observatorio polticas culturais

Upload: juan-poblete

Post on 06-Jul-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    1/276

    POLÍTICAS CULTURAISPARA A DIVERSIDADE:LACUNAS INQUIETANTES

    20ed.

     Minoriastramas e urgências transcontinentais

     Para além da diversidadeo comum, revoltas e emoções nas ruase nas redes

     Proliferação de falas e falantesinternet: apogeu ou novos rumosda diversidade?

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    2/276

    2   OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    3/276

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    4/276

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    5/276

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    6/276

    Centro de Memória, Documentação e Referência Itaú Cultural

    Revista Observatório Itaú Cultural - N. 20 (jan./jun. 2016). – São Paulo : ItaúCultural, 2007-.

    Semestral.

      ISSN 1981-125X (versão impressa)  ISSN 2447-7036 (versão on-line)

    1. Política cultural. 2. Políticas públicas. 3. Diversidade cultural.

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    7/276

    expedienteREVISTAOBSERVATÓRIO

    Editor

    George Yúdice

    Conselho editorial Luciana Modé  Marcel Fracassi

    Projeto gráfico Marina Chevrand / Serifaria

    Design Serifaria

    Produção gráfica  Lilia Góes

    Imagens Mônica Rubinho

    Ilustração André Toma

    Supervisão de revisão Polyana Lima

    Revisão (terceirizada) Karina Hambra Rosana Brandão

    Tradução Marisa Shirasuna

    EQUIPE ITAÚCULTURAL

    Presidente Milú Villela

    Diretor Eduardo Saron

    Superintendenteadministrativo Sérgio Miyazaki

    NÚCLEO DEINOVAÇÃO /OBSERVATÓRIO

    Gerente Marcos Cuzziol

    Coordenação Luciana Modé 

    Produção Ediana Borges Lima Marcel Fracassi

    NÚCLEO DECOMUNICAÇÃO ERELACIONAMENTO

    Gerente Ana de Fátima Sousa

    Coordenação de arteJader Rosa

    Curadoria de imagens André Seiti

    Produção editorial Raphaella Rodrigues

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    8/276

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    9/276

    OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL:há dez anos exercitando e fomentando um olharatento às dinâmicas da cultura 

    Observar a cultura é identificar, enten-der e, quem sabe, antecipar os mais diversosfenômenos – semelhantes apenas no que dizrespeito ao seu estado de constante trans-

    formação. Exercitando desde 2006 esseolhar atento às dinâmicas da cultura – ouàs dinâmicas das mentalidades, das tecno-logias, das instituições e dos demais elemen-tos que a compõem –, o Observatório ItaúCultural  vem, também ele, se redesenhandoao longo dos anos.

    Seja por meio de encontros, seja apoian-do a produção de pesquisas acadêmicas,seja desenvolvendo produtos – como umarevista semestral e a coleção Os Livros doObservatório, ambos disponibilizados tan-to em formato impresso quanto digital –, oprograma sempre visou reunir e potencia-lizar as ideias de profissionais que pensam agestão e as políticas culturais em diferentes

    contextos. De um tempo para cá, no entanto,esse olhar se ampliou, e hoje o Observatório também se aproxima daqueles que de fato

     fazem a cultura, como artistas, coletivos eprodutores que lançam mão das ferramentas

    disponíveis – ou as inventam – para consoli-dar seus projetos.

    Empenhado na formação de profissio-nais da área, o programa oferece – desde 2009,

    por meio de uma parceria com a Universidadede Girona (Espanha) – o Curso de Especiali-zação em Gestão e Políticas Culturais. Alémdessa iniciativa – gratuita e com caráter depós-graduação –, o Observatório realiza a Se-

    mana de Gestão e Políticas Culturais, cursolivre que já contribuiu para a capacitação deagentes e gestores do setor da cultura em ci-dades de todas as regiões do país.

    Por causa, em grande parte, do adventode novas tecnologias – que agilizam processos,reciclam demandas, pulverizam fronteiras eparecem acelerar os ponteiros (ou os dígitos)do relógio –, a área cultural tende a se trans-formar num ritmo cada vez mais veloz. É bemprovável que as mudanças ocorridas nos úl-timos dez anos, portanto, sejam apenas umaamostra do que está por vir na próxima déca-da – e nos próximos desafios do Observatório.

    Itaú Cultural

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    10/276

    Há quase 30 anos, a diversidade cul-tural foi introduzida nas políticas públi-cas em âmbito internacional pelo DecênioMundial para o Desenvolvimento Cultural(1988-1997), criado pela Unesco. Há 20 anos,saem os relatórios-chave que estabelecem aimportância da diversidade cultural comofundamento do desenvolvimento: o relatórioNossa Diversidade Criadora, de Javier Pérez

    de Cuéllar – que trata das novas perspectivassobre as relações da cultura com o desenvol-vimento e fornece subsídios para ajudar ospovos do mundo a abrir seus próprios cami-

    nhos sem perder a identidade e o sentido de

    comunidade –; e, em 1998, o Relatório Mun-dial sobre a Cultura: Cultura, Criatividadee Mercados. Em 2000, a Unesco publica oInforme Mundial sobre a Cultura: Diversi-dade Cultural, Conflito e Pluralismo. Há dezanos, é lançada a Convenção para a Proteçãoe Promoção da Diversidade das ExpressõesCulturais, sobre a qual acaba de ser publica-do o relatório de uma década do desenho de

    políticas culturais ao redor do mundo parapromover a diversidade.1

    Uma leitura cuidadosa desse relatóriorevela que, além da aclamação dos avan-ços – a maioria novas políticas culturais

    e a incorporação da cultura em planos dedesenvolvimento–, o tom continua sendo

    aspiracional, exatamente como quando sur-giu o conceito.

    Embora muitos tenham reformado ourevisitado suas políticas culturais e criado no-vos mecanismos e medidas como resultado,ainda mais progresso é necessário para queos objetivos ambiciosos da Convenção sejamatingidos. Em particular, o estabelecimento demodelos participativos entre a sociedade civil

    e os funcionários públicos a fim de produzirevidência sólida para a monitorização de po-líticas e a avaliação de impacto (p. 3).

    Dando prosseguimento, o relatórioexplica que: 1) a equidade de gênero nãoaumentou no conteúdo da mídia nem naparticipação das mulheres nas decisões;2) é insuficiente a inclusão dos grupos vul-neráveis nas indústrias culturais para lo-grar desenvolvimento que seja econômicae culturalmente sustentável; 3) existe umainsuficiência de cooperação entre governose organizações da sociedade civil; 4) cons-tata-se uma grande lacuna entre os princí-pios e ideais da Convenção e a realidade arespeito da mobilidade de artistas e atoresculturais do sul global, quer dizer, a respei-to da circulação de expressões dos paísesmédios e pequenos ou menos potentes; 5) o

    crescimento no comércio cultural dos paísesem desenvolvimento se deve, na sua maioria,

    aos leitores

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    11/276

    aos produtos e serviços culturais da Chinae da Índia; 6) o crescimento no acesso aosmeios e na multiplicação da escolha não querdizer que os conteúdos disponíveis nessesmeios são mais livres; 7) o maior número de

    plataformas na web não garante a maior di-

    versidade de conteúdos e expressões.

    Pode-se dizer que não existe país quetenha conseguido a equidade. E isso diz res-

    peito a uma premissa fundamentalmenteculturalista: que o reconhecimento do va-lor cultural dos diversos grupos serve comoplataforma para a reivindicação de direitos.Mas o campo em que opera essa premissaculturalista está atravessado por muitasforças – econômicas, políticas, tecnológicas,

    religiosas etc. – que não necessariamentecompartilham a importância outorgada àdiversidade. Ou o valor desse conceito ficanegociado no complexo campo de forças.Gustavo Lins Ribeiro argumenta que, por umlado, as grandes potências capitalistas e asorganizações intergovernamentais que cria-ram veem “a diversidade cultural e o respeitoà diferença [...] como um meio para a obten-ção de concordância e governança ou comouma estratégia de mercado”. Por outro lado,os intelectuais acadêmicos, as organizações

    da sociedade civil e os movimentos sociais“defendem e promovem a difusão de visões

    de heterogeneidade, heteroglossia, diversi-dade cultural e de fortalecimento dos atores

    locais”,2 mas esses dois lados interatuam enegociam, como quando um projeto de sal-vaguarda da floresta ou inclusive de tradiçõesancestrais é financiado pelo Banco Mundial.

    Essa interação e negociação comple-xa, em contextos econômicos e políticosvariáveis, explica em parte o porquê de os

    programas de integração da cultura nos pla-nos de desenvolvimento sustentável seremfragmentários, inclusive os modelos maiscitados, como os pontos de cultura no Brasile o Plano de Desenvolvimento de Medellín2012-2015, que inova ao incluir a cultura emrelação transversal com outras dimensõesdo desenvolvimento, como educação, saú-de, urbanismo, mobilidade etc. Mas, segundoinformação de agosto de 2015, o Brasil tem4.500 pontos de cultura para uma populaçãode 205 milhões de habitantes, e Medellín temparques bibliotecas em 80 dos 120 municí-pios. Trata-se de importantes avanços, masainda distantes de ser abrangentes.

    Tendo em conta esse pano de fundo,este número da  Revista Observatório temcinco tópicos de destaque: minorias, novocenário midiático, práticas do comum e mo-

    vimentos sociais, cultura brega e patrimônioe outros rumos para a diversidade.

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    12/276

    12   OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

    1. As tramas das minorias: a urgênciade outros paradigmas para adiversidade

    Como resenhamos brevemente, umapremissa fundamental do discurso da di-versidade cultural é que o reconhecimentoda cultura dos diversos grupos facilitará a

    reinvindicação de direitos. Nas entrevistasque fez Tracy Devine Guzmán com ativistasindígenas de Peru, Brasil, Austrália e Índiaé evidente que essa premissa não funciona.

    Por exemplo, Lorna Munro, da Austrália,comenta que: “A política ‘multiculturalista’

    é uma retórica que se usa para a Austrálianão ser percebida como a nação racista que

    é [...]. Às vezes, os termos ‘multiculturalis-

    mo’ e ‘diversidade’ não incluem os povosaborígenes na prática; podem ser usadospara cumprir com requisitos, mas não para

    ocasionar uma diversidade verdadeira”. Deforma semelhante, a cidadania na Europaé um fenômeno muito complexo que nãocorresponde à realidade atual de migrações.Toby Miller assinala que, por um lado, osgovernos legislam políticas de diversidade,mas, por outro, impõem cotas de empregoàs minorias migrantes. O liberalismo nãoconsegue honrar seus próprios princípios.Essas políticas de tolerância às diferençasculturais não funcionam quando se acreditaque apresentam ameaças à coesão nacionale à segurança. A crise traz pouca tolerância –o que se pode dizer também sobre os EstadosUnidos. Miller contrasta a situação europeiacom a latino-americana, na qual se criaram

    novas constituições e novos acordos que re-conhecem a sua composição pluricultural

    e a importância dos direitos humanos e dasociedade civil na governança.3 E, no Equa-dor e na Bolívia, adotou-se como princípioorientador da constituição o sumak kawsay,ou o bem viver, que significa que “indiví-duos, comunidades, povos e nacionalida-des aproveitem efetivamente seus direitos

    e exerçam responsabilidades no âmbito domulticulturalismo, respeito à diversidade e

    convivência harmoniosa com a natureza”.4 Mesmo assim, Catherine Walsh argumentaque, inclusive países da chamada maré rosa,como o Equador, entram em contradições aoreconhecer os direitos ancestrais e ao mes-

    mo tempo optar por um modelo extrativistade desenvolvimento que ameaça a vida e a

    cultura dos povos indígenas.

    2. O novo cenário midiático e ageopolítica da computação: osdesafios das políticas públicas

    George Yúdice argumenta que o novocenário midiático vai além do discurso dadiversidade – ou já inclui esse discurso, massó em relação à distribuição de acesso à in-ternet e às redes sociais, o que não garante

    acesso à justiça social. A diversidade é partedo modelo econômico novo-capitalista im-perante, como no caso da organização Inter-net.org, do Facebook, que deseja conectar as7,4 bilhões de pessoas no mundo, não porqueé bem promovido pela Unesco e pelos go-vernos, mas apenas porque se trata de um“bom negócio”. Segundo Benjamin Bratton,as novas plataformas da internet cresceram

    tanto que agora disputam soberania com osestados-nações.

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    13/276

    13POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE  

    3. Para além da diversidade:as práticas do comum, as revoltas eas emoções. Das redes às ruas e dasruas às redes

    Para Bernardo Gutiérrez, a definiçãodo comum ainda está em disputa, mas esseprincípio “compreenderia [...] os ambientes

    de recursos compartilhados que são geradospela participação de muitos e que constituemo tecido produtivo essencial”, como o genomae a biodiversidade. Salienta que “o comumvive de forma autônoma de governos e mer-

    cados” e, portanto, “o capitalismo cognitivoe as práticas ‘top down’ do poder público[como as políticas de promoção das indús-trias criativas] são os principais inimigos do

    comum”. Por sua vez, Rossana Reguillo sa-lienta outro aspecto dos movimentos sociaisatuais: a dissidência. Pegando como exemploos zapatistas, ela observa que os dissidentesnão procuram ser incluídos, sobretudo num

    regime para o qual eles não contribuíram. “Odissidente não está na oposição, decidiu se-

    parar-se, que é o seu potencial transformadorna revelação de outra ordem possível”. Re-guillo também faz referência a #YoSoy132,um movimento de alunos universitários quesurgiu quase espontaneamente nos novosmeios para se afirmar na tentativa políticade deturpar sua identidade como alunos esua vontade. Reguillo escreve: “Não era umachamada para a insurgência no sentido po-lítico tradicional, era um convite dissiden-te para pensar e sentir de outra forma, umapelo para pensar e sentir ‘como se já fossem

    livres’, como se tudo tivesse começado a mu-dar pelo simples fato de imaginar”.

    Simone Pereira de Sá assinala outratendência nos movimentos sociais na eradas redes sociais. Para ela, as práticas e es-tratégias narrativas dos fãs constituem umconjunto poderoso de “materiais”, que têmsido apropriados, de maneiras variadas, pelosativistas. Isso é evidente em múltiplas for-

    mas de performatividade, que se constatamnos zapatistas dos quais trata Reguillo, nosindignados ou 15M na Espanha e nas mani-

    festações de junho de 2013 no Brasil, que,segundo reportagem contemporânea, se-guiram o mesmo processo de “serem ‘virais,

    organizadas de forma flexível, com mensa-gens soltas e a maior parte acontecendo em

    espaços públicos urbanos’”.5

    4. “Plebeyo.” Entre paixão &estigmatização; prazer & violência 

    Em geral, o princípio de diversida-de cultural ignora o que Yúdice chama deculturas “plebeias”, quer dizer, manifes-tações bregas, kitsch e/ou vulgares, comotêm sido apelidados o funk carioca (do qualescreve Écio Salles) e a cumbia peruana,que segundo Santiago Alfaro Rotondonão são patrimonializados precisamenteporque não correspondem aos critériosessencialistas que se aplicam ao conceitode patrimônio, congelados em “represen-ta[ções] do passado e que formam parte da

    identidade nacional”. Poderia se argumen-tar que a patrimonialização é um tipo dedisciplina, e, numa época de [des]discipli-namento relativo, devemos perguntar para

    que serve o próprio conceito de patrimônio,especialmente quando se pluralizam cada

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    14/276

    14   OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

    vez mais os processos de gestão e interme-diação. Salles trata de outra manifestaçãoendemoninhada pelos detentores dos crité-rios do patrimônio: o funk carioca, no qual

    os negros – dizem eles – se afastam dassuas raízes africanas. Longe de ser umamúsica essencializada, como se acredita

    do folklore, o funk é uma música de fusãomuito abrangente, que “tem essa capacida-de de não se permitir domesticar ou disci-

    plinar facilmente”.

    5. Outros rumos para a diversidadeNesta última seção, Marcus Vinícius

    Franchi Nogueira e Hiury Correia falam deuma diversidade de práticas e traços cul-

    turais e não culturais que formam parte daeconomia, mas não se trata da economiacriativa convencional, originada no mundoanglo-saxão e adotada com entusiasmo aoredor do mundo, mas com pouca inclusão depopulações vulneráveis e poucos resultadoscomprovados. Um exemplo que citam é oCarnaval de Salvador, Bahia, que gera muitariqueza explorando expressões afrodescen-dentes que não beneficiam as comunidadesque as produzem. Perante essa situação, os

    autores propõem “diversificar o repertóriotecnológico de gestão em busca de ferra-mentas alternativas que estejam mais pre-

    paradas para incorporar as particularidadesde cada casa [base etimológica em grego dapalavra economia]”. Oferecem tecnologiassociais, entre elas a economia solidária, que“compreende uma variedade de soluções

    sob a forma de cooperativas, associações,clubes de troca, empresas autogestionárias,

    redes de cooperação, bancos... [e que] acen-tuam a noção de desenvolvimento local eampliam os horizontes em relação à plura-

    lidade das formas de se organizar as ‘regrasda casa’” fundamentadas em laços recípro-cos. Trata-se de uma proposta de economiacriativa que tenta solucionar algumas das

    lacunas apontadas pelos autores do relató-rio da década de avanços da Convenção paraa Proteção e Promoção da Diversidade das

    Expressões Culturais.6 Essa solução passamenos pelo reconhecimento das expressõesculturais – que já existe – que pela parti-cipação nas decisões da gestão dos acer-vos valorizados.

    Jesús Martín-Barbero oferece outra

    visão pautada na atual mutação social –assistida pelas novas tecnologias –, naqual as vozes que têm acesso proliferame já não formam parte de um programade diversidade cultural instrumental (dereconhecimento de grupos ou cultura degrupos para a integração social) como nomodelo da Unesco. Como Gutiérrez, Mar-tín-Barbero salienta o novo comum, em que“o que se sabe o sabemos entre todos”. Eleargumenta que precisamos prestar atençãonas mediações, interfaces dessas conversasrizomáticas, já que se redesenham os proto-colos de interlocução na internet para queos usuários tenham a sensação de que fazemo que querem, ao mesmo tempo que essasfalas tornam possível o negócio que circulana rede. É preciso não apenas conhecer asinterfaces, mas intervir nelas.

    George Yúdice

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    15/276

    15POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE  

    Notas

    1  Unesco, 2015. Convention Global Report: re/shaping cultural policies, a decade

    promoting the diversity of cultural expressions for development. Disponível em:

    .

    Acesso em: 5 mar. 2016.

    2  RIBEIRO, Gustavo Lins. Diversidade cultural enquanto discurso global. In: Avá -

    Revista de Antropologia, n. 15, p. 7-8, dez. 2009. Disponível em: .

    Acesso em: 5 mar. 2016.

    3  Por exemplo, Brasil, 1988; Colômbia, 1991; El Salvador, 1992; Guatemala, 1996;

    Venezuela, 1999; Equador, 2008; Bolívia, 2009; Costa Rica, 2015.

    4  Disponível em: .

    5  BBC Brasil. Protestos globais crescem com perda de fé na política e no

    Estado. (23 jun. 2013). Disponível em: . Acesso em: 5 mar. 2016.

    6  Unesco, 2015. Convention Global Report: re/shaping cultural policies, a decade

    promoting the diversity of cultural expressions for development. Disponível em:

    .

    Acesso em: 5 mar. 2016.

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    16/276

    10. Aos leitoresGeorge Yúdice

    2. NOVO CENÁRIO

    MIDIÁTICO E A GEOPOLÍTICADA COMPUTAÇÃO: OS DESAFIOSDAS POLÍTICAS PÚBLICAS

    81. Os desafios do novo cenáriomidiático para as políticas públicasGeorge Yúdice

    104. A pilha negra  Benjamin Bratton

    9. Observatório Itaú Cultural: há dezanos exercitando e fomentando umolhar atento às dinâmicas da cultura 

     Itaú Cultural

    1. AS TRAMAS DAS

    MINORIAS: A URGÊNCIA DEOUTROS PARADIGMAS PARA

     A DIVERSIDADE

    23. Direitos indígenas ediversidade cultural: em buscade um diálogo transcontinentalTracy Devine Guzmán

    48. (Des)Humanidad(es)e universidad(es)Catherine Walsh

    58. Europa e diversidade –o Velho Mundo confronta onovo em si mesmoToby Miller 

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    17/276

    sumário

    3. PARA ALÉM DADIVERSIDADE: AS PRÁTICAS

    DO COMUM, AS REVOLTAS E ASEMOÇÕES. DAS REDES ÀS RUASE DAS RUAS ÀS REDES

    117. Do comum às redes Bernardo Gutiérrez

    ENTREVISTAS:

    128. Ana Méndez de Andés

    134. Mahmoud M. El-Safty 

    138. Nazan Üstündağ 

    144. Kostas Latoufis

    152. Afetos, performance degosto e ativismo de fãs nos sitesde redes sociais Simone Pereira de Sá

    162. Da rede à rua e vice-versa. Anotações acerca das dissidênciase outras revoltas Rossana Reguillo

    4. “PLEBEYO.” ENTREPAIXÃO & ESTIGMATIZAÇÃO;

    PRAZER & VIOLÊNCIA 

    173. O acontecimento do funk Écio Salles

    174. Diversidade restrita: o regimedo patrimônio imaterial e as culturaspopulares no Peru Santiago Alfaro Rotondo

    5. OUTROS RUMOSPARA A DIVERSIDADE

    189. As regras da casaem laços recíprocos Marcus Vinícius Franchi Nogueira Hiury Correia

    200. A amplitude da fala seráa realização da diversidade tãodesejada desde os anos 1980?George Yúdice e Omar Rincónentrevistam Jesús Martín-Barbero

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    18/276

     As fotografias que ilustram a 20a edição

    da Revista Observatório são de autoria daartista plástica Mônica Rubinho.

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    19/276

    Por meio de sobreposições, são criadas narrativas poéticas que revelam uma percepçãosimbólica e afetiva. As imagens desta edição fazem parte de três séries: Esconderijos nosCantos da Pele (2007), Marco Zero (2006) e Sem Título (2005).

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    20/276

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    21/276

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    22/276

    22   OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

    1.23. DIREITOS INDÍGENAS EDIVERSIDADE CULTURAL: EM BUSCADE UM DIÁLOGO TRANSCONTINENTALTracy Devine Guzmán

    48. (DES)HUMANIDAD(ES)E UNIVERSIDAD(ES)Catherine Walsh

    58. EUROPA E DIVERSIDADE –O VELHO MUNDO CONFRONTA ONOVO EM SI MESMOToby Miller

    AS TRAMAS DAS

    MINORIAS: A URGÊNCIA

    DE OUTROS PARADIGMAS

    PARA A DIVERSIDADE

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    23/276

    23POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE TRACY DEVINE GUZMÁN

    DIREITOS INDÍGENAS EDIVERSIDADE CULTURAL:EM BUSCA DE UM DIÁLOGO TRANSCONTINENTAL

    Tracy Devine Guzmán

    Autoria, tradução e introdução: Tracy Devine Guzmán (Universidade de Miami)

    Tracy Devine Guzmán

     Entrevistas com Juvenal Teodoro da Silva (Payayá), Lorna Munro (Wiradjuri

    e Gamilaroi), Ruby Hembrom (Santal) e Gloria Quispe Girón (Quéchua)

    Opróprio conceito de direitos indíge-nas, individuais ou coletivos é uma“quimera” em um país que “comorgulho reconhece a Conquista”, explica a

    ativista intelectual Gloria Quispe Girón,participante da Organização Ñuqanchik deCrianças, Adolescentes e Jovens Indígenasdo Peru.1 Ainda com experiência internacio-nal na luta pelo bem-estar do seu povo Qué-chua,2 Quispe foca seu trabalho principal-mente na região sul do país, onde sua família,com milhares de outras famílias indígenase rurais, viveu uma migração forçada pelaviolência política que dominou o Peru entre1980 e 1992.3 Apesar da alusão evidente àscircunstâncias nacionais, porém, a men-sagem histórica e política de Quispe não éalheia para muitos outros povos indígenas –sejam de outros países americanos, sejam deoutros continentes. Como observamos nascontribuições a esta compilação da autorae editora Ruby Hembrom, do povo Santal;da artista e poetisa Lorna Munro, dos povos

    Wiradjuri e Gamilaroi; e do ecologista e es-critor Juvenal Teodoro da Silva – cacique

    Payayá da Bahia –, as experiências e pers-pectivas comunicadas por Quispe ressoampoderosamente com as histórias Adivasi, naÍndia, Aborígenes, na Austrália, e Nativas ,

    no Brasil (e nas outras Américas), apesardas óbvias e importantes diferenças repre-sentadas por suas circunstâncias sociais,políticas, históricas e geográficas. E mais:o deslocamento forçado – físico, filosófico,emocional, espiritual –, seja pela violência,seja pela necessidade econômica, ou atépela vontade de alcançar uma educação dequalidade e melhorar a própria condição so-cial, é um tema aberto ou latente em todosos depoimentos aqui registrados. Porém,a capacidade e prática indígena não só de“resistir” e “sobreviver”, mas também de seadaptar, crescer, criar e prosperar, apesardos mais graves impedimentos expostos nasexperiências de vida aqui compartilhadas,é o outro lado da moeda: a calamitosa feti-chização do “desenvolvimento” a todo preçocoexiste com a simples realidade de que a

    Conquista, se ainda reconhecida com “or-gulho” por um grande setor das sociedades

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    24/276

    24   OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

    e culturas dominantes, até agora não chegouàs suas últimas consequências.

    Se a terminologia usada para a identifi-cação (e autoidentificação) dos povos indí-genas muda ao longo do tempo e do espaço,com as múltiplas configurações de podersocial e político que infor-mam seu uso em diferentescontextos, um dos propósitos

    da presente coleção de tra-balhos é revelar que muitasexperiências vividas sob opoder colonial e colonialistasão compartilhadas apesar das formidáveisespecificações de cada manifestação local,regional ou nacional. A discriminação cul-tural, étnica e racial; a marginalização sociale econômica; a violência política; a desloca-

    ção física e epistemológica; a vulnerabilidade jurídica frente às leis nacionais e constitu-cionais; a insuficiência do reconhecimentoformal e informal das línguas maternas; afalta de apreciação pelas tradições cultu-rais e educacionais: são um compêndio deexclusões que fazem dos povos indígenas naprática, se não necessariamente na teoria, ci-dadãos de segunda classe, ou, na formulaçãodo filósofo Giorgio Agamben (1998, p. 105),“cidadãos cuja política é questionada naconstituição do seu próprio corpo”.4 Taiaia-ke Alfred (1996, p. 1), teórico Mohawk, fezhá duas décadas uma observação biopolíti-ca ainda mais abrangente: todo ser indígenanasce na política pelo próprio fato da suaautoidentificação como tal.

    Uma maneira de abordar o reconheci-mento compartilhado desse aglomerado de

    experiências excludentes e alienantes, en-tão, radica na observação aguda de Quispe:

    apesar da Declaração das Nações Unidasde 2007; das promessas das constituiçõesestatais; dos antigos e modernos discursos“indigenistas” nacionais, regionais e in-ternacionais; da proliferação de políticaspúblicas que há décadas buscam defender

    o “multiculturalismo”, o“plurinacionalismo”, a “di-versidade” e a “cidadania

    diferenciada”, a maioriados povos nativos vive, ain-da no século XXI, cercada desociedades dominantes que

    “comemoram”, direta ou indiretamente,a sua (inacabada) dominação e aniquila-ção. Contemplando o caso da Índia atual,por exemplo, o ativista e escritor GladsonDungdung faz eco à crítica de Quispe ao

    observar que “os povos Adivasi não sódependem dos recursos naturais para sesustentar; sua identidade, dignidade, au-tonomia, cultura e existência também sebaseiam neles. De fato, a sociedade Adivasinão sobreviverá se estão alienados dos re-cursos naturais” (2013, p. 29). Na Austráliae no Brasil, de forma assemelhada, as ba-talhas materiais e jurídicas pelos territó-rios protegidos e pela soberania reiteram aobservação feita pelo teórico peruano JoséCarlos Mariátegui (1928, p. 20) há quaseum século: “la cuestión indígena tiene susraíces en el régimen de propiedad de la tier-ra”. Ao mesmo tempo, é indispensável reco-nhecer que a importância da terra desde aperspectiva dos distintos povos e protago-nistas indígenas, seja no passado, seja nomomento atual, não reflete necessariamen-

    te os motivos ponderados por Mariáteguino seu famoso ensaio.

    A primeira linha de defesaé sempre, talvez pornecessidade, um manifestoresoluto de vivência. Mas aisso não se limita e não sepode limitar nunca

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    25/276

    25POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE TRACY DEVINE GUZMÁN

    Tanto na produção cultural das socie-dades dominantes quanto nos programasestatais de “modernização” que buscam su-perar passados “atrasados”, a implementaçãoprática e retórica da comemoração da anula-ção dos povos indígenas existe em todos osníveis sociais e em todos os campos políticos.Como consequência, as lutas pelos direitose bem-estar indígenas não só transpassam

    os parâmetros legais das sociedades domi-nantes e os estados discriminatórios queas representam como também respondemà incursão dos interesses empresariais quebuscam dominar, conter e comercializar omundo natural a qualquer custo – aindaquando esse custo seja uma vida humanaou uma forma única e insubstituível de en-tender o mundo e existir nele. Frente a tal

    ameaça existencial, compartilhada agora poraproximadamente 350 milhões de pessoasem âmbito mundial,5 Quispe reitera umamensagem disseminada por várias geraçõesde indígenas ativistas e autodefensores deseus próprios povos – começando na épocacolonial e passando pelo nascimento dos es-tados republicanos, antes de chegar à traiçãodas promessas republicanas no passado e nomomento atual: “No somos un pasado ine-xistente, sino más bien [...] pueblos e comu-nidades indígenas que aún estamos, que aúnexistimos, que resistimos”.6 A primeira linhade defesa é sempre, talvez por necessidade,um manifesto resoluto de vivência. Mas aisso não se limita e não se pode limitar nunca.

    Como, então, começar a interpretar omomento atual desde uma perspectiva com-parada, transnacional e transcontinental

    sem simplificar ou até encobrir a infinitaheterogeneidade dos mais de 370 milhões

    de indígenas que hoje formam parte de 90estados-nações, além das suas própriasnações e tribos?7 Após o reconhecimentoformal e legal de direitos, interesses e prio-ridades indígenas em âmbito nacional einternacional durante as últimas três dé-cadas, como entender o fato de que os po-vos Quéchua, Adivasi, Aborígenes e Nativos(por exemplo) estão muito longe de alcançar

    níveis de bem-estar social e representaçãopolítica a par das populações dominantes oumaioritárias dos países onde residem comocidadãos e portadores de direitos? Por quetendem a fracassar os esforços realizadosatravés das políticas públicas para gerar ascondições de possibilidade a fim de cons-truir mais equidade social e poder incorpo-rar perspectivas e prioridades indígenas nos

    programas de “modernização” e “desenvol-vimento nacional”?Considerando a ampla circulação de

    uma variedade de respostas a essas pergun-tas – fomentadas e formuladas maiormen-te desde o âmbito privado empresarial e ossetores públicos de educação, serviço civil egovernabilidade8 (e em todos os casos, excetoo da Austrália, com pouca ênfase nas popula-ções indígenas) –, podemos afirmar que a boavontade e o simples passar do tempo não sãomecanismos suficientes para desfazer cincoséculos de heranças coloniais, nem para aca-bar com as propensões políticas maioritáriase colonialistas dos nossos dias. Ao mesmotempo, se a estratégia de “encher vagas” ti-picamente associada aos sistemas de cotase outras políticas de “ação afirmativa” talvezseja coerente com o já estagnado mandato

    “multiculturalista” da “diversidade”, pensara representação em termos numéricos é só

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    26/276

    26   OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

    um primeiro passo, sempre insuficiente, notrabalho muito mais amplo e complexo dedesconstruir as relações colonialistas dopoder social e político e refazê-las de ou-tra maneira. Faltaria também reconhecer,por exemplo, o que o crítico indiano HomiBhabha destacou há duas décadas como uminerente valor democrático da diferença, noseu sentido mais poderoso: “o processo da

    enunciação da cultura como conhecimento”.9 Fazer da “diversidade” mais do que um gestoretórico ou vazio – mais do que uma cerimô-nia de computação – começaria então paraBhabha, como para os portadores de outrasperspectivas aqui incluídas, com dois atossimples mas imprescindíveis de solidarie-dade: escutar e ser escutado.

    Na esfera das políticas públicas rela-

    cionadas em particular com o bem-estardos povos indígenas – como é o caso dosoutros grupos “minoritários” em términosde poder que têm sido historicamente malrepresentados (se não ausentes) nas ins-tituições formais dos estados nacionais –ainda é difícil se escapar da caraterizaçãode “vítimas” no sentido que Enrique Dussel(2011, 2012) dá ao termo nas suas influen-tes teorizações da Filosofia da Libertação.10 Tanto nos discursos acadêmicos quanto nosdiscursos populares, o sujeito Quéchua, In-dígena, Nativo, Aborígene ou Adivasi se re-duz habitualmente ao “ locus enuntiationis”de outra “vítima material” da modernidade:um ser à procura constante de aliviar os so-frimentos provocados pelo materialismo,autoritarismo e patriarcalismo inerentesnas incursões do capital dominante nas

    “periferias” locais e globais, mas sem se li-mitar meramente à condição econômica da

    “pobreza” (DUSSEL, p. 17, 2011). Trazidapara o mundo das políticas públicas, a con-dição negativa da subjetividade indígena setorna um apelo constante pela “inclusão”na política oficial e dominante e, portanto,no sistema dominante de soberania estatalque tem servido como a base primordial dasnossas relações intra- e internacionais des-de a Paz de Vestfália no século XVII.11 Como

    consequência, as possíveis respostas ou re-soluções para a “questão” ou o “problema doíndio” tendem a residir no poder ou vontadedo Estado de conceder direitos “diferencia-dos” constitucionais – uma resposta, comoveremos nos textos a seguir, que resulta sergravemente insuficiente em todos os casostratados. Considerando essas limitações, anecessidade de questionar em termos espe-

    cíficos a função da soberania dominante emnossos dias e a urgência de conceber políti-cas públicas desde diversas perspectivas co-munitárias e não apenas estatais, os textosa seguir representam nosso esforço coletivoe solidário de compartilhar experiências eescutar-nos mutuamente em busca de umaconversação transcontinental.12 

    Juvenal Payayá (Juvenal Teodoroda Silva), Brasil

    Sou poeta, escritor de romances e con-tos, humanista; mas sou mesmo é cacique dopovo indígena Payayá, da Chapada Diamanti-na, Bahia, e plantador de mudas nativas. Ca-sado com Edilene Payayá, pai de dois índios euma kurian.13 Avô de seis curumins.14 Nascina Chapada Diamantina e com origem notronco Gameleira dos Índios Payayá. Enfren-

    tei na infância o paradoxo de conviver como flagelo das secas apesar de morar ao lado

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    27/276

    27POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE TRACY DEVINE GUZMÁN

    das nascentes perenes, antes tão comuns nagrande Chapada Diamantina. Esse paradoxoensinou-me a amar e a valorizar o territó-rio, os mananciais líquidos da Chapada e osdemais sobre a Terra. São eles a essência dasobrevivência humana.

    Fui retirado ainda na infância do meuterritório e levado direto para uma mega-lópole. Ainda jovem, trabalhei no Departa-

    mento de Águas e Esgotos (DAE) do Estadode São Paulo. Nessa oportuni-dade, tive contato com a visãodos capitalistas sobre a águacomo produto de interessemercantil, de consumo demercado, em que as empresasmonopolistas auferem altoslucros sobre seus consumido-

    res. Isso me assustou. Incen-tivado pela conjuntura dos anos 1960, fuiatrás de ideias revolucionárias e isso me fezcompreender melhor o mundo. Então volteipara perto do meu território tradicional – acabeceira do rio.

    Depois de conhecer Edilene, tambémfilha da Chapada e, na época, funcionáriada Empresa Baiana de Águas e Saneamen-to S.A. (Embasa), apaixonada pela mesmacausa, ampliamos nossos conhecimentossobre o assunto. Sua vivência como gestorada empresa solidificou a excelente parceriae nossas convicções sobre o meio ambienteampliavam-se, o que resultou na formaçãodo núcleo indígena Movimento AssociativoIndígena Payayá (Maip). O próximo passofoi a unidade da nação Payayá para pre-servar as cabeceiras do Rio Utinga (“rio de

    águas claras”, na língua dos índios Payayá),na Chapada Diamantina norte, em busca

    de garantir a sobrevivência do nosso povoe também do planeta Terra.

    Nos anos 1990, marcou a nossa luta oengajamento pelas retomadas e demarca-ções das terras indígenas na Bahia.15 Foium rico período. Saíram meus primeiroslivros: Os Tupinikim: Versos de Índios; Fe-nomenal: História do Primeiro Rio da Terra,(uma parceria com Edilene); e depois mais

    sete. Na militância indígena, participamosda formação das organiza-ções indígenas modernas,iniciada no Grupo de Litera-tura comandado por ElianePotiguara, Marcos Terena eoutros.16 Na prática, procu-ramos assessorar várias en-tidades: Associação Hãhãhãe

    Indígena de Água Vermelha(Ahiav); Movimento Unido dos Povos e Or-ganizações Indígenas da Bahia (Mupoiba);Conselho Estadual dos Direitos dos PovosIndígenas do Estado da Bahia (Copiba);Conselho de Educação do Estado da Bahia(CEE). A participação trazia inspiração paracentenas de diversos versos, contos e livros já publicados, incluindo O Filho da Ditadura(2010) e 1000 Palavras em Tupy (no prelo).A partir de 2010, o povo Payayá uniu-se naprodução de mudas nativas, e hoje essa énossa lida e objetivo.

    Sem dúvida, a família contribuiu commeu trabalho, em favor de nosso povo e dosoutros povos indígenas, tomando a decisãode ir à luta pela causa. Contamos com oapoio dos caciques das etnias da Bahia, dasorganizações estatais e das organizações

    indígenas, como Mupoiba e Copiba. A listade literatura indígena também contribuiu

    Aceitar o discurso dadiversidade cultural nosmoldes em que ela seapresenta é renegar a“diversidade” autóctone.É fundamental que ospovos indígenas não sedeixem destruir

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    28/276

    28   OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

    muito, divulgando ideias de um cacique deum “povo renascido”.17

    Alcançar a comunidade mundial coma nossa mensagem seria o ideal. Poder di-zer que os povos indígenas são os donosdas terras das Américas; que Deus é indí-gena; que sem a preservação das plantas,das fontes de água, todos nós pereceremos.Através dos poemas e dos libelos, chega-

    mos onde não pensávamos. Com as novastecnologias é possível fazer denúncias,publicar contos, poemas, artigos e ensaios,marcar reunião e fazer publicidade dasmudas nativas que produzimos no Vivei-ro de Mudas Payayá – além de infindasoutras práticas. Para realizar nosso tra-balho, usamos o e-mail, um blog18 e a listado Grupo de Literatura Indígena. Temos

    contas no Facebook e no Twitter. O agro-negócio é um sujeito oculto na mente doshomens de negócio. As denúncias contraa grilagem dos territórios indígenas, o ge-nocídio indígena, o combate à pirataria dabiodiversidade, a luta contra as leis mali-ciosas e implacáveis contra os povos indíge-nas são fatos que só podem ser enfrentadospor meio da união e do apoio dos parentes eda comunidade internacional.

    Vivo à procura de interessados pela lín-gua Tupi, que considero a língua do Criador.Venho copilando um minidicionário, 1000 Palavras em Tupy, para as escolas indígenas.Acredito que o idioma Tupi poderá voltar eocupar um lugar de destaque ao lado dos ou-tros grandes idiomas. A possibilidade [de re-conciliar um projeto decolonial com o uso daslínguas coloniais e colonizadas] é questão do

    ambiente das lutas. A reconquista de territó-rio indígena é questão de convicção e de luta.

    A cultura nativa ancestral depende de cadapovo e também da existência de bons proje-tos pedagógicos. No longo prazo, a luta contí-nua por todos os povos. A irreversibilidade doprocesso colonial é notória; temerosa, porém,é a adequação aos modelos colonizadores (oque será feito não sem resistência). É neces-sário enfrentar a influência destruidora doprocesso produtivo colonial. Isso sempre re-

    quer confrontos. A vida dos povos indígenasé uma luta permanente.

    Acredito que a miscigenação – fruto docolonialismo – interfere na “diversidade”da cultura especialmente. O culto à misci-genação é uma forma de poder e de negaro outro. Acredito também no “diferente”como propriedade do “ser”. Daí meu repú-dio ao discurso da modernidade eurocên-

    trico – parâmetro do que é “arte” e do que é“belo”. O outro somos nós. Se a arte é frutodo gênio, o manuseio dos materiais que nãosão arte não se destaca senão pelas mãos dogênio, que não somos nós, pois somos ape-nas “artesãos”. O poema é minha forma deexpressar meus sentimentos. Sentir-se in-dígena no século XXI é preciso mais do queser; é preciso querer ser o “ser”. O ser indí-gena exige uma linguagem apropriada e umpensamento em particular. É fundamentala “autoajuda”! Aceitar o discurso da diversi-dade cultural nos moldes em que ela se apre-senta é renegar a “diversidade” autóctone. Éfundamental que os povos indígenas não sedeixem destruir.

    O maior de todos os impactos [colo-niais] foi a invasão do século XV. Mas fra-cassaram na colonização, na aculturação,

    na destruição dos valores, na omissão dospropósitos. Modernamente, fracassam na

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    29/276

    29POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE TRACY DEVINE GUZMÁN

    garantia dos direitos indígenas, nos projetosde saúde, educação, produção e com relaçãoàs terras indígenas, no trato do homem bran-co com a biosfera e no desrespeito cultural.Alguns antropólogos, etnólogos, indige-nistas, políticos e outros profissionais têmdeixado importantes contribuições para aconvivência dos povos indígenas. Mas nãohá dúvida que os tais se aproximam des-

    ses povos para colher informações. Algunsse completam, outros, além disso, deixamrastro de destruição, malquerença e doen-ças que não podem ser reparadas. A lutapelo território é o grande elo-unidade en-tre bons indigenistas e índios. A unidadeentre os povos parece que não é objeto decompreensão [por causa da] interferênciapolítico-administrativa nas aldeias, da in-

    fluência entre caciques, da falta de objetivi-dade nos propósitos, das tentativas de impormodos de produção, das drogas, do alicia-mento e do partidarismo político.

    O conflito é permanente, mas até as po-tências concordam que somos os verdadeirosecologistas. É de fundamental importânciadistinguir a vontade preservacionista dos po-vos originários e a vontade ecológica do mer-cado. É completamente possível reflorestaras áreas degradadas pelo homem branco. Oíndio deseja seu bem-estar por ser natureza;essa combinação pode ser perfeita desde quea interferência externa não crie embaraçosna combinação entre homem-índio e na-tureza-viva. Quando o índio conserva umanascente, todos os seres se completam. Se oíndio replanta as matas, provê o bem-estardos pássaros, dos roedores, dos répteis, da

    produção de mel, dos frutos nativos e da re-produção de sementes.

    No longo prazo, a possibilidade de queos interesses indígenas sejam engolidos ouapropriados pelos interesses e paradigmasdo ativismo meio ambiental é visível. As hi-drelétricas, as barragens, as estradas e asmineradoras escolhem terras indígenas,por serem elas paradoxalmente as mais ri-cas em diversidade. Assim o índio, por sera minoria das minorias, pode ser o grande

    perdedor. Temos de fazer justiça no Brasil.Tomando como exemplo a Bahia, houveavanços; e se não ocorreram mais avançosfoi por falta de unidade entre as liderançasdos diversos povos indígenas. Verbas foramdestinadas exclusivamente para projetosindígenas, mas os índios não pautaram osagentes governamentais, perdendo o prota-gonismo. Essa situação nem sempre foi as-

    sim; pelo contrário, item nenhum constavacomo política pública destinada aos povosindígenas do estado.

    Considero que as prioridades maiori-tárias dos povos indígenas atuais são: 1) ter-ritório; 2) soberania; 3) saúde; 4) educaçãoe 5) cidadania diferenciada. As demais sãoconsequências. [Para pensar as priorida-des indígenas], as questões regionais e in-terétnicas são fatores importantes, mesmoporque somos povos – não uma “comuni-dade”. Porém, há certo consenso nas ques-tões gerais dos povos. Não se pode negar aimportância das organizações internacio-nais de direitos indígenas e humanos. Asdenúncias, a força da divulgação, as contri-buições às interferências judiciais, o apoioem projetos impactantes. Enfim, essasparcerias têm exercido fundamental im-

    portância para os povos e as organizaçõesindígenas no Brasil.

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    30/276

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    31/276

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    32/276

    32   OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

    Lorna Munro, Austrália Eu sou Wiradjuri/Gamilaroi e resido

    em Sydney. A comunidade onde cresci éconhecida historicamente como a cunha doPoder Negro e da autodeterminação nestepaís. Minhas experiências e minha histó-ria familiar estão plenamente involucradasno movimento pelos direitos Aborígenes eisso influi na minha prática artística e pro-

    fissional como poeta e educadora, porquesempre valorizei a busca da voz própria e oato de usá-la. O que faço artística e profis-sionalmente não é radical e não deveria serchamado de “ativismo”. Prefiro dizer queestou transmitindo o conhecimento que mefoi transmitido. A ideologia de não sermosdonos do conhecimento, mas sim meios paratransmiti-lo, representa uma prática do meu

    povo desde o início dos tempos. Consideroessa prática uma obrigação cultural.Gosto de trabalhar com pessoas que

    entendam o clima sociopolítico e culturalda Austrália Aborígene no momento atual.Se não, me exponho a um meio ambienteinseguro culturalmente, onde o trauma en-tre gerações teria que ser vivido novamentepara explicar os contextos necessários paratrabalhar ou conversar. Se as pessoas com asquais colaboro não estão na mesma páginacom respeito ao reconhecimento da opressãoe do colonialismo ainda sofridos pelos po-vos Aborígenes, e não estão conscientes dosprocessos que busco implementar no meutrabalho, significa uma perda tremenda deenergia e emoção.

    Com meu trabalho, busco atingir Abo-rígenes jovens. Espero inspirar e educar

    brancos e negros para assumir responsabi-lidades e achar uma maneira de contribuir;

    todos nós temos um papel no processo de-colonial. Conheço detratores e aliados empeles brancas e negras. Muitos australianosbrancos com os quais trabalhei entendemperfeitamente o que quero dizer com “co-lonização” – não usam a “culpa branca”para impedir o nosso trabalho. Oferecemmaneiras de enfrentar barreiras e se edu-cam para achar soluções em um contexto

    mais amplo. Tive colaborações de sucessoe de insucesso devido aos abismos de com-preensão, respeito e habilidade de construirpontes sobre as brechas que encontramosno caminho. Acho que os colaboradoresbem-sucedidos precisam ser corajosos o su-ficiente para criar espaços mútuos nos quaisseja possível trabalhar e oferecer sugestõesquando se apresentam barreiras. Temos que

    curtir o trabalho do outro ou achar algo notrabalho do colaborador que mais ninguémpossa oferecer.

    Uso bastante as mídias sociais. Se nãofosse por elas, muita gente não teria acessonem ao meu trabalho nem à minha poesia.Hoje o mundo está ao alcance das nossasmãos. A maioria dos telefones celularesoferece conexões com a internet, permitin-do que até as comunidades mais remotaspossam se conectar com as comunidadesurbanas em um instante. Acabei de com-pletar uma antologia de poemas e históriassobre a transição da adolescência de jovensAborígenes do país inteiro, que teve iníciocom uma conversa no Facebook.

    A língua e o ato de recuperar a língua sãoferramentas de que preciso para fazer meutrabalho. Como poeta Wiradjuri, sou obriga-

    da a usar a língua dos colonizadores para con-tar uma história Aborígene. Nossas línguas

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    33/276

    33POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE TRACY DEVINE GUZMÁN

    estão desaparecendo a uma velocidade nuncavista, por causa de políticas de genocídio cul-tural e expropriação. O avanço mais radicalneste país é a percepção de que as formasantigas de conhecer, comunicar e ser são asmais avançadas de qualquer civilização. Amotrabalhar com minhas línguas tradicionais, jáque existe uma forma de pensar arraigada aoestado mental dos povos Aborígenes – ainda

    quando não estamos sempre conscientes dis-so. Temos a tendência de usar a mesma ideo-logia e as mesmas matizes quando estamosfalando na língua dos colonizadores. Existeuma compreensão inerente da poética dasnossas línguas tradicionais que outros nãoconseguem imitar. A cultura e a linguagem naAustrália estão passando por um processo deregeneração e recuperação do qual me sinto

    orgulhosa de participar.A política “multiculturalista” é umaretórica que se usa para a Austrália não serpercebida como a nação racista que é. Minhaopinião é que os processos de entrar nestepaís são racistas e assimilacionistas de for-ma sistemática, o que fomenta ignorânciaentre os imigrantes não brancos ao chega-rem – um estado mental bastante parecidocom o dos australianos brancos que se sen-tem bem confortáveis e sem remorso na suaignorância. Às vezes, os termos “multicul-turalismo” e “diversidade” não incluem ospovos Aborígenes na prática; podem ser usa-dos para cumprir com requisitos, mas nãopara ocasionar uma diversidade verdadeira.Acabam excluindo os povos Aborígenes e,mais ainda, silenciando as nossas vozes eproporcionando mais força à voz colonial.

    Infelizmente, muitas palavras que seusam nas políticas públicas não se aplicam

    de forma concreta; são retóricas usadaspara dar a impressão de que estão fazendoum bom trabalho. Quando os povos, comu-nidades e assuntos Aborígenes estão involu-crados, as políticas públicas usam a palavra“consulta”, mas não fazem consulta. Contamcom as opiniões de Aborígenes escolhidos adedo, que não têm laço nenhum com o assun-to ou a área em questão. E então algumas des-

    sas pessoas chegam a ser “especialistas” naAustrália Aborígene, quando não há transpa-rência nem consulta nem conexão. Acreditoque há uma negação das formas corretas [deresolver problemas], em existência por mi-lhares de anos, porque são “difíceis demais”.A Austrália Aborígene conta com centenasde nações – todas com sua própria língua,história de criação, cultura. A existência de

    um grupo de “lideranças Aborígenes” es-colhidas a dedo, que servem como a voz daAustrália Aborígene para os propósitos dosdecisores políticos, sem a participação dosoutros, nem uma votação, acaba solapandoa soberania de todas as nações.

    A relação entre os direitos indígenas eos grupos de meio ambiente também é muitopatriarcal – é uma relação em que a voz in-dígena e as formas indígenas de entender omeio ambiente são ignoradas. Recentemen-te, um grupo criticou os povos Aborígenespor caçar: atacou os povos e a nossa práticaancestral de sustentar a terra e a nós mes-mos. Espero que no futuro os grupos am-bientais parem de pensar que são grandessalvadores brancos e que trabalhem comdiversos grupos indígenas. Afinal de contas,nós trabalhamos e prosperamos aqui por

    muitos milhares de anos sem interferência.Essa realidade precisa ser reconhecida e

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    34/276

    34   OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

    aproveitada respeitosamente para cultivaruma aliança proveitosa e apropriada entreos povos indígenas e não indígenas.

    As lideranças indígenas nem sempreconcordam sobre muitos assuntos, e acre-dito que não concordarão nunca, em razãoda diversidade das nossas nações. O colo-nialismo nos fez adversários de nós mesmosdurante os últimos 227 anos, e acredito que

    há muito trabalho pela frente até que todosnos encontremos na mesma página. Há vinteanos falam sobre a possibilidade de escrevertratados para reconhecer nossas naciona-lidades mutuamente, mas o próprio ato deescrever é uma ideia ocidental que talvezmude o significado dos tratados. Creio queas decisões precisam ser tomadas para quepossamos seguir adiante. Somos só 3% da

    população nacional, e a metade da nossa po-pulação tem menos que 30 anos. Precisamosmudar a forma como encaramos o trabalhoe incluir nossos jovens e idosos para pro-gredir de forma significativa. Deve ser umaprioridade. Precisamos de consenso sobre osassuntos fundamentais que nos preocupam,mas infelizmente não há muita assistênciafinanceira para assegurar que isso aconte-ça, para que nossa gente possa viajar a todosos destinos necessários para realizar o tra-balho. Infelizmente, há um apoio tremendoàs lideranças Aborígenes escolhidas a dedopara assegurar que as iniciativas do governosejam realizadas no país inteiro.

    Nesse momento, as organizações inter-nacionais de direitos fazem melhor traba-lho que nossas próprias organizações locais(que são sancionadas pelo governo), sobre-

    tudo com respeito a direitos territoriais,soberania, direitos humanos e reparações.

    Na Austrália, a atenção internacional podepressionar de uma maneira que os gruposlocais não conseguem. Porém, há muitas or-ganizações e grupos de base que trabalhamsem parar e sem reconhecimento dentrodos seus campos respectivos. Deveriam teros recursos necessários para avançar no seutrabalho, mas, lamentavelmente, os gruposque fazem a maior diferença costumam ter

    o financiamento cortado por causa da igno-rância e negação que existem na sociedadeaustraliana. Pode ser muito difícil adquirirfundos e apoio privado.

    Ruby Hembrom, Índia Em termos étnicos, pertenço à tribo

    Santal, o maior grupo indígena da Índia.Oficialmente, porém, a posição do governo

    é que o país não tem povos indígenas; somosuma “Tribo Programada”19 – status consti-tucional que serve para as ações afirmativas.O governo tem opinado nas Nações Unidase em outros foros mundiais que o país nãotem povos indígenas, só povos “tribais”. De-finem os povos como habitantes origináriosde um território, oprimidos e governados porinvasores. Em contraste, os povos “tribais”são parte do sistema democrático do paíse, então, não podem ser chamados de “in-dígenas”. Mas a maioria dos povos tribaisse autodenomina Adivasi (adi – primeiro;vasi – habitante), significando que, sim, so-mos povos indígenas.

    Nasci de pais que foram da primeira ge-ração que migrou à cidade. Como família,encontramos dificuldades para nos adaptarà vida urbana, aos novos idiomas, incluindo

    o inglês. Cresci em duas comunidades fecha-das. A primeira foi um colégio residencial

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    35/276

    35POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE TRACY DEVINE GUZMÁN

    onde meu pai lecionava; era um lar – umacolônia bela e multicultural representando ocomprimento e a largura deste diverso país.Desde cedo, distinguia as tribos e famíliasnordestinas – isso quando muitos nem sereconheciam como indianos. Com eles, eunão tinha que responder a perguntas – ex-plicar, por exemplo, que não morava em umaárvore, nem em uma caverna; que não vestia

    folhas, nem comia seres humanos. Estavalivre dos estereótipos que existem sobreos Adivasis. Na segundacomunidade, porém – aescola –, estava cercada darealidade de como me per-cebiam. Quando tinha seisanos, um colega me per-guntou se eu tinha de polir

    a minha cara quando poliaos sapatos negros que usava na escola. Al-guns riam do meu nariz plano. Na décimasérie, após uma década estudando juntos,um colega da turma se recusou a sentar-sedo meu lado por causa da minha pele escura.

    Cresci pensando, sentindo, sabendoque não era bonita. E não conseguia supe-rar as impressões externas e mostrar queeu era mais do que uma simples aparência.Com frequência me perguntavam se era dosul da Índia, e, quando explicava que eraAdivasi do Estado de Jharkhand, faziamperguntas ainda mais ridículas. Sabia ca-çar? Poderia dar um grito de guerra? Mastudo aquilo também foi o início da minhaforma multifacetada de ser. Oscilava entredistintas formas de ser em distintos luga-res. Sou Adivasi feita na cidade, mas Adivasi 

    de qualquer jeito. Em casa falamos Santali;vistamos nossas casas ancestrais por parte

    de pai e mãe para participar de eventos fa-miliares e comunitários. Nossos parentese amigos nos visitam na cidade, trazendosonidos e sabores das nossas raízes.

    Alguns diriam que sou uma Adivasiprivilegiada, mas eu diria que sou indígenade outro jeito. É uma escolha: um ato deli-berado de me manter enraizada. Sempreme atraíam os assuntos Adivasi, e cresci

    em uma família em que essas discussõeseram frequentes. Ser Adivasi sempre tem

    sido importante para mim;me dá orgulho! O medo deperder nossa identidade –porque viemos para a cida-de e vivemos em situaçõesdiferentes – está semprepresente, mas muitos jo-

    vens estão desafiandoessa ideia. Com mais consciência sobre osdireitos Adivasi, velhos e jovens, homens emulheres, crianças nas cidades e nas aldeiasestão fazendo todo o possível para afirmara sua identidade e difundir seu orgulho deser indígena. É por isso que os livros são im-portantes, as histórias são importantes e aexpressão é importante. Os livros mantêmviva a história, a herança, a identidade. Oslivros reinventam, reinterpretam, fazem re-levantes as vozes, os pensamentos, as ideias,os sonhos [...]. Nas palavras, na língua, nasimagens, nas páginas de que são feitos, oslivros são os fios de nós mesmos com quecada um contribui para fazer a ponte quetrará nossos filhos de volta às suas raízes.

    A Adivaani [nossa casa editorial] nãodiz respeito somente aos livros; é também

    uma plataforma para a expressão Adivasiem qualquer meio ou em todos os meios

    Nas palavras, na língua, nasimagens, nas páginas de quesão feitos, os livros são osfios de nós mesmos com quecada um contribui para fazer aponte que trará nossos filhosde volta às suas raízes

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    36/276

    36   OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

    possíveis. Estamos, por exemplo, começandoa trabalhar com documentais, tradições mu-sicais, arquitetura indígena e trabalhos aca-dêmicos indígenas. Nossos colaboradoressão indígenas especialistas nessas áreas –praticantes tradicionais e modernos queabsorveram o conhecimento da experiênciavivida ou foram treinados em discursos maisconvencionais e estabelecidos. Mas nosso

    público não é só o Adivasi; precisamos queoutras pessoas também nos conheçam, en-tendam e apreciem. É por isso que trabalhoprincipalmente empregando o inglês. Pre-cisamos alcançar o maior público possível,construir todas as pontes possíveis, rompertodas as barreiras possíveis. As respostaspositivas ao nosso trabalho vêm principal-mente de acadêmicos, trabalhadores da área

    do desenvolvimento social e estudantes.Nossos melhores aliados têm sido as li-vrarias pequenas e independentes que nosmantêm em circulação, e os trabalhadoresda área do desenvolvimento social e ativistasque não só contribuem com nosso trabalhocomo autores, mas também carregam nos-sos livros a todos os eventos que organizam.Mais importante, nossas impressoras (gráfi-cas) nos dão a flexibilidade de pagar quandonos é possível – sem comprometer a quali-dade –, um arranjo nos garante a produçãocontínua do nosso material impresso. A dis-tribuição sempre foi uma área dolorosa paranós. O conteúdo produzido pela Adivaani pa-rece não agradar os grandes distribuidores.Os distribuidores de um importante portalon-line nos recusaram, porque “os livrosAdivasi não são bons” – e isso sem sequer

    verificá-los. Outro desafio que nos preocupaé a luta contra os estereótipos e preconceitos

    que definem o ser Adivasi. Nosso primeirolivro foi escrito em Santali, no qual aborda-mos os Santals como povo, sua história eforma de ser. A capa do livro era preta. Umadas gráficas que estávamos considerando re-comendou que trocássemos o preto por umamarelo “alegre” ou castanho-avermelhadoporque “preto é uma cor muito sofisticadapara os Santals, tão atrasados”. Mas ficamos

    com o preto!Em 2015, o Coletivo Intelectual Tribal

    da Índia (Tici, na sigla em inglês), uma redede estudiosos indígenas que produz revis-tas eletrônicas, decidiu fundar uma casaeditorial para começar a produzir materiaisimpressos. Souberam primeiro da Adivaanie entraram em contato conosco. Após umabreve conversa, ficamos aliados. Percebemos

    que não estávamos lidando apenas com co-nhecimento e cosmovisões indígenas; tam-bém precisávamos começar a formar outraspessoas para discutir os assuntos que ne-cessitam ser tratados nos nossos livros. Foientão que surgiu a ideia de organizar um con-gresso anual. O primeiro Congresso Nacio-nal do Tici foi em setembro do ano passado,quando publicamos também o primeiro livrodo coletivo. Depois desse evento, o Tici pediupara a Adivaani gerenciar suas revistas tam-bém. Essa experiência tem sido um exemplomaravilhoso de como podemos compartilhara realização de ideias, sonhos e visões!

    Como indígena, sei que com a questãodos meios tecnológicos, a minha escolha deidioma é crucial. Disseminação já existe emnossas línguas, as línguas regionais domi-nantes e o Hindi, mas não é suficiente para

    atrair atenção em âmbito nacional ou in-ternacional. Aprecio muito os esforços que

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    37/276

    37POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE TRACY DEVINE GUZMÁN

    agora existem, e tenho muito orgulho deles.Duplicar os mesmos meios não vai nos de-legar mais reconhecimento, e é por isso queelegi o inglês como o meio principal do meutrabalho. Estamos em um estado de emer-gência e precisamos fazer o maior trabalhopossível para reclamar o nosso lugar nestepaís, como os primeiros cidadãos dele.

    Como treinadora de comunicação em

    inglês do setor corporativo, observei a arma-dilha linguística em que caem muitos povosindígenas ao se assimilarem à sociedadedominante. Nosso conhecimento e nossaslínguas são considerados “primitivos”. Aeducação moderna busca nos salvar desse“atraso”, mas acaba fazendo o contrário.Somos educados em um idioma que não énem nossa língua materna nem o inglês de

    qualidade, o que nos deixa mal preparadospara alcançar êxito no meio corporativoou no meio acadêmico. O inglês se tornouo meio oficial de documentação e comuni-cação na Índia. Estamos empoderados só osuficiente para ser redundantes na socieda-de moderna e na nossa. Nossa capacidadede lutar por nossos direitos se limita pelaarmadilha linguística, que se converte emfalta de oportunidades.

    O inglês dá para os Adivasis uma opor-tunidade de nos defender como povo que serecusa a ser esquecido. Desconhecer o inglêsnos rouba a oportunidade de competir, nosdefender, ir adiante. A deslocação das nossasterras e florestas e a imposição da economiade mercado nos negam oportunidades iguaispara viver bem e nos sustentar. Minimiza-se,então, a probabilidade de sobrevivermos e,

    assim, perdemos muito mais – perdemostradições e conhecimento. A necessidade de

    nos proteger com as habilidades da moder-nidade é urgente. Aprender o inglês atravésdas narrativas Adivasi –histórias intelec-tuais, criativas, poéticas e emocionantes quesuplementam nossas tradições orais – per-mite-nos permanecer enraizados em quemsomos. Esse método de aprender engendrauma vida digna. Nossa aprendizagem doinglês através de conteúdo Adivasi é um

    projeto de afirmação, preservação, decolo-nização e empoderamento. Nossa pedagogiapara ensinar o inglês é inédita. A maioria dascrianças Adivasi que têm a oportunidade deestudar, sim, estão aprendendo inglês – dealguma forma, de algum nível. Mas os livrosusados para praticar e aprender o idioma sãode uma cultura e de um tempo alheios aosnossos. Nosso projeto permite o uso das nos-

    sas histórias e dos nossos materiais. Nossoslivros e recursos digitais são mais que con-teúdo de leitura. São materiais de aprendiza-gem e, mais importante ainda, representamnosso esforço para preservar a nós mesmos –as raízes profundas e ancestrais que nosenlaçam à nossa origem e ao nosso futuro.

    Ao começar a escrever, iniciamos ummovimento de decolonização e, em poucotempo, através das minhas leituras das lite-raturas das Primeiras Nações [do Canadá]e dos povos Aborígenes da Austrália – dosescritores e ativistas –, começamos a sentira inspiração para aumentar o nosso própriotrabalho. Quando descobrimos Leanne Beta-samosake Simpson20 explicando o conceitode “ressurgência”, por exemplo, soubemosque uma versão nossa, da Índia, seria cru-cial para construir solidariedade entre os

    povos de diversas geografias e comparti-lhar conhecimento e experiências com eles.

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    38/276

    38   OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

    Ler sobre o movimento zapatista em Chiapas,no México, foi para mim uma experiênciaemocionante. Apesar dos poucos contatose colaborações, esses laços proveitosos nosmotivam a continuar trabalhando. Tem sidoum processo atraente redescobrir nossas pró-prias vozes – como a de Ram Dayal Munda 21 –e tornar disponível seu material para povosindígenas em vários continentes. Minha

    presença na Feira do Livro em Frankfurt mepermitiu mostrar nosso trabalho e medir asrespostas às vozes indíge-nas da Índia. Não fomosdecepcionados. É irônicoque haja mais apreciaçãopor nosso trabalho fora daÍndia do que aqui na nossaterra natal. Nesse sentido,

    temos que construir laços mais fortes.Quero destacar dois assuntos queconsidero os maiores fracassos das políti-cas públicas vis-à-vis os povos indígenas.O primeiro é a negação do status de “povosindígenas” na Assembleia Constitucionalque enquadra a nossa Constituição [Na-cional], apesar de o termo “Aborígene” tersido incluído em uma das primeiras versõesdo documento. Segundo, o não reconheci-mento por parte do governo de nós como“povos indígenas” nos foros internacionais,como nas Nações Unidas. Temos só o sta-tus de “Tribos Programadas”, o que implicapela lei só poder buscar direitos e proteçãocomo povos “atrasados”. Ser beneficiadosdas ações afirmativas ou dos sistemas dereservas e cotas pode ter dado aos Adivasisuma oportunidade de sermos “assimilados”

    à cultura dominante, mas também trouxemais segregação que inclusão. Ser Adivasi

    não significa ser definido somente por carac-terísticas físicas, culturais, históricas, geo-gráficas e políticas, mas também por comovivemos coletivamente com a hostilidade, aexploração e a discriminação.

    Essa discriminação se manifesta em to-das as instituições educacionais e em todosos ambientes de trabalho onde os Adivasistêm conseguido vagas através dessas medidas

    afirmativas. Por exemplo, a maioria dos edu-cadores que conseguem trabalho através de

    cotas é discriminada na salados professores, é tratadacom silêncio, não é promo-vida etc. Os não Adivasis preferem não ser tratadospor médicos Adivasi por-que pensam que tais pro-

    fissionais se formaram graças a concessõesespeciais e não por mérito. Nada, porém, ficamais longe da verdade do que isso. Primeiro,para entrar na universidade, tem que ser umAdivasi “ elegível”, e aí param as concessões.Depois disso, cada Adivasi é aprovado pormérito e nada mais.

    Ser Adivasi tampouco é condição sufi-ciente para beneficiar-se dos sistemas de co-tas. Também há de ser “elegível” – condiçãoque deixa fora automaticamente uma grandeporcentagem de Adivasis que estudam eminstituições fracas nas suas próprias comu-nidades natais. Não podem se classificar ape-sar das provisões. Não conseguem passar nosexames ou nas entrevistas de trabalho no go-verno por causa da disparidade nos padrõeseducativos entre as áreas rurais e urbanas.Então, [quem costuma passar] é o Adivasi

    formado, de segunda ou terceira geração,cujos pais vão para a cidade não só para

    É irônico que haja maisapreciação por nosso trabalhofora da Índia do que aquina nossa terra natal. Nessesentido, temos que construirlaços mais fortes.

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    39/276

    39POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE TRACY DEVINE GUZMÁN

    aproveitar maiores oportunidades de vivên-cia, mas também por causa da falta delas nolugar de origem, onde os meios tradicionaistêm sido destruídos por causa dos programasde “desenvolvimento” e deslocação. Nas ci-dades vivem Adivasis de várias gerações, ida-des e profissões: trabalhadoras domésticas,oficiais governamentais e estudantes, entreoutros. Se nossa educação e nosso sistema de

    cotas deixassem provisões para os Adivasis trabalharem nas suas cidades natais, muitosnão as deixariam nunca.

    Infelizmente, nossas lideranças polí-ticas e nossos decisores políticos têm sidoconvencidos da necessidade do desenvol-vimento político a todo preço e até têm in-vestido nessa ideia. Por isso, não apoiam osAdivasis nem os seus direitos. Alguns têm

    que se sacrificar para o bem maior da nação,e [para muitos] devem ser os povos já mar-ginalizados. Não somos nada mais que umrecurso a ser explorado – sobretudo porquevivemos em terras ricas em minerais. So-mos uma verdade inconveniente na exis-tência dessas pessoas. Se nossos sistemasde conhecimento e estilos de vida não fossemconsiderados “atrasados” ou carentes de “so-fisticação”, não seríamos tratados como algomenos do que seres humanos – como seresinferiores ou objetos descartáveis.

    De uma perspectiva indígena, os di-reitos indígenas e ambientais são um dia-grama de Venn, solapando-se em algunslugares e completamente separados emoutros. Os povos indígenas, através dasexperiências vividas e das filosofias queemergem delas, compartilham um rela-

    cionamento simbiótico e orgânico com anatureza e o meio ambiente. Mas muitos

    ativistas ambientais não veem isso; estãocegos por seus esforços bem-intencionadosde proteger o meio ambiente e não enxer-gam as pessoas que cuidam dele. Ao mesmotempo, enxergam os povos indígenas comoum “impedimento” aos projetos modernos,científicos e especializados de conservação.Nunca fazem consulta com os povos indí-genas sobre tais projetos.

    Por outro lado, a intervenção da Survi-val International na luta Niyamgiri contraa empresa de mineração Vedanta revela aspossíveis vantagens dessas colaborações. Opovo Dongria Kondh de Niyamgiri conquis-tou uma vitória heroica para conservar suascolinas sagradas contra a poderosa empresaVedanta Resources. Sob a Lei dos DireitosFlorestais, a Corte Suprema decidiu em

    2013 que os Dongria Kondh teriam que de-cidir, através de uma votação de consenso,em 13 dos vilarejos impactados, se deixa-riam a empresa Vedanta prosseguir com aatividade de mineração em Niyamgiri. OsDongria Kondh votaram contra. Somandoapoio, recursos, consciência e novas formasde visibilidade, a Survival Internationalconseguiu revigorar uma luta que já levavamuitas décadas. Estabeleceram um prece-dente. Os direitos ambientais são tambémdireitos indígenas, e os ativistas não de-veriam esquecer dos povos que vivem em ecossistemas e com eles.

    Infelizmente, as prioridades dos po-vos indígenas e as dos decisores políticosnão costumam ser as mesmas. Na Índia, osativistas indígenas estão trabalhando emtodos os campos possíveis. O governo mais

    se opõe à agitação e à resistência a favordos direitos territoriais. Os povos indígenas

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    40/276

    40   OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

    residem em áreas florestais, ricas em miné-rios, representando um “impedimento” aodesenvolvimento econômico e em geral. Ogoverno e as corporações estão juntos nes-sa repressão. É uma realidade; os crimesestatais contra os Adivasis são uma ameaçaséria, e não vejo uma melhora no futuro. Aforma Adivasi de ser está em perigo porqueos territórios estão em perigo. A correlação

    é assim simples e direta. Qualquer resis-tência por parte dos ativistas ou dos povosAdivasi é considerado “anti-indiano” e “an-tidesenvolvimento”, e as pessoas e os gruposresistentes são classificados de “terroristas”pelo governo e pelas empresas. Cada regiãoenfrenta seu problema particular com tãopouco apoio e tanta repressão que há poucaoportunidade para organizar-se de forma

    massiva ou até para buscar apoio de outrasregiões. A maior dificuldade do movimen-to Adivasi é a incapacidade de organizaçãoem âmbito nacional, seja social, seja politi-camente. Parece que trabalhamos em áreaspequenas, quase isoladas umas das outras,o que não serve para realizar uma mudançapolítica impactante.

    A ONG Survival International é umahistória de sucesso, mas, ao mesmo tem-po, o governo reprime intervenções comoas realizadas por ela. A Greenpeace Índiaé outro exemplo: o registro que permitiaque arrecadassem fundos fora do país foicancelado, tornando a ONG praticamenteinoperável. Todas as vozes da sociedade civilestão sendo amordaçadas. O financiamentoé um empecilho ao trabalho na Índia, e os in-dianos são os piores doadores. Agora, com

    o controle do financiamento estrangeiro, asituação fica ainda mais difícil. A maioria das

    organizações inter- e transnacionais prestaatenção nos assuntos indígenas e está com-prometida com eles. Foram estabelecidasredes para influenciar a opinião pública noslugares apropriados em âmbito internacio-nal, e isso serve para que nossos movimentossejam mais eficazes.

    Gloria Quispe Girón, Peru

    Eu, como muitas irmãs jovens de famí-lias que migraram até os centros urbanos –obrigadas pelos períodos de violência quevivemos no meu país, os quais começaramem nossas comunidades –, migrei pela neces-sidade de procurar melhores oportunidadese reconhecimento igualitário do governo. Aonos ver em um lugar que não conhecíamos,que sentimos não ser nosso e onde também

    não fomos bem recebidos, continuamos pra-ticando costumes antes realizados em nossascomunidades, que mantinham a sobrevivên-cia da nossa cultura e do nosso ser. Mas issoocorria de maneira clandestina, sem nin-guém saber. Até recentemente, eu mesmatinha que me manter em silêncio. Nunca fuide ficar calada, mas por temor ao que diriam,por temor à discriminação latente e estrutu-ral, sempre tive medo de difundir, de dizerque eu não era desse lugar, que na verdade euvinha de uma comunidade [indígena].

    Tudo isso mudou quando conheci umgrupo de pessoas que, como eu, não eram dacidade, e de maneira natural e espontâneapodiam falar dos seus costumes, de comoos praticavam em casa. Eu sempre tinhatido receio de falar, mas com esse grupoconsegui encontrar forças e entender o

    porquê das coisas, a importância de reco-nhecer nosso ser sem nenhuma vergonha.

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    41/276

    41POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE TRACY DEVINE GUZMÁN

    Os Ñuqanchik foram e são uma família paramim; abriram a possibilidade de conhecer,de entender melhor minhas raízes, de co-meçar a trabalhar – como falar e como meexpressar – para que jovens iguais a mimse reconheçam e, por que não, sejam par-te do movimento indígena. Como não serparte do movimento indígena? Como nãoajudar, se como eu há muitas jovens vivendo

    com medo e vergonha, semorrem de vergonha denossos costumes, nossamúsica e língua? Comonão participar, se nos-sos direitos individuaise coletivos não são re-conhecidos, se a possi-bilidade de conseguir

    oportunidades iguais enos sentir parte da nação e ser aceitos e re-conhecidos ainda é uma quimera para umpaís que com orgulho reconhece a Conquis-ta e o período colonial, e que ainda não tomaconsciência e não se solidariza com seuspróprios componentes?

    Graças aos Ñuqanchik, consegui co-nhecer outras pessoas, já que não estivemossós, mas com pais, mães, irmãs mais velhas[...] que sabiam nos guiar. Porque na tarefa debuscar como mudar nossa realidade, muitasvezes caíamos em frustrações. Porque aténós mesmos perdíamos a esperança. Há mo-mentos em que até nossa própria gente nãose reconhece, não nos reconhecemos. Porqueainda mantemos a ideia de que, por sermos dealdeias, de comunidades [indígenas], não so-mos agentes de desenvolvimento e progresso.

    Eu agradeço à Rede de Organizaçõesde Jovens Indígenas do Peru (Reojip), onde

    encontramos jovens como eu – indígenas,andinos e amazônicos de diferentes orga-nizações. Nós nos unimos e trabalhamos apartir de qualquer ação mínima, pelo res-peito, pelo conhecimento e pela sobrevi-vência de nossos costumes e de nosso ser.Também agradeço o Enlace Continental deMulheres Indígenas das Américas (Ecmia).Como mães e irmãs mais velhas, elas têm

    nos ajudado a entenderquando oferecem suaspróprias experiências enos ensinam com suasferramentas, como osdocumentos e tratadosinternacionais, sobre anecessidade de que secumpram e se respei-

    tem nossos direitos; asaber que estes são inatos, e a entender aimportância do impacto [do trabalho] emdiferentes espaços; de nos fazer visíveis ede gerar um movimento indígena. Porém,estamos aquém do esperado. Todas as nos-sas boas intenções, nossos sentimentos eforças não são suficientes para atender àssituações que enfrentamos, como a pobre-za extrema, a gravidez das adolescentes, afalta de oportunidades, o aceso insuficien-te à justiça e à educação pertinentes. Essassão questões básicas e necessárias que nãodependem de nós. Mas a realidade é que ogoverno generaliza sem entender que, la-mentavelmente, somos nós os povos e ascomunidades que vivemos essa realidade.

    Para conseguir contato com jovensdo país inteiro, recorremos à tecnologia,

    mas também essa tarefa não é fácil, poisos jovens não têm os meios para acessar

    Até recentemente, eu mesmatinha que me manter em silêncio.Nunca fui de ficar calada, mas portemor ao que diriam, por temor àdiscriminação latente e estrutural,sempre tive medo de difundir, dedizer que eu não era desse lugar,que na verdade eu vinha de umacomunidade [indígena]

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    42/276

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    43/276

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    44/276

    44   OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

    facilmente os aparelhos tecnológicos; elesnão têm acesso a essas tecnologias, não têmacesso à internet – o que faz com que mui-tas vezes os contatos e os vínculos se per-cam. Então, as distânciasainda representam umabarreira, mas acredita-mos ser mais fortes queelas. O idioma sempre

    tem sido uma barreira,mas é algo que nos enri-quece e demostra nossasformas saudáveis e di-versificadas de nos ex-pressar. Como é sabido,muitas línguas originá-rias foram silenciadas no período colonial.O conteúdo traduzido conta com pouca di-

    fusão, e se falamos em nosso próprio idiomasomos discriminados.Recentemente, graças ao resulta-

    do do nosso trabalho em muitos espa-ços, conseguimos instalar programas deeducação bilíngue em que nos comunica-mos no idioma formal e em nosso próprioidioma. Porém, isso não é o que pedimosoriginalmente – ensinar ou traduzir oque nos é ensinado na educação formalnão é suficiente. Queremos ser reconhe-cidos em nosso programa de estudos, oque significa que não somos um passadoinexistente, mas sim povos, comunidadesindígenas que ainda existem, que aindaresistem. Pedimos que nossos conheci-mentos, que os conhecimentos e saberesde nossos anciãos se validem. O idioma émuito mais que só uma forma de falar; ex-

    pressa e apresenta toda uma cosmovisão,uma forma de ser e de existir. 

    As políticas públicas relacionadascom os discursos de “diversidade” e “mul-ticulturalismo” não têm sido de graça; peloque conhecemos, as políticas específicas

    para os povos e comu-nidades indígenas sãosempre o resultado deuma ocorrência específi-ca e de trabalho. Se exis-

    tem algumas feitas porboa vontade, isso ajudae também apoia o nossotrabalho, posto que sig-nifica mais um aval emfavor da nossa existênciae dos pedidos que temos

    feito. Entretanto, não seria a primeira vezque se trata de uma oportunidade de nos

    usar ou de fazer algo simplesmente paranos acalmar e nada mais. Temos que lutarcontra isso. Mas, sim, de todas as maneiras,existem ferramentas e temos que saber uti-lizá-las em nosso favor.

    Como já temos normas e instrumen-tos internacionais legais que nos apoiam,esses têm permitido o surgimento de polí-ticas públicas que nos ajudam e apoiam odesenvolvimento dos nossos povos; porém,também tivemos experiências ruins. Parti-cularmente ruim é nossa experiência coma Lei de Consulta Prévia,22 para o estabele-cimento de concessões para mineradoras eoutros [mega]projetos hídricos, energéticosetc. em territórios indígenas. Atualmenteno Peru existem muitas tensões envolven-do a união de populações indígenas e nãoindígenas contra as concessões de minera-

    doras nas bacias dos rios. As experiênciaspassadas trouxeram pobreza e prejuízos

    Para os ecologistas, o cuidadocom o meio ambiente está ligadoao cuidado e à conservação aserem dispensados na casa onderesidimos. Para nós é mais queuma casa: somos nós mesmos;somos um só: a terra, o territórioe nós. Viemos da Mãe Terra,e a ela retornaremos. Ela nosalimenta, e nós também aalimentamos e cuidamos dela

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    45/276

    45POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE TRACY DEVINE GUZMÁN

    para a diversidade e os recursos naturais.O governo ignora a Lei de Consulta Pré-via com enredos grandes e pequenos so-bre quem são obrigados a consultar, sobrequem é indígena e quem não é. [...] Agora,na região amazônica, que no seu momento já teve suas vítimas para lamentar, os indí-genas em isolamento ou até não contatadossão obrigados a saírem em defesa própria e

    brigarem com outros indígenas por causada invasão nos seus territórios.

    Para descrever a relação com nossaterra e nosso território, temos nos validode algumas palavras das organizações eco-logistas para dar conta das semelhanças ediferenças na defesa e na sua conceituali-zação. Para os ecologistas, o cuidado como meio ambiente está ligado ao cuidado e à

    conservação a serem dispensados na casaonde residimos. Para nós é mais que umacasa: somos nós mesmos; somos um só: aterra, o território e nós. Viemos da Mãe Ter-ra, e a ela retornaremos. Ela nos alimenta,e nós também a alimentamos e cuidamosdela. Então é interessante ver o trabalhoque vem sendo realizado pelos ecologistas,mas [esse trabalho] ainda não alcança a cos-movisão – o conceito que temos da terra edo território com respeito a nós mesmos;a entidade e o cuidado; a proteção e as di-ferentes necessidades que resgatamos aoproteger a terra.

    Os representantes governamentais quebuscam promover os interesses de nossaspopulações indígenas são muito poucos, etais interesses são ainda mais inviáveis emum país onde existe orgulho pelo período co-

    lonial. Essa realidade é tristemente verifica-da não apenas em meu país, mas em muitos

    outros, onde – quando se tratam de planosde desenvolvimento e avanços – nem sequersomos nomeados nos planos regionais, comofoi [o caso] na segunda conferência de popu-lação e desenvolvimento.23 

    As prioridades que temos como movi-mento indígena estabelecido estão colocadasem agendas para cada caso – global, regional,nacional e local – porque, ao ser um movi-

    mento e [também] ser mais, conseguimos juntar mais forças e exercer maior impacto.As agendas se assemelhavam muito, são qua-se as mesmas, já que infelizmente vivemosrealidades parecidas. Pelo que temos vistoda nossa rede de jovens em âmbito nacional,estamos trabalhando com quatro eixos temá-ticos: saúde; educação intercultural; mulher jovem e indígena; terra/território. Esses as-

    suntos respondem a um contexto maior emque conseguimos exercer impacto ao tornarmais visíveis as dificuldades e, com isso, ser-mos levados em consideração.

    As organizações internacionais e na-cionais de direitos indígenas e humanoscontribuem, já que com seu apoio podemosalcançar maior impacto. Além disso, temosaproveitado dessas organizações para ini-ciar e dar prosseguimento a processos demudança nos quais somos realmente reco-nhecidos e levados em consideração. Porém,esse processo é lento, por conta da escassainformação que chega às autoridades acercada conjuntura internacional que apoia e re-conhece nossos direitos. Por isso, o trabalhocontinua, e estamos aqui – sem que as forçasnos tracionem – criando movimento, geran-do consciência de um conjunto de pedidos

    e necessidades, para o reconhecimento dedireitos individuais e coletivos.

  • 8/17/2019 Observatorio Polticas Culturais

    46/276

    46   OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

      Tracy Devine Guzmán

    Professora associada e diretora do programa de doutorado no Dep