pedo con 2007

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PEDAGOGIA DO CON VÍVIO na invenção na invenção na invenção na invenção de um viver de um viver de um viver de um viver HUMANO HUMANO HUMANO HUMANO Ralf Rickli 2.ª pré-edição sujeita a correções Trópis 2007

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Este trabalho é oferecido à sociedade, e pode portanto ser reproduzidono todo ou em parte desde que dentro das seguintes condições:• Mencionar sempre com clareza o autor, os dados da edição e osmeios de acesso a ela (nesta pré-edição, o e-mail [email protected]).• Ao reproduzir em parte (citar), não alterar nenhum detalhe do textoreproduzido sem especificar claramente a alteração e assumirresponsabilidade por ela (com nome e meio de contato).

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  • PEDAGOGIA DO CON

    VVIO

    na invenona invenona invenona inveno de um viverde um viverde um viverde um viver

    HUMANOHUMANOHUMANOHUMANO

    Ralf Rickli

    2. pr-edio sujeita a correes

    Trpis 2007

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    Ralf Rickli

    Pedagogia do Convvio: na inveno de um viver humano coletnea de textos produzidos de 1997 a 2006

    1. PR-EDIO: DEZEMBRO DE 2006 2. PR-EDIO: JUNHO DE 2007 ASSOCIAO TRPIS PARA O DESENVOLVIMENTO CULTURAL E SOCIAL BRADESCO AG.2841-1 (VILA DAS BELEZAS) CC. 1591-1 (ASSOCIAO TRPIS) CNPJ 03.059.027/0001-48

    Rua Repblica Argentina 9 c.21 11650-030 Santos SP Brasil www.tropis.org [email protected] fones (13) 3289-6779 (11) 8552-4506

    COPYLEFT Este trabalho oferecido sociedade, e pode portanto ser reproduzido no todo ou em parte desde que dentro das seguintes condies:

    Mencionar sempre com clareza o autor, os dados da edio e os meios de acesso a ela (nesta pr-edio, o e-mail [email protected]).

    Ao reproduzir em parte (citar), no alterar nenhum detalhe do texto reproduzido sem especificar claramente a alterao e assumir responsabilidade por ela (com nome e meio de contato).

    A REALIZAO DESTE TRABALHO S FOI POSSVEL MEDIANTE O SUBSTANCIAL APOIO FINANCEIRO TRPIS POR PARTE DE:

    Frans Schoenmaker - da empresa Terra Viva e Associao Schoenmaker Ayme Correia Rickli - me do autor, a partir de seus limitados ganhos de pensionista Gunnar Vargas e Gil Maral filho e quase-irmo do autor, co-criadores da Trpis desde respectivamente seus 14 e 15 anos, a partir de seus ganhos profissionais pessoais

    Associao Beneficente Tobias So Paulo com apoio s atividades gerais de 2001 a 2005

    Associao de Amor Criana Arcanjo Rafael Santos mediante seus diretores Alair Rodrigues e Eduardo Lustoza pela cesso sem custos do cho sobre o qual foi escrita a maior parte deste trabalho

    VNB - Verein niederschsicher Bildungsinitiaven Unio de Iniciativas Educacionais da Baixa Saxnia - com recursos da Niederschsische Lottostiftung - Bingo, die Lotto der Umwelt Fundao lotrica da Baixa Saxnia, Alemanha - Bingo, a loteria do ambiente pelo apoio ao Projeto Oca Mundi em 2004, e potencialmente sua continuao

    e de muitas outras pessoas e instituies com participao individual menor, mas no por isso menos significativa.

  • 3

    SANTO AGOSTINHO:

    A causa de filosofar do homem nenhuma, se no o objetivo de ser feliz.

    DALAI LAMA:

    A felicidade sempre resultado de trabalho criativo.

    ROGER GARAUDY:

    No existe ato mais revolucionrio do que ensinar uma pessoa a enfrentar o mundo como criadora.

    KANT:

    SPERE AUDE!... (ouse saber = ouse conhecer experimentando o sabor!)

    ALGUMA COISA L NO FUNDO:

    CREARE AUDE!... (ouse criar, ouse tentar de outro jeito, ouse inventar!)

    CONCLUSO:

    Ento vamos nessa.

    A todos que, de um modo ou de outro, tm ousado participar desta aventura

    de co-criao

  • 4

    NDICE DOS ARTIGOS 0. AS COISAS E OS NOMES DE QUE SE FALA AQUI 5

    A. PRIMEIRAS FOLHAS 9 1. Convvio, Cultura e tica Social - princpios para uma educao que faa diferena 9 2. Alguns conceitos-chave da forma de trabalho da Trpis 15

    3. Pedagogia do Convvio: histrias para uma Histria 27

    B. ENCARANDO O MUNDO E SUAS QUESTES 61 4. Insuficincias da educao, violncia e juventude no Brasil: um rumo de atuao 61 5. A Arte Social e o convvio EM e ENTRE grupos ou organizaes 74

    6. Algumas idias sobre Turismo Ambiental e trabalho para jovens na Baixada Santista 87 7. Educao para o Convvio Planetrio: uma aventura na Alemanha 92

    C. INDO AO DEBATE COM OS DOUTORES 109 8. Em busca da integridade perdida: reflexes no cruzamento scio-bio-psico para uma educao capaz de educar 109

    9. Um contraponto para nossos valores em educao: anotaes em torno de Carl Rogers 129

    10. Uma aula para Lili (uma palavra sobre alfabetizao infantil) 140 11. Mestres humanos ou crias de Frankenstein? contribuies para a criao hologrfica do par interdependente democracia vivel e formao profissional conseqente em educao 144

    12. O fantasma de Aristteles e a tica, Mtodo e Educao de que precisamos hoje 209

    D. UM POUCO DE COSMOTROPISMO 229 13. Para uma aproximao ao sentido profundo do Convvio 229

    14. O Manifesto do Reencantamento do Mundo 231

    BIBLIOGRAFIA GERAL 234

    NDICE ANALTICO 241

  • 0. AS COISAS E OS NOMES DE QUE SE FALA AQUI0.1 OS VOLUMES PREVISTOS E AS PALAVRAS EM QUESTO

    O autor o primeiro a achar que falta certo bom-senso a este livro: ele amontoa coisas demais, do ponto de vista editorial.

    (J do ponto de vista do contedo, forte a sua aposta numa recuperao do apreo pelo bom-senso... que algo bem diferente do senso comum com que tantas vezes confundido. Se isso foi conseguido... bem, a com o leitor!)

    Acontece que h razes (por isso este relativo excesso) para que at meados de 2007 esteja registrado e acessvel mesmo que ainda no em edies convencionais um corpus substancioso o suficiente para evidenciar-por-si-s a natureza e os fundamentos do que temos chamado convivialismo palavra que cobre uma considervel variedade de idias, experincias e propostas que vemos se agruparem grosso modo em dois plos: uma Filosofia do Convvio e uma Pedagogia do Convvio.

    Embora esses dois plos sejam fortemente interligados, para evitar um acmulo ainda maior optamos por dedicar a cada um deles um livro ou volume em separado: este Pedagogia do Convvio: na inveno de um viver humano, concludo em dezembro de 2006, e A chave de tudo mais: apontamentos para uma Filosofia do Convvio, previsto para meados de 2007 (ainda que logicamente a Filosofia mais geral devesse preceder a Pedagogia mas particular).

    No entanto, devido mencionada interligao no so poucas as referncias que um volume tem que fazer a artigos e temas presentes no outro e a, devido ao carter praticamente interno dessas referncias, deixaremos de lado o sistema convencional que remete Bibliografia usando o nome do autor em VERSALETE, seguido ou no pelo ano da edio, mas por simplicidade tampouco mencionaremos a cada vez o ttulo completo de cada livro. Em vez disso, estes dois volumes se referiro a si mesmos co-mo Filosofia do Convvio e como Pedagogia do Convvio (via-de-regra assim, em itlico e negrito), ou mesmo abreviadamente como FC e PC (o que permite dizer, por exemplo, tratamos disso em PC 11.3.5.1).

    Naturalmente esperamos escrever ainda outros livros sobre esses dos temas, mas com isto optamos desde j por convencionar que a referncia a eles ter que recorrer a outras palavras que os diferenciem. Ou seja: quando se referirem a livros, as expres-ses desacompanhadas Filosofia do Convvio e Pedagogia do Convvio se referiro sem-pre a estes dois volumes que se pretendem (ou pelo menos tentam ser) fundadores.

    Apesar de tanto sistema nos ttulos, suspeitamos que o leitor logo notar que este livro no propriamente uma exposio sistemtica do que chamamos Pedagogia do Convvio. Gostaramos que fosse, mas aos poucos fomos entendendo que extremamente difcil, seno impossvel, elaborar uma sistemtica de um processo vivo no terminado e obviamente interessa-nos muito mais que o processo permanea vivo do que termos em mos uma linda sistemtica... que seja ao mesmo tempo um necrolgio.

    Demos preferncia, assim, a deixar que uma imagem tambm viva da Pedagogia do Convvio emerja de uma coleo de artigos consideravelmente independentes que en-focam diferentes aspectos do tema, inclusive suas relaes com idias e questes situ-adas fora de seu alcance direto (pois, parafraseando a frase de Terncio que aparece mais adiante, no consideremos alheio ao convivialismo nada do que seja humano).

    Qu palavras e temas so personagens de destaque nestes dois livros que se propem a conviver com tudo o que h de humano?

    Podemos dizer que a Filosofia do Convvio sobretudo uma explorao do imenso alcance de um ponto de partida aparentemente simplrio: o convvio dos diferentes sem anulao das diferenas. Podemos falar dele em termos de excluso da excluso, expresso que Edgar MORIN prope mas no parece explorar tanto quanto poderia. Da nossa parte, temos falado dele desde 1982 como princpio do pluralismo sistemtico

  • Introduo

    6

    (ou radical, ou absoluto), o que (para brincar vez ou outra de modismo contempor-neo) s vezes tambm abreviamos como PLURS.

    Se o campo mais evidente do pluralismo sistemtico a tica, de onde atinge rapi-damente o campo poltico-jurdico, logo vamos encontr-lo tambm no campo antropo-lgico-cultural e no epistemolgico noodiversidade ou ideodiversidade; convvio dos diferentes modos de saber: das pequenas narrativas (conseqncia inevitvel da falncia das grandes, anunciada por Lyotard); a atual espiritualidade self-service; uma reconcepo da relao conhecimento-f j em si um convvio de diferentes, e de e-normes conseqncias para o convvio intercultural.

    No bastasse, nosso pequeno princpio continua acenando como um moleque (olha aqui eu!) de dentro de todos os campos para onde voltemos o olhar: psicolgico, eco-lgico (biodiversidade e homeostase), fsico-cosmolgico, noo-cosmolgico... todo um panorama reservado para o volume Filosofia do Convvio, para podermos nos centrar aqui no aspecto pedaggico.

    A Pedagogia do Convvio nasceu com o nome educao convivial e definida como educao PELO CONVVIO e PARA O CONVVIO ou seja, tomando-o mais uma vez como categoria principal tanto no campo dos mtodos quanto no dos objetivos. Um de seus grandes temas tem sido a recuperao do rosto humano nas relaes (re-humanizao) e da dimenso comunitria (simbolizada como aldeia, mesmo se dentro da metrpole), isso porm jamais como retorno (ao modo de um conservadorismo romntico) e sim co-mo inveno do presente e do futuro a partir da nossa prpria conscincia e escolha.

    Outras expresses freqentes tm sido educao centrada na tica, educao para a cidadania universal e, mais recentemente, para a integridade, no s no sentido tico mas tambm no da integrao da via analtica e da via esttica da cognio (uma ca-racterizadas pelo predomnio das lgicas verbal e matemtica, a outra pela conscincia corporal, emocional e intuitiva). E essa integrao tem a ver ainda como o tema do reen-cantamento da nossa percepo do mundo, o direito ao sentimento de transcendncia ou do sagrado que, como Goethe, temos apostado em atingir pela sinergia entre conhecimen-to e arte (donde nossas OCAs - Oficinas de Conhecimento & Artes).

    Como toda Pedagogia depende da formao de educadores, ainda outro tema vem sendo a revalorizao da Didtica, com a proposta da sua reorganizao em torno do estudo do exemplo (transformao do ensino involuntrio em ensino implcito inten-cional) e da cumplicidade (condio principal da educao).

    H ainda um campo de importncia pedaggica to decisiva que lamentamos no t-lo no presente volume seno em menes parciais: a crtica da linguagem e da comu-nicao, que inclui campos como a subordinao das nomenclaturas e a economia da fala.1 Outro tema em situao parecida o princpio metodolgico do minimalismo, j um pouco mais desenvolvido neste volume, sobretudo no artigo 12, O fantasma de Aristteles.2 Os dois tero captulos especficos no volume Filosofia do Convvio.

    A compreenso de alguns termos, finalmente, depende de uma certa contextualiza-o: traos desta Filosofia do Convvio remontam j aos questionamentos de adoles-cncia do autor (em algum ponto entre 1968 e 70) e, como j dissemos, o nome plura-lismo sistemtico vem sendo usado desde 1982 (ver 3.1). No entanto o nome conv-vio s veio baila em 1996, ligado s experincias scio-pedaggicas iniciadas em 1993, em todo um movimento que se vinculou ao nome Trpis (v. 2 e 3.3).

    1 Menes crtica da linguagem e da comunicao, neste volume, sobretudo em 2.3.3, 5 (economia da fala), 6.6 (suspenso da nomeao), 8.3.e, 11.0.4 (suspenso da nomeao) e em diversas passagens do artigo 12., sobretudo o ponto 4.4. 2 Menes ao minimalismo, neste volume, em 2.3.3, 3.2.3, 5.1, 11.0.4, 12.4.4, e de modo um pouco mais extenso e sistemtico em 12.3.2.

  • AS COISAS E OS NOMES DE QUE SE FALA AQUI

    7

    Foi no bojo dessa experincia que amadureceram a concepo e o uso de diversas expresses contendo essa palavra: filosofia e pedagogia do convvio, convivialismo, teo-ria convivial, conviviocultura, convvio-cultura. Por essa razo, havendo necessidade de distinguir estas idias de outras que possam fazer uso de nomes semelhantes, temos proposto o adjetivo tropisiano (p.ex., o convivialismo tropisiano). No cotidiano, porm, terminamos fazendo uso mesmo de uma palavra de sabor menos acadmico e mais brincalho: tropeiro (encontro de tropeiros, a experincia tropeira etc).

    0.2 AS MIL REFERNCIAS E NUMEROZINHOS Gostamos muito de mencionar as fontes bibliogrficas, mesmo que de uma aluso

    de passagem; qualquer nome de autor em VERSALETE, mesmo no correr de um texto e sem maiores detalhes, indica que ele mencionado na Bibliografia. A inteno disso no demonstrar erudio e sim, no mais puro esprito da Educao Convivial, com-partilhar saber (v. 2.1); deixar disposio do leitor as pontas dos novelos de que nos valemos para que ele, se for seu desejo, v l, investigue, e quem sabe mostre que dos mesmos fios tambm se pode fazer outra manta.

    A referncia bibliogrfica portanto uma declarao de respeito capacidade, liberdade e autonomia do outro.

    Outro aspecto a quase obsessiva numerao de tudo o que seo, captulo, pa-rgrafo... Alguns amigos consideram isso extremamente irritante... como se estivessem lidando com algum compndio de matemtica ou de biologia ao estilo antigo. Acontece que tais compndios, garimpados por entre os livros dos pais, tios e primos, foram uma verdadeira fonte de encantamento na nossa infncia... isso sem falar de todo o treinamento recebido, na igreja e na famlia, no manejo da Bblia, um livro onde se pode localizar quase que cada palavra pelos nmeros dos captulos e versculos, e cheio de referncias cruzadas...

    Gosto. Gosto muito de que meu texto fique cheio de nmeros assim. E espero que maioria dos leitores isso no incomode a ponto de abandonar o livro por isso!

    0.3 EU, NS E O AUTOR O terceiro aspecto o que ACABAMOS de demonstrar mudando o sujeito de ns pa-

    ra eu de um pargrafo para outro (isso alm de um terceiro sujeito, o autor, pre-sente no livro em alguns textos de apresentao).

    Antes de tudo, este volume uma coleo de artigos escritos em diferentes momen-tos e para diferentes fins. Em alguns deles ACHAMOS que o mais apropriado seria dizer eu acho que, como numa conversa entre amigos. Em outros, que seria dizer algo como quer-nos parecer... como nos dilogos que vm acontecendo h sculos entre pesquisadores e teorizadores de todo tipo, quase que exclusivamente por escrito ou mais: quase como se fossem as idias que conversassem elas mesmas entre si, dire-tamente a partir dos livros, nas bibliotecas das universidades...

    CONFESSO que uma parte de mim gosta muito de participar dessa tradio e escre-ver no plural acadmico, tambm chamado, de modo correto, de plural de modstia (apesar de que j tenha visto professores doutores se referirem a ele como plural ma-jesttico..., que a designao que cabe ao uso do sujeito ns, com absolutamente outro tom e outros fundamentos, pelos imperadores e reis).

    Ainda assim houve momentos, dentro de artigos iniciados com o sujeito ns, em que mant-lo ficaria de uma artificialidade insana: quando deixava de teorizar e pas-sava a narrar acontecimentos do cotidiano: ento o Joozinho nos perguntou, e res-pondemos ao Joozinho... D licena, n?

    Pouco a pouco PERCEBI que havia um critrio implcito nessas oscilaes e DECI-DIMOS assumir conscientemente esse critrio: sujeito que teoriza ou narra fatos que acontecem dentro do universo textual (encontramos tal idia em tal autor) ns; sujeito que narra fatos da vida cotidiana, extra-textual, eu.

  • Introduo

    8

    No h precedentes no uso desse critrio? Ora, todas as tradies comearam um dia, no mesmo?

    Parece haver, enfim, uma razo bastante interessante por trs disso, a qual se es-clarece melhor observando o caso reverso: quando o artigo foi iniciado com sujeito eu e nos sentimos compelidos a dizer ns. Na narrao de acontecimentos da histria da Trpis (3.2.3), em muitos momentos o sujeito se tornava ns simplesmente por-que o narrador havia participado de uma deciso ou de uma ao coletiva.

    Mas em outros momentos... quando se iniciava um processo de elaborao terica, de repente vinha a ntida sensao de que no o estar fazendo sozinho, e sim com todo um colegiado dentro do espao mental talvez quem sabe sentado em crculo...

    No interpretaremos esse fato aqui ao modo espiritualista (espritos, anjos, conscin-cias extra-humanas de qualquer tipo) embora quem sabe fosse correto, quem pode ga-rantir que no? Mas, ainda que fosse, neste momento preferimos levantar outra hiptese:

    Sendo o desenvolvimento de uma anlise e de uma interpretao um processo emi-nentemente dialgico, em que vrias tentativas de leitura do fato, e de formulao de um discurso sobre ele, tm que de certa forma competir umas com as outras, a psique pode facilitar esse processo desdobrando-se momentaneamente como que em um gru-po de sub-sujeitos.

    Esse fato pode talvez ser estimulado pela experincia de haver participado de deba-tes em grupos, situao que seria ento internalizada e mimetizada pela psique. Ela talvez tambm possa delegar porta-vozes para representar a posio deste ou daque-le autor ou desta ou aquela corrente terica de que tenhamos conhecimento ou quem sabe de um ou outro professor marcante que ainda vive em ns.

    Seja como for: quando teorizo, no sinto que estou trabalhando sozinho: sinto ine-quivocamente que um trabalho coletivo e que seria ento de uma extrema impro-priedade que este pequeno sujeito que manda parar o trabalho quando tem fome, ou que se exaspera e xinga no trnsito, que este sujeito apresentasse os resultados do trabalho dizendo eu. Pois, seja qual for a natureza dos outros que participaram do trabalho, o certo que no foi este sujeito sozinho quem o fez!

    (E agora, uma sinuca: a qual dos sujeitos pediremos que registre aqui algumas in-formaes sobre o autor?)

    0.4 SOBRE O AUTOR O captulo 1 do artigo 3 contm oito pginas de depoimento autobiogrfico, de modo

    que aqui apenas registraremos alguns traos gerais de modo sucinto:

    RALF RICKLI trabalha com educao para-escolar desde 1976. Alm de intenso empenho autodidtico sobretudo em lnguas e outras frentes das cincias humanas, fez estudos de pedagogia musical e piano na Escola de Msica e Belas Artes do Paran (Curitiba), Agricultura Biodinmica e outros temas com abordagem goetheanista-steineriana no Emerson College (Inglaterra) e Institut Annener Berg (Alemanha), e de Pedagogia (com um semestre em Artes Cnicas) na USP (So Paulo).

    Nos anos 80 (alm de breves porm marcantes experincias como administrador de stio, aprendiz em fbrica de pianos e redator de publicidade) foi co-fundador, editor e docente no ento Instituto Biodinmico (Botucatu SP). Nos anos 90 criou, com jovens da periferia paulistana, a Associao Trpis para o Desenvolvimento Cultural e Social.

    Trabalhos escritos incluem artigos em peridicos e ensaios em diversas reas, poe-sia, contos e fico histrica para jovens e adultos.3 Contato: [email protected]

    3 Esse corpus, que provavelmente ultrapassa duas mil pginas, est at hoje ausente da mainstream do mundo editorial. Cerca de 2/3 teve pequenas edies convencionais ou alternativas, ou foi publicado em boletins e anais de circulao restrita, e cerca de 1/3 so trabalhos acabados mas ainda inditos (principalmente em poesia).

  • A. PRIMEIRAS FOLHAS

    Muito trabalho j se passou, desde o momento em que uma semente se umedeceu e comeou a inchar para germinar. O longo esforo de deitar as primeiras razes, lanar um projeto de caule... tudo isso com a energia deixada na semente pela planta-me. Com as primeiras folhas a planta comea agora a interagir como o mundo como ela mesma: captar sua prpria energia, e tambm ser reconhecida pelas caractersticas que revela nessas folhas.

    O artigo 1 foi nossa primeira folha no sentido de ser o primeiro texto sistematizado que apresentamos a respeito das atividades que vnhamos realizando tentativamente havia seis anos e, no bastasse, ainda inaugurou uma srie chamada livros de uma folha s: uma folha A4 dobrada formando 4 pginas, contendo um texto que desse uma noo compacta de um tema, com comeo, meio e fim.

    Os dois outros artigos da seo foram escritos mais tarde (de 2004 a 2006) mas tratam igualmente de origens, de fundamentar-se e de vir-a-ser.

    1. Convvio, Cultura e tica Social - princpios para uma educao que faa diferena

    1999

    Primeira exposio terica sobre a Pedagogia do Convvio, este artigo foi publicado na srie livros de uma folha s, da Associao Trpis, com o ttulo A proposta de uma Educao Convivial e as nossas Oficinas de Conhecimento & Artes (em 1999, 2003 e 2005, com revises a cada edio). O presente texto basicamente o da 3. edio, com o acrscimo da seo 6, Cultura x Trabalho?, originalmente um artigo independente publicado no Boletim Primavera 1999 da mesma associao como resposta a alguns questionamentos ao texto anterior. Os dois textos se encontram disponveis tambm em www.tropis.org/biblioteca .

    preciso uma aldeia inteira para educar uma criana. PROVRBIO AFRICANO

    1.1. A INSUFICINCIA DA EDUCAO ESCOLAR FRENTE AO CERNE DA PROBLEMTICA BRASILEIRA Dizer que a questo central do Brasil a educao j lugar-comum. Tambm a-

    chamos que , mas duvidamos que o modelo escolar de educao que praticado h sculos seja capaz de responder a essa questo, mesmo se for melhorada a qualidade do ensino das diferentes disciplinas.

    Para quem se d o trabalho de estud-lo, o Brasil aparece como um drama secu-larmente insolvel e as razes esto bem alm das dificuldades com a escrita ou a matemtica: esto nas caractersticas do convvio humano mais elementar, que fazem que, apesar de cordiais, sejamos incapazes de construir entre ns relaes confiveis as quais so o cimento que transforma um amontoado de pessoas em uma sociedade. As razes disso so tema para outros trabalhos: importa-nos agora que, embora a grande fonte de idias e inovaes sejam os indivduos, no existe implementao de

  • A. PRIMEIRAS FOLHAS

    10

    idias, e portanto nenhuma soluo ou realizao historicamente significativas, seno via sociedade.1

    A escola que conhecemos no apenas deixa de contribuir, mas tem ido ativamente na contramo de qualquer soluo possvel: primeiro, sentida pela quase totalidade dos alunos como um espao fechado que no tem relao com a realidade da vida l fora, e que praticamente no influi nela.2 Alm disso, em termos de relaes humanas (considerados a os alunos, professores, direo, funcionrios, e ainda os pais e o resto da comunidade) costuma ser um trgico anti-modelo.

    Os conceitos do que chamamos Educao Convivial ou Pedagogia do Convvio vm se desenvolvendo integralmente de vivncias prticas fora de escolas, as quais brotam do sentimento de que uma verdadeira educao to vital s pessoas quanto a comida, e no lhes pode ser negada e por isso, enquanto a escola seguir roubando (sim) o tempo previsto para a educao sem realmente educar, teremos que encon-trar outras formas e espaos para celebrar os rituais da educao.

    Fique claro, porm, que estas idias no excluem a escola, e sim tm a esperana de ainda encontrar entrada nesta, vindo a colaborar com a sua total re-criao, indispensvel a que ainda venha a ser um lugar capaz de abrigar o sagrado mistrio de uma verdadeira educao!

    1.2. NOSSA TENTATIVA: AS OFICINAS DE CONHECIMENTO & ARTES Em nossa abordagem, o espao onde acontece um processo de educao jamais de-

    ve ter cara de instituio, e sim de um espao normal de viver: algo como uma casa. (Mestre RUBEM ALVES vem dizendo o mesmo com freqncia. Isso para ns uma feliz confirmao, pois, embora ele no nos conhea, nosso ensaio prtico precedeu em vrios anos o aparecimento desse seu discurso). Importante: no falamos de simula-cros; s cabe o nome de casa a um lugar onde more alguma gente, e ainda bichos e plantas.

    Sala de aula? Pode ser a cozinha, a sala, um tapete, s vezes uma rua, uma praa. Uma lousa ou quadro-negro na parede ajuda, verdade. Equipamento high-tech con-feito: o que conta mesmo o encontro humano autntico. (Isso no quer dizer que dis-pensemos computador e internet: esses so hoje to indispensveis quanto um fo-go... ou instrumentos musicais!).

    Quando se sente que isso vai ajudar, o processo educativo assume a forma de sesses com tem-po delimitado (aulas); mas com freqncia assume integralmente a forma do convvio cotidiano porm de um cotidiano escolhido conscientemente, nunca banal; um cotidi-ano que o tempo todo ir atrs de objetivos de vida coerentes com o que se estuda. (Por essa razo s vezes as Oficinas de Conhecimento & Artes nem mesmo so visveis de imediato: no so um lugar, so um processo, um acontecer).

    educao celebrada desse modo que damos o nome de Educao Convivial: pe-lo convvio e para o convvio. Esboamos a seguir alguns de seus princpios obser-vando que, embora nosso projeto venha se concentrando nos adolescentes e jovens, estas idias encontram formas de realizao em qualquer faixa de idade.

    1 A palavra sociedade usada aqui num sentido geral de coletivo humano com alguma tipo e medida de organicidade interna, sem levar em conta a distino sociolgica entre sociedade e comunidade, qual nos referimos no artigo 3, seo 2.2. 2 Esta afirmao no foi feita no vazio, mas a partir de seis anos (no momento da redao do artigo) de acompanhamento extra-escolar de alunos da rede escolar, o que permite de certa forma conhecer a escola pelo avesso ou pelos fundos, e no pela imagem que ela tenta manter para si mesma e para o mundo.

  • 1. Convvio, Cultura e tica Social

    11

    1.3. EDUCAO CONVIVIAL: O CORPO Um educador chega a estar fazendo Educao Convivial se sua relao com os jovens

    um compromisso de vida, no apenas uma relao de trabalho e muito menos de empre-go. Isso se expressa como um envolvimento um envolvimento cmplice, diramos na vida desses jovens, com os interesses e preocupaes que j trazem no para se restrin-gir eternamente a isso, mas para que a ampliao representada pela educao se faa de fato parte da vida da mesma vida que o jovem j tem, no uma camada de glac , inclusive para que a educao no seja mais uma entre as inmeras foras contempor-neas que j atuam no sentido do esfacelamento da unidade do indivduo!3

    O educador no vem de cima, ajudar (que olhe sua prpria vida e admita: quem sou eu para ajudar?! ) mas vem juntar-se a um desafio ou luta em comum.

    Com algum tempo chega-se a projetos de realizao (isto , com aplicao real fora do espao escolar) geralmente brotados do impulso dos prprios jovens (como, no nos-so caso, um grupo de teatro, uma banda, a campanha do Reencantamento, a reforma de um galpo). O educador participa dos processos prticos que isso envolve, sem ne-nhuma restrio a fazer junto se os jovens tambm o quiserem (diferente de fazer no lugar de), compartilhando seu prprio know-how quando isso for possvel, ajudando na busca de know-how e recursos externos quando for o indicado, e ainda trazendo subsdios culturais que ajudem a inserir essas aes prticas num sentido maior, a tomarem parte no mar do conhecimento, da criatividade, da Histria humana enfim.

    1.4. EDUCAO CONVIVIAL: O CERNE Toda essa informao, terica e/ou prtica, ainda secundria, porm: o realmente

    central que nesse agir conjunto se passem padres de uma TICA DO CONVVIO, tanto implcita na atuao quanto explicitada em momentos de reflexo. Essa tica do convvio inclui, p.ex., o respeito prpria palavra (que se expressa em compromisso);

    a arte de manter o convvio cordial, respeitoso da dignidade de todo ser humano, mesmo em pre-sena de diferenas de opinio irredutveis (pluralismo); a compreenso da reciprocidade em todas as relaes (que se radica na capacidade de sentir no lugar do outro, e, entre outros modos, se expres-sa necessariamente na valorizao e no-explorao do trabalho do outro); a fundamental economia da comunicao (ou seja, a ateno ao balano entre o falar [tomar!] e o ouvir [dar!]) etc. Uma tal tica propicia o desenvolvimento do convvio at o nvel de uma arte que

    podemos (como Rudolf STEINER4) chamar de Arte Social. De nenhum modo, porm, estamos falando de uma etiqueta (pequena tica), o que

    levaria apenas ao artificial, no ao verdadeiramente artstico ou esttico (palavra que fala de fazer as coisas no por conveno ou obrigao mas com gosto em todos os usos da expresso, porm um pouco mais no de prazer que no de bom-gosto...) Para l do convencional, do medocre, do mesquinho... somente uma grande tica, que mobilize o esprito humano em sua totalidade, poder dar nascimento a uma tal Arte.

    fundamental, porm, entender que simplesmente no funciona ensinar tica pura. Primeiro, no haver aceitao de nenhum valor trazido explcita ou impli-citamente pelo educador, se no se houver atingido antes o j referido sentimen-to de cumplicidade.

    3 Usamos a palavra indivduo com o valor positivo que tm p.ex. em C.G.JUNG; j em ROGERS esse mesmo valor atribudo palavra pessoa... a qual usada com valor negativo por Jung. J de acordo com a ten-dncia atual talvez pudssemos falar aqui de sujeito... mas tambm essa palavra usada com valor nega-tivo ou no mnimo ambguo por autores como ALTHUSSER. Em suma: sugerimos ao leitor que vale mais a pena tentar perceber os movimentos do pensamento por trs das palavras inclusive porque o agarrar-se a palavras especficas como prova da vinculao do autor a esta ou aquela corrente terica geralmente no passa de preconceito: um desentender intencional que mera recusa de abrir-se ao novo ou diferente. 4 A expresso Arte Social aparece em pelos menos os volumes 93, 332a e 338 das Obras Completas de Rudolf STEINER (indicadas geralmente pela sigla GA, de Gesamtausgabe). Achamos importante registrar pois forte a nossa aposta nesse conceito.

  • A. PRIMEIRAS FOLHAS

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    Segundo, o discurso da tica gerar apenas mais uma lei morta, entulho na men-te, a menos que venha a cavalo no prprio dia-a-dia (tanto no momento da ao quan-to em reflexo posterior), embora complementarmente tambm deva vir entretecido nos diferentes contedos de informao (a hoje chamada transversalidade). (No sem importncia apontar ainda que narrativas, quer biogrficas quer fictcias, so em qualquer idade veculo privilegiado para os dois nveis de contedo referidos).

    Os contedos, portanto, so indispensveis no apenas pelo seu valor em si mas tambm como pretextos para a interao na qual se encarna a vivncia-reflexo tica. Porm somente quando a informao se articula, de um modo ou de outro, com os interesses j trazidos pelo jovem, que ela capaz de gerar entusiasmo. E sem entu-siasmo no h aprendizado, no h criao, desenvolvimento, realizao... no h Vi-da digna desse nome.

    1.5. NEUTRALIZAR OU APROVEITAR O POTENCIAL MOBILIZADOR? Finalmente: ao contrrio do que afirmam muitos programas, nosso objetivo no

    propriamente integrar o jovem sociedade pois a sociedade como est no merece que o jovem se integre a ela! Em vez disso, tanto o jovem quanto os demais atores so-ciais isto , a sociedade como um todo devem aceitar estar em processo de trans-formao, de melhoramento. E, talvez surpreendentemente, justamente o jovem ainda pouco integrado est em posio privilegiada para ser um agente de transformao e de crescimento tico da sociedade.5

    As razes disso so vrias e no cabe aqui sua anlise detalhada, mas cabe sim mencionar que, se tal jovem no est integrado, no porque ele mesmo tenha esco-lhido se excluir: foi a sociedade que em algum momento o deixou de fora possivel-mente sem se dar conta disso (sem maldade ativa), por simplesmente ser mais fcil ignorar a existncia desse jovem enquanto no estiver incomodando. 6

    E justamente nesse ponto que a sociedade mais precisa ser transformada: em que deixe de ser um sistema onde admissvel deixar de fora (= excluir) e passe a ser o lu-gar do COM-VIVER esse fenmeno invivel... seno quando a prpria encarnao da tica... por sua vez essa coisa abstrata e intil... seno quando encarnada na forma (no h outra!) de convvio so.

    Mas... onde iria parar uma sociedade assim? No vemos nada contra em mirar para uma sociedade menos empresa do que festa, com todas as suas partes (numa imagem sugerida por HABERMAS) celebrando contnua e alegremente umas com as outras os ritos do aprendizado e da inveno.

    (...Se, porm, a sociedade no se mostrar disposta a transformar-se nesse ponto, estar demonstrando no querer de fato integrar os jovens, mas apenas neutralizar o risco ou incmodo que neles v. Tentativa intil, cabe dizer, pois jamais houve e ja-mais haver paz seno como fruto de justia! Como a sociedade iria ser respeitada por filhos aos quais ela mesma no respeita? No h medida paliativa que possa substituir a participao plena na herana humana a que esses jovens tm direito pela nobre e sacratssima condio de simplesmente serem humanos!)

    5 A importncia de ajudar esses jovens a, acima de qualquer outro conhecimento, formularem para si um referencial tico adequado pode ser vista nos acontecimentos de maio de 2006 em So Paulo, quando a cidade foi paralisada por aes do crime organizado. Isso no indica falta de valores, e sim que os ni-cos que se deram o trabalho de alimentar o jovem de periferia com valores crveis para ele foram justa-mente os agentes do crime. Naturalmente no esse o caminho da transformao social que esperamos. O crime, porm, no exige formalidades burocrticas para aceitar adeses ou para apoiar projetos; tem a agilidade de decidir pelo encontro humano direto. Naturalmente s pode sair na frente tanto do Estado quanto desse universo sem recursos prprios que o Terceiro Setor. 6 Parece-nos conveniente, hoje, explicitar algo j implcito nesta seo: nossa rejeio idia de inclu-so. Falamos aqui de uma no-excluso que deixa portas abertas ao jovem para incluir-se ou no , como sujeito de sua prpria vida; pretender inclu-lo faz-lo mais uma vez de objeto. Mais sobre isso em nosso artigo Contra o conto da incluso, em www.tropis.org/biblioteca (RICKLI 2006g).

  • 1. Convvio, Cultura e tica Social

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    1.6. PS: CULTURA X TRABALHO? RESPOSTAS A ALGUNS QUESTIONAMENTOS FREQENTES 7 Quase todos os trabalhos que a Trpis tem mostrado so de natureza artsti-ca. Isso no afasta os jovens de um verdadeiro trabalho?

    Existem pelo menos quatro respostas a essa questo!

    Primeiro, as maiores dificuldades das pessoas com seus trabalhos profissionais no esto na parte tcnica, especializada. Esto no saber trabalhar em geral: saber ter mtodo, continuidade, planejamento, trabalhar em grupo... E na tica das relaes com os colegas, os clientes, consigo mesmo e com o mundo.

    Tudo isso ns treinamos na prtica, em projetos artsticos ou no, que almejam uma qualidade profissional, no meramente escolar sempre dentro de atividades que os jovens fazem por sua escolha, e com gosto, mas sem deixarem de ir escola con-vencional, nem de se envolverem com outros trabalhos. E o que se v que seu de-sempenho melhora em tudo!

    Segundo, escolher entre trabalho e arte, trabalho e cultura, como escolher entre ficar acordado e dormir, ou entre comer e tomar gua. Todo ser humano precisa dos dois! Por natureza, todos precisam da experincia da inspirao, do encantamento diante de uma grande idia, de uma obra de arte ou de uma paisagem natural... Preci-sam de transcendncia num prato da balana, para poder enfrentar a vida prtica no outro. Negue-se isso, e teremos uma receita segura, garantidssima, para gerar toxi-cmanos, delinqentes, alcolatras, espancadores dentro do lar em qualquer classe social!

    Nunca haver muros, nem ces, nem reforo policial, que consigam garantir a se-gurana da sociedade. Mesmo que no seja fcil, a direo em que a segurana est menos longe essa, na ampla oportunidade de participao na herana cultural-espiritual da humanidade, que humaniza e d sentido existncia.

    Terceiro, preciso lembrar que, de modo geral, o mercado de trabalho no est precisando de gente! Isso acontece em todo o mundo, e quem tem viso sabe que no vai mudar nas prximas dcadas. O que fazer das pessoas? Algumas instituies in-sistem em ensinar ofcios que simplesmente no existem mais na prtica. Ou, como diz Domenico de MASI, colocam um jovem o dia inteiro apertando botes de um eleva-dor que no precisa de ascensorista. Quem disse que esse jovem socialmente mais til nesse elevador que compondo uma cano, ou aprendendo-ensinando sobre a vida numa cena de teatro?

    Quarto, embora nossa inteno seja educar com arte para a vida e para o trabalho, se de repente no meio disso surge um verdadeiro talento artstico, claro que no te-mos direito de desencorajar. A arte tambm existe como trabalho! Pelo mundo afora os profissionais brasileiros de artes, especialmente de msica e dana, so respeitados e disputados. S ns ainda no damos o devido valor nem cultural, nem econmico. Desconfio que est na hora de acordar, pois podemos estar sendo apenas mopes quando pensamos ser prticos!

    Mas eles esto fazendo msica popular, desenhando quadrinhos... Educar no seria, por exemplo, ensinar msica clssica?

    Na nossa Oficina de Conhecimento & Artes eles tm, sim, a oportunidade de conhe-cer de tudo quadros de Da Vinci, sinfonias de Beethoven, idias de Plato. Mas tm que ter a oportunidade de criar dentro das formas do seu prprio tempo, que, se as estudamos, tambm se mostram ricas, complexas e profundas. Muitos que dizem que

    7 O texto desta sesso foi publicado originalmente como artigo independente no Boletim Primavera 1999 da Associao Trpis, como resposta a alguns questionamentos ao texto anterior A proposta de uma Educao Convivial.

  • A. PRIMEIRAS FOLHAS

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    s o antigo tem valor o fazem como desculpa para sua ignorncia do novo mas um professor realmente tico no pode fazer isso!

    Mas no seria mais importante atender as necessidades elementares, a fome de po, sade, alfabetizao?...

    Somos colegas e solidrios com quem trabalha em qualquer uma dessas frentes, todas importantssimas mas no suficientes! horrivelmente cruel oferecer algo de bom a uma criana, e depois no dar continuidade na adolescncia, deix-la prpria sorte antes que esteja realmente preparada para assumir sua vida como adulto aut-nomo. Com isso colheremos mais revolta que se nunca houvssemos oferecido nada!

    Pouca gente quer se dedicar tarefa com os adolescentes e pouqussima gente se dedica de modo apropriado! Nossa abordagem, a Educao Convivial, tem uma contri-buio original e eficiente a multiplicar, nessa rea to carente. Teria cabimento fa-zermos outra coisa?

    Alis, no se trata de um mtodo privado! A Educao Convivial est a para todo mundo embora tenha algumas definies bem precisas, para no virar bobagem! Um pouco mais pode ser conhecido em nossas publicaes ou pela internet e estamos sempre abertos a conversar a respeito.

    1.7. REFERNCIAS TERICAS? A idia da Educao Convivial no procede substancialmente de nenhuma leitura e

    sim da vivncia diria, acompanhada de intensa observao e reflexo. natural e inevitvel, porm, que seja informada por leituras ou se redescubra nelas. Assim, ape-sar de nosso pequeno contato com muitos deles (e apesar de suas origens tericas to dspares!), reconhecemos nela afinidades significativas com aspectos das idias e pro-postas de, entre outros: Paulo Freire, Gandhi, Jrgen Habermas, Ivan Illich, Ja-nusz Korczak, Domenico de Masi, Edgar Morin, A.S.Neill, Carl Rogers, Marshall Rosenberg, Scrates, Rudolf Steiner, D.W.Winnicott. No menos importantes, po-rm, so as contribuies das tradies iogue, taosta, zen e amerndia.8

    8 Tanto devido limitao de espao da edio original quanto pelo esprito de apresentao em grandes linhas, optamos por no incluir neste artigo uma bibliografia convencional. Os nomes se encontram aqui em ordem alfabtica de sobrenome. Com exceo de Scrates e Winnicott, todos aparecem tambm na Bibliografia Geral com uma ou mais obras, sendo que para alguns h tambm indicaes de bibliografia secundria, a saber: Paulo Freire: ROMO. Korczak: WASSERTZUG. Rogers: GOULART (alm do artigo 9 des-te volume). Rosenberg: HART. Scrates: PLATO. Rudolf Steiner e a Pedagogia Waldorf: LANZ (mais em 11.4.3). Winnicott: PINTO. As menes a Gandhi, Rosenberg (criador na Comunicao No-Violenta, CNV ou NVC), Scrates, Winnicott e s correntes tradicionais aparecem por primeira vez nesta 4. verso do trabalho. No que antes estivessem de fato ausentes: Scrates e a tradio amerndia esto sem dvida entre as mais fortes de todas as influncias e afinidades do nosso trabalho. Um artigo especfico sobre essas e outras influ-ncias e afinidades deve ser publicado em 2007 em www.tropis.org/biblioteca com o ttulo Festa da he-rana e da criao.

  • 2. Alguns conceitos-chave da forma de trabalho da Trpis

    2004/2006

    Com alguns acrscimos e adaptaes, o contedo desta apresentao basicamente o da pgina informativa www.tropis.org/keys.html. At agora no havia sido publicada fora da internet, onde se encontra disponvel tambm em ingls.

    2.1. TRPIS O QU? UMA ONG? Sim... e no. A Organizao existe... em apoio. No ela que nos define.

    Como a um tomo, o que d identidade TRPIS um ncleo:

    um NCLEO DE IDIAS

    Como um tomo, ela est inteira & viva quando nessas IDIAS se articulam & se impulsionam PESSOAS e AES

    Que tipo de idias?

    Idias como... uma Filosofia e uma Pedagogia DO CONVVIO com eixo em um PLURALISMO ABSOLUTO uma RE-HUMANIZAO da Vida Humana uma REVOLUO TICA na micro-estrutura do COTIDIANO

    J definimos nosso horizonte como:

    Contribuir para a evoluo dos indivduos e da sociedade humana no sentido da otimizao do bem-estar (maior felicidade) de todos os seres.

    E nossa misso mais especfica como:

    Trabalhar pela renovao tica, cultural e educacional da sociedade mediante o aperfeioamento do CONVVIO como Filosofia, como Pedagogia e como Arte.

    Sintetizamos ainda na forma do seguinte lema:

    compartilhar saber construir convvio semear reencantamento

    Articulada por esse ncleo-de-idias, qualquer atividade (ou quase!), iniciada por qualquer pessoa, pode ser Trpis: iniciativaS scio-culturaiS

    Mais: embora essa seja s uma das muitas formas que uma Trpis pode tomar, muito do nosso trabalho tem se constitudo de atividades de/com/entre jovens (veja o cap.4), especialmente os social e economicamente perifricos.

    Um convite a que jovens se descubram como Agentes de Cidadania Universal:

    pessoas CONSCIENTES de sua dignidade humana e de seus potenciais dos efeitos das suas aes (responsabilidade paternal, social, ambiental...)

    e EMPREENDEDORAS de aes positivas alm da mera responsabilidade inclusive a MULTIPLICAO da atitude de Cidadania Universal.

    E o contexto brasileiro faz disso uma misso bem especfica e especial:

    Combater o desperdcio de talentos usual na sociedade brasileira.

  • A. PRIMEIRAS FOLHAS

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    2.2. A PALAVRA TRPIS: UM IDEAL

    TRPIS A PALAVRA GREGA PARA QUILHA:

    Deriva de trop = rumo, direo, mas tambm virada, mudana de rumo ou de modo-de-ser, turning point

    ... ou de trpos = direo, mas tambm essncia, modo-de-ser; sentido. [= sou um ser em movimento, e o que define minha natureza o meu rumo]

    Essa famlia de palavras inclui tropiks, em grego um ADJETIVO equivalente ao nosso tropical = relativo mudana de direo semestral do Sol ...

    ... mas tambm a qualquer redefinio na direo de alguma coisa.

    FATOS NOTVEIS SOBRE QUILHAS:

    - Na construo de um navio, a primeira coisa que se faz a quilha. uma pea simples, inteiria, qual vai se agregando todo o resto.

    - Atravessa o barco todo, fazendo a integrao desde a popa at a proa, como uma coluna vertebral.

    - A direo para a qual o barco est voltado a direo da sua quilha. Sua ponta o que abre caminho nas guas.

    - ainda a quilha que, em conjunto com outros componentes, possibilita que o barco navegue em direes independentes da correnteza, e at contra ela se necessrio: constri o caminho a cada momento.

    - Constitui no barco uma espcie de linha estrutural e direcional onde o barco reencontra quem ele mesmo , mais profunda que as inevitveis oscilaes de momento para um lado e para o outro.

    NO ESTAMOS FALANDO DE UMA POSTURA NEUTRA !!!

    No falamos de ficar em cima do muro: falamos de integrar num todo orgnico os impulsos que seriam destrutivos caso fossem unilaterais, ou seja: no compensados (devido excluso do outro lado).

    Mas a compensao viva sempre dinmica: no movimento, no balano, na ginga.

    O que talvez nos leve de volta s qualidades do tropiks, ou tropical: uma qualidade que no tem cara de sria, mas que precisamos entender e levar profundamente a srio

    ... se quisermos descobrir formas-de-ser ecolgica e socialmente mais saudveis para esta regio do mundo em que vivemos.1

    1 Creditamos essa rica distino entre srio e a srio a Roberto GOMES em sua Crtica da Razo Tupiniquim.

  • 2. Alguns conceitos-chave da forma de trabalho da Trpis

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    2.3. A (PRTICA) FILOSOFIA DO CONVVIO Querendo-se ou no, toda ao, de qualquer pessoa ou instituio, orientada por

    uma postura-frente-ao-mundo, uma filosofia estejamos conscientes dela ou no.

    Na Trpis, consideramos ponto-de-honra elaborar conscientemente os horizontes que nos inspiram e os princpios que orientam a estruturao prtica do nosso dia-a-dia.

    Ao mesmo tempo, acreditamos na eficcia da simplicidade, por isso buscamos identificar um ponto cuja influncia seja a mais ampla possvel para ser a referncia central da nossa abordagem.

    Esse ponto foi identificado no CONVVIO: o estado em que os diferentes vivem lado-a-lado, sem perderem suas diferenas, nem jamais um lado suprimir o outro.

    Pois o convvio-de-diferentes uma condio fundamental da existncia, em todos os nveis p.ex.: o convvio das foras gravitacionais com as de expanso (cosmologia/astronomia) a interdependncia dos diferentes seres da natureza terrestre (ecologia) o convvio das diferentes foras psquicas em cada pessoa (psicologia)

    E trata-se ainda do maior de todos os desafios entre os seres humanos: o convvio social:

    intrnseco existncia do zon politikn (= ser vivo associativo) que cada ser humano ... 2

    via-de-regra torturante (Sartre: o inferno so os outros)3...

    absolutamente inevitvel, inclusive - para a formao psquica do indivduo 4 e - para qualquer realizao econmica (no existe self-made-man, diz-lo pura falta de reconhecimento das conexes, ou, em termos tradicionais: ingratido!)

    ... ou nos decidimos a transformar a qualidade do nosso convvio, ou estamos nos auto-condenando a viver no inferno enquanto a humanidade existir!

    No possvel apresentar aqui a Filosofia do Convvio em profundidade: isso ta-refa para um trabalho especfico de maior flego (que prevemos para 2007). Aqui ape-nas listaremos algumas idias-chave para sua informao.

    2.3.1. Paradigma do Convvio Universal

    Reconhecemos que a expresso soa pretensiosa...

    ... porm os princpios bsicos do pensamento convivial podem efetivamente ser usados com vantagem como referncia central na anlise e/ou planejamento em todos os campos dos mundos natural e social (e, para quem o admite, mesmo do sobrenatural):

    ... o Direito civil e penal, o processamento do lixo, a biodiversidade, a homeostase dos sistemas, o contedo dos currculos educacionais, a natureza do bem e do mal, a relao entre conhecimento e f, o chamado Paradigma Ecolgico ele mesmo...

    ... todos podem ser discutidos em termos de Convvio Universal.

    2 ARISTTELES, A Poltica. 3 Jean Paul SARTRE, Entre quatro paredes. 4 Vejam-se p.ex. as pesquisas de Vygotsky e seu grupo; v. OLIVEIRA 1997.

  • A. PRIMEIRAS FOLHAS

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    2.3.2. Pedagogia do Convvio / Educao Convivial Sendo o convvio uma condio to fundamental da existncia - seja social, fsica,

    psicolgica, econmica, cultural, espiritual...

    ...numa Educao que corresponda realidade da vida, o convvio tambm ter papel central seja na forma de ensinar, seja entre os contedos: uma educao para o convvio, no convvio, pelo convvio.

    Afinal, aprendendo antes mais nada a conviver, temos garantia de que tere-mos tempo e condies adequadas para aprender todo o resto. Comeando pelo resto no temos garantia de nada!

    Assim, sobretudo neste momento histrico, no vemos misso mais importante para uma quilha social do que pensar, desenvolver, testar, aperfeioar, realizar e difundir uma Pedagogia do Convvio ou, como tambm dizemos h anos, uma Educao Convivial.

    Pode ser til relacionar a Pedagogia do Convvio com os 4 pilares da educao propostos pela Comisso DELORS (1998): APRENDER A SER, APRENDER A CONVIVER, APRENDER A APRENDER, APRENDER A FAZER.5 Na nossa formulao...

    O Nvel I da educao fundamento sem o qual o resto no se sustenta constitudo dos 3 primeiros mencionados:

    - APRENDER A SER e APRENDER A CONVIVER (EDUCAO EXISTENCIAL E TICA) so simultneos: devido natureza social do ser humano (zon politikn), nenhum deles e capaz de existir sem o outro.

    - APRENDER A APRENDER (EDUCAO COGNITIVA) inclui necessariamente as 2 vias da cognio: via analtica (verbal, matemtica) e via esttica (emocional, corporal, integradora).

    O Nvel II consiste do APRENDER A FAZER. Pode ajudar na realizao do Nvel I, mas no preced-lo! Envolve: - capacidades operativas (desde o 2+2=4); - qualquer tipo de preparao profissional, em qualquer nvel; - certa medida de transmisso de contedos informativos (necessrio, mas o menos importante no contexto atual: contedos esto nos livros e na internet; a escola perde seu tempo centrando sua ateno onde menos requerida e menos capaz!)

    Mais? Os princpios gerais da Educao Convivial so expostos neste volume em 1. Questes relativas a mtodos e a contedos so desenvolvidas de diferentes modos em 4 (especialmente pontos 6 a 10), em 8 (especialmente 6, 7, 12, 13) e em 11 (especialmente o longo captulo 3, O corao do pedaggico).

    5 Consideramos ainda mais importante o sumrio de suas concepes realizado por Edgar MORIN tendo em vista a atividade educativa em Os sete saberes necessrios educao do futuro (2000).

  • 2. Alguns conceitos-chave da forma de trabalho da Trpis

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    2.3.3. Trs colunas-mestras do Convivialismo

    (1) minimalismo: manter toda codificao e interveno no nvel mnimo indispensvel.

    O nmero mnimo de princpios garante a sua mxima abrangncia; por isso a outra face deste mesmo princpio o...

    (2) pluralismo sistemtico: a garantia da no-imposio da vontade de um sobre a de outro;

    para isso, nada pode ser excludo exceto uma coisa, a qual precisa ser impositivamente excluda: a prpria imposio (de qualquer outra coisa), a qual se mostra em formas como excluso, opresso, explorao etc.

    (3) crtica da linguagem e reforma da comunicao: 6 con-vvio, sociedade e com-munidade s acontecem mediante a com-municao, cuja qualidade problemtica em muitos sentidos.

    O aperfeioamento do convvio depende de estudar e enfrentar esses problemas.

    Grande parte dos problemas deriva da baixa confiabilidade da encarregada principal da comunicao: a linguagem verbal.7

    O enfrentamento disso tambm depende de vrios pontos, mas sobretudo da (re-)subordinao do plano das palavras ao plano das idias 8 o que tem conseqncias para todas as reas da vida, mas especialmente para a Educao.

    2.3.4. As trs dimenses do convvio Nenhum discurso que pretenda seriamente tentar apreender a realidade pode

    deixar de levar em conta, em todos os casos, os trs seguintes nveis ou dimenses ou quem sabe ainda escalas (no sentido geomtrico):

    dimenso individual-psicolgica dimenso social-cultural - inclui tudo o que criado pela humanidade, inclusive a maior parte das relaes ECONMICAS. Dentro dela cabem ainda distines entre as escalas local, regional e global, bem como a distino sociolgica entre organizao em comunidade ou em sociedade (v. 3.2.1.1).

    dimenso natural, comeando pela escala ecolgica, que inclui as relaes entre a totalidade dos seres TERRESTRES e, com isso, outra parte considervel das rela-es ECONMICAS

    ... e pelo menos tentando atingir tambm, se quisermos uma abordagem realmente ampla, a escala cosmolgica: o universo at onde nossa compreenso atual alcance.

    (Se no falamos de espiritual, que no o vemos como um de tais nveis, e sim como um dos aspectos de qualquer um dos nveis ao qual podemos escolher voltar o olhar ou no).9

    6 Falamos do fenmeno geral da comunicao, e no dos meios de comunicao ou das atividades ditas de comunicao social como o jornalismo e a publicidade, que no vemos como proprietrias e nem mesmo como usurias legtimas dessa palavra, que no nosso ver devia ser reservada para processos de mo dupla. 7 Foi pela pura observao que notamos h muitos anos a posio crucial da linguagem em qualquer tenta-tiva de mudana social; somente mais tarde tomamos conhecimento da viso sociolgica da linguagem co-mo a primeira das instituies humanas, matriz de todas as outras. (V. p.ex. BERGER e BERGER, 1977). 8 Estamos conscientes de que estamos aqui falando nonsense para a tendncia hegemnica nas cincias humanas hoje, que v o pensamento como derivado da linguagem mas no por hegemnica considera-mos essa posio sustentvel. Trataremos disso em artigo no volume Filosofia do Convvio. 9 Alguns prefeririam aqui neologismos como NOOLGICO ou NOTICO; o aspecto com que nos sintonizamos mediante as perguntas por SENTIDO e/ou pela NATUREZA DA SUBJETIVIDADE. Ao considerarmos com esse olhar a dimenso natural-terrestre facilmente nos veremos dialogando com o tradicionalmente conhecido por MGICO e com o TEOLGICO ao considerarmos a dimenso cosmolgica.

  • A. PRIMEIRAS FOLHAS

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    2.3.5. Cidadania e dignidade universais O desenvolvimento de uma atitude de cidadania tem que ser prioritrio na educa-

    o no s tendo em vista a participao na dimenso civil ou poltica da vida, mas tambm porque pr-condio para todo e qualquer desenvolvimento profissional que no seja realizado ao arrepio da tica.

    Ainda do ponto de vista utilitrio (que jamais deve ser o nico considerado, mas no deixa de ser real e necessrio), tem-se que toda cidadania autntica tende a ser auto-multiplicadora, ou seja: os esforos investidos nela rendem bem, embora muitas vezes no se perceba isso pelo intervalo de anos entre investimento e resultado.

    Para alm de definies superficiais, cidadania assumir plenamente a condio inevitvel de todo ser humano: a de n de uma rede, um cruzamento nico e ir-repetvel, porm inevitavelmente ligado a incontveis outros, e irradiador de conseqncias para o todo, querendo-o ou no.

    E preciso (levando em conta as trs dimenses de que falamos acima) assumi-lo no apenas na sociedade local e nacional de que fazemos parte, mas na humanidade inteira, na comunidade de todos os seres da Terra (rvores, ventos, rios, bichos, mon-tanhas...), e mesmo na comunidade de todos os seres conhecidos e desconhecidos a que chamamos Universo: Cidadania Universal.10

    Mas tal atitude s autntica (e portanto frutfera) quando no vem apenas da cabea (de uma escolha intelectual), mas brota de uma percepo direta ou emp-tica, com o ser inteiro, da dignidade de todos os seres.

    E isso s possvel quando conseguimos reencantar o nosso olhar (v. adiante).11

    2.3.6. Vida comunitria: laboratrio e escola de tica Evidentemente nem todos os participantes da Trpis (equipe e atendidos) preci-

    sam morar juntos, mas...

    ... o ncleo central de uma Trpis (uma organizao de Educao Convivial) deve necessariamente conter, entre outras coisas, a moradia viva de algumas pessoas, e a experincia de convvio intensivo como em famlia... envolvendo pessoas no-ligadas por laos familiares.

    No exporemos aqui as razes (muitas!), mas mencionaremos quatro antecedentes histricos dessa abordagem:

    aldeias academias filosficas da antigidade mosteiros casas de mestres-de-ofcios

    ... todos com pontos a questionar e repensar, porm tambm com enormes vanta-gens frente ao modelo escolar dos ltimos sculos! 12

    Nossa experincia torna difcil levar a srio qualquer discurso tico ou social de quem no tenha experimentado na prtica, pelo menos por algum tempo, o desafio dos banheiros, louas e roupas cotidianas sem possibilidade de contratar nenhuma Dona Maria (nem recorrer a mes, irms e esposas): somente quem foi vitorioso le-almente nessa ESCOLA DE RESPEITO deveria ter o direito de participar do planeja-mento dos nveis coletivos da vida humana.

    10 Esta idia apresentada de modo mais sistemtico em 4.9, com desenvolvimento em 12.4.3. 11 A absoluta realidade biolgica da cognio emptica, bem como sua importncia central na vida hu-mana, foram reconhecidas a partir da descoberta dos neurnios-espelho (v. RIZZOLATTI 2006 e RAMACHANDRAN 2006) o que de nenhum modo nega (e no nosso ver at refora) que com isso entremos no campo da experincia do sagrado. 12 Este assunto abordado mais amplamente em 3.2.

  • 2. Alguns conceitos-chave da forma de trabalho da Trpis

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    Todos os dramas do convvio em grande escala, at a poltica internacional, so ampliaes (como fractais) de problemas no resolvidos nesse nvel micro semente de toda a realidade humana. O que implica:

    Toda e qualquer reorganizao macro-social fracassar se no for precedida de uma REVOLUO DO COTIDIANO - ou por extenso:

    uma revoluo tica, pela conscincia, na micro-estrutura do cotidiano.

    Mas... que diferena faz o comportamento de meia dzia de gotas no comportamento do oceano?

    Na verdade no somos gotas, e sim partes de um tecido vivo.

    E a tanto um pensamento cientfico sistmico quanto um de tipo espiritualista convergem em ver que as elaboraes de um pequeno grupo, quando correspondem s necessidades de um momento histrico, acabam encontrando seus caminhos para influir no todo.

    2.4. SETE RAZES POR QUE NOSSO TRABALHO CENTRADO NOS JOVENS Nosso objetivo contribuir para a transformao no-violenta da sociedade inteira

    na direo de uma saudvel sociedade convivial (expresso j usada por Ivan ILLICH).

    Por que ento a Trpis trabalha principalmente com uma parte da sociedade, os jovens, sobretudo os jovens de periferia?

    Ou por que no centrar ateno nas crianas, que so mais futuro do que os jovens? A resposta ampla:

    2.4.1. Ateno aos jovens a ateno mais efetiva s crianas Hoje amplamente sabido que os momentos mais decisivos, para bem e para mal,

    que formam a estrutura fundamental de uma pessoa para toda a vida, esto entre a concepo e os 3 anos antes do alcance das escolas e da maior parte das instituies.

    O nico modo de atuar sobre essas crianas preparar seus pais e mes ainda an-tes da gravidez ou seja, atuar junto aos que esto prestes a se tornarem pais: os jovens.

    Estamos convictos de que com isso que se consegue o mximo efeito transforma-dor sobre a sociedade a partir de um determinado esforo.

    Mais: por razes histricas (estudar Gilberto Freire!), uma das questes mais graves do Brasil a (falta de) responsabilidade e atuao adequada dos PAIS (do sexo masculino).

    Sem alardear isso aos jovens num primeiro momento, talvez a atuao mais pro-funda da Trpis seja a de uma escola de mes... e sobretudo de pais.

    2.4.2. Sucesso e continuidade nos processos Crianas comearo a assumir responsabilidades pela sociedade daqui a uns

    15 anos os jovens daqui a 5 ou menos. Sem cuidados prestados no meio-tempo pelos que so jovens hoje, o que semeamos no mundo agora j ter morrido, quando as cri-anas de hoje assumirem seu posto!

    A continuidade saudvel de qualquer processo depende do envolvimento de jovens!

    2.4.3. O desastre da interrupo prematura Pessoas que recebem bom acompanhamento pedaggico na infncia mas o perdem na

    adolescncia tm grande chance de se tornarem revoltados e destrutivos e com razo!

    O que a sociedade no pretende continuar, seria melhor que nem comeasse!

  • A. PRIMEIRAS FOLHAS

    22

    2.4.4. Transio de risco mximo Os anos de transio da infncia para a idade adulta so sem dvida os mais dif-

    ceis para o indivduo, do ponto de vista psicolgico.

    Amostra disso o alto ndice de suicdio entre adolescentes, sem falar das drogas e do envolvimento em situaes de violncia, como agentes ou como vtimas o que afe-ta a sociedade inteira.

    Em 2001/02 as autoridades do Estado e do Municpio de So Paulo comearam a declarar que viam na ateno aos jovens a chave para o bem-estar da sociedade. Comeamos a dizer isso dez anos antes.

    2.4.5. Ideais como necessidade orgnica A alma jovem carece de vises-do-mundo, valores e ideais como de alimento

    (por isso entendemos bem por que Cazuza cantava: ideologia, eu quero uma pra vi-ver..., independente do uso no muito exato da palavra ideologia).

    Quando a sociedade no oferece aos jovens propostas razoveis de ideal, iro aderir ao que encontrarem dos modismos consumistas disciplina e hierarquia do crime - mas sem um ideal no ficaro.13

    2.4.6. Funo-conscincia para a sociedade Toda a sociedade precisa de que os jovens a relembrem da necessidade de ideais.

    A cobrana de coerncia e de autenticidade exercida pelos jovens pode ser irritante aos adultos, s vezes insuportvel, mas sua misso sagrada. A sociedade que no lhes d importncia termina afundada no conformismo com um possvel medocre, e finalmente no cinismo e na corrupo.

    Alm disso, boa parte do progresso da humanidade deriva da inexperincia dos jovens que (como o besouro que, pelo que se diz, voa porque no sabe que pelas leis da fsica no deveria voar) miram alm do meramente razovel e com isso alargam as fronteiras do possvel. Bendita inexperincia! - s podemos dizer. O fato de que tantas vezes no d certo pode ser visto como um sacrifcio realizado em favor da humanidade.

    Se uma sociedade quer um lugar no futuro, d ateno s bobagens originais dos seus jovens.

    2.4.7. Quem poderia incluir quem? Por que trabalhamos basicamente com jovens carentes e das periferias?

    Simplesmente no exclumos ningum por no poder pagar, e os que no podem pagar so a imensa maioria!

    Paralela e infelizmente, os jovens de outras classes geralmente se auto-excluem de atividades como as nossas, porque no fundo ou no querem se misturar, ou no querem o risco de ganhar conscincia de realidades incmodas, ou ainda por pensarem que no tm nada a aprender no meio dessa gente...

    Mas estamos abertos a todos: definitivamente, no preciso atestado de pobreza para entrar neste CENTRO DE CONVVIO UNIVERSAL!

    13 Escrevemos isto pelo menos dois anos antes dos ataques macios e altamente organizados da organi-zao criminosa PCC no Estado de So Paulo, em 2006.

  • 2. Alguns conceitos-chave da forma de trabalho da Trpis

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    2.5. O REENCANTAMENTO DA EDUCAO E DO OLHAR 14

    2.5.1. De como camos em desencanto At um certo momento da histria, todos os povos punham confiana no sentimen-

    to de que uma certa sensibilidade-e-inteligncia estava presente ou por trs ou na es-trutura de todas as coisas.

    Sentiam tambm que a sensibilidade-e-inteligncia do ser humano no era diferente dessa que viam em todas as coisas; que as duas eram de certa forma a mesma...

    ... e por isso tinham confiana num certo entendimento natural (que hoje chamar-amos de intuitivo) perpassando e interligando todas as coisas.

    E esse era o encanto de todas as coisas: que de certa forma eram todas nossas irms.

    Mas a partir do sculo XV, no meio de alguns povos se generalizou a idia de que toda sensibilidade-e-inteligncia est apenas no ser humano ou quem sabe tambm em al-gum plano acima dele, mas nunca no resto do mundo que percebemos em torno de ns.

    A viso do mundo como nosso irmo, e portanto digno de tanto respeito e cuidado como ns mesmos, passou a ser considerada primitiva e supersticiosa.

    Passou-se a ensinar que esse mundo bruto, totalmente casual, sem sentido e sem alma, e portanto pode ser explorado vontade. E todos os antigos limites vonta-de de dominar passaram a ser entendidos como superstio superada.

    Com essa nova forma de pensar, esses povos dominaram o mundo e isso pre-cisamente por terem pisoteado todos os limites que, embora no garantissem um mundo sem conflitos, pelo menos no deixavam que nenhum grupo atentasse maci-amente contra a variedade de outros grupos e da natureza.

    Mas alm disso... com esses povos, essa nova forma de pensar dominou o mundo. Ela possibilitou enorme poder parte da humanidade que a imps, e em certa medida a outros que foram aderindo a ela.

    Mas mesmo quem ficou sem poder termina sendo ensinado que essa forma de ver o mundo a nica verdadeira, pois a cultura dominante considera seu dever civilizador propiciar o seu tipo de educao a todos.

    E, assumidamente ou no, essa educao termina sempre repassando a crena de que as formas de ver o mundo que apostavam que havia sentido em todas as coisas (e portanto uma dignidade a ser respeitada) so pensamento mgico primitivo que preci-sa ser superado em benefcio do progresso

    ... e que os nicos valores reais so os que podem ser expressos em nmeros: medi-das das dimenses objetivas (ou utilizveis...) a partir das quais se atribuem preos.15

    Na famosa Carta do Chefe Seattle, a sabedoria indgena diz que uma grande soli-do de alma matar o ser humano se a vida natural for exterminada.

    Mas para isso nem preciso matar toda a natureza l fora: na compreenso-de-mundo em que fomos ensinados, ela j morta; j no tem mesmo nada que pudesse

    14 Para um relato de aes da Trpis envolvendo a idia reencantamento, e referncias a alguns outros que vm trabalhando com ela no Brasil, ver 14. 15 Embora com diferentes nuances de interpretao, esse conjunto de processos foi descrito tanto pelo socilogo Max Weber (que foi quem lhe aplicou a expresso desencantamento do mundo) quanto por autores de cunho espiritualista-esotrico (como Rudolf Steiner) e pelo lado mais humanista do pensamen-to marxista, comeando pelo prprio Marx (ver DORIA 1974: Marcuse, vida e obra). Cabe observar que o termo usado por Weber, Entzauberung, seria mais literalmente traduzido por desmagicizao ou des-magificao. Tambm interessante ter em conta que encantamento se refere originalmente a um tipo de prtica mgica: a de impregnar objetos ou seres com foras espirituais (ou de inteno) mediante o canto. Foi nesse sentido que o latim crmen (canto, cano) gerou a palavra inglesa charm.

  • A. PRIMEIRAS FOLHAS

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    ser chamado alma. E, por nossa vez, ns humanos j estamos morrendo da nossa solido de alma seja pelos desastres ecolgicos, seja pelos desastres psicolgicos que provocamos com isso.

    Se o ser humano aspirava a ser livre dos limites da natureza e das crenas... hoje freqentemente se sente aprisionado num mundo atrozmente cinzento... que ele tenta colorir de modos artificiais a qualquer custo, pois esse cinzento e vazio so insuport-veis para a natureza da psique humana

    ... tanto que com muita facilidade ele termina trocando justamente a liberdade (que a falta-de-sentido, embora no indispensvel para isso, realmente lhe ajuda a ter, pelo menos potencialmente) por qualquer coisa que lhe prometa alguma sensao de senti-do: status, experincias radicais, seitas, drogas...

    ... infelizmente sem sair, com isso, de uma escolha entre a loucura e a insanidade, como dizia Aldous HUXLEY (1989).

    2.5.2. O encanto salta aos olhos das cincias. E a educao? No entanto, j no fim do sculo XX a pretensa racionalidade da viso desencantada levou um srio golpe com o reconhecimento da biosfera como sistema vivo integral (hi-ptese Gaia),16 entre muitos outros conhecimentos novos... e encantadores:

    ... mesmo para quem no admite uma dimenso sobrenatural, a riqueza e complexidade do natural so uma fonte de encantamento inesgotvel desde que se queira ver

    ... e tambm o so a complexidade e riqueza do imaginrio humano: a arte, as mitolo-gias... E novas formas de compreenso antropolgica parecem se abrir, capazes de abranger as antigas experincias religiosas e dos povos tradicionais (p.ex. amerndios) sem que isso represente o mergulho em iluses, nem a desistncia da liberdade.

    Na Trpis vemos o reencantamento justamente como uma reafirmao da liberdade; uma recusa a entregar a inveno do nosso viver a sistemas externos:

    Reencantar-se resgatar o direito de estarmos frente da inveno das nossas prprias vidas: com cincia... mas tambm com arte; com realismo mas tambm com gosto.

    E tambm consideramos fundamental o respeito pela opo pessoal de apostarmos (ou no) em mais este passo:

    aceitarmos o convite de sermos parceiros-aprendizes da Sabedoria Criadora Universal.17

    S que para isso precisamos de uma nova educao pois a atual se especializou por mais de 500 anos em desencantar!

    E por isso um dos grande assuntos da Trpis o reencantamento: um reencantamento do mundo que significa na verdade do olhar, da nossa experincia do mundo... e para isso, necessariamente, da educao.

    16 Ironicamente, o nome Gaia (ou Gea), com que os gregos se referiam Terra como deusa, entrou na litera-tura cientfica atravs do cientista ainda bastante desencantado que James LOVELOCK (1979). 17 Para uma brilhante perspectiva nesse sentido, diferente da religiosa ou tradicional (e no necessariamen-te idntica nossa), ver Sir Fred HOYLE, O Universo Inteligente. (Ver tambm a seo D deste volume). Sobre aposta como sinnimo de f, ver a nota 21 do artigo 12.

  • 2. Alguns conceitos-chave da forma de trabalho da Trpis

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    2.5.3. Nossas OCAs: transcendncia pelo Conhecimento & Artes

    Quem possui cincia e possui arte esse tambm tem religio.

    GOETHE 18

    No nome OCA est representado o procedimento essencial da Educao Convivial: aquilo que uma Oficina de Conhecimento & Artes ao mesmo tempo uma casa (moradia, abrigo, espao de vida: significado de OCA na lngua tupi).

    Esse nome comeou a ser usado por ns em 1995, antes do registro da Associao Trpis, para sesses que aconteciam desde maro de 1993.

    Tomar posse na sua parte da herana cultural da humanidade... ouvir a msica de hoje, os clssicos da MPB, e Beethoven... e discutir poltica, exercitar filosofia, e pintar, falar de povos perdidos no passado enquanto se cozinha ou lava loua...

    Nessas sesses tivemos farta confirmao de que conhecimento encanta, e encanta o jovem pobre da periferia, que as escolas tanto acusam de desinteressado em aprender. 19

    Dez anos depois, foi a idia das OCAs que se expandiu quando concebemos o Projeto OCA Mundi, pelo qual a Trpis buscou se aproximar mais, na prtica, dos seguintes aspectos do convvio que j estavam entre os seus interesses desde sempre:

    convvio com a natureza - aumento da ateno ao aspecto ecolgico

    aprendizado intercultural - com a inteno de desenvolver o relacionamento (em parte j iniciado) com parceiros indgenas, europeus e africanos e quem mais aparecer!

    cooperao entre iniciativas ou instituies 20

    O horizonte para o qual miramos atravs desse projeto uma espcie de... (o nome longo porm representativo)

    UNIVERSIDADE ABERTA PARA O REENCANTAMENTO DA EDUCAO

    E O CONVVIO UNIVERSAL.

    18 Dos Epigramas Mansos (Zahme Xenien), em GOETHE 1986. O epigrama se conclui quem no possui aquelas duas / que tenha religio (traduo nossa). 19 Ver a propsito depoimento em 3.3.5. Mais sobre a idia e a experincia das OCAs em outros traba-lhos deste volume p.ex. 1; 3.3.2; 11.13 etc. 20 Alm de pontos esparsos, cada uma destas dimenses abordada em, respectivamente, 6, 7 e 5. Sobre as intenes do Projeto Oca Mundi, ver pgina correspondente em www.tropis.org. Sobre o seu adiamen-to, ver, em 3, o final de 3.2 e de 3.4.

  • A. PRIMEIRAS FOLHAS

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    2.6. ALGUNS SMBOLOS MARCANTES NA HISTRIA DA TRPIS

    Gye-Nyame - INSERIDO NO LOGOTIPO PRINCIPAL

    Ideograma do povo Akan, do atual Ghana (frica Ocidental). Segundo NASCIMENTO (1994), refere-se imortalidade e onipotncia da divindade csmi-ca. Sua construo permite l-lo como o t'ai chi (yin/yang). A escolha de uma forma africana expressa a valorizao da pluralidade e do dilogo intercultural. O eixo central, mostrado como rtmico, carrega tambm as qualidades da quilha (Trpis cf. cap.2 acima).

    Beija-Flor ou Colibri - USADO NA CAMPANHA DO REENCANTAMENTO DO MUNDO

    Um dos seres mais encantadores da natureza terrestre, considerado especial-mente caracterstico da Amrica do Sul, tem importantssimo papel na cosmo-gonia guarani (entre outras). Circulando e estabelecendo comunicao entre os seres e princpios opostos, representa o terceiro princpio (na verdade o primei-ro!): mercurial, mvel, rtmico, curador, integrativo: qualidades tambm da quilha. Na Trpis usamos a imagem do Beija-Flor como um lembrete de que a cada minuto podemos reencantar nosso olhar: fique de olho no beija-flor! 21

    USADO NO PROJETO OCA MUNDI - Este despretensioso sinal encontrado em algumas fontes de computador pode ser tomado como smbolo e lido de incontveis formas: aldeia circular, com suas ocas em torno do ptio central (tupi ocara, incrivelmente semelhante ao gora grego) o mnimo de 12 ngulos diferentes a partir dos quais, segundo alguns, se comea a ter um vislumbre de viso in-tegral de um fato (pluralismo!) sistema: peas livres porm inter-relacionadas formam uma unidade de um novo nvel-de-ser a cruz no crculo solar: recon-quista da vida (ressurreio) aps a crucifixo e morte as quatro direes e elementos as seis direes do mundo espacial, considerando tambm as a-pontadas pelo eixo central (axis mundi) visto aqui em corte ou projeo...

    2.7. CONSEQNCIAS DA FILOSOFIA DA TRPIS PARA A COOPERAO INSTITUCIONAL A Trpis no adotou a Filosofia do Convvio: ela , em si mesma, um exerccio

    prtico dessa filosofia; no haveria Trpis sem ela.

    Isso, porm, no faz dela uma seita: ao contrrio, exatamente a natureza e contedo da Filosofia do Convvio o que a torna aberta cooperao e associao com qualquer pessoa ou instituio que apenas no se permita oprimir, impor ou excluir.

    No que tenhamos a iluso de que fcil superar sculos de tradio de competio ou pelo menos no-cooperao... No se trata de algo que se d por si, mas que preciso buscar e exercitar ativamente. Algumas contribuies nesse sentido se encontram neste volume no artigo 5, Convvio em e entre organizaes.

    2.8. NOSSAS FONTES Tudo j foi dito; mas como ningum escuta, preciso comear sempre de novo... (A.GIDE)

    As idias da Trpis so devedoras das mais variadas, numerosas e aparentemente incompatveis fontes o que (desta vez discordando de Roberto GOMES) assumimos decididamente como riqueza do modo brasileiro de pensar. No ocasio para um es-tudo sistemtico dessas fontes, mas alguma idia sobre elas pode ser obtida de 1.7, bem como da Bibliografia Geral. Alm disso, o volume Filosofia do Convvio trar um pouco mais sobre isso.

    21 O naturalista goetheanista Andreas SUCHANTKE chamou seu livro sobre a Amrica do Sul de Der Konti-nent der Kolibris (O Continente dos Colibris). Sobre o papel na cosmogonia guarani, ver JECUP, Tup Tenond. O chamado terceiro princpio pode ser visto como a manifestao (re)integradora do Um sobre a sua primeira manifestao como Dois. V. p.ex. STEINER, Occult signs and symbols (GA 101).

  • 3. Pedagogia do Convvio: histrias para uma Histria

    2005/06

    Esto combinados aqui trs trabalhos praticamente independentes: em (1) Conexes numa histria pessoal, o autor tenta identificar elementos, em sua biografia pessoal, que possam ter contribudo para o impulso de desenvolver uma Pedagogia do Convvio, quer como continuao quer como negao desses elementos; em (2) Conexes nas histrias do mundo, reflete-se sobre relaes desta Pedagogia com alguns modelos fornecidos pela histria, cincias sociais e literatura; em (3) Para a memria do experimento Trpis, tentam-se registrar, por vrios ngulos, memrias dos doze ou treze anos de ao-reflexo sob o nome Trpis que conduziram at o estado atual das idias e propostas que identificamos como Educao Convivial ou Pedagogia do Convvio.

    A Otto Rickli e Ayme Correia Rickli, meus pais, pelo quanto tiveram de educadores conviviais.

    3.1. CONEXES NUMA HISTRIA PESSOAL

    Muitos perguntam desde quando vocs realizam esse trabalho? e difcil definir. O fruto comeou quando ficou visvel? Ou quando aquele vulo especfico foi fecunda-do? Ou quando outra planta, quem sabe distante, comeou a preparar seu plen para solt-lo ao vento? Ou quando a rvore-me germinou?

    Vrios momentos da minha trajetria pessoal, bem antes da organizao da Associ-ao Trpis, j me aparecem na memria como situaes de educao convivial ati-va. Mas h memrias ainda mais antigas que tm basicamente o mesmo sabor nas quais me vejo porm apenas como educando, e ainda no (como no que chamei edu-cao ativa) como simultaneamente educando e educador.1

    Tentarei neste captulo registrar um pouco dessa pr-histria pessoal da Pedagogia do Convvio. No diria que se trata de uma autobiografia educacional como as que vm sendo usadas ultimamente na investigao cientfica da educao, na medida em que me restringirei ao que chamo de situaes conviviais, deixando de lado (exceto em bre-ves menes que visam fortalecer a outra imagem por contraste) tanto a escola formal quanto outras situaes comparveis (p.ex. igreja) que tambm tiveram seu papel.

    3.1.1. Cenrio inicial Nasci em 1957, em Curitiba por razes de circunstncia, porm com todas as razes

    e infncia no Interior-Sul do Paran. Se o nome suo da famlia paterna (Rickli) esta-va no Brasil h apenas 88 anos (em 2006 so 137), a famlia materna (Silva Correia) era a usual trama de razes portuguesas com pelo menos uma africana, documentada e reconhecida, e muitas indgenas no-reconhecidas.

    Pode-se dizer ento que o nome Ralf veio menos por germanismo familiar que pela extravagncia tipicamente brasileira ao nomear... e era com freqncia atribudo simpatia de meu pai pelo pensador norte-americano Ralph Waldo Emerson amigo do

    1 Naturalmente estamos ecoando aqui a mundialmente conhecida formulao de Paulo Freire. Oscilan-do entre o puro depoimento e a teorizao, este artigo padece de uma tenso entre os sujeitos eu e ns. Ser feito um esforo para usar o eu, mas muitas vezes o ns se impor, s vezes ao invocar a cumplicidade do leitor, s vezes a experincia vivida coletivamente, mas s vezes por pura imposio do colegiado teorizante interior que mencionamos 0.3, na introduo geral do livro.

  • A. PRIMEIRAS FOLHAS

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    Thoreau de A vida nos bosques e de A desobedincia civil o que no me parece sem significao para esta histria...

    Fundamental mesmo foi a experincia de pertencer (ou quem sabe no pertencer) ao mesmo tempo a dois mundos com linguagens e modos de vida totalmente diversos e mutuamente incompreensveis (o latino urbano e o rural de sotaque germnico) os quais provavelmente nunca teriam se encontrado sem o espao comum e a catalisa-o trazidos por missionrios norte-americanos (presbiterianos com influncia da dis-sidncia pietista do luteranismo).

    Um detalhe fundamental sem o qual tudo o que vai se contar pode ficar sem senti-do: at meus doze ou treze anos, a cidade onde eu morava (Guarapuava) no tinha televiso.

    3.1.2. A escola atrapalhando a educao Dos 4 aos 7 anos recebo em casa, de modo informal e misturado nos demais atos

    do cotidiano, uma enorme quantidade de informao de pai, me, primas, tias-avs... Um dia me descobrem lendo, alfabetizado. Duas imagens-sntese da poca: es-crever e desenhar numa lousa ao ar livre; recortar papis e ouvir histrias em frente a uma lareira, nas noites glidas de Guarapuava. A fui posto no que provavelmente era a melhor escola pblica num raio de muitas

    dezenas de quilmetros. Durante dias que pareciam infinitos (com certeza mais de uma semana) nossa sala no tinha professora, mas ramos obrigados do mesmo modo a ficar nas carteiras por quatro horas, sem nenhum material, brinquedo ou atividade. De tempo em tempo uma inspetora entrava e berrava si-ln-cio!

    Espao de ensino e de socializao? Ano aps ano, ir para escola foi vivenciado so-bretudo como uma desgraa, um degredo para uma situao degradante tanto em termos de aprendizado quanto do convvio humano (com os adultos e com os outros alunos) e essa percepo se manteve em boa medida at no nvel superior. A estrutura inicial do que hoje meu edifcio de conhecimento (todo mundo tem

    um!) foi adquirida nesses anos, mas no na escola, e sim com grande quantidade de leitura em casa. No discordarei de quem alegar que tal situao foi deficiente como socializao. Sem dvida! Porm a escola no teria feito melhor: pelo menos entre os meninos, na escola s se torna social o que se aproxima da delinqncia.

    3.1.3. Imagens do convivial no fim-de-infncia Se procuro imagens positivas relacionadas a um aprendizado convivial aps o incio

    da escolarizao, elas vm sobretudo de relatos, partindo de duas fontes ficcionais e uma real.

    Uma vivncia direta exceo: as tardes de domingo em que meu pai enfiava no carro a famlia, e com freqncia mais algumas crianas ou jovens convidados, e nos levava para o mato. No inverno era sapecada de pinho (sementes de araucria assa-das numa fogueira das suas prprias folhas secas), no vero alguma melancia partida na beira de um rio... Eram vivncias com uma dimenso fsica... porm entremeadas de uma quantidade enorme de comentrios rpidos de todos os nveis por parte de pai, me e outros adultos que houvesse de sobrevivncia a filosofia, de rememora-es da prpria infncia a informaes sobre a natureza e a geografia... Algumas vezes isso ganhava uma gravidade diferente, sem mulheres nem crianas menores: uma pescaria em lugar perigoso, uma caada de jabuticabas na mata virgem onde adultos ainda caavam porcos-do-mato e pumas...

    As fontes ficcionais: (1) Monteiro Lobato. No me refiro aqui tanto aos contedos de informao repassados nos livros e sim descrio de uma forma de aprender, no con-vvio cotidiano no Stio do Picapau Amarelo; (2) o universo dos escoteiros-mirins de que fazem parte os sobrinhos do Pato Donald o qual seria provavelmente errado atri-

  • 3 Pedagogia do Convvio: histrias para uma Histria

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    buir ao prprio Walt Disney, no s porque hoje se sabe que ele foi em grande medida um arrebanhador e comerciante de criaes alheias, mas tambm porque o carter preciso de que falo no se encontra em todos os setores do mundo imaginrio que leva seu nome. Talvez esse carter pertena prpria instituio do escotismo, mas no me vejo em condies de avaliar por no ter tido contato direto com ela.

    No me passam despercebidas a certas diferenas: no escotismo, imaginrio ou no, encontramos justamente a tica protestante norte-americana apenas desvestida de suas formas religiosas, atuando de forma claramente ordenada num grupo homogneo (mas-culino, de uma certa faixa idade etc). J no Stio do Picapau Amarelo em que pese o conhecido entusiasmo de Lobato por idias e prticas norte-americanas deparamos com o convvio carnavalizado entre humanos de diferentes gneros, idades e posies sociais, sem falar de animais e objetos falantes... possvel assunto para um estudo onde com certeza teramos muito a ouvir do antroplogo Roberto DAMATTA.2

    A fonte real que encontro so as constantes referncias de meu pai e de outros fa-miliares a seus tempos de estudos em duas instituies de ensino mais uma vez de tradio anglo-saxnica: o Instituto Cristo em Castro, PR (ainda existente porm fun-cionando hoje em outros moldes) e o extinto Instituto Jos Manoel da Conceio, em Jandira, SP. Nos dois casos observava-se a forte memria de: (a) convvio prximo com os professores e responsveis; (b) convvio com colegas em tempo integral, sem vigiln-cia estrita nem abandono; (c) convvio com a natureza; (e) abertura de horizontes cul-turais no apenas utilitrios (lnguas, canto coral, filosofia) sem excluso de: (e) participao no trabalho fsico da instituio.

    3.1.4. Sessenta e oito Uso este ano como ttulo por tudo que representa historicamente, mas os fatos de

    que falo se estendem at 1970 ou 71. Inicialmente sem conhecimento dos movimentos jovens que aconteciam mundo afora, nos momentos que passo ao ar livre consolida-se como ideal de vida ntido e inequvoco uma imagem de vida comunitria e de convvio DA COMUNIDADE com a natureza. essencial acentuar essas duas dimenses de convvio para usar a nomenclatura ecolgica, a intraespecfica e a interespecfica e distin-guir da imagem comum de uma vida humanamente isolada junto natureza. Em ou-tras palavras: esta imagem no corresponde do Walden de Thoreau.3

    Ao mesmo tempo, me entrego com afinco ao esforo de encontrar e formular crit-rios ticos mnimos, racionais e to simples quanto possvel em contraste com os dados de cima, no-criticveis, tanto da educao religiosa quanto da educao mo-ral e cvica escolar ordenada pelo regime militar. No exagero dizer que o Convivia-lismo como formulado hoje apenas o desenvolvimento e detalhamento de algumas formulaes bsicas encontradas j naquela poca.

    2 DAMATTA, A casa e a rua especialmente, no caso, o estudo sobre Dona Flor e seus dois maridos. Quanto a LOBATO, seu entusiasmo pelos Estados Unidos est ricamente documentado em (entre outros escritos) Amrica, de 1931, parte da sua hoje injustamente to pouco lida obra adulta (LOBATO 1962). Acho significativo, porm, que em meio a tanta admirao, Lobato invista acidamente contra a vertente puritana-sexofbica dessa sociedade, apontando-a sobretudo na pr-censura ento exercida sobre a pro-duo cinematogrfica por organizaes da sociedade civil (!); trata-se da mesma vertente, preciso notar, que se manifesta hoje nos excessos do politicamente correto e na veiculao de uma pseudo-psicologia sexofbica que ignora candidamente todo o saber conquistado a duras penas por Freud, Reich, Laing e tantos outros. Sobre a presena desse mesmo puritanismo no universo disneyano, ver DORFMAN E MATTELART (1977), Para ler o Pato Donald; independente de a postura desses autores chegar a ser tambm um puritanismo, apenas que de sinal ideolgico trocado, as evidncias que apontam no deixam de falar por si. Ainda sobre o americanismo de Lobato, um recente artigo de Paulo GHIRARDELLI JR. (2006) traz tona uma participao inusitada sua na histria das idias pedaggicas no Brasil: Lobato teria sido decisivo no lanamento de Ansio Teixeira na vida pblica, justo pelo fato de este ltimo ter visto, sen-tido e compreendido a Amrica. 3 Henry David THOREAU (1985), Walden, ou a vida nos bosques (o mesmo livro j referido em 3.1.1).

  • A. PRIMEIRAS FOLHAS

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    Curiosamente, o texto que serviu de verdadeiro programa revolucionrio nesse mo-mento, inclusive contra a instituio religiosa, havia sido recebido dessa mesma insti-tuio: o Sermo da Montanha. Quase que bvio, esse foi o momento de descobrir tambm Francisco de Assis.4

    Sozinha, porm, essa descrio da vida interior pode gerar uma imagem falsa e na verdade algo ridcula de um adolescente altaneiro e seguro como as imagens que encontramos em algumas autobiografias intelectuais que se permitem sonegar a reali-dade existencial. importante acentuar que o cotidiano ordinrio dessa poca era vi-venciado como um cambalear por entre a violncia fsica e psquica dos colegas na escola (agora s meninos) violncia absolutamente ignorada por professores que s cuidavam de suas disciplinas , a angstia diante do mistrio inacessvel e escabroso que o background puritano fizera do sexo, a incompreenso familiar por esse estado permanentemente beira do colapso... a mais absoluta impossibilidade de... convvio em qualquer frente que fosse.

    3.1.5. Comeo de carreira: professor convencional, aluno convivial Curitiba, 1976, segundo ano de faculdade na Escola de Msica e Belas Artes do Paran.

    O currculo oficial da escola no deixou muitas marcas; o aprendizado no convvio informal com colegas e professores, muitssimas.5 Comeo a ensinar (aulas de piano e teoria musical em So Bento do Sul, SC, e pouco depois entre os holandeses de Carambe, PR).

    Mais decisivo, porm, foi ter comeado a participar de um dos crculos de jovens que se reuniam informalmente, e muitas vezes perigosamente, tentando encontrar caminhos prprios na vida e no conhecimento na forma que na dcada de 1950 Carl Rogers identificou como tpica de momentos de transio histrica em que uma gera-o no consegue confiar no ensinamento ministrado pela anterior.6

    A quase totalidade de meu conhecimento de Histria