opri midos da ped ago gia

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Oprimidos da Pedagogia Bruno Martins de Paulo Freire à educação democrática

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Por Bruno Martins

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  • Oprimidos da Pedagogia

    Bruno Martins

    de Paulo Freire educao democrtica

  • Oprimidos da Pedagogia

  • Oprimidos da Pedagogiade Paulo Freire educao democrtica

    Bruno Martins

  • Coordenao EditorialIuri Martins

    RevisoBruno Giangiulio

    Produo EditorialEstdio Nibelungo

    Este trabalho est licenciado sob uma Licena Creative Commons Atribuio-NoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Internacional. Para ver uma cpia desta

    licena, visite http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0/.

    Martins, Bruno, 1984-M385o Oprimidos da Pedagogia: de Paulo Freire educao democrtica / Bruno Martins. - So Paulo: Nibelungo, 2014 132 p.

    ISBN: 978-85-68232-03-3

    1. Pedagogia. 2. Educao. 3. Educadores. I. Ttulo.

    CDD: 370

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao - CIP (Brasil)

    Catalogao na Fonte

    Ficha Catalogrfica elaborada pela bibliotecria de registro - CRB6 2027

  • Este livro pode ser encomendado ou baixado gratuitamente no site:

    oprimidosdapedagogia.com

    A reproduo parcial ou total deste livro no s permitida como incentivada, desde que no vise o lucro de indivduos ou empresas.

  • Se as coisas so inatingveis... ora!No motivo para no quer-las...Que tristes os caminhos, no foraa presena distante das estrelas!

    Mario Quintana

  • Agradeo Clara, pelo amor e companheiris-mo durante toda essa trajetria.

    A todas as minhas famlias, de todas as partes, pelo apoio incondicional.

    Ao Bruno Freitas, pela parceria imprescind-vel durante todo esse processo e pelas diversas contribuies neste livro; ao Anderson Portilho, pela busca conjunta por uma outra educao; Tathyana Gouva, Flora e Vincius Gusmo, pelas revises, orientaes e conversas; ao Iuri Martins e Bruno Giangiulio, por toparem o tra-balho de editar e finalizar este livro.

    Aos recm chegados Laurinha e Caio; ao Lu-cas, Joo Pedro, Alice, Beatriz e demais crianas com que tive o prazer de conviver ao longo da vida, pela inspirao inconsciente.

  • Dedico este texto aos meninos e meninas aos quais, por conta das circunstncias, tive que aju-dar a decorar contedos desinteressantes para que passassem nas provas. Este livro um pedi-do de desculpas.

  • Sumrio

    Prefcio 17

    introduo 21

    uM Longo exerccio de futiLidade 29teMPo rouBadotdio ou deficincia de aPrendizageM?a contriBuio da neurocinciada sonoLnciada diversoQueiMando etaPas

    eM Busca dos oPriMidos 59niveLando Por BaixoinsuBordinao MentaLuMa educao ainda Bancria

    construindo uM caMinho 77crescendo eM LiBerdadeganhando teMPocoMPartiLhando resPonsaBiLidadesLidando coM o ensino tradicionaLvioLentos ou vioLentados?freire e a educao deMocrtica

    concLuso 121

    referncias BiBLiogrficas 129

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    O incio do sculo XXI veio acompanhado de uma nova configurao das organizaes sociais, que alguns chamam de ps-modernidade ou de modernidade lquida.Trata-se de um perodo de transio nos modos de produo, nas relaes econmicas, nas relaes familiares e afetivas, e tambm na relao com o conhecimento.

    Diante de tais mudanas vemos despontar novas formas de organizao escolar, novas for-mas de aprender. Da educao infantil uni-versidade, educadores, sociedade civil e jovens, comeam a propor rupturas ao modelo con-vencional de educao, cujas origens remon-tam o sculo XVIII.

    O repensar da educao tem ampliado suas discusses nos ltimos anos, mas fortemente amparado em projetos que resistiram aos tem-pos e foram por muitos anos considerados al-ternativos. Essas iniciativas so hoje verdadei-ras inspiraes para reflexes, pesquisas, novas prticas e, principalmente, novas escolas.

    Este livro reflete exatamente isto. Tomando como exemplo as mais antigas e consagradas ex-perincias de educao democrtica do mundo, Bruno Martins faz pertinentes reflexes sobre o atual modelo de ensino brasileiro.

    Prefcio

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    Essa obra a viso crtica de um jovem pro-fessor. Um texto afetivo e denunciador, que os-cila entre os ensinamentos de grandes pensado-res da Pedagogia com exemplos prticos vividos pelo autor. Atual e pertinente, a obra dialoga com o movimento de repensar a educao, com a neurocincia e com Paulo Freire, patrono da educao brasileira.

    Trata-se do manifesto de um jovem sobre seu tempo, a voz clara e embasada de um ex-aluno e de um recm-pedagogo que vivencia as contra-dies da tradicional estrutura escolar diante de uma nova gerao, de um novo tempo, de uma nova proposta de educao.

    Leitura necessria para quem quer se aproxi-mar das novas ideias de educao, dialogar com os jovens que iniciam suas carreiras profissio-nais e embasar teoricamente os sentimentos e sensaes que jovens e crianas tm diante do sistema escolar vigente.

    Tathyana Gouva - So Paulo, 2014

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    Introduo

    A educao tem sido tema de grande interes-se da sociedade h bastante tempo. Desde o s-culo XIX observamos avanos significativos na compreenso do desenvolvimento humano e na forma de lidar com as crianas. Castigos fsicos e humilhaes so prticas que a sociedade atual repudia, e a necessidade de cuidado e ateno de conhecimento comum. Apesar disso, a edu-cao parece estar numa crise constante, pois, por mais que haja investimentos, diminuio do analfabetismo e outros dados que deveriam expressar uma viso otimista sobre a questo, ela est sempre cercada de crticas, reclamaes e denncias. Escolas em condies precrias, professores mal preparados e mal remunerados, indisciplina e indiferena por parte dos alunos, falta de participao dos pais, falta de verbas pblicas... a lista extensa. As propostas para re-solver o problema geralmente so: mais escolas, mais professores, melhores salrios, maior in-vestimento pblico, mais provas, e mais tempo na escola. No entanto, a prpria ideia de escola e o modo como organizada, pouco ou nunca questionado, como se o modelo que conhece-mos fosse o nico possvel e tudo que pudsse-mos fazer fosse tentar melhor-lo, ajust-lo.

  • 14

    Educao virou sinnimo de escola, e a es-colarizao o nico caminho para a ascenso e o prestgio social. Dentro dessa viso, o ensino pblico sem dvida o mais questionado. A competio pelas vagas nos vestibulares des-leal, e a escola pblica tida como incapaz de equiparar a qualidade do ensino privado. Mas que qualidade essa? O ensino mdio tornou-se um longo e repetitivo cursinho pr-vestibular, com testes vocacionais e simulados desde os l-timos anos do ensino fundamental, com a justi-ficativa de preparar o aluno. A acirrada disputa por uma vaga nas principais universidades gera uma reao em cadeia que atinge todo o sistema escolar, a comear pela ateno que lhe dada a partir do ensino fundamental, tornada obsesso no ensino mdio. Aumenta-se a carga horria e a rigorosidade das provas, tiram tempo de ati-vidades fsicas, artsticas, ldicas, e de tudo que no considerado relevante para o vestibular. Para as escolas particulares uma questo de comrcio: quanto mais alunos so aprovados, maior pode ser a mensalidade.

    O investimento em infraestrutura, e aqui compreende-se como sendo todos os recursos necessrios para o dia a dia de uma escola, ape-sar de necessrio, no chega perto do debate que parece ser fundamental para uma educao re-levante. Para entender melhor, basta observaras escolas de alto investimento, onde alunos e pro-fessores dispem de todos os recursos materiais necessrios. Tudo isso no evita o desinteresse geral dentro das salas de aula. preciso repensar

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    o modelo como um todo: objetivo, currculo e organizao. Na esmagadora maioria das esco-las, as respostas seriam: preparar para o vestibu-lar/mercado de trabalho, aulas expositivas sobre contedos pr-estabelecidos e enfileiramento de crianas em frente a um orador, num ambiente em que no participem de praticamente nenhu-ma deciso. Ou seja, por mais bem equipada que seja a escola, isso no pressupe um resultado pe-daggico realmente diferente de qualquer outra.

    Esse modelo escolar praticamente universal, apenas se ajustando s realidades locais. Mas o que existe de cincia por trs disso? Que pesqui-sas e estudos comprovam que essa a melhor forma de educar nossas crianas? Quem define quais contedos so importantes? De que modo essa prtica corresponde teoria estudada nos cursos de formao de professores?

    Durante meu percurso na faculdade de Peda-gogia todas essas questes foram bem pouco de-batidas, e as crticas e solues apresentadas no saam do senso comum. Conforme conheci ou-tros pedagogos e educadores em geral, percebi que a ausncia de uma anlise mais aprofundada sobre o que entendemos por educao no era exclusividade de meus professores e colegas, es-tava presente na Pedagogia como um todo. Estu-dantes de universidades pblicas, tidas como as melhores do pas, no iam muito alm ao criti-car o sistema educacional. Havia algo de errado com a cincia que me dispunha a compreender.

    No meio do curso, passei a ter contato com

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    propostas pedaggicas que buscavam outras so-lues para os problemas da escola tradicional, e conforme fui pesquisando, conversando com amigos e outras pessoas, descobri um universo amplo de experincias educativas que de fato propunham uma prtica coerente com o dis-curso. Ao perceber que, longe de serem no-vidades, estas escolas existiam h mais de um sculo e meio, a sensao de que a Pedagogia que estudava na faculdade estava absolutamen-te ultrapassada s aumentou. No a toa que nenhuma destas experincias me foi apresen-tada durante o curso, tive que encontr-las e estud-las por conta prpria.

    Desta pesquisa nasceu esse livro. Primeiro atravs da monografia de concluso de curso, agora ampliada e sem a desnecessria impes-soalidade dos textos acadmicos. O objetivo, desde o comeo, era escrever para os professo-res numa tentativa de juntos formularmos uma cincia da educao que leve em conta o co-nhecimento que vem sendo construdo nos l-timos dois sculos. No podemos mais aceitar como natural uma pedagogia que funciona ba-sicamente do mesmo modo h 200 anos. No por orgulho, mas por necessidade de agir de forma relevante para a humanidade, a Pedago-gia precisa perder esse ar ingnuo, de cincia menor, incapaz de contribuir de forma con-sistente s outras reas do conhecimento. Di-versos problemas que enfrentamos hoje neces-sitam de uma contribuio pedaggica. Mas se no conseguimos formular uma compreenso

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    atualizada nem para o local onde tradicional-mente trabalhamos, as escolas o que pode-mos oferecer ao restante da sociedade?

    Apesar disso, um educador em especial es-teve sempre presente desde o incio de minha formao: Paulo Freire. Os professores e alunos sempre o citavam e o reverenciavam. Ento fui ler. Em diversas questes, percebi suas indaga-es indo diretamente contra a estrutura escolar que conhecemos, mas ainda assim os represen-tantes desta estrutura insistiam em utiliz-lo, ao menos na teoria, e muitos de fato pareciam acreditar que seguiam, de algum modo, suas propostas. Diversas escolas e linhas pedaggicas identificam-se como seguidoras do pensamen-to freiriano, mas o que de fato levam dele para a prtica? Muitos falam em educar para a au-tonomia e a liberdade, mas de fato acreditam nisso? H coerncia? Parece que nossa incapa-cidade de realizar uma educao diferente no vem de uma ausncia de teorias sobre o assunto, mas da dificuldade em relacion-las com a pr-tica. Para alm dele, diversos outros educadores brasileiros levantaram questes importantes e pertinentes, mas de algum modo a Pedagogia, especialmente atravs da academia, conseguiu se esquivar destas crticas e reflexes.

    Com tantos exemplos, pesquisas e referncias sobre a educao que se tem e a educao que se quer, preciso encontrar dentro das prti-cas existentes o que comprovadamente no funciona e o que potencialmente transforma a

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    experincia educativa. E vivemos um momento propcio para isso. Novos debates em torno da educao vm acontecendo, e nos ltimos anos um movimento de crtica mais aprofundada ao modelo atual vem ganhando fora atravs de encontros, projetos e filmes que discutem a educao com uma proposta mais radical. Nes-se contexto, preciso analisar os pontos funda-mentais que essas discusses trazem, especial-mente sobre experincias educativas que, se no so necessariamente novas, ao menos sua expo-sio e influncia certamente o so. Escolas em que estuda-se de acordo com o interesse de cada um, em que alunos no so organizados por ida-de nem por srie e participam das decises re-ferentes s regras e necessidades da comunidade escolar surgiram h mais de um sculo, inclusive no Brasil, desenvolvendo alternativas consisten-tes e muito bem registradas ao modelo de edu-cao com o qual estamos acostumados.

    Alunos, pais e professores, embora possam discordar entre si, sinalizam que algo est erra-do. A Pedagogia tradicional fracassa de diver-sas formas e precisa urgentemente revisar suas convices mais bsicas para desenvolver uma educao que de fato se adapte s necessidades do mundo contemporneo, contribuindo para a construo de um mundo diferente, formando pessoas crticas, autnomas, solidrias e acostu-madas liberdade individual e coletiva.

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    Tempo Roubado

    Ao longo do tempo, nas mais diversas cultu-ras, as novas geraes aprendiam na convivncia comunitria os valores e as habilidades necess-rias para sua sobrevivncia. A prtica de um pro-cesso educativo separado da vida cotidiana, com um conjunto de conhecimentos sistematizados que devem ser adquiridos por todas as crianas independentemente de seu contexto social no-vidade na histria humana. No entanto, foi de tal forma se impondo sociedade que tornou-se parte fundamental da vida. Como atravs da es-cola era possvel aprender a ler, escrever e domi-nar alguns conhecimentos ditos bsicos para se integrar ao mundo contemporneo, a luta pela educao pblica e gratuita passou a figurar en-tre as demandas sociais urgentes das populaes urbanas e industriais.

    O problema confundir a necessidade de um processo educativo com a imposio de uma instituio que teoricamente seria responsvel por realizar a melhor educao possvel, e que por isso detm o direito exclusivo sobre ela.

    um Longo exeRccio de FuTiLidade

  • Oprimidos da Pedagogia20

    Uma coisa tornar o conhecimento produzido pelo homem disponvel para todos; outra, bem diferente, estipular um conjunto de saberes apontados como os mais importantes e us-los para uma padronizao do que se entende por educao e escola.

    Com esse processo, o tempo da criana pas-sou a ser ocupado cada vez mais pelo trabalho escolar. Brincadeiras e jogos, msica e artes, fan-tasia e cio, todas as atividades genuinamente infanto-juvenis foram gradativamente desvalo-rizadas no meio escolar, em favor de conheci-mentos tcnico-cientficos indicados por acad-micos. Mais: o tempo livre, sem superviso ou orientao adulta, e todo aprendizado social desenvolvido espontaneamente no convvio en-tre iguais, tambm sacrificado em favor de um ambiente hierarquizado e direcionado. A infn-cia e a adolescncia so tratadas como se no tivessem valor em si, mas como um tempo de preparo para a vida adulta, uma transio.

    Persiste a ideia de que o objetivo da educao deve ser conduzir as crianas a incorporarem os valores da sociedade em que vivem ao mes-mo tempo em que adquirem habilidades para exercerem determinadas funes requeridas por sua economia. O modelo de escola pensado du-rante a Revoluo Industrial predominante na maior parte do mundo: crianas enfileiradas em carteiras ouvindo um professor-orador; toca o sinal, sai um professor, entra outro; para uma matria, comea outra. E todo este processo, que envolve alto custo emocional, intelectual,

  • Um Longo Exerccio de Futilidade 21

    psicolgico, material e financeiro, legitimado atravs da ideia de que a escola oferece o nico caminho tanto para a ascenso social como para o desenvolvimento intelectual. Sendo assim, as instituies de ensino cumprem o nico papel de formar para o mercado de trabalho, com a bno dos pais. Para tanto, em pases como o Brasil, onde h o vestibular, as escolas dedi-cam-se quase que exclusivamente ao ingresso na universidade. No ensino fundamental e m-dio, o vestibular tido e tratado como o mais importante objetivo dos anos escolares, sendo o currculo e o tempo dedicados ao seu trei-namento aumentados ano aps ano conforme crianas e adolescentes avanam as sries, alm de servir como modelo de avaliao para me-dir a qualidade do ensino. Na corrida por uma vaga nas melhores universidades, os cursinhos pr-vestibulares aparecem como uma vantagem a mais, e os filhos das classes mdia e alta lotam estas instituies atrs de mais exerccios, aulas e simulados. Mas de conhecimento comum que o que se cobra no vestibular pouco serve para o que de fato ser estudado dentro dos cursos. Ou seja, mesmo na lgica do preparo profissional, o modelo escolar atual inadequado. Refletindo sobre a variedade de contedos exigidos, Ru-bem Alves sugeriu que:

    Pede-se, dos estudantes, que eles saibam mais, em amplitude, do que sabem cientistas j for-mados. Gostaria que os professores universit-rios se submetessem, voluntariamente, aos exa-mes vestibulares. Os resultados seriam muito

  • Oprimidos da Pedagogia22

    instrutivos. Como altamente provvel que um grande nmero no passasse, eu inclusive, a concluso inevitvel seria a de que existe algo de absurdo nas exigncias de conhecimento dos exames vestibulares..

    A grande maioria dos professores acredita sinceramente que essa preparao o melhor que podem fazer por seus alunos. Especialmente em escolas pblicas, pela histrica desigualda-de de oportunidades, professores se engajam no preparo para o vestibular e concursos pblicos em geral com a mais absoluta certeza de esta-rem contribuindo para um futuro mais justo para seus alunos. E de forma imediata, consi-derando a realidade desigual na qual muitos desses alunos esto inseridos, a possibilidade de ingressar em uma universidade pode realmente representar mais oportunidades, no apenas em relao ao mercado de trabalho mas tambm de conhecimento de mundo. No entanto, preciso considerar os efeitos colaterais de todo esse pro-cesso; muitas vezes,os resultados so inversos s intenes, e potencialmente desastrosos.

    Alm do mais, o tempo que um aluno gasta na escola chega a ser igual ou at maior que um universitrio passa na universidade. No pos-svel que tenhamos mais conhecimentos formais a aprender no ensino fundamental e mdio que no ensino superior. E esse tempo no se justifica na realizao de atividades artsticas, esportivas e extraclasse. So muitas horas por dia passando por contedos em sua maioria inteis na vida fora da escola, e no ensino mdio chega-se ao

  • Um Longo Exerccio de Futilidade 23

    ponto de vermos grades escolares com aulas no contraturno, enquanto atividades como educa-o fsica so jogadas para um horrio separa-do por no caberem no meio de tanta Qumica, Matemtica, Histria... Fora o prejuzo indireto que essa supervalorizao escolar tem no tempo dos alunos. Por exemplo, prtica comum dos pais, numa tentativa de disciplinar e mostrar a importncia da escola, proibirem seus filhos de realizarem alguma atividade da qual gostem para que se dediquem aos estudos. Quantos castigos no foram impostos por conta da esco-la? Quantos adolescentes deixaram de sair com os amigos ou namorar, quantos deixaram de ir numa festa, num cinema, numa viagem, ou per-deram o futebol do bairro por uma nota baixa? Quanto de experincia deixam de conquistar e quantas habilidades deixam de desenvolver por conta de um boletim? como se tudo que os fazemos passar na escola no fosse suficiente, precisamos nos intrometer e ocupar mais suas vidas. Substitumos o trabalho infantil na inds-tria pelo trabalho infantil nas escolas, desenha-das tal qual uma fbrica, uma linha de produo que introduz conhecimentos de forma ordenada para um resultado final padronizado. E a isso chamamos educao.

    Do ensino fundamental ao mdio, se o es-tudante no repetir nenhuma srie sero doze anos de escola, onde a maior parte do que ensinado e cobrado no serve de absolutamen-te nada para a vida prtica, nem mesmo para a profisso que se vai exercer (na realidade o que

  • Oprimidos da Pedagogia24

    muitas vezes acontece o contrrio, a univer-sidade vai desconstruir e at corrigir o que foi ensinado na escola). E no um processo ape-nas ftil, doloroso para muitas crianas, pais e educadores. So inmeros contedos que pre-cisam ser memorizados e testados; cansativo, geralmente comea muito cedo e estende-se mesmo depois do horrio escolar, nos deveres de casa e vsperas de prova. Ocupa um tempo precioso de um perodo que deveria ser marca-do pelo prazer da brincadeira e da descoberta, no pelo tdio e pela apreenso.

    Entre outros efeitos negativos, h tambm a piora nas relaes entre criana, famlia e escola por conta de problemas relacionados ao rendimento escolar. Ou seja, trata-se de um longo perodo, com diversas situaes prejudi-ciais a todos os envolvidos e que no fim das contas produz muito pouco ou mesmo nenhum resultado til.

    Tdio ou deFicincia de apRendizagem?

    Em muitas anlises dos problemas escolares, a falta de interesse dos alunos e seu mau com-portamento so apontados como os mais gra-ves por professores e especialistas, que insistem em colocar a culpa nas crianas ou nas condi-es materiais, nunca em suas prprias prticas e pressupostos. Ao descrever algumas metforas sobre o papel das instituies de ensino, John Holt afirma que a escola apresentada como:

  • Um Longo Exerccio de Futilidade 25

    (...) um hospital para alienados mentais. As escolas, de alto ou baixo nvel, tm operado sob a regra, maravilhosamente conveniente para elas, de que quando ocorre aprendizagem o crdito delas: Se voc pode ler, agradea a um professor, e de que quando no ocorre aprendizagem, a culpa dos alunos. Em uma escola de ensino fundamental, muito bem cota-da, um professor veterano chegou a afirmar: Se as crianas no aprendem o que ensinamos, porque so preguiosas, desorganizadas ou tm distrbios mentais. exceo de uns poucos professores, a maioria concordou com ele..

    Ser to difcil supor que enfileirar dezenas de crianas em uma sala fechada, depositando contedos nos quais elas no enxergam qual-quer relevncia, e esperar que se mantenham quietas e concentradas por cinco, seis ou mais horas por dia absurdo?

    Na grande maioria das escolas o currculo organizado em aulas de 50 minutos, sem inter-valos (apenas os cerca de 20 minutos de recreio para cada 5 horas de aulas), e muitas vezes com dois ou trs tempos seguidos de uma mesma matria. Se para um adulto, mesmo tratando-se de um assunto de seu interesse, muito difcil concentrar-se por mais de 30 ou 40 minutos em uma mesma atividade, especialmente no for-mato clssico de aula expositiva, para crianas e adolescentes beira o impossvel. No entanto, a despeito das evidncias, assim pensa-se a escola, e educadores e especialistas seguem buscando ex-plicar o bvio. Nesse processo, muitas crianas

  • Oprimidos da Pedagogia26

    so diagnosticadas com uma srie de problemas, desde distrbios cognitivos mais srios at a sim-ples e falsa ideia de que no se interessam, que no tm desejo de aprender ou so incapazes de se concentrar. Mas eles aprendem o tempo todo e das mais variadas formas, como as tecnologias modernas que as crianas geralmente dominam com muito mais facilidade que seus pais e pro-fessores. E o melhor, descobrem por si prprias, do mesmo modo como aprendem a andar e falar observando outras pessoas andando e falando.

    O termo autonomia vulgarmente utilizado. Diversas escolas e linhas pedaggicas o reclamam para si, mas na prtica ignoram seu significado. Quando a criana tem liberdade para escolher o que, como e quando aprender algo, o faz de maneira muito mais produtiva do que quando induzida ou obrigada por um professor. Mas na escola premia-se a memorizao, confundindo-a com aprendizagem. O desejo por aprender algo no apenas um facilitador no processo, um pr-requisito, o mais bsico de todos. Deve ser encarado como ponto de partida, pois o que aprendido fora no fica, se perde, serve ape-nas para nos enganarmos, enquanto um apren-dizado baseado no interesse legtimo, partindo de uma necessidade real, permanente. E isso influencia diretamente no estresse que senti-mos no ambiente de escolas tradicionais. H violncia por todos os lados, fsica, emocional, simblica. Os alunos esto entediados e abor-recidos, os professores frustrados, ningum gosta realmente de estar ali. Como a educao

  • Um Longo Exerccio de Futilidade 27

    vista como preparao para a vida adulta, e para a maior parte das pessoas a vida adulta feita de obrigaes e compromissos dos quais no gostam, achamos natural obrigar as crian-as e adolescentes a passarem por esse processo desde cedo, talvez para melhor prepar-los. En-to acordam antes do seu relgio natural para um compromisso dirio repleto de burocracias, horrios e atividades dirigidas, contando as ho-ras para que aquilo termine e possam de fato se dedicar ao que lhes interessa e estimula, exata-mente como a maioria dos adultos encaram seus empregos. Pelo visto mais fcil acostum-los do que questionar como nossa sociedade fun-ciona e o porqu de vivermos assim, a vida in-teira fazendo coisas das quais no gostamos.

    a conTRibuio da neuRocincia

    Muitas das questes levantadas at aqui po-dem ser percebidas apenas observando aten-tamente crianas e adolescentes no cotidiano escolar, sem a necessidade de pesquisas e ela-boraes tericas mais complexas. No entanto, a neurocincia tem revelado e confirmado as-pectos do funcionamento cerebral que podem ajudar a esclarecer e tornar obsoletas algumas prticas ainda utilizadas pela escola tradicional.Infelizmente tem-se usado os estudos entre neu-rocincia e educao como instrumento para acelerar e facilitar o armazenamento e a memo-rizao, como um atalho. Utilizam-na em favor dos velhos mtodos, no como reflexo sobre os

  • Oprimidos da Pedagogia28

    mesmos. Por isso importante rever o que di-zem os neurocientistas sobre os processos biol-gicos que possibilitam a aprendizagem e de que modo podemos relacion-los s prticas educa-tivas tradicionais.

    A primeira ideia a ser analisada a de que podemos definir um currculo padro para to-dos, que devem adquirir determinados conhe-cimentos pr-selecionados dentro de um mes-mo tempo, de uma mesma sequncia lgica e de um mesmo leque de interesses. Os pesqui-sadores Ramon Cosenza e Leonor Guerra, em seu livro Neurocincia e Educao, definem o que aprendizado para a neurocincia e suas caractersticas:

    (...) do ponto de vista neurobiolgico a apren-dizagem se traduz pela formao e consolida-o das ligaes entre as clulas nervosas. fruto de modificaes qumicas e estruturais no sistema nervoso de cada um, que exigem energia e tempo para se manifestar. Professo-res podem facilitar o processo, mas, em ltima anlise, a aprendizagem um fenmeno indi-vidual e privado e vai obedecer s circunstn-cias histricas de cada um de ns..

    Essa constatao especialmente importan-te para afastar de vez a idia de que o profes-sor (ou qualquer outro adulto) o responsvel pela aprendizagem. No . Como dito, o mxi-mo que pode ser feito facilitar, estar ao lado, sugerir, apresentar possibilidades, buscar solu-es em conjunto. Colocar um orador em fren-

  • Um Longo Exerccio de Futilidade 29

    te s crianas e acreditar que est acontecendo um processo de ensino-aprendizagem ab-solutamente ingnuo, falso, e cientificamente incorreto. O modo, o tempo e a intensidade que cada um dedicar a cada atividade e disci-plina no pode ser padronizado, muito menos sua avaliao.

    O segundo aspecto trata da irrelevncia do que apresentado como currculo nas escolas e o motivo da resistncia dos alunos em armaze-nar tais contedos. Tambm ajuda a explicar o porqu da imensa maioria dos adultos no rete-rem estas informaes ao longo da vida, mesmo tendo se dedicado ao seu estudo durante anos e anos na escola. O crebro simplesmente no ar-mazena o que no julga relevante, por mais que sua memorizao seja forada. Para objetivos es-pecficos, como passar de ano ou no vestibular, ele capaz de guardar provisoriamente aquelas informaes, pois, por mais que no sejam re-levantes em si, so relevantes para um objetivo maior. Mas to logo ele atingido, estas mem-rias vo se perdendo. Cosenza e Guerra expli-cam da seguinte forma:

    Devemos ter em mente que o crebro um dispositivo aperfeioado pela natureza ao lon-go de milhes de anos de evoluo com a fi-nalidade de detectar no ambiente os estmulos que sejam importantes para a sobrevivncia do indivduo e da espcie. Ou seja, o crebro est permanentemente preparado para apreender os estmulos significantes e aprender as lies que da possam decorrer.

  • Oprimidos da Pedagogia30

    Essa uma boa notcia para os professores, ao mesmo tempo em que , talvez, o maior desa-fio que tm no ambiente escolar. Podemos di-zer que o crebro tem uma motivao intrnse-ca para aprender, mas s est disposto a faz-lo para aquilo que reconhea como significante..

    Ou seja, estamos indo contra nossa prpria natureza! Primeiro por querermos que o crebro trabalhe contra seu instinto de sobrevivncia, ao gastar energia e espao memorizando infor-maes sem qualquer relevncia. Segundo, por ignorarmos sua tendncia natural por explorar o mundo e aprender sobre ele, julgando que se no direcionarmos este processo as crianas no aprendero nada.

    O nico equvoco dos autores est na con-cluso deste raciocnio, ao afirmarem que a maneira primordial de capturar a ateno apresentar o contedo a ser estudado de ma-neira que os alunos o reconheam como im-portante. Essa reflexo no suficiente. No se trata de apresentar o contedo como sendo importante, mas de apresentar contedos que sejam importantes. E quais seriam esses conte-dos? Aquilo que reconhecemos como relevante para nossa sobrevivncia, ou seja, as informa-es que nos ajudam no processo de explorar o mundo. O problema que, ainda segundo os autores, a sobrevivncia, na escola, pode sig-nificar simplesmente aprender para passar na prova. E depois, rapidamente esquecer.

    Como dito anteriormente, no necessrio

  • Um Longo Exerccio de Futilidade 31

    um conhecimento profundo de neurocincia para perceber esse processo de esquecimento. Basta observar atentamente a postura da gran-de maioria dos alunos em relao ao que lhes oferecido, e o que fica de tudo isso aps algum tempo longe da escola. Rubem Alves explica:

    O corpo, quando algo indigesto para no est-mago, vale-se de uma contrao visceral sau-dvel: vomita. A forma que tem a cabea de preservar a sua sade, quando algo desagrad-vel despejado l dentro, no deixa de ser um vmito: o esquecimento..

    Quem sabe e sente o que importante e sig-nificativo a prpria pessoa atravs de suas ca-ractersticas e de sua histria, no algo que possa ser padronizado num currculo obriga-trio. Temos necessidades diferentes, por isso somos indivduos. O que essencial para uma criana pode ser absolutamente intil para ou-tra, e como temos uma tendncia natural por aprender (fizemos isso ao longo de toda nossa histria), no h motivos biolgicos ou empri-cos para duvidarmos de que o melhor que pode-mos fazer enquanto educadores criar um am-biente acolhedor e estimulante no qual crianas e adolescentes possam transitar e decidir com liberdade o que lhes interessa aprender, seja por conta prpria ou junto de colegas e professores.

    H outra caracterstica do funcionamento ce-rebral que explica o motivo de boa parte do que se estuda na escola se perder ao longo da vida.

  • Oprimidos da Pedagogia32

    Para que alguma informao seja transformada em aprendizado, alm das condies j discuti-das, preciso que ocorram determinados pro-cessos que a psicologia cognitiva identifica como repetio, elaborao e consolidao. O conte-do escolar j falha no primeiro: como a grande maioria das pessoas passa a vida inteira sem uti-lizar contedos que foram cobrados em provas e vestibulares, aquela informao simplesmente esquecida. Um fsico lembrar com facilidade de uma frmula que utiliza constantemente em seu trabalho, mas provavelmente no lembrar o significado das figuras de linguagem do por-tugus. No se trata de repetir incansavelmente uma informao em voz alta ou escrev-la cin-quenta vezes no caderno, mas de reutiliz-la pe-riodicamente. O crebro sabe que ela impor-tante, pois precisa consult-la constantemente. Mais uma vez, Cosenza e Guerra explicam:

    Como obter uma boa nota na avaliao com frequncia o nico objetivo do estudo vislumbrado pelos estudantes, comum que eles estudem somente nas vsperas da prova, de forma que um grande nmero de infor-maes se acumula, sem muita elaborao, na memria operacional. Como essa memria transitria, caso no haja novas ativaes da mesma experincia, o resultado um rpido esquecimento. preciso ter em mente que a aprendizagem definitiva s se far com a for-mao e estabilizao de novas conexes sinp-ticas, o que requer tempo e esforo pessoal..

  • Um Longo Exerccio de Futilidade 33

    O processo de elaborao tambm negligen-ciado, j que as informaes so apresentadas de forma compartimentada e fora de contex-to, dificultando que sejam vinculadas a outras j existentes, o que possibilitaria a formao de uma rede neuronal mais complexa e, portan-to, com mais chances de permanncia. Assim, perde-se a oportunidade de desenvolver uma aprendizagem significativa e duradoura em lu-gar de um limitado armazenamento provisrio de conhecimentos complexos e desconexos. Por tudo isso, o aprendizado realizado na escola no chega ao processo de consolidao, no qual ocorrem alteraes biolgicas nas ligaes neu-ronais. Alguns, bsicos, como a Matemtica e o Portugus, utilizados no dia a dia, so consolida-dos. Mas a grande maioria das informaes se perde, e quanto mais avanam os anos escolares, especialmente no ensino mdio, onde aprofun-dam-se os contedos, mais e mais informaes vo sendo acumuladas para em seguida serem apagadas num longo, dispendioso e frustrante exerccio de futilidade.

    da sonoLncia

    Existem evidncias de que esse processo de consolidao ocorre durante o sono (Cosenza e Guerra, e h um consenso de que preciso respeitar o relgio natural de cada um. No mundo adulto isso no considerado, e na es-cola tambm no. H diversos estudos sendo feitos relacionando estresse e outros distrbios

  • Oprimidos da Pedagogia34

    reduzida quantidade de sono caracterstica da vida moderna, sobretudo nas grandes cidades.

    Especialmente para os adolescentes, ou ao menos para a maioria deles, a rotina escolar j comea como um peso desde o despertar. nor-mal que nessa faixa etria o horrio de dormir avance algumas horas, seja por ficar na rua at a noite, pelos programas de TV que terminam mais tarde, ou qualquer outro motivo. O fato que boa parte deles no dorme s dez da noite, e com os turnos comeando a partir das sete ho-ras da manh, muitos acordam s seis ou mesmo antes, resultando em uma mdia de sono abaixo do necessrio e recomendvel para a idade. O resultado cognitivo bvio: sonolncia e con-sequente baixo aproveitamento das atividades realizadas. Essa privao de sono tambm afetar atividades fora da escola, alm de desestimular o adolescente a realiz-las, pois seu corpo est can-sado. E no questo de obrig-los a se deitarem mais cedo, preciso respeitar que os interesses e hbitos mudam; preciso apenas bom senso. Alm do mais, certas atividades simplesmente no so agradveis nesse horrio. H jovens que podem gostar de escrever, mas no o faro com prazer ou inspirao s sete horas da manh.

    Para os pais de crianas pequenas, a justifica-tiva de ter que deix-las cedo na escola para ir ao trabalho compreensvel, mas para adolescen-tes, que geralmente vo e voltam por conta pr-pria, no faz qualquer sentido os horrios aos quais so submetidos. E s pioram a situao.

  • Um Longo Exerccio de Futilidade 35

    da diveRso

    Na parede de um botequim de Madri, um cartaz avisa: Proibido cantar. Na parede do ae-roporto do Rio de Janeiro, um aviso informa: proibido brincar com os carrinhos porta-ba-gagem. Ou seja: Ainda existe gente que canta,

    ainda existe gente que brinca.

    Eduardo Galeano

    Em uma revista direcionada aos educadores, uma especialista em educao responde uma pergunta sobre a necessidade das aulas de His-tria serem divertidas. Ela afirma que no, pois a postura intelectualmente ativa esperada do estudante e a construo de novos saberes quase nunca incluem a diverso como ponto de par-tida. Essa perspectiva sintomtica do estado como ainda pensa-se o processo de aprendiza-gem. O momento pedaggico ritualstico. No consta a informao sobre a qual segmento a pergunta e a resposta se referem, o que ainda mais preocupante, pois abre a possibilidade de se interpretar que mesmo para crianas de seis ou sete anos o estudo da Histria no deve preo-cupar-se em ser prazeroso e divertido, mas sim em despertar a postura intelectualmente ativa desejada por especialistas da educao.

    Ignoram que a criana absolutamente ativa quando descobre algo novo, quando o faz por prazer e de forma autnoma. Isso acontece em todas as fases do desenvolvimento, tanto fsico como intelectual. Uma atividade prazerosa faci-lita o processo cognitivo, e a neurocincia tem

  • Oprimidos da Pedagogia36

    contribudo para a consolidao dessa afirma-o, demonstrando como emoes positivas so essenciais para a aprendizagem. Sobre o am-biente, Cosenza e Guerra apontam que a flexi-bilizao dos recursos didticos, com o uso ade-quado da voz, da postura e de elementos como o humor e a msica podem ser essenciais, princi-palmente para estudantes de menor idade, mas tambm para platias mais maduras.

    Quando dava aulas de espanhol numa turma de primeiro ano do ensino fundamental, a atividade de que mais gostavam era a brincadeira da forca. Nos revezvamos escolhendo palavras do vocabu-lrio que havamos trabalhado e testando quem conseguia acertar as letras e adivinhar as palavras. Divertiam-se muito com o desafio, e, nesse pro-cesso, alm de repassarem e consolidarem o que tinham aprendido, descobriam as letras mais co-muns, as diferenas entre a forma de se escrever nas duas lnguas mesmo quando o som era parecido, e chegavam a algumas concluses sobre a formao das palavras, sabiam bem quando o que faltava de-via ser uma vogal ou uma consoante, mesmo sem trabalharmos as letras separadas por estas defini-es. Algum que passasse pela sala durante essa atividade poderia pensar que estvamos apenas brincando. E estvamos, mas espontaneamente tambm aprendamos, pois a brincadeira no foi proposta com segundas intenes pedaggicas. O aprendizado que possibilitou surgiu de uma situa-o real, do nosso desejo de fazer algo divertido juntos. Se em vez de simplesmente participar eu

  • Um Longo Exerccio de Futilidade 37

    ficasse a todo instante chamando ateno para o que descobriam naturalmente, poderia atrapalhar todo o processo.

    Ainda assim, especialistas continuam subes-timando essas evidncias, afastando as crianas de si e dos contedos que pretendem ensin-las, criando situaes formais, muitas vezes estres-santes, que s atrapalham o desenvolvimento e a aprendizagem. preciso tambm levar em conta que a revista em questo distribuda para professores de todo o Brasil, muitos pos-sivelmente influenciados por ideias como esta, vindas de mestres e doutores em educao das mais renomadas universidades do pas.

    Queimando eTapasOs pedagogos so os nicos a pretender quei-mar etapas, a ter maior xito que a natureza e a se obstinar orgulhosamente em seus erros, no

    obstante a evidncia de seus fracassos.

    Freinet

    Como cincia, falta Pedagogia maior con-sistncia para se colocar de forma afirmativa e estabelecer seus princpios bsicos (ainda que li-mitados pelo carter inexato das humanidades, no podendo, por isso, ignorar sua abertura subjetividade). Considerando-se a experincia dos ltimos 200 anos, possvel fazer um ba-lano dos resultados que a educao do mundo contemporneo plantou e colheu, para ento

  • Oprimidos da Pedagogia38

    realizar uma reviso atenta de seus pressupostos. Mas no isso que vemos nas universidades, nem nas salas de aula. O currculo pr-estabelecido, a escolha do que importante, o agrupamento por idades, as onipresentes aulas expositivas, as formas impessoais e quantitativas de avaliao, a abusiva e irrestrita diretividade plena de todas as atividades, as aulas de 50 minutos, o mnimo espao para as artes, para as atividades fsicas, para a brincadeira e tantas outras prticas pre-sentes em quase todas as escolas que conhecemos no so questionadas. Nos cursos de Pedagogia discute-se como melhorar o que j existe, numa perspectiva reformista, e nunca considerado que o que j existe pode estar completamente ultrapassado. Os pedagogos so responsveis por essa estrutura escolar, pois esto em todas as partes nas escolas e ensinam isso nas faculdades, demonstrando que acreditam no sistema como . E fazem concesses demais.

    A educao infantil ainda mantm um ar maternal, um tanto ingnuo e pedante de tratar as crianas, forando situaes estressantes que podem mais adiante causar problemas no seu desenvolvimento. Por exemplo, nas faculdades de Pedagogia j dito que iniciar a alfabetiza-o antes dos seis anos uma prtica equivocada e desnecessria, a menos que parta da prpria criana o desejo de ser alfabetizada nesse pero-do. At mais ou menos tal idade, a criana ainda no tem muita coordenao motora fina, que precisamos para escrever. Nesse momento reali-zar outras atividades psicomotoras importante

  • Um Longo Exerccio de Futilidade 39

    para o desenvolvimento de noes de espao e conhecimento do prprio corpo. O trao cuidadoso e equilibrado da escrita trabalhoso e muitas vezes frustrante para crianas de trs, quatro ou cinco anos.

    Pois bem, ao que parece a Pedagogia afirma que como cincia, como conjunto de saberes sis-tematizados, condena e no recomenda a prtica da alfabetizao forada antes dos seis anos. E o que fazem a maioria das creches? Comeam a alfabetizao antes do tempo! E quem dirige a creche? Quem coordena? Quem faz isso em sala? Pedagogos! Por presso dos pais, que que-rem ver resultados, foram as crianas a um prematuro exerccio para o qual seu corpo no est preparado. Dizem: Nesta srie precisam terminar o ano ao menos escrevendo o nome. A importncia dos pais na educao subesti-mada e mal aproveitada, mas h uma diferena enorme entre colaborao e palpite, ou ento que a Pedagogia no se assuma como cincia. Imagine os pais levando o filho ao pediatra e solicitando um tratamento ultrapassado e desa-tualizado. Deve ele assumir o risco de praticar algo contraindicado simplesmente porque os pais assim desejam?

    Algumas crianas comeam a ler e escrever com quatro anos, por conta prpria. Outras, com seis, ainda no tm interesse ou coordena-o motora suficiente. Como identificar ento que uma criana est no momento certo de ser alfabetizada? Quando ela manifestar o desejo ou comear a ler e escrever por conta prpria, como

  • Oprimidos da Pedagogia40

    muitas fazem. Quando comear a fazer pergun-tas sobre as palavras, testar rabiscos no papel, copiar algumas letras, enfim, quando solicitar, e na velocidade que ela quiser. Faz-las memori-zar mecanicamente o traado de seus nomes s tem valor esttico (para pais e professores), no significa aprendizado, e muitas vezes atrapalha o processo de alfabetizao. Aprender a ler e es-crever j por si s uma tarefa complexa (ns, que o fazemos a tanto tempo, nos esquecemos disso). Se no gostamos de trabalhar sob pres-so ou numa velocidade e exigncia superiores nossa capacidade, imagina quem ainda est co-meando a compreender o mundo?

    John Holt foi um educador americano que escreveu alguns livros descrevendo suas expe-rincias e observaes sobre como as crianas aprendem e o efeito do ensino tradicional nesse processo. Acompanhando crianas de diversas idades, analisou detalhadamente os caminhos que elas fazem at chegarem a concluses, novos aprendizados e ao desenvolvimento de formas de pensamento complexas que envolvem uma srie de funes que muitas teorias cognitivas afirmam s serem possveis a partir de determi-nada idade. Ele destaca a importncia da con-fiana nesse processo difcil e s vezes assusta-dor que aprender uma lngua: A sala de aula tpica com outras crianas sempre prontas a apontar, corrigir e achincalhar cada erro come-tido, e com professores que, voluntria ou in-voluntariamente, acabam tambm fazendo a seu modo o que os alunos fazem o pior lugar possvel para uma criana comear..

  • Um Longo Exerccio de Futilidade 41

    Existem outras atitudes que muitas vezes nos passam despercebidas, porque bem intencio-nadas, mas que influenciam negativamente no modo como as crianas se sentem na escola. Lembro que quando trabalhava com educao infantil, numa turma de quatro a cinco anos, havia um menino que sempre chegava muito mal humorado e no fazia questo alguma de falar comigo. Na verdade no era pessoal, de toda a turma havia apenas um menino de quem ele gostava e queria sentar perto. Pensando em como resolver aquela situao, reparei que ele sempre chegava alguns minutos atrasado, ento passei a anunciar com exagerado entusiasmo sua chegada, com a ideia de que talvez assim ele se sentisse mais querido pela turma e quem sabe ficasse mais vontade e socivel. Mas nada mu-dou. Demorou algum tempo para que eu per-cebesse que o que eu estava fazendo s piorava a situao. Se o momento de entrar em sala era de ansiedade e desconforto, o pior que eu podia fazer era voltar todas as atenes pra ele justo nesse momento. Abandonei o hbito e passei a, aparentemente, ignorar sua chegada e deixar que entrasse sem alarde. Esperava alguns minu-tos e lhe perguntava se gostaria de participar da atividade. Normalmente queria, s vezes no. O tempo que tivemos aps esse episdio foi insu-ficiente para saber o desenrolar desse processo, mas claramente ele ficou menos incomodado quando abandonei a tentativa de ajud-lo. Mui-tas vezes isso o melhor que podemos fazer, dei-xar que se aproximem quando quiserem, em seu tempo e a seu modo.

  • Oprimidos da Pedagogia42

    Outro hbito terrvel que muitos adultos tm o de ficar corrigindo qualquer erro cometido pelas crianas em seu processo de aprendizagem. H um professor dentro de ns preocupado em aproveitar qualquer momento, qualquer brecha, para ensinar algo. A criana faz uma pergunta, mas no nos contentamos em responder o que perguntaram, queremos aproveitar para fazer al-gum outro questionamento, test-la, ensinar algo a mais. A mensagem que passamos com estas ati-tudes muito bem descritas por Holt de um desrespeito muito grande pelo processo pelo qual esto passando. Ningum gosta de ser testado o tempo todo, de ser corrigido o tempo todo. So-bre os erros, Holt conta uma histria que explica bem o tipo de raciocnio que as crianas realizam e que os adultos quase sempre ignoram:

    A troca de Jill de fez por fazeu um exem-plo do tipo de erro que as crianas cometem com frequncia em suas falas. Quando no os achamos engraadinhos, tendemos a julg-los como no gramaticais, como mais um exem-plo de falta de habilidade das crianas ao imi-tar a lngua dos adultos. O fato, no entanto, que, ao faz-lo, a criana no est nem imi-tando nem fazendo um uso no gramatical da lngua. Est inventando, orientada por uma in-tuio gramatical perfeita. Ela no est dizen-do fazeu por ter ouvido algum dizer; quase certo que isso nunca aconteceu. Ela o faz por-que sabe embora no possa verbalizar esse conhecimento que outros verbos formam o passado pelo acrscimo da terminao eu, donde supe que o verbo fazer se comporta

  • Um Longo Exerccio de Futilidade 43

    da mesma maneira. Trata-se de uma hiptese absolutamente razovel e que atesta uma capa-cidade de distino gramatical perfeita. Por es-sas e outras, deveramos tratar tais erros no com uma correo apressada e grosseira, mas com compreenso e delicadeza..

    Em seu processo de explorar o mundo, crian-as formulam diversas hipteses e as vo tes-tando, com isso chegando a concluses sobre esse mundo complexo que as cerca. Na maioria das vezes elas se corrigem sozinhas, se no as importunarmos. Ao corrigi-las o tempo todo, no apenas as impedimos de desenvolver a ca-pacidade de aprender por conta prpria, como muitas vezes as desestimulamos a seguir com o processo, pois esto sendo constantemente lem-bradas do pouco que sabem e dos erros que co-metem, em vez de estimuladas pelas descobertas que fazem. No h qualquer evidncia de que uma criana que cometa algum erro gramatical, se no for corrigida imediatamente, levar esse erro pro resto da vida.

    A grande dificuldade de perceber isso parece estar naquele professor dentro de ns, sempre querendo agir pedagogicamente, mesmo quan-do no requisitado. Holt, de novo, explica:

    So muitas as pessoas que parecem ter cons-trudo suas vidas em torno da noo de que elas so, de alguma forma, indispensveis s crianas, e questionar isso atacar o ncleo de seu prprio ser, a imagem mais ntima que elas tm de si mesmas..

  • Oprimidos da Pedagogia44

    Aprendemos a ler pelo mesmo motivo que aprendemos a falar: as letras esto em todos os lugares, as pessoas usam o tempo todo e logo as crianas reparam que aquelas linhas tm um sig-nificado. Querem aprender, sabem que podero fazer mais coisas se dominarem aqueles smbo-los, e mais cedo ou mais tarde faro da leitura e da escrita algo to corriqueiro quanto o ato de falar. Acontece de forma muito natural, no exis-te um momento certo para isso ou aquilo, nem uma ordem exata em que os conceitos devem ser apresentados. Nem preciso importunar a criana para que aprenda, insistindo, fazendo ameaas, dizendo-lhe que se no aprender ser a nica a no saber, que uma criana dessa ida-de j deveria estar lendo e da por diante. Es-tou convencido de que a forma de transformar crianas em alunos abobalhados e que odeiam livros ficar provocando-os e aborrecendo-os com o assunto, diz Holt em certa hora, com toda razo. Obrigam todos a lerem os mesmos livros, na mesma idade. Certa vez uma profes-sora de literatura me contou que s conseguiu ler Machado de Assis depois dos trinta anos, quando ento se apaixonou e passou a ler toda sua obra. Senti um alvio enorme ao saber disso, pois gostava de ler bastante coisa aos dezessete anos, mas no conseguia terminar um livro dele. Claro, no era hora. Assim como ainda no foi. E pode ser que eu nunca chegue a ler um livro do Machado: quem disse que podemos escolher pe-los outros qual autor imperdvel em sua vida? Isso no se refere apenas leitura, e perceptvel se analisarmos o nvel de interesse dos adultos

  • Um Longo Exerccio de Futilidade 45

    que passaram pela escola em assuntos que fo-ram obrigados a estudar quando estavam nela. Quantos buscam saber mais sobre Qumica, F-sica ou Geografia? Muitas vezes o sentimento ao sair de alvio, de esquecer as provas, exerccios, frmulas... Qualquer ideia de aproximao com um conhecimento sistematizado causa estranhe-za; parece que o crebro a associou com um sen-timento de tdio, frustrao e alheamento.

    Outra concesso comum e um tanto cruel ignorar a necessidade do corpo da criana por conta das necessidades dos pais, como os que pedem escola que no deixem o filho dormir durante o dia, para que durma quando chegar em casa. Para evitarem o trabalho (!?) de estar com o filho acordado por muito tempo, no permitem que descansem durante o dia. E a es-cola atende...

    H tambm a limitao de atividades fsicas, artsticas e ldicas. Mais uma vez a contradio: nos cursos de Pedagogia fala-se sobre a impor-tncia que essas atividades tm no desenvolvi-mento fsico e cognitivo da criana, mas as es-colas, sempre na contramo, oferecem muito pouco tempo e espao para tais atividades. Lem-bro de uma tarde chuvosa em que entrei numa turma de crianas de quatro anos. Eram uns vin-te, e neste dia foi impossvel realizar qualquer atividade com eles. Estavam agitados, agressi-vos e ensurdecedores. Ao sair, comentei com a auxiliar da turma o ambiente incomum, e ela me explicou que nesse dia, por conta da chuva, no tinham podido ir ao campo onde corriam

  • Oprimidos da Pedagogia46

    e brincavam vontade. Essa constatao bem bvia, qualquer pai percebe isso observando seu filho. As escolas, pelo visto, no. Exigem uma concentrao intelectual sem oferecer a possi-bilidade de a criana extravasar a energia que tem dentro de si, no apenas fsica, mas energia criadora, que encontra na arte, na msica, no teatro e em tantas outras formas de expresso, um meio de se expandir.

    Por essas e outras que Freinet tinha razo: estamos pretendendo ter maior xito que a pr-pria natureza. preciso que a Pedagogia se leve mais a srio, faa uma reviso do que prope e pare de fazer concesses, ou periga seguir desa-tualizada e sem responder s demandas que a realidade cobra.

  • 47

    niveLando poR baixo

    A educao muitas vezes entendida como a forma das sociedades transmitirem os conheci-mentos necessrios para sua preservao e ma-nuteno. Se o objetivo do processo educativo for simplesmente manter a ordem social como est, no faz sentido propor uma educao que instigue o pensamento crtico e a inovao ou cultive valores como liberdade e autonomia.No ser possvel pensar uma outra educao sem pensar uma outra sociedade, e vice versa.

    Por isso o carter poltico da Pedagogia no pode ser ignorado. H quem acredite que o modo como poltica e economia so organiza-das atualmente seja o auge da histria humana, precisando apenas de alguns ajustes. Para estes, a mudana na escola no far sentido, afinal, boa parte dos alunos demonstra aprender com ela os valores e prticas da sociedade capitalista: tornam-se competitivos e individualistas, fun-cionando sob presso e por recompensas, como a lgica do trabalho; no perdem tempo pen-sando em problemas que no os envolvam di-retamente nem pensam a sociedade de forma

    em busca dos opRimidos

  • Oprimidos da Pedagogia48

    crtica; no acostumam-se liberdade; no ex-perimentam a autonomia nem a solidariedade. Por tudo isso, aos pais e educadores que no en-xergarem nenhuma necessidade de transforma-o do mundo e dos valores e prticas que nele compartilhamos, a escola no ter motivos para mudar sua forma de atuar.

    Acontece que muitos pensam de forma refle-xiva, e por mais que no tenham claro de que maneira poderia o mundo ser transformado, sabem que ser preciso mud-lo para que seus filhos e alunos disponham de uma sociedade de-cente na qual possam se desenvolver. O proble-ma quando estes pais e educadores, que poten-cialmente poderiam ajudar na transformao concreta da escola e assim contribuir para uma possvel transformao da condio humana, aceitam solues superficiais como salvao. Por mais bem intencionados que sejam, seus ques-tionamentos produziro pouco ou mesmo ne-nhum resultado.

    Desde junho de 2013, quando o Brasil viveu uma onda de manifestaes h muito no vis-ta, a melhora no sistema educacional ganhou grande relevncia, estando presente com carta-zes e discursos. E o que reivindicavam? Melho-res salrios para os professores, maior inves-timento na infraestrutura, mais escolas, mais salas de aula...

    Estas reivindicaes so direcionadas princi-palmente ao ensino pblico, pois de um modo geral parte-se do princpio que nas escolas

  • Em Busca dos Oprimidos 49

    particulares est tudo bem, que seus alunos so privilegiados, e muitas delas so tidas como exemplo a ser seguido. Escolas tradicionais do Rio de Janeiro, por exemplo, so extremamente competitivas em seus processos de seleo, me-dindo atravs de critrios absolutamente ques-tionveis quais alunos sero merecedores do pri-vilgio de sentar em suas carteiras e ouvir seus mestres. Como os cursinhos pr-vestibulares, estas instituies enxergam a educao como ca-pacidade de armazenamento de informaes, e tudo que sabem de Pedagogia so os macetes, os caminhos para chegar a esta memorizao. Algumas, verdade, ainda oferecem oportuni-dades de atividades fora do currculo, mas sem-pre numa proporo muito menor que o tempo gasto nas salas de aula. Frequentemente usam a neurocincia, tanto no discurso como na prti-ca, como ferramenta para atingir mais rpido estes objetivos. H sempre um professor mi-lagroso, seja particular ou em cursinhos, que consegue motivar os alunos e ajudar a que con-sigam as notas que precisam. Acontece que no so educadores, so bons oradores com estrat-gias para a decoreba de um contedo. Pergunte a um destes o que sabe de seus alunos, seu de-senvolvimento emocional, seus desejos, interes-ses, potencialidades, seus problemas. Nada, nem teriam como saber. Os particulares atendem di-versos alunos por dia. Dos cursinhos, chegam a ter mais de 100 na mesma sala. Como palestra motivacional timo; como ideal pedaggico, um retrocesso. E tome musiquinha pra apren-der frmulas...

  • Oprimidos da Pedagogia50

    Se o nico quesito levado em considerao nessa anlise for a preparao para os vestibu-lares, as escolas particulares so inegavelmente superiores, e qualquer lista de aprovao das principais universidades do pas evidencia isso. Mas se pensarmos a educao como um proces-so mais abrangente que uma mera preparao competitiva, instituies pblicas e particula-res se parecem muito mais do que se imagina. Dizer isso no negar que as condies de tra-balho na grande maioria das escolas pblicas sejam inferiores s das particulares. No pre-ciso repetir o que inmeras pesquisas e estu-dos j demonstraram sobre a situao precria de muitas escolas pelo Brasil, alm dos locais em que nem esta precariedade chega. Por conta disso, claro que como ao a curto prazo, em carter emergencial, muitas destas medidas so necessrias. O engano est em acreditar que so suficientes, e que estes so os verdadeiros pro-blemas do sistema educacional. Se assim fosse, alunos de escolas particulares no demonstra-riam desinteresse, baixo rendimento, indisci-plina, entre outros problemas tambm verifi-cados no ensino pblico.

    Por esta razo, a ideia de que mais aulas, mais exerccios, mais professores e mais escolas o suficiente para se chegar a uma educao justa e de qualidade incompleta, pois no ques-tiona a raiz do sistema escolar que, como tem sido apontado, constitui o motivo de sua pr-pria ineficincia. preciso problematizar estas prticas. H professores de escolas pblicas que

  • Em Busca dos Oprimidos 51

    corrigem redaes do ensino fundamental, por exemplo, com a rigidez da correo de um con-curso pblico, acreditando que assim estaro preparando melhor seus alunos e colocando-os em p de igualdade com os de escolas particula-res na disputa por uma vaga mais adiante. Dis-tribuem zeros sem perceber o que aquela nota pode representar para aquele jovem, nem que o que est dizendo na verdade que nada do que aquele aluno produziu tem qualquer valor. No percebem o mal que sua rigidez pode cau-sar autoestima das crianas e ao seu prazer em realizar atividades como escrever. Em nome de uma possvel justia futura, sabotam a aprendi-zagem prazerosa no presente. Para estes profes-sores, agarrados a certezas como esta, suas boas intenes no evitaro o fracasso de sua prtica, e quanto mais insistirem nela sem uma reviso crtica do seu trabalho, mais estaro colaboran-do para o desinteresse dos seus alunos.

    Garantir que todas as crianas estejam den-tro de uma sala de aula, com professores bem remunerados, em escolas bem equipadas e orga-nizadas no sinnimo de uma boa educao ou aprendizado, tampouco um atestado de que seus direitos esto sendo respeitados. Se no for con-siderado o que esto fazendo l dentro e com qual objetivo, a essncia ser a mesma, apenas com um acabamento melhor. Na prtica, ser apenas uma maneira mais eficiente de errar, um prejuzo ainda maior.

    Posto isso, de que modo podemos interpretar as reaes dos alunos ao que oferecemos como

  • Oprimidos da Pedagogia52

    modelo escolar? No so reaes polticas, ain-da que inconscientemente?

    insuboRdinao menTaLNo sinal de sade estar bem ajustado a

    uma sociedade profundamente doente.

    Jiddu Krishnamurti

    Do mesmo modo como os adultos, crianas e adolescentes compreendem o mundo em que vivem e respondem a ele de formas diferentes. Tratando especificamente dos adolescentes, que j passaram muitos anos nos bancos escolares e lidam com uma quantidade enorme de ma-trias, existe um grupo que aceita e internaliza essa lgica, acreditando fielmente no ensino que recebem e que eventuais falhas so por sua pr-pria culpa; acreditam que a qualidade da escola se mede por suas aprovaes nos vestibulares.

    Mas h os que no se adaptam, e sua postu-ra, por menos consciente que seja, demonstra o quo obsoleto e ineficiente o sistema edu-cacional, ao se negarem a reconhecer sua im-portncia e a aceitar suas regras. Suas respostas nos fornecem um rico panorama da realidade escolar, e interpret-las de forma simplista serve apenas para nos esquivarmos de responsabilida-de pelos resultados obtidos. Se o diagnstico insatisfatrio, o paciente no tem o direito de recus-lo? Deveria submeter-se passivamente a um tratamento com o qual no concorda por pura obedincia posio ou diploma do mdico?

  • Em Busca dos Oprimidos 53

    Na educao esta discusso torna-se ainda mais relevante por se tratar de uma cincia humana, mais suscetvel observao subjetiva. Adultos baseiam-se no eterno argumento de que sabem o que melhor para a criana, mesmo que no momento a criana no perceba. Mas as res-postas que elas nos do indicam o contrrio, e analisar com cuidado este aspecto essencial na busca por uma educao melhor. Como bem disse Rubem Alves, A recusa em aprender uma demonstrao de inteligncia. O fracasso da educao , assim, uma evidncia de sade e um protesto.

    Se essa concluso vlida, o sistema de ava-liao que temos hoje precisa ser urgentemente revisto, pois as respostas que apresenta so en-ganosas e em muitos casos antagnicas realida-de. Avalia-se a qualidade dos alunos por testes e notas, de acordo com o que tido como impor-tante dentro da tica do prprio sistema. Mas se chegarmos concluso que essa tica no nos serve mais, a avaliao feita dentro destes par-metros no indica nenhum dado qualitativo a respeito do desenvolvimento dos alunos, j que muitos poderiam ser melhor ou pior avaliados se considerarmos outros fatores que no a me-morizao dos contedos considerados impor-tantes pela escola. Por exemplo, pode ser que o aluno com melhores notas de determinada classe consiga essas notas dedicando-se muito tempo ao seu estudo. No entanto, possvel que para isso tenha que abrir mo de uma srie de outras atividades e experincias que lhe faro

  • Oprimidos da Pedagogia54

    muita falta no futuro. No raro, alunos com as melhores notas da turma tm um desenvolvi-mento social muito limitado, de modo que sua habilidade para lidar com situaes que fujam ao seu cotidiano e sua zona de conforto seja insuficiente. A escola pode dizer que este aluno plenamente desenvolvido? De forma alguma. Em sua limitada capacidade de avaliao, pode afirmar, no mximo, que dentro dos parmetros escolares ele se sai muito bem, o que no signi-fica que a educao que lhe proporcionam seja significativa ou de qualidade, pois no conjunto das habilidades humanas seu desempenho in-satisfatrio. No para ns, mas para ele mes-mo, que ter suas possibilidades de aprendizado atrofiadas em nome do ensino das mais reco-nhecidas escolas do pas.

    Mesmo dentro do mundo acadmico esse aluno pode ser prejudicado pela super adapta-o. Rubem Alves apresenta um exemplo escla-recedor:

    Uma professora da Unicamp me contou que os alunos que mais dificuldade tinham em se-guir a sua disciplina eram aqueles que haviam passado nos primeiros lugares nos exames ves-tibulares. Havendo desenvolvido com sucesso o tipo de inteligncia necessria para passar nos vestibulares, que pressupe haver sempre uma alternativa correta, entre as vrias apre-sentadas, a sua inteligncia no conseguia con-viver com uma situao de incertezas, em que cada deciso sempre uma aposta. Os alunos perguntavam sempre: Mas, professora, qual a resposta certa mesmo?.

  • Em Busca dos Oprimidos 55

    Carlos Drummond de Andrade foi expulso do colgio onde estudava sob acusao de in-subordinao mental. Recusou-se a concordar com o professor de Portugus. Quase cem anos depois, a contribuio de Drummond para a li-teratura imensurvel. Tivesse ele subordinado-se s idias de seu professor, talvez no desenvol-vesse sua escrita com a originalidade e ousadia que a caracterizaram. Qual teria sido sua avalia-o pelo sistema tradicional?

    Deveria ser motivo de orgulho para os pais seu filho insubordinar-se mentalmente. As esco-las que se definem como progressistas deveriam, por coerncia ideolgica, incentivar as crianas que de fato desenvolveram um senso crtico a ponto de refletirem sobre sua prpria realidade, e no deveriam, os alunos que ousam dizer no, serem classificados como preguiosos, desinte-ressados, ou alunos-problema. Dizer isso no supor ingenuamente que alunos com baixo rendimento escolar ou mau comportamento o fazem por uma crtica consciente ao sistema.Eles refletem, isso sim, o vcuo entre o que a escola apresenta e o que a realidade demanda. nosso dever interpretar seus resultados de forma cuidadosa e responsvel, e no atravs de notas e conceitos.

    No primeiro dia de trabalho com uma tur-ma de primeiro ano do ensino fundamental, fui alertado sobre um menino que era um problema para todos. Era realmente muito agitado e por vezes agressivo, mas nada fora do comum, e logo mostrou-se muito interessado e participativo.

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    Disputava as funes que dividia com a turma, como escrever algo no quadro ou nos cartazes que fazamos. Nunca foi um problema. Em outra escola, a mesma situao. A turma de sexto ano era pequena, mas ainda assim havia um menino que, segundo diziam os educadores, conseguia atrapalhar todas as atividades. Sem surpresas, o resultado foi o mesmo: o mais agitado revelou-se o principal colaborador nas atividades que rea-lizvamos juntos. Como veremos mais adiante, crianas precisam sentir que confiamos nelas, que no esto sendo julgadas por atitudes em situa-es anteriores. Se lhes damos crdito, pacincia e responsabilidades para assumir, demonstram um comportamento bem diferente.

    Para estas crianas nossa Pedagogia espe-cialmente ineficiente, no serve pra elas. Cria-mos um sistema de avaliao e dizemos que os que no se encaixam fracassam por falharem em seus critrios, quando na verdade quem falha a prpria Pedagogia por no saber lidar com as caractersticas destes alunos. Eles tm muito a contribuir, a escola que no sabe aproveitar nem desenvolver seu potencial.

    uma educao ainda bancRiaO professor no ensina aquilo que diz, trans-

    mite aquilo que .

    Jos Pacheco

    O trabalho desenvolvido por Paulo Freire influenciou educadores e outros agentes sociais

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    por todo o mundo, e no Brasil pode-se dizer que foi um divisor de guas no pensamento peda-ggico. A educao popular foi tema recorrente em sua obra, e a preocupao com uma pedago-gia das classes menos favorecidas, dos oprimi-dos, uma constante em seu trabalho. Conceitos como autonomia e conscientizao* tornaram-se populares entre educadores, influenciados pelo pensamento de Freire.

    O contexto no qual a Pedagogia do Opri-mido foi desenvolvida tinha caractersticas e necessidades bem diferentes do atual. O anal-fabetismo era uma realidade para uma grande parcela da populao brasileira, e ainda busca-va-se resolver uma dvida histrica em termos de acesso a uma educao bsica, de qualidade ou no. Obviamente so questes que permane-cem: o Brasil ainda convive com um analfabetis-mo significativo (de acordo com a Unesco, o 8 no ranking mundial, com cerca de 13 milhes de analfabetos), e em muitas regies do pas fal-tam escolas para atender a populao. Mas na educao bsica todos os segmentos tm mais de 90% dos jovens em idade escolar matriculados, o que muda significativamente a preocupao pri-mordial de quem pensa a educao. Apesar das desigualdades e dificuldades existentes, a maior

    * O conceito de autonomia est ligado capacidade de tomar decises, liberdade para realizar escolhas e ao desenvolvimento da auto-organizao, se apropriando do conhecimento e parti-cipando de sua construo ou reconstruo. A conscientizao refere-se tomada de conscincia da realidade, sua gradativa compreenso e da ao nesta realidade de forma consciente.

  • Oprimidos da Pedagogia58

    parte da populao consegue ingresso nas esco-las, e programas de alfabetizao para jovens e adultos proporcionam conhecimentos bsicos aos que viviam margem do sistema escolar. Nesse contexto, a prioridade no mais colo-car as crianas na escola; no geral, elas j esto. A pergunta : o que fazer com elas? Ou melhor, o que elas devem fazer agora que passam anos no sistema escolar? E ainda, dada a importn-cia do pensamento de Paulo Freire para os edu-cadores brasileiros, de que forma seu trabalho pode ser redimensionado para manter-se rele-vante e atual?

    A comear, preciso averiguar se seus con-ceitos foram de fato colocados em prtica. Sua obra, to aclamada por diversas linhas peda-ggicas, que o transformaram em patrono da educao brasileira atravs de uma lei aprovada no Congresso Nacional, deve ser levada a srio. Caso contrrio, toda essa reverncia se tornaria falsa e um tanto hipcrita.

    Sendo assim, o primeiro conceito a ser ana-lisado o de educao bancria. Nele, Freire identifica a funo do professor bancrio, que atua depositando contedos nos alunos, tidos como recipientes vazios que precisam ser preen-chidos pelo professor, agente nico do processo de educao para esta concepo. Sobre a natu-reza narrativa desta prtica, Freire afirma que:

    A narrao, de que o educador o sujeito, conduz os educandos memorizao mecnica do contedo narrado. Mais ainda, a narrao

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    os transforma em vasilhas, em recipientes a serem enchidos pelo educador. Quanto mais venchendo os recipientes com seus depsi-tos, tanto melhor educador ser. Quanto mais se deixem docilmente encher, tanto melhores educandos sero..

    O modelo de ensino atual, pblico e privado, no se encaixa exatamente dentro deste concei-to? Os contedos programticos, definidos por especialistas nas esferas governamentais e de-positados por professores nas salas de aula, em nada se parecem com a construo dialgica do contedo proposta por Freire. Na verdade se encaixam justamente na posio oposta, critica-da por ele. Nunca apenas dissertar sobre ela e jamais doar-lhe contedos que pouco ou nada tenham a ver com seus anseios, com suas d-vidas, com suas esperanas, com seus temores. Mas no justamente essa postura que vem sen-do analisada ao longo deste estudo?

    A participao dos alunos no processo de deciso mantm-se restrita a partes considera-das auxiliares, paralelas ao currculo oficial. A nenhum aluno de qualquer escola tradicional dada a opo de escolher aprender ou no sobre figuras geomtricas, caractersticas da respirao vegetal ou sobre prticas mercantilistas, apenas para citar alguns dos temas que so obrigados a estudar. No enxergam nenhuma relao prtica destes contedos com suas vidas, o que alm de injusto com os alunos injusto com as prprias disciplinas, pois muitos destes temas, se apre-sentados como opcionais e trabalhados longe

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    do estresse das provas, poderiam tornar-se in-teressantes e despertar o desejo das crianas e adolescentes em compreend-los melhor. Mas impostos sem dilogo ou significado, tornam-se instrumentos de opresso da educao bancria denunciada por Freire e mantida pelo mesmo sistema que, paradoxalmente (dissimuladamen-te?), a crtica.

    incrvel que educadores que se declaram seguidores da pedagogia freiriana, que o tem como cone da educao brasileira, simplesmen-te no liguem os pontos entre o que leem e o que fazem. Muitos destes acreditam de forma convicta que sua prtica conscientizadora, que buscam desenvolver autonomia nos seus alunos e se no conseguem pelas dificuldades que en-frentam, como excesso de alunos, de turnos, fal-ta de recursos e outros problemas j destacados anteriormente. Por mais bem intencionados que sejam em sua prtica e sinceros em suas convic-es, no evitam de atuarem como opressores, depositando bancariamente contedos descone-xos da realidade dos alunos. importante res-saltar que o professor tambm no autnomo, tanto no local de trabalho como em sua forma-o, o que pode ajudar a entender sua prtica, mas no justifica a no problematizao desta.

    Como falar em educao como prtica da liberdade se na escola no h liberdade na prtica? No h liberdade nem para a mente, presa memorizao de contedos pr-estabe-lecidos, nem para o corpo, enclausurado por horas dentro de uma sala de aula. Deseja-se que

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    os alunos se adaptem ao currculo e que respei-tem as normas e protocolos, ao passo que, na ideologia, acredita-se na educao como ao transformadora. Que transformao pode ha-ver em ajustar-se a uma pedagogia alienante e a uma organizao escolar limitadora? Que construo crtica, dialgica, que leitura de mundo, que temas geradores podem vir a se desenvolver dentro de uma estrutura engessada por uma poltica educacional padronizadora que avalia e avaliada quantitativamente?

    O conceito de oprimido tambm deve aqui ser revisto. Se o homem um ser social, se o am-biente influencia de forma decisiva (embora no determinante) na sua formao, a prtica escolar parte fundamental na elaborao de sua cons-cincia e de sua conduta, tanto em escolas p-blicas como privadas. Da tornar-se necessrio questionar, dentro da Pedagogia do Oprimi-do: a criana nascida dentro da classe opres-sora, cuja conscincia de classe forjada den-tro desta realidade, pode ser chamada criana opressora? Se a educao que recebe, dentro e fora da escola, a conduz para um processo de inconscincia, de negao do prximo, deveria essa educao, e especialmente essa pedagogia, serem corresponsabilizadas pelas atitudes in-sensveis que esta criana possa vir a ter para com os oprimidos do mundo? Se a busca desta pedagogia a superao da contradio opres-sores-oprimidos, deve considerar a formao de todos os homens. Se, como disse Freire, A superao da contradio o parto que traz ao

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    mundo este homem novo no mais opressor; no mais oprimido, mas homem libertando-se, no pode esta pedagogia negar a uns nem a ou-tros suas preocupaes e esforos*.

    Se queremos ver de fato crianas oprimidas com uma leitura crtica do mundo e em condi-es de transformar sua realidade, e crianas opressoras igualmente conscientes do mundo em que vivem e com sensibilidade e senso crti-co para avaliar sua prpria posio na organiza-o social, preciso pensar uma outra educao para todas. preciso que na prpria organiza-o escolar estejam presentes os elementos pos-tos como objetivo; que as crianas aprendam no dia a dia a participar da sua comunidade, assu-mir responsabilidades e conviver com a diversi-dade humana.

    Deste modo, o que proposto neste traba-lho, na busca pela superao desta relao to detalhada por Freire, que se considere opri-mida toda criana educada no sistema tradi-cional de ensino, pois seja numa escola pblica ou particular, crianas so indiscriminadamente oprimidas por um modelo ultrapassado e ine-ficiente, que vai exercer seu poder de coero e doutrinamento em qualquer espao social.

    * A Sociologia da Educao demonstra que a escola, enquanto instituio social, historicamente reproduziu a diviso de clas-ses e a violncia simblica no processo educativo. Sempre houve uma escola pensada para os ricos e uma escola pensada para os pobres. No entanto, para um olhar pedaggico sobre estas insti-tuies, suas diferenas so mnimas, pois seu modo de pensar a prtica educativa o mesmo.

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    no processo de descobrimento do mundo que ser desenvolvida a conscincia crtica e a soli-dariedade deste novo homem; ou ser justamen-te a, nestas instituies pblicas e particulares, que esta possibilidade lhe ser negada, pois nin-gum se liberta sozinho: os homens se libertam em comunho (Freire). Se isto verdade, no pode esta pedagogia dividir-se sectariamente entre classes: preciso considerar o conjunto dos homens, e este conjunto em grande parte formado dentro de escolas que, se diferem na aparncia, se igualam na ausncia de autonomia, de conscientizao e de prtica de liberdade.

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    Considerando as crticas e observaes de-senvolvidas ao longo desta pesquisa, a escola aqui chamada tradicionalengloba instituies pblicas e privadas, conservadoras ou progres-sistas. At aqui, buscou-se traar denominado-res comuns entre elas de modo a posicion-las dentro de um mesmo paradigma: suas diferen-as parecem menos significativas do que podem aparentar.

    No entanto, apesar de at recentemente se-rem pouco conhecidas, escolas com propostas alternativas a este modelo existem desde a se-gunda metade do sculo XIX. A estas experin-cias convencionou-se chamar de escolas demo-crticas*, um termo que est longe de ser um

    consTRuindo um caminho

    *Muitas destas escolas no se identificam como democrticas, e a diversidade de definies to ampla quanto a pluralidade de formas de organizao dentro do movimento. Algumas no abrem mo de uma certa diretividade, embora dialgica; outras so mais radicais quanto no interferncia quando no requi-sitada (muitas chamadas de escolas livres). Comparar e analisar suas semelhanas e diferenas mereceria uma outra pesquisa, sem dvida importantssima. A necessidade de coloc-las sob um mesmo termo (ainda que no seja o meu preferido) se d por uma questo de convenincia, e de forma alguma deve ser entendido como um nico modelo de organizao escolar.

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    consenso, mas que aqui ser usado para definir escolas que trabalhem dentro de dois critrios, propostos por Helena Singer em seu livro Rep-blica de Crianas:

    (...) gesto participativa, com processos deci-srios que incluem estudantes, educadores e funcionrios, e organizao pedaggica como centro de estudos, em que os estudantes de-finem suas trajetrias de aprendizagem, sem currculos compulsrios..

    A gesto participativa se apresenta como es-sencial por permitir que as crianas e adultos aprendam na prtica valores como responsabili-dade, cooperao e participao na resoluo de problemas. A escola e suas regras no so algo alheio, que se impem sem qualquer dilogo. uma construo coletiva, autogestionada, que reconhece a capacidade que crianas e jovens tm de cuidar do que seu.

    O segundo aspecto, da liberdade de escolha dos estudantes em relao ao seu percurso de aprendizagem, refora e incentiva a responsabi-lidade e a autonomia, mas na esfera pessoal: com seus interesses e individualidades respeitados, impressionante a capacidade de organizao e autodisciplina que desenvolvem.

    Felizmente, apesar da pouca visibilidade, es-tas escolas no so novidade, e em muitas j fo-ram realizadas pesquisas de longa durao, de modo que pode-se ter uma perspectiva abran-gente do resultado de uma prtica pedaggica

  • Oprimidos da Pedagogia66

    fundamentalmente diferente da tradicional, e em diversos pases e contextos sociais.

    cRescendo em LibeRdadeA instruo das crianas um ofcio em que necessrio saber perder tempo, a fim

    de ganh-lo.

    Jean Jacques Rousseau

    Pensar uma escola diferente foi uma tarefa assumida por diversos educadores e pensadores, preocupados em desenvolver uma proposta de educao que respeitasse o tempo de desenvol-vimento individual das crianas, e que conside-rasse a infncia como um perodo pleno, no como uma transio. Ela vive o presente, e tem o direito de ser feliz nele.

    O surgimento destas propostas contem-porneo a um aprofundamento das crticas s estruturas da sociedade industrial/capitalista: se era necessrio considerar as condies que influenciavam a formao do homem, a escola no poderia escapar de uma rigorosa anlise de sua prtica e finalidade. A relao entre educa-o democrtica e uma viso crtica do modelo de sociedade em que vivemos constitui-se como parte integrante do seu projeto poltico-peda-ggico. Imaginar uma educao diferente, com estes princpios, pressupe enxergar o mundo como mutvel, e contribuir de forma relevante para sua transformao.

  • Construindo um Caminho 67

    A primeira experincia conhecida de edu-cao democrtica aconteceu na Rssia, na es-cola Ysnaia-Poliana, criada por Leon Tolstoi. Influenciado por Rousseau, Tolstoi colocou em prtica princpios de respeito s crianas e a seu direito de escolha do qu, quando, e como aprender, seguindo sua curiosidade, entendida como uma atribuio natural. Os alunos parti-cipavam da construo das regras escolares, da organizao do tempo das atividades, e podiam ir embora na hora que quisessem, sem serem recriminados por isso. Apesar de poucos anos aps sua abertura a escola ter sido fechada, abriu caminho para uma srie de experincias que, mesmo com significativas diferenas entre si, mantiveram-se fiis aos dois princpios bsicos: participao de todos nas decises referentes escola e autonomia dos estudantes para com seu aprendizado.

    Uma das escolas mais conhecidas certamen-te Summerhill, fundada na dcada de 1920 na Inglaterra por A.S. Neill, e que continua em ati-vidade at hoje. Diversas pesquisas com ex-alu-nos foram feitas ao longo das ltimas dcadas e apresentam resultados semelhantes aos de pes-quisas feitas em outras dessas escolas, de modo que possvel perceber, em diversos aspectos, alguns padres. interessante notar que apesar da diversidade de caminhos que estes alunos to-maram, ainda assim compartilham algumas ca-ractersticas que parecem ter sido importantes tanto para quem foi trabalhar com artes quanto pra quem escolheu um trabalho mais formal,

  • Oprimidos da Pedagogia68

    por exemplo, embora tambm existam alguns padres sobre o tipo de carreiras a seguir. Anali-sando pesquisas feitas nos ltimos anos, Helena conclui:

    Em linhas gerais, os depoimentos e a pesquisa com os que se graduaram em Sudbury confir-mam a anlise sobre os depoimentos dos que se formaram em Summerhill, mostrando ten-dncias comuns aos egressos de escolas demo-crticas. Essas tendncias indicam, de modo geral, os sentimentos de autonomia, autodis-ciplina e senso democrtico se sobrepondo busca de segurana e estabilidade..

    Por exemplo, h um alto nmero de escolha por carreiras artsticas, o que muito natural. Crianas geralmente gostam dessas atividades, e tendo mais tempo para desenvolv-las, tm mais chances de seguirem dedicando-se a elas. Deve-se considerar tambm que muitos jovens abandonam ou transformam em hobby suas ha-bilidades pela presso sofrida pelos pais e socie-dade, que lhes dizem que preciso um emprego de verdade e coisas do gnero. Nestas escolas, parece fortalecer-se o sentimento de autocon-fiana, de busca da felicidade e de realizao pessoal como critrios mais importantes do que o ganho monetrio, o que certamente contribui para a escolha de profisses menos burocrticas, mesmo que possam representar menor lucro. Sobre isso, Neill diz o seguinte:

    Obviamente, uma escola que faz com que seus alunos ativos fiquem sentados em carteiras,

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    estudando assuntos na maioria inteis, uma m escola. uma boa escola, apenas, para os que acreditam em tais escolas, para os cidados no criativos que desejam crianas dceis, no criativas, que se adaptaro a uma civilizao cujo padro de sucesso o dinheiro..

    Essa conquista de autonomia, autoconfiana e autodisciplina, mencionada por diversos ex-alunos como a principal contribuio da escola para suas vidas. Muitos dos educadores compar-tilham dessa percepo, como o idealizador da Escola Democrtica de Hadera, Yaacov Hetch*

    Desde sua criao em 1987 j se foram qua-se 30 anos de experincia que permitiram que Yaacov identificasse algumas caractersticas comuns aos ex-alunos de Hadera: habilidade de fazer mudanas na vida, no se prendendo zona de segurana (como abrir mo da pro-fisso que exerce e domina para arriscar-se em uma nova rea de interesse); participao em grupos de direitos humanos (atribudo por ele ao contato constante com questes relaciona-das dignidade humana durante a escola); e a ausncia de medo de autoridade. Sobre essa ltima, Yaacov conta a histria de Idan, um sol-dado do exrcito israelense que tinha estudado

    * Yaacov, que aprendeu a ler aos 14 anos, foi responsvel pela criao da primeira escola democrtica de Israel e participou de inmeras iniciativas, como a criao do Instituto para Educao Democrtica de Israel, que tem algumas dezenas de escolas p-blicas associadas alm de outras aes tanto no mbito nacional quanto internacional. Algum que o conhecesse aos 13 anos tal-vez pensasse se tratar de um garoto problema, incurvel.

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    em uma escola democrtica. Ele havia cometi-do um erro em seu treinamento que significava sua expulso do curso que fazia. No entanto, ao encontrar seu comandante enquanto conclua seu processo de desligamento, solicitou uma conversa com ele, algo totalmente fora dos costumes militares. O comandante ficou to impressionado com a sinceridade e capacidade de Idan em analisar seu erro, que voltou atrs e decidiu mant-lo no curso. Essa tranquilida-de em lidar com situaes como essa, de no temer a hierarquia de uma organizao como o exrcito, algo que o ensino tradicional sim-plesmente no proporciona.

    A desenvoltura em se relacionar com adul-tos sentida tambm em outras dessas escolas, e no difcil entender porqu. A estrutura es-colar tradicional coloca adultos e crianas em posies antagnicas, quase rivais, criando uma diviso de classes dentro da escola. O adulto aquele que vigia, castiga e decide o que certo e errado, bom ou ruim, o que pode e no pode ser feito. Ao estudante cabe aprender como lidar ou escapar do julgamento adulto. Criada essa situa-o, ainda se espera e incentiva comportamen-tos desleais entre os estudantes. Em uma escola do Rio de Janeiro, considerada progressista, vi um coordenador tentando convencer a turma de ensino mdio a delatar o aluno que havia fei-to alguma violao. Dizia: a atitude de vocs hoje a mesma de um poltico que protege um amigo envolvido num caso de corrupo. Ele no entendia que ali estava posta uma luta de

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    classes, e os alunos definitivamente no eram a classe opressora naquela relao. Nem to-dos eram amigos, mas frente a um inimigo comum a escola personificada em seu re-presentante tinham um senso de unio. Isso a escola no podia aceitar.

    Em Hadera, como em outras, a relao entre adultos e crianas se d de maneira bem dife-rente. No uma relao autoritria. O edu-cador no est numa posio de evidncia nem no centro do processo; est ao lado, auxiliando, pesquisando junto do estudante. A avaliao feita de forma conjunta, o trabalho pensado de forma conjunta; ningum prepara aula em casa sozinho. E nisso cria-se um meio onde crianas acostumam-se a falar com adultos de igual pra igual: nas assembleias, suas falas e votos tm o mesmo peso, colaboram na elaborao e execu-o das pesquisas e projetos, e pela forma como trabalham e organizam sua rotina desenvolvem um contato afetivo e pessoal, pois existe tempo suficiente para isso.A preocupao com o de-senvolvimento integral, no apenas relacionado ao aprendizado formal, bem diferente da impes-soalidade da relao entre um professor e suas dezenas de alunos silenciados nas salas de aula.

    O convvio entre diversas faixas etrias ou-tro aspecto marcante nessas escolas, e mostra-se relevante e positivo. Nas assembleias, embora naturalmente com maior participao dos mais velhos, todos respeitam o momento do outro fa-lar, no importando a idade ou o tempo na esco-la. Os educadores de escolas que no organizam

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    crianas por idade, mas por interesse, relatam diversas vantagens que o convvio entre diferen-tes faixas etrias traz para o ambiente educativo. A comear, ao tornar comum o convvio e o dilogo entre diferentes geraes, desenvolve-se uma solidariedade real atravs do auxlio dos mais avanados em determinada atividade aos que apresentam maior dificuldade. O en-sino entre eles muitas vezes melhor, pois um adolescente est mais prximo das dificulda-des enfrentadas por uma criana que um adul-to, pois acabou de passar por elas. Os peque-nos gostam de aprender com os mais velhos, e para estes uma tima maneira de consolidar seus conhecimentos, j que ensinar a algum a melhor forma de saber se de fato compreen-demos algo. Como na vida real, em ambientes no separados por faixa etria, crianas de di-ferentes idades se misturam e fazem atividades juntas, como na rua, em famlia, no parque, e onde for. Isso contribui para uma maior de-senvoltura tanto na forma como os pequenos enxergam e se relacionam com os grandes como para estes, que acostumam-se a cuidar e ajudar os menores. E muitas vezes aprendem com eles.

    Todas essas caractersticas sero fundamen-tais quando