os procedimentos de compreensão: um estudo … um encaminhamento à luz das discussões...
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Os procedimentos de compreensão: um estudo sobre o livro didático de língua
portuguesa
Guilherme Primo de Mendonça1
Evandro de Melo Catelão2
Resumo
Este estudo, recorte de uma monografia de especialização, apresenta uma análise crítica
voltada aos procedimentos de leitura, inscritos num livro didático de língua portuguesa.
Para tanto, toma-se como embasamento, sobretudo, os quadros de Marcuschi (2008,
2011) a respeito dos processos de compreensão. Lança-se mão de uma abordagem
qualitativa por pesquisas de natureza bibliográfica e documental, com o objetivo
principal de discutir as possíveis contribuições dos procedimentos à formação do
estudante de educação básica. Para tanto, relacionam-se aos objetivos das autoras da
ferramenta didático-pedagógica os caminhos direcionados pela literatura do tema do
ensino-aprendizagem — voltados à leitura —, assim como as classificações propostas
por Marcuschi. Observou-se que as atividades propõem a cópia, decodificação, como
maneiras de se “interpretar” um texto, encaminhando, assim, o estudante a uma
formação escolar de qualidade duvidosa. Aponta-se tal fato, uma vez que não propiciam
— ao menos — o início de uma formação direcionada à autonomia e continuidade, com
possíveis agravantes para o relacionamento na fase adulta com seus pares.
Palavras-chave: Ensino-aprendizagem; Livro didático; Processos de compreensão.
Abstract
This study, part of a monograph of specialization, presents a critical analysis about the
read procedures, in a textbook of Portuguese language. For this, pick as basis theory,
especially, the frames of Marcuschi (2008, 2011) about understanding processes. Was
used a qualitative approach through of nature research bibliographic and documentary,
1 Mestrando em Ensino de Ciências Humanas, Sociais e da Natureza pela Universidade Tecnológica
Federal do Paraná (UTFPR – Campus Londrina). CEP: 86036370. Londrina, Paraná. E-mail:
[email protected]. 2 Doutor em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), professor adjunto da Universidade
Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR – Campus Londrina). CEP: 86036370. Londrina, Paraná. E-mail:
in order to discuss the possible contributions of the procedures for the formation of
basic education student. To this end, were related to the goals of the authors of the
didactic-pedagogical paths tool the driven by the theme of literature teaching and
learning — geared to reading — as well as the classifications proposed by Marcuschi.
It was observed that the activities proposed the copy, decoding, as ways to "interpret" a
text, directing the student to a scholar formation of dubious quality. Points this fact,
once that it does not provide — at least — the beginning of a aiming at independence
and continuity, with possible aggravation to the relationship in adulthood with their
peers.
Keywords: Procedures of comprehension; Teach-learning; Textbook.
Introdução
Os possíveis caminhos citados nos documentos oficiais3, assim como nas
discussões a respeito dos parâmetros democráticos contemporâneos, voltados ao
desenvolvimento da educação básica no Brasil, levam-nos a priorizar pedagogias
direcionadas ao aprendizado autônomo e contínuo (BRASÍLIA, 2006). Em outras
palavras: às práticas que prezam pela formação de sujeitos com "conhecimentos
socialmente elaborados e reconhecidos como necessários ao exercício da cidadania"
(BRASÍLIA, 1998, p. 5). Formação que ainda pode ser vista por priorizar os pares, a fim
de que se tornem "importantes como agentes de socialização e como um fundo contra o
qual o jovem adolescente pode talhar sua juventude." (McKINNEY, 1986, p. 174).
A contribuir com o desenvolvimento da educação básica brasileira, este estudo
discute a elaboração dos procedimentos de leitura4 em um livro didático de Língua
Portuguesa — doravante LDP —, voltado ao sexto ano do ensino fundamental II. Para
tanto, destacam-se dois objetivos: o enquadramento das atividades pós-texto, de acordo
com os tipos de compreensão propostos por Marcuschi (2008, 2011) e a análise crítica
dos procedimentos que seguem o texto da unidade didática em questão.
3 O PNLD (BRASIL, 2014), as OCEM (BRASÍLIA, 2006) e as DCE (PARANÁ, 2008), Programa
Nacional do Livro Didático, Orientações Curriculares para o Ensino Médio e Diretrizes Curriculares da
Educação Básica – Língua Portuguesa, respectivamente. 4 São considerados procedimentos de leitura as atividades que sucedem os textos, de maneira a realizar
uma das possíveis interpretações que aqueles indicam.
A fim de classificar os procedimentos, relacionando-os às perspectivas da
educação básica contemporânea, ao mesmo tempo em se discutem as possíveis
contribuições deles para o desenvolvimento do estudante, utilizaram-se como
embasamento teórico os estudos abordados por Marcuschi (2008), documentos oficiais
como o PNLD (BRASIL, 2014), e as OCEM (BRASÍLIA, 2006), e autores que tratam
do valor da leitura: Rojo (2007) e Zilberman (2008). Para tanto, toma-se como
necessária uma abordagem qualitativa e duas pesquisas de diferentes naturezas,
seguindo-se os ditos de Fonseca (2002). Pela bibliográfica, propõe-se lançar mão do que
afirma Marcuschi e pela análise documental, discutem-se os tópicos do LDP em
questão.
Pensa-se, assim, ser possível compreender a real contribuição para a formação do
estudante pela parte do LDP em análise, conforme ditam as Diretrizes Curriculares da
Educação Básica em Língua Portuguesa (PARANÁ, 2008), quando destacam "um
trabalho pedagógico que aponte na direção da totalidade do conhecimento e sua relação
com o cotidiano" (PARANÁ, 2008, p. 21). Em suma, busca-se analisar se as questões de
“interpretação” oferecidas pelo LDP proporcionam ao estudante uma formação escolar e
social. Tem-se como hipótese que a formação deve corroborar para que o estudante seja
capaz de emitir opiniões, postular críticas e propor novas reflexões, reconhecendo a
leitura como um ato social funcional.
Antes do aprofundamento na análise, houve o cuidado de observar o LDP
desde a sua “Apresentação” até às unidades que o compõem. Cabe enfatizar o termo
análise, uma vez que não é o foco desta produção contribuir com novas propostas
didático-pedagógicas — embora algumas indicações sejam sugeridas em determinados
momentos — nem publicar um novo tratado sobre o ato de ler. Trata-se,
fundamentalmente, de rever a contribuição de outras propostas sobre a abordagem de
determinados textos, ratificando, ao mesmo tempo, a importância dos procedimentos de
leitura na formação dos estudantes.
Busca-se, iniciando as pesquisas descritas, primeiramente tornar diáfanas as
classificações trazidas à baila por Marcuschi, como forma de dar suporte e introduzir a
análise documental.
1 Pesquisa bibliográfica
1.1 Processos de compreensão: decodificar x inferir
Estabelecer um encaminhamento à luz das discussões sociointeracionistas,
perspectivando-as no manejo do LDP, exige, primeiramente, observar como se
distinguem as formas de compreensão abordadas na literatura do assunto. Num recorte
dos conceitos de Marcuschi (2011), apresenta-se o que o autor considera como:
compreensão enquanto decodificação e compreensão enquanto inferência. Dessa forma,
[...] podemos dizer que todas as teorias de compreensão se situam em
um destes dois paradigmas:
(1) compreender é decodificar ou (2) compreender é inferir. De um
lado, temos as teorias da compreensão como decodificação, baseadas
na noção de língua como código e, de outro lado, aquelas baseadas na
noção de língua como atividade, tomando a compreensão como
atividade inferencial. (MARCUSCHI, 2011, p. 6, destaques do autor)
Considerar a língua a partir de um conceito estático, destinada a ser utilizada
como código, faz com que desconsideremos, muitas vezes, o grau de informatividade e
a textualidade que permeiam os gêneros. Deixamos de nos importar, principalmente,
com a tríade dialógica autor-texto-leitor. Tal atitude, defronte a essa perspectiva de
língua, tanto dificulta a implementação de uma lógica contemporânea, como amplia a
margem para o desenvolvimento do ensino-aprendizagem concreto, dessa forma,
portanto, a convergir ao direcionamento apregoado pelo professor e pelo livro didático5.
Um caminho didático que se faz, com base nessa concepção de língua, contribui
para uma prática de ensino baseada na compreensão-decodificação. Remete-nos, então,
a um modelo de ensino tradicional — ultrapassado, mas ainda vigente —, o qual
privilegia, resumidamente, "uma ação objetiva de apreender ou decodificar o que fora
codificado" (MARCUSCHI, 2008, p. 238). De outro modo colocado, influi para que o
docente assuma um posicionamento no qual forma alunos capacitados tão somente na
prática reprodutiva daquilo que leem. Formam-se alunos despreparados no
enfrentamento de discursos de poder, os quais agem sobre eles nas diversas esferas pelas
quais percorrem.
Na contramão do que foi discutido nas linhas acima, o autor apresenta a
compreensão enquanto processo, mais precisamente quatro processos: estratégico,
flexível, interativo e inferencial. Em síntese, neles se encontram práticas que
correlacionam a faculdade mental aos contextos político, histórico, cultural, bem como
às esferas sociais (ARRUDA, 2009). Para Marcuschi (2008), é a partir da correlação de
5 Sobretudo por esse: devido ao fato de que há muito se faz dele um roteiro de leitura de obras
canonizadas, um plano de aula.
tais elementos, que a tríade autor-texto-leitor passaria a funcionar, pois é adotada a
noção do outrem como quem modifica algo produzido, de que — apesar de a leitura ser
individual — a compreensão ocorre de maneira solidária.
Concomitantemente, é fundamental que se apresente, ainda, a concepção de
escrita sob o viés de Koch e Elias (2014), uma vez que vem a complementar a noção de
compreensão-processo, essa não findada na leitura. Segundo as autoras,
[...] a escrita pressupõe sempre o leitor e na base disso, encontra-se o
princípio da interação, que privilegia a negociação entre os sujeitos, a
intersubjetividade, os conhecimentos sociocognitivamente constituídos
e significados, a língua situadamente em uso, o dizer e o redizer.
(KOCH; ELIAS, 2014, p. 51)
Como "o sentido não está nem no texto nem no leitor nem no autor, e sim numa
complexa relação interativa entre os três" (MARCUSCHI, 2008, p. 248), ao docente
seria importante uma prática pedagógica flexível, perspectivando a língua "como uma
atividade e não como um instrumento" (MARCUSCHI, 2008, p. 248). Ou seja, trata-se
de assumir um posicionamento frente à leitura que não o fadado ao ato de ler
determinado texto e à resolução das atividades que o seguem. De não realizá-la,
portanto, sem considerar os contextos do alunado, do professor e do escritor; nem
mesmo de usá-la como pretexto para a prática de escrita.
Julga-se que a discussão em torno de determinado material, passa a ser válida no
momento em que se conhece aquilo que a literatura do tema propõe como caminhos
possíveis, assim como se visualiza a composição da ferramenta analisada. Dessa forma,
as linhas, que tão logo são apresentadas, abordam, de maneira breve, o que acima foi
colocado: o conhecimento daquilo que está sendo analisado, precedendo a análise do
objeto analisado.
2 Material e métodos
O livro didático posto sob análise, Jornadas.port, que se encontra na segunda
edição, produzida no ano de 2012, destina-se ao 6º ano do Ensino Fundamental II, com
distribuição pelo Governo do Estado do Paraná. Segundo as indicações ainda em sua
capa, deve ser utilizado ao longo de três anos letivos: 2014, 2015 e 2016. Tal ferramenta
pedagógica, de acordo com a apresentação realizada pelas autoras Dileta Delmanto e
Laiz B. Carvalho, ambas atuando como professoras das redes estadual e particular de
São Paulo, pretende possibilitar o entendimento do mundo, a realização de novas
descobertas e reflexões por meio da paixão revelada pela leitura.
A organização do material se faz pela sua divisão em oito unidades, cada qual
interagindo com uma "finalidade específica", como é descrito no momento da
“Apresentação”. Cada uma dessas unidades abarca um gênero: diário/blogue, história em
quadrinhos, carta do leitor/carta de resposta ao leitor, conto popular, fábula, relato de
viagem, poema/poema visual e verbete de enciclopédia/verbete poético. Embora seja
possível observar uma variedade de textos em cada uma das unidades, há sempre um que
predomina. No caso deste estudo, o texto é “O compadre da morte” (p. 121).
Sua escolha ocorreu ainda em sala de aula6, ao longo de um período em que ele
era utilizado como a principal ferramenta didática naquela turma. Quando no contato
com esse material, posicionando-se frente às observações superficiais a respeito dos
momentos pós-leitura, verificou-se que as questões produzidas com o intento de
trabalhar a compreensão do texto, bem como as respostas elaboradas pelos alunos, não
contribuíam para uma futura inserção efetiva — deles — no contexto citadino7.
Uma vez que a extensão exigida para a abordagem completa do material
abarcaria uma pesquisa mais ampla, toma-se como objeto de análise a unidade “Contos
contados” (p. 118-155). Contudo, um novo recorte foi necessário na unidade discutida,
pois foram consideradas apenas as atividades que se encontram nos tópicos relacionados
ao objetivo deste artigo: os procedimentos de compreensão do texto. Vale ressaltar, que,
ao longo da discussão, são expostos exemplos pontuais do livro, de modo a não ficar tão
apenas no campo da teoria e imaginação, e por ser possível buscá-lo em sua completude
para maiores observações.
Posto isso, parte-se para a análise de cada um dos tópicos, precedida por uma
rápida passagem sobre uma das indicações postuladas pelas autoras ao docente no início
da unidade, referente o modo de se ler a obra literária.
3 Análise documental
6 O ano era o de 2014. Esse livro foi adotado pelo professor titular da turma, que, por motivos
particulares, precisou ser afastado. Contudo, considerou-se ser importante dar sequência ao uso do
material. 7 Comparam-se essas respostas aos momentos em que era exigido dos alunos um posicionamento crítico,
tanto na emissão de opinião, quanto para criticar alguma já proferida e/ou argumentar de modo que novas
discussões fossem trazidas à tona. As respostas simplistas, que eram as indicadas pelos procedimentos de
leitura, nada se assemelhavam aos interessantes posicionamentos dos estudantes frente aos debates
organizados em sala.
3.1 A leitura pelo docente
Na primeira indicação (p. 120) direcionada ao professor, referente à maneira de
guiar a leitura do texto — “O compadre da morte” (p. 121) —, observou-se uma relação
desconexa com aquilo que é sugerido pelas perspectivas contemporâneas. Isso, porque,
no que diz respeito ao contato inicial do estudante com o texto, indica-se que o
professor passe a assumir o papel de primeiro leitor do conto. Contudo, se temos a
oportunidade de perspectivar avanços a partir das leituras realizadas pelos alunos —
seja a oral ou silenciosa —, não são observados os motivos que os levam à submissão
de uma leitura monológica.
A não submissão se caracteriza pelo fato de o aluno ser o primeiro leitor da obra.
Desse modo, é possível falar em “leituras”, uma vez que ele realizaria a leitura
silenciosa, solitária, seguida pela oral, de forma intercalada (entre discentes). Por sua
vez, o docente passaria a promover uma terceira leitura, de maneira interpretativa, que
contemplasse as suas explanações, bem como as do alunado. Priorizaríamos, por meio de
três oportunidades, o desenvolvimento de diversificadas percepções acerca de um
conteúdo e que, num momento seguinte, contribuiriam para a produção de respostas cujo
interesse volta-se à interpretação8.
Deduz-se que, como na música, onde o musicista aprende a executar a obra,
ensaia e, por último, apresenta-se ao público; como na pintura de determinado objeto,
atividade em que a “segunda mão” é necessária para corrigir o que se considera por
falhas, o ato de ler em três momentos contribui para preencher lacunas deixadas na
leitura que se realizou anteriormente. Somam-se a isso os procedimentos necessários
para os momentos de uma aula destinada à leitura. Esses são entendidos por: o silêncio
para o melhor desempenho da leitura (ao longo da leitura silenciosa), a impostação de
voz (na leitura oral, intercalada), a emissão de opinião, de crítica e o saber respeitar (a
ser desenvolvido no momento da leitura interpretativa, intercalada).
Logo após o texto, são postuladas questões topicalizadas para a afirmação
daquilo que foi pressupostamente compreendido no momento da leitura. Neste LDP, a
exploração do texto é seccionada em: “Nas linhas do texto”, “Nas entrelinhas do texto”,
“Além das linhas do texto”, “Como o texto se organiza” e “Recursos linguísticos”.
Contudo, concentra-se a discussão apresentada nas proposições a seguir em torno dos
8 Entende-se, entretanto, que esse caminho a ser percorrido adquire sentido apenas se for o caso de os
procedimentos de leitura propiciarem respostas que não apenas do tipo cópia, decodificação.
três tópicos posteriores ao texto, excluindo-se da análise os dois últimos citados
anteriormente. Cabe destacar, que o estudo se fez, inclusive, tomando como
procedimento os escritos da “Apresentação” do livro, como os títulos dos tópicos pós-
texto, que, num primeiro momento, são autoexplicativos.
3.2 Os procedimentos de leitura no livro didático
3.2.1 “Nas linhas do texto”
O primeiro tópico a ser explorado é o que tão logo sucede o texto: “Nas linhas do
texto” (p. 122).
Constatou-se que a formulação das questões, nesse momento, oferece vazão às
tradicionais respostas de decifração, amparadas naquilo que o texto apresenta
superficialmente. Dentre os seis questionamentos que compõem o tópico, cinco deles são
passíveis de soluções que o aluno poderá elaborar lendo primeiramente o que se pede
para, então, realizar a leitura do trecho onde se encontram as respostas9. O agravante,
neste caso, é uma leitura que se faz com objetivos apenas escolares, acentuando a visão
de que ler é apenas uma atividade a ser desenvolvida em sala de aula10. Trata-se de
perceber a literatura como “iniciação à língua literária e à cultura humanista, menos
rentável em curto prazo, [...] vulnerável na escola e na sociedade do amanhã.”
(COMPAGNON, 2009, p. 23).
Conferiu-se, ainda, que, para apresentar a resposta como se pede, o aluno não
precisaria se posicionar enquanto crítico, pois não é instruído a se portar como tal; o que
fica claro, no entanto, é que, caso copie uma passagem do texto, obterá a explicação
necessária. Entretanto, não se entende que esse procedimento contribua (apenas)
negativamente11 para a sua formação; ainda: leva-nos a refletir sobre o posicionamento
9 Essa artimanha é comumente ensinada em instituições que tomam como foco o ensino da interpretação
de textos, com fins em processos seletivos e que são quase impossíveis de serem controlados num
ambiente escolar tradicional. 10 A leitura escolar seria a que toma o texto literário como pretexto para atividades escolarizadas, voltadas
para a aferição de notas. 11 De uma leitura realizada “Nas linhas do texto”, espera-se que os alunos saibam, antes de tudo,
visualizar os elementos superficiais que compõem o texto, ainda que esse momento se dê pela
reprodução. Assim, não é vista com maus olhos as atividades de cópia e reprodução, neste caso.
do professor em sala de aula, o qual sustenta o papel de sujeito transparente, pois a
simplicidade das questões não exige sua participação mediando repostas, por exemplo12.
Reafirma-se tal reflexão a respeito do docente frente ao material didático, de
acordo com o que afirma Rojo (2007):
[...] o impresso que circulará na sala de aula prefere colocar o aluno
em interação com o texto escrito e não com seus colegas e sobretudo
não com o professor. A voz do autor do material tende quase sempre a
substituir ou ignorar a voz do professor, dirigindo-se diretamente ao
aluno e encarregando-se da aula. (ROJO, 2007, p. 77)
É importante frisar que, antes de continuar com a análise, o modo como são
propostas tais atividades se relaciona diretamente com a indicação apresentada nas linhas
acima. Ou seja, caso sigamos a ideia de que ler um texto apenas serve para a realização
dos exercícios que o sucedem, não se vê a necessidade de um trabalho de leitura
realizado de três formas distintas. Isso, porque, aquele visa não só a uma interpretação
mais aprofundada, mas, inclusive, à ativação de sentidos alcançados pelos diferentes
modos de se ler. Encarando, pois, o livro didático como ferramenta flexível, propõem-se
três maneiras concomitantemente a não indicação de que a atividade será encerrada pelos
procedimentos.
À vista disso, a não ser pela possibilidade que apenas uma das questões incita,
não há abertura para a troca de informações entre os alunos, nem entre alunos e
professor. Priorizam-se, pois, atividades enquadradas — alternando-se — na perspectiva
da “falta de horizonte” e na de “horizonte mínimo”. Isto é, naquela: retiram-se, copiam-
se, pinçam-se, palavras ou trechos que atendam às exigências simplistas de tais
atividades — como observado na questão número dois abaixo. Enquanto que a questão
número seis (também a seguir) representaria o “horizonte mínimo”: já que não se vê
como as argumentações dessas não sejam somente “uma atividade de identificação de
informações objetivas que podem ser ditas com outras palavras.” (MARCUSCHI, 2011,
p. 99).
A exemplificar tais colocações, apresentam-se as questões:
2. [...]
12 Se pensarmos, como em outro momento, nas relações entre pares, o diálogo, ainda que seja para tratar
de questões simples, não é indicado pelas autoras: nem o é nas indicações visualizadas somente pelos
professores, nem nos enunciados das atividades.
a) Como o narrador passa a se referir à personagem principal depois
que a Morte batiza seu filho? Resposta correta: Compadre.
6. O homem conseguiu enganar a morte pela terceira vez? Explique sua
resposta. (DELMANTO; CARVALHO, 2012, p. 122 destaques
nossos)
Em determinada parte dos estudos de Marcuschi (2008, p. 248), é possível
perceber, a partir da disposição de um quadro em que se encontram típicos
questionamentos de diversos outros procedimentos de leitura, a sua homogeneização.
Eles guiam os alunos a uma formação assentada tão somente na
compreensão/decodificação do texto, levando-os a perceber apenas informações contidas
na superfície textual e, como demonstram alguns casos, com base na ideia de língua
enquanto código.
Como forma de reiterar o já afirmado e dar encaminhamentos finais à análise
deste tópico, considera-se que a disposição de tais questões se volta apenas à simples
comprovação da leitura realizada pelo aluno. Tal proposta, no entanto, não é vista com
bons olhos, uma vez que não cabe aos procedimentos de leitura tal confirmação — mas
ao docente e por meio de outras práticas. Caso fosse o ofício do LDP, poderiam ser
elaboradas questões mais complexas que abrangessem, indiretamente, tal comprovação.
A seguir com a análise, chegamos ao segundo tópico: “Nas entrelinhas do texto”
(p. 122-123).
3.2.2 “Nas entrelinhas do texto”
Supõe-se que um tópico com o título “Nas entrelinhas do texto” será utilizado a
fim de investigar a semântica imbricada, as metáforas, o humor, naquilo que foi lido. Ou
seja, atividades que exigiriam a habilidade de ler os efeitos produzidos superficialmente
e os escamoteados, assegurando-se na bagagem de leitura dos alunos somada à leitura
interpretativa do professor. No entanto, assim como nas questões embutidas em “Nas
linhas do texto”, este momento do LDP faz uso dos exercícios de cópia para efetivar não
a aprendizagem significativa, o posicionamento crítico social; mas, a fim do que nos
parece, prolongar a forma utilizada no seu antecessor.
A seguir, exemplificamos a colocação:
1. Ao salvar o filho do rei, o homem desafiou a morte. Em seu
caderno, copie a alternativa mais adequada para explicar o motivo
dessa decisão dele.
4. Copie em seu caderno a resposta mais adequada. Nesse conto,
percebemos que a história que se conta está chegando ao fim no
momento em que: [...]. (DELMANTO; CARVALHO, 2012, p. 122-
123 destaques nossos)
Tal momento do estudo do texto se aproxima do conteúdo estudado
anteriormente — em “Nas linhas do texto”. Assim como identificamos questões com
respostas semelhantes no tópico anterior, apontamos que ambos contêm questões
semelhantes no que diz respeito ao enunciado, bem como à recepção. Conferimos tal
afirmação retirando duas questões, uma de cada tópico:
“Nas linhas do texto”
6. O homem conseguiu enganar a Morte pela terceira vez? Explique
sua resposta.
“Nas entrelinhas do texto”
2. Copie a resposta mais adequada no caderno. O homem foi
finalmente levado pela Morte porque:
Resposta correta: b) ela foi mais esperta, aproveitando-se de uma
distração dele. (DELMANTO; CARVALHO, 2012, p. 122 destaques
nossos)
Ressalta-se, porém, que, sob esta forma de se proceder com o trabalho de leitura,
o desinteresse do aluno por ela aumente, proporcionalmente à medida que são realizadas
atividades semelhantes a essas. Isso porque, deparam os estudantes com a facilidade nas
resoluções, pelo fato de que elas não o valorizam enquanto sujeito dotado da capacidade
de criar, pela impossibilidade de iniciar uma discussão do conteúdo que foi lido13.
Poderíamos ir além: pelo fato de que esses momentos não se relacionam com outras
ferramentas capazes de auxiliar no ensino-aprendizagem14. Tal posicionamento, acredita-
se, será representado num futuro, no qual o adolescente não possuirá a habilidade de
utilizar da fruição de sua(s) leitura(s) situada(s) eficientemente.
Ao mesmo tempo, ainda que o foco destes escritos não seja — diretamente — a
prática docente, prevê-se que tal composição ative um senso de comodidade no
professor, esse que deveria ser tão ativo quanto os alunos nos diversos momentos em
sala de aula. Expõe-se tal fato, uma vez que as questões não exigem um maior preparo
13 Supõe-se mais: tais questões desconsideram o conhecimento que o aluno pode adquirir a partir dos três
modos de leitura, somados ao que advém do campo externo à escola. O livro didático ainda prioriza uma
leitura única (a sua) como resposta possível, levando o docente a adotá-la, muitas vezes, como tal. 14 Aqui falamos do contato com as tecnologias digitais, os livros literários.
anteriormente ao momento em que são aplicadas. Ou seja, a ideia de formação
continuada — como propõe Kenski (2003), Nóvoa (1992), entre outros autores —
encontra em tais procedimentos uma situação distanciada do que se pensa nela: a
estagnação da formação.
Impera-se que o aluno, a partir do momento em que não é auxiliado a prosseguir
nos trilhos de uma formação perspectivada pelos documentos oficiais, encontra-se
destituído de poder exercer plenamente a atividade de sujeito-leitor. Tal prática
contemplaria, inclusive, as leituras realizadas em ambientes distintos ao escolar, nas
quais a figura do intermediador, professor, não se faz presente. Nesse sentido, o tópico
em análise contribui para uma formação pouco relacionada com os usos de textos pelos
estudantes nas suas atividades cotidianas.
3.2.3 “Além das linhas do texto”
Encaminhando estes escritos à análise das perguntas que compõem o terceiro
tópico — “Além das linhas do texto” (p. 123-124) — do LDP, de Delmanto e Carvalho
(2012), entende-se que as questões abrangem, de fato, marcadores extratexto. Isso
porque abordam a importância do trabalho com os contos, assim como a leitura de um
enredo semelhante ao lido, contado numa outra região15, na qual a língua portuguesa é a
oficial. Entretanto, pelas diversas e importantes leituras propiciadas pelo texto, apenas
enfatizar os paralelos existentes entre as obras semelhantes nos leva a desviarmos a
atenção dos alunos dos diversos temas que podem servir como mote para debates e
pesquisas que se seguiriam à leitura, por exemplo16.
Ao longo da leitura do conto, constatamos diversas passagens que nos remetem
às problemáticas relacionadas ao comportamento humano. Os diversos trechos poderiam
ser discutidos com base nas tentativas da personagem de enriquecimento a qualquer
custo, nas mentiras contadas com o propósito de ludibriar o rei, a esperteza do homem,
que carrega um sentido pejorativo, mais próximo da concepção de malandro, aquele que
15 Trata-se de uma releitura — “O compadre Bernardo e a comadre Morte” (p. 124) — distribuída em
Portugal. 16 A suposta necessidade de trabalhar “integralmente” o livro didático ao longo do ano letivo, corrobora
com a sua fragmentação. Não se vê, por outro lado, um trabalho contínuo a partir dos temas que suscitam
dos textos expostos nas obras didáticas, nem por indicação do(s) autor(es) de um LDP, nem pela ação do
professor.
tenta se safar de situações que não o agradam. Ainda, encontram-se presentes elementos
que trazem à tona o apego das personagens a entidades religiosas17.
Ao proporcionar uma leitura que contemple os diversos pontos ressaltados
acima, os tópicos indicariam atividades que ultrapassariam a camada superficial do
texto. Decorre daí a falha18 do LDP, neste momento, ao não tratar do dialogismo
presente, do funcionamento do texto como um dos possíveis modificadores sociais e
enquanto arte que representa diversas parcelas da sociedade.
Atribuímos tal crítica haja vista que se trata, talvez, da única ferramenta didática
que possibilitará ao aluno desenvolver, ou ao menos iniciar, uma prática de interpretação
que sirva como base para desmistificar e depreender determinados discursos. Assim, se o
livro abarca um texto que permite a abertura para o trabalho com o dialogismo, a
intertextualidade, a diversidade social, bem como a verificação de ocorrências
interessantes no âmbito da estrutura da escrita, vê-se como pouco interessante a redução
dos procedimentos de leitura à realização de exercícios de cópia. Atividades que visam o
desmembramento do texto, que nos fazem enxergá-las enquanto desenvolvidas, de modo
a provar a realização da leitura pelo alunado.
Tem-se claro que visualizar o livro didático como a ferramenta didática
principal em sala de aula — concentrando os únicos textos literários que muitos
estudantes irão entrar em contato ao longo de sua vida — não é de espantar aos que
convivem com a realidade da educação básica pública brasileira. Contudo, é de se
admirar como muitos de nós professores fazemos dele — ainda — um plano de aula
concreto, inflexível. Acrescenta-se: como desconsideramos o nosso conhecimento
adquirido ao longo das constantes formações pelas quais passamos, a maneira como
transmitimos aos alunos uma forma equivocada de aprender frente a uma fonte de
conhecimento.
Considerações finais
Enquadrar tais questões nas perspectivas de Marcuschi (2008), enfim, faz com
que percebamos que o LDP adotado para essa análise considera, ainda que não
17 Neste ponto, poderiam os envolvidos no ensino-aprendizagem discutir as expressões que envolvem
entidades religiosas nos momentos de angústia: sejam as expressões apresentadas pelas personagens,
sejam as apresentadas pelos alunos. 18 Entende-se que essa falha sirva como lacuna na qual o docente deve se encontrar atuante, de modo a
não considerar o material didático como a única ferramenta com a qual pode lidar.
totalmente, a “língua como código”, o que, de certa forma, quando relacionadas a obra
didática e as referências oficiais e, inclusive, o discurso nas mais diversas pesquisas
acadêmicas, faz com que valorizemos o processo emergente que toma a “língua como
atividade”. Desse modo, portanto, situando o leitor como sujeito inserido no “[...]
processo de compreensão que se dá como uma construção coletiva [...].”
(MARCUSCHI, 2008, p. 238).
Rumando aos momentos finais, considera-se que tais atividades são passíveis de
sofrerem modificações pedagógicas, uma vez semelhantes no que tange à interpretação
e, por exporem informações, que, em sua maioria, os alunos hão de considerar
irrelevantes. São atividades que se encontram na fronteira da simplicidade e da
possibilidade de não serem úteis nos contextos pelos quais circulam, indo em direção
oposta à apregoada pelos ditos contemporâneos da educação básica. Reafirmarmos, por
meio do que tece Jauss (1976 apud ZILBERMAN, 2008, p. 92), nosso posicionamento
diante do texto, pois o autor
[...] considera que, entre a obra e o leitor, estabelece-se uma relação
dialógica. Essa relação, por sua vez, não é fixa, já que, de um lado, as
leituras diferem a cada época, de outro, o leitor interage com a obra a
partir de suas experiências anteriores, isto é, ele carrega consigo uma
bagagem cultural de que não pode abrir mão e que interfere na
recepção de uma criação literária particular.
Tal referência nos leva a refletir, portanto, sobre a necessidade de um ensino que
privilegie o diálogo educacional, de modo a contemplar o contexto cultural, histórico,
cognitivo, linguístico, pensado na ampliação do horizonte do aluno. Finalmente, não se
confirma a hipótese apresentada na introdução deste estudo, visto que, além do que se
discutiu, temos um sujeito que se encontra desobrigado de exercer funções
extraescolares, por exemplo, a fim de que garanta um espaço de tempo a sua formação.
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