os terroristas

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“De hoje em diante, cada corrupto será condenado por seus crimes; de hoje em diante, a ordem e o progresso que drapejam junto à bandeira deste país serão escritos com sangue.” Cansados de tamanha corrupção e descaso pela população, um grupo autointitulado “Filhos do Brasil”, encabeçado por João de Santo Cristo, promete abalar a estrutura política do País ao escrever a “Carta aos Brasileiros”, na qual assumem a autoria dos assassinatos de quatro parlamentares. Contudo, o plano é ainda mais audacioso: a cada deputado morto, uma nova lista dos próximos alvos é divulgada, o que causa ainda mais pânico no povo e muita dor de cabeça para a polícia, principalmente na do investigador Lucas Simon, que, com apoio de ministros, embarca em uma implacável investigação atrás dos responsáveis pelos atentados. Quem será o próximo alvo?

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Os TerrOrisTas

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Leandro Osterkamp Pedrozo

São Paulo, 2013

COLEÇÃO NOVOS TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

Os TerrOrisTas

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Copyright © 2013 by Leandro Osterkamp Pedrozo

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográficoda Língua Portuguesa (Decreto Legislativo no- 54, de 1995)

Pedrozo, Leandro OsterkampOs Terroristas / Leandro Osterkamp Pedrozo – Barueri, SP : Novo Século Editora, 2013. – (Coleção novos talentos da literatura bra-sileira)

1. Ficção brasileira I. Título. II. Série.

13-12352 cdd-869.93

Índices para catálogo sistemático:1. Ficção : Literatura brasileira 869.93

2013IMPRESSO NO BRASIL

PRINTED IN BRAZILDIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO

À NOVO SÉCULO EDITORA LTDA.CEA – Centro Empresarial Araguaia II

Alameda Araguaia, 2190 – 11o- andarBloco A – Conjunto 1111

CEP 06455-000 – Alphaville Industrial – SPTel. (11) 3699-7107 – Fax (11) 3699-7323

[email protected]

Coordenação Editorial Nair Ferraz Diagramação Edivane Andrade de Matos/Efanet Design Capa Monalisa Morato Preparação Mila Martins Revisão Denise Di Camargo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

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Para minha esposa, Luciana; e filha, Letícia.

E para meus pais Dorvalino e Helga, minha irmã e sobrinhos.

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a respeiTO de JOãO

Era quase impossível distinguir um grito do silvo esgani- çado do vento quase frio que meneava pelas ruas estreitas

e boêmias do centro histórico de ascendência portuguesa, cuja arquitetura moldava um misto de evolução social e decadência moral nos bares onde a crença em Deus só se manifestava no moribundo em que a morte viesse lenta. Naquela semana, in-dependentemente do acerto prévio, como em todas as outras noites de sextas-feiras, eles estavam discutindo política, toman-do cerveja num ambiente de aparência lúgubre que espantava qualquer desavisado ou companhia inconveniente que por ali se arriscasse. Nada mais providente do que manter quem é próxi-mo longe. Manter as namoradas, os afetos e os desafetos a qui-lômetros de distância sem nenhum esforço e com justificativa irrepreensível, pois o convite sempre era feito e, como de praxe, nunca aceito por alguém em que a nobreza além de não correr pelas veias também não habitava suas almas. Eles, como sem-pre, estavam a sós, exatamente como queriam.

– Vocês viram os jornais?– Claro! – teria sido a resposta de cada um se seus olhares

não fossem tão eloquentes.– O presidente sabia!

prólOgO

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– É claro que ele sabia de tudo – respondeu Fernando, de aparência moura e ideias cristãs, em que o sangue irlandês encarregava-se de levá-las ao extremismo.

– Tu tinhas dúvida? – completou com voz serena o outro de ideias cristãs que não acreditava no virtuosismo humano e possuía imparcialidade inglesa, sem falar no fatalismo alemão que a vingança islâmica se encaixava bem no seu senso por jus-tiça, cujo vulgo naquela roda era João.

Carlos, que havia iniciado a conversa, arrependeu-se de ter tocado naquele assunto que tanto espezinhava o brio de qualquer brasileiro honesto. Sem mais delonga, arriscou.

– Vamos mudar de assunto, deixemos o governo para lá. – Já que iniciaste o assunto, por que não terminá-lo? –

interveio João.O grupo era homogêneo em suas ideias; sempre conver-

savam, mesmo bêbados, de forma quase solene num português entrecortado por ortodoxia e que de forma quase velada os dife-renciavam da população que renegava seus deveres civis.

– Vocês viram o Edney Figueiredo? Ele só foi preso por-que desacatou o juiz e mesmo assim não passou uma hora sequer na delegacia – disse Bruno, o mais comedido de todos.

– Sabe quando alguém será preso? – indagou João, já esperando uma resposta sem surpresas, que a história confir- mava, e ela veio em uníssono.

– Nunca!Naqueles anos, igualmente como nestes, a impunidade

e a corrupção eram patentes, com raríssimas exceções, e resu- mia-se a um único termo: política. O governo que se dizia pai não passava de padrasto, e seus bastardos esperançosos acredi-tavam em dias melhores no céu.

A noite passou rápido, e os cinco deixaram o Cantinho da Noite (como o bar se chamava) tão bêbados como todos os

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outros que ali também estavam. Saíram abraçados, um segu- rando o outro e cantando qualquer coisa indistinguível do gru-nhir de um cão.

– Ajuda aqui! – gritou João para o motorista que dormia recostado no banco do carro.

O velhote, meio tonto de sono, saiu correndo com o cha-mado do patrão.

– Segura no braço dele – resmungou Santo Cristo.Jarbas, como fora apelidado, fez seu papel. Pôs todos, um

por um, dentro do carro sob as vistas de João, que, sentado na calçada, lutava por não dormir.

O carro deslizou macio pelas ruas desertas de São Luís, balançando suavemente como um berço e ciciando como uma canção que ninava todos e levava João a devaneios que, só quando estava à margem da realidade, tinha coragem de ter. Primeiro imaginava Edney Figueiredo depondo numa CPI, lembrando sempre da retórica populista e cínica que o deputa-do nunca deixava de exibir, falava alto como qualquer político, roubava o povo e se vangloriava disso. Depois, João de Santo Cristo quase delirava com sua imaginação fértil, que, regada a álcool, derramava sangue, dava um tiro na nuca, sem pena, sem raiva, só justiça.

Ninguém foi deixado em casa; todos dormiram o resto da noite um sono sem sonhos na mansão dos pais adotivos de João, que na nova família era filho único. Jarbas arrastou todos para os quartos com ajuda de um dos seguranças da casa; um os se-gurava pelas mãos, o outro pelos pés. Santo Cristo foi levado no colo. Jarbas se encarregou disso, colocou-o na cama e o cobriu como um pai, beijou sua testa e saiu.

Acordar naquela casa era como ser Deus e acordar do-mingo no paraíso. Os quartos eram voltados para o mar, que cabia em cada janela, e não ficavam a mais de vinte metros de

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onde as ondas se quebravam violentamente contra o muro na-tural de rochas, o que intensificava o odor da brisa, uma mistura úmida e agradável que nunca estava ausente.

Os dias ensolarados tão comuns no Nordeste do Brasil, que servem de refúgio para depressivos europeus, não tinham como exemplo aquela manhã de ventos fortes e chuva fina que fazia do horizonte uma massa degradê entre cinza e azul-mari-nho, unindo o céu e o oceano como se fossem um só. João es- tava parado junto à vidraça, que embaçada pela sua respiração o fazia sentir na face o vidro frio. Observava com prazer as águas revoltas se chocarem nervosas na praia e que em alguns mo-mentos chegavam a respingar na janela quando o vento soprava a favor. Ficou parado, imerso na ausência de pensamentos, até que Jarbas entrou com o café fumegante que já o havia denun-ciado antes mesmo de abrir a porta.

– Pode deixar em cima da mesa – disse sem se virar.– Coma antes que esfrie! – A resposta foi tão impessoal e

fria quanto o dia.O velho deixou o quarto com a mesma rapidez que entrou

e, a passos largos, voltou para a cozinha já pensando no desje-jum dos outros convidados, que com certeza não acordariam cedo como o filho do seu patrão. Jarbas preparou o café meca-nicamente, sabia pela experiência, por tantos sábados idênticos, o que cada um gostava de comer. Café, leite, queijo, salame, o cardápio era vasto e muito diferente da distante realidade que o motorista de João vivera. Nascido em Breu Branco, no Pará, cresceu numa família de doze filhos em que o mais velho, na verdade, era o quarto após três natimortos por desnutrição. Pas-sava o dia perambulando nas ruas vestindo um calção azul que era lavado todos os dias em que tomava banho no rio Tucuruí, fez curso técnico, tornou-se eletricista e casou com uma novi-ça do único convento local situado no lado mais alto de uma

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extensa rua de paralelepípedos, num bairro de classe média que talvez fosse o único da cidade e que todos chamavam de centro; nele, as noviças estudavam, dormiam e se divertiam lendo o que era permitido pelo index de livros proibidos, que no interior do Brasil ainda estava em voga. A outra diversão era se debruçar no parapeito das águas-furtadas e perscrutar o horizonte em busca de um dorso nu que com frequência era encontrado em meio a risinhos discretos e suspiros. Cada uma tinha o preferido e lhes davam nomes que combinavam com os seus. Solange tinha o predileto e já se habituara a subir sozinha os degraus que a levavam ao último andar, onde se abriam as janelas de sua alma. Olhava sempre na mesma direção, num horário já definido que beirava o crepúsculo em tons dourados, que a fumaça de algu-mas queimadas quase o transformava em sonhos. Foi assim por meses, e os homens que povoavam a imaginação nada ortodoxa das futuras freiras sempre mudavam de dona numa promiscui-dade que não passava de desejo; mas com Solange era diferente, nunca pensara em outro, tinha olhos só para o mesmo.

Aquele sentimento platônico se intensificou, cresceu e se transformou em luxúria para a Igreja, mas que para a ex-noviça tinha uma denominação simples: amor.

Os anos se passaram rápido, casaram-se. Moravam numa casinha num pé da serra que era rodeado por campos onde se plantava milho e feijão, dependendo da época. Solange passa-va os dias em casa esperando o marido com sorriso largo no rosto de quem havia trocado a devoção por Deus pela tentação de um homem que fazia de tudo para compensar a preferência. Francisco sempre trazia à mão algumas flores e as entregava para a esposa com uma fisionomia entre a bondade e a ingenuidade, mas que nas entrelinhas lia-se felicidade. Trazia margaridas, ca-momilas e, algumas vezes, rosas que apanhava furtivamente de algum jardim descuidado, quando sua paixão falava mais alto

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do que seu senso moral, o que com frequência acontecia – para não dizer todos os dias. A região era despovoada, e as noites eram calmas como as águas de qualquer lago profundo que, por vezes, era fendido por gritos desvairados que cruzavam a fron-teira débil do sono para a realidade, culminando num rolar de lágrimas que sem demora secavam pelos abraços acalorados e cheios de carinho que Francisco gostava de dar.

Naqueles dias, houve uma mudança no lugar; as terras devolutas que rodeavam o feliz casal foram tomadas de assalto por outra família tão humilde e desamparada como a de Solange e Francisco. A outra família também não tinha filhos, apenas um gato, e não devia ter mais de vinte e cinco anos cada um. Ele, um jovem de corpo atlético e sorriso dissimulado, ela ti-nha um sorriso maligno mal disfarçado, com cabelo escorrido e seco pela tintura amarelada que lembrava palha, e sempre os olhava de soslaio a invejar a felicidade deles.

O inverno passou, as flores novamente brotaram, mas as margaridas e as camomilas nunca mais fizeram parte da decoração da casa. Francisco chegava cada vez mais tarde e, apesar de demonstrar o mesmo amor incondicional, estava cada vez mais cansado, e até o amor das noites enluaradas que a levavam ao paraíso escassearam. A vizinha, que se chamava Germânia, não deixou de perceber o descontentamento de Solange nas rimas que cantarolava no início das tardes quando estendia roupa no varal. Naquele mesmo dia, antes de o marido chegar, Germânia foi à casa da vizinha, especulou como pôde e conseguiu descobrir o motivo da mudança naquela voz tão bela e sedosa. Sem perder tempo, espezinhou, semeou a desa-vença enquanto praguejava em silêncio até conseguir pôr em dúvida o amor de Francisco.

Solange não dormiu nas noites seguintes; imaginava trai-ções que desbancariam Shakespeare e, por vezes, derramava-se

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em lágrimas. Consumida pela dúvida, tomou uma decisão: iria seguir o marido e flagrá-lo num possível adultério. Foi o que aconteceu. Seguiu o marido a passos furtivos, desde de manhã até o final da tarde, quando Solange finalmente viu o que mais temia. Francisco segurava uma moça pela mão com o olhar tão meigo quanto os que ele lhe reservava, e sem palavras a beijou. A mulher traída saiu correndo, cabisbaixa, com os olhos ma- reados de lágrimas, que facilmente turvavam a visão; corria pe-las ruas como uma maluca e chegou em casa com o coração em trapos e sentimentos tão distorcidos que quase a puseram louca. Imaginava vingança, represália, até que caiu dessa vez na luxú-ria, quando, sonolenta, conspurcou com o vizinho.

Francisco não voltou à noite, chegando em casa no cantar do galo e o sol às costas. Vinha com os olhos inchados e verme-lhos, aparentava extremo abatimento que, por momentos, fez Solange sentir pena. Trazia na mão esquerda uma flor murcha que pendia quase sem pétalas e suas roupas estavam em trapos; sentou-se à mesa com o rosto encoberto pelas mãos e se pôs a chorar como se o arrependimento o pudesse matar. Ficou ali, mudo e soluçando cada vez que iria começar a falar até que, por fim, conseguiu pedir um copo de água que Solange, já recupera-da da noite, trouxe com relutância. Francisco abriu seu coração.

– Meu amor, há dois meses conheci uma moça, menina muito magra e saúde frágil que seus vinte anos não aparentavam mais que dezesseis. Filha única de uma senhora muito velha e doente que mal podia andar. A filha, Madalena, cuidava da mãe com dedicação quase obsessiva: lavava seus pés rachados, lim-pava suas chagas, e, ingênua, foi ludibriada por um vendedor que a levou, usou e descartou após poucas semanas. A pobre moça chegou em casa sete dias depois de abandonada, havia caminhado dezenas de quilômetros descalça e sem comida, o que piorou de vez seus pulmões tísicos. Desonrada, nunca mais

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sua mãe lhe dirigiu a palavra, mal a alimentava, seus vizinhos a ignoravam, os homens falavam impropérios que a maioria ela desconhecia tamanha era sua ingenuidade, e ainda se julgava merecedora de sua tragédia. Dormia, depois de expulsa pela mãe, numa pocilga fétida de um vizinho igualmente imundo que, nas noites de insônia, expunha suas vergonhas para seus amigos bêbados que urinavam e descomiam sobre Madalena. Eu a conheci antes de ela cair nas falsas promessas do viajante, e a vi de perto durante a sua agonia. Vendi o relógio que herdei de meu pai para o mesmo viajante que a tinha levado e, recen-temente, dei a ela o dinheiro e a beijei, adiantando que a beijava por pena, sem nenhum tipo de cobiça ou sentimento escuso. Ela agradeceu e teria me beijado por gratidão se eu não tivesse me afastado. Nesses últimos dias, consumida pela doença e vergo-nha, quase não comeu, então comecei a dar-lhe o meu almoço, o que me deixou fraco. Ontem ela morreu!

Solange, que tinha o coração destruído pela noite ante-rior, sentia vergonha pelos pensamentos que teve e, subitamen-te, saiu em disparada porta afora gritando numa clara expressão de sentimento extremo quando se é impossível distinguir o jú-bilo da desgraça, e teria morrido como Madalena se sua traição não passasse de um pesadelo numa noite calma como qualquer lago profundo.

O casal viveu feliz na sua ignorância até o destino se mos-trar trágico. Numa tarde de domingo, em que o tédio parece se multiplicar com o incômodo ressonar das cigarras, o eletricista foi chamado às pressas, apanhou suas ferramentas de trabalho e as pôs numa caixa de sapateiro adaptada que sempre carregava no ombro. Cruzou a cidade num piscar de olhos, andando rápi-do e sem procurar as sombras, o que deixava sua pele trigueira e seus olhos vermelhos pelo pterígio saliente que se destacava no olho direito e limitava a visão temporal, fazendo-o manter

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quase sempre esse olho fechado como numa expressão crônica de dor. Encontrou a casa com facilidade, já que se tratava de uma comunidade pequena, mas de intensa migração; chamou pelo morador e logo foi atendido pelo inquilino, que o recebeu com cordialidade incomum. O trabalho durou toda a tarde e invadiu o início da noite, que chegou com a fumaça das quei-madas descendo como um manto espesso sobre a cidade com a mesma frequência que a lua se mostrava. Recebeu o dinheiro que garantiria dois dias de comida para a família, já incluindo a cachaça do final da tarde, e seguiu rumo ao lar pelo meio da rua sem calçamento, evitando algumas poças de água, quando foi chamado.

– Boa noite!– Noite! – foi a resposta de Jarbas, então Francisco.– Gostaria de dar uma palavrinha com o senhor.Jarbas mudou a direção e, meio desconfiado, foi ao encon-

tro do homem, que enrolava um cigarro de palha com cuidado.– Pois não?– Chegue mais! – disse o dono da casa sem olhar para

Francisco.Desconfiado, aproximou-se lentamente com uma das

mãos a segurar firme a caixa de madeira, que já não estava mais nas costas.

– Trabalha para meu vizinho? – a pergunta foi em tom seco numa voz que lembrava taquara rachada.

– Fiz um trabalho para ele. – Chegue mais! Jarbas apertou a caixa sob o braço, que se faria em pe-

daços se tivesse força igual ao seu medo. Parou a um metro de distância até ser arrastado para dentro daquilo que não era di-ferente de um barraco.

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–Veio me matar, vagabundo? – foi o que Francisco ouviu quando, pela tremedeira incontrolável, soltou suas ferramentas, que se espatifaram no chão de terra batida.

– Como é? Vai falar ou não?Jarbas tremia dos pés à cabeça, sua voz estava embargada

e sua respiração era um resfolego rápido.– Anda homem, fala!O eletricista não conseguia dizer nada, mas tentava de

forma desesperadora gesticular quando o cano gelado marcou seu pescoço.

O tiro saiu num estalido seco, e Francisco desabou, já sem resistência, sobre o chão de terra firme que seu sangue fizera amolecer. Solange, sua esposa, teve sorte melhor, morreu pe-las mãos do mesmo verdugo com a lembrança estampada nos olhos ressecados da felicidade que ficou para trás.

s t s t s

Jarbas soltou um longo suspiro quando retornou ao presen-te, batendo em seu próprio rosto com as palmas das mãos,

como se quisesse esquecer as más lembranças que, igualmente às boas, traziam momentos ruins.

Na hora do almoço foi servido o café, cada um sentado em posições preestabelecidas por jurisprudência que o hábito estabelecera. Normalmente ninguém sentava na cabeceira; João dificilmente acordava depois dos outros, e o grupo se dispersava por ordem de importância e afinidade que não causava cons-trangimentos, já que tais sentimentos possivelmente eram sub-conscientes. Santo Cristo chegou depois, envolto numa toalha branca e com a touca de látex ainda cobrindo o cabelo liso e es-curo que moldava o rosto branco, e os ausentes olhos verdes que os óculos de natação não impediam de ficarem avermelhados

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pelo cloro da piscina semiolímpica de água morna, que ficava convidativa nos dias de chuva do inverno maranhense, cuja temperatura não ficava abaixo de 21O.

Todos perceberam o comportamento pouco habitual de João. Há dias que o “chefe” estava sorumbático, e o seu sorri-so fácil sempre presente não se manifestava mais. A causa não era plenamente desconhecida, mas os detalhes ninguém sabia, exceto pelos outros dois componentes da “cúpula”, os irmãos Siqueira. Wladimir, o mais velho e o mais mulherengo, possuía o mesmo senso crítico e extremismo de Marcos, principalmente no quesito punição aos diversos tipos de atitudes que seu sen-so moral condenasse, mas, diferentemente de João de Santo Cristo, não possuía propelente. O irmão mais novo e com a mesma idade do “chefe”, Bruno, era benevolente em relação aos erros alheios, mas admirava a determinação e o rigor de caráter dos outros dois e os apoiava sem medo e sem muito questiona-mento, seguindo sempre as ordens de João.

– Será que o Fernando concordaria? – Essa é minha única dúvida, Bruno – respondeu João

enquanto olhava Wladimir e Fernando se atirarem na piscina. O único que estava isolado era Carlos, mas por um bom motivo, pois adorava camafeus e os estava devorando todos.

– E o Carlos? – Ele faz o que eu pedir... O domingo seguiu como tantos outros, apenas João es-

tava diferente, meio alheio, quase em transe pela concentra-ção excessiva que começava a orientá-lo por caminhos que o inconsciente, agora, permitia chegar. Os pensamentos fluíam em turbilhão num curso guiado pela predestinação em que não adianta lutar, fazendo na vida uma escolha sem volta que só lhe cabia aceitar.

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João já havia comprado a passagem, embarcaria para Teresina – onde cursava o último ano de Medicina na Uni-versidade Federal do Piauí – num ônibus leito do Expresso Guanabara, às dez da noite, e como por hábito já estava com as malas prontas, pois quando chegava a São Luís às sextas, nunca as desfazia. Jarbas o levou, cruzaram a cidade em poucos minu-tos até chegarem à rodoviária que se erguia majestosa num bair-ro que nunca seria decadente, pois precisaria ter ascensão antes.

A viagem sempre era confortável, as poltronas deitavam quase 180O e todos os passageiros recebiam um cobertor de lã, que era seguido por um discurso improvisado e informal de cada motorista. Então o silêncio chegava e o sono vinha sem delongas.

s t s t s

Francisco só soube do assassinato da esposa e do filho Pedro quando saiu do coma após um mês. Descobriu que

havia tido um choque hipovolêmico, que para ele não significa-va nada, sabia apenas que perdera muito sangue depois de ter sido alvejado no pescoço e ter a veia jugular esquerda rompida; dizia o médico que ele teve sorte, pois a bala havia passado ras-pando a artéria carótida.

Seguindo um ditado alemão em que todas as coisas, boas ou ruins, nunca vêm sós, sempre são três, o ciclo se fechou, as tragédias cessaram; as surpresas, não.

Francisco precisou de mais três meses para se recuperar do ferimento à bala, alguns estilhaços atingiram o pulmão e a clavícula esquerdos, outro perfurou a traqueia, e fragmentos atingiram o nervo laríngeo recorrente deixando-o permanen-temente rouco. A análise dos estilhaços comprovou as suspei-tas, ranhuras em forma de X haviam sido feitas na ponta de

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chumbo para que o projétil se fragmentasse e aumentasse o dano no momento do impacto.

Nesses meses, sua consciência oscilou com seu quadro clínico, delirava quando a febre aumentava e chorava nos pou-cos momentos de lucidez. Foi numa dessas vezes que Francisco foi informado de que um de seus filhos estava vivo, o filho que ele ainda não conhecia, que nasceu com trinta e sete semanas, instantes depois de a mãe morrer.

E Francisco finalmente teve alta. O nascimento do seu se-gundo filho não passava de uma lembrança vaga de quem quer esquecer o passado, sequer tinha certeza de que seu filho, João, como Solange desejava chamá-lo, realmente sobrevivera, acha-va que era mais um de seus delírios. Delírio que o enfraquecia e que o atormentava todas as noites em que tentava dormir, delí-rio que o desviava de seu novo objetivo: vingar-se.

Francisco voltou a Breu Branco naquele mesmo ano, ex-pulsou os invasores de sua antiga casa e retornou para sua ati-vidade. Começou a trabalhar como ajudante de pedreiro e fazia alguns bicos como eletricista. O tempo passou e levou embora a infelicidade crônica de Francisco. Nem foi preciso muito tempo para que encontrasse outras mulheres; uma delas se chamava Tereza, enfermeira do único hospital local. Foi ela quem disse a Francisco como seu filho parecia com ele, olhos de um verde pálido, nariz afilado e uma calma escarninha. Tereza contou que João mal chorou, berrou por alguns instantes e depois se calou, tal como Francisco fez – nunca chorou a morte da esposa e do filho mais velho, não teve tempo para isso, e agora já havia es-quecido sua tristeza.

Francisco nunca se preocupou muito com o filho, por ve-zes lembrava do menino quando avistava qualquer guri pela rua, mas realmente o quis conhecer quando, num sonho, Solange pe-diu que cuidasse da criança. Naquela noite, Francisco acordou

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aparvalhado, estava mais suado do que de costume e tentou ne-gar a si mesmo a falta de amor que a falecida esposa lhe cobrara. Levantou cambaleante e caminhou ainda sonolento em zigue--zague até chegar à cozinha, abriu a janela dos fundos que dava para o quintal e vomitou sobre o riacho que se formava aos pés da casa durante o período das chuvas.

Súbito, toda a lembrança de sua tristeza o tomou, perdeu o equilíbrio e tombou para frente, caindo de costas na água. Francisco pôs-se em pé num instante, mas não conseguiu entrar em casa com a mesma facilidade. O vão de cinquenta centíme-tros que erguia a casa do chão atrapalhou sua escalada, pois os cepos sobre os quais a casa fora construída estavam lisos e co-bertos de limo.

Quinze minutos depois, Francisco entrava pela janela. Pulou no assoalho construído com a mesma madeira do restan-te da casa, troncos centenários de sapucaia. O piso envernizado estava gasto pelo tempo, e o brilho característico permanecia apenas nos cantos junto às paredes, onde a poeira ainda não completava a aparência fosca. O restante da casa ganhara uma cor nova, mas o amarelo não resplandecia mais sob o sol como na época em que Solange ganhava flores; as paredes agora esta-vam cinza.

Quando a alvorada surgiu naquela manhã, as estrelas já tinham cedido lugar às nuvens que, carregadas, ofuscavam o sol. Francisco continuava deitado, estirado com as pernas en-treabertas, olhando a chuva cair. Tentava relembrar cada deta-lhe do sonho, mas só o tinha em flashes; a única imagem clara resumia-se nas palavras de Solange – cuide de seu filho.

O eletricista só se moveu quando Tereza chegou. Trazia os pães como fazia todas a manhãs e os tinha junto ao rosto, longe da chuva.

A auxiliar de enfermagem estava toda molhada quan-do Francisco abriu a porta. Seu vestido azul-claro de algodão

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marcava-lhe o corpo, principalmente as coxas e o colo, onde o tecido úmido tornava-se quase transparente; ele nem percebeu como ela estava involuntariamente lasciva. Francisco a puxou de chofre, fazendo-a derrubar os pães e quebrar o guarda-chu-va. O rosto seviciado da enfermeira imediatamente mudou e do sorriso fez-se o pranto. Tereza ficou assustada, as lágrimas lhe desceram pelos vincos precoces sob os olhos e, de repente, ela não reconheceu mais seu amado, que tinha as sobrancelhas crispadas e gania repetidamente entre os dentes.

– Onde está meu filho?– Me solta! Me solta! – gritava.Francisco, como se despertasse, a soltou, deu dois passos

para trás, cobriu o rosto com as duas mãos e resmungou.– Me desculpe.Tereza não entendeu o seu interesse repentino pelo filho,

várias vezes ela tentou tocar no assunto sendo sempre reprimida de pronto. Ela se aproximou, afagou-lhe as costas na expectati-va de acalmá-lo e o beijou na face. Ele retribuiu o carinho a seu modo, acariciando o rosto úmido com o dorso de sua mão calosa.

Tereza empenhou-se ao máximo para descobrir o para-deiro de João, mas não encontrou nada até receber a primeira ameaça. O diretor do único hospital da cidade, ex-prefeito local e principal liderança política da região, ameaçou despedi-la se ela continuasse a fazer perguntas indiscretas, segundo a própria definição do médico. Destemida, continuou na busca; dessa vez escarafunchou a vida do diretor, levantou dúvidas até mesmo sobre a legitimidade do filho do ex-prefeito. Foi quando recebeu ameaças de morte, na mais convincente delas perdeu três dentes.

Depois disso Francisco resolveu ser incisivo, procurou o diretor do hospital, obteve as informações de que precisava e retribuiu-lhe todas as gentilezas dispensadas a Tereza.

O eletricista viajou poucos dias depois. Primeiro foi a Paraopebas, onde morava um de seus irmãos, e depois seguiu

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de trem até São Luís à procura do pai adotivo de seu filho, o deputado estadual Jorge D’Ávila.

O prédio onde morava o deputado se erguia majestoso a cem metros da beira-mar na praia da Marcela. O edifício cons-truído numa área invadida de restinga possuía um apartamen-to por andar; lá se aboletavam deputados e alguns vereadores, esposa de senadores e até um ministro de Estado. A rua de aces-so, pavimentada com paralelepípedos, terminava numa duna de modo que só aos moradores era permitido entrar.

Francisco ficou admirado com a beleza e imponência da construção, não tirava os olhos do prédio, principalmente do último andar, uma cobertura triplex decorada em vidro, onde as luzes internas davam um ar sobrenatural ao local.

Os guardas responsáveis pela segurança do edifício logo perceberam o espanto de Francisco e riram-se, soltaram pilhé-rias que o eletricista pôde ouvir; não entendeu tudo, apenas o suficiente para saber que ele era o alvo da chacota. Francisco então se lembrou do filho e do pedido de Solange; franziu o ce-nho e baixou sobrolho erguido, estugou o passo em direção aos guardas e os interpelou.

– O deputado Jorge D’Ávila mora aqui?Um dos seguranças abaixou a cabeça num sinal afirmativo.– Quero falar com ele.O guarda riu e, gesticulando, mandou o eletricista ir

embora.Francisco, que tinha o braço esquerdo mais liso de tanto

afiar o fio da faca, espezinhou-se, deu três passos em direção ao guarda que, percebendo o perigo, sacou a arma. O eletricista não se intimidou, mas não fez o que tinha em mente; em vez disso falou:

– Manda falar pro deputado que eu não saio daqui sem falar com ele.

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O segurança tartamudeou e interfonou da guarita pos- tada no meio da rua. Instantes depois, Francisco foi informado de que ele não seria recebido.

– Diz pra ele, pro deputado – corrigiu-se –, que eu sou o pai do filho dele.

Francisco foi atendido na recepção do prédio por um dos guarda-costas do deputado. Habituado a uma vida módica, as-sustou-se com o zunido do elevador ao subir até o último andar, a cobertura triplex.

O eletricista esqueceu-se momentaneamente do filho e, boquiaberto, voltou a admirar o lugar, ficando realmente en-cantado com a vista, especialmente com os inúmeros navios ancorados em alto-mar, esperando com suas luzes brilhantes descarregarem no porto de Itaqui.

Jorge D’Ávila só o recebeu uma hora depois, a sós, em seu escritório. O homem era enorme, mãos grandes, braços fortes e um abdômen pouco saliente. Sua expressão não era nada amigável.

– Quer beber alguma coisa? – indagou o deputado com a única intenção de iniciar a conversa.

Francisco meneou a cabeça em negativa.– Vamos direto ao assunto – continuou Jorge D’Ávila ao

mesmo tempo em que se levantou, projetando o corpanzil para frente e apoiando as mãos abertas sobre a mesa.

O eletricista nem se mexeu, sequer piscou. O deputa-do entendeu. Francisco era mesmo o pai do seu filho adotivo, Marcos. Possuíam os mesmos ausentes olhos verdes, tão pálidos que pareciam líquidos e tão severos e impassíveis como os olhos de um louco. Aqueles olhos representavam o extremo, por isso chamavam a atenção, não apenas pela sua beleza curiosa, mas principalmente pela ameaça velada e pela imprevisibilidade que representavam. Jorge D’Ávila soube naquele momento que seria

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impossível demover qualquer exigência que o pai biológico de seu filho fizesse.

– Quero um emprego – finalmente disse Francisco, in-diferente.

O eletricista passou a morar como caseiro na fazenda do deputado, situada depois do estreito dos mosquitos, já no con-tinente, logo após os Campos de Perizes. Francisco gostava do lugar, fazia as compras na cidade de Rosário, a poucos quilôme-tros de casa, e aos domingos sempre pescava no rio que cortava todas aquelas terras.

Uma vez por mês Francisco via o filho, o próprio deputa-do o levava à fazenda. Eles chegavam sexta à noite e iam embora pouco depois do almoço de domingo.

O tempo passou, Tereza também foi morar na fazenda, e João cresceu. Nesses anos, Marcos D’Ávila sempre aparecia na fazenda, continuava pescando com seu pai apesar de desconhe-cer sua verdadeira ascendência; também adorava a comida da esposa de Francisco, principalmente dos bolinhos de arroz que ela fazia com a sobra do almoço.

Foi a pedido de João que o casal foi morar na cidade, em São Luís, quando Jorge D’Ávila foi eleito governador do estado do Maranhão. A essa altura, o ex-deputado já confiava plena-mente no seu empregado, que era discreto, trabalhador e, até onde sabia, também era leal. A proximidade de Francisco e João aumentou nesses anos, já que o governador não dispunha de muito tempo, fato que Jorge D’Ávila tentava compensar no iní-cio, mas desistiu depois.

Os anos seguiram bem, Marcos adorava cursar medicina na Universidade Federal do Piauí, tinha uma boa relação com os pais e considerava Francisco e Tereza membros da família.

Dias depois da reeleição de Jorge D’Ávila, o eletricista e Marcos se refugiaram na fazenda. Carregaram o Land Rover

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com cerveja, vinho e salame. Ainda não era dez horas da manhã quando deixaram São Luís.

– Estou com saudades da fazenda – disse James enquanto olhava as ondas se quebrarem nas rochas à beira-mar.

Marcos manobrou o defender, pôs o cinto de segurança e fez menção em ligar o condicionador de ar, mas desistiu, prefe-riu sentir a brisa leve que soprava naquela manhã.

– Finalmente um pouco de paz – comentou João.Francisco, com os olhos fixos no mar, nem escutou; esta-

va um tanto saudosista, relembrando a época em que passava os dias nas águas do rio Tucuruí.

De súbito, James saltou da poltrona e perguntou.– Trouxe o xadrez?– Embaixo do seu banco.– Ótimo! – completou o ex-eletricista. – O Dr. Jorge deve-

ria passar uns dias na fazenda, ele iria gostar, tomar uma cerveja gelada, jogar uma partida de xadrez...

– Hug! – interrompeu Marcos. – Ele não tem tempo pra isso.

– É, eu sei – concordou o mordomo –, mas ele iria gostar, ficar um tempo livre, sem compromissos...

– Ele só tem tempo pra política – disse João irritado –, e depois o xadrez dele está mais enferrujado do que o meu.

– É, mas ele só precisa de algumas partidas para recupe-rar a forma... Sabe, o teu pai me disse que adoraria pescar uma hora dessas...

– Não vá na conversa do meu pai. Ele só te diz isso pra te agradar.

– Pode ser, mas eu acredito que ele realmente sente falta de uma vida mais tranquila, sem essa correria toda. Acho até que, se ele pudesse voltar atrás, ele nunca teria entrado na política.

Marcos deu uma gargalhada que deixou Francisco cons-trangido e os dois seguiram o restante da viagem em silêncio.

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– Deixa que eu abro o portão – disse Francisco já des-cendo do carro em meio à chuva que começava cair.

– Nesse clima, vinho e salame vão bem, hein, James?Francisco fez sinal de positivo enquanto segurava o por-

tão e o Land Rover cruzou o mata-burro.– Sabe duma coisa, Marcos?– O quê?– Vou te ganhar hoje.Francisco ficou novamente constrangido com a gargalha-

da que ouviu.Marcos estacionou na garagem lateral eternamente aber-

ta, principalmente quando o novo caseiro era informado sobre visitas.

– Você vai gostar desse salame; eu o comprei semana pas-sada quando estive em Porto Alegre, comprei numa cantina ita-liana. Também trouxe um garrafão de vinho, uma beleza, feito com uva de mesa... Isabel.

Depois do comentário, Francisco abaixou o portão da ga-ragem e retirou as malas.

– Sabe, Marcos, o colono lá no Rio Grande do Sul me disse que é preciso deixar o vinho trabalhar. Ele me falou que se deve abrir o garrafão, pôr o vinho numa jarra e deixar descan-sando por quinze minutos, aí sim ele fica bom.

Marcos não dizia nada e se justificava culpando sua voz demasiadamente grave, que tornava a fala de difícil compreen-são. Francisco não se importava, gostava da presença de João por mais silenciosa que fosse.

– Dez minutos, acho que o vinho já está bom, arruma o xadrez, Marcos.

Francisco apareceu na sala com duas taças de vinho numa das mãos e a jarra na outra, dizendo:

– Espera um pouco, vou buscar o salame! – e saiu cor-rendo.

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O sol ainda estava alto quando o garrafão de vinho termi-nou, as partidas de xadrez já seguiam movimentos aleatórios e o sabor do salame já era uma lembrança vaga.

– Acho que vou dormir – falou Marcos enquanto se es-preguiçava.

– Não, não, eu trouxe dois garrafões – respondeu James estampando um sorriso malicioso como se reservasse a surpre-sa para o final; e reservava...

– Sendo assim... – completou João dando de ombros.Francisco, num pulo, já estava em pé e saiu correndo, mas

não sem antes tropeçar nas suas próprias pernas e cair de peito aberto com os braços estirados no piso de taco da sala.

João, embalado pelo álcool, não perdeu a oportunidade de sorrir.

– Pimenta nos olhos dos outros é refresco! – resmungou Francisco.

– O quê?– Pimenta nos... – o ex-eletricista não conseguiu terminar

a frase, sua voz fraca falhou. João de Santo Cristo desatou a rir.Francisco se apoiou no sofá e levantou sem dificuldades;

o excesso de álcool que afetara suas cordas vocais ainda não ha-via comprometido toda a sua coordenação motora.

– Me respeite, guri! – disse quase escandindo cada palavra.Marcos ria cada vez mais.– Me respeite! – repetiu nervoso; a voz além de fraca,

dessa vez confundiu-se com um miado.Qualquer comentário ou pergunta relacionada ao pro-

blema vocal de Francisco o deixava nervoso; ele sempre dizia que o incidente trazia más lembranças. João sabia como atiçar o brio de Francisco, tinha certo prazer em espezinhar James e vê-lo perder a calma. O ex-eletricista sempre se irritava e saía,

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mas nunca guardava mágoas. Naquele dia, descontrolado pelo excesso de álcool, Francisco perdeu o equilíbrio emocional, se aproximou de João, o segurou pela camisa e gritou:

– Respeite seu pai, moleque! As gargalhadas cessaram instantaneamente, os olhos se-

micerrados de João se abriram numa clara expressão de espanto e seu semblante alegre se apagou. Francisco nem tentou desfa-zer o ato falho, não havia como voltar atrás; João era inteligente o suficiente para não ser persuadido. Havia semelhança demais entre os dois, Marcos sabia que era filho adotivo, mas nun-ca ligara os fatos. Francisco nem tentou contornar a situação. Marcos nunca mais voltou a ser o mesmo, o convívio com o pai adotivo e biológico passou a ser meramente formal, sem ne-nhum envolvimento afetivo. Entre os amigos do cantinho uni-versitário pediu para ser chamado de João, como era fã da banda Legião Urbana, recebeu a alcunha de João de Santo Cristo.

s t s t s

A lua já estava imponente quando Santo Cristo chegou à ma-ternidade. Apesar de ainda não ser sete horas da noite, re-

tirou do encosto do Clio branco, que tinha o carinhoso apelido de “Cascão” pela discreta cor bege, o avental que sempre deixa-va pendurado e o dobrou sob o braço esquerdo numa tentativa frustrada de encobrir sua condição de estudante do último ano de Medicina. Cruzou cabisbaixo a entrada principal para não chamar a atenção, pois sabia, apesar da pouca experiência, que o médico de plantão já deveria ter saído do hospital há horas, e a admissão, como era chamada a emergência, deveria estar apinhada de grávidas em trabalho de parto, ou em ameaça de aborto, ou com qualquer sintoma que não fosse normal, que, para as mulheres, era qualquer coisa.

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– Doutor! Doutor! – foi o coro em uníssono. Sem alterna-tivas, Marcos parou, girou e se dirigiu à recepção.

– Boa noite! – disse o futuro médico.– O senhor pode me ajudar?– O que foi? – perguntou secamente.– O plantonista da noite ainda não chegou e uma das pa-

cientes está com falta de ar. Santo Cristo perscrutou a sala e não pôde identificar a

paciente e, com indiscreta irritação, indagou:– Onde ela está?A recepcionista ergueu-se da cadeira o suficiente para

perceber que a jovem mãe já não estava mais lá.– Desculpe-me doutor, ela deve ter saído...João não disse nenhuma palavra, virou-se e saiu a passos

lentos para o repouso médico até ser abordado novamente por uma mulher pálida envolta numa toalha até a cintura.

– Pode me ajudar?– Não! – grunhiu Marcos.Daniela quase soltou a toalha, e as lágrimas que jaziam

perigosamente próximas à superfície brotaram discretas com o soluço seco que só Santo Cristo notou, baixou a cabeça expres-sando toda a insignificância que acreditava ter e voltou a sentar na sua cadeira de plástico branco que a perda de sangue marcara.

Com o avental ainda debaixo do braço, Marcos rumou ao segundo quarto à direita, já que o primeiro pertencia às es-tudantes-plantonistas, que, como o dos homens, sempre estava apinhado de gente, pois, como se sabe, plantões são excelentes soníferos. Os quartos sempre estavam escuros e qualquer des-cuidado fatalmente se chocaria com uma das três beliches, que também serviam de cabides, naquele lugar em que o mofo se misturava ao odor de líquidos-amnióticos e tampões-mucosos.

João tateou o colchão superior do último beliche em busca de livros, passou a mão por baixo do travesseiro e não encontrou

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nada. Então, com cuidado, pôs os seus para que outro não re-servasse aquela cama e, com habilidade impressionante ante a escuridão, retirou o lençol da cama de baixo já devidamente marcado. João de Santo Cristo deixou o repouso médico com pensamento fixo, andou lentamente pelo hospital, pelos corre-dores de piso emborrachado e paredes de metal que lembravam contêineres empilhados, não muito adequados ao calor tropi-cal de uma cidade localizada entre dois rios que margeiam o equador. A maternidade-escola que levava o nome da mãe de um governador não passava de um amontoado de ferro-velho doado pelo governo inglês há 40 anos como medida temporária até a construção definitiva do hospital, o que nunca aconteceu.

Marcos subiu a rampa que dava acesso ao centro cirúrgi-co superior, vulgarmente chamado de COS, e quase em súplica a Deus pediu um plantão calmo... Pedido negado. As camas estavam todas lotadas e a sua estratégia não havia funcionado, pois reservara sua cama no repouso dos estudantes do terceiro ano na esperança que o residente fizesse os poucos partos e o esquecesse.

– Onde esteve? São sete e meia da noite, doutorando deve chegar no horário.

João se fez de rogado e nem sequer olhou para o residente, que disfarçava a presunção em raiva. Coçou os olhos, respirou fundo e perscrutou os quartos com olhar clínico, olhou de uma a uma as doze mulheres distribuídas nas quatro salas, tocando cada uma delas, o que mais especificamente significava avaliar a dilatação do colo do útero com um toque vaginal bidigital. O ato era mecânico, calçava uma luva cheia de talco na mão direita e, sem pudores, introduzia o dedo médio e o indicador na vagi-na da paciente, algo que para os mais inexperientes fornecia as mesmas informações de um pote de manteiga: nenhuma.

Santo Cristo examinou as mulheres em quinze minutos e agradeceu por todas terem menos de 10 cm de dilatação; poderia,

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então, tirar um breve cochilo antes dos partos e esperaria o pri-meiro grito para despertar.

O plantão começou de fato pouco depois da meia-noite, e, como numa fábrica, a criançada começou a nascer em série. Os futuros médicos se revezavam e eventualmente se ajudavam no auxílio aos partos por via normal nas duas salas dispostas no final do corredor.

Os bebês chegavam ao mundo numa mistura de choro e gritos que nem sempre vinham de suas mães, que choravam também para auxiliar o coro. Choravam embalados pela sin-fonia ritmada de gemidos, pedidos de perdão e súplicas que o trabalho de parto sem auxílio anestésico impelia, além daquelas que gritavam pelo simples prazer. Marcos e seus colegas de tur-ma passaram a noite labutando, cortando, limpando, suturando e, por vezes, xingando os médicos plantonistas que deveriam estar em seu auxílio e nem no hospital estavam, mas que dei-xavam como preceptor substituto o residente do primeiro ano de ginecologia e obstetrícia, cuja única diferença dos estudantes era a arrogância.

A noite passou rápida, nenhum parto teve qualquer inter-corrência e, agora, só uma futura mãe aguardava o filho que ainda estava nos braços de Deus, esperando o nascimento chegar. João terminou a episiorrafia e espreguiçou-se deliciosamente, tirou as luvas e o avental e, antes de sair da sala, identificou seu nome numa voz insuportável, mesmo que fosse bela. Fechou os olhos e imaginou impropérios a quem tivesse capacidade de percebê-los até o residente chegar.

–Você não pode dormir agora!– Por quê? – indagou Marcos apesar de saber a resposta.– Porque ainda há uma paciente.Santo Cristo controlou-se ao máximo e em vão argu-

mentou:

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– Mas o acordo não era que você assumisse depois das quatro horas?

– Não reclame, Marcos, você é estudante e deveria estar me agradecendo por deixá-lo fazer partos e aprender...

João cerrou o punho e conteve seu instinto. Ficou quieto e arrastou a cadeira mais barulhenta que nos poucos segundos de raiva pudera encontrar, arrastou-a até o quarto da última partu-riente, imaginando como se vingaria do idiota do residente, até uma pequena surpresa minguar sua autocomiseração. Marcos soltou a cadeira e por poucos segundos ficou imóvel tanto quan-to a paciente que o encarava com as lágrimas cheias de súplica.

– Pode me ajudar? – perguntou num sussurro perfeita-mente audível.

– Claro! – respondeu o estudante, após curto silêncio.– Estou com medo, acho que não vou aguentar...João continuava na defensiva e a consciência trouxe con-

sigo a vergonha. Ficou imaginando se a futura mãe, que ele se negara a ajudar quando chegou ao hospital, relevara o aconte- cido ou simplesmente não o reconhecera.

Daniela era como se chamava a bela moça de olhar deses-perançado de quem perdera o desafio com a vida. Falava num resfôlego rápido pelo hábito que adquirira no momento das contrações e continuava a respirar assim numa tentativa frus-trada de diminuir a dor que vinha a espaços cada vez mais cur-tos. João de Santo Cristo, que só era conhecido assim pelos seus amigos do Cantinho da Noite, de ideias funestas e de futuros descaminhos, aproximou-se do leito perguntando com a mais meiga das vozes que a noite em claro lhe permitia.

– Primeira gravidez?– Segunda – a resposta veio depois que o prontuário já

lhe entregara o passado. Marcos indagou sem necessariamente esperar resposta.

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– O que houve?– É uma história longa – respondeu entre discretos sus-

piros.João, sem floreios, calçou uma luva na mão direita e com

um breve e simpático sorriso sussurrou.– Vamos ver como está a dilatação – descreveu em voz

alta cada parte do exame do instante que este ocorria até a ava-liação do colo uterino, que o desanimou, dizendo por fim:

– Sete cm; faltam três horas para o parto.Como não havia reservado cama no COS, João decidiu

não descer e não dormir no andar inferior. Arrastou novamente a cadeira, dessa vez tentando não fazer barulho; sentou-se ao lado de Daniela, folheou a ficha da paciente e, mais interessado, perguntou:

– Então, qual foi a causa do aborto?Com os olhos hiperemiados e levemente marejados, a fu-

tura mãe apenas sorriu.– Vamos lá – encorajou-a João.– Pode me contar, só quero te ajudar – continuou.– Discuti com meu marido.– Vocês discutiram, você ficou nervosa e abortou?– Não exatamente.– O que significa não exatamente? – indagou curioso.Daniela deu outro de seus consternados sorrisos e

completou:– Nós brigamos.– E?– Ele me bateu.Marcos não se comoveu e sem emoções exclamou:– Surras são mais abortivas que discussões.– Foi uma surra grande mesmo – completou Daniela sem

demonstrar mágoa, ao mesmo tempo em que contraía todos os

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músculos, inclusive o útero, ao esperar o trovão após o relâm-pago explodir num prenúncio de fim de mundo e encobrir os passos furtivos do residente cuja alma, para Santo Cristo, logo estaria no inferno, ou na pior das hipóteses, no limbo.

– Não foi dormir ainda? – e continuou: – Vamos ver a dilatação.

– Acabei de examinar, está com sete centímetros.Erisvaldo esboçou descrença num irônico arquear de lá-

bios e introduziu os dedos com delicadeza comparável à sua sim-plicidade até Daniela gemer de dor, concluindo decepcionado:

– Sete centímetros, acertou dessa vez, hein, Marcos.– Esta e todas as outras – grunhiu Santo Cristo entre den-

tes cerrados.– Mas parece que você ainda não sabe conduzir um tra-

balho de parto, deveria ter rompido a bolsa.Marcos, devidamente orientado, rompeu a bolsa amnióti-

ca pronunciada no colo uterino fazendo jorrar o líquido amnió-tico que envolvia o bebê. Retirou a luva e sentou-se na cama ao lado, fitou Daniela e indagou sobre seu aborto numa tentativa de desviar-lhe a atenção da dor que se intensificaria.

Os trovões vinham anunciados pela luz dos relâmpagos a intervalos tão regulares quanto às contrações que anunciavam a hora de dar à luz. Daniela com a mesma regularidade perdia a concentração e parava de falar, levantava a cabeça, tentava olhar entre as pernas e depois gritava sem forças até a dor cessar. Mas, apesar das interrupções e do cansaço, Daniela da Silva descre-veu cada detalhe da discussão que terminara em aborto sem qualquer constrangimento, falava como se recitasse um texto sem entendê-lo, dando ênfase aos momentos de pouca impor-tância apesar de não suprimir os mais relevantes. Contou como tudo aconteceu.

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Marcos deixou a maternidade no início da manhã, após o desjejum. Seguiu relembrando cada detalhe do sofrimen-

to daquela mulher que não tinha com quem contar. Não se im-portava com a sua dor física, com a fratura de sua mandíbula ou com as escoriações e os cabelos arrancados após ser arrastada escada acima; não se importava com os dentes perdidos, nem com o feto abortado. João sabia que a dor física não o comovia, mas chorou pela tristeza de Daniela como se o sofrimento fosse dele. João chegou à emergência do Hospital Getúlio Vargas para seu próximo plantão pouco depois das sete horas da manhã. O sol já estava alto apesar da cidade ainda parecer dormir; en-trou pela porta lateral da emergência, que mantinha os curiosos longe, chegando até a recepção onde ficavam os acompanhan-tes. Ali todos ficavam em pé, a exceção cabia àqueles que dis-putavam vaga num banco de cimento queimado no canto mais úmido daquela antessala do inferno, isolados, sem notícias dos verdadeiros infaustos que frequentemente comungavam com Deus ou com o Diabo.

Marcos cruzou o portão de alumínio se desviando do pequeno tumulto que se formava, prometendo a praticamente todos os parentes que voltaria da emergência com informações, mas não voltou. Foi o último plantão do seu curso médico.

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