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Oswald de Andrade Canto de regresso à pátria Minha terra tem palmares Onde gorjeia o mar Os passarinhos daqui Não cantam como os de lá Minha terra tem mais rosas E quase que mais amores Minha terra tem mais ouro Minha terra tem mais terra Ouro terra amor e rosas Eu quero tudo de lá Não permita Deus que eu morra Sem que volte para lá Não permita Deus que eu morra Sem que volte pra São Paulo Sem que veja a Rua 15 E o progresso de São Paulo. (in Poesias Reunidas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971.) A descoberta Seguimos nosso caminho por este mar de longo Até a oitava da Páscoa Topamos aves E houvemos vista de terra os selvagens Mostraram-lhes uma galinha Quase haviam medo dela E não queriam por a mão E depois a tomaram como espantados primeiro chá Depois de dançarem Diogo Dias Fez o salto real as meninas da gare Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis Com cabelos mui pretos pelas espáduas E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas Que de nós as muito bem olharmos Não tínhamos nenhuma vergonha. (in Poesias Reunidas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971.) Balada do Esplanada Ontem à noite Eu procurei Ver se aprendia Como é que se fazia Uma balada Antes de ir Pro meu hotel. É que este

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Oswald de Andrade

Canto de regresso à pátria

Minha terra tem palmaresOnde gorjeia o marOs passarinhos daquiNão cantam como os de láMinha terra tem mais rosasE quase que mais amoresMinha terra tem mais ouroMinha terra tem mais terraOuro terra amor e rosasEu quero tudo de láNão permita Deus que eu morraSem que volte para láNão permita Deus que eu morraSem que volte pra São PauloSem que veja a Rua 15E o progresso de São Paulo.

(in Poesias Reunidas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971.)

A descoberta

Seguimos nosso caminho por este mar de longoAté a oitava da PáscoaTopamos avesE houvemos vista de terraos selvagensMostraram-lhes uma galinhaQuase haviam medo delaE não queriam por a mãoE depois a tomaram como espantadosprimeiro cháDepois de dançaremDiogo DiasFez o salto realas meninas da gareEram três ou quatro moças bem moças e bem gentisCom cabelos mui pretos pelas espáduasE suas vergonhas tão altas e tão saradinhasQue de nós as muito bem olharmosNão tínhamos nenhuma vergonha.

(in Poesias Reunidas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971.)

Balada do Esplanada

Ontem à noiteEu procureiVer se aprendiaComo é que se faziaUma baladaAntes de irPro meu hotel.É que este

CoraçãoJá se cansouDe viver sóE quer entãoMorar contigoNo Esplanada.

Eu queriaPoderEncherEste papelDe versos lindosÉ tão distintoSer menestrelNo futuroAs geraçõesQue passariamDiriamÉ o hotelÉ o hotelDo menestrel

Pra me inspirarAbro a janelaComo um jornalVou fazerA baladaDo EsplanadaE ficar sendoO menestrelDe meu hotel

Mas não há, poesiaNum hotelMesmo sendo'SplanadaOu Grand-Hotel

Há poesiaNa dorNa florNo beija-florNo elevador

Oferta

Quem sabeSe algum diaTrariaO elevadorAté aquiO teu amor

Pronominais

Dê-me um cigarroDiz a gramáticaDo professor e do alunoE do mulato sabido

Mas o bom negro e o bom brancoDa Nação BrasileiraDizem todos os diasDeixa disso camaradaMe dá um cigarro

Vício na fala

Para dizerem milho dizem mioPara melhor dizem mióPara pior pióPara telha dizem teiaPara telhado dizem teiadoE vão fazendo telhados

O gramático

Os negros discutiamQue o cavalo sipantouMas o que mais sabiaDisse que eraSipantarrou.

Erro de português

Quando o português chegouDebaixo de uma bruta chuvaVestiu o índioQue pena! Fosse uma manhã de solO índio tinha despidoO português.

Mário de Andrade

Ode ao burguês

Eu insulto o burguês! O burguês-níquelo burguês-burguês!A digestão bem-feita de São Paulo!O homem-curva! O homem-nádegas!O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros!Que vivem dentro de muros sem pulos,e gemem sangue de alguns mil-réis fracospara dizerem que as filhas da senhora falam o francêse tocam os "Printemps" com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!Fora os que algarismam os amanhãs!Olha a vida dos nossos setembros!Fará Sol? Choverá? Arlequinal!Mas à chuva dos rosaiso êxtase fará sempre Sol!

Morte à gordura!Morte às adiposidades cerebrais!Morte ao burguês-mensal!Ao burguês-cinema! Ao burguês-tiburi!Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano!"— Ai, filha, que te darei pelos teus anos?— Um colar... — Conto e quinhentos!!!Más nós morremos de fome!"

Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!Oh! purée de batatas morais!Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!Ódio aos temperamentos regulares!Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!Ódio à soma! Ódio aos secos e molhadosÓdio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,sempiternamente as mesmices convencionais!De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!Dois a dois! Primeira posição! Marcha!Todos para a Central do meu rancor inebriante!

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!Morte ao burguês de giolhos,cheirando religião e que não crê em Deus!Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burguês!...

Lundu do escritor difícil

Eu sou um escritor difícilQue a muita gente enquizila,

Porém essa culpa é fácilDe se acabar duma vez:É só tirar a cortinaQue entra luz nesta escurez.

Cortina de brim caipora,Com teia caranguejeiraE enfeite ruim de caipira,Fale fala brasileiraQue você enxerga bonitoTanta luz nesta capoeiraTal-e-qual numa gupiara.

Misturo tudo num saco,Mas gaúcho maranhenseQue pára no Mato Grosso,Bate este angu de caroçoVer sopa de caruru;A vida é mesmo um buraco, Bobo é quem não é tatu!

Eu sou um escritor difícil, Porém culpa de quem é!...Todo difícil é fácil, Abasta a gente saber.Bajé, pixé, chué, ôh "xavié"De tão fácil virou fóssil, O difícil é aprender!

Virtude de urubutingaDe enxergar tudo de longe!Não carece vestir tangaPra penetrar meu caçanje!Você sabe o francês "singe"Mas não sabe o que é guariba?— Pois é macaco, seu mano, Que só sabe o que é da estranja.

Descobrimento

Abancado à escrivaninha em São PauloNa minha casa da rua Lopes ChavesDe supetão senti um friúme por dentro.Fiquei trêmulo, muito comovidoCom o livro palerma olhando pra mim.

Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus! muito longe de mimNa escuridão ativa da noite que caiuUm homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu.

Moça linda bem tratada

Moça linda bem tratada,

Três séculos de família,Burra como uma porta:Um amor.

Grã-fino do despudor,Esporte, ignorância e sexo, Burro como uma porta:Um coió.

Mulher gordaça, filó, De ouro por todos os porosBurra como uma porta:Paciência...

Plutocrata sem consciência, Nada porta, terremotoQue a porta de pobre arromba:Uma bomba.

A meditação sobre o Tietê

Água do meu Tietê, Onde me queres levar?- Rio que entras pela terraE que me afastas do mar...É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirávelDa Ponte das Bandeiras o rioMurmura num banzeiro de água pesada e oliosa.É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras,Soturnas sombras, enchem de noite de tão vastaO peito do rio, que é como si a noite fosse água,Água noturna, noite líquida, afogando de apreensõesAs altas torres do meu coração exausto. De repenteO ólio das águas recolhe em cheio luzes trêmulas,É um susto. E num momento o rioEsplende em luzes inumeráveis, lares, palácios e ruas,Ruas, ruas, por onde os dinossauros caxingamAgora, arranha-céus valentes donde saltamOs bichos blau e os punidores gatos verdes,Em cânticos, em prazeres, em trabalhos e fábricas,Luzes e glória. É a cidade... É a emaranhada formaHumana corrupta da vida que muge e se aplaude.E se aclama e se falsifica e se esconde. E deslumbra.Mas é um momento só. Logo o rio escurece de novo,Está negro. As águas oliosas e pesadas se aplacamNum gemido. Flor. Tristeza que timbra um caminho de morte.É noite. E tudo é noite. E o meu coração devastadoÉ um rumor de germes insalubres pela noite insone e humana.Meu rio, meu Tietê, onde me levas?Sarcástico rio que contradizes o curso das águasE te afastas do mar e te adentras na terra dos homens,Onde me queres levar?...Por que me proíbes assim praias e mar, por queMe impedes a fama das tempestades do AtlânticoE os lindos versos que falam em partir e nunca mais voltar?Rio que fazes terra, húmus da terra, bicho da terra,Me induzindo com a tua insistência turrona paulistaPara as tempestades humanas da vida, rio, meu rio!...

Já nada me amarga mais a recusa da vitória

Do indivíduo, e de me sentir feliz em mim.Eu mesmo desisti dessa felicidade deslumbrante,E fui por tuas águas levado,A me reconciliar com a dor humana pertinaz,E a me purificar no barro dos sofrimentos dos homens.Eu que decido. E eu mesmo me reconstituí árduo na dorPor minhas mãos, por minhas desvividas mãos, porEstas minhas próprias mãos que me traem,Me desgastaram e me dispersaram por todos os descaminhos,Fazendo de mim uma trama onde a aranha insaciadaSe perdeu em cisco e polem, cadáveres e verdades e ilusões.

Mas porém, rio, meu rio, de cujas águas eu nasci,Eu nem tenho direito mais de ser melancólico e frágil,Nem de me estrelar nas volúpias inúteis da lágrima!Eu me reverto às tuas águas espessas de infâmias,Oliosas, eu, voluntariamente, sofregamente, sujadoDe infâmias, egoísmos e traições. E as minhas vozes,Perdidas do seu tenor, rosnam pesadas e oliosas,Varando terra adentro no espanto dos mil futuros,À espera angustiada do ponto. Não do meu ponto final!Eu desisiti! Mas do ponto entre as águas e a noite,Daquele ponto leal à terrestre pergunta do homem,De que o homem há de nascer.

Eu vejo; não é por mim, o meu verso tomandoAs cordas oscilantes da serpente, rio.Toda a graça, todo o prazer da vida se acabou.Nas tuas águas eu contemplo o Boi Paciência Se afogando, que o peito das águas tudo soverteu.Contágios, tradições, brancuras e notícias,Mudo, esquivo, dentro da noite, o peito das águas,fechado, mudo,Mudo e vivo, no despeito estrídulo que me fustiga e devora.Destino, predestinações... meu destino. Estas águasDo meu Tietê são abjetas e barrentas,Dão febre, dão morte decerto, e dão garças e antíteses.Nem as ondas das suas praias cantam, e no fundoDas manhãs elas dão gargalhadas frenéticas,Silvos de tocaias e lamurientos jacarés.Isto não são águas que se beba, conhecido, isto sãoÁguas do vício da terra. Os jabirus e os socósGargalham depois morrem. E as antas e os bandeirantes e os ingás,Depois morrem. Sobra não. Nem siquer o Boi PaciênciaSe muda não. Vai tudo ficar na mesma, mas vai!... e os corposPodres envenenam estas águas completas no bem e no mal.Isto não são águas que se beba, conhecido! Estas águasSão malditas e dão morte, eu descobri! e é por issoQue elas se afastam dos oceanos e induzem à terra dos homens,Paspalhonas. Isto não são água que se beba, eu descobri!E o meu peito das águas se esborrifa, ventarrão vem, se encapelaEngruvinhado de dor que não se suporta mais.Me sinto o pai Tietê! ôh força dos meus sovacos!Cio de amor que me impede, que destrói e fecunda!Nordeste de impaciente amor sem metáforas,Que se horroriza e enraivece de sentir-seDemagogicamente tão sozinho! Ô força!Incêndio de amor estrondante, enchente magnânima que me inunda,Me alarma e me destroça, inerme por sentir-meDemagogicamente tão só!

A culpa é tua, Pai Tietê? A culpa é tuaSi as tuas águas estão podres de felE majestade falsa? A culpa é tuaOnde estão os amigos? Onde estão os inimigos?Onde estão os pardais? e os teus estudiosos e sábios, eOs iletrados?Onde o teu povo? e as mulheres! dona Hircenuhdis Quiroga!E os Prados e os crespos e os pratos e os barbas e os gatos e os línguasDo Instituto Histórico e Geográfico, e os museus e a Cúria, e os senhores chantres reverendíssimos,Celso niil estate varíolas gide memoriam,Calípedes flogísticos e a Confraria Brasiliense e ClimaE os jornalistas e os trustkistas e a Light e asNovas ruas abertas e a falta de habitações eOs mercados?... E a tiradeira divina de Cristo!...Tu és Demagogia. A própria vida abstrata tem vergonhaDe ti em tua ambição fumarenta.És demagogia em teu coração insubmisso.És demagogia em teu desequilíbrio anticépticoE antiuniversitário.És demagogia. Pura demagogia.Demagogia pura. Mesmo alimpada de metáforas.Mesmo irrespirável de furor na fala reles:Demagogia.Tu és enquanto tudo é eternidade e malvasia:Demagogia.Tu és em meio à (crase) gente pia:Demagogia.És tu jocoso enquanto o ato gratuito se esvazia:Demagogia.És demagogia, ninguém chegue perto!Nem Alberto, nem Adalberto nem DagobertoEsperto Ciumento Peripatético e CeciE Tancredo e Afrodísio e também ArmidaE o próprio Pedro e também Alcibíades,Ninguém te chegue perto, porque tenhamos o pudor, O pudor do pudor, sejamos verticais e sutis, bemSutis!... E as tuas mãos se emaranham lerdas,E o Pai Tietê se vai num suspiro educado e sereno,Porque és demagogia e tudo é demagogia.Olha os peixes, demagogo incivil! Repete os carcomidos peixes!São eles que empurram as águas e as fazem servir de alimentoÀs areias gordas da margem. Olha o peixe dourado sonoro,Esse é um presidente, mantém faixa de crachá no peito,Acirculado de tubarões que escondendo na fuça rotundaO perrepismo dos dentes, se revezam na rota soleneLanguidamente presidenciais. Ei-vem o tubarão-marteloE o lambari-spitfire. Ei-vem o boto-ministro.Ei-vem o peixe-boi com as mil mamicas imprudentes, Perturbado pelos golfinhos saltitantes e as tabaranasEm zás-trás dos guapos Pêdêcê e Guaporés.Eis o peixe-baleia entre os peixes muçuns lineares,E os bagres do lodo oliva e bilhões de peixins japoneses;Mas és asnático o peixe-baleia e vai logo encalhar na margem,Pois quis engolir a própria margem, confundido pela facheada,Peixes aos mil e mil, como se diz, brincabrincandoDe dirigir a corrente com ares de salva-vidas.E lá vem por debaixo e por de-banda os interrogativos peixesInternacionais, uns rubicundos sustentados de mosca,E os espadartes a trote chique, esses são espadartes! e as duas

Semanas Santas se insultam e odeiam, na lufa-lufa de ganharNo bicho o corpo do crucificado. Mas as águas,As águas choram baixas num murmúrio lívido, e se difundemTecidas de peixe e abandono, na mais incompetente solidão.Vamos, Demagogia! eia! sus! aceita o ventre e investe!Berra de amor humano impenitente,Cega, sem lágrimas, ignara, colérica, investe!Um dia hás de ter razão contra a ciência e a realidade,E contra os fariseus e as lontras luzidias.E contra os guarás e os elogiados. E contra todos os peixes.E também os mariscos, as ostras e os trairões fartos de equilíbrio ePundhonor.Pum d'honor.Qué-de as Juvenilidades Auriverdes!Eu tenho medo... Meu coração está pequeno, é tantaEssa demagogia, é tamanha,Que eu tenho medo de abraçar os inimigos,Em busca apenas dum sabor,Em busca dum olhar,Um sabor, um olhar, uma certeza...É noite... Rio! meu rio! meu Tietê!É noite muito!... As formas... Eu busco em vão as formasQue me ancorem num porto seguro na terra dos homens.É noite e tudo é noite. O rio tristementeMurmura num banzeiro de água pesada e oliosa.Água noturna, noite líquida... Augúrios mornos afogamAs altas torres do meu exausto coração.Me sinto esvair no apagado murmulho das águasMeu pensamento quer pensar, flor, meu peitoQuereria sofrer, talvez (sem metáforas) uma dor irritada...Mas tudo se desfaz num choro de agoniaPlácida. Não tem formas nessa noite, e o rioRecolhe mais esta luz, vibra, reflete, se aclara, refulge,E me larga desarmado nos transes da enorme cidade.

Si todos esses dinossauros imponentes de luxo e diamante,Vorazes de genealogia e de arcanos,Quisessem reconquistar o passado...Eu me vejo sozinho, arrastando sem músculoA cauda do pavão e mil olhos de séculos, Sobretudo os vinte séculos de anticristianismoDa por todos chamada Civilização Cristã...

Olhos que me intrigam, olhos que me denunciam,Da cauda do pavão, tão pesada e ilusória.Não posso continuar mais, não tenho, porque os homensNão querem me ajudar no meu caminho.Então a cauda se abriria orgulhosa e reflorescenteDe luzes inimagináveis e certezas...Eu não seria tão-somente o peso deste meu desconsolo,A lepra do meu castigo queimando nesta epidermeQue encurta, me encerra e me inutiliza na noite,Me revertendo minúsculo à advertência do meu rio.Escuto o rio. Assunto estes balouços em que o rioMurmura num banzeiro. E contemploComo apenas se movimenta escravizada a torrente,E rola a multidão. Cada onda que abrolhaE se mistura no rolar fatigado é uma dor. E o surtoMirim dum crime impune.Vêm de trás o estirão. É tão soluçante e tão longo,E lá na curva do rio vêm outros estirões e mais outros,

E lá na frente são outros, todos soluçantes e presosPor curvas que serão sempre apenas as curvas do rio.Há de todos os assombros, de todas as purezas e martíriosNesse rolo torvo das águas. Meu Deus! meuRio! como é possível a torpeza da enchente dos homens!Quem pode compreender o escravo machoE multimilenar que escorre e sofre, e mandado escorreEntre injustiça e impiedade, estreitadoNas margens e nas areias das praias sequiosas?Elas bebem e bebem. Não se fartam, deixando com desesperoQue o rosto do galé aquoso ultrapasse esse dia,Pra ser represado e bebido pelas outras areiasDas praias adiante, que também dominam, aprisionam e mandamA trágica sina do rolo das águas, e dirigemO leito impassível da injustiça e da impiedade.Ondas, a multidão, o rebanho, o rio, meu rio, um rioQue sobe! Fervilha e sobe! E se adentra fatalizado, e em vezDe ir se alastrar arejado nas liberdades oceânicas,Em vez se adentra pela terra escura e ávida dos homens,Dando sangue e vida a beber. E a massa líquidaDa multidão onde tudo se esmigalha e se iguala,Rola pesada e oliosa, e rola num rumor surdo,E rola mansa, amansada imensa eterna, masNo eterno imenso rígido canal da estulta dor.

Porque os homens não me escutam! Por que os governadoresNão me escutam? Por que não me escutamOs plutocratas e todos os que são chefes e são fezes?Todos os donos da vida? Eu lhes daria o impossível e lhes daria o segredo,Eu lhes dava tudo aquilo que fica pra cá do gritoMetálico dos números, e tudoO que está além da insinuação cruenta da posse.E si acaso eles protestassem, que não! que não desejamA borboleta translúcida da humana vida, porque preferemO retrato a ólio das inaugurações espontâneas,Com béstias de operário e do oficial, imediatamente inferior.E palminhas, e mais os sorrisos das máscaras e a profunda comoção,Pois não! Melhor que isso eu lhes dava uma felicidade deslumbranteDe que eu consegui me despojar porque tudo sacrifiquei.Sejamos generosíssimos. E enquanto os chefes e as fezesDe mamadeira ficassem na creche de laca e lacinhos,Ingênuos brincando de felicidade deslumbrante:Nós nos iríamos de camisa aberta ao peito,Descendo verdadeiros ao léu da corrente do rio,Entrando na terra dos homens ao coro das quatro estações.

Pois que mais uma vez eu me aniquilo sem reserva,E me estilhaço nas fagulhas eternamente esquecidas,E me salvo no eternamente esquecido fogo de amor...Eu estalo de amor e sou só amor arrebatadoAo fogo irrefletido do amor....eu já amei sozinho comigo; eu já cultivei tambémO amor do amor, Maria!E a carne plena da amante, e o susto várioDa amiga, e a inconfidência do amigo... Eu já ameiContigo, Irmão Pequeno, no exílio da preguiça elevada, escolhidoPelas águas do túrbido rio do Amazonas, meu outro sinal.E também, ôh também! na mais impávida glóriaDescobridora da minha inconstância e aventura,Desque me fiz poeta e fui trezentos, eu amei

Todos os homens, odiei a guerra, salvei a paz!E eu não sabia! eu bailo de ignorâncias inventivas,E a minha sabedoria vem das fontes que eu não sei!Quem move meu braço? quem beija por minha boca?Quem sofre e se gasta pelo meu renascido coração?Quem? sinão o incêndio nascituro do amor?...Eu me sinto grimpado no arco da Ponte das Bandeiras,Bardo mestiço, e o meu verso vence a cordaDa caninana sagrada, e afina com os ventos dos ares, e enrouqueceÚmido nas espumas da água do meu rio,E se espatifa nas dedilhações brutas do incorpóreo Amor.Por que os donos da vida não me escutam?Eu só sei que eu não sei por mim! sabem por mim as fontesDa água, e eu bailo de ignorâncias inventivas.

Meu baile é solto como a dor que range, meuBaile é tão vário que possui mil sambas insonhados!Eu converteria o humano crime num baile mais densoQue estas ondas negras de água pesada e oliosa,Porque os meus gestos e os meus ritmos nascemDo incêndio puro do amor... Repetição. Primeira voz sabida, o Verbo.Primeiro troco. Primeiro dinheiro vendido. Repetição logo ignorada.Como é possível que o amor se mostre impotente assimAnte o ouro pelo qual o sacrificam os homens, Trocando a primavera que brinca na face das terrasPelo outro tesouro que dorme no fundo baboso do rio!É noite! é noite!... E tudo é noite! E os meus olhos são noite!Eu não enxergo siquer as barcaças na noite.Só a enorme cidade. E a cidade me chama e pulveriza,E me disfarça numa queixa flébil e comedida,Onde irei encontrar a malícia do Boi PaciênciaRedivivo. Flor. Meu suspiro ferido se agarra,Não quer sair, enche o peito de ardência ardilosa,Abre o olhar, e o meu olhar procura, flor, um tilintarNos ares, nas luzes longe, no peito das águas,No reflexo baixo das nuvens.São formas... Formas que fogem, formasIndivisas, se atropelando, um tilintar de formas fugidiasQue mal se abrem, flor, se fecham, flor, flor, informes inacessíveis,

Na noite. E tudo é noite. Rio, o que eu posso fazer!...Rio, meu rio... mas porém há-de haver com certezaOutra vida melhor do outro lado de láDa serra! E hei-de guardar silêncioDeste amor mais perfeito do que os homens?...Estou pequeno, inútil, bicho da terra, derrotado.No entanto eu sou maior... Eu sinto uma grandeza infatigável!Eu sou maior que os vermes e todos os animais.E todos os vegetais. E os vulcões vivos e os oceanos,Maior... Maior que a multidão do rio acorrentado,Maior que a estrela, maior que os adjetivos,Sou homem! vencedor das mortes, bem nascido além dos dias,Transfigurado além das profecias!Eu recuso a paciência, o boi morreu, eu recuso a esperança.Eu me acho tão cansado em meu furor.As águas apenas murmuram hostis, água vil mas turrona paulistaQue sobe e se espraia, levando as auroras represadasPara o peito dos sofrimentos dos homens.... e tudo é noite. Sob o arco admirávelDa Ponte das Bandeiras, morta, dissoluta, fraca, Uma lágrima apenas, uma lágrima,

Eu sigo alga escusa nas águas do meu Tietê.

30/11/1944 a 12/2/1945

Jorge de Lima

Invenções de Orfeu

Canto IIIPoemas relativos

ICaída a noiteo mar se esvai,aquele montedesaba e caisilentemente.

Bronzes diluídosjá não são vozes,seres na estradanem são fantasmas,aves nos ramos

inexistentes;tranças noturnasmais que impalpáveis,gatos nem gatos,nem os pés no ar,nem os silêncios.

O sono está.E um homem dorme.

II

Queres ler o quetão só se entrelêe o resto em ti está?Flor no ar sem umbelanem tua lapela;flor que sem nós há.

Subitamente olhas:nem lês nem desfolhas;folha, flor, tiveste-as.

E nem as tocaste:folha e flor. Tu - haste,elas reais, mas réstias.

III

Qualquer voz alou-semuito desejada.Branco fosse o espaço e ela ardente cor.

Quis o espaço a voza voz veio e ampliou-o.

Mas se não houvesse

propriamente voz...

Vamos nós supô-los:dois sem seus sentidos.

Desejemos mesmodois incompreensíveis.

Bom nos ecoarmosna voz recebida.

E o espaço esvaziadopovoá-lo de vez.

Amá-los tão semamada presença,só com o coraçãosem correspondência,só com a vocaçãodo verso feliz.

IV

Numas noites chegamos à janela,e as mandíbulas do ar tanto nos roem,que os leitos rotos logo deliqüescemcom os nossos corpos complacentemente.

Certos dias olhamos o sol claro;e a boca hiante das cores nos devoracarnes e sangues, poeiras de costelas,que ficamos inúteis, sem matéria.

Essas bocas nos sugam noite e dia,vigiando dia e noite nossas vidasum minuto no espaço, menos que aide chumbo soluçado nos silêncios,ou cal de fome longa, revelada,na noite igual ao dia, de tão gêmeos.

V

Agora o sem sensosorriso nos ares,minha alma perdida,os vales lá embaixode minhas lonjurasde não existido,parado nos antes,nem sei de pecados,nem sei de mim mesmo,eu mesmo não sounem nada me vê;ausentes palavrasnão soam no vácuodos antes das coisas,das coisas sem nexo,nem fluidos. Só o Verbochorando por mim.

VI

Agora, escutai-meque eu falo de mim;ouvi que sou eu,sou eu, eu em mim;tocai esses cravosjá feitos pra mim,suores de sangue,pressuados sem porosverônica herdada.sem face do ser.

Embora; escutai-me,que eu falo com a vozinata que dizque a voz não é essaque fala por mim,talvez minha falasaída de ti.

VII

Alegria achareis neste poemacomo poema ilícito, como umcorpo casual ou vão, como a memóriadura e acídula, como um homem seconhece respirando, ou como quandose entristece sem causa ou se doente,ou se lavando sempre ou comparando-seàs dimensões das coisas relativas;ou como sente os ombros de seu ser,transmitidos e opacos, e os avósresponsabilizando-se presentes.

São alegrias rápidas. Lugares,reencontrados países, becos, passossob as chuvas que não vos molharão.

VIII

Se falta alguém nesses versospele vento interminável,pelas arenas de estátuas,sucedam-lhe os cegos olhossacudidos pelos medos,mãos de chuvas lhe inteiricemo corpo com algas remissase com matérias tranqüilastão soturna como os poços,exasperados invernos,ombros de escova comida,as asas secas caídas,ante seus netos calados;e incorporem-se a esse alvitreesse sabor de cortiça,essas esponjas morridas,

essas marés estanhadas,essas escunas de espáduasestritamente fechadascomo casas de abandono,restringem-se os conciliábulos,certos sigilos de pez,certas coisas enlutadas,refúgios, dramas ocultos,pois as rosas são de trapose os fios menos que teias,menos que finos agora,e as camisas sem os pêlosenterrados nas ilhargas,vestem enganos e punhose crimes em vez de adegas,mas tudo em vão, mesmo as plumas,mesmo os ausentes e as vozesaderidas a fragmentosaí moram degredadas,listrando as grades, de facesque não conhecem espelhos

IX

Numa hora perdida cantos doeram. Os desejosE flores despenteadas, flores largas e a barbáriee inconfidentes quase abominadas dos corpos.por oculta paixão, se intumesceram.

E a relatividade do espíritoLírios eram pilares de cristal sob o cercosubindo para as aves; então dardos da matéria.desceram sobre os mais amados coloscantando amor com seus consentimentos.

Canção melhor. Mais puros olhos. Eusei de cor os rebanhos, e olho o mundo.Tudo contém pequenas doces máscaras.Mas da selva selvagem desce o prantodos que mastigam suas próprias fomes,sem saliva de pão, e o gosto ausente.

Ninguém consegue assim amar os lírios.E esse amor é amaríssimo e adstringentecom a memória das dores engolidas.

X

Vós não viveis sozinhos,os outros vos invadem,felizes convivências,agregações incômodas,enfim ambientalismos,e tudo subsistênciase mais comunidades;

e tantas ventaniasacotovelamentos,desgastes de antemão,

acréscimos depois,depois substituições,a massa vos tragando,as coisas vos bisando;

os hábitos, os vícios,as moças embutidasmudando vossas cartas;sereis administradosno sono e nos pecados,vós mapas e diagramascom várias delinqüências,

e insanidades várias,dosando o vosso espaço,pesando o vosso pãode tempos racionados;e não tereis vividoe não tereis amado,porém sereis morrido.

XI

Éreis vós Tiago, Diogo, Jaques, Jaime?Clodoveu ou Clodovigo?Éreis vós por acaso eles?Éreis vós aqueles nomes,estes, e os demais já mortos,os mortos tão renovadosnós mesmos sempre chamadosLútero, Lotário, otário,sim otário tão singelo,tão puro de todo o mal,relativo, universal.

Éreis vós Tiago, Diogo, Jaques, Jaime?Dizei-me se acaso vóséreis eles ou voz soude algum avo tão otário,tão eu mesmo como voz,como poema de outros vários.

XII

O simples arde uma só cordaem curta raia,mão de menino,punhado escasso,ar perfumado,sem o alvoroçodos vendavais;anjo acolhidoem róseo céuabrigo instante,pranto lavado,chorar em tide arrependido,subir teus vales,

amar teu pólen,nunca escapar-mede tuas pétalascair com elas.

XIII

Uma janela abertae um simples rosto hirto,e que provavelmentenela se debruçou;e nesse gesto purodo rosto na janelaestava todo o poemaque ninguém escutou;só a janela abertae o espaço dentro delaque o tempo atravessou.

XIV

O conto era um dia,um dia futuro,e dentro do diaincluído o conforme,e dentro o que foiporque fora issose tal não se dera,se o mundo parassee o espaço se excluísse;se a pedra não fosseo símbolo que erapois tudo era um dia,um dia sem dia,porém com o poetaque um dia seria.

XV

De manhã estrelas verdesna inocência do ar coleado,intranqüilas e veementes.

Ao zênite e areia em sede,asas das hastes pendidas,as nuvens-castelas altascomo painas amealhadas.

De tarde a visão das velas,nuvens baixas sobre as verdesrosas das hastes fictícias;os desejos dissolvidosrepousam abertamente;e esse deserto de vozese estes cabelos perenesde seus nervos para os dramas.

Mas se as palmas fossem isso,as fontes seriam pratas,

e as pratas seriam opuro sonho de quem vive.

Todavia o sonho é comoas palmas dessas palmeiras. Eis as palmas.

XVI

Os dois ponteirosrodam e rodam,mostrando o horárioirregular.Horas inteirasdespedaçadas,horas mais horasdesmesuradas.Com seu compasso,lá vem a mortepra teu transporte,e com os dois braços:esta é tua hora,levo-te agora.

XVII

Um te exalounessa incidência:céu, terra, mar;impermanência.Outro te andoute indo e te vindopra te juntares,te convergindoQuem te volou,esse te deuo sono no ar.Esse te entooue te nasceusem te acordar.

XVIII

No dia seguinte:chamamos de terra,o poema te levate dana, te agita,te vinca de cruzes,te envolve de nuvens.Quem sabe aonde vaiparar no outro dia?

XIX

Roteiros vencidoscompassam a festa:a noiva está fria

no véu lamentado.Três potros desfraldam-setrês faces transcorremno coche morrido,em vão galopado.O nome do noivo?O nome da noiva?O nome do diabo?Três nomes corridos,três sombras penadasno drama calado.

XX

Aqui e alime encontrareis,entre um poemaou em seu curso,além e aquém,oculto e claro,vivo ou demente,ou mesmo morto,ou renascidocomo meu sósia,intermitente,ferida tórpida.pulso de febre,nesse cavalo,naquela tinta,naquele poemaquase alicerce,quase esse infante,esse anjo surdo.Ia esquecendo:eu e meu sósiasomos momentosentrelaçados.Ei-lo veementevolta a seu palco,sobe a uma origem,desce de novo,envolto ou nu,esse homem gêmeo,jamais verdugo,mas palma incerta, sendo meu pai,meu filho e netoe aquele longeporém limiar,malgrado e clâmideaberta e alípede,foi argonauta,podia se-lose esse jacintonão fosse canto,canto de galocrepuscular,profusamentecedo se ocultapor essas laudas

sem perceberseu fácil ímpetoante a palavravisualizada;mas de repentedesaparece.Agora eu surjonaquela esquina,naquele pórticofalam de mim;ouço transidoesses vocábulosdesconhecidos,emerjo em riosque vão passar,mergulho em rumosacontecidos,sucedo em mim,depois vou indofundo e arrastadona correntezaque é de repentes.Morto incorruptoguardo meus naipesmais pressentidos,intercadentes,desordenados,não há atavios,não há disfarces,dissoluçãodos prantos largosmanando laivos,lanhando aspectos;desacredito-meperante os leves,nem sabedorde alas longevas,se o porvindouroé puro exórdioprecocementedesencantado;se os seus presságiosremanescidos,salvo-condutosmanifestados;correm desviosvulgares trilhos,que todaviaprossigo em mim,minha progênie,uns dementados,outros co-réus,reconciliando-mecom os mutiladose este glossárioque é de meu sósia;abastecidoalego dores,crescentes cargas;me patenteio,fico exaltado

sem parecer;depois me espreitona curva adiante,simbolizado,metade em miminda nascendo,a outra metadesuperlotada;então me sanoexcluindo as nucasexecutáveis;não evidentesnem aberranteme envolvo de alma,doce alimáriacom alguns anexosaparelhadospara colherbelas paisagense outros petrechos do sósia amado;quero sofrer-me,quero imitar-me,fico enpunhadomeu corpo no ar,dependurado,meio aderidoa alguns palhaçosinsimulados,portanto, instáveis,muito insossos,muitos atébeatificados;ventos cortesesbem-parecidosvêm agitarnosso espantalho,enquanto as avescanoramentese desaninhamde nossos braços,ossos atadosa chão deitados,chãos contestadospor figadais,mas afinalchãos estreladosde algumas plantasambicionadaspor umas moçasque andando sósse despetalame virar brisas,fagueiras asas,pelas janelaspassam nos vidros,vão aos relógiosparam os cucos,e a vila ficainteiriçada.dormindo dentro

desse poemarecomeçadopor novo sósia.

XXI

As portas finais,os cantos iguais,os pontos cardeais,sempre obsidionais.Os tempos anuais,as faces glaciais,as culpas filiaissempre obsidionais.Os dois iniciais,as dores tais quais,os juízos finaissempre obsidionais.

XXII

Era uma vinda,dadas as luzes,dadas as facesque ali se achavam,nenhuma espúria,nenhuma enferma,dadas as cores,dadas as falasque ali se achavam;dadas as provasdessas presençasdeu-se o milagreem aços doces,em gumes brandosem chamas graves;formou-se um gêniopentangularque começavacom a estrela Vésper,riscando a noitesem se acabar;formou-se um líriona suave treva,gerou-se um gritode tantas vozes,criou-se um fogocorrespondente,jorrou-se um prantodesabitado.Era uma tarde:ninguém sabiao que no mundoia acabar.Sei que houve portasescancaradas,sei que houve apelosantiencarnados.E houve um dilúvio,

mas era um fogodesabrochado.

XVIII

Quando menos se pensaa sextina é suspensa.E o júbilo mais fortetal qual a taça fruída,antes que para a mortevá o réu da curta vida.Ninguém pediu a vidaao nume que em nós pensa.Ai carne dada à morte!morte jamais suspensaa taça sempre fruídaúltima, única e forte.Orfeu e o estro mais fortedentro da curta vidaa taça toda fruída,fronte que já não pensacanção erma, suspensa,Orfeu diante da morte.Vida, paixão e morte,- taças ao fraco e ao forte,taças - vida suspensa.Passa-se a frágil vida,e a taça que se pensaeis rápida fruída.Abandonada, fruída,esvaziada na morte,Orfeu já não mais pensa,Calado o canto forteem cantochão da vida,cortada ária, suspensa.Lira de Orfeu. Suspensa!Suspensa! Ária fruída,sextina artes da vidaser rimada na morte.Eis tua rima forte:rima que mais se pensa.

XXIV

A sextina começade novo uma ária espessa,(sextina da procura!)Eurídice nas trevas,Ó Eurídice obscura.Eva entre as outras Evas.Repousai aves, Evas,que a busca recomeçacada vez mais obscurada visão mais espessarepousada nas trevasAh! difícil procura!Incessante procuraentre noturnas Evas,entre divinas trevas,

Eurídice começaa trajetória espessa,a trajetória obscura.Desceu à pátria obscuraem que não se procuraalguém na sombra espessae onde sombras são Evas,e onde ninguém começa,mas tudo acaba em trevas.Infernos, Evas, trevas,lua submersa e obscura.Aí a ária começa,e não finda a procuraentre as celeste Evasa Eva da terra espessa.Eurídice, Eva espessa,musa de doces trevas,mais que todas as Evas -musa obscura, Eva obscura;sextina que procuraacabar, e começa.

XXV

A musa A barba tão preta que era azul,morta que as amantes tão ruivas que eram nulasvem de Amara onze e mais uma, numa sóoutros morta, em alma, sem cadáver, semlivros tumba, e que amara - morta, morta, morta.

XXVI

Sombra encantada, declinaranum vago dia, incerto dia.Eis uma deusa, pelos gestos,por sua dança, sua órbita.Era preciso compreendê-la,mas quando nós a avizinhávamos,a deusa arisca recuava.Se nós recuávamos, voltavaao nosso encontro, sem tocar-nos.Então corríamos, devassos,quase enlaçando-a: ela fugia.Era uma deusa pelos modoscom que mentia e se ausentava.Mas outro dia, vago dia,abrutamente a aprisionamos.O que tu és, deusa, ignoramos,mas desejamos, qualquer coisafazer de ti, terror ou júbiloou nossa vênus favorávelou nossa esfera de vocábulos.Ela chorava, não queria;e o pranto logo dissolvia.Então descemos, ventre abaixoe renascemos de seu sexo,- trânsito virgem de palavras.Era uma deusa, pela fúriacom que nós todos a ultrajamos.

Era uma deusa e não sabíamosse cada qual mesmo a violou.Era uma deusa, pela dúvidaque em cada um de nós, deixou.

XXVII

Contemplar o jardim além do odore a mulher silenciosa entre semblantes,e refazê-los todos, todos antesque o tempo condenado os atraiçoe.Porque eu quero, em memória refazê-los: À procura daflor longínqua, mulher, não pertencida, face perdidasubstância inexistente, móvel vida,intercessão de nadas e cabelos.E meus olhos ausentes me espiandoentre as coisas caducas e fugacesa minha intercessão em outras faces.Orfeu, para conhecer teu espetáculo,em que queres senhor, que eu me transforme,ou me forme de novo, em que outro oráculo?

Essa negra fulô

Ora, se deu que chegou (isso já faz muito tempo) no bangüê dum meu avô uma negra bonitinha, chamada negra Fulô.

Essa negra Fulô!Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô! (Era a fala da Sinhá) — Vai forrar a minha cama pentear os meus cabelos, vem ajudar a tirar a minha roupa, Fulô!

Essa negra Fulô!

Essa negrinha Fulô!ficou logo pra mucama pra vigiar a Sinhá, pra engomar pro Sinhô!

Essa negra Fulô! Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!(Era a fala da Sinhá) vem me ajudar, ó Fulô, vem abanar o meu corpo que eu estou suada, Fulô! vem coçar minha coceira, vem me catar cafuné, vem balançar minha rede, vem me contar uma história,

que eu estou com sono, Fulô!

Essa negra Fulô!

"Era um dia uma princesa que vivia num castelo que possuía um vestido com os peixinhos do mar. Entrou na perna dum pato saiu na perna dum pinto o Rei-Sinhô me mandou que vos contasse mais cinco".

Essa negra Fulô! Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!Vai botar para dormir esses meninos, Fulô! "minha mãe me penteou minha madrasta me enterrou pelos figos da figueira que o Sabiá beliscou".

Essa negra Fulô! Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô! (Era a fala da Sinhá Chamando a negra Fulô!)Cadê meu frasco de cheiroQue teu Sinhô me mandou?— Ah! Foi você que roubou!Ah! Foi você que roubou!

Essa negra Fulô!Essa negra Fulô!

O Sinhô foi ver a negra levar couro do feitor. A negra tirou a roupa, O Sinhô disse: Fulô! (A vista se escureceu que nem a negra Fulô).

Essa negra Fulô!Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!Cadê meu lenço de rendas, Cadê meu cinto, meu broche, Cadê o meu terço de ouro que teu Sinhô me mandou? Ah! foi você que roubou! Ah! foi você que roubou!

Essa negra Fulô!Essa negra Fulô!

O Sinhô foi açoitar sozinho a negra Fulô.

A negra tirou a saia e tirou o cabeção, de dentro dêle pulou nuinha a negra Fulô.

Essa negra Fulô!Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!Cadê, cadê teu Sinhôque Nosso Senhor me mandou? Ah! Foi você que roubou, foi você, negra fulô?

Essa negra Fulô!

Pelo silêncio

Pelo silêncio que a envolveu, por essaaparente distância inatingida,pela disposição de seus cabelosarremessados sobre a noite escura:

pela imobilidade que começaa afastá-la talvez da humana vidaprovocando-nos o hábito de vê-laentre estrelas do espaço e da loucura;

pelos pequenos astros e satélitesformando nos cabelos um diademaa iluminar o seu formoso manto,

vós que julgais extinta Mira-Celiobservai neste mapa o vivo poemaque é a vida oculta dessa eterna infanta.

Essa infanta

Essa infanta boreal era a defuntaem noturna pavana sempre ungida,colorida de galos silenciosos,extrema-ungida de óleos renovados.

Hoje é rosa distante prenunciada,cujos cabelos de Altair são dela;dela é a visão dos homens subterrâneos,consolo como chuva desejada.

Tendo-a a insônia dos tempos despertado,ontem houve enforcados, hoje guerras, amanhã surgirão campos mais mortos.

Ó antípodas, ó pólos, somos trégua,reconciliemo-nos na noite dessaeterna infanta para sempre amada.

Essa pavana

Essa pavana é para uma defunta

infanta, bem-amada, ungida e santa,e que foi encerrada num profundosepulcro recoberto pelos ramos

de salgueiros silvestres para nuncaser retirada desse leito estranhoem que repousa ouvindo essa pavanarecomeçada sempre sem descanso,

sem consolo, através dos desenganos,dos reveses e obstáculos da vida,das ventanias que se insurgem contra

a chama inapagada, a eterna chamaque anima esta defunta infanta ungidae bem-amada e para sempre santa.

Mulher proletária

Mulher proletária — única fábricaque o operário tem, (fabrica filhos)tuna tua superprodução de máquina humanaforneces anjos para o Senhor Jesus, forneces braços para o senhor burguês.

Mulher proletária, o operário, teu proprietáriohá de ver, há de ver:a tua produção,a tua superprodução,ao contrário das máquinas burguesassalvar o teu proprietário.

Manuel Bandeira

Teresa

A primeira vez que vi TeresaAchei que ela tinha pernas estúpidasAchei também que a cara parecia uma pernaQuando vi Teresa de novoAchei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)Da terceira vez não vi mais nadaOs céus se misturaram com a terraE o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.

Manuel Bandeira (1990): Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar: 214

Belo Belo

Belo belo belo,Tenho tudo quanto quero.

Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.E o risco brevíssimo — que foi? passou — de tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se,E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia adentroContinuo a possuir o segredo grande da noite.

Belo belo belo,Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.Não quero o que a terra só dá com trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,Não quero ser amado.Não quero combater,Não quero ser soldado.

— Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.PCP: 260-261

Belo Belo

Belo belo minha belaTenho tudo que não queroNão tenho nada que queroNão quero óculos nem tosseNem obrigação de votoQuero queroQuero a solidão dos píncarosA água da fonte escondidaA rosa que floresceuSobre a escarpa inacessívelA luz da primeira estrela

Piscando no lusco-fuscoQuero queroQuero dar a volta ao mundoSó num navio de velaQuero rever PernambucoQuero ver Bagdá e CuscoQuero queroQuero o moreno de EstelaQuero a brancura de ElisaQuero a saliva de BelaQuero as sardas de AdalgisaQuero quero tanta coisaBelo beloMas basta de lero-leroVida noves fora zero.

Petrópolis, fevereiro de 1947 – PCP: 281

A morte absoluta

Morrer.Morrer de corpo e de alma.Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,A exangue máscara de cera,Cercada de flores,Que apodrecerão - felizes! - num dia,Banhada de lágrimasNascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...A caminho do céu?Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,A lembrança de uma sombraEm nenhum coração, em nenhum pensamento,Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamenteQue um dia ao lerem o teu nome num papelPerguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda,- Sem deixar sequer esse nome.

O anel de vidro

Aquele pequenino anel que tu me deste,– Ai de mim – era vidro e logo se quebrou…Assim também o eterno amor que prometeste,- Eterno! era bem pouco e cedo se acabou.

Frágil penhor que foi do amor que me tiveste,Símbolo da afeição que o tempo aniquilou, –Aquele pequenino anel que tu me deste,– Ai de mim – era vidro e logo se quebrou…

Não me turbou, porém, o despeito que investeGritando maldições contra aquilo que amou.

De ti conservo no peito a saudade celeste…Como também guardei o pó que me ficouDaquele pequenino anel que tu me deste…

Paisagem noturna

A sombra imensa, a noite infinita enche o vale . . .E lá do fundo vem a vozHumilde e lamentosaDos pássaros da treva. Em nós,— Em noss'alma criminosa,O pavor se insinua . . . Um carneiro bale.Ouvem-se pios funerais.Um como grande e doloroso arquejoCorta a amplidão que a amplidão continua . . .E cadentes, metálicos, pontuais,Os tanoeiros do brejo,— Os vigias da noite silenciosa,Malham nos aguaçais.

Pouco a pouco, porém, a muralha de trevaVai perdendo a espessura, e em breve se adelgaçaComo um diáfano crepe, atrás do qual se elevaA sombria massa Das serranias.

O plenilúnio via romper . . . Já da penumbraLentamente reslumbraA paisagem de grandes árvores dormentes.E cambiantes sutis, tonalidades fugidias,Tintas deliqüescentesMancham para o levante as nuvens langorosas.

Enfim, cheia, serena, pura,Como uma hóstia de luz erguida no horizonte, Fazendo levantar a fronte Dos poetas e das almas amorosas,Dissipando o temor nas consciências medrosas E frustrando a emboscada a espiar na noite escura,— A LuaAssoma à crista da montanha.Em sua luz se banhaA solidão cheia de vozes que segredam . . .

Em voluptuoso espreguiçar de forma nuaAs névoas enveredam No vale. São como alvas, longas charpasSuspensas no ar ao longe das escarpas.Lembram os rebanhos de carneiros Quando, Fugindo ao sol a pino,Buscam oitões, adros hospitaleirosE lá quedam tranqüilos ruminando . . . Assim a névoa azul paira sonhando . . .As estrelas sorriem de escutarAs baladas atrozesDos sapos.

E o luar úmido . . . fino . . .

Amávico . . . tutelar . . .Anima e transfigura a solidão cheia de vozes . . .

Teresópolis, 1912

O inútil luar

É noite. A Lua, ardente e terna,Verte na solidão sombriaA sua imensa, a sua eternaMelancolia . . .Dormem as sombras na alamedaAo longo do ermo Piabanha.E dele um ruído vem de sedaQue se amarfanha . . .

No largo, sob os jambolanos,Procuro a sombra embalsamada.(Noite, consolo dos humanos!Sombra sagrada!)

Um velho senta-se ao meu lado.Medita. Há no seu rosto uma ânsia . . .Talvez se lembre aqui, coitado!De sua infância.

Ei-lo que saca de um papel . . .Dobra-o direito, ajusta as pontas,E pensativo, a olhar o anel,Faz umas contas . . .

Com outro moço que se cala,Fala um de compleição raquítica.Presto atenção ao que ele fala:— É de política.

Adiante uma senhora magra,Em ampla charpa que a modela,Lembra uma estátua de Tanagra.E, junto dela,

Outra a entretém, a conversar:— "Mamãe não avisou se vinha. Se ela vier, mando matarUma galinha."

E embalde a Lua, ardente e terna,Verte na solidão sombriaA sua imensa, a sua eternaMelancolia . . .

Enquanto a chuva cai

A chuva cai. O ar fica mole . . .Indistinto . . . ambarino . . . gris . . .E no monótono matizDa névoa enovelada boleA folhagem como o bailar.

Torvelinhai, torrentes do ar!

Cantai, ó bátega chorosa,As velhas árias funerais.Minh'alma sofre e sonha e gozaÀ cantilena dos beirais.

Meu coração está sedentoDe tão ardido pelo pranto.Dai um brando acompanhamentoÀ canção do meu desencanto.

Volúpia dos abandonados . . .Dos sós . . . — ouvir a água escorrer,Lavando o tédio dos telhadosQue se sentem envelhecer . . .

Ó caro ruído embalador,Terno como a canção das amas!Canta as baladas que mais amas, Para embalar a minha dor!

A chuva cai. A chuva aumenta.Cai, benfazeja, a bom cair!Contenta as árvores! ContentaAs sementes que vão abrir!

Eu te bendigo, água que inundas!Ó água amiga das raízes,Que na mudez das terras fundasÀs vezes são tão infelizes!

E eu te amo! Quer quando fustigasAo sopro mau dos vendavaisAs grandes árvores antigas, Quer quando mansamente cais.

É que na tua voz selvagem,Voz de cortante, álgida mágoa,Aprendi na cidade a ouvirComo um eco que vem na aragemA estrugir, rugir e mugir,O lamento das quedas-d'água!

Os sapos

Enfunando os papos, Saem da penumbra,Aos pulos, os sapos.A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra,Berra o sapo-boi:— "Meu pai foi à guerra!"— "Não foi!" — "Foi!" — "Não foi!".

O sapo-tanoeiro,Parnasiano aguado,Diz: — "Meu cancioneiroÉ bem martelado.

Vede como primo

Em comer os hiatos!Que arte! E nunca rimoOs termos cognatos!

O meu verso é bomFrumento sem joioFaço rimas com Consoantes de apoio.

Vai por cinqüenta anosQue lhes dei a norma:Reduzi sem danos A formas a forma.

Clame a sapariaEm críticas céticas:Não há mais poesia, Mas há artes poéticas . . ."

Urra o sapo-boi:— "Meu pai foi rei" — "Foi!"— "Não foi!" — "Foi!" — "Não foi!"

Brada em um assomoO sapo-tanoeiro:— "A grande arte é comoLavor de joalheiro.

Ou bem de estatuário.Tudo quanto é belo,Tudo quanto é vário,Canta no martelo."

Outros, sapos-pipas(Um mal em si cabe),Falam pelas tripas:— "Sei!" — "Não sabe!" — "Sabe!".

Longe dessa grita, Lá onde mais densa A noite infinitaVerte a sombra imensa;

Lá, fugindo ao mundo,Sem glória, sem fé,No perau profundoE solitário, é

Que soluças tu,Transido de frio,Sapo-cururuDa beira do rio

1918, "Estrela da Vida Inteira"

Debussy

Para cá, para lá . . .Para cá, para lá . . .Um novelozinho de linha . . .Para cá, para lá . . .

Para cá, para lá . . .Oscila no ar pela mão de uma criança(Vem e vai . . .)Que delicadamente e quase a adormecer o balança— Psio . . . —Para cá, para lá . . .Para cá e . . .— O novelozinho caiu.

O menino doente

O menino dorme.

Para que o menino Durma sossegado,Sentada ao seu ladoA mãezinha canta:— "Dodói, vai-te embora!"Deixa o meu filhinho,"Dorme . . . dorme . . . meu . . ."

Morta de fadiga,Ela adormeceu. Então, no ombro dela,Um vulto de santa,Na mesma cantiga,Na mesma voz dela, Se debruça e canta:— "Dorme, meu amor."Dorme, meu benzinho . . . "

E o menino dorme.

Meninos carvoeiros

Os meninos carvoeirosPassam a caminho da cidade.— Eh, carvoero!E vão tocando os animais com um relho enorme.

Os burros são magrinhos e velhos.Cada um leva seis sacos de carvão de lenha.A aniagem é toda remendada.Os carvões caem.

(Pela boca da noite vem uma velhinha que os recolhe, dobrando-se com um gemido.)

— Eh, carvoero!Só mesmo estas crianças raquíticasVão bem com estes burrinhos descadeirados.A madrugada ingênua parece feita para eles . . .Pequenina, ingênua miséria!Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais como se brincásseis!

—Eh, carvoero!

Quando voltam, vêm mordendo num pão encarvoado,Encarapitados nas alimárias,

Apostando corrida,Dançando, bamboleando nas cangalhas como espantalhos desamparados.

Petrópolis, 1921

Noite morta

Noite morta.Junto ao poste de iluminaçãoOs sapos engolem mosquitos.

Ninguém passa na estrada.Nem um bêbado.

No entanto há seguramente por ela uma procissão de sombras.Sombras de todos os que passaram.Os que ainda vivem e os que já morreram.

O córrego chora.A voz da noite . . .

(Não desta noite, mas de outra maior.)Petrópolis, 1921

Balõezinhos

Na feira do arrabaldezinhoUm homem loquaz apregoa balõezinhos de cor:— "O melhor divertimento para as crianças!"Em redor dele há um ajuntamento de menininhos pobres,Fitando com olhos muito redondos os grandes balõezinhos muito redondos.

No entanto a feira burburinha.Vão chegando as burguesinhas pobres,E as criadas das burguesinhas ricas,E mulheres do povo, e as lavadeiras da redondeza.

Nas bancas de peixe, Nas barraquinhas de cereais,Junto às cestas de hortaliçasO tostão é regateado com acrimônia.

Os meninos pobres não vêem as ervilhas tenras,Os tomatinhos vermelhos,Nem as frutas,Nem nada.

Sente-se bem que para eles ali na feira os balõezinhos de cor são a única mercadoria útil e verdadeiramente indispensável.

O vendedor infatigável apregoa:— "O melhor divertimento para as crianças!"E em torno do homem loquaz os menininhos pobres fazem um círculo inamovível de desejo e espanto.

Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.A vida inteira que podia ter sido e que não foi.Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:

— Diga trinta e três.— Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . . .— Respire................................................................................................................— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Porquinho-da-Índia

Quando eu tinha seis anosGanhei um porquinho-da-índia.Que dor de coração me davaPorque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!Levava ele prá salaPra os lugares mais bonitos mais limpinhosEle não gostava:Queria era estar debaixo do fogão.Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas . . .

— O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada.

Andorinha

Andorinha lá fora está dizendo:— "Passei o dia à toa, à toa!"

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!Passei a vida à toa, à toa . . .

Profundamente

Quando ontem adormeciNa noite de São JoãoHavia alegria e rumorVozes cantigas e risosAo pé das fogueiras acesas.No meio da noite desperteiNão ouvi mais vozes nem risosApenas balõesPassavam errantesSilenciosamenteApenas de vez em quandoO ruído de um bondeCortava o silêncioComo um túnel.Onde estavam os que há poucoDançavamCantavamE riamAo pé das fogueiras acesas?

— Estavam todos dormindoEstavam todos deitadosDormindoProfundamente.

Quando eu tinha seis anos

Não pude ver o fim da festa de São JoãoPorque adormeci.

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempoMinha avóMeu avôTotônio RodriguesTomásiaRosaOnde estão todos eles?— Estão todos dormindoEstão todos deitadosDormindoProfundamente.

Irene no céu

Irene pretaIrene boaIrene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:— Licença, meu branco!E São Pedro bonachão:— Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.

Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra PasárgadaLá sou amigo do reiLá tenho a mulher que eu queroNa cama que escolhereiVou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra PasárgadaAqui eu não sou felizLá a existência é uma aventuraDe tal modo inconseqüenteQue Joana a Louca de EspanhaRainha e falsa dementeVem a ser contraparenteDa nora que eu nunca tive

E como farei ginásticaAndarei de bicicletaMontarei em burro braboSubirei no pau-de-seboTomarei banhos de mar!E quando estiver cansadoDeito na beira do rioMando chamar a mãe-d'águaPra me contar as históriasQue no tempo de eu meninoRosa vinha me contarVou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudoÉ outra civilizaçãoTem um processo seguro

De impedir a concepçãoTem telefone automáticoTem alcalóide à vontadeTem prostitutas bonitas Para a gente namorar

E quando eu estiver mais tristeMas triste de não ter jeitoQuando de noite me der Vontade de me matar— Lá sou amigo do rei —Terei a mulher que eu queroNa cama que escolhereiVou-me embora pra Pasárgada

Canção da parada do Lucas

Parada do Lucas— O trem não parou.

Ah, se o trem parasseMinha alma incendidaPediria à NoiteDois seios intactos.

Parada do Lucas— O trem não parou.

Ah, se o trem parasseEu iria aos manguesDormir na escurezaDas águas defuntas.

Parada do Lucas— O trem não parou.

Nada aconteceuSenão a lembrançaDo crime espantosoQue o tempo engoliu.

Pardalzinho

O pardalzinho nasceuLivre. Quebraram-lhe a asa.Sacha lhe deu uma casa,Água, comida e carinhos.Foram cuidados em vão:A casa era uma prisão,O pardalzinho morreu.O corpo Sacha enterrouNo jardim; a alma, essa voouPara o céu dos passarinhos!

Petrópolis, 10-3-1943

O bicho

Vi ontem um bichoNa imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,Não examinava nem cheirava:Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,Não era um gato,Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.Rio, 27 de dezembro de 1947

Arte de amar

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.A alma é que estraga o amor.Só em Deus ela pode encontrar satisfação.Não noutra alma.Só em Deus — ou fora do mundo.As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

Cotovia

— Alô, cotovia!Aonde voaste,Por onde andaste,Que saudades me deixaste?

— Andei onde deu o vento.Onde foi meu pensamentoEm sítios, que nunca viste,De um país que não existe . . .Voltei, te trouxe a alegria.

— Muito contas, cotovia!E que outras terras distantesVisitaste? Dize ao triste.

— Líbia ardente, Cítia fria,Europa, França, Bahia . . .

— E esqueceste Pernambuco, Distraída?

— Voei ao Recife, no CaisPousei na Rua da Aurora.

— Aurora da minha vidaQue os anos não trazem mais!

— Os anos não, nem os dias,Que isso cabe às cotovias.Meu bico é bem pequeninoPara o bem que é deste mundo:

Se enche com uma gota de água.Mas sei torcer o destino,Sei no espaço de um segundoLimpar o pesar mais fundo.Voei ao Recife, e dos longesDas distâncias, aonde alcançaSó a asa da cotovia, — Do mais remoto e peremptoDos teus dias de criançaTe trouxe a extinta esperança,Trouxe a perdida alegria.

PCP 297-298Minha grande ternura

Minha grande ternuraPelos passarinhos mortos;Pelas pequeninas aranhas.

Minha grande ternuraPelas mulheres que foram meninas bonitasE ficaram mulheres feias;Pelas mulheres que foram desejáveisE deixaram de o ser.Pelas mulheres que me amaramE que eu não pude amar.

Minha grande ternuraPelos poemas queNão consegui realizar.

Minha grande ternura Pelas amadas queEnvelheceram sem maldade.

Minha grande ternura Pelas gotas de orvalho queSão o único enfeite de um túmulo.

Auto-retrato

Provinciano que nunca soubeEscolher bem uma gravata;Pernambucano a quem repugnaA faca do pernambucano;Poeta ruim que na arte da prosaEnvelheceu na infância da arte,E até mesmo escrevendo crônicasFicou cronista de província;Arquiteto falhado, músicoFalhado (engoliu um diaUm piano, mas o tecladoFicou de fora); sem família,Religião ou filosofia;Mal tendo a inquietação de espíritoQue vem do sobrenatural,E em matéria de profissãoUm tísico profissional.

Evocação do Recife

RecifeNão a Veneza americanaNão a Mauritsstad dos armadores das Índias OcidentaisNão o Recife dos MascatesNem mesmo o Recife que aprendi a amar depois — Recife das revoluções libertáriasMas o Recife sem história nem literaturaRecife sem mais nadaRecife da minha infânciaA rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da casa de dona Aninha ViegasTotônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do narizDepois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeirasmexericos namoros risadasA gente brincava no meio da ruaOs meninos gritavam:Coelho sai!Não sai!

A distância as vozes macias das meninas politonavam:Roseira dá-me uma rosaCraveiro dá-me um botão

(Dessas rosas muita rosaTerá morrido em botão...)De repentenos longos da noiteum sinoUma pessoa grande dizia:Fogo em Santo Antônio!Outra contrariava: São José!Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.Os homens punham o chapéu saíam fumandoE eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.

Rua da União...Como eram lindos os montes das ruas da minha infânciaRua do Sol(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)Atrás de casa ficava a Rua da Saudade......onde se ia fumar escondidoDo lado de lá era o cais da Rua da Aurora......onde se ia pescar escondidoCapiberibe— CapiberibeLá longe o sertãozinho de CaxangáBanheiros de palhaUm dia eu vi uma moça nuinha no banhoFiquei parado o coração batendoEla se riuFoi o meu primeiro alumbramentoCheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiuE nos pegões da ponte do trem de ferroos caboclos destemidos em jangadas de bananeiras

NovenasCavalhadasE eu me deitei no colo da menina e ela começou

a passar a mão nos meus cabelosCapiberibe— CapiberibeRua da União onde todas as tardes passava a preta das bananasCom o xale vistoso de pano da CostaE o vendedor de roletes de canaO de amendoimque se chamava midubim e não era torrado era cozidoMe lembro de todos os pregões:Ovos frescos e baratosDez ovos por uma patacaFoi há muito tempo...A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livrosVinha da boca do povo na língua errada do povoLíngua certa do povoPorque ele é que fala gostoso o português do BrasilAo passo que nósO que fazemosÉ macaquearA sintaxe lusíadaA vida com uma porção de coisas que eu não entendia bemTerras que não sabia onde ficavamRecife...Rua da União...A casa de meu avô...Nunca pensei que ela acabasse!Tudo lá parecia impregnado de eternidadeRecife...Meu avô morto.Recife morto, Recife bom, Recife brasileirocomo a casa de meu avô.

Poema do beco

Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?— O que eu vejo é o beco

Poética

Estou farto do lirismo comedidoDo lirismo bem comportadoDo lirismo funcionário público com livro de ponto expedienteprotocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionárioo cunho vernáculo de um vocábulo.Abaixo os puristasTodas as palavras sobretudo os barbarismos universaisTodas as construções sobretudo as sintaxes de exceçãoTodos os ritmos sobretudo os inumeráveisEstou farto do lirismo namoradorPolíticoRaquíticoSifilíticoDe todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmoDe resto não é lirismoSerá contabilidade tabela de co-senos secretário do amanteexemplar com cem modelos de cartas e as diferentesmaneiras de agradar às mulheres, etc

Quero antes o lirismo dos loucosO lirismo dos bêbedosO lirismo difícil e pungente dos bêbedosO lirismo dos clowns de Shakespeare

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Pensão familiar

Jardim da pensãozinha burguesa.Gatos espapaçados ao sol.A tiririca sitia os canteiros chatos.O sol acaba de crestar as boninas que murcharam.Os girassóisamarelo!resistem.E as dálias, rechonchudas, plebéias, dominicais.

Um gatinho faz pipi.Com gestos de garçom de restaurant-PalaceEncobre cuidadosamente a mijadinha.Sai vibrando com elegância a patinha direita:— É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.

Poema tirado de uma notícia de jornal

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem númeroUma noite ele chegou no bar Vinte de NovembroBebeuCantouDançouDepois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

Trem de ferro

Café com pãoCafé com pãoCafé com pão

Virge Maria que foi isso maquinista?

Agora simCafé com pãoAgora simVoa, fumaçaCorre, cercaAi seu foguistaBota fogoNa fornalhaQue eu precisoMuita forçaMuita forçaMuita força(trem de ferro, trem de ferro)

Oô...Foge, bichoFoge, povo

Passa pontePassa postePassa pastoPassa boiPassa boiadaPassa galhoDa ingazeiraDebruçadaNo riachoQue vontadeDe cantar!Oô...(café com pão é muito bom)

Quando me prenderoNo canaviáCada pé de canaEra um oficiáOô...Menina bonitaDo vestido verdeMe dá tua bocaPra matar minha sedeOô...Vou mimbora vou mimboraNão gosto daquiNasci no sertãoSou de OuricuriOô...

Vou depressaVou correndoVou na todaQue só levo Pouca gentePouca gentePouca gente...(trem de ferro, trem de ferro)

O último poema

Assim eu quereria o meu último poema.Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionaisQue fosse ardente como um soluço sem lágrimasQue tivesse a beleza das flores quase sem perfumeA pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidosA paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

Guilherme de Almeida

Esta vida

Um sábio me dizia: esta existência,não vale a angústia de viver. A ciência,se fôssemos eternos, num transportede desespero inventaria a morte.Uma célula orgânica apareceno infinito do tempo. E vibra e crescee se desdobra e estala num segundo.Homem, eis o que somos neste mundo.

Assim falou-me o sábio e eu comecei a verdentro da própria morte, o encanto de morrer.

Um monge me dizia: ó mocidade,és relâmpago ao pé da eternidade!Pensa: o tempo anda sempre e não repousa; esta vida não vale grande coisa.Uma mulher que chora, um berço a um canto;o riso, às vezes, quase sempre, um pranto.Depois o mundo, a luta que intimida,quadro círios acesos : eis a vida

Isto me disse o monge e eu continuei a verdentro da própria morte, o encanto de morrer.

Um pobre me dizia: para o pobrea vida, é o pão e o andrajo vil que o cobre.Deus, eu não creio nesta fantasia.Deus me deu fome e sede a cada diamas nunca me deu pão, nem me deu água.Deu-me a vergonha, a infâmia, a mágoade andar de porta em porta, esfarrapado.Deu-me esta vida: um pão envenenado.

Assim falou-me o pobre e eu continuei a ver,dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Uma mulher me disse: vem comigo!Fecha os olhos e sonha, meu amigo.Sonha um lar, uma doce companheiraque queiras muito e que também te queira.No telhado, um penacho de fumaça.Cortinas muito brancas na vidraçaUm canário que canta na gaiola.Que linda a vida lá por dentro rola!

Pela primeira vez eu comecei a ver,dentro da própria vida, o encanto de viver.

Flor do asfalto

Flor do asfalto, encantada flor de seda, sugestão de um crepúsculo de outono, de uma folha que cai, tonta de sono, riscando a solidão de uma alameda...

Trazes nos olhos a melancolia das longas perspectivas paralelas, das avenidas outonais, daquelas ruas cheias de folhas amarelas sob um silêncio de tapeçaria...

Em tua voz nervosa tumultua essa voz de folhagens desbotadas, quando choram ao longo das calçadas, simétricas, iguais e abandonadas, as árvores tristíssimas da rua!

Flor da cidade, em teu perfume existe Qualquer coisa que lembra folhas mortas, sombras de pôr de sol, árvores tortas, pela rua calada em que recortas tua silhueta extravagante e triste...

Flor de volúpia, flor de mocidade, teu vulto, penetrante como um gume, passa e, passando, como que resume no olhar, na voz, no gesto e no perfume, a vida singular desta cidade!

Maxixe

O chocalho dos sapos coaxa como um caracaxá rachado. Tudo mexe. Um vento frouxo enlaga uma nuvem baixafofa. E desce com ela, desce.E não a deixa e puxa-a como uma faixa e espicha-se e enrolam-se. E o feixe rola e rebola como uma bola na luz roxada tarde oca

boba

chocha.

Joaquim Cardozo

Aquarela

Macaíbeiras chovendoCheiro de flor amarela;Cheiro de chão que amanhece.Estavas sob a latadaQuando te abri a janela.

Cheiro de jasmim laranjaPelos jardins anoitece;Junto a papoulas dobradas,Num canteiro florescendo,A tua saia singela.

Macaíbeiras chovendoCheiro de flor amarela...

Não sei se és tu, se eras outra,Não sei se és esta ou aquela,A que não quis nem me quer,Fugindo sob a latadaNessa tarde de aquarela.

Macaíbeiras chovendoCheiro de flor amarela...

Chuva de caju

Como te chamas, pequena chuva inconstante e breve?Como te chamas, dize, chuva simples e leve?Teresa? Maria?Entra, invade a casa, molha o chão,Molha a mesa e os livros.Sei de onde vens, sei por onde andaste.Vens dos subúrbios distantes, dos sítios aromáticosOnde as mangueiras florescem, onde há cajus e mangabas,Onde os coqueiros se aprumam nos baldes dos viveirose em noites de lua cheia passam rondando os maruins:Lama viva, espírito do ar noturno do mangue.Invade a casa, molha o chão,Muito me agrada a tua companhia,Porque eu te quero muito bem, doce chuva,Quer te chames Teresa ou Maria.

Menina

Os teus olhos de água,Olhos frios e longos,Esta noite penetraram.Esta noite me envolveram.

Bem querida madrugada...

Olhos de sombra, olhos de tardeTrazem miragens de meninas...Bundas que parecem rosas.

Sob o caminho de muitas luasO teu corpo floresceu.

Poema

Eu não quero o teu corpoEu não quero a tua alma,Eu deixarei intato o teu ser a tua pessoa inviolávelEu quero apenas uma parte neste prazerA parte que não te pertence.

Espumas do Mar

Cavalos ligeirosDe eriçadas crinasPor que sobre as ondasPassais sem parar?Vencendo procelas,Ressacas em flor,Num fulgor de estrelasA poeira das águasFazeis levantar.

Espumas do mar.

Nas serenas curvasDa carne marinhaHá sopros, há fugasDe véus a ondular;Vestidos de rendas...Vestidos, mortalhasDe noivas morenasQue em noites de luaVirão se afogar.

Virão se afogar.

Se há fomes noturnasMordendo e chorando,Lívidas, remotasFúrias soltas no ar,Que os lábios do ventoSe abrindo devoremA flor de farinhaQue as vagas maioresIrão derramar.

Espumas do mar.

Nesse fogo verdeDe cinza tão brancaQue se apure um mel

De brilho sem par;Turbinas, moendasNo giro girandoE o açúcar nascendo

Na folha das ondasConstante a rolar.Constante a rolar.

Sobre os seios mansosDas baías clarasEm puro abandonoNão hei de ficar;Saudades das ilhas,Amor dos navios,Segredo das águasNas barras dos riosIrei desvendar.

Espumas do mar.

Em mares incertosIrei navegar;E direi louvoresÀs velas latinasPor bem velejar;Louvores direiAos lírios de salE às vozes dos búziosQue sabem cantar.

Que sabem cantar.

Teu rosto esqueci,Teus olhos? Não sei...Da face marcadaO espelho quebreiDe muito sonhar;Nos laços retidosDas águas profundasTesouros perdidosQuem há de encontrar?Espumas do mar.

Imagens do Nordeste

Sobre o capim orvalhadoPor baixo das mangabeirasHá rastros de luz macia:Por aqui passaram luas,Pousaram aves bravias.

Idílio de amor perdido,Encanto de moça nuaNa água triste da camboa;Em junhos do meu NordesteFantasma que me povoa.

Asa e flor do azul profundo,Primazia do mar alto,Vela branca predileta;Na transparência do diaÉs a flâmula discreta.

És a lâmina ligeira

Cortando a lã dos cordeiros,Ferindo os ramos dourados;– Chama intrépida e minguantenos ares maravilhados.

E enquanto o sol vai descendoO vento recolhe as nuvensE o vento desfaz a lã;Vela branca desvairada,Mariposa da manhã.

Velho calor de Dezembro,Chuva das águas primeirasFeliz batendo nas telhas;Verão de frutas maduras,Verão de mangas vermelhas.

A minha casa amarelaTinha seis janelas verdesDo lado do sol nascente;Janelas sobre a esperançaPaisagem, profundamente.

Abri as leves comportasE as águas duras fundiram;Num sopro de maresiaViveiros se derramaramEm noites de pescaria.

Camarupim, Mamanguape,Persinunga, Pirapama,Serinhaém, Jaboatão;Cruzando barras de riosMe perdi na solidão.

Me afastei sobre a planícieDas várzeas crepusculares;Vi nuvens em torvelinho,Estrelas de encruzilhadasNos rumos do meu caminho.

............................................................

Salinas de Santo Amaro,Ondas de terra salgada,Revoltas, na escuridão,De silêncio e de naufrágioCobrindo a tantos no chão.

Terra crescida, plantadaDe muita recordação.

Alucinação em branco

Nessas barracas em branco Quem misteriosamente teria se escondido?São barracas de campanha,ou de passar todo o verão no campo.

Lembram também cordas de mastros

Dos quais as velas se ausentaram.Pois as velas voaram enfunadas e suspensasNo ar, que é – sonho das asas – Todo o branco do contorno,Navegam em limpas atmosferas.

São panos estendidos ao solPara secar, no quintal de alguma casa;Grandes lençóis ondulantesAo vento que vem e vai,Ao vento que não pára de agitá-los.

Há um jogo de pontas nesses mastros,Pontas dirigidas em todos os sentidos.E as linhas e as sobre-linhas,Se orientam como se fosse possívelSubstituir definitivamente,Todo o branco do papel.

O Relógio

Quem é que sobe as escadasBatendo o liso degrau?Marcando o surdo compassoCom uma perna de pau?

Quem é que tosse baixinhoNa penumbra da ante-sala?Por que resmunga sozinho?Por que não cospe e não fala?

Por que dois vermes sombriosPassando na face morta?E o mesmo sopro contínuoNa frincha daquela porta?

Da velha parede tristeNo musgo roçar macio:São horas leves e tenrasNascendo do solo frio.

Um punhal feriu o espaço...E o alvo sangue a gotejar;Deste sangue os meus cabelosPela vida hão de sangrar.

Todos os grilos calaramSó o silêncio assobia;Parece que o tempo passaCom sua capa vazia.

O tempo enfim cristalizaEm dimensão natural;Mas há demônios que arpejamNa aresta do seu cristal.No tempo pulverizadoHá cinza também da morte:Estão serrando no escuroAs tábuas da minha sorte.

A tarde sobe

Ao rés da Terra o tempo é escuroMas a tarde sobe, se ergue no ar tranqüilo e doceA tarde sobe!No alto se ilumina, se esclarece.E paira na região iluminada.

Sobe, desfaz a trama de entrelaçosSuperpostos na maneira dos esquadrosSobre o chão aos poucos escurecendo.Sobe: No meio da parte densa.

Sobe alva, serena para as estrelasQue irão em breve aparecer,Luzindo, no princípio da noite;No espaço branco em que se completaPreenchendo o centro e a esquerdaBranco que saiu limpoDe um fundo escuro de hachuras.

A tarde sobe!Sobe até o zênite dando aos que passamA paz e a serenidade do entardecer.

A tarde sobe pura e macia!As linhas de baixo se inclinamSe afastam e vão deixá-la subir.

Poesia em homenagem a Isidore Ducasse

Eu vi Maldoror passar com os seus anjos malignos,Eu vi Maldoror passar montado no seu cavalo, seguido do seu buldogue,Eu vi Maldoror passar nas ruas de Paris.A lâmpada de bico de prata, parada, ficou brilhando,Por baixo da Ponte Maria.

Depois de um inverno rude de remorsos,Eu enfim recebi um beijo de primavera,Vindo na placidez dos rios tranqüilosAtravés desta terra idílica e francesa.

Que faz Maldoror terrível nesta cidade de Santa GenovevaAgora que estão vibrando os sinos de São Germano?Agora que os sinos estão saudando o dia da Assunção?

Maldoror, Maldoror, vai para o mar.

Passei ao longo dos rios bons, estive entre as árvores eternas Deste bosque dourado onde o hermafrodita está dormindoRodeado de flores!Ouvi palavras amargas nas vozes do dia,Caminhei longamente nos tempos futuros,Vi rostos felizes, sorrindo, debruçadosNas margens da rua,Por onde levava a minha alma repletaDe votos de esperança, de atos de poesia.

Maldoror, Maldoror, vai para o mar.

Paris, 1938

A escultura folheada

Aqui está um livroUm livro de gravuras coloridas;Há um ponto-furo. um simples ponto simples furoE nada mais.Abro a capa do livro e Vejo por trás da mesma que o furo continua;Folheio as páginas, uma a uma.- Vou passando as folhas, devagar,o furo continuaNoto que, de repente, o furo vai se alargandoSe abrindo, florindo, emprenhando,Compondo um volume vazio, irregular, interior e conexo:Superpostas aberturas recortadas nas folhas do livro,Têm a forma rara de uma escultura vazia e fechada,Uma variedade, uma escultura guardada dentro de um livro,Escultura de nada: ou antes, de um pseudo-não;Fechada, escondida, para todos os que não quiseremFolhear o livro.Mas, prossigo desfolhando:Agora a forma vai de novo se estreitandoSe afunilando, se reduzindo, desaparecendo/surgindoE na capa do outro lado se tornando novamenteUm ponto-furo, um simples pontosimples furoE nada mais.Os seres que a construíram, simples formigas aladas,Evoluíam sob o sol de uma lâmpadaOnde perderam as asas. Caíram.As linhas de vôo, incertas e belas, aluíram;Mas essas linhas volantes, a princípio, foramse reproduzindo nas folhas do livro, compondo desenhosDe fazer inveja aos mais “ sábios artistas”.Circunvagueando, indecisas nas primeiras páginas,À procura da forma formante e formada.Seus vôos transcritos, “refletidos” nessas primeiras linhas,Enfim se aprofundam, se avolumam no vazioDe uma escultura escondida, no escuro do interno;Somente visível, “de fora”, por dois pontos;Dois pontos furos: simples pontossimples furosE nada mais.

Poema dedicado a Maria Luíza

Eu te quero a ti e somente,Eu que compreendia a beleza das prostitutas e dos portos,Que sofri a violência da solidão no meio das multidões das grandes ruas,Que vi paisagens do céu erguidas sobre a noite do mais alto e puro mar,Que errei por muito tempo nos jardins deliciosos dos amores incertos e obscuros.

Eu te quero a ti sempre e somente.Eu te quero a ti pura e tranqüilaPreciosa entre todas as mulheresQue como rosas, como lírios, sobre mim se debruçaram,

Entre aquelas que de mim se aperceberamAo doce esmaecer das tardes luminosas.Eu te quero a ti pura e tranqüila.Nos espelhos da memória refletidaPelas horas do meu tempo transparecesE o Sol do meu deserto te iluminaE a noite do meu sono te adormece.Eu te pressinto no silêncio das verdades que ignoro,No silêncio e no delírio dos desejos impossíveis:através de um céu sem nuvens, do céu que é um prisma azulEu te revelarei a cor da tempestadeE a refração serena do meu mais íntimo segredo...

Em horizontes de ouro e de basaltoIndicarei o teu caminhoEntre flores de luar...Farei uma lenda sobre teus cabelos...Soneto SomenteNasci na várzea do CapibaribeDe terra escura, de macio turvo,De luz dourada no horizonte curvoE onde a água doce, o massapê proíbe.

Sua presença para mim se exibeNo seu ar sereno que inda hoje absorvo,E nas noites, com negridão de corvo.Antes que ao porto do seu céu arribe

A lua. Assim só tenho essa planície...Pois tudo quanto fiz foi superfícieDe inúteis coisas vãs, humanamente.

De glórias e de alturas e universosNão tenho o que dizer nestes meus versos:– Nessa várzea nasci, nasci somente.

As Alvarengas"Tous les chemins vont vers la ville” - Verhaeren

As alvarengas! Ei-las que vão e vem; outras paradas, Imóveis. O ar silêncio. Azul céu, suavemente. Na tarde sombra o velho cais do Apolo. O sol das cinco ascende um farol no zimbório Da Assembléia. As alvarengas! Madalena. Deus te guie, flor de Zongue. Negros curvando os dorsos nus Impelem-nas ligeiras. Vem de longe, dos campos saqueados. Onde é tenaz a luta entre o Homem e a Terra. Trazendo, nos bojos negros. Para a cidade. A ignota riqueza que o solo vencido abandona. O latente rumor das florestas despedaçadas.

A cidade voragem. É o Moloch, é o abismo, é a caldeira... Além, pelo ar distante e sobre as casas. As chaminés fumegam e o vento alonga. O passo de parafuso.

E lentas. Vão seguindo, negras, jogando, cansadas; E seguindo-as também, em curvas n’água propagadas. A dor da terra, o clamor das raízes

Tarde no Recife

Tarde no Recife. Da ponta Maurício o céu e a cidade. Fachada verde do Café Máxime. Cais do Abacaxi. Gameleiras. Da torre do Telégrafo Ótico A voz colorida das bandeiras anuncia Que vapores entraram no horizonte.

Tanta gente apressada, tanta mulher bonita. A tagarelice dos bondes e dos automóveis. Um carreto gritando — alerta! Algazarra, Seis horas. Os sinos.

Recife romântico dos crepúsculos das pontes. Dos longos crepúsculos que assistiram à passagem [dos fidalgos holandeses. Que assistem agora ao mar, inerte das ruas tumultuosas, Que assistirão mais tarde à passagem de aviões para as costas [do Pacífico. Recife romântico dos crepúsculos das pontes. E da beleza católica do rio.

Recordações de Tramataia

Eu vi nascer as luas fictícias Que fazem surgir no espaço a curva das marés. Garças brancas voavam sobre os altos mangues de [Tramataia. Bandos de Jandaias passavam sobre os coqueiros doidos de Tramataia. E havia um desejo de gente na casa de farinha e nos [mucambos vazios de Tramataia Todavia! Todavia! Eu gostava de olhar as nuvens grandes, brancas e sólidas. Eu tinha o encanto esportivo de nadar e de dormir. Se eu morresse agora, Se eu morresse precisamente. Neste momento, Duas boas lembranças levaria: A visão do mar do alto da Misericórdia de Olinda ao [nascer do verão. E a saudade de Josefa. A pequena namorada do meu amigo de Tramataia.

1930

Na estranha madrugada O homem alto, transpondo o portão da velha casa, depõe no chão frio. O corpo inanimado do seu irmão. Da sombra das velhas mangueiras, por um momento,

Surgiram, curiosas, as sombras dos melhores heróis de Pernambuco antigo. Sobre o corpo caiam gotas de orvalho e flores de cajueiro.

Raul Bopp

Cobra Norato(fragmentos)

I

Um diaainda eu hei de morar nas terras do Sem-Fim.

Vou andando, caminhando, caminhando;me misturo rio ventre do mato, mordendo raízes.Depoisfaço puçanga de flor de tajá de lagoa e mando chamar a Cobra Norato.

— Quero contar-te uma história:Vamos passear naquelas ilhas decotadas? Faz de conta que há luar.

A noite chega mansinho.Estrelas conversam em voz baixa.

O mato já se vestiu.Brinco então de amarrar uma fita no pescoço e estrangulo a cobra.

Agora, sim,me enfio nessa pele de seda elástica e saio a correr mundo:

Vou visitar a rainha Luzia. Quero me casar com sua filha.

— Então você tem que apagar os olhos primeiro. O sono desceu devagar pelas pálpebras pesadas. Um chão de lama rouba a força dos meus passos.

II

Começa agora a floresta cifrada.A sombra escondeu as árvores.Sapos beiçudos espiam no escuro.

Aqui um pedaço de mato está de castigo. Árvorezinhas acocoram-se no charco. Um fio de água atrasada lambe a lama.

— Eu quero é ver a filha da rainha Luzia!

Agora são os rios afogados, bebendo o caminho.A água vai chorando afundando afundando.

Lá adiantea areia guardou os rastos da filha da rainha Luzia.

— Agora sim, vou ver a filha da rainha Luzia!

Mas antes tem que passar por sete portasVer sete mulheres brancas de ventres despovoadosguardadas por um jacaré.

— Eu só quero a filha da rainha Luzia.

Tem que entregar a sombra para o bicho do fundoTem que fazer mironga na lua nova.Tem que beber três gotas de sangue.

— Ah, só se for da filha da rainha Luzia!

A selva imensa está com insônia.

Bocejam árvores sonolentas.Ai, que a noite secou. A água do rio se quebrou.Tenho que ir-me embora.

E me sumo sem rumo no fundo do matoonde as velhas árvores grávidas cochilam.

De todos os lados me chamam:— Onde vai, Cobra Norato?Tenho aqui três árvorezinhas jovens, à tua espera.

— Não posso.Eu hoje vou dormir com a filha da rainha Luzia.

IV

Esta é a floresta de hálito podre,parindo cobras.

Rios magros obrigados a trabalhar.

A correnteza arrepiada junto às margensdescasca barrancos gosmentos.

Raízes desdentadas mastigam lodo.

A água chega cansada.Resvala devagarinho na vasa molecom medo de cair.

A lama se amontoa.

Num estirão alagadoo charco engole a água do igarapé.

Fede...

Vento mudou de lugar.

Juntam-se léguas de mato atrás dos pântanos de aninga.Um assobio assusta as árvores.

Silêncio se machucou.

Cai lá adiante um pedaço de pau seco:

Pum

Um berro atravessa a floresta.

Correm cipós fazendo intrigas no alto dos galhos.Amarram as árvorezinhas contrariadas.

Chegam vozes.

Dentro do matopia a jurucutu.

— Não posso.Eu hoje vou dormir com a filha da rainha Luzia.

XXXII

— E agora, compadre,eu vou de volta pro Sem-Fim.

Vou lá para as terras altas, onde a serra se amontoa, onde correm os rios de águas claras em matos de molungu.

Quero levar minha noiva. Quero estarzinho com ela numa casa de morar, com porta azul piquininha pintada a lápis de cor.

Quero sentir a quentura do seu corpo de vaivém. Querzinho de ficar juntoquando a gente quer bem, bem;

Ficar à sombra do mato ouvir a jurucutu, águas que passam cantando pra gente se espreguiçar,

E quando estivermos à espera que a noite volte outra vez eu hei de contar histórias (histórias de não-dizer-nada) escrever nomes na areia pro vento brincar de apagar.

MonjoloChorado do Bate-Pilão

Fazenda velha. Noite e diaBate-pilão.

Negro passa a vida ouvindoBate-pilão.

Relógio triste o da fazenda.Bate-pilão.

Negro deita. Negro acorda.Bate-pilão.

Quebra-se a tarde. Ave-Maria.Bate-pilão.

Chega a noite. Toda a noiteBate-pilão.

Quando há velório de negroBate-pilão.

Negro levado pra covaBate-pilão.

Coco de Pagu

Pagu tem os olhos moles uns olhos de fazer doer. Bate-côco quando passa. Coração pega a bater.

Eh Pagu eh!Dói porque é bom de fazer doer.

Passa e me puxa com os olhos provocantissimamente.Mexe-mexe bamboleiapra mexer com toda a gente.

Eh Pagu eh!Dói porque é bom de fazer doer.

Toda a gente fica olhando o seu corpinho de vai-e-vem umbilical e molengo de não-sei-o-que-é-que-tem.

Eh Pagu eh!Dói porque é bom de fazer doer.

Quero porque te quero Nas formas do bem-querer. Querzinho de ficar junto que é bom de fazer doer.

Eh Pagu eh!Dói porque é bom de fazer doer.

Cecília Meirelles

Balada das dez bailarinas do cassino

Dez bailarinas deslizampor um chão de espelho.Têm corpos egípcios com placas douradas,pálpebras azuis e dedos vermelhos.Levantam véus brancos, de ingênuos aromas,e dobram amarelos joelhos.

Andam as dez bailarinassem voz, em redor das mesas.Há mãos sobre facas, dentes sobre florese com os charutos toldam as luzes acesas.Entre a música e a dança escorreuma sedosa escada de vileza.

As dez bailarinas avançamcomo gafanhotos perdidos.Avançam, recuam, na sala compacta,empurrando olhares e arranhando o ruído.Tão nuas se sentem que já vão cobertasde imaginários, chorosos vestidos.

A dez bailarinas escondemnos cílios verdes as pupilas.Em seus quadris fosforescentes,passa uma faixa de morte tranqüila.Como quem leva para a terra um filho morto,levam seu próprio corpo, que baila e cintila.

Os homens gordos olham com um tédio enormeas dez bailarinas tão frias.Pobres serpentes sem luxúria,que são crianças, durante o dia.Dez anjos anêmicos, de axilas profundas,embalsamados de melancolia.

Vão perpassando como dez múmias,as bailarinas fatigadas.Ramo de nardos inclinando floresazuis, brancas, verdes, douradas.Dez mães chorariam, se vissemas bailarinas de mãos dadas.

(in Mar Absoluto e outros poemas: Retrato Natural. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983.)

Lamento do oficial por seu cavalo morto

Nós merecemos a morte,porque somos humanose a guerra é feita pelas nossas mãos,pelo nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra,por nosso sangue estranho e instável, pelas ordensque trazemos por dentro, e ficam sem explicação.

Criamos o fogo, a velocidade, a nova alquimia,os cálculos do gesto,embora sabendo que somos irmãos.

Temos até os átomos por cúmplices, e que pecadosde ciência, pelo mar, pelas nuvens, nos astros!Que delírio sem Deus, nossa imaginação!

E aqui morreste! Oh, tua morte é a minha, que, enganada,recebes. Não te queixas. Não pensas. Não sabes. Indigno,ver parar, pelo meu, teu inofensivo coração.Animal encantado - melhor que nós todos! - que tinhas tu com este mundodos homens?

Aprendias a vida, plácida e pura, e entrelaçadaem carne e sonho, que os teus olhos decifravam...Rei das planícies verdes, com rios trêmulos de relinchos...Como vieste morrer por um que mata seus irmãos!

(in Mar Absoluto e outros poemas)

Canção

Pus o meu sonho num navioe o navio em cima do mar;- depois, abri o mar com as mãos,para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadasdo azul das ondas entreabertas,e a cor que escorre de meus dedos colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,a noite se curva de frio;debaixo da água vai morrendomeu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,para fazer com que o mar cresça,e o meu navio chegue ao fundo e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;praia lisa, águas ordenadas,meus olhos secos como pedrase as minhas duas mãos quebradas.

Murmúrio

Traze-me um pouco das sombras serenasque as nuvens transportam por cima do dia!Um pouco de sombra, apenas,- vê que nem te peço alegria.

Traze-me um pouco da alvura dos luaresque a noite sustenta no teu coração!A alvura, apenas, dos ares:- vê que nem te peço ilusão.

Traze-me um pouco da tua lembrança,aroma perdido, saudade da flor!

- Vê que nem te digo - esperança!- Vê que nem sequer sonho - amor!

Canção

No desequilíbrio dos mares,as proas giram sozinhas...Numa das naves que afundaramé que certamente tu vinhas.

Eu te esperei todos os séculossem desespero e sem desgosto,e morri de infinitas mortesguardando sempre o mesmo rosto

Quando as ondas te carregarammeu olhos, entre águas e areias,cegaram como os das estátuas,a tudo quanto existe alheias.

Minhas mãos pararam sobre o are endureceram junto ao vento,e perderam a cor que tinhame a lembrança do movimento.

E o sorriso que eu te levavadesprendeu-se e caiu de mim:e só talvez ele ainda vivadentro destas águas sem fim.

4°. motivo da rosa

Não te aflijas com a pétala que voa:também é ser, deixar de ser assim.

Rosas verá, só de cinzas franzida,mortas, intactas pelo teu jardim.

Eu deixo aroma até nos meus espinhosao longe, o vento vai falando de mim.

E por perder-me é que vão me lembrando,por desfolhar-me é que não tenho fim.

Serenata

Permita que eu feche os meus olhos,pois é muito longe e tão tarde!Pensei que era apenas demora,e cantando pus-me a esperar-te.

Permite que agora emudeça:que me conforme em ser sozinha.Há uma doce luz no silencio,e a dor é de origem divina.

Permite que eu volte o meu rostopara um céu maior que este mundo,

e aprenda a ser dócil no sonhocomo as estrelas no seu rumo.

Motivo

Eu canto porque o instante existee a minha vida está completa.Não sou alegre nem sou triste:sou poeta.

Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento.Atravesso noites e diasno vento.

Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, — não sei, não sei. Não sei se ficoou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.Tem sangue eterno a asa ritmada.E um dia sei que estarei mudo:— mais nada.

Discurso

E aqui estou, cantando.

Um poeta é sempre irmão do vento e da água:deixa seu ritmo por onde passa.

Venho de longe e vou para longe:mas procurei pelo chão os sinais do meu caminhoe não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentesandaram.

Também procurei no céu a indicação de uma trajetória, mas houve sempre muitas nuvens.E suicidaram-se os operários de Babel.

Pois aqui estou, cantando.

Se eu nem sei onde estou, como posso esperar que algum ouvido me escute?

Ah! Se eu nem sei quem sou, como posso esperar que venha alguém gostar de mim?

Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas;eu não tinha este coração

que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil:— Em que espelho ficou perdidaa minha face?

Gargalhada

Homem vulgar! Homem de coração mesquinho!Eu te quero ensinar a arte sublime de rir.Dobra essa orelha grosseira, e escutao ritmo e o som da minha gargalhada:

Ah! Ah! Ah! Ah!Ah! Ah! Ah! Ah!

Não vês?É preciso jogar por escadas de mármores baixelas de ouro.Rebentar colares, partir espelhos, quebrar cristais, vergar a lâmina das espadas e despedaçar estátuas, destruir as lâmpadas, abater cúpulas, e atirar para longe os pandeiros e as liras...

O riso magnífico é um trecho dessa música desvairada.

Mas é preciso ter baixelas de ouro, compreendes?— e colares, e espelhos, e espadas e estátuas.E as lâmpadas, Deus do céu!E os pandeiros ágeis e as liras sonoras e trêmulas...

Escuta bem:

Ah! Ah! Ah! Ah!Ah! Ah! Ah! Ah!

Só de três lugares nasceu até hoje essa música heróica:do céu que venta, do mar que dança, e de mim.

Fio

No fio da respiração, rola a minha vida monótona, rola o peso do meu coração.

Tu não vês o jogo perdendo-secomo as palavras de uma canção.

Passas longe, entre nuvens rápidas, com tantas estrelas na mão...

— Para que serve o fio trêmuloem que rola o meu coração?

Atitude

Minha esperança perdeu seu nome...Fechei meu sonho, para chamá-la.A tristeza transfigurou-mecomo o luar que entra numa sala.

O último passo do destinoparará sem forma funesta, e a noite oscilará como um dourado sinoderramando flores de festa.

Meus olhos estarão sobre espelhos, pensandonos caminhos que existem dentro das coisas transparentes.

E um campo de estrelas irá brotandoatrás das lembranças ardentes.

Noções

Entre mim e mim, há vastidões bastantespara a navegação dos meus desejos afligidos.

Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento quea atinge.

Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza, só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram.

Virei-me sobre a minha própria existência, e contemplei-aMinha virtude era esta errância por mares contraditórios, e este abandono para além da felicidade e da beleza.

Ó meu Deus, isto é a minha alma:qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário, como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera...

Herança

Eu vim de infinitos caminhos, e os meus sonhos choveram lúcido prantopelo chão.

Quando é que frutifica, nos caminhos infinitos, essa vida, que era tão viva, tão fecunda, porque vinha de um coração?

E os que vierem depois, pelos caminhos infinitos, do pranto que caiu dos meus olhos passados, que experiência, ou consolo, ou prêmio alcançarão?

Timidez

Basta-me um pequeno gesto, feito de longe e de leve,

para que venhas comigoe eu para sempre te leve...

— mas só esse eu não farei.

Uma palavra caídadas montanhas dos instantesdesmancha todos os marese une as terras mais distantes...

— palavra que não direi.

Para que tu me adivinhes, entre os ventos taciturnos, apago meus pensamentos, ponho vestidos noturnos,

— que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres, os mundos vão navegandonos ares certos do tempo, até não se sabe quando...

— e um dia me acabarei.

Interlúdio

As palavras estão muito ditase o mundo muito pensado.Fico ao teu lado.

Não me digas que há futuronem passado.Deixa o presente — claro murosem coisas escritas.

Deixa o presente. Não fales, Não me expliques o presente, pois é tudo demasiado.

Em águas de eternamente, o cometa dos meus malesafunda, desarvorado.

Fico ao teu lado.

Encomenda

Desejo uma fotografiacomo esta — o senhor vê? — como esta:em que para sempre me riacomo um vestido de eterna festa.

Como tenho a testa sombria, derrame luz na minha testa.Deixe esta ruga, que me emprestaum certo ar de sabedoria.

Não meta fundos de florestanem de arbitrária fantasia...Não... Neste espaço que ainda resta, ponha uma cadeira vazia.

Reinvenção

A vida só é possívelreinventada.

Anda o sol pelas campinase passeia a mão douradapelas águas, pelas folhas...Ah! tudo bolhasque vem de fundas piscinasde ilusionismo... — mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida, a vida só é possívelreinventada.

Vem a lua, vem, retiraas algemas dos meus braços.Projeto-me por espaçoscheios da tua Figura.Tudo mentira! Mentirada lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço...Só — no tempo equilibrada, desprendo-me do balançoque além do tempo me leva.Só — na treva, fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida, a vida só é possível reinventada.

Ísis

E diz-me a desconhecida:"Mais depressa! Mais depressa!"Que eu vou te levar a vida! . . ."Finaliza! Recomeça!"Transpõe glórias e pecados! . . ."Eu não sei que voz seja essaNos meus ouvidos magoados:Mas guardo a angústia e a certezaDe ter os dias contados . . .Rolo, assim, na correntezaDa sorte que se acelera, Entre margens de tristeza,Sem palácios de quimera,Sem paisagens de ventura, Sem nada de primavera . . .Lá vou, pela noite escura, Pela noite de segredo, Como um rio de loucura . . .

Tudo em volta sente medo . . . E eu passo desiludida,Porque sei que morro cedo . . .Lá me vou, sem despedida . . .Às vezes, quem vai, regressa . . .E diz-me a Desconhecida:"Mais depressa" Mais depressa" . . .

Depois do sol...

Fez-se noite com tal mistério,Tão sem rumor, tão devagar,Que o crepúsculo é como um luarIluminando um cemitério . . .Tudo imóvel . . . Serenidades . . .Que tristeza, nos sonhos meus!E quanto choro e quanto adeusNeste mar de infelicidades!Oh! Paisagens minhas de antanho . . .Velhas, velhas . . . Nem vivem mais . . .— As nuvens passam desiguais,Com sonolência de rebanho . . .Seres e coisas vão-se embora . . .E, na auréola triste do luar,Anda a lua, tão devagar,Que parece Nossa Senhora

Pelos silêncios a sonhar . . .

Suavíssima

Os galos cantam, no crepúsculo dormente . . .No céu de outono, anda um langor final de plumaQue se desfaz por entre os dedos, vagamente . . .Os galos cantam, no crepúsculo dormente . . .Tudo se apaga, e se evapora, e perde, e esfuma . . . Fica-se longe, quase morta, como ausente . . .Sem ter certeza de ninguém . . . de coisa alguma . . .Tem-se a impressão de estar bem doente, muito doente,De um mal sem dor, que se não saiba nem resuma . . .E os galos cantam, no crepúsculo dormente . . .Os galos cantam, no crepúsculo dormente . . . A alma das flores, suave e tácita, perfumaA solitude nebulosa e irreal do ambiente . . .Os galos cantam, no crepúsculo dormente . . .Tão para lá! . . . No fim da tarde . . . além da bruma . . .E silenciosos, como alguém que se acostumaA caminhar sobre penumbras, mansamente,Meus sonhos surgem, frágeis, leves como espuma . . .Põem-se a tecer frases de amor, uma por uma . . .E os galos cantam, no crepúsculo dormente . . .

Marinha

O barco é negro sobre o azul.Sobre o azul os peixes são negros.Desenham malhas negras as redes, sobre o azul.

Sobre o azul, os peixes são negros.Negras são as vozes dos pescadores,atirando-se palavras no azul.É o último azul do mar e do céu.A noite já vem, dos lados de Burma,toda negra,molhada de azul:— a noite que chega também do mar.

Pássaro

Aquilo que ontem cantavajá não canta.Morreu de uma flor na boca:não do espinho na garganta.Ele amava a água sem sede,e, em verdade,tendo asas, fitava o tempo,livre de necessidade.Não foi desejo ou imprudência:não foi nada.E o dia toca em silêncioa desventura causada.Se acaso isso é desventura:ir-se a vidasobre uma rosa tão bela,por uma tênue ferida.

Máquina breve

O pequeno vaga-lumecom sua verde lanterna,que passava pela sombrainquietando a flor e a treva— meteoro da noite, humilde,dos horizontes da relva;o pequeno vaga-lume,queimada a sua lanterna,jaz carbonizado e triste e qualquer brisa o carrega:mortalha de exíguas franjasque foi seu corpo de festa.Parecia uma esmeraldae é um ponto negro na pedra.Foi luz alada, pequenaestrela em rápida seta.Quebrou-se a máquina breve na precipitada queda.E o maior sábio do mundosabe que não a conserta.

De um lado cantava o sol

De um lado cantava o sol,do outro, suspirava a lua.No meio, brilhava a tuaface de ouro, girassol!

Ó montanha da saudadea que por acaso vim:outrora, foste um jardim,e és, agora, eternidade!De longe, recordo a corda grande manhã perdida.Morrem nos mares da vidatodos os rios do amor?Ai! celebro-te em meu peito,em meu coração de sal,Ó flor sobrenatural,grande girassol perfeito!Acabou-se-me o jardim!Só me resta, do passado,este relógio douradoque ainda esperava por mim . . .

Cronista enamorado do sagüim

O sagüim é um animalzinho assaz bonito:é mesmo o mais bonito de todos, pela selva;anda nas árvores, esconde-se, espia, foge depressae há deles, na terra viçosa, número infinito.Se qualquer rei da Europa o visse, gostaria de possuí-lo como um brinquedo, vindo de longe, e raro.Mas é o sagüim animalzinho tão delicadoque a uma viagem tão longa não resistiria.A cara do sagüim é como a de um leãozinho,e pode-se conseguir que ele pouse no nosso ombro.O sagüim mais bonito de todos é o sagüim louro,que tem uma expressão de inteligência e carinho.Ele pode descer a comer à nossa mão! Graciosaé a sua maneira de olhar. Gracioso é o movimento do seu corpo inteiro,tão leve e breve! Mas os melhores, só no Rio de Janeirose encontram: se encontram apenas nesta cidade, a mui formosa.

Romance II ou do ouro incansável

Mil bateias vão rodando sobre córregos escuros; a terra vai sendo abertapor intermináveis sulcos;infinitas galeriaspenetram morros profundos.De seu calmo esconderijo,o ouro vem, dócil e ingênuo;torna-se pó, folha, barra,prestígio, poder, engenho . . .É tão claro! — e turva tudo:honra, amor e pensamento.Borda flores nos vestidos, sobe a opulentos altares, traça palácios e pontes,eleva os homens audazes,e acende paixões que alastram sinistras rivalidades.Pelos córregos, definhamnegros a rodar bateias.Morre-se de febre e fome

sobre a riqueza da terra:uns querem metais luzentes,outros, as redradas pedras.Ladrões e contrabandistas estão cercando os caminhos;cada família disputaprivilégios mais antigos;os impostos vão crescendo e as cadeias vão subindo.Por ódio, cobiça, inveja,vai sendo o inferno traçado.Os reis querem seus tributos,— mas não se encontram vassalos.Mil bateias vão rodando,mil bateias sem cansaço.Mil galerias desabam;mil homens ficam sepultos;mil intrigas, mil enredosprendem culpados e justos;já ninguém dorme tranqüilo,que a noite é um mundo de sustos.Descem fantasmas dos morros,vêm almas dos cemitérios:todos pedem ouro e prata, e estendem punhos severos,mas vão sendo fabricadasmuitas algemas de ferro.

Romance XXI ou das idéias

A vastidão desses campos.A alta muralha das serras.As lavras inchadas de ouro.Os diamantes entre as pedras.Negros, índios e mulatos.Almocrafes e gamelas.Os rios todos virados.Toda revirada, a terra.Capitães, governadores,padres intendentes, poetas.Carros, liteiras douradas,cavalos de crina aberta.A água a transbordar das fontes.Altares cheios de velas.Cavalhadas. Luminárias.Sinos, procissões, promessas.Anjos e santos nascendo em mãos de gangrena e lepra.Finas músicas broslando as alfaias das capelas.Todos os sonhos barrocosdeslizando pelas pedras.Pátios de seixos. Escadas.Boticas. Pontes. Conversas.Gente que chega e que passa.E as idéias.Amplas casas. Longos muros.Vida de sombras inquietas.Pelos cantos da alcovas,histerias de donzelas.

Lamparinas, oratórios,bálsamos, pílulas, rezas.Orgulhosos sobrenomes.Intrincada parentela.No batuque das mulatas,a prosápia degenera:pelas portas dos fidalgos, na lã das noites secretas,meninos recém-nascidoscomo mendigos esperam.Bastardias. Desavenças.Emboscadas pela treva.Sesmarias, salteadores.Emaranhadas invejas.O clero. A nobreza. O povo.E as idéias.E as mobílias de cabiúna.E as cortinas amarelas.Dom José. Dona Maria.Fogos. Mascaradas. Festas.Nascimentos. Batizados.Palavras que se interpretamnos discursos, nas saúdes . . .Visitas. Sermões de exéquias.Os estudantes que partem.Os doutores que regressam.(Em redor das grandes luzes,há sempre sombras perversas.Sinistros corvos espreitampelas douradas janelas.)E há mocidade! E há prestígio.E as idéias.As esposas preguiçosasna rede embalando as sestas.Negras de peitos robustosque os claros meninos cevam.Arapongas, papagaios, passarinhos da floresta.Essa lassidão do tempoentre imbaúbas, quaresmas,cana, milho, bananeirase a brisa que o riacho encrespa.Os rumores familiaresque a lenta vida atravessam:elefantíase; partos;sarna; torceduras; quedas;sezões; picadas de cobras;sarampos e erisipelas . . .Candombeiros. Feiticeiros.Ungüentos. Emplastos. Ervas.Senzalas. Tronco. Chibata.Congos. Angolas. Benguelas.Ó imenso tumulto humano!E as idéias.Banquetes. Gamão. Notícias.Livros. Gazetas. Querelas.Alvarás. Decretos. Cartas.A Europa a ferver em guerras.Portugal todo de luto:triste Rainha o governa!Ouro! Ouro! Pedem mais ouro!

E sugestões indiscretas:Tão longe o trono se encontra!Quem no Brasil o tivera!Ah, se Dom José IIpõe a coroa na testa!Uns poucos de americanos,por umas praias desertas,já libertaram seu povoda prepotente Inglaterra!Washington. Jefferson. Franklin.(Palpita a noite, repletade fantasmas, de presságios . . .)E as idéias.Doces invenções da Arcádia!Delicada primavera:pastoras, sonetos, liras,— entre as ameaças austerasde mais impostos e taxasque uns protelam e outros negam.Casamentos impossíveis.Calúnias. Sátiras. Essapaixão da mediocridadeque na sombra se exaspera.E os versos de asas douradas,que amor trazem e amor levam . . .Anarda. Nise. Marília . . .As verdades e as quimeras.Outras leis, outras pessoas.Novo mundo que começa.Nova raça. Outro destino.Planos de melhores eras.E os inimigos atentos,que, de olhos sinistros, velam.E os aleives. E as denúncias.E as idéias.

Coliseu

Cem mil pupilas houve:— cem mil pupilas fitas na arena.Os olhos do Imperador, dos patrícios,dos soldados, da plebe.Os olhos da mulher formosa que os poetas cantaram.E os olhos da fera acossada,do lado oposto.Os olhos que ainda brilham fulvos,agora, na eternidade igual de todos.Cem mil pupilas:— ilustres, insensatas, ferozes, melancólicas,vagas, severas, lânguidas . . .Cem mil pupilas vêem-se, na poeira da pedra deserta.Entre corredores e escadas,o cavo abismo do úmido subsoloexala os soturnos prazeres da antiguidade:Um vozeiro arcaico vem saindo da sombra,— ó duras vozes romanas! —um quente sangue vem golfando,— ó negro sangue das feras!um grande aroma cruel se arredonda nas curvas pedras.— Ó surdo nome trêmulo da morte!

(Não cairão jamais estas paredes,pregadas com este sangue e este rugido,a garra tensa, a goela arqueada em vácuo,as cordas do humano pasmo sobre o último estertor . . .)Cem mil pupilas ficam aqui,pregadas nas pedras do tempo,manchadas de fogo e morte,no fim do dia trágico,depois daquela ávida e acesa coincidênciaquando convergiram nesta arena de angústia,que hoje é pó e silêncio, esboroada solidão.(As pregas dos vestidos deslizaram, frágeis.E os sorrisos perderam-se, fúteis.Sobre o enorme espetáculo, que foi o aroma dos cosméticos?)

Presença em Pompéia

Esta conta não pagarás:— ficará sob uma cinza que não sabes.Sob a cinza que ainda não sabesficará teu filho por nascere também os meninos que já sabiam desenhar nos muros.Ficarão os figos que ontem puseste na cesta.Ficarão as pinturas da tua salae as plantas do teu jardim, de estátuas felizes,sob a cinza que não sabes.Os gladiadores anunciados não lutarãoe amanhã não verás, próximo às termas,a mulher que desejavas.Tu ficarás com a chave da tua porta na mão;tu, com o rosto da amada no peito;amo e servo se unirão, no mesmo grito;os cães se debaterão com mordaças de lava;a mão não poderá encontrar a parede;os olhos não poderão ver a rua.As cinzas que não sabes voarão sobre Apolo e Ísis.É uma noite ardente, a que se prepara,enquanto a luz contorna a coluna e o jato d'água:— a luz do sol que afaga pela última vez as roseiras verdes.

Noturno

Quem tem coragem de perguntar, na noite imensa?E que valem as árvores, as casas, a chuva, o pequeno transeunte?Que vale o pensamento humano,esforçado e vencido,na turbulência das horas?Que valem a conversa apenas murmurada, a erma ternura, os delicados adeuses?Que valem as pálpebras da tímida esperança,orvalhadas de trêmulo sal?O sangue e a lágrima são pequenos cristais sutis,no profundo diagrama.E o homem tão inutilmente pensante e pensadosó tem a tristeza para distingui-lo.Porque havia nas úmidas paragensanimais adormecidos, com o mesmo mistério humano:grandes como pórticos, suaves como veludo,

mas sem lembranças históricas, sem compromissos de viver.Grandes animais sem passado, sem antecedentes,puros e límpidos,apenas com o peso do trabalho em seus poderosos flancose noções de água e de primavera nas tranqüilas narinase na seda longa das crinas desfraldadas.Mas a noite desmanchava-se no oriente,cheia de flores amarelas e vermelhas.E os cavalos erguiam, entre mil sonhos vacilantes,erguiam no ar a vigorosa cabeça,e começavam a puxar as imensas rodas do dia.Ah! o despertar dos animais no vasto campo!Este sair do sono, este continuar da vida!O caminho que vai das pastagens etéreas da noiteao claro dia da humana vassalagem!

Mapa de anatomia: o olho

O Olho é uma espécio de globo,é um pequeno planetacom pinturas do lado de fora.Muitas pinturas:azuis, verdes, amarelas.É um globobrilhante:parece cristal,é como um aquário com plantasfinamente desenhadas: algas, sargaços,miniaturas marinhas, areias, rochas, naufrágios e peixes de ouro.Mas por dentro há outras pinturas,que não se vêem:umas são imagens do mundo,outras são invetadas.O Olho é um teatro por dentro.E às vezes, sejam atores, sejam cenas,e às vezes, sejam imagens, sejam ausências,formam, no Olho, lágrimas.

O mosquito escreve

O Mosquito pernilongotrança as pernas, faz um M,depois, treme, treme, treme,faz um O bastante oblongo,faz um S.O mosquito sobe e desce.Com artes que ninguém vê,faz um Q,faz um U e faz um I.Esse mosquitoesquisitocruza as patas, faz um T.E aí, se arredonda e faz outro O,mais bonito.Oh!já não é analfabeto,esse inseto,pois sabe escrever o seu nome.

Mas depois vai procuraralguém que possa picar,pois escrever cansa,não é, criança?E ele está com muita fome.

(in Ou isto ou aquilo)

O canteiro está molhado

O canteiro está molhado. Trarei flores do canteiro,Para cobrir o teu sono.Dorme, dorme, a chuva desce, Molha as flores do canteiro.Noite molhada de chuva,Sem vento, nem ventania,Noite de mar e lembranças..."

É preciso não esquecer nada

É preciso não esquecer nada: nem a torneira aberta nem o fogo aceso, nem o sorriso para os infelizes nem a oração de cada instante. É preciso não esquecer de ver a nova borboleta nem o céu de sempre. O que é preciso é esquecer o nosso rosto, o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso. O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos, a idéia de recompensa e de glória. O que é preciso é ser como se já não fôssemos, vigiados pelos próprios olhos severos conosco, pois o resto não nos pertence.

(1962)

Mário Quintana

Os poemas

Os poemas são pássaros que chegamnão se sabe de onde e pousamno livro que lês.Quando fechas o livro, eles alçam vôocomo de um alçapão.Eles não têm pousonem portoalimentam-se um instante em cada par de mãose partem.E olhas, então, essas tuas mãos vazias,no maravilhoso espanto de saberesque o alimento deles já estava em ti...

in: Esconderijos do tempo. Porto Alegre: L&PM,1980.

Espelho

Por acaso, surpreendo-me no espelho:Quem é esse que me olha e é tão mais velho que eu? (...) Parece meu velho pai - que já morreu! (...)Nosso olhar duro interroga:"O que fizeste de mim?" Eu pai? Tu é que me invadiste.Lentamente, ruga a ruga... Que importa!Eu sou ainda aquele mesmo menino teimoso de sempreE os teus planos enfim lá se foram por terra,Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!Vi sorrir nesses cansados olhos um orgulho triste..."

A rua dos cataventos

Da vez primeira em que me assassinaram,Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.Depois, a cada vez que me mataram,Foram levando qualquer coisa minha.

Hoje, dos meu cadáveres eu souO mais desnudo, o que não tem mais nada.Arde um toco de Vela amarelada,Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!Pois dessa mão avaramente aduncaNão haverão de arracar a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!Que a luz trêmula e triste como um ai,A luz de um morto não se apaga nunca!

Poema da gare de Astapovo

O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anosE foi morrer na gare de Astapovo!Com certeza sentou-se a um velho banco,

Um desses velhos bancos lustrosos pelo usoQue existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundoContra uma parede nua...Sentou-se ...e sorriu amargamentePensando queEm toda a sua vidaApenas restava de seu a Gloria,Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhasColoridasNas mãos esclerosadas de um caduco!E entao a Morte,Ao vê-lo tao sozinho aquela horaNa estação deserta,Julgou que ele estivesse ali a sua espera,Quando apenas sentara para descansar um pouco!A morte chegou na sua antiga locomotiva(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...)Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,E quem sabe se ate não morreu feliz: ele fugiu...Ele fugiu de casa...Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade...Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!

Das utopias

Se as coisas são inatingíveis... ora!

não é motivo para não quere-las...

Que tristes os caminhos, se não fora

a magica presença das estrelas!

O mapa

Olho o mapa da cidadeComo quem examinasseA anatomia de um corpo...

(E nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinitaDas ruas de Porto AlegreOnde jamais passarei...

Ha tanta esquina esquisita,Tanta nuança de paredes,Ha tanta moca bonitaNas ruas que não andei(E ha uma rua encantadaQue nem em sonhos sonhei...)

Quando eu for, um dia desses,Poeira ou folha levadaNo vento da madrugada,Serei um pouco do nadaInvisível, delicioso

Que faz com que o teu ar

Pareça mais um olhar,Suave mistério amoroso,Cidade de meu andar(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso...

Da inquieta esperança

Bem sabes Tu, Senhor, que o bem melhor é aquele

Que não passa, talvez, de um desejo ilusório.

Nunca me dê o Céu... quero é sonhar com ele

Na inquietação feliz do Purgatório.

Dos milagres

O milagre não é dar vida ao corpo extinto,

Ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo...

Nem mudar água pura em vinho tinto...

Milagre é acreditarem nisso tudo!

Dos nossos males

A nós bastem nossos próprios ais,

Que a ninguém sua cruz é pequenina.

Por pior que seja a situação da China,

Os nossos calos doem muito mais...

A verdadeira arte de viajar

A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa,Como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo.\Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali...Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando!

in A cor do invisível

O luar

O luar,é a luz do Sol que está sonhando

O tempo não pára!A saudade é que faz as coisas pararem no tempo...

...os verdadeiros versos não são para embalar, mas para abalar...

A grande tristeza dos rios é não poderem levar a tua imagem...

Trova

Coração que bate-bate...Antes deixes de bater!Só num relógio é que as horasVão passando sem sofrer.

Tão linda e serena e bela

Tão lenta e serena e bela e majestosa[vai passando a vaca Que, se fora na manhã dos tempos, de rosas a coroariaA vaca natural e simples como a primeira cançãoA vaca, se cantasse,Que cantaria?Nada de óperas, que ela não é dessas, não!Cantaria o gosto dos arroios bebidos de madrugada,Tão diferente do gosto de pedra do meio-dia!Cantaria o cheiro dos trevos machucados.Ou, quando muito,A longa, misteriosa vibração dos alambrados...Mas nada de superaviões, tratores, êmbolosE outros truques mecânicos!

Se eu fosse um padre

Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,não falaria em Deus nem no Pecado- muito menos no Anjo Rebeladoe os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:nada das suas celestiais promessasou das suas terríveis maldições...Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

Rezaria seus versos, os mais belos,desses que desde a infância me embalarame quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma... a um belo poema - ainda que de Deus se aparte -um belo poema sempre leva a Deus!

Bilhete

Se tu me amas, ama-me baixinhoNão o grites de cima dos telhadosDeixa em paz os passarinhosDeixa em paz a mim!Se me queres,enfim,tem de ser bem devagarinho, Amada,que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...

Canção da garoa

Em cima do telhadoPirulin lulin lulin,Um anjo, todo molhado,Soluça no seu flautim.

O relógio vai bater:As molas rangem sem fim.O retrato na paredeFica olhando para mim.

E chove sem saber porquêE tudo foi sempre assim!Parece que vou sofrer:Pirulin lulin lulin...

Ritmo

Na porta a varredeira varre o ciscovarre o ciscovarre o cisco

Na piaa menininha escova os dentesescova os dentesescova os dentes

No arroioa lavadeira bate roupabate roupabate roupa

até que enfim se desenrola a corda todae o mundo gira imóvel como um pião!

Carlos Drummond de Andrade

Receita de ano novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo cor do arco-íris, ou da cor da sua paz, Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido (mal vivido talvez ou sem sentido) para você ganhar um ano não apenas pintado de novo, remendado às carreiras, mas novo nas sementinhas do vir-a-ser; novo até no coração das coisas menos percebidas (a começar pelo seu interior) novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota, mas com ele se come, se passeia, se ama, se compreende, se trabalha, você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita, não precisa expedir nem receber mensagens (planta recebe mensagens? passa telegramas?)

Não precisa fazer lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta. Não precisa chorar arrependido pelas besteiras consumidas nem parvamente acreditar que por decreto de esperança a partir de janeiro as coisas mudem e seja tudo claridade, recompensa, justiça entre os homens e as nações, liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, direitos respeitados, começando pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.

Não passou

Passou?Minúsculas eternidadesdeglutidas por mínimos relógiosressoam na mente cavernosa.

Não, ninguém morreu, ninguém foi infeliz.A mão- a tua mão, nossas mãos-rugosas, têm o antigo calorde quando éramos vivos. Éramos?

Hoje somos mais vivos do que nunca.Mentira, estarmos sós.

Nada, que eu sinta, passa realmente.É tudo ilusão de ter passado.

Acordar, viver

Como acordar sem sofrimento?Recomeçar sem horror?O sono transportou-meàquele reino onde não existe vidae eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,a fábula inconclusa,suportar a semelhança das coisas ásperasde amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridasque rasga em mim o acontecimento,qualquer acontecimentoque lembra a Terra e sua púrpurademente?E mais aquela ferida que me inflijoa cada hora, algozdo inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.

A um ausente

Tenho razão de sentir saudade,tenho razão de te acusar.Houve um pacto implícito que rompestee sem te despedires foste embora.Detonaste o pacto.Detonaste a vida geral, a comum aquiescênciade viver e explorar os rumos de obscuridadesem prazo sem consulta sem provocaçãoaté o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.Que poderias ter feito de mais grave do que o ato sem continuação, o ato em si,o ato que não ousamos nem sabemos ousarporque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,de nossa convivência em falas camaradas,simples apertar de mãos, nem isso, vozmodulando sílabas conhecidas e banaisque eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.Sim, acuso-te porque fizesteo não previsto nas leis da amizade e da naturezanem nos deixaste sequer o direito de indagarporque o fizeste, porque te foste.

Hino nacional

Precisamos descobrir o Brasil!Escondido atrás as florestas,com a água dos rios no meio, o Brasil está dormindo, coitado.Precisamos colonizar o Brasil.

O que faremos importando francesasmuito louras, de pele macia, alemãs gordas, russas nostálgicas paragarçonetes dos restaurantes noturnos.E virão sírias fidelíssimas.Não convém desprezar as japonesas...

Precisamos educar o Brasil.Compraremos professores e livros, assimilaremos finas culturas, abriremos dancings e subvencionaremos as elites.

Cada brasileiro terá sua casacom fogão e aquecedor elétricos, piscina, salão para conferências científicas.E cuidaremos do Estado Técnico.

Precisamos louvar o Brasil.Não é só um país sem igual.Nossas revoluções são bem maioresdo que quaisquer outras; nossos erros também.E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões...os Amazonas inenarráveis... os incríveis João-Pessoas...

Precisamos adorar o Brasil!Se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.

Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.O Brasil não nos quer! Está farto de nós!Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?

Eduardo Alves da Costa

Quanto a mim, sonharei com Portugal

Às vezes, quandoestou triste e há silêncionos corredores e nas veias, vem-me um desejo de voltara Portugal. Nunca lá estive, é certo, como tambémé certo meu coração, em dias tais, ser um deserto.

Poema que aconteceu

Nenhum desejo neste domingonenhum problema nesta vidao mundo parou de repenteos homens ficaram caladosdomingo sem fim nem começo.

A mão que escreve este poemanão sabe o que está escrevendomas é possível que se soubessenem ligasse.

Poesia

Gastei uma hora pensando em um versoque a pena não quer escrever.No entanto ele está cá dentroinquieto, vivo. Ele está cá dentroe não quer sair.Mas a poesia deste momentoinunda minha vida inteira.

Poema de sete faces

Quando nasci, um anjo tortodesses que vivem na sombradisse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homensque correm atrás de mulheres.A tarde talvez fosse azul,não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:pernas brancas pretas amarelas.Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.Porém meus olhosnão perguntam nada.

O homem atrás do bigodeé sério, simples e forte.Quase não conversa.Tem poucos , raros amigoso homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonastese sabias que eu não era Deusse sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundose eu me chamasse Raimundo,seria uma rima, não seria uma solução.Mundo mundo vasto mundo,mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer

mas essa luamas esse conhaquebotam a gente comovido como o diabo.

Itabira

Cada um de nós tem seu pedaço no pico do CauêNa cidade toda de ferroas ferraduras batem como sinos.Os meninos seguem para a escola.Os homens olham para o chão.Os ingleses compram a mina.

Só, na porta da venda, Tutu caramujo cisma naderrota incomparável.

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedratinha uma pedra no meio do caminhotinha uma pedrano meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimentona vida de minhas retinas tão fatigadas.Nunca me esquecerei que no meio do caminhotinha uma pedraTinha uma pedra no meio do caminhono meio do caminho tinha uma pedra.

Poema do jornal

O fato ainda não acabou de acontecere já a mão nervosa do repórtero transforma em notícia.O marido está matando a mulher.A mulher ensangüentada grita.Ladrões arrombam o cofre.A polícia dissolve o meeting.A pena escreve.

Vem da sala de linotipos a doce música mecânica.

Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundoque amava Maria que amava Joaquim que amava Lilique não amava ninguém.João foi para o Estados Unidos, Teresa para o convento,Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. PintoFernandesque não tinha entrado na história.

Poema da purificação

Depois de tantos combateso anjo bom matou o anjo maue jogou seu corpo no rio.

As água ficaram tintasde um sangue que não descoravae os peixes todos morreram.

Mas uma luz que ninguém soubedizer de onde tinha vindoapareceu para clarear o mundo,e outro anjo pensou a feridado anjo batalhador.

José

E agora, José?A festa acabou,a luz apagou,o povo sumiu,a noite esfriou,e agora, José?e agora, Você?Você que é sem nome,que zomba dos outros,Você que faz versos,que ama, proptesta?e agora, José?

Está sem mulher,está sem discurso,está sem carinho,já não pode beber,já não pode fumar,cuspir já não pode,a noite esfriou,o dia não veio,o bonde não veio,o riso não veio,não veio a utopiae tudo acaboue tudo fugiue tudo mofou,e agora, José?

E agora, José?sua doce palavra,seu instante de febre,sua gula e jejum,sua biblioteca,sua lavra de ouro,seu terno de vidro,sua incoerência,seu ódio, - e agora?

Com a chave na mão quer abrir a porta,não existe porta;quer morrer no mar,mas o mar secou;quer ir para Minas,Minas não há mais.José, e agora?

Se você gritasse,se você gemesse,se você tocasse,a valsa vienense,se você dormisse,se você consasse,se você morresse....Mas você não morre,você é duro, José!

Sozinho no escuroqual bicho-do-mato,sem teogonia,sem parede nuapara se encostar,sem cavalo pretoque fuja do galope,você marcha, José!José, para onde?

O mundo é grande

O mundo é grande e cabenesta janela sobre o mar.O mar é grande e cabena cama e no colchão de amar.O amor é grande e cabeno breve espaço de beijar.

Mãos dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.Também não cantarei o mundo futuro.Estou preso à vida e olho meus companheirosEstão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.Entre eles, considere a enorme realidade.O presente é tão grande, não nos afastemos.Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.Não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,a vida presente.

Diante das fotos de Evandro Teixeira

A pessoa, o lugar, o objetoestão espostos e escondidosao mesmo tempo so a luz,e dois olhos não ão bastantespara captar o que se ocultano rápido florir de um gesto.

É preciso que a lente mágicaenriqueça a visão humanae do real de cada coisaum mais seco real extraiapara que penetremos fundono puro enigma das figuras.

Fotografia - é o codinomeda mais aguda percepçãoque a nós mesmos nos vai mostrandoe da evanescência de tudo,edifica uma penanência,cristal do tempo no papel.

Das luas de rua no Rioem 68, que nos restamais positivo, mais queimantedo que as fotos acusadoras,tão vivas hoje como então,a lembrar como a exorcizar?

Marcas de enchente e do despejo,o cadáver inseputável,o colchão atirado ao vento,a lodosa, podre favela,o mendigo de Nova Yorka moça em flor no Jóquei Clube,

Garrincha e nureyev, dançade dois destinos, mães-de-santona praia-templo de Ipanema,a dama estranha de Ouro Preto,a dor da América Latina,mitos não são, pois são fotos.

Fotografia: arma de amor,de justiça e conhecimento,pelas sete partes do mundoa viajar, a surpreendera tormentosa vida do homeme a esperança a brotar das cinzas.

O que Alécio vê

A voz lhe disse ( uma secreta voz):- Vai, Alécio, ver.Vê e reflete o visto, e todos captempor seu olhar o sentimento das formasque é o sentimento primeiro - e último - da vida.

E Alécio vai e vêo natural das coisas e das gentes,o dia, em sua novidade não sabida,

a inaugurar-se todas as manhãs,o cão, o parque, o traço da passagemdas pessoas na rua, o idíliojamais extinto sob as ideologias,a graça umbilical do nu feminino,conversas de café, imagensde que a vida flui como o Sena ou o São Franciscopara depositar-se numa folhasobre a pedra do caisou para sorrir nas telas clássicas de museuque se sabem contempladaspela tímida (ou arrogante) desinformação das visitas,ou aindapara dispersar-se e concentrar-seno jogo eterno das crianças.

Ai, as crianças... Para elas,há um mirante iluminado no olhar de Alécioe sua objetiva.(Mas a melhor objetiva não serão os olhos líricos de Alécio?)Tudo se resume numa fontee nas três menininhas peladas que a contemplam,soberba, risonha, puríssima foto-escultura de Alécio de Andrade,hino matinal à criaçãoe a continuação do mundo em esperança.

A bomba

A bombaé uma flor de pânico apavorando os floricultoresA bombaé o produto quintessente de um laboratório falidoA bombaé estúpida é ferotriste é cheia de rocambolesA bombaé grotesca de tão metuenda e coça a pernaA bombadorme no domingo até que os morcegos esvoacemA bombanão tem preço não tem lugar não tem domicílioA bombaamanhã promete ser melhorzinha mas esqueceA bombanão está no fundo do cofre, está principalmente onde não estáA bomba mente e sorri sem denteA bombavai a todas as conferências e senta-se de todos os ladosA bombaé redonda que nem mesa redonda, e quadradaA bombatem horas que sente falta de outra para cruzarA bombamultiplica-se em ações ao portador e portadores sem açãoA bombachora nas noites de chuva, enrodilha-se nas chaminésA bombafaz week-end na Semana SantaA bombatem 50 megatons de algidez por 85 de ignomínia

A bombaindustrializou as térmites convertendo-as em balísticos interplanetáriosA bombasofre de hérnia estranguladora, de amnésia, de mononucleose, de verborréiaA bombanão é séria, é conspicuamente tediosaA bombaenvenena as crianças antes que comece a nascerA bombacontinua a envenená-las no curso da vidaA bombarespeita os poderes espirituais, os temporais e os taisA bombapula de um lado para outro gritando: eu sou a bombaA bombaé um cisco no olho da vida, e não saiA bombaé uma inflamação no ventre da primaveraA bombatem a seu serviço música estereofônica e mil valetes de ouro, cobalto e ferro além da comparsariaA bombatem supermercado circo biblioteca esquadrilha de mísseis, etc.A bombanão admite que ninguém acorde sem motivo graveA bombaquer é manter acordados nervosos e sãos, atletas e paralíticosA bombamata só de pensarem que vem aí para matarA bombadobra todas as línguas à sua turva sintaxeA bombasaboreia a morte com marshmallowA bombaarrota impostura e prosopéia políticaA bombacria leopardos no quintal, eventualmente no livingA bombaé podreA bombagostaria de ter remorso para justificar-se mas isso lhe é vedadoA bombapediu ao Diabo que a batizasse e a Deus que lhe validasse o batismoA bomba declare-se balança de justiça arca de amor arcanjo de fraternidadeA bombatem um clube fechadíssimoA bombapondera com olho neocrítico o Prêmio NobelA bombaé russamenricanenglish mas agradam-lhe eflúvios de ParisA bombaoferece de bandeja de urânio puro, a título de bonificação, átomos de pazA bombanão terá trabalho com as artes visuais, concretas ou tachistasA bombadesenha sinais de trânsito ultreletrônicos para proteger velhos e criancinhas

A bombanão admite que ninguém se dê ao luxo de morrer de câncerA bombaé câncerA bombavai à Lua, assovia e voltaA bombareduz neutros e neutrinos, e abana-se com o leque da reação em cadeiaA bombaestá abusando da glória de ser bombaA bombanão sabe quando, onde e porque vai explodir, mas preliba o instante inefávelA bombafedeA bombaé vigiada por sentinelas pávidas em torreões de cartolinaA bombacom ser uma besta confusa dá tempo ao homem para que se salveA bombanão destruirá a vidaO homem(tenho esperança) liquidará a bomba.

As sem-razões do amor

Eu te amo porque te amo,Não precisas ser amante,e nem sempre sabes sê-lo.Eu te amo porque te amo.Amor é estado de graçae com amor não se paga.

Amor é dado de graça,é semeado no vento,na cachoeira, no eclipse.Amor foge a dicionáriose a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amobastante ou demais a mim.Porque amor não se troca,não se conjuga nem se ama.Porque amor é amor a nada,feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,e da morte vencedor,por mais que o matem (e matam)a cada instante de amor.

Murilo Mendes

Reflexão n°.1

Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonhoNinguém se banha duas vezes no mesmo rioNem ama duas vezes a mesma mulher.Deus de onde tudo derivaE a circulação e o movimento infinito.

Ainda não estamos habituados com o mundoNascer é muito comprido.

Gilda

Não ponha o nome de Gilda na sua filha, coitada,Se tem filha pra nascer Ou filha pra batisar.Minha mãe se chama Gilda,Não se casou com meu pai.Sempre lhe sobra desgraça,Não tem tempo de escolher.Também eu me chamo Gilda,E, pra dizer a verdadeSou pouco mais infeliz.Sou menos do que mulher,Sou uma mulher qualquer.Ando à-toa pelo mundo.Sem força pra me matar.Minha filha é também Gilda,Pro costume não perderÉ casada com o espelhoE amigada com o José.Qualquer dia Gilda fogeOu se mata em PaquetáCom José ou sem José.Já comprei lenço de rendaPra chorar com mais apuroE aos jornais telefonei.Se Gilda enfim não morrer,Se Gilda tiver uma filhaNão põe o nome de Gilda,Na menina, que não deixo.Quem ganha o nome de GildaVira Gilda sem querer.Não ponha o nome de GildaNo corpo de uma mulher.

O utopista

Ele acredita que o chão é duroQue todos os homens estão presosQue há limites para a poesiaQue não há sorrisos nas criançasNem amor nas mulheres

Que só de pão vive o homemQue não há um outro mundo.

A mãe do primeiro filho

Carmem fica matutando no seu corpo já passado.

— Até à volta, meu seioDe mil novecentos e doze.Adeus, minha perna lindaDe mil novecentos e quinze.Quando eu estava no colégioMeu corpo era bem diferente.Quando acabei o namoroMeu corpo era bem diferente.Quando um dia me caseiMeu corpo era bem diferente.Nunca mais eu hei de verMeus quadris do ano passado...

A tarde já madurouE Carmem fica pensando.

O filho do século

Nunca mais andarei de bicicletaNem conversarei no portãoCom meninas de cabelos cacheadosAdeus valsa "Danúbio Azul"Adeus tardes preguiçosasAdeus cheiros do mundo sambasAdeus puro amorAtirei ao fogo a medalhinha da VirgemNão tenho forças para gritar um grande gritoCairei no chão do século vinteAguardem-me lá foraAs multidões famintas justiceirasSujeitos com gases venenososÉ a hora das barricadasÉ a hora da fuzilamento, da raiva maiorOs vivos pedem vingançaOs mortos minerais vegetais pedem vingançaÉ a hora do protesto geralÉ a hora dos vôos destruidoresÉ a hora das barricadas, dos fuzilamentosFomes desejos ânsias sonhos perdidos, Misérias de todos os países uni-vosFogem a galope os anjos-aviõesCarregando o cálice da esperançaTempo espaço firmes porque me abandonastes.

Cantiga de Malazarte

Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo,ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.Não desprezo nada que tenha visto,

todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,destelho as casas penduradas na terra,tiro os cheiros dos corpos das meninas sonhando.Desloco as consciências,a rua estala com os meus passos,e ando nos quatro cantos da vida.Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido,não posso amar ninguém porque sou o amor, tenho me surpreendido a cumprimentar os gatose a pedir desculpas ao mendigo.Sou o espírito que assiste à Criaçãoe que bole em todas as almas que encontra.Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo.Nada me fixa nos caminhos do mundo.

Modinha do empregado de banco

Eu sou triste como um prático de farmácia,sou quase tão triste como um homem que usa costeletas.Passo o dia inteiro pensando nuns carinhos de mulhermas só ouço o tectec das máquinas de escrever.

Lá fora chove e a estátua de Floriano fica linda.Quantas meninas pela vida afora!E eu alinhando no papel as fortunas dos outros.Se eu tivesse estes contos punha a andara roda da imaginação nos caminhos do mundo.E os fregueses do Bancoque não fazem nada com estes contos!Chocam outros contos para não fazerem nada com eles.

Também se o diretor tivesse a minha imaginaçãoo Banco já não existiria maise eu estaria noutro lugar.

Pré-história

Mamãe vestida de rendasTocava piano no caos.Uma noite abriu as asasCansada de tanto som,Equilibrou-se no azul,De tonta não mais olhouPara mim, para ninguém!Cai no álbum de retratos.

A tesoura de Toledo

Com seus elementos de Europa e África,Seu corte, inscrição e esmalte,A tesoura de ToledoAlude às duas Espanhas.Duas folhas que se encaixam,Se abrem, se desajustam,Medem as garras afiadas:Finura e rudeza de Espanha,

Rigor atento ao real,Silêncio espreitante, feroz,Silêncio de metal agindo,Aguda obstinaçãoEm situar o concreto,Em abrir e fechar o espaço,Talhando simultaneamenteEuropa e África,Vida e morte.

Canção do exílio

Minha terra tem macieiras da Califórniaonde cantam gaturamos de Veneza.Os poetas da minha terrasão pretos que vivem em torres de ametista,os sargentos do exército são monistas, cubistas,os filósofos são polacos vendendo a prestações.A gente não pode dormircom os oradores e os pernilongos.Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.Eu morro sufocadoem terra estrangeira.Nossas flores são mais bonitasnossas frutas mais gostosasmas custam cem mil réis a dúzia.

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdadee ouvir um sabiá com certidão de idade!

Canto a García Lorca

Não basta o sopro do ventoNas oliveiras desertas,O lamento de água ocultaNos pátios da Andaluzia.

Trago-te o canto poroso,O lamento conscienteDa palavra à outra palavraQue fundaste com rigor.

O lamento substantivoSem ponto de exclamação:Diverso do rito antigo,Une a aridez ao fervor,

Recordando que soubesteDefrontar a morte secaVinda no gume certeiroDa espada silenciosaFazendo irromper o jacto

De vermelho: cor do mitoCriado com a força humanaEm que sonho e realidadeAjustam seu contraponto.

Consolo-me da tua morte.Que ela nos elucidouTua linguagem corporalOnde el duende é alimentadoPelo sal da inteligência,Onde Espanha é calculadaEm número, peso e medida.

Cartão postal

Domingo no jardim público pensativo.Consciências corando ao sol nos bancos,bebês arquivados em carrinhos alemãesesperam pacientemente o dia em que poderão ler o Guarani.Passam braços e seios com um jeitãoque se Lenine visse não fazia o Soviete.Marinheiros americanos bêbedosfazem pipi na estátua de Barroso,portugueses de bigode e corrente de relógioabocanham mulatas.

O sol afunda-se no ocasocomo a cabeça daquela menina sardentana almofada de ramagens bordadas por Dona Cocota Pereira.

Corte transversal do poema

A música do espaço pára, a noite se divide em dois pedaços.Uma menina grande, morena, que andava na minha cabeça,fica com um braço de fora.Alguém anda a construir uma escada pros meus sonhos.Um anjo cinzento bate as asasem torno da lâmpada.Meu pensamento desloca uma perna,o ouvido esquerdo do céu não ouve a queixa dos namorados.Eu sou o olho dum marinheiro morto na Índia,um olho andando, com duas pernas.O sexo da vizinha espera a noite se dilatar, a força do homem.A outra metade da noite foge do mundo, empinando os seios.Só tenho o outro lado da energia,me dissolvem no tempo que virá, não me lembro mais quem sou.

Elegia de Taormina

A dupla profundidade do azulSonda o limite dos jardinsE descendo até à terra o transpõe.Ao horizonte da mão ter o EtnaConsiderado das ruínas do templo grego,Descansa.

Ninguém recebe conscientementeO carisma do azul.Ninguém esgota o azul e seus enigmas.

Armados pela história, pelo século,Aguardando o desenlace do azul, o desfecho da bomba,

Nunca mais distinguiremosBeleza e morte limítrofes.Nem mesmo debruçados sobre o mar de Taormina.

Ó intolerável beleza,Ó pérfido diamante,Ninguém, depois da iniciação, duraNo teu centro de luzes contrárias.

Sob o signo trágico vivemos,Mesmo quando na alegriaO pão e o vinho se levantam.Ó intolerável belezaQue sem a morte se oculta.

Grafito numa cadeira

Cadeira operada dos braçosFundamental que nem osso

Não poltrona com pés de metalKnollOu projetada por um sub-Moholy NagyCom nota didascálica

Antes cadeira no duroCadeira de madeiraAnônimaInânimeUnânimeCadeira quadrúpede

Não aguardasNenhuma "iluminação" particularNem assento e clavícula de nenhuma deusaQue te percutisse — gong —Nem de nenhum Van GoghQue súbito te tornasseEterna

Roma, 1964

Grafito para Ipólita

1

A tarde consumada, Ipólita desponta.

Ipólita, a putain do fim da infância.Nascera em Juiz de Fora, a família em Ferrara.

Seus passos feminantes fundam o timbre.Marcha, parece, ao som do gramofone.

A cabeleira-púbis, perturbante.Os dedos prolongados em estiletes.

Os lábios escandindo a marselhesaDo sexo. Os dentes mordem a matéria.

O olho meduseu sacode o espaço.O corpo transmitindo e recebendo

O desejo o chacal a praga o solferino.Pudesse eu decifrar sua íntima praça!

Expulsa o sol-e-dó, a professora, o íconeSó de vê-la passar, meu sangue inobre

Desata as rédeas ao cavalo interno.

2

Quando tarde a revejo, rio usado,Já a morte lhe prepara a ferramenta.

Deixa o teatro, a matéria fecal.Pudesse eu libertar seu corpo (Minha cruzada!)

Quem sabe, agora redescobre o visoDa sua primeira estrela, esquartejada.

3

Por ela meus sentidos progrediram.Por ela fui voyeur antes do tempo.

4

O dia emagreceu. Ipólita desponta.Roma 1965

Guernica

Subsiste, Guernica, o exemplo macho,Subsiste para sempre a honra castiça,A jovem e antiga tradição do carvalhoQue descerra o pálio de diamante.

A força do teu coração desencadeadoContactou os subterrâneos de Espanha.E o mundo da lucidez a recebeu:O ar voa incorporando-se teu nome.

Homenagem a Oswaldo Goeldi

Oswaldo gravas:A ti mesmo fiel, ao teu ofício,Gravas a pobreza, o vento, a dissonância,A rude comunhão dos homens no trabalho.Gravas o abandonado, o triste, o único,

O peixe que te mira quase humano— É hora de morrer —No preto e branco, no vermelho e verde.Qualquer traço perdido,A casa que espia pelo olho-de-boiTestemunha de drama anônimo.Gravas a nuvem, o balaio,O geleiro e seus estilhaços.O choque em diagonal de guarda-chuvas,Tudo o que é rejeitado, elementos marginais,A metade dum astro que se despeAmado só do penúltimo vadio.Oswaldo gravas,Gravas qualquer solidão.Os peixeiros que partilham peixe e onda,Pássaros de solidões de água e mato,O sinaleiro do temporal próximo,A barca puxada pela sirga,O bêbedo e seu solilóquio,A chuva e seus túneis,O mergulho em tesoura da gaivota.És do sol posto, da esquina,Do Leblon e do uivo da noite.Não sujeitas o desenho à gravação:Liberaste as duas forças.Atingindo agora a unidade,Pela natureza visionáriaE pelo severo ofícioA tortura dominando,Silêncio e solidãoOswaldo gravas.

Joan Miró

Soltas a sigla, o pássaro, o losango.Também sabes deixar em liberdadeO roxo, qualquer azul e o vermelho.Todas as cores podem aproximar-seQuando um menino as conduz no solE cria a fosforescência:A ordem que se desintegraForma outra ordem ajuntadaAo real — este obscuro mito.

Murilo menino

Eu quero montar o vento em pêlo,Força do céu, cavalo poderosoQue viaja quando entende, noite e dia.

Quero ouvir a flauta sem fim do Isidoro da flauta,Quero que o preto velho IsidoroDê um concerto com minhas primas ao piano,Lá no salão azul da baronesa.

Quero conhecer a mãe-d'águaQue no claro do rio penteia os cabelosCom um pente de sete cores.

Salve salve minha rainha,Ó clemente ó piedosa ó doce Virgem Maria,? Como pode uma rainha ser também advogada.

Murilograma a Graciliano Ramos

1

Brabo. Olhofaca. Difícil.Cacto já se humanizando,

Deriva de um solo sáfaroQue não junta, antes retira,

Desacontece, desquer.

2

Funda o estilo à sua imagem:Na tábua seca do livro

Nenhuma voluta inútil.Rejeita qualquer lirismo.

Tachando a flor de feroz.

3

Tem desejos amarelos.Quer amar, o sol ulula,

Leva o homem do deserto(Graciliano-Fabiano)

Ao limite irrespirável.

4

Em dimensão de grandezaOnde o conforto é vacante,

Seu passo trágico escreveA épica real do BR

Que desintegrado explode.Roma, 1963

Noite carioca

Noite da cidade de São Sebastião do Rio de Janeirotão gostosa.que os estadistas europeus lamentam ter conhecido tão tarde.Casais grudados nos portões de jasmineiros...A baía de Guanabara, diferente das outras baías, é camarada,recebe na sala de visita todos os navios do mundoe não fecha a cara.Tudo perde o equilíbrio nesta noite,

as estrelas não são mais constelações célebres,são lamparinas com ares domingueiros,as sonatas de Beethoven realejadas nos pianos dos bairros distintosnão são mais obras importantes do gênio imortal,são valsas arrebentadas...Perfume vira cheiro,as mulatas de brutas ancas dançam o maxixe nos criouléus suarentos

O Pão de Açúcar é um cão de fila todo especialque nunca se lembra de latir pros inimigos que transpõem a barrae às 10 horas apaga os olhos pra dormir.

O fósforo

Acendendo um fósforoacendo Prometeu, o futuro, a liquidação dos falsos deuses,o trabalho do homem.

oO fósforo: tão rabbioso quanto secreto. Furioso, deli-cado. Encolhe-se no seu casulo marrom; mas quando cha-mado e provocado, polêmico estoura, esclarecendo tudo.O século é polêmico.

oO gás não funciona hoje. Temos greve dos gasistas. AItália tornou-se a Grevelândia. Mas preferimos essa semi--anarquia à "ordem" fascista.O fósforo, hoje em férias, espera paciente no seu casuloo dia de amanhã desprovido de greves. O dia racional, odia do entendimento universal, o dia do mundo sem classes,o dia de Prometeu totalizado.

oO fósforo é o portador mais antigo da tradição viva. Eusou pela tradição viva, capaz de acompanhar a correntezada modernidade. Que riquezas poderosas extraio dela!Subscrevo a grande palavra de Jaures: "De l'autel desancêtres on doit garder non les cendres mais le feu."

Perspectiva da sala da jantar

A filha do modesto funcionário públicodá um bruto interesse à natureza-mortada sala pobre no subúrbio.O vestido amarelo de organdidistribui cheiros apetitosos de carne morenasaindo do banho com sabonete barato.

O ambiente parado esperava mesmo aquela vibração:papel ordinário representando florestas com tigres,uma Ceia onde os personagens não comem nadaa mesa com a toalha furadaa folhinha que a dona da casa segue o conselhoe o piano que eles não têm sala de visitas.

A menina olha longamente pro corpo delacomo se ele hoje estivesse diferente,depois senta-se ao piano comprado a prestaçõese o cachorro malandro do vizinho

toma nota dos sons com atenção.

Saudação a Ismael Nery

Acima dos cubos verdes e das esferas azuisum Ente magnético sopra o espírito da vida.Depois de fixar os contornos dos corpostranspõe a região que nasceu sob o signo do amore reúne num abraço as partes desconhecidas do mundo.Apelo dos ritmos movendo as figuras humanas,solicitação das matérias do sonho, espírito que nunca descansa.Ele pensa desligado do tempo,as formas futuras dormem nos seus olhos.Recebe diretamente do Espíritoa visão instantânea das coisas, ó vertigem!penetra o sentido das idéias, das cores, a tonalidade da Criação,olho do mundo,zona livre de corrupção, música que não pára nunca,forma e transparência.

São Francisco de Assis de Ouro Preto A Lúcio Costa

Solta, suspensa no espaço,Clara vitória da formaE de humana geometriaInventando um molde abstrato;Ao mesmo tempo, segura,Recriada na razão,Em número, peso, medida;Balanço de reta e curva,Levanta a alma, ligeira,À sua Pátria natal;Repouso da cruz cansada,Signo de alta brancura;Gerado, em recorte novo,Por um bicho rastejante,Mestiço de sombra e luz;Aposento da TrindadeE mais da Virgem MariaQue se conhecem no amor;Traslado, em pedra vivente,Do afeto de um sumo heróiQue junta o braço do CristoAo do homem seu igual.

Texto de consulta

1

A página branca indicará o discursoOu a supressão o discurso?

A página branca aumenta a coisaOu ainda diminui o mínimo?

O poema é o texto? O poeta?O poema é o texto + o poeta?O poema é o poeta - o texto?

O texto é o contexto do poetaOu o poeta o contexto do texto?

O texto visível é o texto totalO antetexto o antitextoOu as ruínas do texto?O texto aboleCriaOu restaura?

2

O texto deriva do operador do textoOu da coletividade — texto?

O texto é manipuladoPelo operador (ótico)Pelo operador (cirurgião)Ou pelo ótico-cirurgião?

O texto é dadoOu dador?O texto é objeto concretoAbstratoOu concretoabstrato?

O texto quando escreveEscreveOu foi escritoReescrito?

O texto será reescritoPelo tipógrafo / o leitor / o crítico;Pela roda do tempo?

Sofre o operador:O tipógrafo trunca o texto.Melhor mandar à oficinaO texto já truncado.

(..........)

6

A palavra cria o real?O real cria a palavra?Mais difícil de aferrar:Realidade ou alucinação?

Ou será a realidadeUm conjunto de alucinações?

7

Existe um texto regional / nacionalOu todo texto é universal?Que relação do textoCom os dedos? Com os textos alheios?

(..........)

9

Juízo final do texto:Serei julgado pela palavraDo dador da palavra / do sopro / da chama.

O texto-coisa me espiaCom o olho de outrem.

Talvez me condene ao ergástulo.

O juízo finalComeça em mimNos lindes daMinha palavra.

Roma, 1965

O mau samaritano

Quantas vezes tenho passado perto de um doente, Perto de um louco, de um triste, de um miserável, Sem lhes dar uma palavra de consolo. Eu bem sei que minha vida é ligada à dos outros, Que outros precisam de mim que preciso de Deus Quantas criaturas terão esperado de mim Apenas um olhar – que eu recusei.

Somos todos poetas

Assisto em mim a um desdobrar de planos. as mãos vêem, os olhos ouvem, o cérebro se move, A luz desce das origens através dos tempos E caminha desde já Na frente dos meus sucessores. Companheiro, Eu sou tu, sou membro do teu corpo e adubo da tua alma. Sou todos e sou um, Sou responsável pela lepra do leproso e pela órbita vazia do cego, Pelos gritos isolados que não entraram no coro. Sou responsável pelas auroras que não se levantam E pela angústia que cresce dia a dia.

A tentação

Diante do crucifixo Eu paro pálido tremendo “ Já que és o verdadeiro filho de Deus Desprega a humanidade desta cruz”.

Vermeer de Delft

É a manhã no copo:

Tempo de decifrar o mapa Com seus amarelos e azuis, De abrir as cortinas - o sol frio nasce Nos ladrilhos silenciosos -, De ler uma carta perturbadora Que veio pela galera da China: Até que a lição do cravo Através dos seus cristais Restitui a inocência.

As lavadeiras

As lavadeiras no tanque noturno Não responderam ao canto da sibila.

“Lavamos os mortos, Lavamos o tabuleiro das idéias antigas E os balaústres para repouso do mar... Nele encontramos restos de galeras, Quem nos desviará do nosso canto obscuro? Nele descobrimos o augusto pudor do vento, O balanço do corpo do pirata com argolas, Nele promovemos a sede do povo E excitamos a nossa própria sede...”

As lavadeiras no tanque branco Lavam o espectro da guerra. Os braços das lavadeiras No abismo noturno Vão e vêm.

Montanhas de Ouro Preto A Lourival Gomes Machado

Desdobram-se as montanhas de Ouro Preto Na perfurada luz, em plano austero. Montes contempladores, circunscritos, Entre cinza e castanho, o olhar domado

Recolhe vosso espectro permanente. Por igual pascentais a luz difusa Que se reajusta ao corpo das igrejas, E volve o pensamento à descoberta

De uma luta antiqüíssima com o caos, De uma reinvenção dos elementos Pela força de um culto ora perdido,

Relíquias de dureza e de doutrina, Rude apetite dessa cousa eterna Retida na estrutura de Ouro Preto.

Ao Aleijadinho

Pálida a lua sob o pálio avança Das estrelas de uma perdida infância. Fatigados caminhos refazemos Da outrora máquina da mineração.

É nossa própria forma, o frio molde Que maduros tentamos atingir, Volvendo à laje, à pedra de olhos facetados, Sem crispação, matéria já domada,

O exemplo recebendo que ofereces Pelo martírio teu enfim transposto, Severo, machucado e rude Aleijadinho

Que te encerras na tenda com tua Bíblia, Suplicando ao Senhor – infinito e esculpido – Que sobre ti descanse os seus divinos pés.

Murilograma para Mallarmé

No oblíquo exílio que te aplaca Manténs o báculo da palavra

Signo especioso do Livro Inabolível teu & da tribo

A qual designas, idêntica Vitoriosamente à semântica

Os dados lançando súbito Já tu indígete em decúbito

Na incólume glória te assume MALLARMÉ sibilino nome

Henriqueta Lisboa

Vem, doce morte

Vem, doce morte. Quando queiras.Ao crepúsculo, no instante em que as nuvensdesfilam pálidos casulose o suspiro das árvores - secreto -não é senão prenúncio de um delicado acontecimento.

Quanto queiras. Ao meio-dia, súbitoespetáculo deslumbrante e inéditode rubros panoramas abertosao sol, ao mar, aos montes, às planíciescom celeiros refertos e intocados.

Quando queiras. Presentes as estrelasou já esquivas, na madrugadacom pássaros despertos, à hora em que os campos recolhem as sementese os cristais endurecem de frio.

Tenho o corpo tão leve (quando queiras)que a teu primeiro sopro cederei distraídacomo um pensamento cortadopela visão da luaem que acaso - mais alto - refloresça.

É estranho

É estranho que, após o prantovertido em rios sobre os mares,venha pousar-te no ombroo pássaro das ilhas, ó náufrago.

É estranho que, depois das trevassemeadas por sobre as valas, teus sentidos se adelgacemdiante das clareiras, ó cego.

É estranho que, depois de morto,rompidos os esteios da almae descaminhado o corpo, homem, tenhas reino mais alto.

in Flor da Morte

De súbito cessou a vida

De súbito cessou a vida.Foram simples palavras breves.Tudo continuou como estava.

O mesmo teto, o mesmo vento,o mesmo espaço, os mesmos gestos,Porém como que eternizados.

Unção, calor, surpresa, risos

tudo eram chapas fotográficashá muito tempo reveladas.

Todas as cousas tinham sidoe se mantinham sem reservanuma sucessão automática.

Passos caminhavam no assoalho,talheres batiam nos dentes,janelas se abriam, fechavam.

Vinham noites e vinham luas,madrugadas com sino e chuva.Sapatos iam na enxurrada.

Meninas chegavam gritando.Nasciam flores de esmeraldano asfalto! mas sem esperança.

Jornais prometiam com zeloem grandes tópicos vermelhoso fim de uma guerra. Guerra?...

Os que não sabiam falavam.Quem não sentia tinha o pranto.(O pranto era ainda o recursode velhas cousas coniventes.)

Nem o menor sinal de vida.Tão-só no fundo espelho a facelívida, a face lívida.

in: A Face Lívida (1945)

Esse despojamento

Esse despojamentoesse amargo esplendor.Beleza em sombrasacrifício incruento.

A mão sem jóiasdescarnadana pureza das veias.A voz por um fiodesnudana palavra sem gesto.

O escuro em tornoe a lucidezviolenta lucidez terrívelbatida de encontro ao rostocomo uma ofensa física.

Na imensidade sem pouso,olhos durosde pássaro.

in: A Face Lívida (1945)

Lábios que não se abrem, lábios

Lábios que não se abrem, lábioscom seu segredocalado

Segredo no ermo da noiteresiste à rosa dos ventoscalado.

Flauta sem a vibraçãodo sopro.Luar e espelho, frente a frente,em caladavigília.

Fria espada unidaao corpo.

Resto de lágrimas sobrelábioscalados.

Borboleta da morteem sorvopousada à flor dos lábioscaladoscalados.

A Face Lívida (1945)

Não a face dos mortos.

Não a face dos mortos.Nem a facedos que não coramaos açoitesda vida.Porém a facelívidados que resistempelo espanto.Não a face da madrugadana exaustãodos soluços.Mas a face do lagosem reflexosquando as águasentranha.Não a face da estátuafria de lua e zéfiro.Mas a face do círioque se consomelívidano ardor.

A Face Lívida (1945)

A menina selvagem Para Ângela Maria

A menina selvagem veio da auroraacompanhada de pássaros,estrelas-marinhase seixos.Traz uma tinta de magnólia escorridanas faces.Seus cabelos, molhados de orvalho etocados de musgo,cascateiam brincandocom o vento.A menina selvagem carrega punhadosde renda,sacode soltas espumas.Alimenta peixes ariscos e renitentes papagaios.E há de relance, no seu riso,gume de aço e polpa de amora.

Reis Magos, é tempo!Oferecei bosques, várzeas e camposà menina selvagem:ela veio atrás das libélulas.

Lírica (1958)

Assim é o medo

Assim é o medo:cinzaVerde.Olhos de lince.Voz sem timbreTorvo e mornoMelindre.

Da sombra espreitaà espera de algo

que o alente.Não age: tentaporém recuaa qualquer bulha.

No campo assistejunto ao títereà cruz que esparzevivo gazeiode nervosismocom vidro moídográcil granizode pássaros.

E que rascanteviolino brusconão arrepiaao longo o azuldos meus veludosse, a noite em meiocá no fundoquarto escuro,a lua arrisca

numa oblíquao olhar morteiro.

Dentro da jaula(mundo inapto)do domadorem fúria à ferasubsinuosa-mente resvala.

Aos frios reptosdo ziguezagueem choque, súbitorelampagueio,as duas forçasse opõem dúbiasse atraem foscaspara a lutapelo avesso:despiste e fugaouro e vermelhodesde a entranha.

As duas forçasantagônicas:qual delas ganhaacasoou perdeo medofrente afrente aomedo?

Além da Imagem (1963)

Assombro

Século de assombro - este século.De violência em progresso.E os outros séculos?Cada ser ao sentir o peso do mundonão terá dito: século de assombro?O assombro seca a própria sombrade tanto secar existência:Sequidão de corações e mentesSecura de corpo nos ossosLegião de cegos e de inaptosAsfixia de túneis e masmorrasMantos e esgares de hipocrisiaSevícia para fins de anuênciaAcúmulo de monstros e monturos— Assombro à cunha.Porém acima de qualquer assombroaquele assombro vindo de antanhopara atravessar o séculode ponto a ponta — flecha escusa — e serperene assombro dos mortais— a morte.

Pousada do Ser (1982)

Caboclo - d'água

Caboclo-d'água Ôcaboclo-d'água.Caboclo-d'águavem de noite— assombração.Caboclo-d'águamolengãotocando viola.Caboclo-d'águavá-se emboravá-se emboracaboclo-d'àguanão me chamenão!A chuva é muitasobe o riono barranco.

O vento choramais que rezauma oração.

Acende a velaminha gente,eu tenho medo.

Eu tenho medode afogarna escuridão.

O Menino Poeta (1943)

Calendário

Calada floraçãofictíciacaindo da árvoredos dias

Reverberações (1976)

Ciranda de mariposas

Vamos todos cirandarciranda de mariposas.Mariposas na vidraçasão jóias, são brincos de ouro.Ai! poeira de ouro translúcidabailando em torno da lâmpada.Ai! fulgurantes espelhosrefletindo asas que dançam.Estrelas são mariposas(faz tanto frio na rua!)batem asas de esperançacontra as vidraças da lua.

Menino Poeta (1943)

Denúncia

Os tresloucados do volante— ó vendaval —voam velozes e ferozesà caça de carne humana.Olhos de abutrefisgam de rua em ruaalguma oferta de acaso.Rindo brancura de dentesmil poderes aceleramrumo à vítima entrevista.O mundo que lhes pertencetomam ao revés — de assalto.SangramdespedaçammatamE ombros erguidos prosseguemvitoriosos pressurosospara os aplausos da seita.

Pousada do Ser (1982)

Depois da opção

Um reposteiro o mais espessocaia sobre a tragédia dos Andes.Os que a viveram não falem.A língua que provou a carnede seus irmãos emudeçada mais humana misériapara não se desnaturarem sem remédiodepois da opçãoEm estátuas de pedrase transformem os seresque amargaram a pontode negação a si mesmoimprensadosentre o vulcão de sanguee a geleira: fantasmascaminhando brancas nódoasnegras hóstias em travodepois da opção.A dor de quem viu palpoucompreendeu e perdoouo que a si próprio nãose perdoaria é covardia.Heróica é a dor dos que sofremnão pela fome ou sede ou frioou cegueira que sofrerammas pela crua memóriado jamais deglutidonos desvãos ruminandoentre a alma e os ossosdepois da opção.

Miradouro e Outros Poemas (1976)

Divertimento

O esperto esquiloganha um coco.Tem olhos intranqüilosde louco.

Os dentes finosmostra. E em poucoos dentes fincana polpa.Assim, com perfeito estilo,sob estridentesdentes,o coco, em segundos, ficatodo oco.

O menino poeta

Do supérfluo

Também as cousas participamde nossa vida. Um livro. Uma rosa.Um trecho musical que nos devolvea horas inaugurais. O crepúsculoacaso visto num paísque não sendo da terraevoca apenas a lembrançade outra lembrança mais longínqua.O esboço tão-somente de um gestode ferina intenção. A graçade um retalho de luaa pervagar num reposteiroA mesa sobre a qual me debruçocada dia mais temerosade meus próprios dizeres.Tais cousas de íntimo domíniotalvez sejam supérfluas.No entantoque tenho a ver contigose não leste o livro que linão viste a rosa que planteinem contemplaste o pôr-do-solà hora em que o amor se foi?Que tens a ver comigose dentro em ti não prevalecemas cousas — todavia supérfluas —do meu intransferível patrimônio?

Pousada do Ser (1982)

Drama de Bárbara Heliodora

"Bárbara belado norte estrela que o meu destino sabes guiar."

Quem é esse que assim canta como quem está chorando? Suas faces encovaram, seus olhos se amorteceram, sobre seus cabelos negros cai uma chuva de cinza. Ah! e havia tanta brasa em torno de seus cabelos, tanto sol na sua ilharga, tanto ouro nas suas minas,tanto potro galopando nas suas terras sem fim.

Grão de poeira quando o vento a madrugada castiga: Já não é mais Alvarenga quem foi Alvarenga um dia.

Do galho tomba uma fruta verde sobre o lago fundo. A árvore guardava a seiva toda nessa fruta verde. A mão trêmula do poeta mal sabe aquilo que escreve:

"Tu entre os braços ternos abraços da filha amada podes gozar."

A essas horas, na distância, vai pela tarde dorida sob a chuva, entre salpicos de lama, um caixão mortuário sem enfeites nem bordados, senão os que a lama asperge no pano que cobre as tábuas.

Quando a alvura da açucena se refugiava nas moitas, Maria Ifigênia encontra sua gruta para sempre.

É deveras a Princesa do Brasil, essa menina de madeixas escorridas,de lábios esmaecidos, de túnica mal vestida?

Essa, a mesma por quem vinham da Corte os melhores mestres de dança e língua estrangeira? A de damascos e auréolas a quem brotavam nos dedos tíbios ramos de coral?

Linda, lendária Princesa, por quem chora já sem lágrimas pobre mulher desvairada de olhos que olham mas não vêem.

Chora Bárbara Heliodora Guilhermina da Silveira. E em suas artérias corre o sangue de Amador Bueno! Chora, porém já sem lágrimas.

É de mármore seu rosto.Seu busto cai sobre os joelhos: flores que de trepadeiras pendem murchas para o solo.

Talvez já nem saiba como

– para donaire da estirpe – na ponta dos pés erguida em hora periclitante ousou admoestar o esposo: "Antes a miséria, a fome, a morte, do que a traição!"

Valem muralhas de pedra para represa dos rios,certas palavras eternas que decidem do destino.

Madrinha Lua (1952)

Em sobressalto

As notícias me sobressaltam. Dia a diacada vez mais terríveis.Brotam da terra pelos porosentram pela janela em silvos ásperosfazem pilha no chão em letras tortascaem das nuvens em mortalhas.E já são outras realidades apostasao retoque dos memorandosàs interpretações da ribaltaao sortilégio da casa dos contosao ruminar dos bois — fuga e refúgio.Em confronto são dúbiasprecipitam-se acotovelam-seem contramarcha se repelem.Na deturpação do humanoanunciam com alvoroçoatravés de pinças de fogoem cartazes de gelo— o suicídio da multidão em nome de Deus— o império do vício em nome da Arte— o sequestro do juiz em prol da Justiça— o arremesso de touros em via públicapara a alegria dos que se salvam.

Recuso-me a acreditar nas notíciasmas elas se impõem de cátedracom implacável desfaçateztalvez para convencer-nosde que somos todos culpados.Agem assim como tóxicosimpunemente sorvidosnas delongas do tédio.A busca de notícias é um mórbidocaminhar para a cruzSem embargo as procuro com empenhona expectativa tantas vezes vãde que à noite se mudemna reparação no contravenenodas notícias colhidas pela manhã.

Pousada do Ser (1982)

Horizonte

Alma em suspiropelo encontro

do que ficasempre mais longe

Reverberações (1976)

Infância

E volta sempre a infânciacom suas íntimas, fundas amarguras.Oh! por que não esqueceras amargurase somente lembrar o que foi suaveao nosso coração de seis anos?A misteriosa infânciaficou naquele quarto em desordem,nos soluços de nossa mãejunto ao leito onde arqueja uma criança;nos sobrecenhos de nosso paiexaminando o termomêtro: a febre subiu;e no beijo de despedida à irmãzinhaà hora mais fria da madrugada.A infância melancólicaficou naqueles longos dias iguais,a olhar o rio no quintal horas inteiras,a ouvir o gemido dos bambus verde-negrosem luta sempre contra as ventanias!A infância inquietaficou no medo da noitequando a lamparina vacilava mortiçae ao derredor tudo crescia escuro, escuro...A menininha ríspidanunca disse a ninguém que tinha medo,porém Deus sabe como seu coração batia no escuro,Deus sabe como seu coração ficou para sempre diante da vida— batendo, batendo assombrado!

Prisioneiro da Noite (1941)

Lenda das pedras verdes

– Fernão Dias, Fernão Dias, deixa a Uiara dormir!

Tem um sabor secular ressoando dentro da noite, a voz monótona do índio.

A Serra Resplandecente fulge ao luar junto à lagoa. Pela escada de Jacó sobem e descem estrelas.

– Ai, Serra Resplandecente, Lagoa Vupabuçu! Tantos anos de procura como é que os hei de perder!

– Fernão Dias, Fernão Dias, deixa a Uiara dormir! A vida da tribo está no grande sono da Uiara. O grande sono da Uiara

reside nos seus cabelos. Seus cabelos eram de água, tornaram-se em pedras verdes.

Voz de raça moribunda Fernão Dias não escuta.

– Sete anos há que deixei minha terra e meu sossego em troca de uma esperança que é meu respiro e bordão. Da Serra da Mantiqueira até o Rio Uaimi, quantos montes, quantos vales para descer e subir, que de sombras e emboscadas antes do raiar do dia!

Vem de mais longe, profunda, a voz do índio recordando:

– Nas noites de lua cheia quando a Uiara cantava branca e linda, emoldurada pelas ondas dos cabelos, mais de um valente guerreiro por ela se suicidava. Foi então que Macachera com prudência soube agir, mandando Uiara dormisse velada por sentinelas um sono igual ao da pedra.

– Vós que velais o seu sono, desembaraçai as armas! Ah! esse canto escondido, essa beleza roubada, esses cabelos que brilham com viva luz de esmeraldas! Ser guerreiro, ser valente,depois dormir para semprenos verdes braços da Uiara!

– Fernão Dias, Fernão Dias! deixa a Uiara dormir!

Madrinha Lua (1952)

Melancolia

Água negranegros bordespoço negrocom flor.Água turvadensa escumaturvo limocom flor.Noite espessasem lanternaespesso poçocom flor.

sobra, corpode serpentena oferendada florRisco de morteviolenta,árdua mortede asfixiaveneno letalfatalquase que purosuicídiocom umalentalentaflor.

A Face Lívida (1945)

Modelagem / Mulher

Assim foi modelado o objeto:para subserviência.Tem olhos de ver e apenasentrevê. Não vai longeseu pensamento cortadoao meio pela ferrugemdas tesouras. É um mitosem asas, condicionadoàs fainas da lareiraSeria uma cântaro de barro afeitoa movimentos incipientessob tutela.Ergue a cabeça por instantese logo esmorece por forçade séculos pendentes.Ao remover entulhosleva espinhos na carne.Será talvez escasso um milêniopara que de justiçatenha vida integral.Pois o modelo deve serindefectível segundoas leis da própria modelagem.

Pousada do Ser (1982)

Noturno

Meu pensamento em febreé uma lâmpada acesaa incendiar a noite.Meus desejos irrequietos,à hora em que não há socorro,dançam livres como libélulasem redor do fogo.

Prisioneira da Noite (1941)

Saudação a Drummond

Eu te saúdo Irmão Maiorpelo que tens sido e serás

dentro do tempo espaço aforae além da vida: luminarhomem simples da terraaprisionado no íntimopara libertador de pássarose agenciador de símbolos.Pela pedra no caminhoque foi ato de bravurae foi cabo de tormentas.Pelo brejo das almasem verde com margaridas.Pelo sentimento do mundocom que orvalhas o linhoda comunhão geral.Pelas fazendas do arem que brindas cultivosde transcedentes dimensões.Pelos claros enigmasque decifras e que armasem desdobrados ciclos.Pela vida passada a limpoem lâminas de cristal.Pela rosa do povocom que humanizas o asfalto.Pela lição de coisasque nos ensinas a aprender.Pelo boitempo este saborde renascimento da infância.Em nome de Mário de Andrade— até as amendoeiras falam —em nome de Manuel Bandeiraem nome de Emílio Mourapresentes embora silentesno alto da Casa em outrosmais cômodos aposentosde onde nos contemplam líricosa nós abaixo no vestíbulo.Saúdo-te mineiro Carlosde olhos azuis como os da criançaguardada sempre mais a fundoem candidez e malíciaao largo de lavouras híspidasao longo de setenta outubrosvincados de diamante e ferrosem nostalgia de crepúsculo.Saúdo-te com sete rosasem botão as mais purascolhidas de madrugadaantes do sol em suas pétalaspor teu sétimo aniversáriooutrorade menino poeta.

Miradouro e Outros Poemas (1976)

Séquito

Seguir o reipor toda parteantes que a coroalhe caia

Reverberações (1976)

João Cabral de Melo NetoObra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994

Para Joaquim Cardozo

Com teus sapatos de borrachaseguramenteé que os seres pisamno fundo das águas.Encontraste algum diasobre a terrao fundo do mar,o tempo marinho e calmo?Tuas refeições de peixe;teus nomesfemininos: Mariana; teu versomedido pelas ondas;a cidade que não conseguesesqueceraflorada no mar: Recife,arrecifes, marés, maresias;e marinha ainda a qrquiteturaque calculaste:tantos sinais da marítima nostalgiaque te fez lento e longo

O engenheiro (1942-1945)

Tecendo a Manhã

1

Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos.

2

E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão.

A Educação pela Pedra

Poema(s) da Cabra Nas margens do Mediterrâneonão se vê um palmo de terraque a terra tivesse esquecidode fazer converter em pedra.

Nas margens do MediterrâneoNão se vê um palmo de pedraque a pedra tivesse esquecidode ocupar com sua fera.

Ali, onde nenhuma linha pode lembrar, porque mais doce,o que até chega a parecersuave serra de uma foice,

não se vê um palmo de terrapor mais pedra ou fera que seja,que a cabra não tenha ocupadocom sua planta fibrosa e negra.

1A cabra é negra. Mas seu negronão é o negro do ébano douto(que é quase azul) ou o negro ricodo jacarandá (mais bem roxo).

O negro da cabra é o negrodo preto, do pobre, do pouco.Negro da poeira, que é cinzento.Negro da ferrugem, que é fosco.

Negro do feio, às vezes branco.Ou o negro do pardo, que é pardo.disso que não chega a ter corou perdeu toda cor no gasto.

É o negro da segunda classe.Do inferior (que é sempre opaco).Disso que não pode ter corporque em negro sai mais barato.

2Se o negro quer dizer noturnoo negro da cabra é solar.Não é o da cabra o negro noite.É o negro de sol. Luminar.

Será o negro do queimadomais que o negro da escuridão.Negra é do sol que acumulou.É o negro mais bem do carvão.

Não é o negro do macabro.Negro funeral. Nem do luto.Tampouco é o negro do mistério,de braços cruzados, eunuco.

É mesmo o negro do carvão.O negro da hulha. Do coque.Negro que pode haver na pólvora:negro de vida, não de morte.

3O negro da cabra é o negroda natureza dela cabra. Mesmo dessa que não é negra,como a do Moxotó, que é clara.

O negro é o duro que há no fundo

da cabra. De seu natural.Tal no fundo da terra há pedra, no fundo da pedra, metal.

O negro é o duro que há no fundoda natureza sem orvalhoque é a da cabra, esse animalsem folhas, só raiz e talo,

que é a da cabra, esse animalde alma-caroço, de alma córnea,sem moelas, úmidos, lábios,pão sem miolo, apenas côdea.

4Quem já encontrou uma cabra que tivesse ritmos domésticos?O grosso derrame do porco,da vaca, do sono e de tédio?

Quem encontrou cabra que fosse animal de sociedade?Tal o cão, o gato, o cavalo,diletos do homem e da arte?

A cabra guarda todo o arisco,rebelde, do animal selvagem,viva demais que é para seranimal dos de luxo ou pajem.

Viva demais para não ser,quando colaboracionista,o reduzido irredutível,o inconformado conformista.

5A cabra é o melhor instrumentode verrumar a terra magra.Por dentro da serra e da secanão chega onde chega a cabra.

Se a serra é terra, a cabra é pedra.Se a serra é pedra, é pedernal.Sua boca é sempre mais duraque a serra, não importa qual.

A cabra tem o dente frio,a insolência do que mastiga.Por isso o homem vive da cabramas sempre a vê como inimiga.

Por isso quem vive da cabrae não é capaz do seu braçodesconfia sempre da cabra:diz que tem parte com o Diabo.

6Não é pelo vício da pedra,por preferir a pedra à folha.É que a cabra é expulsa do verde,trancada do lado de fora.

A cabra é trancada por dentro.Condenada à caatinga seca.

Liberta, no vasto sem nada,proibida, na verdura estreita.

Leva no pescoço uma cangaque a impede de furar as cercas.Leva os muros do próprio cárcere:prisioneira e carcereira.

Liberdade de fome e sededa ambulante prisioneira.Não é que ela busque o difícil:é que a sabem capaz de pedra.

7A vida da cabra não deixalazer para ser fina ou lírica(tal o urubu, que em doces linhasvoa à procura da carniça).

Vive a cabra contra a pendente,sem os êxtases das decidas.Viver para a cabra não ére-ruminar-se introspectiva.

É, literalmente, cavara vida sob a superfície,que a cabra, proibida de folhas,tem de desentranhar raízes.

Eis porque é a cabra grosseira,de mãos ásperas, realista.Eis porque, mesmo ruminando,não é jamais contemplativa.

8O núcleo de cabra é visívelpor debaixo de muitas coisas.Com a natureza da cabraoutras aprendem sua crosta.

Um núcleo de cabra é visívelem certos atributos roucosque têm as coisas obrigadasa fazer de seu corpo couro.

A fazer de seu couro sola,a armar-se em couraças, escamas:como se dá com certas coisase muitas condições humanas.

Os jumentos são animaisque muito aprenderam com a cabra. O nordestino, convivendo-a,fez-se de sua mesma casta.

9O núcleo de cabra é visíveldebaixo do homem do Nordeste.Da cabra lhe vem o escarpadoe o estofo nervudo que o enche.

Se adivinha o núcleo de cabrano jeito de existir, Cardozo,que reponta sob seu gesto

como esqueleto sob o corpo.

E é outra ossatura mais forteque o esqueleto comum, de todos;debaixo do próprio esqueleto,no fundo centro de seus ossos.

A cabra deu ao nordestinoesse esqueleto mais de dentro:o aço do osso, que resistequando o osso perde seu cimento.

*O Mediterrâneo é mar clássico,com águas de mármore azul.Em nada me lembra das águassem marca do rio Pajeú.

As ondas do Mediterrâneoestão no mármore traçadas.Nos rios do Sertão, se existe,a água corre despenteada.

As margens do Mediterrâneoparecem deserto balcão.Deserto, mas de terras nobresnão da piçarra do Sertão.

Mas não minto o Mediterrâneonem sua atmosfera maiordescrevendo-lhe as cabras negrasem termos da do Moxotó.

O Ovo de GalinhaIAo olho mostra a integridadede uma coisa num bloco, um ovo.Numa só matéria, unitária, maciçamente ovo, num todo.Sem possuir um dentro e um fora, tal como as pedras, sem miolo:é só miolo: o dentro e o foraintegralmente no contorno.No entanto, se ao olho se mostraunânime em si mesmo, um ovo, a mão que o sopesa descobre que nele há algo suspeitoso:que seu peso não é o das pedras,inanimado, frio, goro;que o seu é um peso morno, túmido,um peso que é vivo e não morto.IIO ovo revela o acabamentoa toda mão que o acaricia,daquelas coisas torneadasnum trabalho de toda a vida.E que se encontra também noutras que entretanto mão não fabrica:nos corais, nos seixos roladose em tantas coisas esculpidas

cujas formas simples são obra de mil inacabáveis lixasusadas por mãos escultorasescondidas na água, na brisa.No entretanto, o ovo, e apesar de pura forma concluída, não se situa no final:está no ponto de partida.IIIA presença de qualquer ovo, até se a mão não lhe faz nada, possui o dom de provocarcerta reserva em qualquer sala.O que é difícil de entenderse se pensa na forma claraque tem um ovo, e na franquezade sua parede caiada. A reserva que um ovo inspiraé de espécie bastante rara:é a que se sente ante um revólvere não se sente ante uma bala.É a que se sente ante essas coisasque conservando outras guardadasameaçam mais com disparardo que com a coisa que disparam.IVNa manipulação de um ovoum ritual sempre se observa:há um jeito recolhido e meioreligioso em quem o leva.Se pode pretender que o jeitode quem qualquer ovo carregavem da atenção normal de quem conduz uma coisa repleta.O ovo porém está fechadoem sua arquitetura herméticae quem o carrega, sabendo-o,prossegue na atitude regra:procede ainda da maneiraentre medrosa e circunspeta,quase beata, de quem tem nas mãos a chama de uma vela. OC 302.

Antiode (contra a poesia dita profunda)APoesia te escrevia:flor! conhecendoque és fezes. Fezescomo qualquer.gerando cogumelos(raros, fragéis, cogu-melos) no úmidocalor de nossa boca.Delicado, escrevia:flor! (Cogumelosserão flor? Espécieestranha, espécieextinta de flor, florão de todo flor,

mas flor, bolhaaberta no maduro)Delicado, evitavao estrume do poema,seu caule, seu ovário,suas intestinações.Esperava as puras,transparentes florações,nascidas do ar, no ar,como as brisas.BDepois, eu descobririaque era lícitote chamar: flor!(Pelas vossas iguaiscircunstâncias? Vossasgentis substâncias? Vossasdoces carnações? Pelosvirtuosos vergéisde vossas evocações?Pelo pudor do verso- pudor de flor -por seu tão delicadopudor de flor,que só se abrequando a esquece osono do jardineiro?)Depois eu descobririaque era lícitote chamar: flor!(flor, imagem deduas pontas, comouma corda). Depoiseu descobririaas duas pontasda flor: as duasbocas da imagemda flor: a bocaque come o defuntoe a boca que ornao defunto com outrodefunto, com flores,- cristais de vômito.C Como não invocar ovício da poesia: ocorpo que entorpeceao ar de versos?(Ao ar de águasmortas, injetandona carne do diaa infecção da noite).Fome de vida? Fomede morte, frequentaçãoda morte, como dealgum cinema.O dia? Árido.Venha, então, a noite,

o sono. Venha,por isso, a flor.Venha, mais fácil eportátil na memória,o poema, flor nocolête da lembrança.Como não invocar,sobretudo, o exercíciodo poema, sua prática,sua lânguida horti-cultura? Pois estaçõeshá, do poema, comoda flor, ou comono amor dos cães;e mil mornosenxertos, mil maneirasde excitar negrosêxtases, e a mornaespera de que seapodreça em poema,prévia exalaçãode alma defunta.DPoesia, não será esseo sentido em queainda te escrevo:flor! (Te escrevo:flor! Não umaflor, nem aquelaflor-virtude - emdisfarçados urinóis).Flor é a palavraflor, verso inscritono verso, como asmanhãs no tempo.Flor é o saltoda ave para o vôo;o salto fora do sonoquando seu tecidose rompe; é uma explosãoposta a funcionar,como uma máquina,uma jarra de flores.EPoesia, te escrevoagora: fezes, asfezes vivas que és.Sei que outraspalavras és, palavrasimpossíveis de poema.Te escrevo, por isso,fezes, palavra leve,contando com suabreve. Te escrevocuspe, cuspe, nãomais; tão cuspecomo a terceira(como usá-la num

poema?) a terceiradas virtudes teologais.

Difícil ser funcionárioDifícil ser funcionárioNesta segunda-feira.Eu te telefono, CarlosPedindo conselho.

Não é lá fora o diaQue me deixa assim,Cinemas, avenidas,E outros não-fazeres.

É a dor das coisas,O luto desta mesa;É o regimento proibindoAssovios, versos, flores.

Eu nunca suspeitaraTanta roupa preta;Tão pouco essas palavras —Funcionárias, sem amor.

Carlos, há uma máquinaQue nunca escreve cartas;Há uma garrafa de tintaQue nunca bebeu álcool.

E os arquivos, Carlos,As caixas de papéis:Túmulos para todosOs tamanhos de meu corpo.

Não me sinto corretoDe gravata de cor,E na cabeça uma moçaEm forma de lembrança

Não encontro a palavraQue diga a esses móveis.Se os pudesse encarar...Fazer seu nojo meu...

Carlos, dessa náuseaComo colher a flor?Eu te telefono, Carlos,Pedindo conselho.Esse poema, escrito em 29-09-1943, revela a decisiva influência de Carlos Drummond de Andrade nas primeiras produções do autor. Inédito, foi extraído dos "Cadernos de Literatura Brasileira", nº. 01, publicado pelo Instituto Moreira Salles em março de 1996, pág.60.

Velório de um ComendadorIQuem quer que o veja defuntohavendo-o tratado em vida,pensará: todo um alagadocoube aqui nesta bacia.Resto de banho, água choca, na banheira do salão,

sua preamar permanentese empoça, em toda a acepção.A brisa passa nas flores,baronesas no morto-água,mas nem de leve arrepiaa pele dela, estagnada.Talvez porque qualquer águafique mais densa, se morta,mais pesada aos dedos finosdas brisas, ou a outras cócegas.Não há dúvida, a água mortase torna muito mais densa:ao menos, se vê boiando, nesta, o metal da comenda.Não se entende é porque a águanão arrebenta o caixão:mais densa, pesará mais, terá mais forte pressão.Como seja: agora um diquedetém, de simples madeira, uma água morta que ele era,sem confins, mar de água mangue.IITodos os que o vejam assim,coberto de tantas flores,pensarão que num canteiro,não num caixão, está hoje.O tamanho e as proporçõesfazem o engano mais perfeito:pois é idêntico o abauladode leirão e de canteiro.Nem por estar numa sala, está essa imagem desfeita:se em salas não há jardins,há contudo jardineiras.E só não se enganarianem cairia na imagem,alguém que entendesse muito de jardins e reparasse:que a terra do tal canteirodeve ser da mais salobre,dado o pouco tempo que abreo guarda-sol dessas flores

com que os amigos que tinhao quiseram ajardinar, e que murcham, se bem cheguemabertas de par em par.Na verdade, as flores todasfecham rápido suas tendas.A não ser a flor eterna,por ser metal, da comenda, que, de metal, pode serque dure e nunca enferruje.Ou um pouco mais: pois pareceque já a ataca o chão palustre.IIIEmbarcado no caixão,parece que ele, afinal,

encontrou o seu veículo:a marca e o modelo ideal.Buscava um carro ajustadoao compasso do que foi;mais ronceiro, se possível, que os mesmos carros-de-boi.Mais dos que achava diziaperigosos de se usar.Igual dizia dos livrose das correntes-de-ar.E agora tem, no caixão, esse veículo buscado;não é um carro, porémé um veículo, um barco.O que buscava, queriasem rodas, como este mesmo;rodas lhe davam vertigemsenão em comenda, ao peito.E isso porque quando viaqualquer condecoração,se bem de forma rebelde, de cusparada ou explosão,via nela só o metal,a âncora a atar-se ao pescoçopara não deixar que nadase mova de um mesmo porto.Morto, ei-lo afinal que encontraseu tão buscado modelo:o barco em que vai, parado,não tem roda, é todo freios.IVEstá no caixão, expostocomo uma mercadoria;à mostra, para vender, quem antes tudo vendia:antes, abria as barricaspara mostrar a qualidade, ao olfato do freguês, de seu bacalhau, seu charque;ou com gestos joalheirosespalhava no balcãopara melhor demonstrá-lassuas gemas: milho, feijão;e o que se julga com o tato, fubás, farinha-do-reino,ele mostrava escorrendo-os, sensual, por entre os dedos.Mostrar amostras foi lemade seu armazém de estiva.e eis que agora aqui à mostrao mercador mercadoria,mesmo com essa comendano peito, a recomendá-lo,e é nele como a medalhade um produto premiado,e assim acondicionadocomo está, em caixão vitrina,bem mais fino que os caixotesonde mostrava as farinhas,

mesmo com essa comendae essa embalagem de flor,eis que ele, em mercadoria,não encontra comprador. OC 317.

O Relógio

1.

Ao redor da vida do homem há certas caixas de vidro, dentro das quais, como em jaula, se ouve palpitar um bicho.

Se são jaulas não é certo; mais perto estão das gaiolas ao menos, pelo tamanho e quadradiço de forma.

Uma vezes, tais gaiolas vão penduradas nos muros; outras vezes, mais privadas, vão num bolso, num dos pulsos.

Mas onde esteja: a gaiola será de pássaro ou pássara: é alada a palpitação, a saltação que ela guarda;

e de pássaro cantor, não pássaro de plumagem: pois delas se emite um canto de uma tal continuidade

que continua cantando se deixa de ouvi-lo a gente: como a gente às vezes canta para sentir-se existente.

2.

O que eles cantam, se pássaros, é diferente de todos: cantam numa linha baixa, com voz de pássaro rouco;

desconhecem as variantes e o estilo numeroso dos pássaros que sabemos, estejam presos ou soltos;

têm sempre o mesmo compasso horizontal e monótono, e nunca, em nenhum momento, variam de repertório:

dir-se-ia que não importa a nenhum ser escutado. Assim, que não são artistas nem artesãos, mas operários

para quem tudo o que cantam é simplesmente trabalho, trabalho rotina, em série, impessoal, não assinado,

de operário que executa seu martelo regular proibido (ou sem querer) do mínimo variar.

3.

A mão daquele martelo nunca muda de compasso. Mas tão igual sem fadiga, mal deve ser de operário;

ela é por demais precisa para não ser mão de máquina, a máquina independente de operação operária.

De máquina, mas movida por uma força qualquer que a move passando nela, regular, sem decrescer:

quem sabe se algum monjolo ou antiga roda de água que vai rodando, passiva, graçar a um fluido que a passa;

que fluido é ninguém vê: da água não mostra os senões: além de igual, é contínuo, sem marés, sem estações.

E porque tampouco cabe, por isso, pensar que é o vento, há de ser um outro fluido que a move: quem sabe, o tempo.

4.

Quando por algum motivo a roda de água se rompe, outra máquina se escuta: agora, de dentro do homem;

outra máquina de dentro, imediata, a reveza, soando nas veias, no fundo de poça no corpo, imersa.

Então se sente que o som da máquina, ora interior, nada possui de passivo, de roda de água: é motor;

se descobre nele o afogo de quem, ao fazer, se esforça, e que êle, dentro, afinal, revela vontade própria,

incapaz, agora, dentro, de ainda disfarçar que nasce daquela bomba motor (coração, noutra linguagem)

que, sem nenhum coração, vive a esgotar, gôta a gôta, o que o homem, de reserva, possa ter na íntima poça.

O Rioou relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife 1953

"Quiero que compongamos io e tú una prosa." (Berceo)

Da lagoa da Estaca a Apolinário

Sempre pensara em ir caminho do mar. Para os bichos e rios nascer já é caminhar. Eu não sei o que os rios têm de homem do mar; sei que se sente o mesmo e exigente chamar. Eu já nasci descendo a serra que se diz do Jacarará, entre caraibeiras de que só sei por ouvir contar (pois, também como gente, não consigo me lembrar dessas primeiras léguas de meu caminhar).

Deste tudo que me lembro, lembro-me bem de que baixava entre terras de sede

que das margens me vigiavam. Rio menino, eu temia aquela grande sede de palha, grande sede sem fundo que águas meninas cobiçava. Por isso é que ao descer caminho de pedras eu buscava, que não leito de areia com suas bocas multiplicadas. Leito de pedra abaixo rio menino eu saltava. Saltei até encontrar as terras fêmeas da Mata.

Notícia do Alto Sertão

Por trás do que lembro, ouvi de uma terra desertada, vaziada, não vazia, mais que seca, calcinada. De onde tudo fugia, onde só pedra é que ficava, pedras e poucos homens com raízes de pedra, ou de cabra. Lá o céu perdia as nuvens, derradeiras de suas aves; as árvores, a sombra, que nelas já não pousava. Tudo o que não fugia, gaviões, urubus, plantas bravas, a terra devastada ainda mais fundo devastava.

A estrada da Ribeira

Como aceitara ir no meu destino de mar, preferi essa estrada, para lá chegar, que dizem da ribeira e à costa vai dar, que deste mar de cinza vai a um mar de mar; preferi essa estrada de muito dobrar, estrada bem segura que não tem errar pois é a que toda a gente costuma tomar (na gente que regressa sente-se cheiro de mar).

De Apolinário a Poço Fundo

Para o mar vou descendo por essa estrada da ribeira. A terra vou deixando de minha infância primeira. Vou deixando uma terra reduzida à sua areia, terra onde as coisas vivem

a natureza da pedra. À mão direita os ermos do Brejo da Madre de Deus, Taquaritinga à esquerda, onde o ermo é sempre o mesmo. Brejo ou Taquaritinga, mão direita ou mão esquerda, vou entre coisas poucas e secas além de sua pedra.

Deixando vou as terras de minha primeira infância. Deixando para trás os nomes que vão mudando. Terras que eu abandono porque é de rio estar passando. Vou com passo de rio, que é de barco navegando. Deixando para trás as fazendas que vão ficando. Vendo-as, enquanto vou, parece que estão desfilando. Vou andando lado a lado de gente que vai retirando; vou levando comigo os rios que vou encontrando.

Os rios

Os rios que eu encontro vão seguindo comigo. Rios são de água pouca, em que a água sempre está por um fio. Cortados no verão que faz secar todos os rios. Rios todos com nome e que abraço como a amigos. Uns com nome de gente, outros com nome de bicho, uns com nome de santo, muitos só com apelido. Mas todos como a gente que por aqui tenho visto: a gente cuja vida se interrompe quando os rios.

De Poço Fundo a Couro d'Anta

A gente não é muita que vive por esta ribeira. Vê-se alguma caieira tocando fogo ainda mais na terra; vê-se alguma fazenda com suas casas desertas: vêm para a beira da água como bichos com sede. As vilas não são muitas e quase todas estão decadentes. Constam de poucas casas e de uma pequena igreja, como, no itinerário,

já as descrevia Frei Caneca. Nenhuma tem escola; muito poucas possuem feira.

As vilas vão passando com seus santos padroeiros. Primeiro é Poço Fundo, onde Santo Antônio tem capela. Depois é Santa Cruz onde o Senhor Bom Jesus se reza. Toritama, antes Tôrres, fez para a Conceição sua igreja. A vila de Capado chama-se pela sua nova capela. Em Topada, a igreja com um cemitério se completa. No lugar Couro d'Anta, a Conceição também se celebra. Sempre um santo preside à decadência de cada uma delas.

A estrada da Paraíba

Depois de Santa Cruz, que agora é Capibaribe, encontro uma outra estrada que desce da Paraíba. Saltando o Cariri e a serra de Taquaritinga, na estrada da ribeira ela deságua como num rio. Juntos, na da ribeira, continuamos, a estrada e o rio, agora com mais gente: a que por aquela estrada descia. Lado a lado com gente viajamos em companhia. Todos rumo do mar e do Recife esse navio.

Na estrada da ribeira até o mar ancho vou. Lado a lado com gente, no meu andar sem rumor. Não é estrada curta, mas é a estrada melhor, porque na companhia de gente é que sempre vou. Sou viajante calado, para ouvir histórias bom, a quem podeis falar sem que eu tente me interpor; junto de quem podeis pensar alto, falar só. Sempre em qualquer viagem o rio é o companheiro melhor.

Do riacho as Éguas ao ribeiro do Mel

Caruaru e Vertentes na outra manhã abandonei.

Agora é Surubim, que fica do lado esquerdo. A seguir João Alfredo, que também passa longe e não vejo. Enquanto na direita tudo são terras de Limoeiro. Meu caminho divide, de nome, as terras que desço. Entretanto a paisagem, com tantos nomes, é quase a mesma. A mesma dor calada, o mesmo soluço seco, mesma morte de coisa que não apodrece mas seca.

Coronéis padroeiros vão desfilando com cada vila. Passam Cheos, Malhadinha, muito pobres e sem vida. Depois é Salgadinho com pobre águas curativas. Depois é São Vicente, muito morta e muito antiga. Depois, Pedra Tapada, com poucos votos e pouca vida. Depois é Pirauíra, é um só arruado seguido, partido em muitos nomes mas todo ele pobre e sem vida (que só há esta resposta à ladainha dos nomes dessas vilas).

A gente não é muita que vive por esta ribeira. Vê-se alguma caieira tocando fogo ainda mais na terra; vê-se alguma fazenda com suas casas desertas: vêm para a beira da água como bichos com sede. As vilas não são muitas e quase todas estão decadentes. Constam de poucas casas e de uma pequena igreja, como, no itinerário, já as descrevia Frei Caneca. Nenhuma tem escola; muito poucas possuem feira.

As vilas vão passando com seus santos padroeiros. Primeiro é Poço Fundo, onde Santo Antônio tem capela. Depois é Santa Cruz onde o Senhor Bom Jesus se reza. Toritama, antes Tôrres, fez para a Conceição sua igreja. A vila de Capado chama-se pela sua nova capela. Em Topada, a igreja com um cemitério se completa.

No lugar Couro d'Anta, a Conceição também se celebra. Sempre um santo preside à decadência de cada uma delas.

A estrada da Paraíba

Depois de Santa Cruz, que agora é Capibaribe, encontro uma outra estrada que desce da Paraíba. Saltando o Cariri e a serra de Taquaritinga, na estrada da ribeira ela deságua como num rio. Juntos, na da ribeira, continuamos, a estrada e o rio, agora com mais gente: a que por aquela estrada descia. Lado a lado com gente viajamos em companhia. Todos rumo do mar e do Recife esse navio.

Na estrada da ribeira até o mar ancho vou. Lado a lado com gente, no meu andar sem rumor. Não é estrada curta, mas é a estrada melhor, porque na companhia de gente é que sempre vou. Sou viajante calado, para ouvir histórias bom, a quem podeis falar sem que eu tente me interpor; junto de quem podeis pensar alto, falar só. Sempre em qualquer viagem o rio é o companheiro melhor.

Do riacho as Éguas ao ribeiro do Mel

Caruaru e Vertentes na outra manhã abandonei. Agora é Surubim, que fica do lado esquerdo. A seguir João Alfredo, que também passa longe e não vejo. Enquanto na direita tudo são terras de Limoeiro. Meu caminho divide, de nome, as terras que desço. Entretanto a paisagem, com tantos nomes, é quase a mesma. A mesma dor calada, o mesmo soluço seco, mesma morte de coisa que não apodrece mas seca.

Coronéis padroeiros

vão desfilando com cada vila. Passam Cheos, Malhadinha, muito pobres e sem vida. Depois é Salgadinho com pobre águas curativas. Depois é São Vicente, muito morta e muito antiga. Depois, Pedra Tapada, com poucos votos e pouca vida. Depois é Pirauíra, é um só arruado seguido, partido em muitos nomes mas todo ele pobre e sem vida (que só há esta resposta à ladainha dos nomes dessas vilas).

Terras de Limoeiro

Vou na mesma paisagem reduzida à sua pedra. A vida veste ainda sua mais dura pele. Só que aqui há mais homens para vencer tanta pedra, para amassar com sangue os ossos duros desta terra. E se aqui há mais homens, esses homens melhor conhecem como obrigar o chão com plantas que comem pedra. Há aqui homens mais homens que em sua luta contra a pedra sabem como se armar com as qualidades da pedra.

Dias depois, Limoeiro, cortada a faca na ribanceira. É a cidade melhor, tem cada semana duas feiras. Tem a rua maior, tem também aquela cadeia que Sebastião Galvão chamou de segura e muito bela. Tem melhores fazendas, tem inúmeras bolandeiras onde trabalha a gente para quem se fez aquela cadeia. Tem a igreja maior, que também é a mais feia, e a serra do Urubu onde desses símbolos negros.

Porém bastante sangue nunca existe guardado em veias para amassar a terra que seca até sua funda pedra. Nunca bastantes rios matarão tamanha sede, ainda escancarada, ainda sem fundo e de areia. Pois, aqui, em Limoeiro,

com seu trem, sua ponte de ferro, com seus algodoais, com suas carrapateiras, persiste a mesma sede, ainda sem fundo, de palha ou areia, bebendo tantos riachos extraviados pelas capoeiras.

De Limoeiro a Ilhetas

Deixando vou agora esta cidade de Limoeiro. Passa Ribeiro Fundo onde só vivem ferreiros, gente dura que faz essas mãos mais duras de ferro com que se obriga a terra a entregar seu fruto secreto. Passa depois Boi-Sêco, Feiticeiro, Gameleira, Ilhetas, pequenos arruados plantados em terra alheia, onde vivem as mãos que calçando as outras, de ferro, vão arrancar da terra os alheios frutos do alheio.

O trem de ferro

Agora vou deixando o município de Limoeiro. Lá dentro da cidade havia encontrado o trem de ferro. Faz a viagem do mar mas não será meu companheiro, apesar dos caminhos que quase sempre vão paralelos. Sobre seu leito liso, com seu fôlego de ferro, lá no mar do Arrecife ele chegará muito primeiro. Sou um rio de várzea, não posso ir tão ligeiro. Mesmo que o mar os chame, os rios, como os bois, são ronceiros.

Outra vez ouço o trem ao me aproximar de Carpina. Vai passar chã, lá por cima. Detém-se raramente, pois que sempre está fugindo, esquivando apressado as coisas de seu caminho. Diversa da dos trens é a viagem que fazem os rios: convivem com as coisas entre as quais vão fluindo; demoram nos remansos para descansar e dormir; convivem com a gente sem se apressar em fugir.

Encontro com o canavial

No outro dia deixava o Agreste, na Chã do Carpina. Entrava por Paudalho, terra já de cana e de usinas. Via plantas de cana com sua cabeleira, ou crina, muita folha de cana com sua lâmina fina, muita soca de cana com sua aparência franzina, e canas com pendões que são as canas maninhas. Como terras de cana, são muito mais brandas e femininas. Foram terras de engenho, agora são terras de usina.

Outros rios

Foram terras de engenho, agora são terras de usina. É o que contam os rios que vou encontrando por aqui. Rios bem diferentes daqueles que já viajam comigo. E estes também abraço com abraço líquido e amigo. Os primeiros porém nenhuma palavra respondiam. Debaixo do silêncio eu não sei o que traziam. Nenhum deles também antecipar sequer parecia o ancho mar do Recife que os estava aguardando um dia.

Primeiro é o Petribu, que trabalha para uma usina. Trabalham para engenhos o Apuá e o Cursaí. O Cumbe e o Cajueiro cresceram, como o Camilo, entre cassacos do eito, no mesmo duro serviço. Depois é o Muçurepe, que trabalha para outra usina. Depois vem o Goitá, dos lados da Chã da Alegria. Então, o Tapacurá, dos lados da Luz, freguesia da gente do escrivão que foi escrevendo o que eu dizia.

Conversa de rios

Só após algum caminho é que alguns contam seu segredo. Contam porque possuem

aquela pele tão espessa; por que todos caminham com aquele ar descalço de negros; por que descem tão tristes arrastando lama e silêncio. A história é uma só que os rios sabem dizer: a história dos engenhos com seus fogos a morrer. Nelas existe sempre uma usina e uma bangüê: a usina com sua boca, com suas várzeas o bangüê.

A usina possui sempre uma moenda de nome inglês; o engenho, só a terra conhecida como massapê. E o que não pode entrar nas moendas de nomes inglês a usina vai moendo com muitos outros meios de moer. A usina tem urtigas, a usina tem morcegos, que ela pode soltar como amestrados exércitos para ajudar o tempo que vai roendo os engenhos, como toda já roeu a casa-grande do Poço do Aleixo.

Do Petribu ao Tapacurá

As coisas são muitas que vou encontrando neste caminho. Tudo planta de cana nos dois lados do caminho; e mais plantas de cana nos dois lados dos caminhos por onde os rios descem que vou encontrando neste caminho; e outras plantas de cana há nas ribanceiras dos outros rios; que estes encontraram antes de se encontrarem comigo. Tudo planta de cana e assim até o infinito; tudo planta de cana para uma sô boca de usina.

As casas não são muitas que por aqui tenho encontrado (os povoados são raros que a cana não tenha expulsado). Poucas tem Rosarinho e Destêrro, que está pegado. Paudalho, que é maior, está menos ameaçada, Paudalho essa cidade construída dentro de um valado, com sua ponde de ferro

que eu atravesso de um salto. Santa Rita é depois, onde os trens fazem parada: só com medo dos trens é que o canavial não a assalta.

Descoberta da Usina

Até este dia, usinas eu não havia encontrado. Petribu, Muçurepe, para trás tinham ficado, porém o meu caminho passa por ali muito apressado. De usina eu conhecia o que os rios tinham contado. Assim, quando da Usina eu me estava aproximando, tomei caminho outro do que vi o trem tomar: tomei o da direita, que a cambiteira vi tomar, pois eu queria a Usina mais de perto examinar.

Vira usinas comer as terras que iam encontrando; com grandes canaviais todas as várzeas ocupando. O canavial é a boca com que primeiro vão devorando matas e capoeiras, pastos e cercados; com que devoram a terra onde um homem plantou seu roçado; depois os poucos metros onde ele plantou sua casa; depois o pouco espaço de que precisa um homem sentado; depois os sete palmos onde ele vai ser enterrado.

Muitos engenhos mortos haviam passado no meu caminho. De porteira fechada, quase todos foram engolidos. Muitos com suas serras, todos eles com seus rios, rios de nome igual como crias de casa, ou filhos. Antes foram engenhos, poucos agora são usinas. Antes foram engenhos, agora são imensos partidos. Antes foram engenhos com suas caldeiras vivas; agora são informes partidos que nada identifica.

Encontro com a Usina

Mas nas Usina é que vi aquela boca maior que existe por detrás das bocas que ela plantou; que come o canavial que contra as terras soltou; que come o canavial e tudo o que ele devorou; que come o canavial e as casas que ele assaltou; que come o canavial e as caldeiras que sufocou. Só na Usina é que vi aquela boca maior, a boca que devora bocas que devorar mandou.

Na vila da Usina é que fui descobrir a gente que as canas expulsaram das ribanceiras e vazantes; e que essa gente mesma na boca da Usina são os dentes que mastigam a cana que a mastigou enquanto gente; que mastigam a cana que mastigou anteriormente as moendas dos engenhos que mastigavam antes outra gente; que nessa gente mesma, nos dentes fracos que ela arrenda, as moendas estrangeiras sua força melhor assentam.

Por esta grande usina olhando com cuidado vou, que esta foi a usina que toda esta mata dominou. Numa usina se aprende como a carne mastiga o osso, se aprende como mãos amassam a pedra, o caroço; numa usina se assiste à vitória, de dor maior, de brando sobre o duro, do grão amassando a mó; numa usina se assiste à vitória maior e pior, que é a da pedra curta furada de suor.

Para trás vai ficando a triste povoação daquela usina onde vivem os dentes com que a fábrica mastiga. Dentes frágeis, de carne, que não duram mais de um dia; dentes são que se comem ao mastigar para a Companhia; de gente que, cada ano, o tempo da safra é que vive,

que, na braça da vida, tem marcado curto o limite. Vi homens de bagaço enquanto por ali discorria; vi homens de bagaço que morte úmida embebia.

E vi todas as mortes em que esta gente vivia: vi a morte por crime, pingando a hora da vigia; a morte por desastre, com seus gumes tão precisos, como um braço se corta, cortar bem rente muita vida; via morte por febre, precedida de seu assovio, consumir toda a carne com um fogo que por dentro é frio. Ali não é a morte de planta que seca, ou de rio: é morte que apodrece, ali natural, que visto.

Da Usina a São Lourenço da Mata

Agora vou deixando a povoação daquela usina. Outra vez vou baixando entre infindáveis partidos; entre os mares de verde que sabe pintar Cícero Dias, pensando noutro engenho devorado por outra usina; entre colinas mansas de uma terra sempre em cio, que o vento, com carinho, penteia, como se sua filha. Que nem ondas de mar, multiplicadas, elas se estendiam; como ondas do mar de mar que vou conhecer um dia.

À tarde deixo os mares daquela usina de usinas; vou entrando nos mares de algumas outras usinas. Sei que antes esses mares inúmeros se dividiam até que um mar mais forte os mais fracos engolia (hoje só grandes mares a Mata inteira dominam). Mas o mar obedece a um destino sem divisa, e o grande mar de cana, como o verdadeiro, algum dia, será uma só água em toda esta comum cercania. De São Lourenço à Ponte de Prata

Vou pensando no mar que daqui ainda estou vendo; em toda aquela gente numa terra tão viva morrendo. Através deste mar vou chegando a São Lourenço, que de longe é como ilha no horizonte de cana aparecendo; através deste mar, como um barco na corrente, mesmo sendo eu o rio, que vou navegando parece. Navegando Este mar, até o Recife irei, que as ondas deste mar somente lá se detêm.

Ao entrar no Recife, não pensem que entro só. Entra comigo a gente que comigo baixou por essa velha estrada que vem do interior; entram comigo rios a quem o mar chamou, entra comigo a gente que com o mar sonhou, e também retirantes em que só o suor não secou; e entra essa gente triste, a mais triste que já baixou, a gente que a usina, depois de mastigar, largou.

Entra a gente que a usina depois de mastigar largou; entra aquele usineiro que outro maior devorou; entra esse bangüezeiro reduzido a fornecedor; entra detrás um destes, que agora é um simples morador; detrás, o morador que nova safra já não fundou; entra, como cassaco, esse antigo morador; entra enfim o cassaco que por todas aquelas bocas passou. Detrás de cada boca, ele vê que há uma boca maior.

Da Ponte de Prata a Caxangá

A gente das usinas foi mais um afluente a engrossar aquele rio de gente que vem de além do Jacarará. Pelo mesmo caminho que venho seguindo desde lá, vamos juntos, dois rios,

cada um para seu mar. O trem outro caminho tomou na Ponte de Prata; foi por Tijipió e pelos mangues de Afogados. Sempre com retirantes, vou pela Várzea e por Caxangá onde as últimas ondas de cana se vêm espraiar.

Entra-se no Recife pelo engenho São Francisco. Já em terras da Várzea, está São João, uma antiga usina. Depois se atinge a Várzea, a vila pròpriamente dita, com suas árvores velhas que dão uma sombra também antiga. A seguir, Caxangá, também velha e recolhida, onde começa a estrada dita Nova, ou de Iputinga, que quase reta à cidade, que é o mar a que se destina, leva a gente que veio baixando em minha companhia.

Vou deixando à direita aquela planície aterrada que desde os pés de Olinda até os montes Guararapes, e que de Caxangá até o mar oceano, para formar o Recife os rios vão sempre atulhando. Com água densa de terra onde muitas usinas urinaram, água densa de terra e de muitas ilhas engravidada. Com substância de vida é que os rios a vão aterrando, com esse lixos de vida que os rios viemos carreando.

De Caxangá a Apipucos

Até aqui as últimas ondas de cana não chegam. Agora o vento sopra em folhas de um outro verde. Folhas muito mais finas as brisas daqui penteiam. São cabelos de moças ou dos bacharéis em direito que devem habitar naqueles sobrados tão pitorescos (pois os cabelos da gente que apodrece na lama negra geram folhas de mangue, que não folhas duras e grosseiras).

De Apipucos à Madalena

Agora vou entrando no Recife pitoresco, sentimental, histórico, de Apipucos e do Monteiro: do Poço da Panela, da Casa Forte e do Caldeireiro, onde há poças de tempo estagnadas sob as mangueiras; de Sant'Ana de Dentro, das muitas olarias, rasas, se agachando do vento. E mais sentimental, histórico e pitoresco vai ficando o caminho a caminho da Madalena.

Um velho cais roído e uma fila de oitizeiros há na curva mais lenta do caminho pela Jaqueira, onde (não mais está) um menino bastante guenzo de tarde olhava o rio como se filme de cinema; via-me, rio, passar com meu variado cortejo de coisas vivas, mortas, coisas de lixo e de despejo; vi o mesmo boi morto que Manuel viu numa cheia, viu ilhas navegando, arrancadas das ribanceiras.

Vi muitos arrabaldes ao atravessar o Recife: alguns na beira da água, outros em deitadas colinas; muitos no alto de cais com casarões de escadas para o rio; todos sempre ostentando sua ulcerada alvenaria; todos bem orgulhosos, não digo de sua poesia, sim, da história doméstica que estuda para descobrir, nestes dias, como se palitava os dentes nesta freguesia.

As primeiras ilhas

Rasas na altura da água começam a chegar as ilhas. Muitas a maré cobre e horas mais tarde ressuscita (sempre depois que afloram outra vez à luz do dia voltam com chão mais duro do que o que dantes havia). Rasas na altura da água

vê-se brotar outras ilhas: ilhas ainda sem nome, ilhas ainda não de todo paridas. Ilha Joana Bezerra, do Leite, do Retiro, do Maruim: o touro da maré a estas já não precisa cobrir.

O outro Recife

Casas de lama negra há plantadas por essas ilhas (na enchente da maré elas navegam como ilhas); casas de lama negra daquela cidade anfíbia que existe por debaixo do Recife contado em Guias. Nela deságua a gente (como no mar deságuam rios) que de longe desceu em minha companhia; nela deságua a gente de existência imprecisa, no seu chão de lama entre água e terra indecisa. Dos Coelhos ao cais de Santa Rita

Mas deixo essa cidade: dela mais tarde contarei. Vou naquele caminho que pelo hospital dos Coelhos, por cais de que as vazantes exibem gengivas negras, leva àquele Recife de fundação holandesa. Nele passam as pontes de robustez portuguesa, anúncios luminosos com muitas palavras inglesas; passa ainda a cadeia, passa o Palácio do Governo, ambos robustos, sólidos, plantados no chão mais seco.

Rio lento de várzea, vou agora ainda mais lento, que agora minhas águas de tanta lama me pesam. Vou agora tão lento, porque é pesado o que carrego: vou carregado de ilhas recolhidas enquanto desço; de ilhas de terra preta, imagem do homem que encontrei no meu comprido trajeto (também a dor desse homem me impõe essa passada doença, arrastada, de lama, e assim cuidadosa e atenta).

Vão desfilando cais com seus sobrados ossudos. Passam muitos sobrados com seus telhados agudos. Passam, muito mais baixos, os armazéns de açúcar do Brum. Passam muitas barcaças para Itapissuma, Igaraçu. No cais de Santa Rita, enquanto vou norte-sul, surge o mar, afinal, como enorme montanha azul. No cais, Joaquim Cardozo morou e aprendeu a luz das costas do Nordeste, mineral de tanto azul.

As duas cidades

Mas antes de ir ao mar, onde minha fala se perde, vou contar da cidade habitada por aquela gente que veio meu caminho e de quem fui o confidente. Lá pelo Beberibe aquela cidade também se estende pois sempre junto aos rios prefere se fixar aquela gente; sempre perto dos rios, companheiros de antigamente, como se não pudessem por um minuto somente dispensar a presença de seus conhecidos de sempre.

Conheço todos eles, do Agreste e da Caatinga; gente também da Mata vomitada pelas usinas; gente também daqui que trabalha nestas usinas, que aqui não moem cana, moem coisas muito mais finas. Muitas eu vi passar: fábricas, como aqui se apelidam; têm bueiro como usina, são iguais também por famintas. Só que as enormes bocas que existem aqui nestas usinas encontram muitas pedras dentro de sua farinha.

A gente da cidade que há no avesso do Recife tem em mim um amigo, seu companheiro mais íntimo. Vivo como esta gente, entro-lhes pela cozinha; como bicho de casa

penetro nas camarinhas. As vilas que passei sempre abracei como amigo; desta vila de lama é que sou mais do que amigo: sou o amante, que abraça com corpo mais confundido; sou o amante, com ela leito de lama divido.

Tudo o que encontrei na minha longa descida, montanhas, povoados, caieiras, viveiros, olarias, mesmo esses pés de cana que tão iguais me pareciam, tudo levava um nome com que poder ser conhecido. A não ser esta gente que pelos mangues habita: eles são gente apenas sem nenhum nome que os distinga; que os distinga na morte que aqui é anônima e seguida. São como ondas de mar, uma só onda, e sucessiva.

A não ser esta cidade que vim encontrar sob o Recife: sua metade podre que com lama podre se edifica. É cidade sem nome sob a capital tão conhecida. Se é também capital, será uma capital mendiga. É cidade sem ruas e sem casas que se diga. De outra qualquer cidade possui apenas polícia. Desta capital podre só as estatísticas dão notícia, ao medir sua morte, pois não há o que medir em sua vida.

Conheço toda a gente que deságua nestes alagados. Não estão no nível de cais, vivem no nível de lama e do pântano. Gente de olho perdido olhando-me sempre passar como se eu fosse trem ou carro de viajar. É gente que assim me olha desde o sertão do Jacarará; gente que sempre me olha como se, de tanto me olhar, eu pudesse o milagre de, num dia ainda por chegar, legar todos comigo, retirantes para o mar.

Os dois mares

A um rio sempre espera um mais vasto e ancho mar. Para a agente que desce é que nem sempre existe esse mar, pois eles não encontram na cidade que imaginavam mar senão outro deserto de pântanos perto do mar. Por entre esta cidade ainda mais lenta é minha pisada; retardo enquanto posso os últimos dias da jornada. Não há talhas que ver, muito menos o que tombar: há apenas esta gente e minha simpatia calada.

Oferenda

Já deixando o Recife entro pelos caminhos comuns do mar: entre barcos de longe, sábios de muito viajar; junto desta barcaça que vai no rumo de Itamaracá; lado a lado com rios que chegam do Pina com Jiquiá. Ao partir companhia desta gente dos alagados que lhe posso deixar, que conselho, que recado? Somente a relação de nosso comum retirar; só esta relação tecida em grosso tear.

Alguns toureiros

Eu vi Manolo Gonzáles e Pepe Luís, de Sevilha: precisão doce de flor, graciosa, porém precisa.

Vi também Julio Aparício, de Madrid, como Parrita: ciência fácil de flor, espontânea, porém estrita.

Vi Miguel Báez, Litri, dos confins da Andaluzia, que cultiva uma outra flor: angustiosa de explosiva.

E também Antonio Ordóñez, que cultiva flor antiga: perfume de renda velha,

de flor em livro dormida.

Mas eu vi Manuel Rodríguez, Manolete, o mais deserto, o toureiro mais agudo, mais mineral e desperto,

o de nervos de madeira, de punhos secos de fibra o da figura de lenha lenha seca de caatinga,

o que melhor calculava o fluido aceiro da vida, o que com mais precisão roçava a morte em sua fímbria,

o que à tragédia deu número, à vertigem, geometria decimais à emoção e ao susto, peso e medida,

sim, eu vi Manuel Rodríguez, Manolete, o mais asceta, não só cultivar sua flor mas demonstrar aos poetas:

como domar a explosão com mão serena e contida, sem deixar que se derrame a flor que traz escondida,

e como, então, trabalhá-la com mão certa, pouca e extrema: sem perfumar sua flor, sem poetizar seu poema.

Num monumento à aspirina

Claramente: o mais prático dos sóis,o sol de um comprimido de aspirina:de emprego fácil, portátil e barato, compacto de sol na lápide sucinta.Principalmente porque, sol artificial,que nada limita a funcionar de dia,que a noite não expulsa, cada noite,sol imune às leis de meteorologia,a toda hora em que se necessita delelevanta e vem (sempre num claro dia):acende, para secar a aniagem da alma,quará-la, em linhos de um meio-dia.

*

Convergem: a aparência e os efeitosda lente do comprimido de aspirina:o acabamento esmerado desse cristal,polido a esmeril e repolido a lima,prefigura o clima onde ele faz vivere o cartesiano de tudo nesse clima.

De outro lado, porque lente interna,de uso interno, por detrás da retina,não serve exclusivamente para o olhoa lente, ou o comprimido de aspirina:ela reenfoca, para o corpo inteiro,o borroso de ao redor, e o reafina.

A educação pela pedra - 1966)

Ana Cristina Cesar

Noite CariocaDiálogo de surdos, não: amistoso no frio. Atravanco na contramão. Suspiros no contrafluxo. Te apresento a mulher mais discreta do mundo: essa que não tem nenhum segredo.

Encontro de assombrar na catedral Frente a frente, derramando enfim todas as palavras, dizemos, com os olhos, do silêncio que não é mudez. E não toma medo desta alta compadecida passional, desta crueldade intensa que te toma as duas mãos.

Este livro Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do coração. É prosa que dá prêmio. Um tea for two total., tilintar de verdade que você seduz, charmeur volante, pela pista, a toda. Enfie a carapuça. E cante. Puro açúcar branco e blue.

é muito claro amor bateu para ficar nesta varanda descoberta a anoitecer sobre a cidade em construção sobre a pequena constrição no teu peito angústia de felicidade luzes de automóveis riscando o tempo canteiros de obras em repouso recuo súbito da trama

Quando entre nós só havia uma carta certa a correspondência completa o trem os trilhos a janela aberta uma certa paisagem sem pedras ou sobressaltos meu salto alto em equilíbrio o copo d’água a espera do café

Aventura na Casa Atarracada Movido contraditoriamente por desejo e ironia

não disse mas soltou, numa noite fria, aparentemente desalmado; - Te pego lá na esquina, na palpitação da jugular, com soro de verdade e meia, bem na veia, e cimento armado para o primeiro a andar. Ao que ela teria contestado, não, desconversado, na beira do andaime ainda a descoberto: - Eu também, preciso de alguém que só me ame. Pura preguiça, não se movia nem um passo. Bem se sabe que ali ela não presta. E ficaram assim, por mais de hora, a tomar chá, quase na borda, olhos nos olhos, e quase testa a testa.

O Homem Público N. 1 (Antologia) Tarde aprendi bom mesmo é dar a alma como lavada. Não há razão para conservar este fiapo de noite velha. Que significa isso? Há uma fita que vai sendo cortada deixando uma sombra no papel. Discursos detonam. Não sou eu que estou ali de roupa escura sorrindo ou fingindo ouvir. No entanto também escrevi coisas assim, para pessoas que nem sei mais quem são, de uma doçura venenosa de tão funda.

Nada, esta espuma Por afrontamento do desejo insisto na maldade de escrever mas não sei se a deusa sobe à superfície ou apenas me castiga com seus uivos. Da amurada deste barco quero tanto os seios da sereia.

Voando com o pássaroTu queres sono: despe-te dos ruídos, edos restos do dia, tira da tua bocao punhal e o trânsito, sombras deteus gritos, e roupas, choros, cordas etambém as faces que assomam sobre atua sonora forma de dar, e os outros corposque se deitam e se pisam, e as moscas

que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças)que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos queesqueceram teus braços e tantos movimentosque perdem teus silêncios, o os ventos altosque não dormem, que te olham da janelae em tua porta penetram como loucospois nada te abandona nem tu ao sono.

SonetoPergunto aqui se sou louca Quem quer saberá dizer Pergunto mais, se sou sã E ainda mais, se sou eu

Que uso o viés pra amar E finjo fingir que finjo Adorar o fingimento Fingindo que sou fingida

Pergunto aqui meus senhores quem é a loura donzela que se chama Ana Cristina

E que se diz ser alguém É um fenômeno mor Ou é um lapso sutil?

olho muito tempo o corpo de um poemaaté perder de vista o que não seja corpoe sentir separado dentre os dentesum filete de sanguenas gengivas

Flores do mais

devagar escreva uma primeira letra escreva na imediações construídas pelos furacões; devagar meça a primeira pássara bisonha que riscar o pano de boca aberto sobre os vendavais; devagar imponha o pulso que melhor souber sangrar sobre a faca das marés; devagar imprima o primeiro olhar sobre o galope molhado dos animais; devagar peça mais e mais e mais

Tenho uma folha brancae limpa à minha espera:mudo convite

tenho uma cama brancae limpa à minha espera:mudo convite

tenho uma vida brancae limpa à minha espera:

Inéditos e Dispersos, Ática, São Paulo, 1998

Protuberância

Este sorriso que muitos chamam de bocaÉ antes um chafariz, uma coisa louca Sou amativa antes de tudoEmbora o mundo me condeneDevo falar em nariz(as pontas rimam por dentro)Se nos determos amanhãPelo menos não haverá necessidades frugais nos espreitandoQuem me emprestar seu peito ma madrugadaE me consolar, talvez tal vez me ensine um assobioNão sei se me querem, escondo-me sem impassesE repitamos a amadora souArmadora decerto atrás das portasNão abro para ninguém, e se a pena é lépida, nada me detémÉ sem dúvida inútil o chuvisco de meus olhosO círculo se abre em circunferências concêntricas que seFecham sobre si mesmasNo ano 2001 terei (2001-1952=) 49 anos e serei uma rainhaRainha de quem, quê, não importaE se eu morrer antes dissoNão verei a lua mais de pertoTalvez me irrite pisar no impisávelE a morte deve ser muito mais gostosaRecheada com marchemélouUma lâmpada queimada me contemplaEu dentro do templo chuto o tempoUm palavra me delineiaVORAZE em breve a sombra se dilui,Se perde o anjo.