o “pensamento social no brasil” visto de longe: um
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O “pensamento social no Brasil” visto de longe: um
mapeamento da área1
Lucas Carvalho (UFF)
Antonio Brasil Jr. (UFRJ)
Numa definição minimalista, podemos arriscar dizendo que a área de pesquisa em
“Pensamento Social no Brasil” se debruça sobre as interpretações da sociedade brasileira e seus
produtores, bem como sobre os seus efeitos no processo social. Se uma certa visão estereotipada
sobre a área ainda vê nesta especialização acadêmica um foco talvez excessivo em um conjunto
muito limitado de textos e autores da primeira metade do século XX – aparentemente vistos
como em si mesmos “importantes” –, a verdade é que, nas duas últimas décadas, ampliou-se e
se diversificou consideravelmente não só o que se entende por “interpretações da sociedade
brasileira” mas também o que se considera “intelectual”. O que levou, como não poderia deixar
de ser, a um debate bastante sofisticado, feito em diálogo com outras áreas de pesquisa, a
respeito de novos modos de se pensar a relação entre texto e contexto, sobre o alargamento da
noção da própria noção de intelectual e sobre o efeito (variado e em múltiplos sentidos) de suas
ideias na modelagem de relações sociais. E, atravessando tudo isso, questões mais amplas,
como a crise do Estado-nação – e a consequente problematização do “brasileiro” ou “no Brasil”
– e a consciência mais aguda quanto ao caráter estruturante da ordem racial e de gênero, por
exemplo, vem suscitando ângulos novos para a leitura dos textos “clássicos” ou criando o
contexto para a discussão franca de textos pouco lidos ou até então quase desconhecidos.
Trata-se, pois, de uma área de pesquisa que vem sabendo se renovar e fazer frente aos
desafios teóricos, metodológicos e empíricos postos pelas ciências sociais contemporâneas. Um
deles diz respeito ao grande volume de dados e informações (big data) sobre a vida social
produzido e transmitido em escala até pouco tempo atrás inacessível aos cientistas sociais.
Grandes organizações públicas ou privadas geram diariamente volumes cada vez maiores de
informações sobre os mais variados aspectos da vida social, o que vem suscitando o surgimento
e a popularização crescente de ferramentas computacionais que permitem tratar esse material
empírico através da anotação e da codificação de textos. A Biblioteca Virtual do Pensamento
Social (BVPS), a primeira Biblioteca Virtual de uma área de pesquisa integralmente dedicada
às ciências humanas, tem estimulado a discussão sobre o tema e o treinamento de seus
1 44º Encontro Anual da ANPOCS, GT32 - Pensamento Social no Brasil.
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integrantes no uso desses softwares. Isso porque, em razão do crescimento da área de
pensamento social nos últimos anos, a BVPS tem feito o esforço de pensar crítica e
reflexivamente a sua produção, de modo a reforçar ou criar laços com outras áreas, internas e
externas às ciências sociais, e de incorporar novos debates temáticos e metodológicos. Como a
criação, manutenção e diversificação de uma área nem sempre é um processo dirigido
conscientemente, dependendo em grande medida das redes de relações entre instituições,
pesquisadores e pesquisas, o exercício de análise de sua produção contribui não somente para
formarmos uma visão mais ampla sobre ela, mas também para acompanharmos mudanças,
permanências e tendências. Portanto, a “auto-observação”, quer dizer, o esforço de pensar a
partir de “dentro” questões caras à determinada área, torna-se um importante elemento, junto a
outros, de renovação e diversificação científica, ao fornecer dados e perspectivas que as práticas
rotineiras de pesquisa não permitem. Além disso, torna-se um aspecto fundamental e
constitutivo da própria manutenção do acervo da BVPS, já que ele permite que se mapeie a
produção presente da área de pensamento social no Brasil e assim crie uma espécie de memória
científica.
Os dados que apresentaremos ao longo deste trabalho permitirão exemplificar algumas
possibilidades de ligar o big data ao “pensamento social no Brasil”, vale explicitar o que talvez
seja um pressuposto teórico-metodológico compartilhado: a “leitura distante” (distant reading),
na acepção dada por Franco Moretti ao termo (MORETTI, 2008). Levar a sério a concepção de
que a distância em relação ao texto pode ser uma condição do conhecimento na área de pesquisa
que é o campo por excelência da “leitura cerrada” ou “em profundidade” (close reading)
certamente parece provocador. Contudo, não se trata de traçar uma linha de ruptura ou muito
menos sugerir qualquer superioridade da leitura distante em relação aos protocolos mais
estabelecidos de pesquisa com textos. Pelo contrário, a leitura distante não está em posição de
concorrência com a leitura em profundidade, pois ela constrói um novo objeto de pesquisa, que
não possui qualquer comensurabilidade com os textos tomados individualmente. O que está em
jogo, diante da tarefa de pesquisar em conjunto mil, dez mil, cem mil ou mesmo um milhão de
textos não é a leitura exaustiva de cada um deles – decerto frustrante e impossível – mas buscar
estratégias para simplificá-los e codificá-los, permitindo o manejo de ferramentas de
visualização de dados e de mensuração estatística de seus conteúdos.
Aliás, a leitura distante não é somente um novo protocolo possível da pesquisa com
textos. Podemos dizer que formas de leitura distante passam cada vez mais a fazer parte do
estoque rotineiro de auto-observações recursivamente levado a cabo no processo social. Já há
certa literatura disponível que enquadra esse fenômeno nos marcos do chamado “capitalismo
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cognitivo” – uma forma de acumulação que precisaria produzir de modo crônico um grande
volume de dados –, ou nos termos de uma “audit culture”, que multiplicaria em todas as
organizações formas de avaliação e de medição de atividades, performances, condutas a partir
de uma lógica mais ampla de mercado. Para continuar no nosso exemplo do campo científico,
o volume de produção de artigos atualmente disponível vem exigindo formas de auto-
observação que possam lidar com esse universo complexo e potencialmente infinito de
informações – e os estudos bibliométricos e cientométricos emergem justamente para lidar com
esse problema. Que a forma preferencial de lidar com essa complexidade seja o fator de impacto
da produção científica – mesurada a partir de critérios sempre muito seletivos (e discutíveis) de
citações dos artigos – revela, é claro, um poderoso amálgama entre interesses comerciais dos
grandes publishers e das principais bases indexadoras, que se combina com a difusão das “audit
cultures” nos meios universitários de todo o mundo – amálgama este que reproduz de modo
perverso desigualdades entre instituições, disciplinas, regiões etc (VOGEL et al., 2014). No
entanto, não se trata simplesmente de se recusar essas formas de medições; pelo contrário,
recusar as formas de leitura distante implicaria renunciar às possibilidades de manejar – por
meio da codificação e da ultrassimplificação – o volume de conhecimento científico atualmente
disponíveis. Um caminho possível parece estar presente nos movimentos atualmente existentes
pelo “acesso aberto”, pelas “citações abertas” e pelos “dados abertos” dos artigos científicos,
bem como iniciativas como o “Manifesto de Leiden” por um uso responsável das métricas e
dos rankings científicos (HICKS et al., 2015). Esses movimentos pretendem dar mais
autonomia aos próprios cientistas ao democratizarem o acesso aos dados e às ferramentas
capazes de gerar uma leitura distante da produção científica existente.
A profusão de modos de auto-observação da sociedade por meio da leitura distante está
longe de ser privilégio do campo da ciência. Nas interações sociais atualmente remodeladas
pelas mídias sociais, por exemplo, popularizaram formas próprias de leitura distante, como os
trending topics e as hashtags, que permitem medir o volume de certos termos e fazer a ligação
entre os textos (postagens) que os compartilham. Num contexto de proliferação inaudita de
textos que circulam online, o uso de uma hashtag pode ser decisivo para criar ligações com
outros textos – provavelmente escritos por pessoas desconhecidas (e que continuarão a sê-lo) –
e, talvez, alguma ressonância em alguma discussão. Fenômenos aparentados emergem em todos
os campos da vida social.
Essa multiplicação de formas de leitura distante, que estão alterando os modos habituais
da reflexividade social, revela que os princípios de seleção cultural até pouco tempo atrás
“naturalizados” estão cedendo lugar a modos novos de seleção. A autoridade dos “especialistas”
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vem sendo deslocada por novos modos de codificação e de seleção das informações – por
exemplo: a distinção entre informação válida/inválida – que dependem da agregação de rastros
imensos de sinalizações (likes, dislikes, recomendações...) ou da atuação descentrada de
compartilhamentos entre pessoas ou ainda de formas concertadas de operações de bots e afins.
Não por acaso, vemos a simultaneidade das crises de representação na política, na credibilidade
dos veículos de mídia tradicionais, na crença na verdade científica etc.
O volume crescente de dados estruturados e semi-estruturados parece, enfim, colocar
novos desafios às ciências humanas, de forma geral, e ao pensamento social brasileiro, em
particular (ESPOSITO, 2019). Desafios inclusive de ordem teórica. Afinal, a complexidade das
relações internas a esses dados, que demandam forte investimento nas mais variadas técnicas e
tecnologias de big data, trazem informações que não seriam possíveis de serem observadas a
partir de outras perspectivas de análise mais tradicionais. Tamanha complexidade e variedade
no tratamento analítico exige, nos parece, tomar o grande volume de dados formados por
diferentes plataformas enquanto um sistema relativamente autônomo, cuja lógica de operação
não é estável – já que cada nova informação gera um novo reagrupamento dos elementos do
conjunto –, mas que, a um só tempo, consegue expressar processos societários e culturais
dinâmicos (GONZÁLEZ-BAILÓN, 2013). Traduzir esses processos e descortinar os seus
sentidos, já dissemos, não é tarefa fácil e demanda o uso extensivo de formas diversas de
visualização de dados (dataviz). Os recursos visuais não são apenas tangenciais ou meramente
ilustrativos nesse campo, mas se constituem em uma linguagem, que auxilia na interpretação
das formas semânticas utilizadas por atores nas interações intermediadas por essas plataformas.
Portanto, longe de ser uma linguagem objetiva, a visualização de dados, ao contrário, exige um
esforço interpretativo constante do analista na coleta, sistematização e apresentação dos dados.
Neste texto, empreenderemos um esforço preliminar de mapeamento da área de
pensamento social concentrada no Brasil a partir duas frentes distintas de pesquisa. A primeira
frente é dedicada a coletar e sistematizar dados de bases indexadoras de produção científica.
Para tanto, optamos por realizar um recorte via critério de pertencimento dos pesquisadores à
área2. Reunimos nomes de 326 pesquisadores que participaram ao menos uma vez nos Grupos
de Trabalho de Pensamento Social dos dois principais congressos das ciências sociais no Brasil,
o da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) e da
Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS). Com o auxílio do ScriptLattes, software
desenvolvido para a extração e compilação automática da produção contidas nos currículos da
2 Uma análise mais detalhada dos dados aqui se encontram no artigo (CARVALHO; BRASIL JR, 2020)
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Plataforma Lattes (MENA-CHALCO; CESAR JUNIOR, 2009), coletamos ao todo 7.826
artigos, cujos anos de publicação vão de 1967 a maio de 2020. Nem todos os artigos estão com
seus metadados disponíveis, por isso recorremos àqueles indexados na base SciELO via
plataforma Web of Science, chegando a um novo total de 664 artigos no período de 2002 a maio
de 2020. São eles que constituem a amostra das análises que se seguirão. Antes, porém,
gostaríamos de fazer duas observações acerca dos recortes realizados para essa etapa da
pesquisa. A definição sobre o pertencimento a uma área é sempre algo difícil de ser capturado,
até mesmo porque talvez seja raro que um pesquisador se identifique exclusivamente com uma
especialidade. Esse é um desafio ainda maior para a área de pensamento social, com forte
interlocução com outras especialidades e com reconhecidos trabalhos interdisciplinares. A
segunda observação diz respeito à escolha de nos limitarmos à análise dos artigos acadêmicos.
Embora o livro ainda seja fundamental para a circulação do conhecimento, sobretudo nas
ciências sociais (HAMMARFELT, 2016), os artigos vêm ganhando cada vez mais espaço nos
currículos dos pesquisadores. Em sentido complementar à análise da produção em livros da
área de pensamento social (BRASIL JR; JACKSON; PAIVA, 2020), o intuito deste texto é
apontar temas, conceitos e referências que conformam os códigos com os quais operam seus
pesquisadores. A vantagem, porém, de tomarmos os artigos como objeto é que eles permitem
acompanhar de forma mais dinâmica as discussões de uma área, considerando os tempos
distintos de maturação e publicação que, em geral, livros e artigos têm.
A segunda frente de pesquisa dedicada a mapear o pensamento social no Brasil busca
identificar e extrair dados – intérpretes, temas e categorias - caros à área na Wikipédia,
enciclopédia on-line, multilíngue, de licença livre e escrita de forma colaborativa pelos seus
usuários. Tomar a Wikipédia como objeto de análise parece promissor para compreendermos a
rotinização de certas ideias, questão ademais constitutiva da área de pensamento social no
Brasil. As estatísticas de visualização e edição referentes à plataforma são ilustrativas da
capilaridade do conhecimento ali disponibilizado. De acordo com portal Alexa3, a
Wikipedia.org é o décimo-quarto site mais acessado no Brasil com média de 3 acessos a seu
conteúdo por usuário, tendo em torno de 769 mil links de sites direcionados a ele. Somente no
mês de agosto de 2020, o Brasil foi responsável por aproximadamente 282 milhões de
visualizações a artigos da Wikipédia em português de um total de 403.759.964 milhões de
visualizações, incluindo usuários de outros países. Em um ano, entre agosto de 2019 e agosto
de 2020, a versão em português atingiu 4,9 bilhões de visualizações. Ao reunirmos dados
3 https://www.alexa.com/topsites/countries/BR
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cientométricos de bases de indexação científica e dados de visualização da Wikipédia,
pretendemos assim percorrer o circuito complexo e dinâmico entre o conhecimento
especializado da área de pensamento social no Brasil e suas leituras e releituras por amplos
segmentos da sociedade.
Pensamento Social no Brasil e sua produção em artigos
Como dito acima, a análise cientométrica da produção intelectual da área de pensamento
social por meio de seus artigos científicos permite ter acesso aos metadados estruturados de um
considerável corpus textual. Metodologicamente, esse material se torna ainda mais valioso
porque permite contribuir para o debate central na área de pensamento social no Brasil sobre as
relações entre “texto” e “contexto” (BASTOS; BOTELHO, 2010; JOSIOWICZ; BRASIL JR,
2019; SCHWARCZ; BOTELHO, 2011). Embora nunca tenha sido algo trivial, a investigação
sobre qual tipo de relação que um “texto” estabelece com o seu “contexto” (BOTELHO, 2010)
ganha novas dimensões analíticas a partir das discussões levantadas pela cientometria. Como
argumenta Leydesdorff (LEYDESDORFF, 2001), os metadados da produção científica, tais
como os que iremos expor aqui, permitem uma visão dinâmica e ampla da relação entre
“autores”, “textos” e “cognições”. Cada um desses termos não tem uma definição estável e
tampouco podem ser reduzidos uns aos outros, embora mudanças em cada um deles possam ser
sentidos nos demais. Para deixar mais claro o ponto, podemos dizer que a “cognição”, isto é,
os códigos de comunicação científica (a exemplo das citações), se manifesta como
conhecimento discursivo na forma de “textos” (artigos, livros, teses...). Esses códigos de
comunicação são socialmente construídos pelas relações estabelecidas por autores e
instituições, mas tendem a se transformar em mecanismos relativamente autônomos, eficazes e
seletivos no agrupamento entre os textos. Podemos destacar um exemplo do modo como essa
perspectiva auxilia na compreensão das dinâmicas científicas que abordaremos em seguida: a
rede bibliométrica gerada a partir das relações de coautoria entre pesquisadores em diversos
casos é muito distinta da rede baseada nas citações dos trabalhos desses mesmos pesquisadores.
Muito provavelmente a rede de coautoria demonstrará relações muito próximas às do contexto
institucional dos pesquisadores (em termos de parceria de áreas disciplinares e grupos de
pesquisa, por exemplo), ao contrário da rede que toma a similaridade das citações, cujas
relações são estabelecidas pelos usos dos códigos de comunicação (autores e obras)
compartilhados por pesquisadores de diferentes instituições, grupos de pesquisa e mesmo áreas
disciplinares.
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Nesse sentido, embora programas de pesquisa e redes de colaboração científica façam
parte das práticas cotidianas de pesquisadores – sendo parte importante de estratégias na
concorrência por recursos de financiamento e elaboração de projetos, por exemplo –, nem
sempre elas podem ser reduzidas a uma dimensão consciente. Ainda que, por vezes, os códigos
científicos tendam a criar comunidades científicas muito coesas, chama a atenção que o grau
de compartilhamento de referências, citações, autores e temas extrapolem esses nichos e
ganhem significados variados e não raro polêmicos no interior de uma especialidade ou área
científica. Destacar a independência analítica de cada uma dessas dimensões significa, portanto,
conceber a produção científica em sua multidimensionalidade, de modo que melhor possa se
responder à questão fundamental de como formas cognitivas emergem entre os autores/agentes,
sedimentando-se em “textos” e conformando um arsenal compartilhado – mas não
necessariamente consensual – no interior de uma especialidade disciplinar. Tendo em vista essa
discussão, vejamos agora os dados relativos aos artigos da área de pensamento social no Brasil.
Selecionando o período entre 2002 e 2020, encontramos um total de 664 documentos,
assim distribuídos temporalmente:
Figura 1. Artigos dos participantes de Gts de Pensamento Social no Brasil indexados na base SciELO (2002-2020). Fonte: SciELO e Web of Sience.
Na imagem acima, vemos que a área conta, pelo menos na base SciELO, com um
volume considerável de produção – desde 2004, quase sempre com mais de 30 documentos por
ano, a despeito de naturais oscilações. O volume nada desprezível de informações que é possível
de se extrair desse conjunto de dados pode auxiliar na detecção de temas que permitam indexar
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
2018
2019
2020
total 15 10 32 31 24 38 41 40 34 63 48 41 28 47 50 27 34 54 7
y = 0,7246x + 27,702R² = 0,0775
0
10
20
30
40
50
60
70
total Linear (total)
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a produção intelectual de acordo com os critérios internos e autônomos da área de pesquisa,
como, por exemplo, os “intérpretes do Brasil” mais citados ou as questões mais investigadas.
Para tal, procederemos nossa análise através de duas técnicas muito comuns na bibliometria, a
saber: o acoplamento bibliográfico de artigos e a cocitação de autores. A primeira permitirá
revelar, através do grau de semelhança entre artigos, medido por meio do compartilhamento de
referências bibliográficas, como os documentos se distribuem por diferentes eixos temáticos
e/ou disciplinares. Já a segunda permitirá perscrutar quais são os “intérpretes” mais citados e,
ainda mais significativo, como eles se distribuem em termos de suas cocitações, isto é, com
quem eles tendem a ser citados juntos mais frequentemente no interior deste corpus.
Antes de seguirmos, vale explicitar melhor como funcionam estas técnicas de análise.
O acoplamento bibliográfico entre dois artigos “ocorre quando estes referenciam pelo menos
uma publicação em comum. Nesse contexto, o acoplamento bibliográfico estabelece uma
conexão entre dois artigos ao utilizarem as mesmas referências”(GRÁCIO, 2016, p. 85). Já a
cocitação, ao contrário, “identifica a ligação/semelhança de dois documentos citados, via suas
frequências de ocorrência conjunta em uma lista de referências dos autores citantes”(GRÁCIO,
2016, p. 88). Dito de outro modo, ambas técnicas procuram identificar
proximidades/afastamentos a partir de um compartilhamento maior ou menor de referências
bibliográficas. O que muda, fundamentalmente, é a unidade de análise em jogo: na cocitação,
a unidade são os autores ou documentos citados, ao passo que, no acoplamento bibliográfico,
a unidade são os artigos que citam.
Vamos aos temas, definidos de acordo com o padrão de relações construído através do
acoplamento bibliográfico. Usando o algoritmo de detecção de comunidades conhecido como
Louvain (BLONDEL et al., 2008), encontramos 12 comunidades de artigos. Este algoritmo
procura distribuir cada elemento da rede em comunidades específicas de acordo com suas
relações: quanto maior o peso das relações entre dois elementos, maiores as suas probabilidades
de caírem em uma mesma comunidade – calibrando-se, é claro, para o total de relações
existentes na rede em questão, no sentido de otimizar a “modularidade”, isto é, a melhor
distribuição possível de comunidades para o conjunto dos elementos. Na imagem abaixo,
gerada a partir dos softwares VOSViewer (VAN ECK; WALTMAN, 2010) e Gephi
(BASTIAN; HEYMANN; JACOMY, 2009), temos a rede de acoplamento dos 546 documentos
situados na componente principal da rede – ou seja, aquela que reúne o maior número de
relações – e suas 12 comunidades, destacadas cada um em uma cor diferente.
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Figura 2. Rede acoplamento bibliográfico de artigos de Pensamento social no Brasil (2002-2020). Fonte:
SciELO e Web of Science
Algumas comunidades chegam a reunir muitos documentos – a comunidade 1, em
amarelo, por exemplo, concentra 93 artigos ou 14% do total de 664 –, ao passo que outras
reúnem menos de 5%. Para facilitar, vamos nos limitar aos agrupamentos principais, destacando
os temas e/ou disciplinas mais importantes no interior de cada um. Antes de prosseguirmos,
vale relembrar: a rede é composta por artigos cujos autores participaram dos GTs na ANPOCS
e/ou SBS, o que não significa, portanto, que todos os artigos possam ser identificados como da
área de pensamento social no Brasil. O mais usual é que os pesquisadores se identifiquem e
tenham produções em diferentes especialidades. Sem necessariamente ser um problema, essa
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forma complexa de observar pode ser profícua para detectarmos o que há de interesse
compartilhado e de diálogo no interior da(s) área(s). Além disso, permite um recorte por
temática e não por autores e autoras clássicos da área de pensamento social no Brasil, como de
costume. Salientamos ainda que os temas destacados serão fundamentais para um projeto futuro
de uma seção no site da BVPS destinada a grandes temas para os quais pesquisadores da área
de pensamento social no Brasil podem contribuir. Para identificarmos a que temáticas
correspondem cada comunidade da rede, coletamos as palavras-chave indexadas pelos autores
dos artigos.
Comecemos pelas comunidades mais agrupadas e que ocupam as bordas da rede. Em
amarelo, com 93 documentos, encontra-se a maior comunidade – comunidade 1 –, que reúne
tanto perspectivas de análise, como sociologia dos intelectuais, sociologia da literatura,
sociologia da cultura e campo intelectual, quanto temas e/ou autores como objeto de pesquisa
(identidade nacional, arte, Antonio Candido, Joaquim Nabuco etc.). Em verde claro
(comunidade 2), formada por 87 documentos, temos os artigos cujos temas mais recorrentes
(democracia, liberalismo, eleições e autoritarismo) se ligam ao campo de “pensamento político
brasileiro” (LYNCH, 2016). Com 59 documentos, a comunidade 3, em lilás, é formada
sobretudo por temas caros à teoria social (modernidade, mudança social, imigração e
desenvolvimento) e à história das ciências sociais no Brasil (Amazônia, estudos de comunidade,
sociologia no Brasil e memória). Mais destacado do resto da rede, em azul médio, temos o
cluster dos 42 artigos majoritariamente dedicados a temas clássicos da ciência política
(comunidade 4), em particular ao estudo das instituições (partidos políticos, forças armadas,
eleições) e de seus formatos (democracia, centralização, descentralização) (MARTINS;
LESSA, 2010). Ainda neste agrupamento, um termo fundamental é de cultura política, em
grande medida associada aos comportamentos dos indivíduos e instituições.
Com 58 artigos, a comunidade 5, colorida de azul escuro, tem temáticas associadas à
subárea designada de sociologia política, cujas temáticas se associam às discussões sobre
movimentos sociais e ativismo transnacional (BOTELHO, 2014), mas também sobre gênero,
sexualidade, mídias digitais e internet. A comunidade 6, em vermelho, com 53 documentos,
reúne artigos que versam sobre a história das ciências sociais, state-making (processo de
formação do Estado nacional), história das ciências e da saúde.
Passemos, agora, para as comunidades que, embora menos agrupadas e com menos
artigos em relação às demais, ocupam posições importantes na rede, sobretudo porque estão
localizadas na interseção entre comunidades. A primeira delas é a em preto (comunidade 7),
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com 39 documentos, cujas palavras-chave estão associadas ao modernismo e a movimentos da
cultura brasileira de forma geral, à discussão sobre o ensaísmo e a produção anterior à
institucionalização das ciências sociais no Brasil, e à relevância da comparação enquanto
recurso metodológico (BASTOS; BOTELHO, 2010; OLIVEIRA, 1999; SCHWARCZ;
BOTELHO, 2011). Por fim, cabe destacar a comunidade em azul claro (comunidade 8), com
31 documentos, dedicada à questão racial, traço fundante da sociedade brasileira, e tema perene
das grandes interpretações do Brasil e das ciências sociais brasileiras. Outro dado que aponta
para a sua relevância na área de pensamento social no Brasil é que seus artigos se encontram
relativamente espalhados pela rede, na interseção de diversas comunidades. De fato, os temas
das comunidades 7 e 8 são, digamos, fundantes da área de pensamento social (BASTOS;
BOTELHO, 2010; OLIVEIRA, 1999; SCHWARCZ; BOTELHO, 2011), e se revelam ainda
hoje como mediadores importantes entre discussões distintas de que se ocupam seus
pesquisadores, como demonstram as relações de acoplamento bibliográfico.
Outra forma possível de detectar os temas da área de pensamento social no Brasil se dá
pela análise de cocitação. A seguir, modelaremos a rede de cocitação dos autores mais citados
no interior dos 664 documentos, destacando o label apenas dos chamados “intérpretes”, isto é,
os produtores intelectuais tomados como referência para a pesquisa na área. A fim de facilitar
a visualização e a limpeza dos dados, restringimos a visualização aos nomes com mais de 10
citações neste conjunto de documentos – advertência fundamental pois revela as limitações da
análise a seguir –, gerando uma lista de 233 nomes diferentes.
Ainda que o debate acumulado na área nos últimos anos venha descentrando os “grandes
intérpretes do Brasil” como unidade autoevidente de pesquisa, vale registrar a relevância de
suas formulações para as pesquisas atuais, sejam como objetos de estudo, sejam como
repertórios cognitivos a que recorrem os pesquisadores para a compreensão de fenômenos
sociais do passado e do presente. Isso porque, longe de serem registros datados, as
interpretações do Brasil revelam pujança justamente porque os processos pretéritos sobre os
quais se debruçaram ainda nos dizem respeito. E no esforço de tentarem compreender a
formação da sociedade brasileira, seus impasses, conflitos e acomodações, forjaram visões
distintas sobre ela, orientando em maior ou menor grau práticas de indivíduos e grupos
(BOTELHO, 2010; BRANDÃO, 2007).
Conforme a rede de cocitação de autores na figura abaixo, pode-se visualizar como o
cânone de pensamento social no Brasil, formado sobretudo por autores como Gilberto Freyre,
Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido e Florestan Fernandes, é ainda
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muito presente nas pesquisas evidenciadas pelos artigos. Embora a construção de um cânone
não seja aleatória, porque associada a relações cognitivas e a práticas científicas mais ou menos
estabelecidas, é possível capturar parte de sua dinâmica através do processo de revisão e
ampliação dos autores e autoras que o integram. Por essa razão, esse constante movimento de
inclusão – e, claro, de exclusão – de um cânone revela seleções cognitivas feitas no interior de
uma área de pesquisa, direcionando os focos para determinadas questões analíticas e empíricas4.
Nesse sentido, pode-se dizer que autores e obras canônicos se constituem também em instâncias
importantes de auto-observação da área, permitindo que pesquisadores ganhem perspectiva
sobre suas práticas e escolhas rotineiras.
Dito isso, é possível perceber na figura 3 como se entrelaçam em comunidades
específicas autores consagrados e outros que começam a ser inseridos no cânone, movimento a
que aludimos acima. O maior grupo, em azul, reúne nomes como Antonio Candido (173
citações), Gilberto Freyre (131), Mario de Andrade (82), Sérgio Buarque de Holanda (61),
Alceu Amoroso Lima (35) e Caio Prado Jr. (26). O nosso ensaísmo se encontra aí bem
representado, com os nomes mais “canônicos” dos pensamento social no Brasil. Já o grupo
verde reúne basicamente os principais nomes da geração pioneira das ciências sociais
institucionalizadas no Brasil, como Florestan Fernandes (191 citações, o mais citado de todos),
Fernando Henrique Cardoso (50), Roger Bastide (41), Octavio Ianni (37), Maria Isaura Pereira
de Queiroz (35), Charles Wagley (32) e Donald Pierson (29). Por fim, o grupo laranja, mais
centrado no “pensamento político brasileiro”, ainda que não exclusivamente, congrega
Raymundo Faoro (91 citações), Guerreiro Ramos (89), Joaquim Nabuco (51), Oliveira Vianna
(48), Afonso Arinos de Melo Franco (47), Celso Furtado (36), entre outros. Ainda chamam a
atenção mais dois grupos: um em rosa, com nomes de escritores como Lima Barreto (30
citações), e outro na cor vinho, abarcando autores ligados ao debate racial no primeiro terço do
século XX, como Edgard Roquette-Pinto (43 citações) Euclides da Cunha (21) e Renato Kehl
(17).
4 Para uma discussão sobre a ideia de cânone feita na chave da “leitura distante”, vale conferir os trabalhos de
Franco Moretti (MORETTI, 2000).
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Figura 3. Rede de cocitação de “intérpretes” referenciados nos artigos de PSB (2002-2020). Número
mínimo de citações = 10. Fonte: SciELO e Web of Science
A análise de cocitações também permite revelar como a própria dinâmica da área
de pesquisa em “pensamento social no Brasil” vai tecendo relações entre os seus
pesquisadores, como na imagem abaixo. Afinal, já há um acúmulo considerável de
análises sobre as “interpretações do Brasil”, que vai sendo acionado nos artigos que se
debruçam sobre este material textual. Não temos aqui nenhuma pretensão de
hierarquizar os autores em uma lista de importância, pois o que nos interessa é, ao
reproduzir as mesmas posições estruturais da rede acima – destacando agora apenas os
labels dos pesquisadores ligados a este campo com maior ou menor intensidade –, ver
como eles se posicionam nas comunidades acima. Os pesquisadores se reúnem, grosso
modo, em torno de regiões disciplinares, como a antropologia (comunidade em rosa), a
sociologia (comunidade em verde), a ciência política (comunidade em vermelho), e sub
ou interdisciplinares, como a sociologia política (comunidade em amarelo) e a história
da ciência e da saúde (comunidade em vinho). E, justamente localizados na comunidade
em azul, encontra-se um grupo de pesquisadores de diferentes disciplinas voltados à
investigação (em sentido ampliado) da cultura brasileira, incluindo as obras de ensaístas,
artistas, literatos e demais produtores de bens simbólicos.
Ao fim e ao cabo, menos que reforçar distinções rígidas, a modelagem da rede
de cocitação de autores exprime as relações entre textos que se encontra subjacente à
produção de conhecimento na área de pensamento social no Brasil, pelo menos com
14
base na atividade citante dos seus praticantes. Os nomes dos autores citados são formas
de simplificação da matriz de relações entre textos, posto que a unidade de agregação
não é o elemento citado, mas o conjunto de elementos bibliográficos escritos por um
mesmo autor. Portanto, estas relações entre nomes não se traduzem automaticamente
em relações sociais entre os autores; antes, são relações cognitivas que identificam as
principais interações entre os recursos textuais que conformam a área de pesquisa.
As palavras-chave, os nomes dos “intérpretes” e a identificação de pesquisadores
permitem, por meio das técnicas de “leitura distante” aqui empregadas, sugerir uma
espécie de vocabulário-básico que define – mesmo que de modo tentativo – a área de
pensamento social. Este vocabulário pode ajudar a definir termos de busca que, de modo
recursivo, levarão à ampliação da amostra de 664 artigos aqui usada como
“representativa” deste campo do conhecimento. Se a construção do nosso corpus partiu
de um critério de pertinência extratextual – a frequência de pesquisadores em dois
grupos de trabalho da área –, o desafio agora é mobilizar os nossos resultados de
pesquisa para definir um conjunto específico de termos que possa constituir uma
imagem ampliada da produção intelectual da área.
Leituras em competição: um estudo de caso do pensamento social no Brasil na
Wikipédia5
O estudo da circulação e recepção das ideias para além dos muros da academia
é sempre um desafio metodológico. No Brasil, a área de “pensamento social no Brasil”
tradicionalmente se dedica ao assunto e vem produzindo trabalhos fundamentais que
buscam analisar, através de materiais empíricos diversos, como determinadas
interpretações sobre a sociedade brasileira se relacionam com o substrato social que lhe
dão vida (BASTOS; BOTELHO, 2010). Recentemente, a essa discussão vem se
juntando novas abordagens dedicadas a capturar a dinâmica de interações da Web 2.0,
termo que designa uma ampla rede de comunidades e serviços oferecidos na internet
com ativa participação de seus usuários, a exemplo das mídias sociais. Nesse novo
campo de possibilidades empíricas que se abre à área de “pensamento Social no Brasil”,
a análise da plataforma Wikipedia é uma das mais promissoras. Com a proposta de ser
uma enciclopédia online, a Wikipedia reúne e disponibiliza, através da colaboração de
seus usuários, informações sobre os mais variados temas de interesse científico e de
5 Essa seção faz parte de um artigo no prelo em coautoria com Karim Hellayel (UFRJ).
15
conhecimento geral. A editoração e organização dos artigos contidos na plataforma
dependem da participação constante de seus usuários através de discussões em fóruns,
definição de conteúdo, sistematização de referências bibliográficas e a localização de
links entre os verbetes (interlinks). A particularidade da Wikipedia em relação a outras
plataformas de divulgação do conhecimento reside justamente em uma série de critérios
que precisam ser cumpridos por seus editores para que o conteúdo disponibilizado seja
confiável. Frequentemente ocorrem disputas entre versões de editores à frente de um
mesmo verbete, os quais recorrem ao conhecimento científico especializado para
validação ou refutação de argumentos. Por esses motivos, a plataforma se constitui
enquanto um ambiente propício para a análise da recepção e circulação das ideias
acadêmicas, o que é reforçado quando analisamos as estatísticas referentes à
visualização e os interlinks dos verbetes. De acordo com portal Alexa , a Wikipedia.org
é o décimo-quarto site mais acessado no Brasil com média de 3 acessos a seu conteúdo
por usuário, tendo em torno de 769 mil links de sites direcionados a ele. Somente no
mês de agosto de 2020, o Brasil foi responsável por aproximadamente 282 milhões de
visualizações a artigos da Wikipedia em português de um total de 403.759.964 milhões
de visualizações, incluindo usuários de outros países. Em um ano, entre agosto de 2019
e agosto de 2020, a versão em português atingiu 4,9 bilhões de visualizações.
Tendo em vista o importante lugar que a Wikipedia ocupa atualmente na
circulação do conhecimento, analisaremos as interpretações sobre a trajetória e a obra
de Celso Furtado contidas nos verbetes a ele dedicados escritos em diferentes idiomas,
particularmente em português, inglês e espanhol . Com isso, percorreremos o circuito
cujo ponto de partida foi a análise realizada na seção anterior sobre a produção
acadêmica relacionada à obra furtadiana, destacando agora a sua recepção por um
público mais amplo e não necessariamente especializado em sua obra ou nos assuntos a
ela relacionados. Veremos especificamente como as diferenças entre os verbetes em
cada idioma se ligam a controvérsias acadêmicas, indicando como as diferentes
interpretações acerca da obra do economista paraibano informam não só os conteúdos
disponibilizados pelos editores, mas também, e em grande medida, a possível leitura do
público que os acessam.
Na figura 9, podemos acompanhar as visualizações de usuários ao artigo “Celso
Furtado” em português, inglês e espanhol entre os meses de janeiro a agosto de 2020.
No total, foram 35.857 visualizações ao verbete em português, 5.413 ao verbete em
16
inglês e 4.899 ao verbete em espanhol ao longo do período destacado . O pico em julho
reflete provavelmente o interesse pelo autor no mês do centenário de seu nascimento.
As listagens dos interlinks que estão no interior do verbete de Celso Furtado nos dão
pistas importantes do conteúdo que os editores desejam transmitir aos leitores. Na tabela 1,
disponibilizamos os interlinks indexados no verbete que foram clicados ao menos 10 vezes
entre janeiro e agosto de 2020. A interpretação da obra de Celso Furtado fornecida pelo verbete
vincula os preceitos teóricos do economista àqueles do keynesianismo e aos da Comissão
Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) de raiz estruturalista. Nota-se o interesse
do público por conceitos associados a essa teoria, como “desenvolvimento econômico”,
“consumo conspícuo”, “substituição de importações” e “subdesenvolvimento”, todos interlinks
disponíveis no corpo do texto principal do verbete. As exceções são “desenvolvimentismo” e
“teoria da dependência”, que se encontram em seção à parte do texto intitulada “Ver Também”.
Aparentemente um detalhe, mas é importante notar que a disposição dos interlinks e mesmo as
suas repetições ao longo do verbete podem orientar a leitura dos usuários, chamando a atenção
para informações importantes ou as deixando em segundo plano. O exemplo mais
paradigmático é a palavra “Cepal” e suas variações (“pensamento cepalino” e “cepalinos”)
mencionada dez vezes no verbete, das quais quatro são interlinks ao verbete “Comissão
Econômica para a América Latina e o Caribe”.
0
2000
4000
6000
8000
10000
12000
J A N E I R O F E V E R E I R O M A R Ç O A B R I L M A I O J U N H O J U L H O A G O S T O
Wiki_pt Wiki_en Wiki_es
Figura 4.Visualizações ao artigo "Celso Furtado". Fonte: Wikipedia (janeiro a agosto de 2020)
17
Tabela 1.Interlinks indexados no verbete “Celso Furtado” em português por números de cliques. Fonte: Wikipedia.
Verbete de origem Verbete de destino Cliques
CELSO FURTADO ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS 818
CELSO FURTADO FORMAÇÃO ECONÔMICA DO BRASIL 743
CELSO FURTADO COMISSÃO ECONÔMICA PARA A AMÉRICA
LATINA E O CARIBE 474
CELSO FURTADO JOHN MAYNARD KEYNES 470
CELSO FURTADO ROBERTO CAMPOS 359
CELSO FURTADO POMBAL (PARAÍBA) 317
CELSO FURTADO BIBLIOTECA CELSO FURTADO 236
CELSO FURTADO LÚCIO DE MENDONÇA 170
CELSO FURTADO LISTA DE MINISTROS DO PLANEJAMENTO
DO BRASIL 159
CELSO FURTADO HUGO NAPOLEÃO DO REGO NETO 142
CELSO FURTADO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO 132
CELSO FURTADO CONSUMO CONSPÍCUO 129
CELSO FURTADO ORDEM MILITAR DE SANT'IAGO DA
ESPADA 128
CELSO FURTADO SUPERINTENDÊNCIA DO
DESENVOLVIMENTO DO NORDESTE 95
CELSO FURTADO RAÚL PREBISCH 84
CELSO FURTADO SUBDESENVOLVIMENTO 84
CELSO FURTADO PLANO TRIENAL DE DESENVOLVIMENTO
ECONÔMICO E SOCIAL 77
CELSO FURTADO LISTA DE MINISTROS DA CULTURA DO
BRASIL 75
CELSO FURTADO ALUÍSIO PIMENTA 63
CELSO FURTADO TEORIA DA DEPENDÊNCIA 54
CELSO FURTADO ATO INSTITUCIONAL N.º 1 46
CELSO FURTADO SUBSTITUIÇÃO DE IMPORTAÇÕES 39
CELSO FURTADO SORBONNE 37
CELSO FURTADO FAGUNDES VARELLA 31
CELSO FURTADO PLANO DE METAS 28
CELSO FURTADO NICHOLAS KALDOR 21
CELSO FURTADO DESENVOLVIMENTISMO 16
CELSO FURTADO ÉCOLE DES HAUTES ETUDES EN SCIENCES
SOCIALES 15
CELSO FURTADO FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA 15
CELSO FURTADO FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS 14
CELSO FURTADO LYCEU PARAIBANO 13
CELSO FURTADO HÉLIO JAGUARIBE 12
CELSO FURTADO JUSCELINO KUBITSCHEK 11
Quando invertemos a direção dos interlinks, destacando os verbetes da Wikipedia que
levam ao verbete “Celso Furtado”, vemos como a estrutura de conexão entre os artigos (que
representam conceitos, instituições, intelectuais, localidades, etc.) não se altera
substancialmente. Observa-se a presença, sobretudo, de economistas ligados a Furtado que
18
esposavam muitas de suas ideias ou mesmo compartilhavam de seus pressupostos teóricos
sobre o desenvolvimentismo. Instituições pelas quais passou ou teve papel fundamental são
outras fontes que levam os leitores a acessarem o verbete “Celso Furtado”. Tanto em um sentido
quanto em outro, os interlinks e os cliques sugerem semelhanças no fluxo de informações que
leva ao interesse pela obra de Furtado no verbete em português, cuja especificidade só é trazida
à tona se compararmos com os verbetes em outros idiomas.
Tabela 2 : Origem dos jnterlinks que levam ao verbete “Celso Furtado” por número de cliques. Fonte:
Wikipedia.
Verbete de origem Verbete de destino Cliques
MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES CELSO FURTADO 729
ROBERTO CAMPOS CELSO FURTADO 415
LISTA DE MINISTROS DA CULTURA DO
BRASIL
CELSO FURTADO 376
ECONOMISTA CELSO FURTADO 304
PARAÍBA CELSO FURTADO 215
COMISSÃO ECONÔMICA PARA A AMÉRICA
LATINA E O CARIBE
CELSO FURTADO 152
FORMAÇÃO ECONÔMICA DO BRASIL CELSO FURTADO 128
FILOSOFIA DA ECONOMIA CELSO FURTADO 85
JOÃO GOULART CELSO FURTADO 84
GINÁSIO PERNAMBUCANO CELSO FURTADO 74
CARLOS LESSA CELSO FURTADO 68
26 DE JULHO CELSO FURTADO 66
SUPERINTENDÊNCIA DO
DESENVOLVIMENTO DO NORDESTE
CELSO FURTADO 64
ECONOMIA ESTRUTURALISTA CELSO FURTADO 46
IGNÁCIO RANGEL CELSO FURTADO 34
LISTA DE AGRACIADOS NA ORDEM DO
MÉRITO CULTURAL
CELSO FURTADO 22
ECONOMIA HETERODOXA CELSO FURTADO 15
ATO INSTITUCIONAL N.º 1 CELSO FURTADO 12
MARIA ADÉLIA APARECIDA DE SOUZA CELSO FURTADO 12
OS ECONOMISTAS CELSO FURTADO 11
REFORMA AGRÁRIA CELSO FURTADO 11
SATURNINO BRAGA CELSO FURTADO 11
FLORESTAN FERNANDES CELSO FURTADO 10
HUGO NAPOLEÃO DO REGO NETO CELSO FURTADO 10
LISTA DE MEMBROS DA ACADEMIA
BRASILEIRA DE LETRAS
CELSO FURTADO 10
LISTA DE MINISTROS DO PLANEJAMENTO DO
BRASIL
CELSO FURTADO 10
PLANO DE METAS CELSO FURTADO 10
Estamos sugerindo que a disposição dos links feita pelos editores no texto do verbete
em certa medida guiam os cliques e, portanto, a leitura dos usuários – no fundo, ela pressupõe
19
uma interpretação (que pode ser cronicamente disputada pelos editores da Wikipedia) sobre o
sentido e o lugar da produção furtadiana. Isso é perceptível quando comparamos o verbete em
português dedicado a Celso Furtado com as suas versões em inglês e espanhol. Como não
poderia deixar de ser, a estrutura mais geral das conexões – e das possíveis interpretações a elas
subjacentes – nas duas versões é semelhante à versão em português ao vincular Furtado ao tema
do desenvolvimentismo, aos preceitos da economia estruturalista e à teoria cepalina. Mas uma
diferença chama a atenção, sobretudo quando notamos a presença do verbete “teoria da
dependência” no campo semântico e de interlinks que orientam as leituras do verbete.
Enquanto, nas versões em espanhol e em inglês, o sentido de orientação da leitura é o mesmo
– do verbete “teoria da dependência” ao verbete “Celso Furtado” –, na versão em português, o
sentido é inverso, conforme as tabelas 3 e 4.
Tabela 3: Fluxo de cliques entre os verbetes conectados ao verbete “Celso Furtado” na versão em espanhol.
Fonte: Wikipedia.
Verbete de origem verbete de destino cliques
DESARROLLISMO CELSO FURTADO 264
TEORÍA DE LA DEPENDENCIA CELSO FURTADO 120
CELSO FURTADO DESARROLLISMO 114
CELSO FURTADO MOVIMIENTO DEMOCRÁTICO
BRASILEÑO (1980)
84
CELSO FURTADO RAÚL PRÉBISCH 84
FUERZA EXPEDICIONARIA
BRASILEÑA
CELSO FURTADO 39
JOÃO GOULART CELSO FURTADO 11
CELSO FURTADO COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA
LATINA Y EL CARIBE
10
CELSO FURTADO JOHN MAYNARD KEYNES 10
CELSO FURTADO LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA 10
ESTRUCTURA CENTRO-PERIFERIA CELSO FURTADO 10
Tabela 4: Fluxo de cliques entre os verbetes conectados ao verbete “Celso Furtado” na versão em inglês.
Fonte: Wikipedia.
Verbete de origem verbete de destino cliques
CELSO FURTADO STRUCTURALIST ECONOMICS 146
STRUCTURALIST ECONOMICS CELSO FURTADO 135
CELSO FURTADO RAÚL PREBISCH 118
IMPORT SUBSTITUTION
INDUSTRIALIZATION
CELSO FURTADO 87
CELSO FURTADO UNITED NATIONS ECONOMIC
COMMISSION FOR LATIN AMERICA AND
THE CARIBBEAN
75
PREBISCH–SINGER HYPOTHESIS CELSO FURTADO 66
AUTARKY CELSO FURTADO 49
20
DEPENDENCY THEORY CELSO FURTADO 49
RAÚL PREBISCH CELSO FURTADO 24
DEVELOPMENT ECONOMICS CELSO FURTADO 20
Provavelmente estamos diante de compreensões distintas sobre o que seja “teoria da
dependência” e por isso buscamos rastrear os interlinks do verbete dedicado ao tema nos
diferentes idiomas. Na tabela 5, é possível perceber que a compreensão de autores e obras que
compõem a “teoria da dependência” difere na versão em português e nas versões em inglês e
espanhol. Nos verbetes nestes dois últimos idiomas, Furtado é tido como um dos principais
teóricos da teoria da dependência, recebendo 146 e 48 cliques no interlink nos verbetes em
espanhol e em inglês, respectivamente. Corrobora a interpretação da associação entre
pensamento cepalino à teoria da dependência a presença de Raúl Prebisch na lista dos mais
acessados. Quanto ao verbete em português, não há sequer menção e tampouco interlink que
direcione ao verbete “Celso Furtado” à teoria da dependência, que é tomada “em contraposição
às posições marxistas convencionais dos partidos comunistas e à visão estabelecida pela
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL)”6. De todo modo, escapa às
diferentes versões dos verbetes sobre “teoria da dependência” e também sobre “Celso Furtado”
uma avaliação mais matizada das etapas da obra do economista paraibano, sobretudo aquela
desenvolvida a partir dos anos 1960, em que passa a rever a sua aposta na industrialização como
saída da situação de dependência na periferia (SAWAYA, 2008).
Tabela 5: Interlinks indexados no verbete “Teoria da dependência” em três idiomas por número de cliques.
Fonte: Wikipedia.
TEORIA DA DEPENDÊNCIA
PORTUGUÊS
POSIÇÃO VERBETE CLIQUES
1 RUY MAURO MARINI 305
2 THEOTÔNIO DOS
SANTOS
262
3 COMISSÃO
ECONÔMICA PARA A
AMÉRICA LATINA E
O CARIBE
251
4 VÂNIA BAMBIRRA 225
5 ANDRÉ GUNDER
FRANK
217
6 DIVISÃO
INTERNACIONAL DO
TRABALHO
134
6 Conforme https://pt.wikipedia.org/wiki/Teoria_da_depend%C3%AAncia
21
7 FERNANDO
HENRIQUE CARDOSO
40
8 IMPERIALISMO 39
9 DESENVOLVIMENTO
ECONÔMICO
33
10 TEORIA DO SISTEMA-
MUNDO
23
// CELSO FURTADO NÃO HÁ LINK
ESPANHOL
1 TEORÍA DEL
DESARROLLO
936
2 COMISIÓN
ECONÓMICA PARA
AMÉRICA LATINA Y
EL CARIBE
860
3 ANDRÉ GUNDER
FRANK
437
4 THEOTÔNIO DOS
SANTOS
373
5 ENZO FALETTO 316
6 KEYNESIANISMO 312
7 RAÚL PRÉBISCH 276
8 RUY MAURO MARINI 233
9 DESARROLLISMO 229
10 SUBORDINACIÓN 202
14 CELSO FURTADO 146
INGLÊS
1 MODERNIZATION
THEORY
1842
2 WORLD-SYSTEM 1107
3 RAÚL PREBISCH 740
4 DEVELOPMENT
THEORY
649
5 WORLD-SYSTEMS
THEORY
636
6 PREBISCH–SINGER
HYPOTHESIS
492
7 HANS SINGER 458
8 ANDRE GUNDER
FRANK
447
9 STRUCTURALIST
ECONOMICS
392
10 IMPORT
SUBSTITUTION
INDUSTRIALIZATION
305
47 CELSO FURTADO 48
Como podemos notar, trata-se de definições distintas sobre o que se convencionou
chamar de “teoria da dependência” e se nela Furtado estaria integrado ou não. Nossa
intepretação é de que essas leituras sobre a obra furtadiana estão ligadas a diferentes versões da
22
história da “teoria da dependência” produzidas por seus próprios praticantes ou por estudiosos
dela. Para ficarmos apenas em alguns exemplos, vale citar o livro Latin American Theories of
Development and Underdevelopment, publicado originalmente em 1989, de Cristóbal Kay
(2011), no qual o autor efetua um balanço das principais correntes teóricas que se debruçaram
sobre a problemática do desenvolvimento e do subdesenvolvimento na América Latina. Ao
tratar das diferentes perspectivas e abordagens da “teoria da dependência”, o autor propõe uma
divisão entre o que ele entende ser as vertentes “marxista” e “reformista” do debate. Na vertente
“marxista”, Kay localiza intelectuais como Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Andre
Gunder Frank, Vânia Bambirra, Aníbal Quijano, dentre outros, ressaltando como especificidade
de seus trabalhos a mobilização da abordagem marxista e o prognóstico político de que apenas
a revolução socialista poderia superar a dependência (KAY, 2010, p. 127–128). Na vertente
oposta, qualificada como “reformista”, na qual figuram intelectuais vinculados à CEPAL, Celso
Furtado aparece ao lado de Fernando Henrique Cardoso, Enzo Faletto, Osvaldo Sunkel, Helio
Jaguaribe, Aldo Ferrer e Aníbal Pinto, compartilhando das expectativas de resolução do
problema da dependência através da reforma do sistema capitalista (KAY, 2010, p. 127). Ou
seja, malgrado não deixar de entender a perspectiva de Furtado como “estruturalista”7, Kay
parece possuir um entendimento algo amplo do debate da dependência, chamando a atenção
para a participação do economista paraibano como um teórico que, a seu ver, pode ser
qualificado também como “dependentista”.
No balanço realizado pelos economistas suecos Magnus Blomström e Bjorn Hettne
(1984), podemos constatar que a análise mais detalhada da perspectiva de Furtado figura no
capítulo “The Latin American Dependency School”. Segundo os autores, as contribuições de
Furtado estariam próximas de Gunder Frank, entendendo a perspectiva do economista
paraibano, portanto, como uma contribuição decisiva para o debate da dependência. Para o duo,
ao pensar as diferenças entre o desenvolvimento capitalista nos países centrais e periféricos,
Furtado teria procedido de maneira similar à operada pela escola da dependência
(BLOMSTROM; HETTNE, 1984, p. 57).
De forma semelhante, Joseph Love (1998) afirma que, além de ter sido o mais original
e prolífico dos autores da vertente estruturalista no Brasil, Furtado teria sido o primeiro
intelectual a se debruçar sistematicamente, na América Latina, sobre a problemática da
dependência. Love lembra, de modo contraintuitivo, que Furtado se voltaria para a articulação
entre desenvolvimento e subdesenvolvimento por meio de uma análise sobre o “colonialismo
7 Kay (2011) localiza Furtado diante tanto das diferentes abordagens da dependência quanto em relação à chamada
“escola estruturalista do desenvolvimento”.
23
interno”, ao discutir as relações entre o Nordeste e o Centro-Sul no Brasil, antecipando-se ao
que seria desenvolvido, ao longo da década de 1960, – diga-se de passagem, de formas distintas
– por ele próprio, Andre Gunder Frank, Fernando Henrique Cardoso e Osvaldo Sunkel (LOVE,
2007, p. 386). Portanto, Furtado teria ido além do interesse de Raúl Prebisch pelos ciclos
econômicos da América Latina, ao historicizar de modo consistente a perspectiva estruturalista
(LOVE, 2007, p. 502).
Neste sentido, talvez seja interessante discutir, por contraste, como Furtado é visto entre
os próprios intelectuais brasileiros imediatamente envolvidos no controverso debate da
dependência, uma vez que o debate local certamente modelou a versão “pública” com maior
circulação sobre a teoria entre nós – pensando, é claro, no número de leituras que o verbete da
Wikipedia possui. Em dois pequenos textos recolhidos na coletânea Pensadores que inventaram
o Brasil, publicada em 2013, e em um artigo intitulado “A vida e a obra de Celso Furtado”,
Fernando Henrique Cardoso discute as formulações de Furtado, voltando-se principalmente
para a potente interpretação do país codificada em Formação econômica do Brasil, mas não há
menção à sua suposta contribuição para a “teoria da dependência” (Cardoso, 2004, 2013).
Já em revisão bibliográfica sobre a “teoria da dependência”, publicada na revista
Estudos Avançados, Theotônio dos Santos elenca o livro O mito do desenvolvimento
econômico, de Furtado (SANTOS, 1998, p. 141), o que nos permite inferir que, para ele,
diferentemente de Cardoso, o economista cepalino talvez possa ser ligado diretamente aos
debates sobre a dependência. O que parece ser corroborado em artigo dedicado à reflexão de
Furtado, no qual Santos (2015) destaca como aquele teria incorporado a noção de “capitalismo
dependente”, para mensurar a diferenciação entre a experiência histórico-social norte-
americana e a da América Latina. Santos discute o contexto de fundação da “Asociación
Internacional de Economistas del Tercer Mundo”, da qual participa junto a Furtado, cujo
primeiro congresso teria tido lugar, em fevereiro de 1976, na Argélia. De acordo com Santos, a
associação teria levado em consideração a problemática da dependência, procurando formular
um pensamento econômico capaz de articular tanto o ponto de vista quanto os interesses dos
países terceiro-mundistas (SANTOS, 2015, p. 20). O intérprete destaca ainda o artigo
“Creatividad cultural y desarrollo dependiente”, de Furtado, trabalho que seria, a seu ver, “el
punto de partida para la total incorporación de sus reflexiones al campo de la crítica al
eurocentrismo y al economicismo que prevalecieron en las Ciencias Sociales hasta muy
recientemiente” (SANTOS, 2015, p. 21). Assim, sugerimos que, em contraste com os balanços
estrangeiros aqui discutidos, nos quais Celso Furtado surge como um elo crucial para a “teoria
da dependência” ou mesmo como um precursor do debate, a posição de Fernando Henrique
24
Cardoso e Theotônio dos Santos parece ser mais tímida, não conferindo o grau de centralidade
que Kay, Love e os intérpretes suecos Blomström e Hettne atribuem ao economista paraibano.
Não pretendemos, por óbvio, sugerir aqui um balanço exaustivo da relação controversa,
a depender do contexto linguístico em jogo, das relações entre Celso Furtado e a teoria da
dependência, tal qual sugerida pelos fluxos de visitações aos seus verbetes na Wikipedia. Mas
ilustrar como as controvérsias científicas quanto ao sentido e o lugar da obra furtadiana
extravasam o debate acadêmico e ganham concretude nesta forma móvel, dinâmica e altamente
disputada do debate público que ocorre na chamada Web 2.0. Neste movimento entre a pesquisa
científica e a circulação “pública” do conhecimento, nexos semânticos (com efeitos políticos
variados) vão emergindo, trazendo novas agendas de pesquisa. Esta foi a principal motivação
deste segundo experimento de pesquisa ensaiado aqui.
Considerações Finais
A análise preliminar da área de pensamento social no Brasil via artigos acadêmicos
indexados na base SciELO/Web of Science e via verbetes da Wikipédia são algumas das
diversas frentes de pesquisa em andamento no âmbito da BVPS. Elas cumprem uma importante
etapa, ainda que incipiente, na qual se unem aspectos metodológicos e analíticos. Quanto aos
primeiros, estamos cientes que os artigos não fornecem um retrato de corpo inteiro da área e,
por isso, buscamos uma primeira aproximação de um objeto empírico que, pela sua
dinamicidade e complexidade, não é de fácil captura. Ao recuperarmos os temas de interesse
dos pesquisadores, suas formas de indexação – via palavras-chave – e citação – via referências
bibliográficas –, estamos apenas construindo as bases para um novo ponto de partida que nos
permitirá rastrear com maior rigor metodológico os raios de interações do pensamento social
com outras especialidades das ciências sociais e humanas. Pois se é certo que determinadas
perspectivas analíticas – relação entre ideias e vida social – e temas – interpretações e
intérpretes do Brasil –, são recorrentes na área, isso não significa que elas demarquem fronteiras
rígidas. É sempre muito difícil definir até onde vai os limites de uma área do conhecimento e,
no caso do pensamento social, isso parece ainda menos possível. Supomos, ao contrário, que
talvez advenha dessas interações com temas caros a outras especialidades sua principal
contribuição às ciências sociais brasileiras (BASTOS; BOTELHO, 2010). Não se trata, por
óbvio, de entender que o tipo de análise e de auto-observação aqui ensaiados se substituirão aos
modos habituais de reflexão sobre as ciências sociais, nas quais o tradicional balanço
bibliográfico é sem dúvidas fundamental (BOTELHO; BRASIL JR.; HOELZ, 2019). A “leitura
distante” implica um outro objeto de conhecimento, que permite a detecção de tendências e
25
padrões estruturais de outro modo inapreensíveis, inclusive, como no caso da Wikipédia,
percorrer os caminhamos variados entre conhecimento especializado e conhecimento público.
E, como adverte Niklas Luhmann, as comunicações voltadas para a auto-observação, sejam
aquelas voltadas exclusivamente para o campo científico, sejam aquelas voltadas a
compreender a relação entre ciência e sociedade, justamente ao serem comunicadas, alteram o
que é observado (LUHMANN, 2013). Em suma, nosso intuito aqui é criar uma espécie de
instância de “autoirritação” do pensamento social no Brasil por meio de observações de outros
tipos de sua dinâmica e funcionamento, o que poderá, quem sabe, abrir novas perguntas e
problemas para a área de pesquisa.
Referências Bibliográficas
BASTIAN, M.; HEYMANN, S.; JACOMY, M. Gephi: An Open Source Software for
Exploring and Manipulating Networks, 2009.
BASTOS, E. R.; BOTELHO, A. Horizontes das Ciências Sociais: Pensamento social
brasileiro. In: Horizontes das ciências sociais no Brasil: Sociologia. [s.l.] ANPOCS, 2010.
BLOMSTROM, M.; HETTNE, B. Development Theory in Transition: The Dependency
Debate and Beyond : Third World Responses. London: Zed Books, 1984.
BLONDEL, V. D. et al. Fast unfolding of communities in large networks. Journal of
Statistical Mechanics: Theory and Experiment, v. 2008, n. 10, p. P10008, out. 2008.
BOTELHO, A. Passado e futuro das interpretações do país. Tempo Social, v. 22, n. 1, p. 44–
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BOTELHO, A. Political sociology: State–society relations: Current Sociology, 23 maio
2014.
BOTELHO, A.; BRASIL JR., A.; HOELZ, M. TÃO LONGE, TÃO PERTO: SOCIOLOGIA
& ANTROPOLOGIA NO LIMIAR DE UMA DÉCADA. Sociologia & Antropologia, v. 9,
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