o rio e a casa

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  • O riO e a casa

    AnA CludiA dA SilvA

    imagens do tempo na fico de mia couto

  • O riO e a casa

  • CONSELHO EDITORIAL ACADMICO

    Responsvel pela publicao desta obra

    Alcides Cardoso dos Santos Joo Batista Toledo Prado

    Mrcia Valria Zamboni Gobbi

  • ana cludia da silva

    O riO e a casaImagens do tempo na fIco

    de mIa couto

  • Editora afiliada:

    2010 Editora UNESP

    Cultura Acadmica

    Praa da S, 108 01001-900 So Paulo SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br [email protected]

    CIP Brasil. Catalogao na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    S578r

    Silva, Ana Cludia da

    O rio e a casa: imagens do tempo na fico de Mia Couto / Ana Cludia da Silva. - So Paulo : Cultura Acadmica, 2010.

    Inclui bibliografia

    ISBN 978-85-7983-112-6

    1. Couto, Mia, 1955 - Crtica e interpretao. 2. Tempo na literatura. 3. Intertextualidade. 4. Fico moambicana - Histria e crtica. 5. Literatura africana (Portugus) - Histria e crtica. I. Ttulo. II. Ttulo: Imagens do tempo na fico de Mia Couto.

    11-0127. CDD: 869.8996793 CDU: 821.134.3(679)-3

    Este livro publicado pelo Programa de Publicaes Digitais da Pr- Reitoria de Ps-Graduao da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNESP)

  • Aos meus pais.

  • Agradeo aos professores Maria Clia de Moraes Leonel e Francisco Noa por definirem com mais clareza os rumos de minha pesquisa. Com gratido e amizade sempre renova-das, ao professor Luiz Gonzaga Marche-zan, que me orientou no doutorado com apoio lcido e sempre generoso.

  • Sumrio

    Prefcio 11Introduo 15

    1 a literatura moambicana e a obra de Mia couto 192 a fortuna crtica de Mia couto no Brasil 733 um rio chamado tempo 1374 uma casa chamada terra 209

    Consideraes finais 263Referncias bibliogrficas 267

  • Prefcio

    H muito ana cludia da silva l a fico de Mia couto. sua disser-tao de mestrado sobre o autor, no ano 2000, coincide com os avanos, no Brasil, dos estudos acerca da obra do escritor moambicano. Este livro, O rio e a casa: imagens do tempo na fico de Mia Couto, resulta da sua tese de doutorado no ano de 2010.

    Mia couto caracteriza-se dentro do sistema literrio moambicano como um fino contador de histrias, que se alimenta tanto da cultura de matriz banta, como da intertextualidade mantida com seus autores preferidos. ana cludia flagrou, de modo apurado, mais uma traves-sura do autor: a maneira como o conto Nas guas do tempo (de 1994, publicado no Brasil em 1996) e o romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (de 2002, com edio brasileira de 2003) mantm uma autointertextualidade. Esta foi sua tese.

    dessa forma, o discurso literrio poroso de Mia couto sustenta uma literatura africana em lngua portuguesa, o que a estudiosa to bem discute enquanto disserta sobre a formao da literatura moambicana. noutro momento, ento, o achado de ana cludia: a anlise da funo da autointertextualidade o modo como o conto encontra-se desenvol-vido no romance, a partir de aspectos da trajetria das personagens, sua formao e seu aperfeioamento acerca do entendimento do mundo, do universo da sua cultura, da institucionalizao de sua nao.

  • 12 ANA CLUDIA DA SILVA

    O mtodo da literatura comparada apoia a tese deste livro a partir de nexos comparativos localizados entre as categorias da fico espao e tempo trabalhados pela teoria bakhtiniana; no caso, a que prov a ideia de cronotopo. Tempos e espaos, cronotopos, constituem-se em conectivos, conexes entre os universos literrios do conto e do romance interpretados. dessa maneira, as personagens, no imaginrio de Mia couto, vivenciam, no tempo e espao, circunstncias da sua vida que atravessam, sem limites, questes da tradio moambicana mescladas s da modernidade, o que traduz o prprio fazer literrio do autor.

    as narrativas analisadas, no caso, perpetuam tal perodo interva-lar, que acomoda valores oriundos de substratos mitolgicos com as experincias de realidades historicamente localizadas. dessa maneira, conforme Mitologias, de Roland Barthes, os mitos constituem falas que lhes foram roubadas e resultam noutras que no se mostram as mesmas, quer no tempo quer no espao.

    assim, conforme a estudiosa:

    as culturas que subsistem na oralidade, em Moambique, tm uma presena constante na obra do autor, que delas resgata elementos hist-rias, mitos, crenas etc. com os quais tece enredos que transitam entre o realismo e o inusitado das situaes, permeados, sempre, de ironia, drama e crtica social, num equilbrio que permite a abordagem de temas com-plexos tais como as guerras, o racismo, a corrupo, o amor, a poltica e outros de forma leve e bem humorada. criatividade e competncia literria, aliadas ao gosto de contar histrias e de permutar experincias tanto com o leitor como com outros autores, no dilogo intertextual, fazem da obra de Mia couto um dos marcos mais importantes do sistema literrio moambicano. Por meio dela, uma identidade moambicana, hbrida e, certamente, ficcionalizada, vai-se dando a conhecer em todo o mundo, abrangendo um nmero cada vez maior de leitores. a fico de Mia couto, como vemos, no trabalha com demar-

    caes de fronteiras entre o real e o sobrenatural, como demonstra o mtodo de leitura de ana cludia. O conto e o romance de Mia couto em questo realizam, para o leitor, uma interlocuo com a matria literria atravessada pela oposio fundadora vida x morte, sensvel a

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    toda a humanidade e, de forma singular, sociedade moambicana, alegorizada em situaes, como j dissemos, que sobrepem sua tra-dio modernidade.

    ana cludia da silva, leitora madura de Mia couto, sempre soube que o ficcionista constri suas narrativas por meio de motivos livres e composicionais, conforme observaes de Tomachvski. Os livres funcionam de forma solta no mbito das suas narrativas, transitam entre os mundos dos vivos e dos mortos; os composicionais deram estudiosa os cronotopos rio e casa, tematizados e figurativizados, configurados, que, para ela, constituram-se no lugar da autointertex-tualidade. diante disso, a autora realizou uma leitura e um inventrio das obras voltados para o mtodo comparado de anlise literria. E deu-se muito bem.

    Luiz Gonzaga Marchezan

  • introduo

    nossa leitura da obra de Mia couto iniciou-se ainda na fase de graduao, com a disciplina literaturas africanas de lngua Portu-guesa, em 1996. chamaram-nos a ateno, primeiramente, os poemas do autor; somente depois viemos a saber, pela leitura de alguns textos crticos, que sua obra ficcional era mais vasta e de melhor qualidade; dedicamo-nos, ento, sua leitura. desse interesse surgiu o projeto no qual fizemos um estudo comparado das personagens infantis em Guimares Rosa e Mia couto; deste, abordvamos especialmente o conto nas guas do tempo (couto, 1996).

    desde ento temos acompanhado avidamente as publicaes brasileiras da obra de couto e tambm de alguma crtica. Em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (couto, 2003), a temtica do romance pareceu-nos prxima daquele conto e, durante a leitura desses dois textos, essa impresso s fez confirmar-se. Os elementos em comum nessas duas narrativas deram origem hiptese de que o romance teria sido concebido a partir de uma ampliao temtica do conto. Guardamos essa ideia durante alguns anos.

    Em 2004, durante o curso de Especializao em Fundamentos da leitura crtica da literatura, munidos de instrumentos tericos que nos levaram a aprofundar nossa leitura do mesmo conto, tivemos a oportunidade de rever algumas questes que trazamos conosco de

  • 16 ANA CLUDIA DA SILVA

    longa data. a primeira dizia respeito historiografia literria moam-bicana, cuja bibliografia ainda muito restrita no Brasil; a segunda referia-se ao nmero crescente de trabalhos acadmicos baseados na obra de Mia couto. vale lembrar que, desde que iniciamos nossa lei-tura da obra de couto, o autor foi arrebanhando um grupo de leitores cada vez maior: suas publicaes foram mais difundidas tanto pela sua presena na mdia quanto pelas suas frequentes visitas ao Brasil. alm disso, nossos estudos permitiram ampliar o leque de contribuies advindas da teoria literria, com as quais aprofundamos a reflexo sobre a obra de couto.

    Este livro constitui-se de trs momentos principais: a reflexo sobre a historiografia literria de Moambique, as consideraes a respeito da fortuna crtica acadmica produzida no Brasil e a anlise da autointertextualidade na obra ficcional de Mia couto.

    no captulo 1, problematizamos algumas questes pertinentes histria da literatura moambicana. Empreendemos, no incio, uma discusso sobre a nomenclatura adotada para os estudos das literaturas africanas de lngua portuguesa; a adoo de um ou outro termo para se referir ao conjunto dessas literaturas implica questes ideolgicas que procuramos elucidar.

    Em seguida, procuramos refletir sobre a natureza da historiogra-fia literria luz de estudos clssicos, como os de vtor Manuel de aguiar e silva (1976; 1990), e de outros mais recentes, como aqueles produzidos no mbito do Grupo de Trabalho (GT) em Histria da literatura da associao nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em letras e lingustica (anpoll), nomeadamente os de autoria de Jos lus Jobim (1998; 2005), Marisa lajolo (1994) e Maria da Glria Bordini [199-?].

    somente ento, respaldados pelas reflexes anteriores, dedicamo-nos anlise das contribuies de alguns autores que propuseram ou ajudaram a problematizar o pensamento sobre a histria da literatura moambicana. nosso recorte restringiu-se, porm, aos textos de autores que ou esto publicados no Brasil ou se encontram nas bi-bliotecas universitrias do pas. as propostas de periodizao literria de Manuel Ferreira (1987), Ftima Mendona (1988), Manoel de

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    souza e silva (1996) e Pires laranjeira (1995; 2001) foram analisadas comparativamente. Em seguida, procuramos entender qual o lugar de Mia couto na histria literria de seu pas, considerando sua obra como partcipe fundamental do processo de constituio do sistema literrio moambicano.

    no captulo 2, apresentamos a fortuna crtica acadmica (teses e dissertaes) produzida no Brasil sobre a obra de Mia couto. a partir de 42 trabalhos que pudemos reunir, observamos como se distribuem no territrio nacional; em seguida, tecemos algumas consideraes sobre o modo como esses estudos referem-se ou no a esse corpus de crtica j constitudo. Traamos, na sequncia, um histrico dessa produo, dividindo-a por ano de publicao, que se estende de 1994 a 2009. Procuramos apresentar cada um dos trabalhos refletindo criticamente sobre essas contribuies. O conjunto revelou-se mais vasto do que espervamos, e a qualidade dos trabalhos produzidos nas diferentes universidades do pas sobre a obra coutiana , no ge-ral, indiscutvel. a leitura dessa fortuna crtica especfica colaborou enormemente com a construo do repertrio que mobilizamos, posteriormente, em nossa anlise, seja pela apresentao de pontos de vista que ainda no havamos considerado sobre a obra do autor, seja pelo confronto dos pressupostos dos demais pesquisadores com os nossos e pela procura de um posicionamento pessoal sobre as questes levantadas pelos colegas.

    nos captulos 3 e 4, por fim, analisamos a autointertextuali-dade na obra ficcional de Mia couto, a partir de dois cronotopos essenciais que comparecem tanto no conto nas guas do tempo (couto, 1996) quanto no romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (couto, 2003): o rio e a casa. O primeiro foi objeto da anlise no captulo 3; o cronotopo da casa, por sua vez, foi analisado no captulo seguinte.

    Passemos, portanto, leitura do resultado desse longo e fecundo percurso pela histria, pela crtica e pela anlise literrias. vale lembrar que em nossa leitura mobilizamos um repertrio particular, constitudo pela soma das leituras tericas e literrias que realizamos durante nosso percurso formativo. Tudo isso implica a construo de um ponto de

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    vista obrigatoriamente restrito, a partir do qual observamos a literatura de Mia couto. Em nenhum dos levantamentos feitos durante a pes-quisa tivemos a pretenso de sermos exaustivos. ao contrrio: quanto mais lemos, mais perguntas nos surgem. algumas delas procuramos responder aqui; outras permaneceram abertas, suscitando outras viagens futuras pelo territrio sempre novo da literatura.

  • 1A literAturA moAmbicAnA

    e A obrA de miA couto

    nossa abordagem acerca da obra de Mia couto inicia-se com uma investigao sobre a relao entre essa e a histria da literatura mo-ambicana, que, como veremos, ainda um objeto recente de estudos. antes, porm, recuaremos um pouco mais o nosso foco, tecendo algu-mas consideraes sobre as chamadas literaturas africanas de lngua portuguesa, rea de estudos que mais se tem dedicado ao estudo da obra coutiana, e tambm sobre a historiografia literria. Em seguida, examinaremos as contribuies de quatro autores para a histria da literatura moambicana e procuraremos avaliar essas iniciativas, ainda incipientes e breves.

    Nomenclaturas e expresses ideolgicas

    creio que est chegando o momento em que a autonomia ser total, e deixar de se recorrer a estas expresses genricas (Margarido, 1980, p.10). a profecia de alfredo Margarido, que integra o artigo de abertura de seu livro Estudos sobre literaturas das naes africanas de lngua portuguesa, publicado h mais de vinte anos, dizia respeito autonomia das diferentes literaturas africanas de lngua portuguesa moambicana, angolana, cabo-verdiana, so-tomense, guineense

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    com relao literatura portuguesa. Essa vem sendo gradualmente ampliada, uma vez que, atualmente, os currculos escolares dos pases africanos de lngua portuguesa contemplam o estudo das respectivas literaturas nacionais; alm disso, grande o corpus de produo ensas-tica que se dedica literatura moambicana, angolana ou cabo-verdiana de forma autnoma.

    no mbito das universidades brasileiras, essas literaturas so es-tudadas dentro do grande conjunto das literaturas africanas de lngua portuguesa, que a nomenclatura mais usual para as disciplinas de graduao que contemplam o estudo desses sistemas literrios. uma breve incurso pelo histrico das nomenclaturas indicar o avano que significa essa denominao geral.

    durante a vigncia do colonialismo, a crtica literria referia-se a essas literaturas como literatura da frica portuguesa (Oliveira, 1962) ou literatura ultramarina (csar, 1967) ou, ainda, literatura ultramarina de Portugal. autores hoje representativos do sistema literrio moambicano, como lus Bernardo Honwana, por exemplo, eram referidos ironicamente na crtica colonial. Rodrigues Jnior (1966, p.160) chega a tratar Honwana por rato,1 e execra seu Ns matamos o co tinhoso!, obra publicada em 1964,2 como um mau livro, fruto da inexperincia de quem no ainda nem homem, nem escritor3

    1 no sentido de engraado, extravagante, ridculo, extico (aulete [200-]). 2 a edio brasileira de Ns matamos o co tinhoso! de 1980 (Honwana, 1980). 3 lus Bernardo tomou uma posio a posio que se toma sempre quando se

    tem pouco mais de vinte anos... Mesmo assim, houve quem o festejasse [...]. no se pense que apenas lus Bernardo a servir-se dos mesmos equilbrios para se fazer acreditar em histrias que so s histrias histrias de rato que se esfora por convencer os leitores do que nelas foi criado para servir um ponto de vista! [...] Triste espetculo d esse escritor a quem o l. [...] comea lus Bernardo por mostrar uma falta de humildade que impressiona, quando, na contra-capa do seu co Tinhoso, diz: no sei se realmente sou escritor. no , com certeza. ser um dia. agora, no o ainda. [...] Falta-lhe ainda a experincia, que a idade lhe h-de trazer,a vivncia dos problemas da sua terra, o contacto com os homens. [...] O que O co Tinhoso conta so histrias histrias s. Mas nem mesmo como histrias se podem aceitar. no so verdadeiras. [...] O mundo que lus Bernardo nos quer mostrar, no um mundo verdadeiro. constitui mesmo trabalho que muito lamentamos. as mos dos pretos um

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    apesar de ser ele um belo moo. Tambm a poesia de craveirinha o mais festejado poeta moambicano , por sua vez, foi despojada de qualquer trao de nacionalismo:

    Para alm da lenda que se criou em torno do escritor, importa referir o que vale o seu testemunho lrico, limpo de facciosismos e de gangas estranhas literatura. [...] se a sua poesia comea e nunca deixa de ser declaratria como se o facto de ele ser homem descendente de uma mistura de branco e negro, fosse aval para uma validade literria a ver-dade que, nela, Jos craveirinha nunca se liberta das sombras de outros poetas que o antecederam. Quando fala do cu para os meninos negros estamos a ouvir um poeta venezuelano [...]; e quando fala do drama do negro, est sempre atrs de cada poema um langston Hughes, um nicolas Guilln, um senghor e at est, por sinal, um poeta portugus Geraldo Bessa victor. Quer dizer: a poesia de Jos craveirinha, pelo menos a pu-blicada aqui, no chigubo e noutras revistas que divulgaram a negritude potica entre ns, recorda-nos sempre a caricatura de um filme de capra, em que havia um compositor musical que compunha msica de chopin... (csar, 1967, p.75)

    na viso da crtica colonial, a literatura ultramarina produzia obras condenveis, ou por mostrarem uma frica no verdadeira, visto que denunciava os abusos do colonialismo em terras africanas, ou por no ser reconhecida como voz representativa de seu pas. Os autores condenados por essa crtica, porm, no caso de Moam-bique, formam os pilares de uma literatura de cunho nacional, hoje reconhecidamente moambicana.

    conto que no devia ter sido escrito. [...] Todo o conto [nhinguitimo] de uma maldade to grande, que nem parece de lus Bernardo, que sabemos ser assim nos disseram um belo moo.

    ns Matamos o co Tinhoso um livro mau. E um livro mau, porque conduz o leitor presena de um mundo inventado. E o leva a concluses que ho-de ser razes de um julgamento injusto. [...] lus Bernardo h-de crescer mais, em idade, em pensamento e em boa razo de esprito, para ser primeiro do que tudo um Homem e depois um Escritor com responsabilidades, para o acreditarem, ento, de outra maneira. agora, conhecemos apenas nele o moo que est fora de toda a realidade... (Rodrigues Junior, 1966, p.155-61, grifos do autor)

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    Posteriormente, as literaturas produzidas na frica de lngua portu-guesa passaram a receber a denominao de literatura negra, por influ-ncia do movimento da negritude.4 alfredo Margarido (1980, p.43), em 1962, referia-se a elas como poesia negra de expresso portuguesa; o mesmo autor (ibidem, p.105), porm, chega a rever sua posio, e passa a referi-las, a partir de 1978, como literaturas africanas de expresso portuguesa, nomenclatura que passou a utilizar desde ento.

    Russell G. Hamilton (1981, p.20-1), por sua vez, examina as vrias designaes desse conjunto de literaturas: literaturas africanas de ex-presso portuguesa; literaturas africanas de ou em lngua portuguesa; literaturas de lngua oficial portuguesa; literaturas lusfonas, e opta por esta ltima como a mais adequada, pois, no seu entender, seria a designao mais livre de conotao colonialista.

    Manuel Ferreira (1987, p.15) autor do primeiro manual publicado no Brasil sobre essas literaturas5 , porm, lembra que a prpria pala-vra lusofonia para ns, portugueses, e para os escritores africanos no est isenta de suspeitosas contaminaes dos tempos do colonialismo.

    4 a negritude foi um movimento reivindicador que surgiu entre africanos que estudavam na Frana, no Quartier latin (bairro central de Paris). Entre seus precursores esto o senegals lopold sedar snghor e o francs aime csaire, que, juntamente com outros estudantes, fundaram, em 1934, a revista lEtudiant noir (O Estudante negro). Trata-se de um movimento de intelectuais negros, que recusavam a poltica colonial de assimilao. seus objetivos eram buscar o desafio cultural do mundo negro (a identidade negra africana), protestar contra a ordem colonial, lutar pela emancipao de seus povos oprimidos e lanar o apelo de uma reviso das relaes entre os povos para que se chegasse a uma civilizao no universal como a extenso de uma regional imposta pela fora mas uma civilizao do universal, encontro de todas as outras, concretas e particulares (Munanga, 1988, p.43-4, grifos do autor). uma das principais crticas da negri-tude reside no fato de ela veicular um essencialismo negro, como se o fato de ter a pele negra pudesse deflagrar uma identidade comum; alm disso, foi tachado de ser excessivamente intelectual e de ter um carter burgus (damsio, 2004, p.1). a despeito disso, a negritude permaneceu viva durante dcadas na literatura; em Moambique, seus principais representantes so os poetas nomia de souza e Jos craveirinha.

    5 segundo Patrick chabal (1992, p.247), literaturas africanas de expresso portu-guesa, de Manuel Ferreira, o primeiro estudo em portugus da literatura dos cinco pases africanos de lngua portuguesa.

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    Ferreira refere-se ao fato de que a ideia da lusofonia herdeira direta do utpico Quinto imprio, preconizado por Pe. antonio vieira e Fernando Pessoa. no Dicionrio de termos da lusofonia6 (cristvo, 2005, p.652-3), o verbete lusofonia traz essa filiao:

    na esperana e na expectativa de um messianismo sebastianista mergulham as razes da utopia do Quinto imprio, entre o pessimismo do Tratado da Quinta Monarquia Infelicidades de Portugal Profetizadas, de Frei sebastio de Paiva, e o optimismo de vieira, nos Sermes, Histria do Futuro, Clavis Prophetarum. Para vieira, era preciso converter e reformar o Mundo, florescendo mais que nunca o culto divino, a justia, a paz e todas as virtudes crists, como se preconiza na Histria do Futuro.

    Fernando Pessoa reformulou este sonho criando, na lgica da su-cesso dos imprios da antiguidade, um futuro para o Quinto imprio portugus, na Mensagem, no Livro do Desassossego e em textos que deixou inditos, hoje em grande nmero publicados. E, quanto ao imprio, ele j no de natureza religiosa, mas cultural. [...]

    este Quinto imprio cultural, a que chamamos hoje Lusofonia, uma ptria de humanismo e dilogo, com as razes mergulhadas nas ideias de vieira, Pessoa e outros, sem pretenses de estabelecer qualquer hegemonia de dominao. at porque, como dizia outro sonhador, milenarista do Esprito santo, agostinho da silva, este Quinto imprio partilhado no prev a existncia de um qualquer Quinto imperador.

    um imprio, ainda que sem imperador, uma estrutura centraliza-dora e no democrtica. no sem razo, alguns crticos se levantaram contra a ideia da lusofonia. Para alfredo Margarido (apud cristvo,

    6 Esse interessante dicionrio foi feito com a colaborao de 344 pesquisadores de 19 naes diferentes. a formao do grupo conta com 206 pesquisadores portugueses, 48 brasileiros, 16 moambicanos, 12 guineenses (sendo 10 da Guin-Bissau e 2 da Guin), 12 so-tomenses, 11 angolanos, 6 cabo-verdianos, 3 timorenses, 3 galegos, 3 alemes, 3 franceses, 2 italianos, 1 espanhol, 1 senegals, 1 romeno, 1 polons e 1 ganense, 1 checo e 13 pesquisadores sem identificao de nacionalidade. O fato de que 59,88% deles sejam de nacionalidade portuguesa ilustra a ideia, apontada por alfredo Margarido e Manuel Ferreira, da soberania portuguesa no campo da lusofonia ideia essa, entretanto, terminantemente negada pelos pressupostos ideolgicos que embasam o conceito.

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    2005, p.654), o discurso da lusofonia uma dissimulao dos traos brutais do passado colonialista, uma tentativa de recuperao da antiga hegemonia portuguesa: pretende-se manter o colonialismo, fingindo abolir o colonialista, graas maneira como o colonizado convidado a alienar a sua prpria autonomia para servir os interesses portugueses. Tambm o escritor antonio Tabucchi (cristvo, 2005, p.654), tradutor italiano da obra de Fernando Pessoa, v a lusofonia como uma substitui-o, no imaginrio portugus, do poder imperialista: para ele, Portugal encontra, na lusofonia, terreno frtil para uma inveno meta-histrica como esta, que funciona como sucedneo, no imaginrio colectivo.

    a questo de uma denominao sem entraves ideolgicos para o conjunto das literaturas produzidas em portugus na frica est ainda longe de ser solucionada. Manuel Ferreira (1987, p.16) insiste no termo literaturas africanas de expresso portuguesa:

    claro que se tivermos de designar individualmente cada uma das cinco literaturas, o problema est facilitado ou mesmo inteiramente resolvido: literatura cabo-verdiana, so-tomense, moambicana, etc. a complicao, porm, surge quando h necessidade de empregarmos o plural, englobando as cinco literaturas: Literaturas africanas, de qu? de lngua inglesa? France-sa? literaturas africanas de/ou em lngua portuguesa evidentemente no se pode desejar que seja de outro modo. Mas aparece tambm quem opte pelo enunciado expresso portuguesa, a cujo emprego se opem alguns com o argumento de que a palavra expresso encerra em si mesma um contedo europeu, neste caso um contedo portugus, e sendo assim tal designao dever ser evitada ou banida. Mas a verdade que tal modo de designar tem uma tradio longa por via francesa e tambm de utilizao no espao onde se fala a lngua portuguesa; frica, Brasil, Portugal, etc. Basta lembrarmos os ttulos de algumas antologias publicadas a partir dos anos 50, como, por exemplo, a de Mrio de andrade7: Antologia da poesia negra de expresso portuguesa (1958). independentemente disso, no entanto, h o fato mais importante de a palavra expresso, no contexto verbal do enunciado literaturas africanas de expresso portuguesa, salvo devido respeito, no ser portadora de contedo colonial, mas sim de nomeao. Expresso o

    7 Mrio Pinto de andrade (1928-1990): escritor e poltico angolano.

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    ato de exprimir. O ato de dizer. literaturas que, sendo africanas, tendo um contedo africano, so expressas, so ditas em lngua portuguesa, o que por si s afasta toda e qualquer ideia de reserva mental colonial ou colonialista. socorramo-nos de Hjelmeslev e da sua proposta a dos dois aspectos em relao ao discurso: o plano da expresso e o plano do contedo. a palavra expresso no referido enunciado (literaturas africanas de expresso portuguesa), de harmonia com aquele terico, aponta exclusivamente para o significante e no para o significado...

    a obra de Ferreira, publicada em Portugal em 1977, foi a primeira a discorrer sobre essa problemtica, que seria, depois, abordada por outros pesquisadores, com posies divergentes.

    atualmente, os estudiosos mais proeminentes dessas literaturas no Brasil laura Padilha, Benjamin abdala Jnior, Rita chaves, Maria nazareth soares Fonseca, carmen lcia Tind Ribeiro secco, entre outros referem-nas como literaturas africanas de lngua portuguesa, que, ao que parece, o termo mais neutro dentre os propostos ante-riormente. no mbito delas que a literatura moambicana encontra algum espao. dizemos isso porque, nos programas de ps-graduao, no h linhas de pesquisa especficas para cada uma das literaturas afri-canas de lngua portuguesa isoladamente; os trabalhos publicados sobre a literatura de Moambique trazem como palavras-chave a expresso literaturas africanas de lngua portuguesa. na Pontifcia universidade catlica de Minas Gerais (Puc Minas), instituio pioneira nos estudos africanos, esses so desenvolvidos no mbito do programa de literaturas de lngua Portuguesa; na universidade de so Paulo, a literatura mo-ambicana encontra lugar na rea de Estudos comparados de literaturas de lngua Portuguesa o que obriga os pesquisadores dali a adotarem necessariamente a perspectiva comparada para estud-la.

    Consideraes sobre a historiografia literria

    segundo vtor Manuel de aguiar e silva (1990, p.27), a historiografia literria teve incio no ano de 1815, com a publicao de Histria da literatura antiga e moderna, de Friedrich schlegel. a literatura, ento,

  • 26 ANA CLUDIA DA SILVA

    devia ser estudada no seu desenvolvimento orgnico, nas suas vrias pocas, procurando-se reconstituir a complexa interao existente entre a herana e a criatividade individual e relacionar os autores e as obras com os grandes movimentos espirituais e culturais da sua poca, com os acontecimentos polticos do seu tempo, com a sociedade de que faziam parte, etc. (ibidem)

    ainda no sculo XiX, a historiografia literria avanou mantendo laos estreitos com a filologia8 e com a histria, principalmente com a disseminao dos ideais positivistas, que apresentavam os fatos como garantia de objetividade para o estudo histrico da literatura.

    no incio do sculo XX, o conceito de histria construdo durante o romantismo entrou em crise e, com ele, tambm a historiografia literria. novos movimentos, tais como o formalismo russo, o new criticism norte-americano e a estilstica subestimaram a diacronia, isto , a perspectiva histrico-evolutiva na anlise dos textos literrios, [...] valorizando a sincronia [...] [e] o estudo imanente dos textos, ou seja, o estudo dos textos na sua estrutura formal e semntica [...] (silva, 1990, p.28, grifos do autor). O estudo dos textos passou a prescindir, ento, da biografia, da inteno do autor e da investigao de suas fontes e influncias, transcendendo as determinaes histricas. com efeito, o historiador literrio trabalha com textos que, produzidos num dado tempo histrico e marcados por esse mesmo tempo, transcendem, enquanto monumentos artsticos, os limites e as caractersticas desse tempo histrico. (ibidem, grifo do autor)

    Mais tarde, o aparecimento dos estudos semiticos, relevando a importncia dos sistemas e cdigos na produo/recepo do texto literrio, demarcaria um novo campo de estudos imprescindvel para a historiografia literria:

    8 Wellek & Warren (1971, p.47-8) lembram que filologia uma expresso que permite equvocos: Historicamente, tem sido utilizada com incluso no s de todos os estudos literrios e lingusticos, mas tambm do estudo de todos os produtos do esprito humano. [...] Hoje, [...] entende-se frequentemente que a filologia significa a lingustica, sobretudo a gramtica histrica e o estudo de passadas formas de linguagem.

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    como se constituem esses sistemas e cdigos, que so entidades histri-cas? como se modificam estas entidades no fluir da histria? Qual a origem e qual a evoluo dos processos literrios que, numa determinada poca, configuram a literariedade? Quais as articulaes da semiose literria com os sistemas de valores ideolgicos e com o sistema social? (ibidem)

    Essas so as perguntas que devem ser respondidas pela histo-riografia literria. silva (1990, p.28-9) lembra, porm, que os novos rumos da histria literria no podem deixar de considerar, tambm, a literatura como instituio, ou seja, como um fenmeno composto de agentes (escritores, editores, divulgadores) e mecanismos de produo e recepo (leitores, professores etc.).

    com relao ao tipo de trabalho terico que se pode desenvolver sobre a histria da literatura, Jos luiz Jobim (1998, p.9-11), mem-bro do Grupo de Trabalho em Histria da literatura da associao nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em letras e lingustica (anpoll), elenca uma srie de possibilidades que se abrem ao pes-quisador dessa rea:

    Pode-se, por exemplo, tratar do inventrio de mudanas nas des-cries do que literatura; averiguar por que e como essas mudanas se deram; indagar sobre a autoconscincia dos produtores destas descries no passado; ou sobre a nossa prpria autoconscincia, ao examinarmos a deles. Pode-se examinar como se configuram vises de ou sobre a literatura em estruturas sociais, tanto de dentro de um perodo, na perspectiva produzida por este perodo sobre si prprio, quanto de fora, na viso que outro perodo lana sobre ele.

    Pode-se tambm presumir que tanto os pressupostos, mtodos e limi-tes do que se concebe como Histria mudaram e mudam, como tambm mudou e muda o que se entende por literatura. Para compreender o roteiro das mudanas, podem-se recuperar instituies, maneiras de pensar, modos de escrever que se procurou apagar ou que de alguma maneira sobreviveram. possvel tambm trabalhar com as descries de autores, obras, perodos; com sua aprovao ou reprovao por vrios e sucessivos pblicos; com os alegados fundamentos desta aprovao ou reprovao; com as interpolaes, inferncias, escolhas, arranjos, ordenaes, selees

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    e princpios usados para controlar selees , juzos e critrios usados para a emisso desses juzos ; com a escolha de temas e interesses; com a relao entre o conhecimento histrico e os problemas e concepes dominantes da cultura do perodo em que foi escrito; com os processos ou argumentos utilizados para justificar uma interpretao histrica; com a temporalidade dos discursos de e sobre a literatura, inseridos em quadros de referncia de diferentes vises de mundo, nas quais se expressa a complexidade das formas de representao da realidade; com a escrita da histria literria como evento tambm histrico, cujos enunciados pagam necessariamente tributo ao momento de enunciao; com o sentido atribudo s formas com que se produz o discurso histrico de e sobre a literatura. a anlise desse discurso poderia inclusive enriquecer nossa compreenso sobre a configurao e o papel social dele, relacionando-o: com os programas de vida que comunidades humanas inventaram no passado e com as repre-sentaes que foram criadas para preencher seu imaginrio; ou com as justificativas necessrias para estas invenes, a ponto de, s vezes, pela imposio de crenas coletivas operadas socialmente, transform-las de possibilidades em necessidades.

    Tambm os pressupostos que constituem a fundamentao epistemo-lgica das representaes fazem parte da realidade da comunidade que os adota. se definirmos a realidade dentro ou a partir destes pressupostos, sempre que mudarmos nossas representaes e os objetos constitudos por elas, mudaremos tambm a realidade. [...]

    se nos afastarmos de uma concepo de Histria da literatura como o inventrio de uma continuidade cumulativa de textos, podemos tambm propor o estudo histrico dos conceitos e da terminologia empregados nos discursos de e sobre a literatura. Podemos investigar: as comunidades acadmicas e/ou literrias organizadas em torno de conceitos comparti-lhados; a organizao de campos a partir de conceitos comuns pesqui-sando sua durao, seu lugar, sua relao com outros campos; a mudana de conceitos, terminologias e quadros de referncia disciplinares, como indicativo possvel de mudanas nos critrios de objetividade (e, portanto, nos objetos); o mbito de sentido dos conceitos e terminologias em seu contexto de produo, e a diferena entre a recepo destes, naquele con-texto e em outros posteriores; a relao destas mudanas com o ambiente sociocultural em que se inserem, a partir do qual podem ser vistas como sintoma, efeito, causa, vestgio ou prenncio de algo; os termos e conceitos

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    cuja reiterada presena e aparente permanncia encobrem diferenas de contedo no seu emprego em diversos perodos; a genealogia, circulao, predominncia ou posio secundria de quadros conceituais e terminol-gicos; o conceito como uma forma de aglutinar e relacionar determinadas referncias vigentes em um momento histrico.

    Trata-se, como vemos, de um quase infinito leque de possibilidades, mesmo se tivermos como referncia corpus literrios j estabelecidos e canonizados, como os das literaturas brasileira e portuguesa. no que diz respeito s literaturas africanas de lngua portuguesa, esse campo de estudos ainda mais vasto, visto que se trata de sistemas literrios muito mais recentemente constitudos. Parece-nos que os esforos, at o presente momento, concentram-se ainda em inventariar uma continuidade cumulativa de textos, trabalho esse que se aproxima daquele que vtor Manuel de aguiar e silva propusera como objeto de estudo da historiografia literria. assim, mesmo com essa nossa contribuio e com as demais que elencamos no captulo 2, ainda resta um longo percurso a ser trilhado para que possamos pensar a literatura de Moambique de modo mais abrangente.

    Tambm Ren Wellek & austin Warren (1971) problematizaram o estudo da historiografia literria. Para eles, embora faamos a distino entre teoria literria, criticismo literrio e histria literria, essas reas se imbricam mutuamente. na histria literria, lembram os autores, no h fatos neutros: Os juzos de valor esto implcitos na prpria escolha dos materiais: na simples e preliminar distino entre livros e literatura, no maior ou menor espao consagrado a este ou aquele autor (ibidem, p.49). Porm, a ideia de que a histria literria pres-cinde da crtica baseia-se no fato de que aquela tem padres e critrios particulares: sustentam esses reconstrutores literrios que devemos penetrar no esprito e nas atitudes dos perodos passados e aceitar os seus padres, deliberadamente excluindo a intruso das nossas prprias opinies prvias (ibidem, p.50). Esse historicismo, que esteve em voga desde o sculo XiX, desconsidera a esttica da recepo, segundo a qual cada poca tem seu modo prprio de compreender e avaliar as produes literrias:

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    esse esforo de reconstituio histrica conduziu a centrar o interesse na inteno do autor, a qual supe-se pode ser estudada na histria do criticismo e do gosto literrio. [...] O autor serviu um objectivo seu con-temporneo; e no h necessidade, ou sequer possibilidade, de criticar mais extensamente a sua obra. Esse mtodo leva, assim, ao reconhecimento de um nico padro crtico: o do xito contemporneo. (ibidem, p.51-2)

    a obra, assim, lida dentro de seu contexto de produo, a partir do qual se pode inferir uma certa inteno autoral. Maria da Glria Bordini (1999?, p.4), por sua vez, pondera o seguinte:

    discutvel que o que acontece no teatro mental do escritor no permita ilaes atinentes a sua histria de vida, se a tese for a de que as men-talidades se conformam em meio a experincias vividas, eventos de ordem a mais imprevisvel, relaes concretas entre os seres humanos, objetos simblicos cuja construo requer meios tangveis de produo e circulao.

    ao fazer essa afirmao, a autora parte de uma reflexo sobre o uso dos acervos nos estudos de Histria da literatura Brasileira. nesses, possvel encontrar outros materiais, alm das obras literrias publica-das, que podem levar o pesquisador da literatura inferncia de modos de vida e comportamento dos escritores que acabariam por encontrar reflexos em suas obras. Mesmo tangendo apenas parcialmente os objetivos que traamos para esta etapa de nosso estudo, as afirmaes da pesquisadora levam-nos a considerar a quase total precariedade na qual se desenvolvem os estudos de histria das literaturas africanas de lngua portuguesa. no h, no Brasil, acervos que renam sequer as obras dos autores mais representativos dessas literaturas; essas esto dispersas pelas bibliotecas de algumas universidades, ou constituem acervos particulares dos estudiosos cujo acesso vetado maioria dos pesquisadores. assim, foroso reconhecer o relativismo (a reduo da histria literria a um conjunto de fragmentos descontnuos) ou o absolutismo (a restrio da obra literria ao seu carter universalizante) que permeiam os estudos que aqui se fazem.9

    9 Francisco noa, em nosso Exame de Qualificao, apontara algumas inconsistn-

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    Essas dificuldades j haviam sido previstas por Wellek & Warren (1971, p.53). Os autores indicam que a melhor estratgia, na his-toriografia literria, para evitar o relativismo ou o absolutismo o perspectivismo:

    devemos ser capazes de referir uma obra de arte aos valores do seu tempo e aos valores de todos os perodos subsequentes. uma obra de arte eterna (isto , preserva certa identidade) e histrica (quer dizer, passa por um processo de desenvolvimento que logramos descortinar). [...] O perspectivismo quer dizer que ns reconhecemos haver uma poesia, uma literatura, comparvel em todas as pocas, que se desenvolve e evolui, cheia de possibilidades.

    luiz Gonzaga Marchezan,10 retomando Wellek & Warren, lembra:

    a histria literria passa por um longo processo de depurao. visa apartar-se dos mtodos da histria geral, dos relativismos e absolutismos e encaminhar-se para um perspectivismo promissor. isto porque tem encontro marcado com um mtodo histrico que possa sistematizar as formas literrias, artsticas, dos textos literrios. [...] o mtodo histrico, para uma histria das formas literrias, deve absorver noes de teoria, a fim de fazer avaliaes (valoraes) com bases tericas, prticas, crticas.

    no caso especfico da literatura moambicana, como veremos, as contribuies para a sua historiografia provm de pessoas que esto ou estiveram muito prximas, temporal e espacialmente, da sua produo: o portugus Manuel Ferreira viveu vrios anos em cabo verde, angola e Guin, como membro das Foras armadas;11 Ftima

    cias, oriundas da limitao das fontes para o estudo da literatura moambicana no Brasil (2009 [informao verbal]), as quais procuramos corrigir por ocasio da escrita da tese. contudo, h que considerar que nem todos os pesquisadores brasi-leiros da literatura moambicana tm um acesso privilegiado como o que tivemos a informaes que circulam em Moambique e que, de certo modo, permitem retificar alguns dados que encontramos nas publicaes que nos chegam.

    10 Observaes feitas durante a orientao da tese, em maro de 2010. 11 as informaes biogrficas sobre Manuel Ferreira e Pires laranjeira foram colhidas

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    Mendona portuguesa, radicada h muitos anos em Moambique e atua como docente da universidade Eduardo Mondlane (uEM); o brasileiro Manoel de souza e silva foi professor da escola secundria em Moambique, entre 1978 e 1980, tendo atuado tambm como pro-fessor visitante da uEM de 2002 a 2004; e Jos lus Pires laranjeira, portugus, atualmente docente da universidade de coimbra, viveu alguns anos em angola, onde atuou tambm nas Foras armadas. Essa proximidade permite-lhes avaliar as obras em um contexto muito prximo ao de sua criao.

    vale lembrar, tambm, que esses autores falam a partir de um determinado local de cultura, carregado de concepes do mundo que condicionam a leitura literria. Jos lus Jobim (2005, p.43) lembra, a respeito, que

    o lugar sempre fonte de pr-concepes que, de alguma maneira, con-tribuem para a elaborao do nosso dizer, pois nele se situa o sistema de referncias desse dizer incluindo determinado universo de temas, inte-resses, termos etc. , sistema que sempre j estabelece um limite dentro do qual nosso campo de enunciao se circunscreve.

    assim, o pensamento sobre a literatura moambicana estar con-dicionado ao lugar de onde fala aquele que escreve sua histria. alm disso, lembra Jobim, a historiografia literria se configura a partir dos diferentes modos de conceber a literatura, os quais variam no tempo, historicamente. nos idos dos anos 1970 e seguintes, por exemplo, ga-nhou fora a ideia de que o texto literrio se basta por si s: o estudo das maneiras de pensar, das instituies, dos cnones e das prticas de leitura, bem como de outros referenciais externos obra literria, foram dis-pensados, colocados em segundo plano. Mais tarde, na dcada de 1990, esses tpicos voltaram a integrar os estudos literrios (ibidem, p.47-8).

    no dicionrio de autores de literaturas africanas de lngua portuguesa (Gomes & cavacas, 1997, p.238); sobre Manoel de souza e silva, atualmente docente da uni-versidade Federal de Gois, em seu currculo lattes; e sobre Ftima Mendona, no site da Faculdade de letras e cincias sociais da universidade Eduardo Mondlane (disponvel em: http://www.flcs.uem.mz. acesso em: 20 nov. 2008).

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    Escrever uma histria literria, portanto, uma tarefa ampla, ainda mais quando se trata de sistemas literrios emergentes, porque o ponto de partida de seus pesquisadores a constituio dos sistemas liter-rios de outras naes. segundo Jobim, para empreender um projeto inovador como esse e marcar sua diferena, sempre necessrio um referencial em relao ao qual se constri essa diferena (ibidem, p.46). no caso da literatura moambicana, podemos pensar que as recentes contribuies para sua historiografia tm por base os pro-cessos de formao das literaturas brasileira e portuguesa, bem como aqueles das outras naes de lngua portuguesa, nomeadamente de angola, cujo repertrio literrio destaca-se como um dos mais amplos no mbito dessas literaturas. vejamos, pois, como os historiadores da literatura moambicana enfrentaram essas questes.

    antes, porm, vale lembrar que a histria da literatura ocorre dentro de um processo e que o estabelecimento de fases ou perodos de desenvolvimento dentro um sistema literrio, embora tenha um carter essencialmente didtico, est subordinado sempre ao ponto de vista de um determinado crtico. Para conhecer mais completamente o desen-volvimento histrico da literatura nacional moambicana, preferimos observar as propostas dos diversos autores, de modo a conseguirmos, assim, um panorama mais abrangente dos perodos formativos dessa li-teratura. de acordo com Francisco noa, (2009 [informao pessoal]).12 talvez seja precipitado tentar definir perodos dentro dessa literatura, cuja consolidao ainda muito recente. noa prefere falar em fases, ter-mo que considera mais adequado para que percebamos as modificaes que se foram perpetrando na formao da literatura moambicana. de todo modo, est ainda por fazer um trabalho mais abrangente, mais completo, considerando, principalmente, que a histria da literatura deve abranger uma histria das formas literrias, conforme lembrava Marchezan (2010, p.2 [informao pessoal]).13 O que se tm, ainda, so propostas e contribuies valiosas para que possamos pensar a literatura moambicana em seu conjunto.

    12 informao veiculada, tambm, por ocasio de nosso Exame de Qualificao. 13 Observao feita durante o processo de orientao da tese, em maro de 2010.

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    Breve histria da literatura moambicana

    Os primeiros manuais de literaturas africanas de lngua portuguesa tratavam da histria dessas literaturas sem considerar suas especifici-dades nacionais. nesse sentido generalizante, a fim de localizarmos a literatura moambicana no contexto mais amplo das literaturas africanas de lngua portuguesa, que observaremos, inicialmente, a proposta do escritor e crtico portugus Manuel Ferreira (1987), em Literaturas africanas de expresso portuguesa.

    Em seguida, examinaremos os trabalhos de autores que se voltam exclusivamente para a literatura moambicana. dentre os poucos textos existentes no Brasil sobre a historiografia literria de Moam-bique, escolhemos fazer uma leitura comparativa das propostas de Ftima Mendona (1988), em Literatura moambicana: a histria e as escritas; Manoel de souza e silva (1996), no seu livro Do alheio ao prprio: a poesia em Moambique; e de Pires laranjeira (1995a e 2001), respectivamente, primeiro, no captulo intitulado Moambique: pe-riodizao, em Literaturas africanas de lngua portuguesa, e, depois, no artigo Mia couto e as literaturas africanas de lngua portuguesa. de notar que os textos so de natureza diversa: trata-se do livro de ensaios de Ftima Mendona; da tese de doutorado de Manoel de souza e silva; de um captulo do manual didtico de Pires laranjeira e de um artigo cientfico tambm de sua autoria. Todos os textos, porm, tratam do mesmo problema: apresentar em linhas gerais a produo literria de Moambique.

    O estudo de Manoel de souza e silva traa um perfil histrico da formao e consolidao da poesia moambicana luz dos fatos que engendram o complexo colonial de vida e pensamento (Bosi, 1994, p.13) em Moambique. O livro de Pires laranjeira, por sua vez, traa um panorama das literaturas dos cinco pases africanos de lngua por-tuguesa. desse, tomamos o vigsimo captulo, no qual o autor prope uma periodizao que divide a histria literria de Moambique em cinco perodos distintos. a ideia de uma periodizao da literatura moambicana fora desenvolvida anteriormente por Ftima Mendona, no ensaio que consideraremos aqui.

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    nosso objetivo conhecer melhor as questes referentes histo-riografia da literatura moambicana e, com isso, ampliar o nosso olhar sobre a produo literria de Mia couto, tentando compreend-la no mbito do processo de formao da literatura moambicana.

    Manuel Ferreira

    Manuel Ferreira (1987), ao examinar as literaturas africanas de lngua portuguesa em seu conjunto, reconhece quatro momentos distintos de produo literria, que podemos dividir em dois grupos: a) a literatura das descobertas e expanso; b) a literatura colonial, que ainda no podem ser consideradas africanas; c) a literatura de sentimento nacional; e d) a literatura de conscincia nacional, essas, sim, pilares da construo dos sistemas literrios nacionais dos pases africanos de lngua portuguesa. vejamos cada um deles, sob a ptica de Manuel Ferreira (1987).

    a) Literatura das descobertas e expanso: coincide com a literatura de viagens, produzida pelos portugueses a partir da empresa de expanso colonial, iniciada no sculo Xv. a obra de um Gil vicente ou [...] a de poetas do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, ao lado das coisas de folgar, foram marcadas pela Expanso no interior dos brbaros reinos (Ferreira, 1987, p.7). alm da poesia, a temtica africana es-teve presente tambm nas correspondncias, relatrios e tratados que cuidavam de informar os portugueses da metrpole sobre a realidade encontrada nas antigas colnias africanas.

    b) Literatura colonial:14 Manuel Ferreira (1987, p.11) distingue a

    14 ao falarmos em literatura colonial, vale referir o excelente estudo de Francisco noa (2003), imprio, mito e miopia: Moambique como inveno literria que, embora no sendo nosso objeto especfico de estudo por tratar de uma nica fase da histria da literatura moambicana, consiste num dos estudos mais profundos sobre o perodo literrio a que se refere. nele, o estudioso problematiza questes em torno dessa literatura, cuja denominao implica tanto num critrio histrico quanto numa esttica determinada. Para noa (2003, p.402), trata-se de uma litera-tura de contornos contraditrios: tanto nos aparece como a expresso enftica do etnocentrismo europeu como seu factor de questionamento. com a historicidade por si desenvolvida, passando do exotismo ao cosmopolitismo, do monovocalismo ao plurivocalismo, da afirmao categrica expresso oblqua, do esteretipo

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    literatura colonial das literaturas africanas de lngua portuguesa. a primeira mantm uma perspectiva eurocntrica, na qual o homem negro aparece como por acidente, por vezes visto paternalistamente, o que, quando acontece, j um avano, porque a norma a sua mar-ginalizao ou coisificao. na literatura colonial, o homem branco apresentado como um heri mtico, um desbravador que levaria a civilizao s terras inspitas do continente africano. a inferioridade do homem negro era ressaltada, baseada em teorias racistas como a de lvy-Bruhl,15 para quem o pensamento primitivo era algico ou pr-lgico, ou seja, anterior lgica.16

    segundo Manuel Ferreira, a literatura colonial teve incio no ltimo quartel do sculo XiX e conheceu seu apogeu nas dcadas de 20 e 30 do sculo XX, quando ganhou grande aceitao do pblico, movido pelo interesse pela temtica extica. Os autores, porm, esta-vam incapacitados para assumir um ponto de vista africano, devido poltica assimilacionista17 que desenvolveu Portugal junto s suas

    valorizao do Outro, das certezas s ambiguidades, do mito utopia, a literatura colonial no s perturbou o cnone, como, por isso tudo, estabeleceu a ponte para a emergncia de uma literatura nacional moambicana.

    15 Manuel Ferreira (1987, p.11) lembra que lvy-Bruhl renunciou sua tese pouco antes de morrer, em 1939.

    16 a questo no s do ndio como do negro em nossa cultura se coloca sob dois focos. um foco mais antigo era considerar que esses primitivos tinham uma mentalidade diferente da nossa, chamada pr-lgica, no-lgica porque antecede a lgica. isso foi defendido pelo etnlogo francs lucien lvy-Bruhl em seu livro a mentalidade primitiva, muito conhecido. O segundo foco defendia que o primitivo, principalmente o ndio e o negro, estavam ligados natureza e dela participavam. Tal participao era ao mesmo tempo arrimada s coisas e condu-zida por potncias msticas. Este era o ponto de vista de lvy-Bruhl (nunes & Benchimol, 2007, p.288).

    17 O assimilacionismo um processo no qual as diferenas socioculturais so su-peradas pela contaminao ou integrao de uma cultura pela outra. no caso da frica, chama-se assimilado ao grupo de africanos que o poder colonial atraiu para si, de modo a efetivar o processo de colonizao por uma poltica educacional que levava os africanos a defenderem os ideais da metrpole. Ftima Mendona (1988, p.34) observa o seguinte: Parecendo querer contrariar as intenes subjacentes poltica de assimilao, o grupo de jornalistas e colaboradores desta imprensa africana [surgida no perodo entre 1925 e 1945-47] endemarca-se, pelas suas

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    ex-colnias africanas, a partir da publicao do ato colonial, em 1930, que estabelece tambm o ensino de lngua portuguesa no pas (Gonalves, 2000, p.2).18

    c) Literatura de sentimento nacional: Ferreira coloca nesta categoria as produes literrias que surgiram paralelamente literatura colonial, no sculo XiX, mas cujos autores, embora no assumissem uma oposio aberta ao colonialismo, rejeitavam a exaltao do colono, divulgada pela literatura colonial. segundo Ferreira (1987, p.19), a instituciona-lizao do regime colonial dificultava o nascimento de uma conscincia anticolonialista ou outra atitude que no fosse a de aceit-la como con-sequncia fatal da histria. O fato de que esses escritores manifestavam um sentimento nacional de valorizao do mundo africano j constitui, para Ferreira, um grande avano, que conduziria as literaturas nacionais africanas, posteriormente, negritude ou africanidade.

    O autor lembra que, em Moambique, a fixao dos europeus tinha um ndice menor do que em angola; a imprensa tambm demorou mais a instalar-se nessa ex-colnia: enquanto cabo verde contava com o prelo desde 1842 e angola, desde 1845, em Moambique ele s

    posies crticas, do poder colonial. Estas posies assumem a forma de defesa das camadas econmica e socialmente desfavorecidas i.e. da populao negra de Moambique.

    18 a ocupao sistemtica de Moambique pelos portugueses est concluda em 1918, data que assinala o fim das campanhas militares, e nesta primeira metade do sculo XX que comeam a ser tomadas medidas de relevo para o desenvol-vimento de bases sociais que podem garantir a difuso do Portugus em todo o pas. assim, em 1930, atravs do acto colonial, criada a legislao que regula a relao de Portugal com as suas colnias, e tambm neste ano que criado o ensino indgena, atravs do qual a potncia colonial procura assegurar que as populaes locais tenham acesso instruo formal em Portugus. vale a pena assinalar que ainda nesta primeira metade do sculo XX que surgem os primeiros jornais literrios em lngua portuguesa nomeadamente O africano e O Brado africano que assinalam a existncia de uma elite moambicana local produtora de um discurso culto em Portugus. a partir deste perodo que se desenvolvem os centros urbanos no sul do pas, e que se inicia a colonizao massiva do territrio: em 1950 chegam a Moambique 50.000 colonos, e h notcia de que em 1960 chegaram mais 90.000. Estes podem ser considerados factores que favoreceram a difuso da lngua portuguesa neste pas (Gonalves, 2000, p.2).

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    chegou em 1854, o que dificultou a circulao da literatura.19 certo que o pas contara com a presena de Toms antnio Gonzaga, que l viveu em degredo entre os anos de 1792 e 1810; isso, porm, embora no tivesse passado despercebido ao movimento cultural da ilha de Moambique (antiga capital do pas na era colonial), no teve grande repercusso na formao de uma literatura nacional.

    Ferreira chama a ateno para o surgimento dos semanrios O Africano, em 1877; O Vigilante, em 1882; e Clamor Africano, em 1892, nos quais eram publicados os primeiros poemas de autores moambicanos. J no sculo XX, comearam a circular os peridicos O africano de 1908 a 1920 e O Brado Africano, em 1918, nos quais a literatura contava com mais espao o que tambm acontecia no Almanach de lembranas que circulou entre 1851 e 1932 , que recebia a contribuio de poetas da dispora portuguesa. destacam-se, nesse perodo, os irmos Jos e Joo albasini, fundadores de O Africano e O Brado Africano, e campos Oliveira, poeta da ilha de Moambique, considerado o primeiro poeta moambicano.20

    d) Conscincia nacional: Essa se forma a partir da literatura de sentimento nacional, conforme Ferreira (1987, p.40):

    cedo se esboa uma linha africana, irrompendo de um sentimento regional e em certos casos de um sentimento racial fundo, mas postulado ainda em formas incipientes [...]. de sentimento regional vai se tornar representativa do sentimento nacional, dando lugar a uma literatura ali-mentada j por uma verdadeira conscincia nacional e da a uma literatura africana, caracterizada pelos pressupostos de interveno, na certeza de que literatura pode ser atribuda uma particular participao social.

    19 um exaustivo levantamento da literatura que circulava nos peridicos oitocentistas das ex-colnias portuguesas foi feito por Helder Garmes (1999), que destaca, em Moambique, a contribuio de O noticirio de Moambique (1872-1873), do Jornal de Moambique (1873-1875) e do frica Oriental (1876-1877) para a circulao da literatura; nestes, eram publicados crnicas, contos, poemas e uma incipiente crtica literria; os textos eram de autores portugueses, tais como camilo castelo Branco, e de poetas de Moambique, como campos Oliveira.

    20 a poesia de campos Oliveira tinha como modelo a poesia romntica portuguesa, o que motivou Ferreira a cham-lo O mancebo e trovador campos Oliveira, ttulo de uma obra de Manuel Ferreira sobre o poeta (1985).

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    Em Moambique, essa literatura de conscincia nacional tem incio, na lrica, com a publicao de Sonetos (1943), de Rui de noronha, e na narrativa, com Godido e outros contos (1952), de Joo dias; esta obra apontada por Ferreira como a primeira narrativa moambicana.

    Outros estudiosos h, como veremos, que consideram a obra O livro da dor, de 1925, que rene contos de Joo albasini, como a primeira obra literria moambicana. Manuel Ferreira discorda: Embora a experincia de Joo albasini [...] ganhe o direito de ser aqui registrada, numa perspectiva da histria literria no alcanou qualidade intrnseca para se tornar um texto de valia (Ferreira, 1987, p.195). Embora o autor desqualifique o texto de albasini, insere uma nota ao leitor, afirmando no ter conhecimento exato da obra, pelo fato de no encontrar-se ela na Biblioteca nacional de lisboa. sua apreciao da pouca qualidade literria da obra deve-se, provavelmente, a outros comentaristas exter-nos, que ele reproduz em segunda mo.

    na narrativa, Ferreira destaca apenas as contribuies de lus Ber-nardo Honwana e Orlando Mendes, o que se justifica pelo recuo tem-poral desse esboo historiogrfico, publicado muito antes que se pudesse vislumbrar um sistema literrio mais consolidado em Moambique.

    Ftima Mendona

    a proposta de periodizao da literatura moambicana de Ftima Mendona (1988) foi uma das primeiras a circular no Brasil. Mendona reconhece trs perodos formativos: de 1925 a 1945/1947, da at 1964 e desse ano at 1975. assim como a proposta de Manuel Ferreira, a de Ftima Mendona tambm no contempla as produes do ltimo quartil do sculo XX em diante.

    a) 1 perodo: 1925-1945/1947. O primeiro perodo se estende desde 1925, com a publicao de O livro da dor, de Joo albasini. Mendona (1988, p.35) reconhece essa como uma das primeiras obras produzidas com inteno marcadamente esttica na literatura moambicana. a autora menciona tambm as produes de augusto conrado e de Rui de noronha este ltimo conta com abundante colaborao nos

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    peridicos, durante a dcada de 1930; seus poemas foram recentemente publicados, sob organizao de Ftima Mendona (noronha, 2006).

    Trata-se de um grupo de poetas cuja voz contrariava as inten-es subjacentes poltica de assimilao (Mendona, 1988, p.34), revelando posies crticas quanto ao poder colonial, ao defender as camadas mais pobres da populao (ou seja, os negros), sem, contudo, resolver as contradies do assimilado:

    ser assimilado implica abdicar de um universo cultural de que se herdeiro em benefcio de um outro, imposto como alternativa para o prestgio e ascen-so sociais. Esta opo produzir o conflito no resolvido. O assimilado j no (?) africano e nunca ser europeu. a sua funo na sociedade colonial definida pelos limites a que o poder o circunscreve. (ibidem)

    Mendona aponta que a poesia de Rui de noronha recebe, por parte da crtica moambicana, apreciaes desqualificantes no que diz respeito nacionalidade. segundo a autora, Orlando Mendes a considera como um patrimnio da literatura portuguesa, enquanto Rui Knopfli aponta nela caractersticas de uma africanidade irre-soluta (Mendona, 1988, p.35). O poema Quenguelquelz!,21

    21 durante o perodo de recluso, que vai do nascimento queda do cordo umbilical das crianas, o pai no pode entrar na palhota sob pretexto algum e ao amante da me de uma criana ilegtima vedado, sob pena de a criana morrer, passar nesse perodo defronte da palhota. O perodo de recluso, entre algumas famlias de ba-rongas, levado at ao aparecimento da primeira lua nova, dia de grande regozijo e em que a criana, depois de uma cerimnia especial denominada iandlba, aparece publicamente na aldeia, livre da poluio da me. // Quenguelequze!... .Quengue-lequze!... / Quenguelequzeee // Quenguelequzeee // na tarde desse dia de janeiro / um rude caminheiro / chegara aldeia fatigado / de um dia de jornada. / E acordado / contara que descera noite a velha estrada / Por onde outrora caminhara Guambe / E vento no achando a erva agora lambe /desde o nascer do sol ao despontar da lua, / areia dura e nua. // depois bebera a gua quente e suja / Onde o muli pousou o seu cachimbo outrora, / Ouvira, caminhando, o canto da coruja / E quase ao p do mar lhe surpreendera a aurora. // Quenguelequze!.... Quenguelequze!... / Quenguelequzeee // Pisara muito tempo uma vermelha areia, / E quela dura hora qual o sol apruma / uma mulher lhe deu numa pequena aldeia / um pouco de gua e fuma. // guelequzeee!... // descera o vale. O sol quase cansado / desenrolara esteiras / Que caram silentes pelo prado / cobrindo at distante as maaleiras... // Quenguelequ... // vinha pedir pousada. / Ficava

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    de noronha, apontado como um exemplo dessa viso extica do seu prprio mundo, assumida pelo escritor assimilado, como indica ildio Rocha: Fcil ver [...] o folclore visto por brancos, turistas de

    ainda distante o fim da sua jornada, / l muito para baixo, a terra onde os parentes / Tinham ido buscar os ouros reluzentes / Para comprar mulheres, pano e gado / E no tinham voltado... // Quenguelequze! Quenguelequze!... / surgira a lua nova / E a grande nova / Quenguelequze! ia de boca em boca / numa alegria enorme, numa alegria louca, / Traando os rostos de expresses estranhas / atra-vessando o bosque, aldeias e montanhas,/ loucamente... / Perturbadoramente... / danas fantsticas / Punham nos corpos vibraes elsticas, / Febris, / Ondeando ventres, troncos nus, quadris... / E ao som das palmas / Os homens cabriolando / iam cantando // Medos de estranhas, vingativas almas, / Guerras antigas / com destemidas mpias inimigas / E obscenidades claras, descaradas, / Que as mulheres ouviam com risadas / ateando mais e mais / O rtmico calor das danas sensuais. / Quenguelequze!... ... Quenguelequze!... // uma mulher de quando em quando vinha / coleava a espinha, / Gingava as ancas voluptuosamente / E posta diante do homem, frente a frente, / Punha-se a simular os conjugais segredos. / nos arvoredos / ia um murmrio elico / Que dava cena, luz da lua um qu diablico... / Queeezeee... Quenguelequzeee!... // Entanto uma mulher sara sorrateira / com outra mais velhinha, / dirigira-se na sombra montureira / com uma criancinha. / Fazia escuro e havia ali um cheiro estranho / a cinzas ensopadas, / sobras de peixe e fezes de rebanho / Misturadas... / O vento perpassando a cerca de canio / Trazia para fora um ar abafadio / um ar de podrido... / E as mulheres entraram com um tio. / E enquanto a mais idosa / Pegava criana e a mostrava lua / dizendo-lhe: Olha, a tua, / a outra erguendo a mo // lanou direita lua a acha luminosa / O estrepitar das palmas foi morrendo / a lua foi crescendo... foi crescendo / lentamente... / como se fora em branco e afofado leito / deitaram a criana rebolando-a / na cinza do monturo. / E de repente, / Quando chorou, a me arrebatando-a / ali, na imunda podrido, no escuro / lhe deu o peito / O pai ento chegou, / cercou-a de desvelos, / de manso a conduziu com os cotovelos / depois tomou-a nos braos e cantou / Esta cano ardente: / Meu filho, eu estou contente. / agora j no temo que ningum / Mofe de ti na rua / E diga, quando errares, que tua me / Te no mostrou lua. / agora tens abertos os ouvidos / Pra tudo compreender. / Teu peito afoitar impvido os rugidos / das feras sem tremer. / Meu filho, eu estou contente / Tu s agora um ser inteligente. / E assim hs-de crescer, hs-de ser homem forte / at que l cansado / um dia muito velho / de filhos rodeado, / sentindo j dobrar-se o teu joelho / vir buscar-te a Morte... / Meu filho, eu estou contente. / Meu susto j l vai. // Entanto o caminheiro olhou para a criana, / Olhou bem as feies, a estranha semelhana, / E foi-se embora. / na aldeia, lentamente, / O estrepitar das palmas foi morrendo... / E a lua foi crescendo... / Foi crescendo... / como um ai... / Quando rompeu ao outro dia a aurora / ia j lon-ge.., muito longe.., o verdadeiro pai... (noronha apud acha et al., 2003, p.193-7).

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    passagem, mesmo que meio negro o seu autor. conhecedor do rito por via de leituras e no pela vivncia, ficou do lado de fora a ver danas fantsticas [...] (Rocha apud Mendona, 1988, p.35).

    Mendona (1988, p.35-6) destaca, na poesia desse perodo, a con-vergncia de ndices reveladores de uma conscincia de ser diferente, da afirmao de pertena a um grupo tnico e social diferenciado do grupo que exerce o poder numa relao de colonizador versus colo-nizado. nessa produo, muitas vezes considerada como herdeira do romantismo portugus, vemos um eu lrico dividido entre o seu mundo e o mundo do outro contradio implcita no processo de assimilao. Para Mendona, a dicotomia romntica do eu ajustava-se s necessidades expressivas dos poetas assimilados.

    b) 2 perodo: 1945/1947-1964. um segundo perodo tem incio a partir de 1945-1947, quando alguns jovens escritores comeam a se rebelar com a dominao poltica, conforme explica Orlando Mendes (apud Mendona, 1988, p.37):

    ao passo que se intensificava a colonizao mental, verifica-se um despertar entre jovens, especialmente nas principais cidades, para uma nova tomada de posio cultural [...]. Este movimento constitudo por africanos inclua tambm descendentes de colonos, que assumiam atitudes de inconformismo com a poltica colonial [...]. O movimento solidariza-se com as aspiraes populares e apresenta-se como porta-voz intelectual do nacionalismo.

    Em 1947, a publicao de alguns poemas de Orlando Mendes na revista portuguesa Seara Nova indica o incio de uma forma mais au-tntica de literatura. Em 1948, nomia de sousa publica seu primeiro poema e, em 1948, morre o escritor Joo dias, deixando um conjunto de contos Godido e outros contos editados somente em 1952, pela casa dos Estudantes do imprio.

    segundo Mendona, esses acontecimentos so marcados pelas mudanas histricas que sucederam a segunda Guerra Mundial (1939-1945). Em Moambique, a literatura da dcada de 50 do sculo XX deixa entrever dois direcionamentos.

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    Parte dessa literatura deixa perceber a seduo pela ideia de uma sntese futura entre duas vises de mundo, duas formas de expresso: a africana e a europeia. [...] a outra parte inicia a afirmao de uma africanidade prxima da negritude... (Mendona, 1988, p.38)

    nesse perodo, segundo Mendona, que se d a primeira tentativa de criar um espao literrio nacional em Moambique. nele esto includas as publicaes da revista Itinerrio, do jornal O Brado Afri-cano j mencionado por Manuel Ferreira e da revista Msaho.22 Os nomes de destaque desse perodo so augusto dos santos abranches e Joo da Fonseca amaral, que trouxeram a Moambique as contri-buies dos movimentos modernista e neorrealista portugueses; os poetas nomia de sousa, Rui Knopfli, Rui Guerra,23 Jos craveirinha, Rui nogar e duarte Galvo (pseudnimo de virglio de lemos); e o pintor antnio Bronze. Mendona refere tambm as antologias de poesia moambicana publicadas em Portugal, das quais j tratara Manuel Ferreira.

    Esse perodo encerra-se em 1964, com as prises de alguns inte-lectuais, como Jos craveirinha, Rui nogar, Malangatana valente e lus Bernardo Honwana; segundo Ftima Mendona, a ltima publicao deste perodo Ns matamos o co tinhoso!, de Honwana, em 1964. as prises ocorreram em decorrncia do acirramento da

    22 Msaho foi um jornal literrio, editado por virglio de lemos, domingos de azeve-do e Reinaldo Ferreira, que circulou com apenas um nmero. Pires laranjeira nos d notcia da sua importncia: Os prprios promotores da folha potica tiveram conscincia, explcita na apresentao, de que esse primeiro e nico nmero ainda no tinha possibilidade de se constituir como artefacto de moambicanidade, no sentido de uma ideologia e esttica autonomizarem os textos num corpus literrio diferenciado dos outros de lngua portuguesa. [...] no se pode todavia menorizar Msaho, que, desde logo, pela escolha, em ttulo, do nome de um canto do povo chope, e a participao, com um poema cada, de nomia de sousa, virglio de lemos e Rui Guerra, deixou entrever preocupaes intelectuais de empenho na formao da literatura moambicana, procurando fundamentar-se nas razes da cultura tradicional e abrindo-se participao comprometida com um projecto de mudana popular (laranjeira, 1995a, p.268, grifos do autor).

    23 Rui alexandre Guerra coelho Pereira, conhecido diretor de cinema brasileiro, nas-ceu em Maputo, Moambique, em 1931, e radicou-se no Brasil a partir de 1958.

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    represso poltica colonial, que focava os movimentos de libertao j ento organizados nas ex-colnias portuguesas. Juntamente com a priso das vozes ento representativas desses movimentos, a Polcia internacional e de defesa do Estado (Pide) instaurou um clima de policiamento ideolgico, reprimindo todas as manifestaes favorveis aos movimentos libertrios.

    c) 3 perodo: 1964-1975. Ftima Mendona (1988) reconhece, a partir de 1964 (quando se inicia a campanha de libertao da Frente de libertao de Moambique [Frelimo]), trs linhas de fora na literatura moambicana:

    i. a literatura produzida nas zonas libertadas e em que visvel o reflexo directo da aco ideolgica da Frelimo (ibidem, p.40). Essa literatura, na qual se sobressai a poesia de combate, fora produzida dentro dos quadros da luta armada; sua inteno a militncia poltica e o comprometimento social. Para Mendona, no se trata de uma literatura de menor valor literrio, ou ape-nas de circunstncia, visto que no se pode considerar a guerra de libertao nacional como um evento circunstancial ela, ao contrrio, parte integrante da histria da emergente nao moambicana.24

    24 Tratar da poesia de combate implica sempre, at onde temos visto, um posi-cionamento poltico por parte da crtica. no se pode dizer que se trata de uma literatura esteticamente menor sem sofrer algum tipo de represlia. Tomemos um exemplo. segundo nos informa Joo Pinto, do Jornal de angola (2008), o escritor angolano Jos Eduardo agualusa declarou, em entrevista publicada no semanrio angolense, em maro de 2008, que agostinho neto, primeiro presi-dente de angola, era um poeta medocre e quem o tinha em conta de grande poeta no conhecia nada de poesia. Esta afirmao foi recebida no como crtica literria, mas como crtica poltica: a escrita no pode servir para humilhar, banalizar, diabolizar os cones, heris, mitos, deuses ou divindades, afirmava Joo Pinto no Jornal de angola (2008). no mesmo peridico, Pires laranjeira foi mais alm: agualusa saiu chamuscado e, depois, queixou-se de que, aproximando-se as elei-es em angola, se tratava de uma intimidao, sobretudo porque um universitrio angolano da rea do direito punha a hiptese (absurda, verdade) de ele poder ser responsabilizado criminalmente por atentar contra o nome de uma figura icnica do Estado e da nao. [...] Eu permito-me aqui uma profecia em relao a agualusa:

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    ii. a literatura produzida nas cidades por intelectuais que, em ge-ral, assumem posies ideolgicas de distanciamento do poder colonial (ibidem, p.41). nomes representativos desta vertente so Orlando Mendes, Rui Knopfli, Glria de santanna, Jorge viegas, sebastio alba e outros. nesse perodo que surge a revista Caliban:

    a prpria simbologia do nome caliban faz que possamos interpretar a aco destes cadernos como uma tentativa consciente de adeso a um espao moambicano representado emblematicamente pela imagem do escravo que se apropria da lngua do senhor. (Mendona, 1988, p.42)

    na Beira, cidade natal de Mia couto, surge tambm, nessa poca, a revista Paralelo 20 nela circulava uma literatura em que a cliva-gem produzida pelos acontecimentos de 1964 apenas funciona exte-riormente (ibidem, p.42). O poeta e jornalista Fernando couto, pai de Mia couto, juntamente com nuno Bermudes, uma das figuras que dinamizavam a vida cultural na Beira, promovendo a divulgao de autores moambicanos por meio da criao das colees Poetas de Moambique e Prosadores de Moambique.

    na histria da literatura angolana, daqui a dois ou trs sculos, continuar a constar, em grande plano, a poesia de agostinho neto, como algo matricial e tutelar. E, comparada com a obra de neto, Pepetela, luandino, uanhenga, Maimona, Ruy duarte de carvalho, Mena abrantes ou Manuel Rui, a de agualusa ter sempre direito a trs ou quatro pargrafos a menos ou, ainda, a uma referncia breve na histria da literatura portuguesa. creio que esse o verdadeiro drama de agualusa: ser menos representativo do que se julga e apostar na raiva lusitana contra o MPla de agostinho neto, de que ele prprio um dos ateadores [...]. s para espritos cabotinos que a poesia de neto ser medocre. E as suas so frases tpicas de um cabotino, que o dicionrio define do seguinte modo: cmico ambulante [] pessoa presumida e que gosta de ser o centro das atenes, ostentando, com modos teatrais, qualidades que a maior parte das vezes no tem (laranjeira, 2008). Embora haja muitos estudos que abordam as literaturas africanas de lngua portuguesa do ponto de vista da esttica, do artesanato de palavras, fatos como esse por vezes levam a juzos sobre essas literaturas que fogem natureza especfica do texto literrio.

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    iii. a literatura produzida para afirmar a ideologia colonial na sua expresso luso-tropicalista25 (ibidem, p.43). nesse conjunto, encontram-se as publicaes de Eduardo Paixo, Rodrigues Jnior e agostinho caramelo; para elas que se volta o crtico amndio csar, a fim de desenvolver a tese da existncia de uma literatura regionalmente moambicana integrada na litera-tura portuguesa, como convinha ao luso-tropicalismo (ibidem). Para Mendona, trata-se de um aposto literatura colonial, com preocupao exclusivamente esttica, que veiculava ainda a ide-ologia colonial. Esta literatura no encontrar ecos na produo literria posterior independncia de Moambique (aos 25 de junho de 1975).

    Ftima Mendona (1988, p.44) encerra sua contribuio para o periodismo literrio de Moambique lembrando que as novas gera-es de escritores, nas quais se inclui Mia couto, sero herdeiras da metfora e da parataxe de craveirinha, do verso seco e angustiado de Knopfli, da negritude militante de Kalungano.

    Manoel de Souza e Silva

    a tese de Manoel de souza e silva (1990), Do alheio ao prprio: a poesia em Moambique, no pretende propor uma periodizao da literatura moambicana, visto que se restringe produo po-tica. ainda assim, ela constitui-se em excelente contribuio para pensarmos essa literatura. silva percorre a literatura moambicana desde a sua origem, apresentando-a sempre luz do fato colonial em Moambique, que no pode absolutamente ser obnubilado, visto ser

    25 O luso-tropicalismo uma teoria que assume a totalidade do fenmeno da colo-nizao portuguesa nos trpicos como objecto de estudo, tentando racionalizar a emergncia de uma sociedade civil a partir de um aglomerado heterogneo, plural do ponto de vista tnico-cultural, mas condicionado por um poder econmico exterior e por uma afirmada especfica concepo lusada do mundo e da vida (adriano Moreira, 2005, p.657). O pioneiro da teoria luso-tropicalista o escritor Gilberto Freyre, que a expressa no livro casa grande e senzala, em 1933.

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    a obra literria produto e expresso de uma dada sociedade, num dado momento da sua histria.

    antes de propor a sua classificao dos perodos pelos quais passou a poesia moambicana, silva menciona outras tentativas nesse sentido: a de Frantz Fanon e a de Mrio Pinto de andrade.

    Frantz Fanon (apud silva, 1996, p.21-2) prope trs momentos decisivos:

    a) assimilao dos valores estticos do colonizador.b) constatao correspondente ao que se conhece pela desig-

    nao genrica de negritude. Marcada pela lamria e portadora de um forte carter catrtico. Produo consentida e, at, estimulada pelo colonizador.

    c) combate a produo literria volta-se contra os valores coloni-zados e busca meios para resistir ao sufocamento cultural e poltico.

    Mrio Pinto de andrade (apud silva, 1996, p.22) constata tambm trs momentos:

    a) Negritude entendida como negao da assimilao, ou seja, em que ocorre a superao do primeiro tpico da diviso proposta por Fanon.

    b) Particularizao Os poemas precisam os contornos nacionais e incidem mais profundamente no real social.

    c) Combate as balas comeam a florir, no dizer do poeta mo-ambicano Jorge Rebelo.

    silva (1996, p.22) faz notar que tanto a contribuio de Fanon quanto a de Mrio de andrade enfatizam a produo literria na sua relao com o sistema colonial. de ambas pode-se depreender que a maior conscincia do colonizado, em seu enfrentamento com o colo-nizador, implica transformaes da sua forma de perceber e expressar atravs do objeto literrio e/ou artstico.

    silva apresenta tambm a tentativa de Orlando Mendes de estabe-lecer algumas etapas na constituio da poesia moambicana:

    a) Represso cultural e resistncia corresponde literatura de assimilao.

    b) nacionalismo e literatura corresponde aos anos 40 e 50.c) literatura de protesto Ocupa-se dos anos 60 e 70.

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    d) literatura de confrontao Poesia produzida no meio urbano, nos anos 70.

    e) literatura de ruptura corresponde literatura de combate.f) literatura em liberdade Produo ps-independncia (1975).

    (Mendes apud silva, 1996, p.22).Essa diviso, conforme aponta silva (1996, p.23), no menciona

    a negritude, passando ao largo de algumas evidncias, tais como a antologia Poesia negra de expresso portuguesa, organizada por Mrio de andrade e Francisco Jos Tenreiro, em que comparecem alguns poemas de nomia de souza que, pela temtica, aproximam-se do movimento da negritude.

    a proposta de silva de que a poesia moambicana divide-se em cinco etapas fundamentais:

    a) O Eco Rebelde. Busca dos nexos existentes entre o projeto de ocupao colonial ocupao fsica e aquilo que se conhece como assi-milacionismo e suas relaes com a poesia produzida pelos colonizados.

    b) negros de Todo o Mundo, o que isto?! Rastreamento de algumas coordenadas gerais do Movimento da negritude, sua consti-tuio e concretizao nas ex-colnias portuguesas e, especificamente, em Moambique.

    c) a Ptria Parida. Exame das contradies e da srie de pol-micas que envolvem o conceito de literatura nacional no contexto da colonizao.

    d) da Polana Mafalala. Tentativa de exame da formao/consolidao da poesia moambicana, tomando por base poetas nem sempre bafejados pela unanimidade que concorrem para a afirmao e independncia, em nvel literrio, de Moambique.

    e) O Troco da Troca. leitura da poesia produzida na situao de guerra de guerrilha, tentando estabelecer sua vinculao com as coordenadas polticas da Frente de libertao de Moambique (Fre-limo), com os mecanismos de expropriao dos meios de expresso do colonizador e sua utilizao contra a opresso colonial, sua rebeldia radical na ruptura com a viso colonialista e, mais que tudo, procu-rando expor sua profunda ligao com o homem, a terra e a natureza de Moambique. (ibidem, p.24-5)

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    silva procura integrar leitura da poesia moambicana as principais questes histricas que conformaram a produo literria moambi-cana: o assimilacionismo, a negritude, a discusso da nacionalidade literria, o processo de independentizao. seu vis passa sempre pela relao entre a poesia e a situao colonial ou o fim dessa.

    Pires Laranjeira

    Pires laranjeira (1995a; 2001) tem sido, talvez, o pesquisador que mais se dedicou tarefa de tentar apreender as literaturas africanas de lngua portuguesa em seus momentos decisivos (parafraseando can-dido). Os resultados de suas reflexes nos dado, respectivamente, em dois momentos: em um captulo de livro o manual Literaturas africanas de lngua portuguesa, e num artigo publicado na Espanha, na Revista de Filologa Romnica, intitulado Mia couto e a literaturas africanas de lngua portuguesa.

    Em sua proposta inicial de periodizao da literatura moambicana, Pires laranjeira (1995a) prope uma diviso da historiografia literria moambicana em cinco perodos distintos: incipincia, Preldio, Formao, desenvolvimento e consolidao.

    a) Incipincia. apesar das observaes de Pires laranjeira estarem em grande parte apoiadas nas reflexes de Ftima Mendona, o autor discorda dela no que se refere ao marco inicial da literatura moambica-na. Para Ftima Mendona, como vimos, a obra inaugural da literatura moambicana seria O livro da dor, de Joo albasini, publicada em 1925. laranjeira, entretanto, no chega a contrapor-se a ela em termos reais. dizemos isso porque impossvel identificar, afinal, qual o ponto de partida dessa literatura para Pires laranjeira: seu texto inicia-se com uma aluso ao aparecimento de Moambique como tema num poema pico do jesuta Joo nogueira (sculo Xvii) e, depois, em poemas de Toms antnio Gonzaga que, exilado do Brasil em 1792 por sua impli-cao na inconfidncia Mineira, veio a falecer na ilha de Moambique em 1819. lembremos que Manuel Ferreira j havia aludido presena de Gonzaga na ilha de Moambique, sem que isso tivesse, contudo, alguma relevncia. Pires laranjeira, porm, inclui essas manifestaes

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    no primeiro perodo literrio por ele definido, que recebeu o nome de Incipincia. segundo o autor, esse perodo teria suas razes no incio da permanncia dos portugueses em Moambique (lembramos que vasco da Gama aportara em Moambique em 1497).

    Ora, segundo antonio candido (1971, p.23), a existncia de um sistema literrio pressupe um conjunto de caractersticas que ultra-passam os dados internos da obra (lngua, imagens, tema). necessrio que se identifique um conjunto de autores conscientes do seu papel, um conjunto de receptores (pblico) e um mecanismo transmissor (uma linguagem comum). O fato, portanto, de ter Moambique aparecido como tema, seja na obra de Joo nogueira, seja na de Toms antnio Gonzaga, a nosso ver, no significa que possamos recuar as conside-raes sobre a literatura moambicana a ponto de incluir a obra desses autores no poderamos consider-las nem mesmo como manifes-taes literrias nacionais. at mesmo porque a produo do ltimo, como se sabe, seguiu os padres do movimento rcade europeu, que lhe serviu de modelo ao compor as Liras.

    Pires laranjeira destaca, nesse perodo inicial, a produo oitocen-tista de campos Oliveira (cujos escritos dispersos foram publicados nos anos 60, 70 e 80) e tambm o surgimento de peridicos anteriores a O Brado Africano (1918), nica publicao da imprensa referida por Pires laranjeira. lembramos, a respeito, a existncia de vrias outras publicaes que se iniciaram com a introduo do prelo em Moambique (1854), tais como o Boletim Oficial (1854) e o Almanach de Lembranas (que circulou nas colnias portuguesas de 1851 a 1932), que j ento publicavam textos poticos de autores moambicanos.

    b) Preldio. O segundo perodo delineado por Pires laranjeira denomina-se Preldio e inicia-se com a publicao, em 1925, de O livro da dor, de Joo albasini. Esse perodo estende-se at o fim da segunda Guerra Mundial (1945), incluindo a publicao dos poemas de Rui de noronha26 no jornal O Brado Africano, depois publicados postumamente em recolha duvidosa27 na obra Sonetos (1946).

    26 surge ET ambula; Quenguelequze. 27 duvidosa por ser incompleta e censoriamente truncada, [...] no faz juz real

    obra do poeta (laranjeira, 1995a, p.257).

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    Pires laranjeira considera esses dois primeiros perodos como um tempo de preparao para a posterior formao de uma literatura que se poderia chamar efetivamente de moambicana.

    c) Formao. O terceiro perodo por ele delineado, de Formao, vai de 1945/1948 (as fontes divergem) at 1963. Pela primeira vez, uma conscincia grupal instala-se no seio dos (candidatos a) escritores, tocados pelo neo-realismo e, a partir dos anos 50, pela negritude (laranjeira, 1995a, p.260). delicada e controversa, tal afirmao traz-nos vrias questes. no nos parece que nomia de souza, Jos craveirinha, Rui nogar, Rui Knopfli e Orlando Mendes, apontados entre outros como autores significativos desse perodo, sejam um grupo de candidatos a escritores.

    laranjeira aponta, ainda nesse perodo, o surgimento da primeira antologia da poesia moambicana, organizada, segundo ele, por lus Polanah e publicada em 1951 sob o ttulo de Poesia em Moambique. Em observao de rodap, laranjeira notifica aos leitores que a organizao dessa antologia por vezes atribuda a Orlando de albuquerque e vtor Evaristo, que, segundo ele, teriam feito apenas a apresentao. no pre-fcio da Antologia da Nova Poesia Moambicana, Ftima Mendona e nlson sate (1994) apontam para a existncia de duas antologias, tendo sido a primeira realmente organizada por Orlando de albuquerque e vtor Evaristo. lus Polanah, segundo os autores, teria organizado outra antologia, publicada em 1960, cujo ttulo na capa Poetas de Moambi-que. a semelhana entre os ttulos Poesia em Moambique e Poetas de Moambique e o fato de terem sido ambas as antologias publicadas em lisboa e pela mesma casa editora a casa dos Estudantes do imprio talvez tenham gerado a confuso a que se referia Pires laranjeira.

    d) Desenvolvimento. Esse quarto perodo apontado por Pires la-ranjeira estender-se-ia do incio da luta armada de libertao nacional (1964) at a independncia (1975), com uma produo de carter marcadamente poltico e revolucionrio. datariam desse perodo algumas obras referenciais da literatura moambicana, a saber: Ns matamos o co tinhoso!, de lus Bernardo Honwana, publicada em 1964; Chigubo, de Jos craveirinha, tambm de 1964; Portagem, de Orlando Mendes, de 1966; a revista Caliban, em 1971 e, no mesmo

  • 52 ANA CLUDIA DA SILVA

    ano, o primeiro volume da antologia Poesia de Combate, editado pela Frelimo. Por fim, teramos, em 1974, a publicao de Karingana ua karingana, uma recolha de poemas de Jos craveirinha.

    e) Consolidao. laranjeira aponta, por fim, um ltimo perodo, que seria o de Consolidao da literatura moambicana. Esse corresponderia produo ps-independncia e se encerraria em 1992, com a publicao de Terra sonmbula, de Mia couto,28 o qual coincidiria com a abertura poltica do regime. autores representativos desse perodo seriam Rui nogar, Mia couto, ungulani Ba Ka Khosa, Hlder Muteia, Pedro chissano, Juvenal Bucuane e outros. Teria surgido, ainda nesse tempo, a revista Charrua, com oito nmeros publicados. a publicao de Raiz de orvalho (couto, 1983) e da revista Charrua, segundo laranjeira, abriria novas perspectivas para a literatura moambicana, que culminariam com o livro Vozes anoitecidas, de Mia couto (1986).

    a partir da, estava instaurada uma aceitabilidade para a livre criativi-dade da palavra, a abordagem de temas tabus como o da convivncia das raas e mistura de culturas, por vezes parecendo antagnicas e carregadas de disputas (ind