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Os óculos de Heidegger

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Th aisa Frank

Tradução de Mauro Pinheiro

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cip-brasil. catalogação-na-fontesindicato nacional dos editores de livros, rjF912o

Frank, Thaisa.Os óculos de Heidegger / Thaisa Frank ; tradução de Mauro Pinheiro.

- Rio de Janeiro : Intrínseca, 2013.

288 p. : 23 cmTradução de: Heidegger's glasses ISBN 978-85-8057-308-4

1. Ficção americana. I. Pinheiro, Mauro, 1957-. II. Título.

13-0782. cdd: 813 cdu: 821.111(73)-3

Copyright © 2010 Thaisa Frank2010 Thaisa FrankEsta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e fatos são Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e fatos são produtos da imaginação da autora ou empregados num contexto produtos da imaginação da autora ou empregados num contexto fictício. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, fictício. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, é mera coincidência.é mera coincidência.

título originalHeidegger's Glasses

preparaçãoClarissa Peixoto

revisãoMilena Vargas

revisão das cartas em francês, espanhol, italiano e alemãoAna Resende

diagramaçãoô de casa

[2013]Todos os direitos desta edição reservados àEditora Intrínseca Ltda.Rua Marquês de São Vicente, 99/3o andar22451-041 – GáveaRio de Janeiro – RJTel./Fax: (21) 3206-7400www.intrinseca.com.br

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Este livro é dedicado à memória de Stanley Adelman — datilógrafo experiente,

amigo de inúmeros escritores.

E a DS, Fred e Ike Dude.

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Sumário

Notas da curadora ..................................................................9

Prólogo ...................................................................................15

As ordens ...............................................................................21

A barganha ............................................................................83

A Floresta Negra .................................................................121

O Anjo de Auschwitz .........................................................139

Os fugitivos..........................................................................181

O túnel .................................................................................231

O baú ....................................................................................265

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Notas da curadora

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Essa exposição de cartas data, aproximadamente, de 1942 até o fi nal da Segunda Guerra Mundial. A maioria foi escrita sob coerção, fazendo

parte de um programa chamado Briefaktion, ou Operação Postal. Algumas são cartas dos guetos ou bilhetes trocados entre prisioneiros nos campos de concen-tração. As cartas da Operação Postal esclarecem as estratégias alemãs durante a Segunda Guerra Mundial que geralmente são ofuscadas por eventos históricos mais dramáticos.

Operação Postal ou Briefaktion

O Briefaktion foi criado para tranquilizar os parentes ansiosos em relação aos deslocamentos e deportações de seus familiares, assim como para dissipar os ru-mores sobre a Solução Final, que o Reich queria manter em sigilo a qualquer custo. Essas cartas eram, em geral, escritas assim que os prisioneiros chegavam — nor-malmente, antes de serem levados até um bosque idílico ou alamedas de pinhei-ros que camufl avam as câmaras de gás. As cartas não eram enviadas diretamente a seus destinatários, mas a partir de um escritório situado em Berlim chamado Associação dos Judeus, o que tornava impossível saber suas origens. As respostas eram endereçadas mais uma vez a Berlim e raramente eram entregues; a maioria não tinha mesmo como ser lida, já que grande parte dos destinatários havia sido assassinada. Todo o sistema resultou em enormes quantidades de correspondên-cias nunca lidas, algumas das quais foram recuperadas após a guerra.

O sobrenatural e a Sociedade Thule

Era de conhecimento geral que Hitler consultava astrólogos. Bem menos co-nhecido é o fato de que o Terceiro Reich depositava surpreendente confi ança no mun-do sobrenatural para estratégias relacionadas à guerra e à Solução Final. Um grupo

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chamado Die Th ule-Gesellschaft (Sociedade Th ule), composto de místicos, médiuns, membros do Reich e homens selecionados da SS reunia-se regularmente para canali-zar os conselhos do plano astral. A Sociedade Th ule recebeu este nome com base no conceito de Ultima Th ule, de Lanz von Liebenfels, um local extremamente frio onde viveria uma raça de super-homens. Hitler não comparecia a essas reuniões e proibiu Liebenfels de publicar seus livros assim que alcançou o poder, provavelmente para ocultar a própria fascinação pela Ultima Th ule. Heinrich Himmler (que supostamen-te carregava um exemplar do Bhagavad-Gita consigo para todo lado, a fi m de abran-dar sua culpa em relação à guerra) era o membro mais proeminente da Sociedade Th ule. As mensagens consideradas oriundas do plano astral eram incorporadas às estratégias do Reich. Embora evitasse essa Sociedade, Hitler confi ava no apoio e nos conselhos de diversos místicos, astrólogos e clarividentes. Dentre eles, o mais famoso é Erik Hanussen, que ensinou Hitler a hipnotizar as multidões.

Joseph Goebbels e o Paradoxo da Propaganda

Em trinta de abril, pouco antes de cometer suicídio, Hitler nomeou Goebbels chanceler do Reich. Mas Goebbels manteve esse cargo apenas por um dia. Quando os russos recusaram um tratado que era favorável ao Partido Nazista, Goebbels acompanhou Hitler no suicídio, juntamente com a esposa e seus seis fi lhos. Com a sua morte, o Regime Nazista perdia a sua voz. Goebbels era um orador brilhante — engraçado, sarcástico e imparcial. Seu lema mais famoso era: Se quiser contar uma mentira, conte uma grande mentira. Goebbels foi muito hábil ao esconder a con-fi ança do Reich no ocultismo — uma confi ança que não compartilhava. Ele desde-nhava abertamente da obsessão de Himmler pelo sobrenatural, e pode ter sido uma infl uên cia fundamental para dissuadir Hitler de se unir à Sociedade Th ule. No en-tanto, teve um êxito bem inferior ao tentar esconder a Solução Final. Muitos alemães foram convencidos pela propaganda de Goebbels; outros, contudo, sabiam sobre os campos de concentração, como fi ca evidente se considerarmos a participação dos alemães na Resistência e a ação de membros do Partido Nazista que utilizavam sua infl uência para salvar judeus, assim como o Partido da Rosa Branca, um grupo ra-dical de estudantes que distribuía panfl etos a respeito dos campos de concentração.

Martin Heidegger e a Segunda Guerra Mundial

Entre os alemães que negavam ter qualquer conhecimento sobre a Solução Final estava o fi lósofo Martin Heidegger — uma fi gura enigmática do regime nazista. Em 1933, tornou-se membro do partido e foi nomeado chanceler da

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Universidade de Freiburg. Um ano depois de ter assumido o cargo, ele se demi-tiu. Alguns membros do partido, que viam Heidegger como um rival, fi caram ressentidos com a nomeação para a chancelaria. Outros consideravam sua fi lo-sofi a uma bobagem. E o próprio Heidegger acreditava que a Alemanha estava traindo a promessa de retornar às suas raízes culturais. Suas críticas ao partido eram vociferantes; por outro lado, ele nunca renunciou ou denunciou o partido, nem sequer numa evasiva entrevista póstuma publicada pela Der Spiegel.

A fi liação de Heidegger ao partido tem gerado acaloradas discussões sobre se haveria doutrinas nazistas em sua fi losofi a. Alguns fi lósofos sentem que existe clara evidência de que sim e, com frequência, referem-se à famosa conversa com Karl Löwith antes da guerra, na qual ele afi rmou que uma de suas ideias mais importantes (historicidade) era a base de seu envolvimento político. Outros fi ló-sofos pensam que Heidegger foi incapaz de integrar sua fi losofi a e sua política, e veem demasiado revisionismo nas opiniões que ele exprimia. Heidegger é ainda reconhecido como uma grande infl uência no pensamento fi losófi co moderno, assim como na poesia e na arquitetura. Ironicamente — considerando sua fi -liação com as opiniões produzidas pelo chauvinismo —, ele levantou questões convincentes sobre a natureza da existência, a natureza do instinto de rebanho e a natureza do próprio pensamento. Ele também escreveu e discursou com grande sofi sticação sobre o impulso humano para evitar a consciência da mortalidade. Mais de dez anos antes do Reich chegar ao poder, os óculos do próprio Heidegger foram um dos vários catalisadores para uma revelação sobre esse aspecto da exis-tência humana, e ele os mencionou em sua obra seminal, Ser e tempo.

Zoë-Eleanor Englehardt, curadora convidadaMuseu da Tolerância, cidade de Nova York

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Prólogo

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Em 1920, durante um inverno como todos os outros, o fi lósofo Martin Heidegger olhou para seus óculos e sentiu-se alheio ao mundo familiar. Ele

estava em seu gabinete em Freiburg, mais de cento e sessenta quilômetros ao sul de Berlim, olhando pela janela os galhos secos e espessos de um olmo. Sua esposa encontra-va-se de pé a seu lado, servindo uma xícara de café. Os raios de sol varavam a cortina de voile, lançando fachos sobre sua coroa de tranças louras, sobre a mesa escura e a xí-cara branca. De repente, um estorninho bateu contra a vidraça da janela e caiu lá fora. Heidegger pegou seus óculos para observar e, ao se inclinar, derramou o café. Sua espo-sa limpou a mesa com o avental, e ele limpou óculos com um lenço. Inesperadamente, ele olhou para as fi nas hastes douradas dos óculos e as duas lentes e não soube dizer para que serviam. Como se nunca tivesse visto um par de óculos ou não soubesse como eram usados. Então, o mundo todo se tornou estranho: a árvore era uma confusão de formas, a janela manchada de sangue, uma fi gura oblonga fl utuante, e, quando outro estorninho passou voando, ele viu somente a escuridão em movimento.

Martin Heidegger nada mencionou à esposa. Juntos, eles limparam tudo, en-quanto resmungavam. Ela trouxe mais café e saiu do gabinete. Heidegger esperou que o mundo voltasse a seu lugar e, fi nalmente, o tique-taque pertencia de novo ao relógio, a mesa se tornou uma mesa e o chão voltou a ser algo sobre o qual se pode caminhar. Em seguida, ele foi até sua mesa e escreveu sobre esse instante para um colega fi lósofo chamado Asher Englehardt. Embora os dois se encontrassem com frequência para um café, gostavam de escrever um ao outro sobre esses momentos inusitados: o martelo tão frouxo que sua cabeça sai voando como um passarinho. O quadro que está torto a ponto de fazer o cômodo parecer sinistro. A maçã no meio da rua que nos faz esquecer para que servem as ruas. A coisa que parece per-to porque está sendo vista de longe. A impressão de não estar em casa. O mundo tornando-se alheio a si mesmo.

Alguns dias depois, Asher Englehardt respondeu-lhe em sua caligrafi a fami-liar e apressada, repreendendo Heidegger por sempre agir como se a sensação fosse

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nova. “Não há nada de substancial com que possamos contar, Martin”, ele escreveu. “Todas essas xícaras e óculos e o que mais as pessoas têm ou fazem são arrimos que nos protegem de um mundo que surgiu muito antes de alguém saber para que serviam os óculos e que continuará por muito tempo após não haver mais ninguém para se lembrar deles. É um mundo estranho, Martin. Mas não podemos jamais fi car alheios a ele, porque vivemos nele o tempo todo.”

Asher acreditava nisso resolutamente e continuou acreditando vinte anos de-pois, quando ele e seu fi lho foram retirados de sua casa em Freiburg e deportados em vagões de gado para Auschwitz.

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Droga Mamo,

Czy mogłabyś przynieść mi buty które trzymałam w kreden-sie? Wiem że będę je potrzebować do podróży.

Kocham,Mari

Querida mamãe,

Pode me trazer os sapatos que eu guardo no armário? Sei que precisarei deles para a viagem.

Com amor,Mari

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As ordens

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Quase um quarto de século após a revelação de Heidegger sobre seus óculos, uma mulher com uma fi ta de seda vermelha no pulso dirigia

um jipe capturado do exército americano até uma aldeia no norte da Alemanha. A energia elétrica havia sido cortada na aldeia e o posto avançado — uma constru-ção de madeira num local afastado no campo — teria facilmente passado desper-cebido, se ela já não tivesse ido muitas outras vezes até lá no escuro. Era uma noite extremamente fria de inverno, a neve caía em seu rosto enquanto caminhava pelo campo. Ela parou para limpar os olhos e observou o céu. Estava deslumbrante, muito estrelado, tão vasto que parecia cinzelado em diferentes galáxias. Mesmo àquela altura da guerra, ela se sentia feliz. Acabara de levar clandestinamente três crianças para a Suíça, enganando um guarda. Chamava-se Elie Schacten.

Elie olhou para os cães de caça de Órion e os dispersou em pontos luminosos — fl ores de gelo no céu escuro. Depois, bateu duas vezes numa porta encoberta. A porta se abriu, a mão de um ofi cial da SS a puxou para dentro e ele a beijou na boca.

— O que aconteceu? — perguntou ele. — Você devia ter chegado ontem.— Tive um problema com a embreagem — explicou Elie. — Você devia

fi car contente por eu estar aqui agora.— Eu estou contente — disse o ofi cial. — Mas acho que você está aprontan-

do alguma coisa, minha graciosa amiguinha.— Eu não sou sua graciosa amiguinha — falou Elie, soltando-se dele e dan-

do uma olhada ao redor. — Como está o bazar?— Você não vai acreditar no que conseguimos — disse o ofi cial. — Cinco

quilos de chocolate holandês. Conhaque francês. Estátuas de um castelo austríaco.Eles estavam falando do posto avançado — uma cabana de pinheiro sus-

tentada por vigas tortas. Havia uma janela comprida com cortinas pretas e o local estava apinhado de objetos provenientes das invasões a lojas e residências. Também estava frio ali. O vento soprava pelas rachaduras da parede e o fogão a lenha estava vazio. Elie apertou sua echarpe e avançou pelo labirinto de relógios,

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livros, casacos, armários e duas cadeiras de oculista até um sofá de veludo. O ofi cial arrastou oito malas abarrotadas de cartas e se curvou tão próximo de Elie que ela sentiu sua respiração. Soltando os cabelos, ela protegeu o rosto.

— A rosa híbrida não tem aparecido ultimamente — disse o ofi cial, referin-do-se ao perfume dela.

Ele se inclinou ainda mais e tocou os cachos louros de seu cabelo.Elie sorriu e começou e ler cartões-postais e cartas. A imensa quantidade

sempre a surpreendia. A maioria era da Operação Postal — cartas escritas sob coerção nos campos de concentração ou nos guetos e, com frequência, apenas momentos antes de o autor ser levado para um vagão de gado ou para uma câ-mara de gás. A maior parte era escrita em papel fi no e frágil, e trazia um carim-bo vermelho sobre os endereços dos parentes. As instruções no carimbo eram: “Encaminhar automaticamente todas as correspondências judaicas para: 65 Berlim, Iranische Strasse.”

Elie examinou-as sem ler — seu único propósito era identifi car o idioma. Ela tentava ignorar a repulsa — nunca parava para olhar o nome do autor ou o que estava escrito. Às vezes, enquanto tentava dormir, frases dessas cartas passavam por sua mente — mentiras apressadas e aterrorizadas, exaltando as condições dos campos de concentração. Mas examinando-as rapidamente, não percebia nada — exceto quando via a enorme mala postal marcada com um A de Auschwitz. Além de ser uma mala maior do que as outras, também parecia a mais abarrotada do mundo, como se viesse de outro universo. Elie sempre tinha a impressão de ter chegado com aquela mala, e fez uma pausa antes de ler a pri-meira carta.

— O que houve? — perguntou o ofi cial.— Só estou cansada — respondeu ela.— Só isso?O ofi cial, que adorava uma fofoca, sempre tentava se intrometer no passado

de Elie, pois, naquele tempo, as pessoas caíam de paraquedas no mundo, como se tivessem acabado de nascer, com documentos novos para prová-lo, e ela não era diferente — a fi lha de católicos poloneses transformados em alemães por Goebbels. Sua aparência correspondia a todos os critérios arianos. Seu sotaque alemão era perfeito.

Elie olhou para alguns rolos de lã enfi ados entre duas bicicletas. Depois voltou a arrumar as cartas. O ofi cial acendeu um cigarro.

— Você não vai acreditar — disse ele —, mas um judeu conseguiu fugir de Auschwitz. Passou pela cerca com a benção do Comandante.

— Não acredito — falou Elie.

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— Todos já sabem no Reich — prosseguiu o ofi cial. — Um homem da SS foi até o Comandante e disse que o sujeito possuía um laboratório, e o Reich precisa-va usá-lo na guerra, portanto era preciso que ele saísse para assinar alguns papéis. Então o Comandante concordou e agora não conseguem encontrar o laboratório ou o nome do homem da SS. Já estão achando que ele nem existe. Eles o chamam de “Anjo de Auschwitz”.

— Meu Deus! — exclamou Elie.— Isso é tudo que você tem para dizer? Porra, é um escândalo. E Goebbels

não vai fuzilar o Comandante. Disse que não devem incomodá-lo.Elie brincou com os fi os de sua fi ta vermelha em volta do pulso. Não podia

tirar a fi ta porque, junto aos documentos especiais, ela lhe dava liberdade incon-dicional para viajar e anistia em caso de estupro, saque ou assassinato. O ofi cial se aproximou e se ofereceu para desemaranhar os fi os. Um deles tinha uma águia de metal na ponta — tão pequena que o bico era do tamanho do buraco de uma agulha. Ele parou e admirou a habilidade artesanal.

Ela o deixou desemaranhar a fi ta e contou os objetos encostados nas pare-des: cinco espelhos de moldura dourada, quinze máquinas de escrever, um glo-bo, sete relógios, oito mesas, rolos de lã de caxemira branca, uma tigela, doze cadeiras, um manequim de alfaiate, cinco abajures, inúmeros casacos de pele, baralhos, caixas de chocolate e um telescópio. Um bazar, pensou ela. O Reich pode saquear de tudo, menos o calor.

— Preciso voltar — disse ela, levantando-se. — Se eu perceber algum códi-go da Resistência, avisarei.

— Passe a noite aqui — pediu o ofi cial, batendo no sofá confi scado. — Não encostarei a mão em você. Prometo.

— Você não tem só mãos — disse Elie.— Meus pés são seguros também — disse o ofi cial. Ele apontou para o bu-

raco em uma de suas botas e ambos riram.

C

Como sempre, Elie aceitou a oferta de levar o que quisesse do posto avan-çado — desta vez, quatorze rolos de lã, um relógio de pêndulo, o telescópio, o globo, dez casacos de pele, o manequim de alfaiate, dois espelhos dourados, três caixas de baralho e meio quilo de chocolate.

Ela também aceitou quando ele se ofereceu para carregar tudo aquilo atra-vés do campo, onde a neve ainda estava macia e o céu ainda prometia um espetá-culo de luz. Elie deixou o ofi cial beijar sua boca uma só vez e abraçá-la por mais

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tempo do que ela gostaria. Depois, saiu dirigindo pelas profundezas dos bosques do norte da Alemanha, onde os pinheiros escondiam a lua.

A certa altura, uma menina descalça cruzou a estrada correndo. Elie não se surpreendeu; no estágio em que se encontrava a guerra, as pessoas surgiam de repente, como animais. Mas ela não podia parar, nem sequer para oferecer um pedaço de pão. Havia tantos guardas quanto árvores. E um único resgate já era sufi cientemente perigoso.

Os pinheiros foram fi cando mais espessos; o vento soprava através do teto de lona do jipe, e o medo que Elie tinha do escuro só aumentou, assim como o pavor de estar sendo seguida. Concentrou-se na estrada, como se sua única mis-são fosse dirigir para sempre.

Além de seus temores, havia o espanto causado pelo Anjo de Auschwitz. Elie sempre encontrava boas rotas de fuga para as pessoas — esgotos nos gue-tos, túneis sob as fábricas. Mas nunca contemplara uma fuga de um campo de concentração. Ela se perguntou se o anjo era um rumor. Que maneira melhor de irritar o Reich do que sugerir que um lugar como Auschwitz não era inviolável?

Perto das três da manhã, alcançou uma estrada de terra, e o veículo come-çou a sacudir, fazendo soar o tique-taque do relógio de pêndulo. A fi ta no pulso de Elie roçava contra a alavanca de marcha, lembrando-lhe que estava acorren-tada ao Reich. Depois de olhar pelo retrovisor e certifi car-se de que não estava sendo seguida, ela fez uma curva fechada, entrando numa clareira onde outro jipe e dois Kübelwagens estavam estacionados perto de uma cabana de telhado arredondado. A clareira tinha uma torre de observação na entrada e um poço atrás, perto do bosque.

Um homem alto de farda e suéter verde amarrotado correu em sua direção e a abraçou. Em seguida, ele a ajudou a descarregar o jipe. Levaram o telescópio, o manequim de alfaiate, os rolos de lã, os casacos, os espelhos, o chocolate, os baralhos, o relógio, o globo, as malas com as cartas e uma cesta de alimentos para aquele trailer. No interior, havia um estrado e uma mesa de madeira rústica. Do lado oposto à porta, uma lareira. À esquerda, outra porta em arco, que dava para uma rampa. Elie e o ofi cial arrastaram tudo pela rampa até um exíguo poço e carregaram o elevador. Ele se inclinou para beijá-la, mas ela sacudiu a neve do casaco e se afastou, os pensamentos tomados pelo anjo.

— O que houve? — perguntou ele. — Só metade de você gosta de mim?— Tudo em mim gosta de você — respondeu Elie. — Estou só guardando a

outra parte para mais tarde.

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C

Caro Luigi,

Foi uma viagem tranquila, ainda que longa. É lindo por aqui. Venha me encontrar.

Com amor,Rosaria

Caro Luigi,

E stato un viaggio facile anche se lungo.

E bellissimo qui. Vieni a trovarmi.

Con amore,Rosaria

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O ofi cial foi para o quarto deles — quatro metros e meio acima da ram-pa — e Elie seguiu pelo pequeno poço, descendo quase dez metros.

O elevador do poço era uma pequena gaiola abarrotada, e ela fi cou aliviada quando conseguiu girar a maçaneta em forma de losango. Dava para um ca-minho de pedras rosadas iluminado pelas lâmpadas a gás. Do lado oposto ao pequeno poço, havia uma grande porta de mogno onde se lia Gleichantworten Mögen (Responder da mesma forma), inscrito no mesmo garboso semicírculo que Arbeit Macht Frei (O trabalho liberta). Elie abriu a porta e se viu em uma área do tamanho de um pequeno ginásio, onde mais de quarenta pessoas dormiam sobre suas mesas. Ela ouviu o som dos roncos e murmúrios. Se alguém se mexes-se ou mudasse de posição de maneira brusca, papéis certamente cairiam no chão. As paredes estavam cobertas por máquinas de costura, tigelas variadas, casacos, espelhos, máquinas de escrever. A mesa de Elie fi cava logo na entrada, de frente para as outras. Assim que acendeu seu lampião a querosene, as pessoas acorda-ram e a cumprimentaram. Uma porta na outra extremidade foi aberta, e mais dezesseis pessoas entraram. Todos se amontoavam em torno de Elie, perguntan-do se ela estava bem e correndo para apanhar o tesouro que trouxera. Ela abriu o cesto de alimentos e eles aplaudiram quando viram presunto, frango assado, salsichas, peixe defumado, queijo, cigarros, vodca, fl eischkonserve, Ersatzkaff ee e treze pães frescos — um presente do padeiro, cuja sobrinha Elie ajudara a fugir para a Dinamarca. Eles abriram a vodca e brindaram à notícia sobre o avanço dos russos. Em seguida, brindaram a Elie:

— A Elie! — disseram. — A nossa Gnädige Frau!Elie ergueu seu copo e embrulhou a carne fresca e um pedaço de pão em

um tecido macio. Depois, voltou ao pequeno poço e estava a caminho do quarto que dividia com o ofi cial quando o encontrou subindo a rampa. Ele segurou a mão dela e seguiram para o quarto, o último vestígio de vida na superfície. Era um pequeno quadrado branco, com janelas retangulares que começavam no teto e se tornavam trapezoidais à medida que se aproximavam do chão. Elie só queria se aconchegar nos braços do ofi cial e lhe dizer quanto sentira saudade, mas temia começar a chorar, por estar tão exausta. Em vez disso, iluminou o quarto com o lampião a querosene com um leve ar de desaprovação. Havia meias, cartas de baralho, botas e livros espalhados pelo chão. Além de outro suéter verde.

— Isso aqui está parecendo o posto avançado — comentou.

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— Na verdade, Elie, troquei os lençóis — disse o ofi cial.— Que bom!— Então, estou desculpado?— Talvez.Ela colocou seu casaco sobre uma cadeira. Em seguida, abriu os braços:— Minhas duas metades estão prontas para você, agora — disse ela.

C

Elie dizia que se mudara do pequeno quarto escuro sob a terra porque as pessoas precisavam de mais espaço para dormir. Mas todos sabiam que era por-que ela amava Gerhardt Lodenstein, o Oberst do Complexo.

— Quanto mais loucas são as coisas, mais longos parecem três dias. Por que você demorou tanto? — perguntou ele, levando-a para a cama.

— Quanto menos você souber, melhor — respondeu Elie.— Os SS estão matando pessoas como se fossem moscas. Fico preocupado.— Nas fronteiras não há tanta loucura — disse Elie. — Eu estava com três

crianças sob os cobertores e o SS mal olhou. Eles pararam de acreditar nesta guerra. Todo mundo parou.

— Não Himmler e Goebbels — disse Lodenstein. — Nem os campos de concentração. Cada dia matam mais gente.

A menção aos campos fez Elie se lembrar da história do anjo. Ela beijou Lodenstein, retirou o revólver da jaqueta e chutou as botas para longe. Depois entrou sob as cobertas, de saia, blusa e com a fi ta de seda vermelha.

— Você não pode dormir vestida, Elie.— Hoje em dia, muita gente dorme — respondeu ela.— Eu sei, mas ainda estamos seguros aqui.— Ainda — disse Elie.— Ainda é seguro o sufi ciente.Elie sorriu e ele a despiu com cuidado. Quando a tocou, ela se sentiu tão

frágil quanto a fi ta que ele tinha desamarrado — a fi ta que, com os documentos confi denciais, lhe davam liberdade para viajar. Ele a puxou para si. Ela se afastou.

— Alguma coisa está errada. O que aconteceu com você lá fora? — pergun-tou ele.

Ela tocou a colcha. Era um edredom de penas revestido de seda cinza que viera de uma casa saqueada em Amsterdã.

— Está a maior confusão por lá — disse ela. — E temos que dormir sob esta colcha idiota do Reich.

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— Mas não é isso que está incomodando você.Lodenstein apagou o lampião a querosene e a escuridão reinou suave, quase

tangível. Ele tocou em Elie e o corpo dela parecia feito de renda. Fizeram amor lentamente.

Quem pode resistir à sensação de ser feita de renda?, ela pensou. Só alguém que sabe que está a ponto de morrer asfi xiado ou não sabe se seus fi lhos vão co-mer no dia seguinte. Somente alguém que tem de andar quilômetros perigosamente numa noite fria de inverno.

Lodenstein adormeceu, mas Elie fi cou acordada, pensando no homem da SS que se transformara em anjo. Imaginou sua conversa com o Comandante, o prisioneiro sendo avisado de que podia partir. Imaginou os dois saindo de Auschwitz. Se uma pessoa consegue sair, duas pessoas conseguem, pensou ela. E depois, três. E quatro.

Antes de Goebbels lhe dar os documentos de identidade, ele mostrara a Elie fotografi as de Auschwitz, procurando indícios de compaixão. Ela tomara cuidado para não revelar nada enquanto observava as fi leiras de alojamentos e as cercas de arame farpado avermelhadas erguidas em volta do campo, parecendo congeladas pelo vento. Os arames empenachados lembravam runas, mas eram capazes de rasgar a pele. O que seria preciso fazer para uma pessoa passar pela cerca?, pensou.

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