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Seminário América Latina: Cultura, História e Política - Uberlândia - MG – 18 a 21 de maio de 2015 1 O populismo em Terra em transe: debates sobre um conceito “Estão vendo quem é o povo? Um imbecil, um despolitizado, um analfabeto? Já pensaram Jerônimo no poder?” Paulo Martins em Terra em transe Izabella Cardoso da Silva 1 Resumo Segundo o crítico de cinema Ismail Xavier, o filme Terra em transe (1967) procura ser uma representação do quadro político anterior ao golpe. Nele, é central na representação sobre o Brasil o uso do conceito de populismo para explicar a relação estabelecida entre líder e povo naquele período. Também a produção acadêmica do período se preocupou com o período anterior ao golpe militar. Entre eles cientistas políticos e sociólogos concordaram em um ponto: que o populismo estava relacionado à manipulação das massas. Percebe-se entre essas interpretações um paralelo, qual seja, o uso do conceito de populismo para explicar a Terceira República. Para este trabalho, propõe-se então analisar o filme em articulação com um texto publicado pela revista Civilização Brasileira nos anos posteriores ao golpe, ambos da década de 1970, de modo a procurar entender, a partir de diferentes veículos onde o conceito aparece, a centralidade que o debate sobre o populismo alcançou naqueles anos. 1 Graduanda do quarto ano em História na Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca. É bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), desenvolvendo pesquisa com o título “TERRA EM TRANSE”: uma história sobre o populismo, sob orientação do Profº Drº Gustavo José de Toledo Pedroso.

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O populismo em Terra em transe: debates sobre um conceito

“Estão vendo quem é o povo? Um imbecil, um despolitizado, um analfabeto? Já pensaram Jerônimo no

poder?”

Paulo Martins em Terra em transe

Izabella Cardoso da Silva 1 Resumo Segundo o crítico de cinema Ismail Xavier, o filme Terra em transe (1967) procura ser

uma representação do quadro político anterior ao golpe. Nele, é central na representação

sobre o Brasil o uso do conceito de populismo para explicar a relação estabelecida entre

líder e povo naquele período. Também a produção acadêmica do período se preocupou

com o período anterior ao golpe militar. Entre eles cientistas políticos e sociólogos

concordaram em um ponto: que o populismo estava relacionado à manipulação das

massas. Percebe-se entre essas interpretações um paralelo, qual seja, o uso do conceito

de populismo para explicar a Terceira República. Para este trabalho, propõe-se então

analisar o filme em articulação com um texto publicado pela revista Civilização

Brasileira nos anos posteriores ao golpe, ambos da década de 1970, de modo a procurar

entender, a partir de diferentes veículos onde o conceito aparece, a centralidade que o

debate sobre o populismo alcançou naqueles anos.

1 Graduanda do quarto ano em História na Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca. É bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), desenvolvendo pesquisa com o título “TERRA EM TRANSE”: uma história sobre o populismo, sob orientação do Profº Drº Gustavo José de Toledo Pedroso.

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Palavras-chave Terra em transe; populismo; Terceira República;

Introdução

Para Marcos Napolitano, o historiador, ao lidar com filmes de valor histórico,

deve se ater a alguns pontos importantes. Entre eles, a especificidade desta linguagem,

cabendo entender o que o filme procura dizer e como o faz. Isto implica em considerar

que é preciso perceber as omissões dos fatos, eventos representados e questões sobre

como, de que modo o passado foi representado pelo presente. Entre outros pontos,

segundo suas palavras: “quais as tensões internas do filme, pensadas a partir da estrutura

da narrativa, na tentativa de registrar fatos históricos”. (NAPOLITANO, p. 244)

Nesta apresentação, analisaremos o filme Terra em transe de Glauber Rocha

(1967), que procura representar o período anterior ao golpe civil e militar no Brasil,

ocorrido em 1964. Nele, procuraremos investigar um ponto fundamental para a

estruturação de sua narrativa, isto é, a crítica que o filme faz ao populismo brasileiro,

entendido como manipulação de massas.2 Cabe, neste caso, entender o porquê o filme se

concentra em eleger como parte da crítica, o intelectual de esquerda como parte

importante de todo o processo traumático que levara ao golpe. Nossa analise se

concentrará então em entender como está representado o populismo no filme, e em

especial, como está representado o intelectual como uma das partes integrante desta

crítica.

Para tanto, recorreremos também ao artigo de Regis de Castro Andrade,

“Perspectivas no estudo do populismo brasileiro”, publicado em 1979 na Revista

Civilização Brasileira, o qual fornece referências bastante interessantes para se entender

o debate estabelecido após o golpe militar sobre o populismo.

Tal debate parece ter sido importante a partir do golpe, em especial se pensarmos

na gama de publicações que utilizaram o conceito de populismo para explicar a Terceira

República. Octavio Ianni e Francisco Weffort, por exemplo, publicaram duas obras

clássicas sobre o tema, respectivamente, O colapso do populismo no Brasil (1968) e O

populismo na política brasileira (1978). Pode-se dizer que Terra em transe faz parte

desse debate, guardadas, obviamente as diferenças entre a linguagem cinematográfica e

2 XAVIER, I. Alegorias do Subdesenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 41.

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aquela da produção acadêmica. Além disso, o filme procurar representar, de acordo com

a linguagem cinematográfica, um contexto político específico, utilizando representações

simbólicas por meio do recurso à alegoria, o que contribui para caracterizar ainda mais

tal contexto.3

Terra em transe: um filme de “conceitos” políticos

A partir da década de 1960, mais especificamente, a partir do golpe civil e

militar, uma perspectiva sobre o período anterior, a chamada Terceira República (1945-

1964) passou a circular sobremaneira nos debates políticos da época.4 Estamos falando

do uso do conceito de populismo para explicar todo aquele período de intensas

transformações na sociedade brasileira.

Também Terra em transe se volta para esta questão. Segundo Ismail Xavier

(2004) ele procura construir uma representação do quadro político anterior ao golpe de

1964. O filme retrata os conflitos de classe e os sintetiza nas lutas entre os grupos

políticos da cidade fictícia de Alecrim. Nele o conceito de populismo é utilizado para

explicar o fracasso das elites em desenvolver o país. Tal explicação é representada ao

longo da obra. Conforme o entendimento da produção acadêmica sobre o tema, o

populismo parece ter sido compreendido como um processo que se estende dos anos

3 Nos extras da versão do filme lançada recentemente, Ismail Xavier comenta o recurso da alegoria como o que contribui para representar as classes identificadas no filme, contribuindo para caracterizar os personagens de maneira que o espectador perceba os diversos elementos presentes no quadro como integrantes da história de Eldorado (representação do Brasil). Por exemplo, no quadro de encenação do golpe de Diaz, o ditador está vestindo um manto real e empunha um cedro, tendo embaixo desses adereços um terno do século XX. Ao seu lado, há personagens bem conhecidos em nossa história nacional, tais como jesuítas e índios. A alegoria seria, segundo Xavier, a mistura de todos esses elementos simbólicos colocados todos num mesmo quadro e intermitentemente mobilizados para caracterizar os lugares e personagens ao longo do filme. Sobre a alegoria, o autor argumenta: (...) “Minha demarcação no uso da noção de alegoria comtempla exatamente essa característica comum de franca esquematização presente nos filmes. Sigo, neste particular, as observações de Angus Fletcher em Allegory. Ele mostra a descontinuidade e a justaposição apontadas pela matriz da modernidade, mas realça a dimensão mais ampla das esquematizações presentes, desde sempre, na alegoria narrativa: seja de agentes, ações, espaços e motivos. Assim, acentua a tendência da alegoria a oferecer contornos especialmente nítidos para os dados essenciais do jogo, o que não significa que um isolamento gráfico dos elementos postos em relação que favoreça a “mensagem clara” (alegoria pedagógica), pois a própria disjunção enfática dos termos (como na colagem) pode ser estratagema para realçar a ambiguidade, o enigma. No âmbito da mis-en-scène, desfilam personagens cuja aparência tende, por sua vez, ao diagramático, à constelação de traços marcantes que as insere num sistema de oposições bem nítidas e, no limite, elas se compõem de modo a escancarar sua condição de “personificações” de forças dentro de um mundo hierarquizado. (XAVIER, I. Alegorias do subdesenvolvimento. 2004, p. 38-39). 4 Angela de Castro Gomes no artigo O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito publicado no livro Populismo. Debate e crítica (2001), faz uma retomada do uso do conceito pelos intelectuais brasileiros ao longo da segunda metade do século XX.

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1930 a 1964. No filme ele se realiza através de alianças políticas feitas entre a esquerda

e a direita. Vieira é um líder populista que entrava laços com Paulo Martins, jornalista e

militante de esquerda. A aliança é feita de modo a eleger o populista à presidência da

República.

Um elemento importante destaca na narrativa. Falamos do personagem Paulo

Martins, como dito, um intelectual de esquerda que se alia aos populistas, de modo a

promover a justiça social. Seu engajamento, no entanto, é denunciado ao longo da

narrativa como pouco comprometida com as reais necessidades e sofrimento do povo.

Por exemplo, num comício de promoção de Vieira, ele tapa a boca de um sindicalista,

acusando-o de analfabeto e despolitizado. Isso ocorre porque esse homem pobre não

representava os seus interesses nem os da equipe de Vieira, daí tal atitude. Para

entendermos a problemática em torno do populismo no filme e de uma parte integrante

do quadro construído por Glauber Rocha como populista, vale a pena expor

resumidamente o filme.

Terra em transe conta a história de um golpe de Estado que tem lugar no país

fictício de Eldorado. A narrativa começa com um flashback de Paulo Martins que

adentra o palácio de Vieira, na cidade de Alecrim, num momento crítico: após saber do

golpe de Estado desferido por seu opositor Porfirio Diaz, um líder autoritário e de

origem oligárquica. O jornalista vai até o palácio de Vieira e exige que ele e seu grupo

intervenham com armas, ao que outro discorda. Neste momento inicial não é ainda

possível entender muito bem o teor da discussão, mas Paulo nos leva então ao início da

trajetória que o levara até ali. Pergunta-se “Onde estava eu há quatro anos atrás?”.

Em visão panorâmica, a câmera nos direciona ao palácio de Diaz, onde ele e

Paulo mantêm caloroso debate político, antevendo possíveis alianças. Aos poucos,

porém, Paulo abandona o diálogo com Diaz, e, em virtude da amizade por Sara, uma

militante de partido, acaba por decidir lutar ao lado da esquerda. De fato, ela o apresenta

à necessidade premente da erradicação da miséria e da realização de justiça social.

A partir da decisão de Paulo ao dizer “Precisamos de um líder, é o que

precisamos”, os rumos da narrativa mudam. Conforme as indicações de Sara, Vieira é

apresentado como o líder mais comprometido com a busca pela justiça. No entanto,

Paulo se mostra contraditório em vários momentos, como por exemplo, quando ordena

que matem um camponês por considerá-lo fraco. Isto leva a uma mudança, e Martins

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passa a fraquejar, abandonando a vida política e mudando-se para a capital de Eldorado,

onde se entrega à vida boemia.

Enquanto tempos ruins se aproximam, Sara vai resgatá-lo de seu mergulho na

boemia e pede ajuda para a campanha presidencial de Vieira. Paulo aceita então o

convite para realizar uma reportagem, de modo a difamar o opositor político de Vieira,

Porfirio Diaz.

Enquanto Vieira leva adiante sua campanha, junto ao povo, fazendo promessas

aos montes, Porfirio Diaz planeja um golpe de Estado antes mesmo que as eleições

aconteçam. Neste processo, Vieira e sua equipe realizam uma aliança com a burguesia

nacional representada pela empresa de Júlio Fuentes, rico empresário de Alecrim. Tal

aliança ocorre de modo a combater o imperialismo sintetizado na empresa multinacional

Explint. Em seguida, sem nem mesmo realizar sua campanha, e com apoio da burguesia

nacional que trai os populistas, Porfirio Diaz realiza o golpe. Fim do sonho de Paulo

Martins que escolhe morrer como um herói, depois de ser baleado pelos militares.

Em termos gerais, esta é a narrativa do filme. Antes de examinarmos a presença

da questão do populismo no filme, vejamos alguns aspectos de seu tratamento teórico

por parte de alguns cientistas sociais. Segundo uma das interpretações mais importantes

sobre o tema, a de Francisco Weffort, o populismo seria um estilo de governo sensível

às exigências e reivindicações populares e que busca conduzir por meio da

manipulação, essas reivindicações, esgotando-as em sua real necessidade5. Este

fenômeno político, bastante complexo, só pode ser compreendido se colocado no tempo

e espaço do qual faz parte: a partir da revolução de 1930 e em especial a partir da

Terceira República. Ele é também expressão da incapacidade política das elites

governantes deste período em gerir uma organização do Estado brasileiro funcional. Daí

a necessidade de manipular o povo e buscar o seu apoio. Isto ocorre porque este período

está justamente marcado pela emergência das massas na política brasileira e pela

formação de um Estado monopolizado pela burguesia industrial, contexto no qual,

segundo alguns autores, a relação entre líder e povo ganha especial importância.

5 WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p.78-79.

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Esta interpretação sobre o populismo encontra-se sobremaneira nos debates

políticos do período, como mencionado anteriormente. O conceito de populismo está na

imprensa, na produção acadêmica e no cinema através de Terra em transe. Tal

formulação líder-povo-manipulação foi veiculada não somente pelo filme, bem como

toda a problemática em torno da questão do populismo atribuível ao período. Ela parece

ser uma preocupação importante para as décadas posteriores ao golpe, isto é, 1960 e

1970. Este é também o caso da Revista Civilização Brasileira, um importante veiculo de

comunicação que integrava os debates políticos da época, como educação, rumos

políticos e engajamento.

Um caso em especial é o do artigo publicado pela revista em 1979, de autoria de

Regis de Castro Andrade intitulado Perspectivas no estudo do populismo brasileiro.

Nele, o autor afirma estar preocupado com o estudo do conceito tendo em mente que é

preciso explica-lo, tomando cuidado com possíveis generalidades.

Regis de Castro Andrade reconhece no quadro do populismo brasileiro dois

grupos: o que ele chama de bloco ideológico político constituído pela burguesia

industrial e o bloco emergente, qual seja, o dos trabalhadores cujas reivindicações são

incompatíveis com as das classes dominantes. A burguesia, por sua vez, apropria-se do

Estado para exercer controle sobre ele, contando com o apoio dos líderes populistas.

Desta forma, a centralização torna-se uma característica extensiva a Terceira República,

e, principalmente, ao Estado Novo.

De acordo com o contexto da época, passamos a ter certa participação popular,

especialmente em virtude da urbanização e da modernização das cidades. Para lidar com

esses fatores, a burguesia teria estado bastante atenta aos mecanismos de manipulação e

concessão às pautas populares, sem perder de vista o poder centralizador encarnado no

Executivo. O autoritarismo, ideologia profundamente arraigada na cultura brasileira do

período, seria expressão da incapacidade das elites lidarem com a participação popular.

Este é também o momento que marca a passagem da supremacia da oligarquia a agrária,

outrora no poder, para a da burguesia industrial — que seria o principal apoio do Estado

Novo. Dentro desta classe havia o setor nacionalista. Este teria elaborado estratégias

para lidar com a classe trabalhadora. No entanto, seus desejos de unificar todos os

trabalhadores urbanos e rurais não se materializou. Inclusive, os trabalhadores

sindicalizados não conseguiram chegar aos operários comuns. A falta de liderança era

evidente, e a desmobilização também.

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Segundo Regis de Castro Andrade, outro fator teria contribuído para a falta de

mobilização e desagregação dos trabalhadores: o corporativismo sindical. Para além

disso, havia ainda as migrações para a zona urbana. Muitas vezes os camponeses

chegavam às cidades sem pretensões de lutar. Acreditavam quando muito que poderiam

encontrar melhores condições de vida, visto que viviam em situações precárias no

campo. Então a perspectiva da luta política não era algo tão presente em seu cotidiano

assim:

Como resultado de tudo isso, os trabalhadores rurais tendiam a

lutar por si mesmos, por objetivos imediatos e através de meios

violentos. Somente um processo revolucionário aberto poderia ter

superado rapidamente o particularismo rural; porém, dada a

correlação real de forças ao nível nacional, não chegara ainda o

tempo para uma confrontação decisiva com as classes

dominantes. A organização gradual dos trabalhadores, de fato,

estava em marcha e pela primeira vez na história brasileira a

massa da população rural foi reconhecida como uma força

independente e foi encorajada a participar da política nacional. No

entanto, seria necessário mais tempo e talvez um desenvolvimento

mais completo das relações capitalistas de produção no campo

para que os trabalhadores rurais e urbanos se unissem (p.77).

Porém, além dos conflitos de classe, outros problemas acabaram por desvelar

ainda mais o caráter populista do regime. Por exemplo, não se deu de forma integral o

apoio dos populistas às reivindicações dos trabalhadores, conforme afirma Regis de

Castro Andrade:

(...) o custo para o bloco populista em termos de concessões

populistas foi muito alto, pois a reprodução da massa requeria não

a satisfação de vagas aspirações, mas o compromisso do governo

com um vasto programa de reformas. De fato, para a grande

massa da população trabalhadora, o centro político do movimento

nacional-reformista era o próprio governo [Goulart]. Este, no

entanto, não podia se apresentar como a organização suprema dos

trabalhadores brasileiros sem ser forçado pela esquerda a atender

às suas reivindicações, e sem se desprender da tênue legitimidade

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que ainda proclamava ter para com as classes dominantes.

Envolvido nesta contradição insuperável - ser comprometido com

um programa que levaria à confrontação de classe ou ter

prosseguir na representação da Nação unificada, - o governo nem

liderou os trabalhadores nem apaziguou a direita. (p.77-78).

Dada a contradição entre as classes e seus enfrentamentos no campo politico, o

populismo teria começado a morrer. Como consequência, as lutas foram enfraquecidas,

e seu líderes foram atraídos para a direita e acabaram por ser colocar contra as massas

populares. Regis de Castro Andrade conclui a discussão dizendo que “O sentimento

ilusório de estar próximo do poder talvez esteja relacionado [...] à atenção insuficiente

dada pelo movimento nacionalista às suas próprias metas democráticas e à consecução

dos objetivos a longo prazo do movimento trabalhista” (p.78).

De modo semelhante, segundo Ismail Xavier, o filme procura criticar o

fenômeno do populismo. Dentro deste quadro, quero me ater à relação entre intelectual

(que se alia aos populistas) e povo, comparando-a com a explicação de Regis. De que

modo tanto o filme quanto o artigo que integram o debate político da época entendem o

populismo? Como um arranjo político incapaz de atender verdadeiramente os interesses

dos pobres, porque está incluído num jogo de forças antagônicas que chegam ao ápice

com os enfrentamentos políticos.

Em Terra em transe Paulo Martins se desilude completamente e decide morrer

quando descobre o golpe de Estado desfechado por Diaz, um membro da direita

conservadora e arcaica da sociedade representada no filme. Antes do golpe, porém,

algumas promessas de reformas de base foram proferidas pela comissão do líder

populista que ele apoia. Paulo se pergunta sobre como proceder depois da campanha

eleitoral, como atender às demandas dos pobres? Na sequência, a resposta é dada de

modo bastante negativo: ele repreende um camponês pobre, dizendo que ele é medroso

e covarde, e acaba por matá-lo. Neste ponto da narrativa, Paulo é denunciado dentro do

populismo como incapaz de compreender as necessidades das massas.

Se pensarmos este ponto, podemos dizer que Paulo agiu de tal modo porque,

inserido no contexto do populismo, ele não poderia atender verdadeiramente às

aspirações populares, senão descontentaria os grupos que o sustentavam no poder aos

quais ele era ligado. Mesmo tentando escapar, porém, dos impasses todos, o populismo

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acaba por antecipar o golpe de Diaz, afastando qualquer possibilidade de reformas e

promoção de justiça social. Neste quadro, a própria postura do intelectual é questionada.

Por exemplo, quando ele abandona a política pela vida boêmia e extravagante da capital

e só é resgatado por Sara que o convoca a se engajar novamente em prol da eleição de

Vieira para à presidência.

Se pensarmos as duas referências em paralelo, o filme e o artigo de Regis de

Castro Andrade, é possível sustentar que ambos estão preocupados com o populismo

enquanto estilo de governo sensível às pautas populares, e seu fracasso que acaba, por

fim, contribuindo com a realização do golpe militar. É claro que cada veículo explicou o

período de acordo com seus próprios recursos e usando sua linguagem específica, no

entanto, podemos encontrar alguns pontos em comum para explicar o porquê do golpe.

O ponto em comum seria o uso de conceito de populismo, entendido por ambos como

um fenômeno político que chega ao colapso devido a suas contradições internas e ao

contexto de enfrentamentos com o qual está envolvido.

Em Terra em transe vários elementos são utilizados para explicar o colapso da

Terceira República e o golpe militar. Esta explicação engloba o conceito de populismo e

ao empregá-lo, procura compor uma crítica ao quadro todo. Na verdade, temos uma

representação do populismo brasileiro entendido pela década de 1960 como

manipulação dos interesses das massas e desdém em relação às suas reais necessidades,

por parte dos líderes populistas e seus aliados6. Os líderes políticos, por sua vez, são

representados como homens preocupados com o poder e desligadas do real povo,

miserável e distante dos ideais da esquerda revolucionária representados por Paulo e

Sara.

Esta relação entre intelectual e povo7 é utilizada para explicar o fracasso da

revolução e das reformas de base. O intelectual é representado pelo personagem Paulo

6 Conforme destaca Angela de Castro Gomes se tornou lugar-comum nos anos 1960, especialmente a partir do golpe militar, identificar os políticos ligados a Vargas, Goulart e Brizola como populistas. Diversos meios de comunicação – TV, Rádio, Imprensa – passaram a utilizar o conceito de populismo para caracterizar tais políticos e seus aliados. Ela diz: “Tais termos começaram a circular, tanto na imprensa, quanto em textos acadêmicos, mais ou menos por volta de 1953. (...) “Ser populista” significava ser popular; estar se comunicando com o “povo”, mais especificamente com o povo trabalhador, organizado ou não em associações, fossem candidatos corporativos legalmente reconhecidos pelo Estado ou quaisquer outras formas, em especial se envolvessem trabalhadores rurais, ainda excluídos dos direitos trabalhistas.” GOMES CASTRO, de A (Org). Olhando Para Dentro: 1930-1964. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 32. 7 Ismail Xavier cita um trabalho de José Wisnik que procura estabelecer relações entre o papel do intelectual na organização do movimento operário no contexto da promoção das reformas de base, em

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Martins, jornalista de esquerda que é denunciado como contraditório em vários

momentos. Nesta relação estabelecida entre povo e intelectual e/ou líder político há,

como afirma Ismail Xavier, uma não correspondência entre povo real e o povo

defendido pela teoria da revolução socialista apropriada pela geração de 1964. 8

Em tais termos, o populismo teria contribuído para a deflagração do golpe afinal.

As esquerdas (em especial o PCB) teriam sua parcela de culpa ao se acomodarem ao

arranjo vigente e falharem em compreender efetivamente o contexto em que se

encontravam. Isto fica bem claro na sequência do filme “Encontro de um líder com o

povo”. Nela ocorre o comício de promoção de Vieira, o líder populista, à presidência da

República. Há ali um verdadeiro teatro da inclusão do povo, embora o povo esteja lá,

bem como os líderes políticos e a comissão de Vieira que caem no samba, como se

estivessem todos numa grande festa. Nesta sequência o carnaval funciona como alegoria

do encontro de interesses inconciliados promovido pelo populismo. Por outro lado, nos

momentos em que o povo procura se manifestar, ele é reprimido cruelmente.

Nesta sequência um sindicalista operário é incentivado a falar por Sara, a

militante de partido. Ao abrir a boca, ele expõe sua inteira perplexidade e diz esperar as

ordens do presidente. Paulo Martins, por sua vez, emerge na cena e tapa a boca do

pobre, dizendo diretamente para a câmera: “Estão vendo quem é o povo? Um imbecil,

um despolitizado, um analfabeto? Já pensaram Jerônimo no poder?” Em seguida,

quando um membro do povo ocupa o centro da cena e afronta a comissão do populista,

dizendo “O povo sou eu que tenho sete filhos e não tenho onde morar!” e, por isso

mesmo, contrariando os interesses dos líderes, ele é morto em represália pela comissão

de Vieira. Isso ocorre uma vez que ele não correspondia aos interesses e às idealizações

da esquerda representada sobre o povo, da mesma forma que não correspondia o

sindicalista calado por Paulo, mesmo tendo sido convocado a falar por Sara. De toda

forma, o teatro de suposta inclusão do povo fora desfeito porque o povo nunca deve

falar. Ismail Xavier destaca:

O desenvolvimento geral da cena traz a lição gráfica sobre a farsa

democrática encenada pelos líderes de Eldorado. O espaço de

1960. Consultar “Getúlio da paixão cearense (Villa-Lobos e o Estado Novo)” In: Música. O nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1982. 8 XAVIER, I. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1993, p.98.

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participação definido pelos donos do poder que têm no populismo

o grande teatro de aparente inclusão do povo na esfera da política,

e sua real exclusão. O ponto controverso está na provocação de

Paulo. Ele ativa um preconceito que o filme sabe existir, muitas

vezes inconfesso, em setores variados. De um lado, atuam aí

conflitos de Paulo dentro da luta, em que ele percebe as ilusões de

seus aliados quanto à condição do povo como agente

transformador. (p.97)

Ao fazer isso, é possível dizer que Paulo mostra-se herdeiro de uma tradição

autoritária9 na história da América Latina, e que afeta direita e esquerda sem distinção.

Lembre-se que Porfirio Diaz é construído, ao longo da narrativa, como representante

supremo desta tradição conservadora e arcaica10. No entanto, é na sequencia do comício

em que Paulo atiça um preconceito inconfesso anteriormente e choca o espectador ao

exibir a falta preconceituosa em relação ao operário sindicalista.

Referencias bibliográficas

ANDRADE. Castro, R. Perspectivas no estudo do populismo brasileiro. Rio de Janeiro:

Editora Civilização Brasileira, n° 7, jan. 1979, pp. 41-86.

FERREIRA, Jorge (Org). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

NAPOTILANO, M. A história depois do papel. In: PINSKY, C. Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2006. p. 235-289.

WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

WISNIK, J. Música. In: O nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo, Brasiliense,

1982.

9 Em termos de Brasil nos anos 1930, de acordo com Regis de Castro Andrade, alguns intelectuais da primeira metade do século XX, entre eles Oliveira Vianna, acreditavam que o autoritarismo seria a forma adequada para modelar o Estado brasileiro que seria amorfo. ANDRADE. Castro, R. Perspectivas no estudo do populismo brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, n° 7, jan. 1979, p. 56. 10 Alegorias do subdesenvolvimento, p.98.

Page 12: O populismo em Terra em transe: debates sobre um conceitoseminarioamericalatina.com.br/wp-content/uploads/2015/07/... · 2015-08-14 · convite para realizar uma reportagem, de modo

Seminário América Latina: Cultura, História e Política - Uberlândia - MG – 18 a 21 de maio de 2015

12

XAVIER, I. Alegorias do Subdesenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1993.

Terra em transe, Direção e roteiro: Glauber Rocha. Produção: Zelito Viana. Música:

Sérgio Ricardo. Som: Aloisio Viana. Fotografia: Luiz Carlos Barreto; Dib. Lufti.

Montagem: Eduardo Escorel. Direção de arte: Paulo Gil Soares. Figurino: Paulo Gil Soares;

Clovis Bornay; Guilherme Guimarães. Elenco: Jardel Filho; Paulo Autran; Glauce Rocha;

Paulo Gracindo; Jofre Soares; Hugo Carvana; José Lewgoy; Mauricio do Valle; Mário

Lago; Modesto de Souza; Francisco Milani; Emmanuel Cavalcanti; Telma Reston; Irma

Álvarez; Darlene Glória; Elizabeth Gasper; Sonia Clara; Danuza Leão; Paulo Cesar Pereio;

José Marinho; Echio Reis; Flávio Migliaccio; Zózimo Bulbul; Antonio Carnera; Rafael de

Carvalho. Rio de Janeiro: Mapa Produções Cinematográficas; Difilm, 1967. 105 min., son.,

p&b.