos iniciam a narrativa da história do

município a partir da ocupação indígena, partindo imediatamente para a trajetória da

ocupação europeia no território: “O solo estrelense foi pisado, pela primeira vez, por

gente branca, provavelmente espanhóis, na metade do século XVII. Não tinham o

objetivo de colonizar, mas explorar e caçar índios, que eram os guananás, pioneiros da

nossa região.” (SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE ESTRELA, 1992,

p. 3).

Em seguida, narram-se os feitos dos primeiros povoadores da região, aos quais

são atribuídas as principais ações na delimitação do município. Todos destacam a

predominância da herança cultural dos imigrantes na atualidade, sugerindo que o

trabalho destes sujeitos teria dado o impulso mais significativo ao desenvolvimento do

município. No manual destinado ao ensino da história do município de Teutônia

(KOCH; WINK, 2000), o texto sobre a colonização inicia da seguinte forma:

O nosso município foi colonizado por imigrantes alemães. Você sabe o que

são imigrantes? Imigrantes são pessoas que deixam o lugar onde vivem, suas

casas, suas famílias, para morar em terras estranhas, novas. Muitas vezes os

imigrantes saem de seu país para conhecer novos lugares, novas terras.

Outras vezes, procuram melhores condições de vida, fugindo de guerras,

epidemias (doenças), fome, falta de terras. Essas pessoas eram chamadas de

imigrantes alemães porque vieram de um País chamado Alemanha. A maioria

dos imigrantes que colonizou Teutônia veio de duas regiões da Alemanha: do

Hunzrück e da Westfália. (2000, p.9).

No manual elaborado para o município de Estrela (KOCH; MENDOZA, 1999),

encontra-se uma caracterização semelhante:

Antes de chegarem os colonizadores em Estrela, nosso município era

somente mato e campo, habitado por índios. Não havia estradas nem casas.

Colonizador é aquela pessoa que vai cultivar e morar em terras estranhas, que

não são suas. No ano de 1636, chegaram em Estrela bandeirantes paulistas e

índios semicivilizados. [...] Foi em 1824 que chegaram em nosso município

os colonos alemães. Os colonos chegavam de barco pelo Rio Taquari, pois

naquela época não existiam estradas nem carros. Os alemães vinham da

região de São Leopoldo e Feliz. (1999, p.9-10).

Diferentemente destes primeiros manuais apresentados, para o município de

Arroio do Meio foi elaborado um manual cuja proposta diferencia-se das anteriores em

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alguns aspectos. Já na introdução, a comissão organizadora do material destaca a

preocupação com uma abordagem didático-metodológica que

[...] respeitasse as características e a identidade locais [...], sendo que, para

isso, [...] a primeira parte trata da construção da identidade individual e

coletiva do aluno. Aborda aspectos relacionados à sua formação familiar,

escolar e comunitária. A partir desta contextualização, na segunda parte são

abordados aspectos geográficos e históricos do município. (SECRETARIA

MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO E CULTURA DE ARROIO DO MEIO,

2000, p. 9).

Enquanto os primeiros manuais ocupam-se basicamente com a citação dos

principais fatos, nomes e datas referentes à ocupação do território, no livro sobre Arroio

do Meio constata-se uma proposta de análise da ocupação indígena, oferecendo aos

estudantes maiores possibilidades de reflexão acerca do processo histórico anterior à

ocupação europeia. Há, neste último material, um capítulo dedicado exclusivamente aos

povos indígenas que habitavam a região e às características da ocupação antes da

chegada dos europeus nas terras do município, enquanto nos demais livretos eles são

apenas mencionados como antecessores dos europeus.

Muitos termos são utilizados de forma descontextualizada ou erroneamente nestes

manuais, como, por exemplo, a designação alemão. Apenas o livro de Arroio do Meio

preocupa-se em marcar a diferença entre os termos alemão e germânico, evidenciando

que a Alemanha ainda não existia como nação na época da imigração para o Brasil.

Porém, é no livro produzido pela Prefeitura Municipal de Westfália

(SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE WESTFÁLIA, 2004/2005),

denominado O lugar onde vivo, cujos textos foram selecionados a partir de produções

feitas pelos estudantes, que o enaltecimento da cultura germânica torna-se mais

evidente. Não consiste em um manual didático, pois é uma obra destinada a registrar

produções textuais a partir de estudos desenvolvidos em sala de aula, acerca da história

do município. Nas crônicas, poesias e narrativas publicadas no livreto, fica evidente a

ênfase na predominância da cultura germânica. Raras são as passagens que fazem

menção aos demais povos que habitaram ou ocuparam as terras posteriormente

colonizadas pelos “westfalianos”.

Neste caso, é evidente o enaltecimento da germanidade na constituição das

identidades em sala de aula. Por tratar-se de um município recente, onde predomina a

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vida rural e a população descendente de colonizadores germânicos, procura-se

implantar, desde cedo, a consciência da necessidade de preservação dos costumes dos

antepassados, aos quais são atribuídas características dignificantes e essenciais para o

desenvolvimento da comunidade.

Nos textos de O lugar onde vivo, os alunos mencionam os espaços do cotidiano

dos colonizadores germânicos - serrarias, frigoríficos, alambiques e ferrarias -, bem

como costumes, festas, crenças, religiosidade, vida familiar e acontecimentos

marcantes. São retratadas as belezas naturais, o caráter “pacífico, ordeiro e trabalhador

do povo westfaliense”, cujas qualidades são, direta ou indiretamente, associadas ao

passado e àqueles que teriam sido os “pioneiros” na formação da comunidade. Quanto a

estas narrativas, Wassermann (2001) destaca que:

A identidade conforma-se a partir de experiências reais e significativas. Ela,

identidade, enquanto sentimento de pertencimento é simbólica e abstrata, mas

é originária de vivências, experiências e afetos concretos. Essas experiências

cotidianas vão compondo um mosaico de imagens que vinculam sempre a

significados ampliados da identidade a ser construída. O que no universo da

infância se constitui numa história pessoal, no adulto faz parte do seu

universo cognitivo, de sua memória, que no caso da coletividade conforma a

identidade social. (2003, p.9).

A partir da rememoração de eventos passados, os integrantes destas comunidades

evocam momentos vividos pela coletividade na qual estão inseridos ou da qual

descendem, sendo que estas passagens dão sentido à sua existência e sobrevivência

material e simbólica. Fortalecem os vínculos através dos registros feitos nestes manuais,

e através da transmissão destas informações constroem-se, nos espaços educacionais, a

imagem condizente com a sociedade que se pretende enaltecer. Preservam-se os traços

que são considerados necessários para a continuidade destas identidades, sejam elas

individuais ou coletivas. No caso específico da identidade germânica, a ideia de que

“[...] todos os conterrâneos já compartilharam, mesmo num passado longínquo, aquelas

experiências é muito importante para a conformação da identidade social”.

(WASSERMANN, 2003, p. 12).

Para compreender o significado histórico da germanidade construída nestas

narrativas do ensino da história regional é relevante destacar que:

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Uma das características das regiões de colonização alemã foi a tendência da

população a se unir em sociedades ou associações com fins econômicos,

esportivos, recreativos, culturais, beneficentes e de socorro mútuo.

Predominaram numericamente aquelas identificadas com atividades culturais

e desportivas. (VOGT, 2003, p.61).

Nestas associações comunitárias preservou-se o Deutschtum, sentimento de

germanidade que, na comunidade italiana, pode ser associado ao italianitá. Apesar de

não abordar-se, neste texto, nenhuma obra produzida para estudantes dos municípios de

imigração predominantemente italiana, pode-se identificar esta mesma tendência em

outros materiais publicados para os leitores em geral, e que acabam sendo utilizados na

sala de aula. São os casos de calendários, guias turísticos, resumos históricos impressos

pelas prefeituras, catálogos, revistas, folders, dentre outros. Todos estes materiais se

tornam portadores do discurso aqui analisado, cujas imagens e textos tendem para a

valorização da cultura italiana e germânica e, mesmo que levem em consideração a

existência e as contribuições de outras etnias para a formação histórica dos municípios,

prevalece a tendência de associar o Vale do Taquari à Europa, como se esta fosse

transplantada para o Rio Grande do Sul a partir do século XIX. Acentuam-se os traços

diferenciais para que a região assuma esta identidade em meio ao cenário gaúcho e

brasileiro, carregando consigo as histórias, os valores e as verdades contidas nestes

portadores de discurso.

O papel da memória, neste contexto, torna-se imprescindível para que a

coletividade construa os vínculos identitários:

A memória [...] deixaria o domínio da lembrança individual, para tornar-se de

domínio coletivo. A memória desdobrar-se-ia do indivíduo para o grupo a

partir de suas vivências comuns, sua língua e sua classe social. O grupo

social que fala, trabalha, tem valores e eventos comuns, elabora também suas

lembranças coletivas. (GIRON, 2000, p. 27-28).

Nesta seleção de imagens do passado, os descendentes de imigrantes elegem as

passagens que elevam o valor da etnicidade germânica ou italiana, ou seja, aquelas em

que os antepassados lograram êxito: as vitórias, o trabalho, os costumes trazidos de

longe. Em contraposição, ocultam as passagens que não condizem com esta

caracterização: o fracasso, os vícios, os defeitos. Estas lembranças transformam os

pioneiros em sujeitos heroicizados, vindos de terras distantes para construir uma nova

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sociedade, cujos precursores têm a missão de dar continuidade e perpetuar os feitos

gloriosos.

Neste sentido, a escola torna-se um espaço privilegiado de fortalecimento destes

vínculos histórico-identitários, comprometendo as gerações presentes com a

manutenção de valores forjados no passado. São recriações repassadas através dos

referidos manuais didáticos, instrumentos que portam em si verdades passíveis de se

perpetuarem na consciência dos estudantes, colaborando para a manutenção de um

discurso forjado e mantido pela coletividade.

Evocando a imagem das escolas criadas para instruir as crianças filhas de

imigrantes, no passado, as atuais instituições permanecem sendo espaços de construção

identitária. Apesar da língua alemã e italiana não serem mais predominantes nestas

comunidades, especialmente nos espaços escolares, a história que se narra permanece

apresentando aos alunos uma germanidade e uma italianidade imaginadas, a partir da

realidade, conforme as necessidades e valores de cada comunidade do Vale do Taquari.

Além da imigração como elemento de representação nestes manuais destinados ao

ensino da História Regional no Vale do Taquari, destaca-se também a construção acerca

do trabalho na edificação destas comunidades. Apesar da pluralidade de relações e

formas de trabalho que caracterizaram a dinâmica de formação destes municípios –

incluindo o trabalho escravo, o arrendamento de terras, o trabalho assalariado, dentre

outras formas específicas de sobrevivência características das regiões de colonização

europeia no século XIX -, as representações do trabalho no passado do Vale do Taquari

assumem, nas narrativas dos materiais didáticos, a função de cristalizar determinados

discursos acerca dos sujeitos e das suas relações com o mundo do trabalho.

E. P. Thompson (1987) inspirou vários trabalhos acerca das múltiplas relações

estabelecidas nos mundos dos trabalhadores no final do século XIX e início do XX.

Autores que pensaram a temática a partir desta perspectiva (CASTORIADIS, 1985;

GENOVESE, 1976; PERROT, 1988; WILLIAMS, 1969; 1979) desenvolveram

trabalhos que revelam uma classe trabalhadora muito mais complexa do que aquela

representada e imaginada nas narrativas anteriores: homens brancos, livres,

descendentes de europeus e urbanos.

Assim também ocorre quando as narrativas sobre a imigração, especialmente na

região colonial do Rio Grande do Sul, retratam os trabalhadores como colonos-

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imigrantes, estritamente dedicados às atividades agropastoris. Estas representações,

evidentes nos materiais didáticos destinados ao ensino da História Regional, utilizam

recursos textuais e imagéticos que contribuem para a perpetuação de determinados

discursos. Nestas representações, os colonos são retratados como pessoas humildes,

dedicadas ao trabalho no campo, à religiosidade e à família. O lazer, por exemplo, é

representado como algo raro e ainda assim vinculado ao mundo do trabalho – festas da

colheita, celebrações religiosas, jogos e outras formas de diversão que tinham o tempo

do trabalho como referência.

Os manuais para o ensino da história dos municípios contribuem, dessa forma,

para a construção de uma identidade que está diretamente ligada à narrativa da História

Regional. Para Halbwachs (2006, p.48), “[...] para evocar seu próprio passado, em geral,

a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras.” A memória coletiva representa

aquilo se lembra e se perpetua como as narrativas oficiais acerca do passado regional.

Neste processo, as memórias de grupos minoritários ou que tiveram as suas memórias

apagadas são excluídas das narrativas sobre a ocupação e a formação do território. O

trabalho e a imigração, representados nos manuais didáticos analisados, são

essencialmente associados aos germânicos e aos italianos que chegaram no século XIX.

Negros escravizados e indígenas, bem como grupos europeus que também colonizaram

a região – poloneses, portugueses, espanhóis -, são invisibilizados no decorrer da

narrativa, como se a sua participação na história fosse menos significativa ou até mesmo

nula frente à saga da imigração germânica e italiana.

Além do trabalho realizado nas salas de aula, este enquadramento da memória se

utiliza também de outros recursos, dentre os quais estão os monumentos da cidade, os

espaços de memória construídos para evidenciar momentos e sujeitos do passado

colonial, bem como festividades, comemorações, placas e outras formas de edificação

da memória. Os estudantes que entram em contato com as narrativas dos manuais

didáticos também convivem neste meio, cujas informações e estímulos colaboram para

a referida construção de uma memória coletiva. Narrativas individuais, como as

histórias da sua família, do bairro, da comunidade onde residem dentro da

municipalidade e da regionalidade, dialogam com as narrativas oficiais e hegemônicas.

Neste sentido, como essa construção identitária incorpora as formas de trabalho

diversas e a presença de outros grupos étnicos na formação territorial do que hoje se

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denomina Vale do Taquari? Onde encontrarão as memórias de antepassados negros,

indígenas, poloneses, portugueses e outros grupos? Onde enquadrarão as narrativas que

não correspondem ao imaginário oficial em que o cotidiano do colono-imigrante

predomina sobre as demais formas de organização social? Cabe aos pesquisadores

ampliar estas referências para a produção de materiais didáticos que ampliem e

desconstruam as referidas representações. Aos professores é necessário oferecer

subsídios teóricos e metodológicos que viabilizem o questionamento frente a estas

narrativas tradicionais, provocando os estudantes a pensarem sobre as múltiplas relações

e culturas que deram origem à região.

As análises feitas por E. P. Thompson e os historiadores britânicos

reconceituaram o materialismo dialético e ampliaram a “[...] compreensão da existência

e da consciência social”. (MÜLLER; MUNHOZ, 2010). Recuperou-se a pesquisa

empírica e o compromisso com o acontecido, bem como a participação do sujeito na

história. Propôs-se a noção de experiência dos sujeitos como mediadora entre a

determinação das estruturas e as ações humanas. (PETERSEN; LOVATO, 2013).

O que subjaz nas propostas desses historiadores é uma reconceituação de

modo de produção, que já não é visto unicamente em seus aspectos

econômicos. As obras desses historiadores não perdem de vista que as

relações de produção e a luta de classes envolvem também uma série de

questões morais, culturais e políticas, ainda que pudessem discordar quanto à

hierarquia destes fenômenos. (PETERSEN; LOVATO, 2013, p. 177).

Esta perspectiva da história vista a partir das experiências dos sujeitos, sem

contudo ignorar a importância das estruturas, leva a uma compreensão da História

Regional em que diferentes grupos são considerados na elaboração das narrativas sobre

o processo de formação dos municípios. No Vale do Taquari, são múltiplas as formas de

povoamento, bem como são plurais os grupos étnicos que compuseram este mosaico.

No entanto, o processo de patrimonialização da memória regional caminha para outra

direção, ao considerar relevantes determinadas histórias em contraposição a outras.

Nas narrativas presentes nos manuais sobre a história dos municípios do Vale do

Taquari a imagem do colono-imigrante é representada como o trabalhador,

evidenciando a identificação dos municípios do Vale como espaços construídos a partir

do esforço coletivo. Um autor utilizado como referência para a elaboração dos livros

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escolares afirma que “[...] a vocação ao trabalho, à cultura e à religião são características

que os descendentes dos pioneiros continuam apresentando. Os povoados que se

formaram, entre eles Teutônia e Corvo, refletem esses predicados em seus cidadãos.”

(GERHARDT, 2004, p. 17).

A atual configuração destas localidades é atribuída ao trabalho dos imigrantes

alemães ou italianos. Nega-se a totalidade social e a presença de outras etnias,

prevalecendo o discurso que supervaloriza a herança cultural italiana e germânica

atribuindo-se a ambas, inclusive, o desenvolvimento econômico do Vale do Taquari em

relação a outras áreas do estado, onde não ocorrera a colonização europeia no século

XIX. Deixa-se subentender que somente a partir da chegada dos colonos houve a

possibilidade de progresso regional pois, como propõe Schierholt (2002) em sua obra

sobre a história do município de Estrela, podemos nos imaginar naquele período:

“Teríamos que abrir um pique e uma clareira, erguer nossa choupana provisória, tudo

em mutirão entre os conterrâneos.” (2002, p. 17).

São enaltecidos os problemas enfrentados pelos colonizadores, o que tende a

tornar ainda mais intensa a valorização destes grupos, que teriam provado, através

destas superações, a sua excelência étnica. Mattei (2000) destaca esse aspecto na obra

sobre a história do município de Sério: “Os descendentes de italianos chegaram

provavelmente na década de 1910. A colonização se deu com muito sacrifício e

trabalho, motivada pela vontade dos moradores, em vencer e progredir.” A explicação

destes sucessos a partir das qualidades dos imigrantes e seus descendentes escondem as

contradições que permearam o processo de colonização nestes municípios. Conforme a

historiografia mais ampla acerca deste período da história do Rio Grande do Sul, fica

evidente que nem todas as ações foram bem sucedidas, e que nem sempre estes colonos

tiveram diante de si apenas dificuldades. Cada localidade apresentava condições

diferenciadas para a instalação das famílias, bem como havia variações conforme a

época em que estes alemães e italianos chegavam ao Vale do Taquari.

Estas e outras afirmações de escritores locais, cuja dedicação à escrita da história

não perpassa necessariamente a formação acadêmica, levou à reprodução de narrativas

que hoje se perpetuam nos manuais didáticos. O processo de patrimonialização da

memória regional fortaleceu a imagem do colono-trabalhador, inserindo-a na descrição

das trajetórias de seus municípios. No rol das atividades desenvolvidas pelos imigrantes,

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a agricultura ocupa lugar de destaque nas narrativas, sucedida pelo comércio e pela

indústria incipiente.

Dava alimento, trabalho, repouso e riqueza. De outra parte, um dos fortes do

povo alemão é o trabalho. Trabalho que por vezes faz esquecer defeitos não

leves. Apreciam pessoas trabalhadoras, não importa de que raça sejam. Sejam

‘tüchtig’ e o indivíduo ‘ipso facto’ tem meio passaporte na alma do teuto. (...)

E a disposição contrária também se acusa: detestam preguiçosos, seja de que

raça forem. A indolência do caboclo brasileiro, explicável por diversos

motivos que a sociologia e outras ciências poderiam precisar, nem ela teria

boa acolhida entre os teuto-brasileiros de Arroio da Seca. (HESSEL, 1998,

p.28).

A ênfase das narrativas às dificuldades transpostas pelos imigrantes italianos e

germânicos acaba invisibilizando a realidade anterior à imigração do século XIX, na

qual outras etnias também enfrentaram dificuldades semelhantes ou mais acentuadas,

tendo em vista que as matas eram significativamente mais densas, os animais ferozes

apresentavam-se em maior quantidade, as vias de transporte terrestre eram praticamente

inexistentes. Enfim, os colonos imigrantes não foram os “primeiros” a ocupar a região;

portanto, não foram os pioneiros.

Mas, por que então denominá-los desta forma? Segundo os autores, a eles atribui-

se o pioneirismo devido ao fato de fazerem esta terra prosperar. Nesta concepção,

subentende-se que os imigrantes “venceram” as dificuldades do meio e usufruíram de

forma produtiva dos recursos naturais, enquanto os povos anteriores apenas teriam

utilizado o meio para sobreviver e extrair riquezas, mas não para fazer a terra progredir.

Esta tese transformou-se em discurso dominante através do tempo, permeando

discursos, justificando a suposta superioridade étnica e contribuindo para a exclusão

daqueles que não se adequavam a este padrão humano.

O “preguiçoso”, o “caboclo”, o “bugre”, o “pêlo-duro”, dentre outros indivíduos

estigmatizados ao longo dos anos, foram perdendo seu espaço em função da cultura

europeia italiana e germânica, consideradas ‘pioneiras’ na construção do Vale do

Taquari.

Conforme Le Goff (1984), as identidades são construídas a partir da

rememorização de determinados fatos, relegando outros ao esquecimento; a memória

coletiva é manipulada para que permaneçam apenas os aspectos que interessam para os

grupos envolvidos neste processo. Assim, explicações até mesmo míticas servem para

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dar sustentação a esta identidade, pois estas efetuam simplificações dos “(...)

acontecimentos históricos, sociais e naturais comumente totalizados, naturalizados e

antropomorfizados. Tem a função de manter o grupo social coeso, estabelecendo regras,

ordenando-o, dando-lhe segurança, facilitando a manutenção da autoridade.” (LE

GOFF, 1984, p.13).

As explicações míticas têm uma função social claramente definida. Elas

organizam o presente conforme as necessidades do grupo, sendo que os fatos relatados

são indiscutíveis e inalteráveis. Vão se fixando ao longo do tempo, passados de geração

para geração, oralmente ou através de registros como os livros de história dos

municípios e os manuais escolares neles baseados. Segundo Carbonell (2002):

A propensão para moralizar não é própria dos historiadores de função. É

igualmente comum nos historiadores não oficiais, cujas obras bastante

diversificadas (biografias, monografias locais, relatos militares, manuais para

estudantes, compilações de anedotas, etc.) seguem o mesmo método. (2002,

p.56)

A moralização embutida nesses relatos atinge o público na medida em que as

pessoas conhecem e assimilam as mensagens propostas pelas passagens selecionadas

pelo autor. Através dos relatos do passado, pretende-se deixar ao leitor a impressão de

que a realidade atual é fruto dos esforços dos antepassados, devendo-se a eles a herança

material e cultural usufruída pela sociedade presente. Criam-se, assim, vínculos não

apenas entre o passado e o presente, mas principalmente entre as pessoas que formam

este grupo, neutralizando ações contrárias ao projeto de cooperação entre as diversas

partes deste conjunto denominado Vale do Taquari. Permanentemente, detecta-se a

presença de argumentos voltados para os esforços coletivos da população, seja na

imprensa, nos discursos políticos e empresariais e nas administrações municipais. Há

uma coesão discursiva que pode ser verificada e analisada ao identificarmos os

portadores destes discursos.

A escola representa um espaço de formação e elaboração de saberes a partir de

vivências e conhecimentos prévios dos estudantes, cuja consciência histórica se

constitui desde o nascimento. O contato com manuais da história dos municípios a partir

do 4º ano do Ensino Fundamental integra um conjunto de ações resultantes de interesses

e disputas de poder na sociedade. As estruturas influenciam as interações, cujos sujeitos

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contribuem ou problematizam o processo de construção identitária em jogo. Por isso,

cabe questionar qual é a função da disciplina de História no currículo escolar, e mais

especificamente da História Regional no processo de formação dos estudantes: repetir e

sustentar o discurso dominante ou promover a compreensão dos múltiplos processos

históricos, contemplando a diversidade étnico-cultural que deu origem à região do Vale

do Taquari?

A tentativa de ressignificar as narrativas sobre a história dos municípios perpassa

a formação docente, com a incorporação de teorias e metodologias próprias do campo

historiográfico. Pensar as relações entre os mundos do trabalho, a cultura e as migrações

pode ser um bom começo para quem deseja provocar mudanças nestas práticas,

estimulando escolas, professores e estudantes a compreenderem por que estudam a

História Regional.

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