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Laplage em Revista (Sorocaba), vol.4, n.1, jan.-abr. 2018, p.202-214 ISSN:2446-6220 Para uma metacrítica da organização escolar For a metacrítica of school organization Para una metacrítica de la organización escolar Maria João Carvalho Universidade Trás-os –Montes e Alto Douro [UTAD] – Pt. José Viegas Brás Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias [ULUSÓFONA] – Pt. Maria Neves Gonçalves Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias [ULUSÓFONA] – Pt. RESUMO Este artigo centra-se na problematização do modo de organização das escolas e da sua relação com a racionalidade instrumental, que o Estado adota na sua tomada de decisão, na tentativa de evidenciarmos os fenómenos que expressam uma suposta neutralidade e uma naturalização que as ideologias neoliberais preconizam. O objectivo deste trabalho é proceder a uma Crítica do pensamento crítico à qualidade da Organização Escolar. Nesta abordagem fizemos da Teoria Crítica uma categoria teórica para a análise das organizações escolares. Elegemos a Escola de Frankfurt, para discutir e refletir sobre outros modos, ou outras lógicas de representar e perspetivar, no caso, a organização escolar. Como conclusão podemos destacar o contributo da Teoria Crítica para a reinvenção da organização escolar. Palavras-chave: Educação. Escola. Políticas educacionais. Políticas públicas. ABSTRACT This work focuses on questioning the way of organization of schools and their relationship with the instrumental rationality, the State adopts in its decision-making, to show the phenomena that express a supposed neutrality and a naturalization that neoliberal ideologies advocate. The aim of this work is to carry out a review of critical thought to the quality of school organization. This approach made the critical theory a theoretical category to the analysis of school organizations. We elected to the Frankfurt School, to discuss and reflect on other modes, or other logic to represent a school organization. As a conclusion we can highlight the contribution of critical theory to the reinvention of the school organization. Keywords: Education. School. Educational policies. Public policies. RESUMEN Este trabajo se centra en cuestionar la forma de organización de escuelas y de su relación con la racionalidad instrumental, que el Estado adopta en su toma de decisiones, en un intento de evidenciar los fenómenos que expresan una supuesta neutralidad y una naturalización que las ideologías neoliberales defienden. El objetivo de este trabajo es realizar una revisión del pensamiento crítico para la calidad de la organización escolar. Este enfoque hizo de la teoría crítica una categoría teórica para el análisis de organizaciones de la escuela. Se eligió a la escuela de Frankfurt, para debatir y reflexionar sobre otros modos, también otros representan lógica y dan perspectiva, en este caso, a la organización de la escuela. Como conclusión podemos destacar la contribución de la teoría crítica a la reinvención de la organización de la escuela. Palabras-clave: Educación. Escuela. Políticas educativas. Políticas públicas. DOI: https://doi.org/10.24115/S2446-6220201841400p.202-214

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Laplage em Revista (Sorocaba), vol.4, n.1, jan.-abr. 2018, p.202-214 ISSN:2446-6220

Para uma metacrítica da organização escolar For a metacrítica of school organization

Para una metacrítica de la organización escolar

Maria João Carvalho

Universidade Trás-os –Montes e Alto Douro [UTAD] – Pt.

José Viegas Brás

Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias [ULUSÓFONA] – Pt.

Maria Neves Gonçalves

Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias [ULUSÓFONA] – Pt.

RESUMO Este artigo centra-se na problematização do modo de organização das escolas e da sua relação com a racionalidade instrumental, que o Estado adota na sua tomada de decisão, na tentativa de evidenciarmos os fenómenos que expressam uma suposta neutralidade e uma naturalização que as ideologias neoliberais preconizam. O objectivo deste trabalho é proceder a uma Crítica do pensamento crítico à qualidade da Organização Escolar. Nesta abordagem fizemos da Teoria Crítica uma categoria teórica para a análise das organizações escolares. Elegemos a Escola de Frankfurt, para discutir e refletir sobre outros modos, ou outras lógicas de representar e perspetivar, no caso, a organização escolar. Como conclusão podemos destacar o contributo da Teoria Crítica para a reinvenção da organização escolar.

Palavras-chave: Educação. Escola. Políticas educacionais. Políticas públicas.

ABSTRACT This work focuses on questioning the way of organization of schools and their relationship with the

instrumental rationality, the State adopts in its decision-making, to show the phenomena that express a supposed neutrality and a naturalization that neoliberal ideologies advocate. The aim of this work is to carry out a review of critical thought to the quality of school organization. This approach made the critical theory a theoretical category to the analysis of school organizations. We elected to the Frankfurt School, to discuss and reflect on other modes, or other logic to represent a school organization. As a conclusion we can highlight the contribution of critical theory to the reinvention of the school organization.

Keywords: Education. School. Educational policies. Public policies.

RESUMEN Este trabajo se centra en cuestionar la forma de organización de escuelas y de su relación con la racionalidad instrumental, que el Estado adopta en su toma de decisiones, en un intento de evidenciar los fenómenos que expresan una supuesta neutralidad y una naturalización que las ideologías neoliberales defienden. El objetivo de este trabajo es realizar una revisión del pensamiento crítico para la calidad de la organización escolar. Este enfoque hizo de la teoría crítica una categoría teórica para el análisis de organizaciones de la escuela. Se eligió a la escuela de Frankfurt, para debatir y reflexionar sobre otros modos, también otros representan lógica y dan perspectiva, en este caso, a la organización de la escuela.

Como conclusión podemos destacar la contribución de la teoría crítica a la reinvención de la organización de la escuela.

Palabras-clave: Educación. Escuela. Políticas educativas. Políticas públicas.

DOI: https://doi.org/10.24115/S2446-6220201841400p.202-214

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Introdução

escola de hoje mergulha numa crise de confiança. Passou-se da crença de que a escola tudo podia fazer para a incapacidade da escola nada poder fazer. À medida

que temos vindo a aumentar o tempo de escolarização obrigatória, parece ter correspondido de forma proporcional a um igual aumento de desconfiança. O

descontentamento é hoje uma realidade atingindo de forma brutal a escola e os seus

profissionais. A imagem social dos professores está em declínio e a escola é apontada como a grande produtora do mal-estar. Em Portugal, autores como, por exemplo, Teodoro (1990),

Nóvoa (1989), Jesus (s.d), Esteve (1992), têm vindo a denunciar esta situação. A nível internacional uma série de autores também têm vindo a contribuir para um pensamento

educacional crítico. Entre eles destacamos Giroux (1986), Popkewitz (2000), McLaren (1995),

Paulo Freire (1987), Young (2014), Bernstein (2000), entre outros e sem esquecer o forte

contributo da denominada Escola de Frankfurt.

Tem-se vindo a colocar em ênfase que a crise não é só económica, laboral, de estatuto, mas também simbólica. As organizações escolares são dispositivos que ajudam e põem em marcha

todo um processo de fragmentação. E a “cultura organizacional é composta por elemtos vários, que condicionam tanto a sua configuração interna, como o estilo de interacções que estabelece

com a comunidade” (NÓVOA, 1992, p.30). As tensões vividas actualmente na organização

escolar amplificam ainda mais esta situação de mal-estar. O esvaziamento da instituição escolar e o papel do educador torna-se cada vez mais evidente. Os trabalhos de Bourdieu e Passeron

(s.d.) puseram em evidência a relação entre as variáveis sociais e culturais e o sucesso dos alunos. A escola é apontada como a grande fábrica de desigualdades sociais e um dos elementos

essenciais da reprodução social.

O poder de violência simbólica que a escola exerce, faz com que as significações que ela faz produzir, sejam percepcionadas como legítimas e naturais. Toda a acção pedagógica (inculcação

de habitus de classe) que é exercida na organização escolar expressa um poder de violência simbólica. O sistema de ensino realiza-se através da auto-reprodução (BOURDIEU, 1989). Neste

sentido importa fazer um trabalho crítico sobre a organização escolar. Refletir sobre o papel da

Teoria Crítica para a compreensão da organização escolar obriga reflectir sobre alguns conceitos que se revelam como orientadores de toda uma construção teórica que culminou com a

hegemonia da racionalidade instrumental sobre todas as outras formas de racionalidade, ou seja, sobre outros modos, ou outras lógicas de representar e perspetivar, no caso, a organização

escolar. Com efeito é importante dar espaço a discursos que sirvam como instrumento de desobstrução do caminho da emancipação pela possibilidade de identificação das práticas

opressoras, da descoberta dos constrangimentos à comunicação e das causas da submissão do

indivíduo.

Se são as escolas que de modo mais direto contribuem para a transformação da sociedade que

se quer mais justa e mais solidária, então é necessário refletir sobre o cidadão que a escola pretende formar e que tipo de valores devem operar nessa organização. Na perspetiva de uma

conceção crítica de educação urge abandonar o objetivo a que a educação tem vindo a

materializar, desvinculando-a da subordinação à esfera económica (GIROUX, 1986). Só o entendimento da escola como espaço de comunicação permite a construção de uma linguagem

crítica sobre a realidade escolar como reação às contradições e limitações do modelo capitalista. É, por isso, necessário que os discursos sejam a expressão de uma consciência que se vai

constituindo através dos problemas da sociedade e da humanidade em geral, enformados por valores que respeitem a condição humana impedindo que a expressão livre e autónoma seja

absorvida pelas tecnologias das diversas reconfigurações do poder.

A

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Transformar as situações de opressão no interior dos espaços escolares de modo a abrir caminho à emancipação implica que os atores educativos aprendam a agir e a pensar

criticamente, a partir das relações que emergem das situações concretas e de ações que se materializam em sentimentos que impedem a naturalização, a universalização dos interesses

administrativos e a hegemonia da racionalidade instrumental que a modernidade ajudou a

construir.

Nada do trabalho que é realizado nas escolas é feito fora da esfera política. Por muito que se

queira “naturalizar” ou neutralizar a escola com a frieza descomprometida da sua regulação “científica” (racionalidade instrumental), nada é indiferente ou neutro. A parcialidade dos

discursos produzidos, acerca do significado do que a escola produz, estão relacionados com o

lugar de enunciação. Não olhamos para a escola como se ela flutuasse no mar educativo, indiferente a qualquer rumo que possa tomar. A escola está politicamente comprometida. Neste

sentido, o objectivo deste trabalho é proceder a uma Crítica do pensamento crítico à qualidade

da Organização Escolar.

Nesta abordagem fizemos da Teoria Crítica uma categoria teórica para a análise das organizações escolares, de forma a podermos encontrar (questionar) uma nova qualidade. Sair

do estado actual exige uma prática intelectual que não se deixe arrastar por uma racionalidade

técnica que silencia a importância e a necessidade do trabalho crítico e axiológico. Este posicionamento teórico revela-se fundamental para a inovação e emancipação. Devemos

sublinhar que a questão da emancipação foi considerada a bandeira que dava sentido à educação. Neste debate esteve empenhada a Educação Crítica, na qual se insere a Escola de

Frankfurt. A Ligação entre Educação e Teoria Crítica é, pois, uma abordagem necessária no

sentido de ser apreendida a relação que se estabelece na organização escolar. A crítica da Teoria Crítica é, portanto, o ponto fundamental da nossa abordagem metodológica.

Em rutura com a modernidade: a Escola de Frankfurt

Marcuse (s.d), Adorno (2001), Horkheimer e Adorno (1998) e Habermas (2013) têm em comum a recusa de uma razão e, consequentemente, de um conhecimento que se desenvolveram de

forma unidimensional, a saber, no sentido dos meios que se exigem cada vez mais perfeitos,

visando alcançar fins legitimados pelo sistema político-económico que tudo submete aos seus interesses. A instrumentalização dos indivíduos tem encontrado justificação na construção de

uma sociedade que se quer mais justa, acolitada pelo aumento de produtividade e eficiência. Seguiram a mesma linha iniciada por Marx e empreenderam uma crítica à sociedade pós-

industrial e ao conceito de racionalidade por si ocasionada, permitindo-lhes constatar o fracasso

do plano iluminista.

Este grupo de teóricos deu forma a um movimento denominado Escola de Frankfurt, o qual

reclama uma nova forma de racionalidade. Apelam ao conhecimento das práticas sociais como modo de perscrutar tanto a natureza da razão como o seu alcance e limites, ao mesmo tempo

que pensam o sujeito provido de interesses e condicionado situacionalmente por ser social. O carácter de egocêntrico, dominador e possessivo que levou a atitudes de exclusão, dominação

e repressão pelo diferente, próprio do sujeito dito racional, foi a causa da adulteração do

racionalismo moderno. Daí que o seu propósito era “reconstruir nociones de subjectividad y autonomia consistentes tanto com la dimensión social de la identidad individual como com el

carácter situado de la acción social” (McCARTHY, 1992, p.59).

A pretensão da Escola de Frankfurt não é a aniquilação da ilustração, antes a sua reformulação,

“reanimar assim o desafio duma razão ‘encurralada’ pela racionalidade técnica”. O ideal da

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ilustração mantém-se em toda a sua força, mas agora admitindo a existência de uma razão penetrada pelos domínios afetivo e instintivo. Ampliando a própria razão, permitindo sondar o

mais profundo da realidade, recuperando-a como origem de verdade e perfeição que a ilustração tinha votado ao esquecimento, como votou ao esquecimento o homem

contemplativo, transformando-o num conhecedor de variados saberes, condição necessária à

previsão e dominação, o que acabará por fundamentar a sua situação de objeto em prol de um

conhecimento tecnicista.

Se a tecnociência é, por um lado, instrumento eficaz de domínio do homem sobre a natureza, por outro, possibilita um crescente domínio sobre o próprio homem. Para Cantista (1984), este

propósito não teve visibilidade prática ao considerar que o citado movimento não foi capaz de

regenerar a praxis, libertando-a de toda a ideologia. O futuro como momento imprevisível não encontra, aqui, lugar cativo, à semelhança do indeterminismo do homem e do mundo. A

ausência de crítica concorreu para o crescente aparecimento de males, tornando-se cúmplice, ao ter pactuado com práticas postas ao serviço de interesses particulares e de poderes, deste

mal-estar social. O aspeto prático vai adquirir primazia relativamente ao teórico, fruto de uma

conceção de conhecimento entendido como produto social.

Nas condições da sociedade vigente não se encontra objetivada a sociedade racional a que

todos os homens aspiram. No entanto, esta finalidade não deixa de estar no horizonte do sujeito, porque “los seres humanos, todavia mantienem una voluntad y lucham por una

organización de la sociedad ‘racional’” (THERBORN, 1972, p.30). Toda a atividade da Modernidade se enraíza numa atitude que não dispõe a inteligência a discernir e a escolher

sobre o que convém na vida, o que, à partida, poderia evitar consequências menos positivas.

Prevenir situações desagradáveis parece não ter sido uma preocupação da Modernidade, o que é motivo para se afirmar que a atuação sábia não fez parte integrante da conduta do ilustrado.

O projeto de uma boa vida foi anulando o ideal de uma vida boa, esta subordinada à justiça, em suma, ao bem. A ética deixou de estar no horizonte do domínio público. O intuito da Escola de Frankfurt passa pela transformação do sujeito como criador da história e, forçosamente, pela transformação da sociedade que se quer outra, na qual a individualidade e universalidade se

harmonizem.

Afinal para que serve a educação? Moldar? Domesticar? Adaptar? Transmitir o saber como coisa morta? A educação ganha sentido, particularmente na democracia, quando produz uma

consciência verdadeira. Isto amplifica o significado político conferido à educação. Uma democracia que se preze só pode considerar-se realizada se conseguir produzir homens

emancipados. É paradoxal que uma escola democrática funcione e promova a antidemocracia.

Significa dizer que se trata de realizar um trabalho de desalienação e não de alienação. O sujeito em formação no sentido da sua emancipação deve ser preparado para exercer vigilância em

relação às experiências de interiorização da realidade como sendo uma verdade. Sabemos hoje, diz-nos Maar (1995, p.63) que a verdade “não é só condicionada temporalmente, mas também

racionalmente, ou seja: conforme um determinado modo da racionalidade, que é social.” A

razão tem potencialidades e limitações. Neste sentido, a experiência formativa não pode limitar-se a uma relação de conhecimento baseado na lógica do método das ciências naturais.

Transformar o sujeito implica um “trajecto de estranhamento e reapropriação” entre o sujeito e a realidade (o subjectivo e o objectivo). Na Fenomenologia do Espírito (1992 [1807] de Hegel

encontramos este caminho de busca necessária à formação do sujeito que se quer emancipado.

Neste ponto importa realçar, à imagem de Foucault (2000), Barthes (1997), Bakhtin (2010)

ideia de autoria. Historicamente, somos autores, ou melhor, tornamo-nos autores. Interessa

aqui destacar a necessidade do sujeito como criador da história, mas não no sentido de

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identificar o transgressor (exaltação do indivíduo) para ser punido, tal como era prática habitual em tempos remotos, mas antes no sentido da necessidade de transgredir a realidade para se

poder inovar. Chartier (1999) faz esta alusão – os primeiros movimentos para estabelecer a figura de autor emergiram na Idade Média. As autoridades religiosas identificavam o trangressor

(autor) para os condenar. Agora trata-se de uma necessidade inversa. Não se trata de identificar

os heréticos para os eliminar, mas da necessidade de execermos a autoria para rompermos com a realidade que bloqueia o desenvolvimento da organização escolar. Aqui não é para fazer,

utilizando a expressão de Foucault (2000), o papel do morto, ou expressar a singularidade da sua ausência, mas de exercer o poder criativo da crítica. Não é identificar o autor do anonimato

para o criminalizar e melhor se controlar a ordem dominante, mas apelar à capacidade criativa

de cada um para romper com a ordem dominante.

O problema da autoria pode também ter um outro ângulo de análise. Olhando de outro modo

podemos também dizer que a dominação está presente na organização escolar. Este é um ponto nevrálgico no fenómeno das organizações, tanto mais que se tratam de instituições que têm

por traço constitutivo a promoção da educação das pessoas, o que torna o questionamento da

emancipação um ponto nuclear da reflexão.

Qualquer análise sobre a organização escolar não pode ficar “indiferente” a dois processos

contraditórios que podem estar acoplados no funcionamento da organização escolar – opressão-sujeição; liberdade-empowerment. A organização escolar está comprometida com relações de

poder e este pode promover a autonomia ou a sujeição, a libertação ou a dependência. Quer dizer que o emporwerment organizacional é susceptível de refrear ou incentivar os processos

de autonomia. Segundo Baquero (2012) o empowerment organizacional é o empoderamento

gerado na e pela organização. Cabe aqui a análise dos processos de trabalho que efectivamente objectiva, da delegação dos processos de decisão, dos graus de autonomia que promove, da

mobilização participativa, da maneira como acolhe, envolve e incentiva os professores, alunos, funcionários, pais... O empoderamento organizacional tem grandes implicações no

emporwerment individual pelo tipo de interacções que estabelece e promove. O desenvolvimento individual não se faz fora do contacto com os outros, pelo contrário, ele resulta

do relacional (psicossocial). Por isso, a percepção que cada um vai construindo a partir das suas

vivências com os outros, o ganho de auto-estima e auto-confiança, a preocupação com o auto-aperfeiçoamento, podem contribuir para amplificar a sua compreensão e auxiliar a auto-

emancipação.

Horkheimer, Adorno, Marcuse e Habermas – em rutura com a racionalidade instrumental

Horkheimer (1973), elemento de relevo no contexto deste movimento, considera que a alteração da conjuntura terá como ponto de partida o verdadeiro conhecimento do ser humano

e da sociedade, condição nuclear para se fundar uma vida social racional que harmonize os

interesses individuais e sociais, como se fossem interesses singulares, destruindo a contraditória separação destas duas esferas fomentada ao longo dos tempos. A luta económica é o sintoma

do domínio do capital e de um grupo minoritário de homens sobre os restantes indivíduos, situação que na ótica do autor não nos permite vislumbrar este mundo como sendo o da razão,

pois esta situação não pode ser sua obra.

Mas se a sua preocupação é a sociedade tal como ela é, a sociedade capitalista, o intuito é a

sua transformação, suportada por um juízo que reconhece ao sujeito a capacidade de mudar

as coisas, sugerindo que, se as coisas são assim, nada invalida que possam ser de outro modo.

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É bem possível que se possa superar o economismo, que o vota à condição de dominado. Este modo de existencia justifica-se, na ótica de Mardones, porque “El individuo esta sometido a la

estructura y al contenido de la ‘razón subjectiva’ que vicia todo el desarrollo del pensamiento y

de la sociedad moderna” (1979, p.60).

O que movia Adorno e Horkheimer “[…] era nada menos que comprender por qué la humanidad,

en lugar de entrar en un Estado verdaderamente humano, desembocó en un nuevo género de barbarie” (1971, p.1), cabendo ao espírito essa tarefa. Preocupação que a guerra e o pós-guerra

vieram fortalecer, estando no cerne das preocupações a destruição da humanidade, objetivo de toda a reflexão. É na tentativa de derrubar a racionalidade dita instrumental, sem preocupação

de justificar os próprios fins, legitimando-os se se apresentarem como convenientes para a

autopreservação económica de determinados grupos, que Horkheimer lhe opõe uma racionalidade compreensiva, que reconheça a razoabilidade de uma qualquer ação: “Es la razón

contra la razón para salvar a la razón” (1973, p.195), como se de uma terapia se tratasse. Será da tensão entre ambas que se fará a recuperação da razão autónoma, emancipadora, através

da dialética negativa a qual consistirá na negação e na rutura com os sistemas. Diz o autor:

La negación es un arma de doble filo, es negación de las pretensiones absolutas de la ideología dominante y de las pretensiones insolentes de la realidad. [...] En la medida en que sujeto, objeto palabra y cosa, no pueden unificarse en las circunstancias actuales, nos vemos impulsionados por el principio de la negación a intentar la salvación de verdades relativas de entre los escombros de falsos valores absolutos (HORKHEIMER, 1973, p.190).

A vida social vê-se plasmada ao mesmo esquema de organização e planificação da gestão de uma qualquer fábrica. Tudo está impregnado da mesma racionalidade técnica. Há como que

uma uniformização das coisas levando a que partilhem de uma certa familiaridade entre si, conferindo-lhes uma forma padronizada quanto padronizadas estão as respostas às nossas

necessidades, as quais, frequentemente, são construídas e alicerçadas a um incompreensível

sem sentido. Por isso diz Adorno:

A abundância do que indiscriminadamente se consome torna-se funesta. Impossibilita orientar-se nela, e assim como nos monstruosos armazéns há que buscar um guia, também a população, afogada em ofertas, espera o seu” (2001, p.120).

É esta forma de produção que contribui para a denominada cultura de massa, consequência da

economia vigente que submete à seriação, padronização e divisão do trabalho a maior parte dos objetos, motivo que votará a cultura à condição de mercadoria, ficando ausente da sua

forma qualquer vestígio crítico ou qualquer desígnio de uma experiência sentida. Perverso é

que “La industria cultural há realizado malignamente al hombre como ser genérico” (HORKHEIMER, ADORNO, 1998, p.190) A singularidade própria do homem, a sua marca

diferenciadora deixa de fazer sentido na medida em que tudo pode ser substituível, porque tudo se pode converter num outro, idêntico àquele que sirva a economia. Anula-se qualquer aspeto

identificador do sujeito, porque o que importa são as características genéricas do comprador

tipo, do consumidor tipo. Daí que “La adquisición de status, y el consumo como ostentación e identificación, se instauran como los fines de la existencia y sus prácticas cotidianas” (MUÑOZ,

2000, 183).

Tudo concorre para o entendimento enganoso que o indivíduo passará a ter sobre a liberdade,

“Porque si antes la coacción era más directa, no por ello somos ahora más libres. Solo que

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ahora no se nos presiona como individuos, ahora se presiona colectivamente a una sociedad cuyas preferencias consumistas son cuidadosamente programadas. El que no se doblega queda

aislado” (GIRÓN, 2001, p.130).

É inevitável que a vida não seja experienciada em toda a sua plenitude por parte deste sujeito

que a ilustração criou, devido ao Estado de adormecimento em que se encontra,

impossibilitando-o de reconhecer o belo e os prazeres que a vida proporciona. Desprovido de autonomia, encontra-se também desprovido da capacidade de pensar que a própria sociedade

lhe retirou, tornando-o dócil a tudo o que foi ocorrendo, obrigando-o a uma racionalidade

manipuladora.

É necessário, por isso mesmo, que a razão deixe de se reduzir à condição de meio com a

particular preocupação de dominar a natureza. Imperativo é que a razão se liberte e se recuse a estar subordinada aos ditames e interesses económicos, pertença de uma minoria. Indelével

é a figura de Marcuse (s.d) no panorama da Escola de Frankfurt. Na mesma linha dos anteriores, é de opinião que a ânsia desenfreada de instrumentalização das coisas terá a consequência

perversa de instrumentalizar o próprio homem. Um mundo assim experienciado é objeto de

várias críticas.

Na tentativa de pôr a descoberto as formas de dominação política transfiguradas numa

racionalidade que concebe o mundo regulado em paralelo pela tecnologia e pela ciência, vai revelar a racionalidade que aí tem origem, expressa pelo modo de organização social que vota

o homem à condição de dominado ao invés de o emancipar. Tudo ficou reduzido a uma visão unidimensional. Identificou-se discurso e pensamento à custa da racionalidade instrumental,

fazendo “[...] acordarem-se a coisa e a sua função, a realidade e a aparência, a essência e a

aparência, a essência e a existência” (MATTELARD, MATTELARD, 1997, 69).

Não há lugar para a crítica nesta sociedade unidimensional, em que a rentabilidade se impõe

como lógica dominante, que é em si mesma opressora. Daqui resulta uma situação com consequências trágicas para o indivíduo, pois este passará a avaliar-se e a reconhecer-se nas

suas mercadorias, e transportará o seu ser para o seu ter, exteriorizando-se, desta feita, nas coisas, símbolos da abundância e do consumismo. E nisto encontra o autor justificação para

dizer que os homens “[...] encontram a sua alma no seu automóvel, no seu aparelho de alta-

fidelidade, na sua casa duplex, no seu equipamento de cozinha” (MARCUSE, s.d., p.29).

A subjugação não existe de forma consciente ou pensada no indivíduo, a liberdade é

percecionada, e confundida, dirá o autor, como a escolha individual que se caracteriza por visar um maior bem-estar que estará em conexão com a infindável capacidade de consumo, de uma

ideologia de abundância e de progresso que domestica, que tudo submete à sua tirania. É esta

ideologia que esconde a miséria e o medo e bane, subtilmente, a oposição e a consciência crítica que poderiam ser utilizadas em benefício da própria técnica, ou seja, não a recusando

mas melhorando os resultados obtidos até então, de forma a contribuir para a humanização e emancipação do ser humano, escopo perseguido pelo ideal iluminista, e que não teve, ainda,

repercussões práticas na existência concreta. É assim a sociedade industrial, paradoxal em si

mesma. Se por um lado dispõe de meios que ajudariam à construção de uma melhor sociedade, por outro eles tornam-se violentos quando concorrem para a impossibilidade de o ser humano

determinar livremente a sua forma de existência.

Habermas (2013) inscreve-se na segunda geração da Escola de Frankfurt e, tal como os

anteriores, lança uma crítica feroz à racionalidade instrumental que liga ao interesse imediato do existir. O homem moderno rompeu com a preocupação fundamental dos antigos, cujo

objetivo seria encontrar a melhor forma de viver harmoniosamente com a natureza, obedecendo

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à sua ordem. A sua primordial inquietação recai sobre o modo como dominar as formas naturais que intimidam o ser humano, o que nos remete para um problema que é essencialmente

técnico. Este deixou de se sentir protegido no mundo dos factos, que por sua vez deixou de lhe revelar o motivo da sua existência, deixou de lhe fornecer uma finalidade, e o sujeito como que

desaprendeu a situar-se no mundo e em primeira instância na sociedade.

É um imperativo categórico a descoberta de uma nova racionalidade, de âmbito mais alargado, que não se feche na permissão do que é previsível na realidade, mas que englobe o aspeto

intercomunicativo da ação, ao mesmo tempo que determine as regras da ação social livre, sem vínculos a nada que a reprima, e tendo por base uma moral universal que será consequência

de um discurso onde os indivíduos se reconhecem pela linguagem, pelo diálogo sujeito a um

sistema de regras que é necessário dominar. Em suma, Habermas apresenta uma racionalidade fundamentada no modo predicativo, e não substancial, da razão. A racionalidade deve admitir

o falível e estabelecer uma relação com o mundo dos factos para julgar com objetividade. A crítica e a justificação passam a incorporar o ser da racionalidade, que ora se guia por valores

pragmáticos, ora tem no objetivo de encontrar consensos a sua orientação.

A sua teoria crítica radica nas relações de intercomunicação dos sujeitos, das quais resultará

uma opinião pública esclarecida, neste aspeto muito próximo de Popper porque também este

vê na racionalidade “a atitude de estar disposto a corrigir as próprias crenças. Na sua forma intelectualmente mais desenvolvida, corresponde ao estar disposto a discutir as próprias crenças

de uma forma crítica e a corrigi-las à luz da discussão crítica com outras pessoas” (POPPER,

1996, p.219).

Teoria crítica e organização escolar

O centralismo burocrático, configurado na tomada de decisão, que permeia a organização

escolar, configura a sua estrutura como a expressão de um processo patriarcal, onde os planos de estudos, os planos curriculares, o cumprimento de horários e de outras decisões

organizacionais se dão num quadro de uma total obediência dos educadores e educandos que se veem invadidos por um sentimento de impotência e, por isso, s convertem em meros

observadores passivos da realidade.

À luz da teoria crítica, esta lógica de organização e administração está contaminada pelos princípios do controlo científico dos sistemas de produção caros ao pensamento positivista. O

pensamento dos atores educativos fica enclausurado à ideia falaciosa de que a partir dos meios técnicos e de métodos de programação rígida e mecânica se possam produzir formas científicas

de processos de trabalho, o que se acabará por traduzir em inibição de formas de expressão livres e criadores de resolver os próprios problemas. As tomadas de decisão fora do alcance da

realidade e da participação dos sujeitos, que todos os dias fazem a dinâmica da organização, e

que os normativos e restante legislação com vista à uniformização, ao controlo e à hierarquização, configuram-se enquanto conformismo e passividade na medida em que obriga

a que os sujeitos fiquem reduzidos a simples objetos do sistema administrativo.

Esta forma de administrar a partir de norma prescritas por instâncias exteriores à própria escola

resulta, necessariamente, no distanciamento entre os sujeitos e a própria realidade. Situação

que corresponde ao facto de a organização escolar se encontrar permeada por uma estrutura industrial, capitalista e burocrática que valoriza a expressão material das relações sociais através

da razão experimental como forma de intensificar as relações de poder. A este nível a escola fica sob o domínio de uma racionalidade que se faz representar por uma ação pedagógica que

se define através da seriação do saber, do sistema de avaliação, no predomínio dos

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procedimentos empírico/experimentais, na organização dos currículos que privilegiam os

enfoques positivistas, à semelhança do próprio conteúdo.

Ao termos comportamentos que no interior da organização escolar estão subjugados à racionalidade instrumental estes acabam por reproduzir o modelo social vigente. Esta situação

não permite a emergência da consciência do indivíduo pela anulação da sua capacidade

autonómica, e consequente responsabilização, a partir da qual orientaria a sua ação o que é uma forma de mascarar a pretensa neutralidade que se apregoa ao nível da educação

(PRESTES, 1995).

Assim, ao analisarmos a organização da escola à luz da Teoria Crítica podemos depreender que

fica impedida de experienciar a dimensão formativa para a qual está legitimada, mas ficando

atrelada a considerações afirmativas, de auto conservação do modelo social dominante. Reprodução que ultrapassa o domínio do currículo uma vez que os próprios procedimentos

internos da escola a tornam visível (PRESTES, 1995). É no seio destes processos que se constituem os interesses particulares à custa da substituição de uma consciência moral que se

vê substituída por uma autoridade externa e exterior à escola, o que aumenta a sua

disponibilidade relativamente ao poder.

Apple (1999) convoca o modelo de educação americana para mostrar como os interesses se

vão constituindo em torno da educação e da escola à medida que a sociedade altera o seu modelo social e político. O condicionalmente a que a educação fica votada em relação à política

do Estado expressa-se na frequente alteração dos objetivos educacionais. É de opinião de a educação tem incorporado um conjunto de princípios e de compromissos ideológicos,

nomeadamente os de cariz mais economicista, que influenciam, grandemente, estes objetivos.

Ao “afastar as políticas educacionais do debate público” (APPLE, 1999, p.186), propósito das políticas neoliberais, concorre-se para a legitimação “das consequências involuntárias” e para a

naturalização da redução da política à economia e a uma ética de escolha e consumismo.

A este nível caberá à Teoria Crítica converter os interesses em reforço dos direitos das pessoas

em relação às políticas e práticas de escolarização, ampliando-as, experimentando a prática democrática através da discussão pública, do debate e da negociação. (APPLE, 1999). É nesta

linha que se coloca a ênfase no conhecimento que se associa à argumentação sobre os sistemas

de currículos e avaliação, enquanto instrumentos que encontram a sua própria justificação na difusão de diferenças de classes e raça e que definem quem detém a liberdade de escolha no

novo mercado educacional (APPLE, 2000).

Deste modo, os interesses particulares podem ser opacizados através de procedimentos

organizacionais que naturalizam a lógica do conhecimento, mas igualmente a reprodução de

uma cultura única e uniforme e a sua associação à lógica economicista através da “mão invisível” do mercado. Os interesses instalados procuram proporcionar condições educacionais que se

acreditam necessárias para aumentar a competitividade, o lucro e a disciplina.

A escola não fica, por isso, imune à naturalização da ordem dominante uma vez que o sujeito,

esvaziado de uma consciência crítica acerca da realidade, ajusta-se a uma visão distorcida das

suas dinâmicas. Mecanismos de dominação que são travestidos de pseudoparticipação, de uma pretensa autonomia que, instituída por decretos, cria no sujeito uma falsa perceção de

atividade, mas que só servem para que o próprio se afunde em processos mecânicos e estáticos que os abstrai de uma reflexão crítica da realidade. Cria a ilusão de uma efetiva participação na

tomada de decisão quando, na verdade, ela já está orientada para uma decisão previamente

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definida que se encontra escondida em normativos, decretos, ofícios e outros processos que

apelam para procedimentos burocráticos e não para intervenção.

Este processo de naturalização das políticas económicas inclusas no sistema educativo é de tal forma extenso que os educadores são incapazes de perceber a força dominante a que a escola

está sujeita. São levados a crer, pelos mecanismos de dominação que imperam sobre a

realidade, acabando por a reforçar, legitimando a ideologia dominante que na sua essência de formação está ligada “à criação, estabilização e regularização de relações de poder e

autoridade” (APPLE, 2000, p.94).

O Estado, através das suas políticas de controlo, forma-se para se proteger a si próprio e aos

interesses democráticos por ele proclamados, sendo que a “democracia se torna um conceito

económico em vez de político e na qual a ideia de bem público balança nas suas raízes” (APPLE, 2000, p.74). O incentivo às determinações estabelecidas pelo Estado e a naturalização dos

fenómenos de subordinação e passividade ganham terrenos em detrimento das experiências de debate e análise das condições que podem favorecer situações de verdadeira autonomia e

responsabilização.

Os processos de centralização e desconcentração das relações de poder acabam por alienar os

sujeitos da sua realidade escolar e revelam-se meios propícios para a adoção de atitudes, e

crenças ajudando a manutenção e o reforço da legitimidade do poder. A ausência dos atores educativos da esfera decisória, o que se consubstancia numa forma de regulação das políticas

educativas à distância, reduz de forma significativa a possibilidade da existência de um diálogo

apostado na crítica e na democracia com vista à transformação da sociedade.

Considerações finais

O contributo da Teoria Crítica para a organização escolar perspetiva-se enquanto possibilidade

de uma consciencialização que entre em rutura com uma escola que se caraterize por dinâmicas padronizadas, e por um conjunto de princípios que têm como objetivo perpetuar as relações

culturais e sociais dominantes. A consolidação de uma racionalidade emancipatória permitirá questionar a escola inscrita num modelo racional/legal que reúne um conjunto de técnicas e

métodos de ação cada vez mais desfasadas da realidade ao mesmo tempo que descobre os

interesses que estão naturalizados. Sendo que a escola encontra-se acoplada a uma racionalidade instrumental, que existe ao serviço do Estado, da autoridade económica do poder

elevada a agir de forma tutelar sobre os comportamentos, preservando essa mesma ordem

social.

A Teoria Crítica poderá denunciar formas de gestão que aclamam valores que se afastam da autonomia, da criatividade pondo em causa um processo de administração onde o controlo vai

no sentido da eficiência. Como refere Silva (2016, p.19) “O desenvolvimento do pensamento

crítico, enquanto empreendimento interdisciplinar, passa necessariamente pela incorporação de contributos provenientes de diversas disciplinas, e a epistemologia, entendida como reflexão

crítica sobre a ciência, é uma área de estudos particularmente relevante para a promoção do

pensamento crítico.

A Teoria Crítica tem esta capacidade de denunciar formas de controle social que são exercidas

a partir das organizações escolares. A formação de um habitus que é accionado pelos procedimentos de inculcação da organização escolar são contrários à ideia de uma educação

emancipadora. A organização escolar, como nos diz (OLIVEIRA, 1995, p.134) acaba por ser sede reforçadora do mal-pensar, acaba por promover hábitos de mal-pensar que se constroem

em torno da alienação. É preciso fazer um trabalho de desalienação.

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À Teoria Crítica cabe-lhe este papel de resgatar o poder constitutivo do sujeito na construção do mundo. A razão instrumental tem vindo a ofuscar a dimensão emancipatória, constituindo-

se ela própria um novo poder de dominação. A razão instrumental não pensa o pensamento, coisifica-se em processo técnico, suspende a reflexão e desvincula-se das preocupações da

dimensão emancipatória. A razão instrumental (racionalidade técnica) que o positivismo

apresentou como instrumento operacional, produto exclusivo do conhecimento científico, veio apagar a imaginação e a travar a crítica e toda a subjectividade. A positivação da razão

instrumentalizou a educação, fez da racionalidade técnica um novo exercício de dominação e

alienação.

A organização escolar precisa de integrar e de promover através das suas práticas educativas

o conceito de “Aufkaerung”, dado por Kant e que tanta importância teve na escola de Frankfurt. Significa assumir a responsabilidade pelo esclarecimento, quer dizer, resgatar a razão para o

concomitante uso do bem-pensar, de tal modo que sirva a libertação. É necessária uma formação cultural crítica que afecte o funcionamento da organização escolar, o modo de

intervenção pedagógica dos professores e tenha, obrigatoriamente, implicações na formação

crítica do sujeito educativo. A escola precisa de um novo código cultural.

A Teoria Crítica revelou-se com potencialidades capazes de denunciar formas de gestão

(controle social exercido a partir das organizações escolares) que entram em rutura com a conscientização, criatividade e a emancipação do sujeito educativo, pondo em causa os valores

que devem marcar o todo o processo formativo. Ao modelo de dominação da organização escolar marcada por razão instrumental (racionalidade técnica) precisamos contrapor o domínio

de uma racionalidade emancipatória.

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PhD - Administração Educacional –Diretora do Doutoramento em Educação – Universidade Trás-os –

Montes e Alto Douro (Portugal) – CEIE. E-mail: [email protected].

PhD - Ciências da Educação-História da Educação – Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (Portugal)- CeiED. E-mail: [email protected].

PhD- Ciências da Educação – História da Educação - Universidade Lusófona de Humanidades e

Tecnologias (Portugal)- CeiED. E-mail: [email protected]

Recebido em 10/12/2017

Aprovado em 10/01/2018