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  • Revista de Estudos da Religio setembro / 2007 / pp. 68-93ISSN 1677-1222

    Filosofia e o Fato Obstinado da Religio: O Oriente Reorienta o Ocidente

    Scott Randall Paine1 [scott unb.br]

    ResumoCom o surgimento das cincias da religio no sculo XIX, e seu largo desenvolvimento no ambiente de pesquisa, surge tambm um novo desafio para o pensamento filosfico ocidental, visto que, de aqui em diante, ele ir esbarrar numa vasta paisagem do fenmeno religioso situado para alm das fronteiras j conhecidas. Este artigo pretende mostrar o novo material fornecido pelas religies orientais, que atualmente se inserem no contexto ocidental e exigem, principalmente da filosofia uma nova atitude de pensar sobre a transcendncia e o religioso.

    Palavras-chave: Ocidente, Oriente, filosofia, religio.

    AbstractWith the emergence of the sciences of religion in the 19th century, and their considerable development in areas of research, a new challege also arises for Western philosophical thought. From now on, it will be confronted with a vast landscape of the religious phenomenon extending far beyond the hitherto known frontiers. This article endeavors to bring to light the new material provided by oriental religions, now making themselves known in the West, and to invite, especially on the part of philosophy, a new atitude of thought as regards transcendence and the religious.

    Keywords: West, East, philosophy, religion.

    IntroduoNa virada do sculo XX no poucos intelectuais assumiram o manto da profecia e predisseram a obsolescncia da religio durante o novo sculo. O antigo sonho iluminista de

    1 Scott Randall Paine, Dr., professor da Universidade de Braslia.

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    um mundo ainda contracenando com um Deus-arquiteto, mas sem as formalidades da religio organizada, e repleto de cincia, civilizao e tolerncia, parecia prestes a se concretizar. Agora, quando a primeira dcada do sculo XXI est terminando, esse pressgio parece, digamos, um tanto mope. A religio est em evidncia como nunca antes - em formas tradicionais, mas tambm, lamentavelmente, em novas formas fundamentalistas - e olhamos para o sculo anterior como os cem anos talvez mais sangrentos da histria humana, cheio de genocdios, gulagui, campos de concentrao, armas nucleares, qumicas e biolgicas, terrorismos estatais e no-estatais, e semelhantes.2 A maioria dessas atrocidades foi travada em nome no de uma religio, mas de um atesmo esclarecido, seja ele o socialismo nacional da Alemanha, o DIAMAT da Unio Sovitica ou o maosmo da China. A tentativa de fazer sumir a religio parece ter resultado na maior desumanidade em memria recente.

    As novas cincias da religio, j nascidas juntamente com outras cincias humanas no sc. XIX, comearam a gerar estudos detalhados desse fenmeno que, diacrnica e sincronicamente, mostrou-se mais universal e tenaz do que era pensvel no passado; longe de ser anacrnico, virou uma proeminncia no s da histria, mas sobretudo do mundo contemporneo, resistente a qualquer reducionismo fcil. No que tenham faltado tentativas reducionistas: religio como um aspecto s da cultura humana, e assim territrio para antroplogos; como projeo ou extrapolao s de categorias sociais, e assim um dado para socilogos; como reflexo s de necessidades ou at distrbios da psique humana, exigindo ateno, na primeira linha, dos psiclogos e psicanalistas. Os prprios telogos das tradies religiosas tiveram de se ocupar mais com o fato de outras tradies e desenvolver estratgias teolgicas para explicar, em termos de uma providncia divina global, o pluralismo das religies (ou reduzi-lo a uma conseqncia do pecado ou atividade demonaca). Os ateus, enfim, igualmente desafiados pela persistncia do fenmeno religioso, continuam seus esforos de explic-lo em termos humanos, materiais ou genticos, da viso naturalista do antigo Lucrcio at ao atesmo confessional de Richard Dawkins.

    2 Flutuando entre 150 e 200 milhes de mortes, segundo clculos provenientes do site: http://users.erols.com/mwhite28/warstat8.htm (c. 10.09.07)

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    A filosofia, porm, precisava de algum tempo para se posicionar perante essa paisagem enriquecida dos conhecimentos recolhidos sobre as grandes religies da humanidade. Reflexes mais provinciais, da parte de Ccero3, de Agostinho4 e at de Toms de Aquino5, na Antigidade e na Idade Mdia, no podiam ainda plenamente incorporar a vastido do fenmeno, em particular no que diz respeito ao Oriente, que s as exploraes modernas e a erudio contempornea conseguiam desvendar.

    Os contornos dessa paisagem expandida de uma religiosidade quase universal e de implicaes em todos os campos da atividade humana revelaram-se, sobretudo, na nova conscientizao da variedade e da riqueza das tradies orientais. J que o filsofo enfrenta o mundo, o homem e a transcendncia com questionamento programaticamente aberto, excluindo, em princpio, nenhum assunto universal da sua indagao, esse fenmeno expandido constitui um desafio singular. Assim, o que aconteceu no campo das cincias da religio no pode ficar sem impacto sobre toda a empreitada filosfica (talvez mesmo sobre a noo de filosofia). Todavia, ainda h abordagens filosficas que se convencem de que a religio algo que no reivindica a sua ateno, e sim apenas dos cientistas sociais e talvez dos telogos. Quero apresentar algumas consideraes que pretendem desmentir essa atitude. Faremos aqui um levantamento sumrio da histria dos contatos entre Leste e Oeste e posteriormente, um panorama de alguns fatos a respeito do Hindusmo, Budismo e religio/filosofia chinesa, e de como s recentemente o desafio filosfico da realidade religiosa e filosfica do Oriente assumiu um perfil que no cabe mais entre parnteses ou meramente em notas de rodap. Queremos ver em que medida esse objeto de considerao filosfica se tornou um novo tipo de provocao ao exerccio de qualquer filosofia que ainda merea o nome.

    I. O Homem Ocidental e Seu Limite OrientalO homem europeu sempre soube de seus horizontes: como se falasse um A! ao virar-se a esses limites intimidantes: o frio da neve do rtico ao norte, o calor da areia da frica ao sul, 3 De natura deorum (Sobre a natureza dos deuses).4 De religione.

    5 Summa contra Gentiles, escrito por Toms com o intuito de subsidiar dilogo entre cristos, judeus e muulmanos.

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    o tumultuoso Atlntico a oeste e..... a sia no oriente. As Amricas atrs do Atlntico e a frica subsaariana atrs do deserto iriam revelar-se apenas Europa moderna, mas aquele mundo a leste j comeou, bem cedo na histria, a chamar ateno. Uma parte da Anatlia j batizada de sia como provncia do Imprio Romano e o nome Levante aplicado ao litoral leste do mare internum (nosso Mediterrneo) j indicavam algo mais profundo para o auto-entendimento do homem ocidental do que apenas um dos limites de seu mundo geogrfico. Desse Oriente levantou-se algo to significativo quanto o prprio sol: a civilizao. Dois beros dela, ao longo do Nilo e entre o Tigre e Eufrates, jazem imediatamente a leste da Europa; mais dois, na ndia e China, mediatamente a leste (no corao de um mundo que ia revelar seus mistrios mais ntimos s ao mundo moderno). E no esqueamos os recm-chegados categoria de bero: o Peru e a Mesoamerica.

    estranho constatar quo pragmtico o contato entre Leste e Oeste foi durante milnios, ficando quase sempre aqum de uma apreciao adequada em termos de filosofia e religio. Nas Histrias de Herdoto lemos sobre Scylax de Caryanda, cerca de 520 a.C., e sua viagem, no servio de Drio, o Grande, para leste da Prsia para medir o curso do rio Indo (HERDOTO, Livro IV, 44), mencionado at no livro VII da Poltica de Aristteles (Poltica, Livro VII, 1332b). Seu relato, porm, no existe mais. Aristteles, ao fazer suas observaes polticas sobre governos indianos, evidentemente nem suspeitava de que, naquelas bandas, havia bibliotecas de reflexo metafsica que iria ser estudada, um dia, com a mesma assiduidade quanto as prprias teorias do Estagarita. Depois veio a marcha de Alexandre, o Grande, no sc. IV a.C., via Prsia at a ndia, acompanhado por uma equipe de sbios gregos, com a inteno de implantar o pensamento grego em toda a sia. Mas, quando no conseguiu resistir tentao de emular o estilo dos potentados orientais, seus soldados recusaram-se a continuar sua grande marcha a leste. Ele recuou nas margens do rio Indo. A unidade do imprio de Alexandre tambm se perdeu depois de sua morte ainda jovem, com 33 anos. Mas parece que alguns sbios nus (ginosofistas) voltaram com Alexandre para a Grcia, porque vrias fontes filosficas ocidentais testemunham a presena desses sadhus no mundo antigo (Strabo, Dionsio Laertes, Filone, Plutarco, Porfrio, entre outros). Um certo Onisicrito, em particular, deve ter sido encarregado por Alexandre da tarefa de conversar mais demoradamente com os ginosofistas e de ter

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    comentado sobre a semelhana entre suas idias e as dos cnicos gregos. (PFISTER, 1941) Contudo, os estudiosos concordam que tais semelhanas entre doutrinas indianas e filosofia cnica (podemos dizer o mesmo, mutatis mutandis, a respeito da filosofia ctica e estica) no remontam, necessariamente, a qualquer influncia uni ou bilateral (LORENZ, 1998). Existem teses plausveis, mas no conclusivas, de que a filosofia da natureza de Herclito tenha sido influenciada por idias indianas, transmitidas pelos medas (WEST, 1971), e de que o Uno plotiniano podia ter recebido impulsos significativos dos Upanixades (LACOMBE, 1950). Mas so apenas hipteses.

    O limite do Rio Indo, alm do qual Alexandre no se aventurou, virou um novo horizonte da imaginao ocidental, o nome do rio tornou-se um apelido mesmo para o sub-continente, que os habitantes chamam de Bharat, mas ns, de ndia; e a religio deles, que chamam de sanatana dharma (a doutrina ou lei perene), mas ns, de Hindusmo. Mesmo nossos indgenos americanas viraram, por acidente, ndios.

    Um dos sucessores de Alexandre mandou um tipo de embaixador para Patna, na ndia, um certo Megastenes, que passou cinco anos l e escreveu um relato que, infelizmente, sobrevive apenas em fragmentos. Encontramos referncias a uma classe de pessoas que ele chama de filsofos. Mas muito pouco. Alis, a penetrao do exrcito de Alexandre at o rio Indo no deixou nenhum vestgio na literatura indiana. como se ele nunca tivesse ido l.

    Do outro lado, o imperador indiano Ashoka (III sc. a. C.), que se converteu do Bramanismo ao Budismo, enviou missionrios budistas para Sria, Egito e Grcia. Achamos prova disso num edito de pedra do ano 256 a. C. Porm, no existe evidncia fsica das visitas a esses pases, nem relatrios na ndia. Clemente de Alexandria, do sc. III d. C., menciona os brahmanes nas pginas dos Stromateis, e tambm parece ser o primeiro no Ocidente a fazer referncia ao Buda; mas Clemente afirma apenas que os indianos veneram boutta com a honra devida a um deus. O mesmo autor, contudo, reconhece que a filosofia...j floresceu na antigidade entre os brbaros, iluminando as naes. Depois veio para Grcia... (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Livro I, 15).

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    Os romanos desenvolviam relaes comerciais com a ndia, e, indiretamente, com a China, recebendo aquelas especiarias que deixaram a impresso de uma regio extica onde temperos to fortes e saborosos podiam crescer.

    O gegrafo grego Estrabo, do sc. I d. C., relata a existncia de um reino greco-indiano em Bctria (hoje Afeganisto, Uzbequisto e Turcomenisto), do perodo, mais ou menos, de Alexandre at Cristo, onde se constata uma certa helenizao dessa parte da sia. Foi escrita l uma famosa obra de exposio da doutrina budista, a Milindapaha, um dilogo entre Milinda (o rei grego, Menandros, que tinha conquistado o norte da ndia) e um monge budista. Milinda converteu-se ao Budismo e a obra constitui, at hoje, a escritura no-cannica mais sagrada dos theravadins. Mas, aparentemente, nunca chegou ao Ocidente, seno bem recentemente.

    Devemos uma grande parte da nossa imagem do Oriente s Mil e uma noites, com as personagens de Simbad, Ali Bab, Aladim: contos persas, indianos e egpcios, cheios de exotismo, mas sem sinais de discurso propriamente filosfico nem de informao sobre as religies alm do Indo. O pensamento medieval entra em significativo contato com o Oriente apenas com os filsofos rabes e persas do Isl. Mas, sabidamente, a maior contribuio desses pensadores filosofia medieval latina era a transmisso do legado neo-platnico e aristotlico grego e no de fontes orientais. A civilizao muulmana era, simultnea e paradoxalmente, quase um espelho do patrimnio ocidental e grego para os grandes escolsticos do sculo XII, XIII e XIV, e, em muitos aspectos, uma muralha impenetrvel entre eles e o mundo da sabedoria indiana e chinesa alm da Prsia.

    Il milione, do comerciante e aventureiro veneziano Marco Polo - que passou 25 anos na corte de Kublai-Khan, na China no final do sc. XIII - cheio de observaes geogrficas, polticas e culturais, mas voc procura em vo qualquer referncia a Confcio, a Lao-tse ou a outras figuras da riqussima tradio da religio e filosofia chinesas. O fascnio com as superfcies predomina, como mais tarde na chinoiserie da porcelana e outras artes chinesas admiradas pela Europa do sc. XVII e XVIII.

    A famosa Rota da Seda era caminho privilegiado na transmisso de documentos budistas, e depois do Isl mesmo, para sia Central e China, e de uma troca de sbios entre essas

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    bandas e a ndia. Mas, apesar de chegar at ao Mediterrneo em Antioquia, a rota raramente serviu de rota de filosofia ou religio entre Europa e sia. S algumas seitas do Ocidente (como maniquesmo e nestorianismo) conseguiram fazer uma viagem ao Oriente, mas sem sobreviventes significativos hoje. O Oriente serviu para decorar os interiores das casas dos privilegiados da Europa e temperar a comida, mas raramente para alimentar o pensamento.

    Somente com Vasco da Gama o Oeste ter, de novo, um acesso direto ndia, desta vez, por via martima. Porm, naquela poca (a partir do sc. XVI), o Imprio Mongol, muulmano, dominava o norte do subcontinente. Esse fato, juntamente com os interesses, sobretudo comerciais, dos europeus, deixou as riquezas da religiosidade e sabedoria indianas bastante desconhecidas. A lngua franca usada para fins de negcio e troca no comrcio nunca viria a servir de veculo para transmisso de um contedo propriamente filosfico ou religiosa.

    Um captulo ambguo na histria dos intercmbios entre o Ocidente a China aquele protagonizado pelos missionrios jesutas, nomeadamente Matteo Ricci e seus colegas, os quais, no sc. XVII, introduziram tentativas de harmonizao (bem no esprito chins) entre Cristianismo, a venerao dos ancestrais, e aspectos do Confucionismo e Taosmo. O fascinante drama dessas aproximaes chegou a um fim abrupto quando a Igreja radicalmente delimitou o mbito de tais acomodaes no sc. XVIII. Matteo Ricci recebeu reconhecimento da importncia das suas tentativas apenas por Papa Joo XXIII em 1959, quando foi apresentado como um modelo para os missionrios (PAPA JOO XXIII, 1959).

    Parece simblico que as Amricas foram descobertas por exploradores que estavam a procura da ndia. Cristvo Colombo e Pedro lvares Cabral estavam a caminho da ndia quando aportaram nas costas norte e sul-americana. Mas bem depois da Era das Descobertas Martimas a curiosidade dos europeus iria ser despertada por um outro tipo de descoberta: uma descoberta lingstica.

    Em 1786, enquanto Kant preparava a segunda edio da Crtica da Razo Pura, querendo aproximar os limites da cognio humana possvel, o polmata e prodgio lingstico William Jones publicou The Sanskrit Language, alargando os limites da linguagem europia,

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    mostrando o parentesco entre o snscrito, lngua sagrada dos hindus, e o latim e o grego. Eruditos como August von Schlegel e Franz Bopp viraram os primeiros sanscritistas e a expresso lnguas indo-europias tornou-se a categoria para consolidar uma nova e expandida famlia lingstica. Os indianos e os europeus tiveram um patrimnio comum. Essa realizao conduziu, rapidamente, ao trabalho imenso de traduo dos numerosos textos de literatura, religio e sabedoria indianas. O irmo de August, Friedrich von Schlegel, comps o importante ensaio Sobre a lngua e a sabedoria dos indianos, em 1808. Depois, em 1827, apareceu a obra do ingls Henry Colebrooke, Ensaio sobre a filosofia dos hindus. Agora, a Europa prestava ateno a algo mais profundo na ndia do que especiarias e contos exticos. Sabemos que Hegel leu o texto de Colebrooke, mas a envergadura da literatura sapiencial indiana ainda era desconhecida, e o impacto foi modesto.

    Artur Schopenhauer foi o mais destacado filsofo ocidental do sculo XIX a estudar o Budismo e o Hindusmo por razes filosficas, achando especialmente na verso de compaixo no Budismo algo prximo ao seu prprio ideal tico. Tambm confessou que a leitura de uma recente traduo dos Upanixades lhe trouxera imensa consolao. Porm, evidente que Schopenhauer procurou mais confirmaes de suas prprias teorias nas doutrinais orientais, e no se entendeu como influenciado por elas como fontes. um prazer ver minha doutrina em to grande acordo com uma religio que a maioria dos homens professam [exagero revelador da ignorncia sobre as religies orientais na poca] (...) em meu filosofar, com certeza no fui sob sua influncia (SCHOPENHAUER, Livro II: 17).

    A maior parte dos estudos sobre a ndia, no sc. XIX, era mais a ttulo de filologia e das relaes entre mito e conhecimento terico. Os textos traduzidos ainda eram poucos, e a qualidade das tradues prejudicada por falta de experincia com abordagens inditas. Tradues filosficas sofreram, especialmente, das aproximaes apressadas com a terminologia ocidental contempornea (provindo do kantismo, hegelianismo, evolucionismo, etc.). S na segunda metade do sc. XX comeamos a ver tradues mais adequadas e desenvolvimento de critrios de interpretao e comparao que permitem uma penetrao mais profunda do sentido original.

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    Resta observar que houve, tambm na ndia, uma abertura na virada do sc. XIX, quando cada vez mais membros da elite intelectual indiana se formavam no Oeste e comeavam a lidar com a filosofia ocidental. O Vedanta, em particular, serviu de base para uma apresentao da sabedoria da ndia, com tentativas de usar abordagens do pensamento ocidental moderno para traduzir o pensamento vedantino num idioma filosfico ocidental. Vivekenanda e, mais tarde, Sri Aurobindo, so apenas dois nomes mais conhecidos entre muitos.

    Apenas hoje o contato entre Leste e Oeste ocorre praticamente sem obstculo geogrfico ou impenetrabilidade lingstica. Falta s, s vezes, vontade. Consideremos, para contextualizar tal afirmao, o seguinte: mais da metade da populao do mundo oriental. A sia o maior dos continentes. As principais religies mundiais surgiram no Oriente Mdio, na ndia e na China. no Oriente que encontramos os quatro tradicionais beros da civilizao (claro que, hoje, teramos que incluir os incas e os mesoamericanos). Os filsofos ocidentais, porm, pronunciam-se, tipicamente, sobre o mundo, o ser e o conhecimento humanos sem se orientar sobre o imenso fato que a realidade tnica, cultural, religiosa e sapiencial do Oriente. S o legado judaico-cristo viajou, h dois mil anos, para o Oeste e, juntamente com o legado greco-romano, formou o mundo ocidental. Mas hoje o restante do Oriente est em plena divulgao mundial. A revelao da ndia e do Extremo-Oriente como fonte, no s de especiarias, arte, medicina e literatura, mas tambm de filosofia e religio altamente desenvolvidas, , porm, bem recente. A obra de traduo, interpretao e comparao nesta rea est ainda no seu comeo.

    O desafio de uma famlia de abordagens sapienciais que no deriva das fontes da racionalidade grega e que nunca chegou a gerar uma cultura dominada, como a nossa, por uma cincia emprica casada com uma tecnologia quase autnoma, convida reflexo filosfica. a filosofia algo especificamente ocidental? Por que a gigantesca tecnologia moderna nunca surgiu na China ou na ndia? Os chineses e os indianos foram primitivos ou sbios demais para desenvolver energia nuclear? Ser que as sabedorias hindus, budistas e taostas so inseparavelmente vinculadas s religiosidades respectivas e, por isso, condenadas a no passar de espcies de teologia oriental? Existem elementos esquecidos da nossa prpria tradio sapiencial que o estudo das doutrinas orientais poderia despertar?

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    Essas e semelhantes questes merecem ser ventiladas se quisermos pensar hoje num horizonte filosfico autenticamente global.

    Ofereo, em seguida, um panorama resumido das trs tradies orientais que apresentam, mais obviamente, abordagens de interesse filosfico para o pensador ocidental. Uma boa dose de religio comparada imprescindvel para quem quiser entender a filosofia comparada, pois filosofia e religio no esto apenas em interao, contraposio e interpenetrao entre si, como no Ocidente, mas fazem isso de maneiras to diferentes que necessitam de novos modelos de questionamento filosfico que permitam dilogo e entendimento.

    Precisamos de definies provisrias da religio e da filosofia para acompanhar as reflexes. Aqui, vamos entender religio como uma resposta humana a uma iniciativa entendida como no-humana de religar o ser humano a uma transcendncia percebida como necessria, mas, por alguma razo, perdida. Essa resposta se articula em vrias modalidades de credo doutrinal (para o intelecto), cdigo moral (para a vontade) e culto ritual (para o corpo), tudo isso em medidas e acentos altamente diversificados. A filosofia vamos entender como uma reflexo discursiva e crtica sobre questes principias que dizem respeito aos assuntos mais abrangentes: sentido, valor, origem, meta do ser humano, do mundo e da questo sobre a existncia (ou no) de um absoluto.

    II. A Nova Oferta do Oriente ao Ocidente: Trs Patrimnios Densos e ComplexosDeixo fora da considerao o pensamento islmico, no por falta de interesse da minha parte, nem por falta de pertinncia, mas por ele fazer parte do mbito das religies e sabedorias semticas. Infelizmente, mais que claro que nosso mundo da Europa e das Amricas tem noes ainda limitadas e, s vezes, preconceituosas sobre a vasta tradio do Isl, mas de fato constitui uma espcie de meio termo entre o Ocidente e a sia alm do Indo. Qualquer estudo do Islamismo, e dentro dele do Xismo, Sunismo e Sufismo exigiria um estudo que comea com a origem das tradies abraamticas, o que foge aos objetivos deste ensaio. Tambm no vou incluir nessas reflexes as tradies orientais de menor projeo no Ocidente de hoje, como o Xintosmo japons e o Jainismo, o Sikhismo e o

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    Parsismo indianos. Espero que este resumo - apesar de ser bastante elementar e didtico - nos ajude a apreciar o novo apelo filosofia da religio, agora proferido tambm com as vozes e harmonias menos familiares do Oriente.

    II.1. O HindusmoAntes de mais nada, preciso observar que, nas lnguas principais dos textos filosoficamente pertinentes do Oriente - o snscrito, o pli, o tibetano, o chins -, no encontramos termos exatamente equivalentes a nossos conceitos ocidentais de religio e filosofia. Um hindu, falando um idioma derivado do snscrito, por exemplo, no diria, tipicamente, que tem uma certa religio que se chama de Hindusmo. O termo remonta aos britnicos do sc. XIX e foi usado sobretudo para designar a civilizao dos indianos no seu conjunto. Nem um brmane culto, seguindo, por exemplo, a tradio do Vedanta, diria que essa ltima seja a sua filosofia. Isso vale para todas as tradies sapienciais do Oriente, mas se evidencia de uma maneira excepcional no caso da tradio mais indgena da ndia.

    O Hindusmo tanto um contexto e um ambiente quanto uma srie de crenas e observncias. No tem fundador, nem autoridade suprema em termos de um papa ou aiatol. Vedismo, Brahmanismo e Hindusmo so categorias mais cronolgicas do que ideolgicas, introduzidas por indlogos ocidentais para etiquetar estgios da histria da tradio hindu. A expresso mais usada, em snscrito, sanatana dharma (a lei, a doutrina ou a norma perene). Quem hindu assim porque nasceu hindu, j situado numa classe social, estritamente hierarquizada, que tem uma sria de deveres e direitos correspondentes. Ser hindu , assim, tanto um conceito sociolgico quanto religioso. De maneira anloga, voc permanece hindu no por profisses e prticas particulares; sua adeso se propaga pelo fato de voc pertencer a uma determinada casta e por nunca ter, explicitamente, negado a autoridade de uma pequena biblioteca de textos sagrados que servem de fonte de todo o universo cultural, litrgico, tico e sapiencial do hindu. Esses textos so os Vedas, por volta de seis vezes o tamanho da Bblia. Para ser exato, existe s um Veda, porque o sentido da palavra conhecimento, entendido como um conhecimento sagrado. A captao, at a viso primordial desse conhecimento atribuda aos rishis, ou seja videntes, dos tempos da poca da origem do ciclo csmico presente, quase como patriarcas. Os Vedas so anadi, ou seja, sem incio, reunidos em trs colees, ou samhitas: o Rig-Veda (rig =

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    louvor), Sama-Veda (samans: canes sagradas) e Yajur-Veda (yajur: frmulas sacrificiais), com mais tarde um quarto, o Atharva-Veda (atharvan: frmulas mgicas). Aqui encontramos, sobretudo, hinos aos deuses, frmulas de sacrifcio, feitios e exorcismos - textos que ns, no Ocidente, chamaramos nitidamente de religiosos. Trata-se da mesma espcie de escrita nas Brmanas, comentrios subseqentes que contm um tipo de manual de instruo para a aplicao prtica do contedo dos Vedas, explicando os ritos e prestando-lhes uma legitimao mitolgica.

    Foram acrescentadas mais tarde s Brmanas as Aranyakas (tratados da floresta), reflexes msticas para serem feitas pelos eremitas recolhidos da sociedade. O desenvolvimento dessas foi assentado por escrito na forma dos Upanixades (que significa sentar-se no cho prximo [do guru, para receber o ensinamento]). Os principais desses textos foram escritos durante aquela poca dourada - o tempo axial de Karl Jaspers - sc. VII-VI a.C., que viu os pr-socrticos gregos, a composio do Antigo Testamento pelos judeus em Babilnia, Zaratustra na Prsia, o Buda no norte da ndia, e Lao-tse e Confcio na China. Aqui achamos um corpo vasto e complexo de especulao antropolgica, cosmolgica e metafsica. Com os Upanixades, as escrituras reveladas (shriti, escutados) encerram-se. Assim, a especulao metafsica que elas geraram foi vista como o objetivo, o fim (anta) dos Vedas, ou seja, a Vedanta.

    Existe um outro corpo considervel de escritos no escutados pelos rishis, mas lembrados (smriti), e que pertencem tradio posterior aos Vedas, mas possuem tambm uma certa autoridade, mesmo que inferior a esses. Pertencendo ao smriti so as leis (Manava-Dharmashastra), regras rituais (Vedangas), textos ticos (Niti-Shastras), contos e lendas populares para os no letrados (as Puranas), poemas (Itihasas, Kavyas), e as duas grandes epopias indianas (que lembram um pouco a Odissia e a Ilada homricas): o Ramayana e o Mahabharata.

    J percebemos algo como uma vasta matriz imaginativa, potica e religiosa, de que a filosofia pode emergir, como o fez das epopias e das artes das musas na Grcia antiga. E foi exatamente isso que aconteceu.

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    De maior interesse filosfico so os Upanixades, os numerosos comentrios sobre eles, feitos ao longo da histria do pensamento indiano, e um excerto de 700 dos 100 mil versos do Mahabharata, que virou o texto mais lido na ndia e at hoje considerado uma sntese da religio hindu e da sua sabedoria: O Canto do Exaltado, ou seja, o Bhagavad-Gita. Numa conversa entre o guerreiro Arjuna e seu cocheiro (o deus Krishna disfarado), aspectos fundamentais do pensamento indiano so abordados.

    O princpio filosfico - ao mesmo tempo terico e tico - que jaz no corao dos 200 Upanixades (o nmero oficial 108, mas s 14 so considerados mais importantes) que a realidade fundamental do homem, o atman, afinal, idntica realidade fundamental do mundo e da existncia na sua totalidade, brahman. Cumpre ao homem realizar essa unio efetivamente por meio do conhecimento dela ou de qualquer tipo de identificao. Segue-se disso a doutrina upanixdica: Tat twam asi, voc aquilo, ou seja, o sujeito e o objeto coincidem. Um panorama imenso de mtodos para conseguir essa realizao apresenta-se, conforme as diferenas de casta, de temperamento, de estgio de crescimento. A Gita organiza os pontos de vista (darshanas) segundo os quais a realidade de brahman pode ser encarada e os caminhos (margas) pelos quais a identificao com ele pode ser operada; existem seis darshanas e quatro margas. Aquelas so os chamados seis sistemas ortodoxos de filosofia hindu e estas os quatro mtodos de moksha, ou seja, liberao daquilo que impede nossa realizao: a maya, uma fixao da conscincia humana em samsara, a revoluo das aparncias. Voc pode conseguir moksha pelo caminho de karma (ao), por bons atos e sacrifcios; pelo caminho bhakti, devoo a um deus particular (essas dois de longe as mais populares das margas); pelo caminho raja, a marga real de meditao; ou por jana, o caminho do conhecimento.

    Ora, essa ltima marga representa uma dimenso do mundo hindu que verdadeiramente filosfica, ainda que o ideal mstico da contemplatio no Cristianismo seja talvez ainda mais prximo. O nico lao religiosidade vdica que essas escolas (se me permitem usar esse termo ocidental) so ortodoxas, que significa apenas que reconhecem a autoridade dos Vedas. Tal reconhecimento, porm, no se mostra por uma adeso explcita a um credo particular, mas quase cerimonial, pode-se dizer. O contedo dos Vedas to polimorfo, potico, mtico e imune a qualquer reduo sistemtica que seja, que tal reconhecimento

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    no implica restries srias na envergadura das elucubraes filosficas empreitadas na sua sombra. Mas existe uma mensagem central dos Upanixades que o fio condutor para a ortodoxia: o nico princpio que fica vigente o atman procura de unio com o brahman. Mas como voc concebe um e outro, de um lado, e como voc prope a metodologia de unio, de outro, aberto s mais variadas hermenuticas.

    Nas darshanas, as dimenses humanas de um pensamento filosoficamente articulado manifestavam-se com paralelos bvios s disciplinas consagradas da filosofia europia: tentativas de montar uma lgica e uma epistemologia (Nyaya), uma filosofia da natureza (Vaisheshika), uma hermenutica e uma teoria de linguagem (Purvamimamsa), uma viso polar do cosmos em princpios que lembram ato/potncia, ou matria/esprito, na dualidade purusha/prakriti (Sankhya), uma psicologia de foras fsicas e sutis no corpo humano e sua harmonizao (Yoga), e uma metafsica (Vedanta). Cada darshana foi formulado por um autor clssico de sutras que se tornaram em textos cannicos de cada sistema. O que o filsofo ocidental pode aprender que as darshanas, por serem pontos de vista diferentes, mas finalizadas num idntico objetivo (o moksha), visam complementariedade mais que antagonismo.

    Vamos nos limitar aqui apenas quela darshana que, de maneira mais manifesta, apresenta-se, at mesmo aos olhos crticos do ocidental, como filosfica: o Vedanta. Os Brahma-Sutras de Badrayana (talvez sc. II ou III d.C.) constituem o comentrio cannico dos Upanixades do ponto de vista vedntico e so um tipo de resumo das vrias tentativas de interpretao. Ora, trs comentaristas desses sutras e expoentes clssicos do Vedanta merecem, sem apologias, o ttulo de filsofos: Shankara (sc. VIII), Ramanuja (sc. XII) e Mahdva (sc. XIII).

    Shankara, que morreu na mesma poca da morte de Joo Escoto Eriugena, desenvolveu o Advaita Vedanta, ou seja, o Vedanta no-dualista. a interpretao mais conhecida do pensamento indiano, determinando como entendemos termos como brahman, atman, maya, moksha e nirvana. Propondo um monismo rigoroso, ele negou tanto o contedo real de maya (o jogo das aparncias), que foi acusado pelos outros dois grandes vedantins de ser um cripto-budista, pois para eles o absoluto, brahman, na interpretao de Shankara, no se

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    diferenciava claramente do budista shunya (o vazio). Elementos aparentados com a filosofia plotiniana, o apofatismo de Pseudo-Dionsio, o minimalismo quanto cognoscibilidade filosfica de Deus em Toms de Aquino, abordgens de Espinosa e at de Kant e Hegel podem ser identificados.6

    Ramanuja, contemporneo de Abelardo e Averris, fundou o Vishishtadvaita, ou seja, o monismo qualificado. Para ele, o caminho de bhakti, devoo pessoal - nesse caso, direcionado a Vishnu - seria o meio mais eficaz de obter moksha. A diferena/no-diferena (bhedabheda) entre atman e brahman abre uma sutileza na discusso sobre o homem e o Absoluto. Seu comentrio dos Brahma-Sutras virou o texto cannico para os Vaishnavas (veneradores de Vishnu).

    Madhva, contemporneo de Toms de Aquino, o expoente principal do Dvaita-Vedanta, o dualismo. Deus (o brahman), o mundo e a alma so trs substncias distintas, mas as ltimas duas se acham em dependncia da primeira. Ele refuta a teoria shankariana de maya e apresenta uma metafsica no sem convergncias com aquelas propostas, contemporaneamente, nas escolas de Paris, Colnia e Npoles. Em Ramanuja e Madhva vemos que at a ortodoxia na interpretao do contedo dos Upanixades passa por polmicas e debates que lembram o arco-ris da hermenutica de Plato no Ocidente.

    Comparaes entre esses pensadores podem trazer tona luzes filosficas to interessantes quanto comparaes entre Plato, Aristteles e Plotino, ou Descartes, Locke e Kant, ou Husserl, Heidegger e Sartre. As outras darshanas tambm contm abordagens promissoras. H inmeras oportunidades para pesquisa, o que poderia esclarecer no s as idias indianas, mas tambm o prprio legado filosfico do Ocidente7.

    6 Um dos melhores expoentes de filosofia comparada, nesse sentido, Ben-Ami Scharfstein, cuja A Comparative History of World Philosophy: from the Upanishads to Kant, Nova York, 1998, oferece comparaes surpreendentes mas bem argumentadas entre filsofos ocidentais e orientais.

    7 Ver, por exemplo, East-West Philosophers Conferences, convocadas desde 1939 (at hoje, nove) com filsofos ocidentais e orientais, estudos excelentes publicados pela Universidade de Hava. http://www.hawaii.edu/phil/EWPhilosophersConference.htm (c. 10.09.07)

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    II.2. O BudismoO turista ocidental que visita a ndia pela primeira vez pode se perguntar: Onde esto os budistas? De fato, quase todos os budistas do mundo se acham fora da ndia. Estatstica estranha essa, quando nenhum personagem indiano mais famoso do que o Buda. Assim como o Cristianismo viajou para oeste e norte da Palestina, o Budismo acabou viajando para leste e norte da ndia. Os pases budistas so Sri Lanka, Tibet, Buto, Mianmar, Tailndia, Laos e Camboja; e grande nmero de budistas encontra-se tambm ao lado de outras religies, no Vietn, China, Monglia, Coria e Japo. Apesar de ter comeado como uma das darshanas heterodoxas, ao lado do materialismo de Charvaka (VI a.C.) e o Jainismo de Mahavira (VI a.C.), o Budismo chegou a dominar a ndia por quase a totalidade do primeiro milnio d. C., perodo em que foi exportado para quase toda a sia. As razes dadas para sua eliminao da ndia - os novos movimentos bhakti, desde o sc. V, o novo impulso que o Hindusmo ganhou da filosofia de Shankara, no sc. IX, a chegada dos turcos no norte, por volta do 1200 - so secundrias quando vemos quanto o Hindusmo absorveu do Budismo, de um lado, e o quanto o Budismo se reaproximou do Hindusmo, de outro. Podemos at concordar, com ressalvas, com o comentarista que designou o Budismo como uma espcie de Hindusmo de exportao.8

    Mas tudo comeou com Sidarta Gautama, o Buda histrico, que se dedicou descoberta de um mtodo prtico, eficaz e simples para alcanarmos a libertao. Seu exemplo, mtodo e ensinamento se apresentam, primeira vista, como simplificaes do Hindusmo, uma reduo ao essencial - e, como instrumento de tal simplificao, uma abordagem mais psicolgica e pragmtica do que metafsica e especulativa. Se o Hindusmo insiste mais na realidade inabalvel do brahman, o Budismo insiste mais na impermanncia do maya. Se o hindu visa mais a meta, o budista procura mais o meio. O Buda procurou, em sua prpria vida, a maneira mais direta de penetrar a iluso e realizar, na prpria experincia, a verdade. Sua abordagem dispensou os Vedas, as castas, os sacrifcios e a especulao filosfica (pelo menos por enquanto, porque veremos que eles vo voltar em novo traje) para focalizar tudo numa intuio fundamental, que forma a grande base de toda a doutrina e prtica

    8 Atribudo a Ren Gunon.

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    budista: pratitya samutpada (originao co-dependente ou condicionada)9. Todas as coisas se interdependem, uma originando-se da outra, de tal forma que no h, enfim, algo estvel e permanente no mundo. A penetrao desse princpio o despertou, produzindo o bodhi (estado desperto ou iluminado) e ele virou o - ou, pelo menos um - buda (desperto). Ao mesmo tempo, percebeu tambm que o eu faz parte inextricvel dessa concatenao condicionada de elementos co-dependentes; assim, o eu tambm no permanece; logo, o outro lado do pratitya samutpada anatman (no-eu).

    Essa intuio, de uma natureza to simples, desdobrou-se logo nas famosas Quatro Nobres Verdades: 1) tudo sofrimento por causa da sua impermanncia; 2) a causa do sofrimento o desejo (que nos entrega ao pratitya samutpada e causalidade implacvel do karma no ciclo perene das aparncias (samsara); 3) o fim do sofrimento o apagamento (nirvana) dos desejos; e 4) existe uma via mdia, nem asctica, nem indulgente demais, na forma de um Caminho ctuplo para retificar nossos pensamentos e aes e nos tornar em um arhat, algum digno, um santo. Em um conclio convocado em Sri Lanka, no primeiro sculo d. C., as doutrinas do Budismo foram assentadas por escrito na lngua pli, um dialeto de snscrito, formando assim o Cnone Pli. Uma parte dele, o Dhammapada, uma coleo de 423 versos de ditados do Buda e um dos textos favoritos dos budistas.

    Esse Budismo original, em que o adepto procurou sobretudo a prpria libertao e que inspirou a instituio do mosteiro e de uma cultura organizada ao seu redor foi chamado mais tarde, pejorativamente, de o Pequeno Veculo (Hinayana), por ter excludo (como alguns achavam) o interesse na libertao dos outros. De vrias divises nesse ramo do Budismo sobrevive hoje apenas o Theravada (escola dos ancios) que o que encontramos em Sri Lanka, Mianmar, Tailndia e os paises da Indochina, com exceo de Vietn.

    Mas j no primeiro sculo depois de Cristo, uma nova orientao da mensagem budista comeou a crescer: a saber, a Mahayana, ou Grande Veculo. O exemplo do prprio Buda, que viajou e pregou sua doutrina, sugeriu aos leigos a possibilidade de um Budismo no s monstico, mas tambm motivado por uma compaixo mvel, o interesse na libertao de todos, por isso grande (maha). Trs diferenas doutrinais delinearam-se: 1) em vez do ideal 9 Tese mantida, tambm por muitos outros, pelo grande indlogo alemo, Helmut von Glasenapp, por exemplo

    in Die Philosophie der Inder, Stuttgart, 1958, p. 302 ss.

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    do arhat, o ideal do bodhisattva, ou seja, a pessoa que posterga sua prpria entrada no nirvana por compaixo pelos outros, os quais quer ajudar e ensinar; 2) a idia de anatman (ou no-eu) desenvolve-se e prolonga-se na idia de sunyata (o vazio); e 3) mais nfase em bodhi (o estado de Iluminao) do que no Buda histrico, de tal forma que podem existir muitos budas e bodhisattvas; enfim, cada um pode virar um buda.

    Esse Budismo retomou vrios elementos do Hindusmo e, enquanto a Hinayana se estabeleceu a leste da ndia, a Mahayana cresceu primeiro na ndia, e tambm se espalhou para o norte, coexistindo e interagindo com o Taosmo e o Confucionismo na China e Coria, e com esses e o Xintosmo no Japo. Depois do ressurgimento do Hindusmo indiano, no final do primeiro milnio, a Mahayana sobreviveu no seu estado puro apenas no Extremo Oriente. Os escritos desse ramo budista foram produzidos em snscrito e na forma de sutras.

    Uma terceira forma de Budismo resultou da interao entre o Budismo Mahayana e o Tantrismo e at o xamanismo, produzindo um Budismo Vajrayana, o Veculo Diamante. Aqui um vasto instrumentrio de meios e ajudas (upaya) para obter o nirvana entra em jogo: mandalas, mantras, mudras, iniciaes especiais, um panteo enorme de deuses e deusas, e diversos mtodos de concentrao para canalizao da energia psquica. O Budismo tibetano o maior sobrevivente dessa espcie de Budismo, presente tambm no Buto e, em parte, na Monglia, com uma vasta literatura tibetana. A dispora tibetana depois da fuga do Dalai Lama da China, em 1959, espalhou esse Budismo novamente para a ndia e, depois, para a Europa e as Amricas. Muitos escritos do Vajrayana na ndia, em snscrito, sobrevivem apenas em tradues tibetanas.

    Merece meno tambm o Budismo da Terra Pura, ou seja, o Budismo Amida, um desenvolvimento do Mahayana na China (Ching-tu) e no Japo (Jodo-shu e Jodo-Shinshu, entre muitas outras escolas), onde a invocao do nome do bodhisattva Amida desempenha um papel fundamental. Em muito aspectos, comparvel com a tradio da orao de Jesus na Ortodoxia oriental do Cristianismo, como praticada no monte Atos, na Grcia.

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    Apesar de todos esses desenvolvimentos e acrscimos, a mensagem original do Buda to filosfica que alguns comentaristas acham que nem se qualifica como uma religio, sendo melhor chamada de uma filosofia. O silncio famoso do Buda s perguntas sobre a existncia de Deus e toda especulao metafsica deixa at a impresso de um certo atesmo, ou pelo menos agnosticismo. Mas a riqueza de abordagens fecundadas pelo seu exemplo e sua doutrina sugere que: 1) ele representa muito mais uma recanalizao do Hindusmo, o qual, como sabemos, pelo seu poder absorvente quase indiscriminado, acolheu o Buda no seu prprio panteo como o nono e penltimo avatar de Vishnu. Tambm o Hindusmo absorveu muito do contedo Mahayana do Budismo durante a sua dominncia religiosa na ndia durante um milnio; 2) a ndole prpria do Budismo trata-se mais de sua concentrao no mtodo, na prtica psicolgica. Longe de ser um atesmo (um conceito, alis, ocidental), talvez melhor chamado de um apofatismo, uma teologia negativa, ou seja, uma negao no da existncia do Absoluto e sim de nossa capacidade de dizer algo sensato a respeito dEle.

    Um pensador, na tradio Mahayana, que merece ser colocado ao lado de Shankara e Ramanuja, o Nagarjuna (sc. III). Provavelmente o maior filsofo na histria do Budismo, escreveu comentrios profundos sobre o pratitya-samutpada, interpretando-o por meio do conceito de sunyata, ou seja, o vcuo, o vazio. Ele critica tanto o Hindusmo quanto o Budismo anterior nas suas teorias sobre a existncia. A sunyavada (doutrina sobre o vazio) o conceito-chave da escola de Madhyamika (o caminho do meio). A natureza da existncia , segundo ele, rigorosamente relacional - no existem almas, coisas, nem conceitos que independem dessa rede; em si, coisas so vazias. Nagarjuna desenvolveu um tipo de dialtica (chamado de prasanga, ocasio) que usa argumentos como ocasies para destruir a iluso de um absoluto. A prtica escolstica dessa dialtica vista como um caminho de eficcia moral para vivenciar a compaixo, ajudando os seres a escapar de avidya (ignorncia).

    Uma outra grande escola do Budismo foi resultado de uma influncia, na China, do Taosmo. O Budismo Chan, ou, em japons, Zen, trouxe uma simplificao usque ad finem da mensagem do Buda. O termo uma traduo do dhyana (meditao) em snscrito e coloca a busca sbita e direta de bodhi (em chins, tun-wu; em japons: satori) por meditao

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    disciplinada sem intermdio de teoria ou qualquer subsdio daquela massa de meios hbeis (upaya) to importante no Budismo tibetano. Os koans, pequenos quebra-cabeas, tm por fim quebrar mesmo: se no a cabea, sim os hbitos do pensamento discursivo, ou pelo menos nosso apego a eles, para abrir o caminho a satori. O Zen achou muito interesse filosfico no Ocidente pela sua afinidade a certas pesquisas da filosofia da linguagem. J existem tantos estudos sobre a filosofia ocidental e o Zen que nem precisamos insistir aqui em sua relevncia.

    A ambigidade entre Budismo como religio e como filosofia suficiente para realar as dimenses do seu desafio filosofia da religio ocidental. Mas chegou a hora de falarmos, brevemente, sobre a tradio religiosa e sapiencial da China.

    II.3. A Terra dos Trs EnsinamentosNa beira da modernidade Francis Bacon comentou, em um texto clebre, o enorme impacto que a bssola magntica, a plvora e a imprensa tiveram sobre a Europa (BACON, Aph. 129). O que ele no destacou foi a origem chinesa dessas invenes. Mas, depois de numerosos esclarecimentos sobre a fecundidade do gnio chins e a sua crucial influncia no desenvolvimento da cincia moderna, nominadamente por Joseph Needham, a tendncia continua ser a de enquadrar os chineses apenas como homens prticos com habilidade tecnolgica presciente e sem tradies filosficas de variedade e profundeza (NEEDHAM, 1954-1995). Needham corrigiu a impresso projetada por Bacon, mas, alm disso, ficou perplexo pela ascendncia da cincia moderna ocidental, ao passo que a China recuou, ao que parece, da primeira criatividade e ficou para atrs do Oeste (at recentemente). Depois de tentar interpretaes marxistas desse recuo, Needham acabou culpando a filosofia taosta por ter detido o gnio cientfico chins. A viso do Tao teria encorajado o homem a conhec-lo apenas com o fim de se harmonizar com ele, e no de decifrar as suas leis ntimas e finalmente domin-lo - faanha que apenas a Nova Cincia ocidental do sc. XVII teria conseguido.

    Seria interessante seguir as conseqncias da concluso do famoso bioqumico e historiador da cincia, mas vamos apenas realar o poder da noo do Tao, que, aparentemente, fez com que todas essas descobertas (algumas outras eram o papel, o leme, o carrinho de mo,

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    o alto forno, dinheiro em papel, roda de escapo, etc.) no causassem os transtornos sociais e as revolues culturais que provocaram no Ocidente ao serem introduzidas, integrando-se mais naturalmente na cultura chinesa. Por que as invenes tiveram efeitos to diferentes na China e na Europa algo que levanta vrias questes que no podemos abordar aqui.

    Quando falamos que o pensamento chins mais holstico do que compartimentado, mais humanista do que metafsico, mais pragmtico do que terico, e mas sincretista do que monoltico, h uma verdade importante em todas essas nfases. Porm, os chineses no partilham conosco a mesma famlia tnico-lingstica, como o caso dos indianos, e por isso no dispomos, de antemo, de conceituaes, pelo menos potencialmente adequadas, para penetrar o mundo filosfico e religioso deles com uma certa conaturalidade e comensurabilidade. Aqui achamos um mundo justamente no indo-europeu e no sentido mais extremado da palavra: o Extremo-Oriente - a sia stricto sensu. Nem inclumos aqui reflexes sobre o Japo, por falta de espao. Mas claro, em todo caso, que nos referimos ao Extremo Oriente antes (ou pelos menos independentemente) da ocidentalizao recente.

    A filosofia e a religio chinesas articulam-se numa lngua tradicional que monossilbica, tonal, isolante em vez de flexiva, e que se apresenta ao olho em uma escrita que combina elementos pictogrficos, ideogrficos e fonticos. Ela escrita de tal forma que praticamente faz de cada escritor um pintor; os pincis na China so to numerosos quanto as bananas no Brasil e as baguettes na Frana. Esse fato em si mereceria reflexo, dado a importncia de consideraes sobre oralidade e literacy no pensamento ocidental recente. Digo isso somente a ttulo de curiosidade.

    Mas, longe de ser uma ilha extica, remota e pequena, a China abrange, tal qual a ndia, uma parte enorme do gnero humano: (ndia, 1 bilho e China, 1,3 bilho). Uma em cada cinco pessoas humanas chinesa. Quando se chamam, tradicionalmente, de o Reino do Meio - com as Amricas (mesmo desconhecidas) no Oriente e a ndia no Oeste - os chineses tm, talvez, mais direito de reivindicar tal centralidade do que Europa ou os Estados Unidos de hoje.

    Mas uma outra caracterstica da tradio chinesa permite uma comparao til com a Europa: a China recebeu o Budismo de fora e o integrou s suas duas tradies nativas, o

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    Taosmo e o Confucionismo, assim como o mundo europeu, por sua vez, acolheu o Cristianismo de fora (do Mdio Oriente) e o integrou s suas tradies helnicas e romanas. Dessa forma, pelo menos desde essa integrao complexa, polmica, mas, enfim, profundamente marcante, a China apropriou um conceiturio do patrimnio indo-europeu (aquele budista) que talvez facilite a construo de pontes de entendimento.

    Apesar da revoluo cultural de Mao Tse-tung que, nos anos 60, destruiu milhares de templos, bibliotecas e monumentos religiosos na China, o pas ainda preserva, em medida reduzida, seu impressionante patrimnio filosfico e religioso. Tem difundido pelo mundo um panorama de invenes tcnicas, artes marciais, sistemas de medicina e, s recentemente, abordagens de filosofia e religio. E desde os dias da dinastia Tang (sc. VII-IX), um outro nome foi dado tambm China: "A Terra dos Trs Ensinamentos", destacando o fato de que l o Taosmo, o Confucionismo e, finalmente, o Budismo entraram em uma simbiose indita na histria das religies. A fecundidade dessa conjuntura est at hoje em evidncia. No sc. XXI, quando o enorme Estado Chins projeta cada vez mais seu poderio econmico e poltico, mais importante do que nunca apreciar as razes religiosas e sapienciais que alimentaram, por bem mais de dois milnios, esta vasta e complexa realidade que chamamos China.

    Encontramos, em geral, um temperamento filosfico bem distinto daquele indiano. Menos dado teoria por si s, o chins tem uma atitude sapiencial que, grosso modo, resiste ao isolamento da teoria em relao prxis. Um certo humanismo e pragmatismo marcam o pensador tpico (mas de longe no todos), como tambm uma abertura a um sincretismo e uma compenetrao de tradies que dificultam delineaes unvocas. A experincia na convivncia com um pluralismo religioso e filosfico uma das lies que a China pode oferecer ao Oeste. O Confucionismo e o Taosmo, tradies nativas da China, acabaram acolhendo o Budismo importado de tal forma que foram transformados por ele, assim como o Budismo tambm, por sua vez, emergiu desse casamento transformado. A longa e complexa histria dessas interaes, e do surgimento sim de um vis mais metafsico e at mstico no neo-Confucianismo e neo-Taosmo, revela a futilidade de generalizaes simplrias. Alis, a frustrao dos eruditos quanto a uma China to fechada por sculos, s ultimamente se abrindo, juntamente com a destruio de inmeros textos e epgrafas

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    tradicionais durante a limpeza de tradies de Mao-tse-tung, grande. Vou apenas fazer algumas breves observaes sobre o conceito central taosta, que tambm desempenha um papel central no Confucionismo, e algumas implicaes para o pensamento ocidental. Assim, encerro nosso panorama do fenmeno religioso oriental.

    O texto clssico do Taosmo, o Tao-te-Ching, felizmente, est disponvel em vrias tradues nas lnguas europias, apesar da quase impossibilidade de transpor a polivalncia e a versatilidade semnticas dos caracteres chineses para as palavras indo-europias.

    O Caminho e seu Poder, O Curso e sua Virtude so apenas duas tradues possveis de tao-te, objetos desse clssico (Ching). O tao jaz no fundo da religiosidade e da filosofia chinesas, como talvez o logos no pensamento europeu e dharma na filosofia indiana. Se a filosofia no mundo hindu tem, em suas razes, uma tendncia fortemente metafsica, e a filosofia budista um acento psicolgico direcionada experincia imediata, eu diria que a filosofia chinesa possui um corao no apenas profundamente tico mas tambm esttico. O cu, como abbada em cima da terra, o grande smbolo do princpio masculino, do yang, assim como a terra representa o princpio feminino, do yin. Mas a interao dos dois princpios que o chins, creio eu, v, observa e, por assim dizer, segue com os olhos: o grande curso das coisas, o Tao. O te a presena, ou o efeito do tao dentro do ser humano, a nossa virtude, nossa fora propriamente humana. talvez lamentvel que a Igreja Catlica, nas medidas disciplinares contra as inovaes dos jesutas missionrios do sc. XVIII, tenha includo uma proibio de aproximar a idia chinesa do tien (cu) com a idia bblica de Deus. Quando visitei China em 2004, achei o cu chins misteriosamente grande, um big sky, que me fez pensar imediatamente na infinitude divina.

    Como na ndia, tambm na China faltam termos que traduzam, perfeitamente, nossas palavras filosofia e religio. Tendo herdado da ndia a religio talvez menos religiosa de todas, o Budismo, a religiosidade tipicamente chinesa manifesta-se pela venerao aos pais e aos ancestrais. Dessa forma, relaciona-se igualmente a uma certa transcendncia, aquela de sua prpria origem. As mltiplas formas da religio popular, que articula e ritualiza essa venerao, ligada tambm com correntes de xamanismo e animismo, misturam com a

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    experincia j fortemente sincrtica dos trs ensinamentos. Assim, falar adequadamente da religio chinesa algo que supera os limites deste ensaio.

    Quanto filosofia, porm, uma aproximao terminolgica seria zhe xue, que significa estudar com sagacidade, com determinao, com sabedoria (WU, 1998). Mas fazendo um levantamento da literatura sapiencial chinesa, dentro das tradies confuciana, taosta e budista, enxergamos, entretanto, uma produo filosfica extremamente variada e atualmente objeto de estudo intenso no Ocidente.10

    Para o filsofo, uma vez que a imensido apenas desses dois fatos demogrficos, geogrficos, religiosos e filosficos que so a ndia e a China seja apreciada, nunca mais ser possvel considerar, filosoficamente, o homem, o mundo, o conhecimento, a origem e a meta da vida humana, os valores, etc., sem tomar em conta as implicaes desses dois fatos para sua reflexo. O filsofo viria, por isso mesmo, aqum do ideal sintico do filsofo.

    ConclusoEncerro este trabalho com uma observao, ou talvez apenas uma impresso pessoal, sobre o tom e o esprito geral das trs tradies religiosas, hindu, budista e chinesa, que enfrentam o olhar filosfico hoje. Parece-me que o Hindusmo, em toda a sua complexa variedade, como um jogo de cores, de idias, de danas, de imagens, de mtodos de concentrao, de ritos, de deuses - todos ao redor da idia do brahman, fitado com os olhos do intelecto, emergindo dele e voltando. O pensamento filosfico indiano parece imitar esse movimento. O Budismo, por outro lado, concentra-se no ser humano, na experincia humana, e na maneira como nossa atitude para com a multiplicidade das aparncias e das distraes do maya pode ser transformada. A reflexo filosfica sobre o nexo causal, o pratitya samupada, , essencialmente, uma psicologia de transformao da nossa subjetividade. O esprito chins - seja ele mais exotericamente representado pelo Confucionismo ou esotericamente, pelo Taosmo - parece tirar sua inspirao sobretudo de uma viso ocular, do grande cu e seu curso, a que queremos nos associar, nos harmonizar.

    10 Ver A Source Book in Chinese Philosophy, ed. e transl. Wing-Tsit Chan, Princeton, 1969; e The Chinese Mind, ed. charles A. Moore, Honolulu, 1967.

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    Se a religio fosse contemplada em toda essa variedade e complexidade, e sua compenetrao com temas tambm centrais ao questionamento filosfico fosse plenamente captada, o filsofo do sc. XXI veria a reflexo filosfica perante um desafio indito em sua histria. Nunca antes foi possvel, como atualmente, vislumbrar a vasta paisagem das possibilidades da religio humana. Se acrescentarmos a esse panorama tambm os frutos da pesquisa arqueolgica e antropolgica no que diz respeito s manifestaes religiosas do passado mais remoto (no Egito, na Mesopotmia, em Harappa e nas variadas religies tribais dos africanos subsaarianos e dos indgenas americanos, algumas das quais existem ainda hoje), o fenmeno religioso torna-se um novo e inslito foco de espanto filosfico. O mundo maior e Deus mais misterioso do que nunca. O fenmeno humano ainda mais intrigante e suas interaes com a transcendncia escapam das mais recentes armadilhas de teorias simplrias e reducionistas.

    Caso a filosofia no queira perder-se em trabalhos tcnicos de micro-filosofia, em que a independncia das cincias cognitivas, da lingstica, da psicologia, e das cincias particulares de modo geral, fica cada vez mais questionvel; ou se identificar com estudos meramente historiogrficos, edies crticas e novas interpretaes de autores do passado, em que a sua independncia de uma mera histria das idias torna-se questionvel; ter que redefinir sua relao com a transcendncia e enfrentar o fato das religies mundiais em toda sua riqueza, e arriscar que a categoria do mistrio se insere, novamente, no ato de filosofar.

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    Recebido: 01/08/2007Aceite final: 25/08/2007

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