plural de cidade

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  • Plural de Cidade:Novos Lxicos Urbanos

    CAR LOS FORTUNAROGER IO PROENA LEITE (Orgs.)

  • Biblioteca Nacional de Portugal Catalogao na Publicao

    Plural de cidade : lxicos e culturas urba-nas / org. Carlos Fortuna, Rogrio ProenaLeite. - (CES)ISBN 978-972-40-3924-4

    I FORTUNA, CarlosII LEITE, Rogrio Proena

    CDU 316711

    PLURAL DE CIDADE:NOVOS LXICOS URBANOS

    ORGANIZADORES

    CARLOS FORTUNAROGERIO PROENA LEITE

    E D I T O R

    EDIES ALMEDINA. SAAv. Ferno Magalhes, n 584, 5 Andar3000-174 CoimbraTel.: 239 851 904Fax: 239 851 [email protected]

    P R - I M P R E S S O | I M P R E S S O | A C A B A M E N T O

    G.C. GRFICA DE COIMBRA, LDA.Palheira Assafarge3001-453 Coimbraproducao@gra cadecoimbra.pt

    Setembro, 2009

    D E P S I T O L E G A L

    297901/09

    Os dados e as opinies inseridos na presente publicaoso da exclusiva responsabilidade do(s) seu(s) autor(es).

    Toda a reproduo desta obra, por fotocpia ou outro qualquer processo, sem prvia autorizao escrita do Editor, ilcita e passvel de procedimento judicial contra o infractor.

  • SUMRIO

    Apresentao 7

    SECO I Artes de fazer a cidade 9

    1. Patrimnio cultural e cidade 11

    Antonio A. Arantes

    2. Enobrecimento urbano 25

    Silvana Rubino

    3. Requali cao urbana 41

    Paulo Peixoto

    4. A cidade no dilogo entre disciplinas 53

    Heitor Frgoli Jr.

    5. Culturas populares na cidade 69

    Srgio Ivan Gil Braga

    6. Cidade e urbanidade 83

    Carlos Fortuna

    SECO II Artes de usar a cidade 99

    7. Etnogra a urbana 101

    Jos Guilherme Cantor Magnani

    8. Segregaes urbanas 115

    Lucia Maria Machado Bgus

    9. Espaos e vazios urbanos 127

    Cristina Meneguello

    10. Sonoridades e cidade 139Luciana Mendona

  • PLURAL DE CIDADE: NOVOS LXICOS URBANOS6

    11. Usos da rua 151

    Fraya Frehse

    12. Polticas culturais urbanas 171

    Joo Teixeira Lopes

    13. Espaos pblicos na ps-modernidade 187

    Rogerio Proena Leite

    SECO III Artes de consumir a cidade 205

    14. Narrativa de Lisboa 207

    Irlys Barreira

    15. Economia do Patrimnio 225

    Eva Vicente

    16. Turismo e cidade 245

    Clarissa M. R. Gagliardi

    17. Ambiente, sustentabilidade e cidade 265

    Maria Eugnia Rodrigues

    18. Cidades e migraes 283

    Ulisses Neves Rafael

    19. Consumo cultural na cidade 299

    Ana Rosas Mantecn

    20. Intermedirios culturais e cidade 319

    Claudino Ferreira

    Sobre os autores 337

  • APRESENTAO

    Plural de cidade so as cidades que existem dentro da cidade. No um con-junto diverso de cidades, nem uma questo de geogra a. Plural de cidade so os territrios dspares que fazem a cidade, as polticas scio-urbanas e a sua ausncia, o atropelo aos direitos e as paisagens de privilgio, as formas de segregao e a ostentao, a cultura, a sade, o emprego, o dinheiro, o futuro e, ao mesmo tempo, a falta de todos eles.

    Plural de cidade a conjugao destas cidades numa s. E em todas elas. Nas ricas e nas pobres, nas do Norte e nas do Sul, nas que falam e se fazem escutar e nas outras, nas histricas e nas criativas, nas de hoje e nas democrticas. Plu-ral de cidade tambm um desa o intelectual enorme, ao tratar, a um tempo, da cidade desejada, imaginada, e da cidade vivida. A dimenso intelectual desse desa o s possvel enfrentar-se devagar e com o contributo de mui-tas mos, muitas inspiraes, muitas experincias, muitos pontos de partida.

    Um dos nossos pontos de partida foi a constatao que a premissa simme-liana da predominncia de um ethos metropolitano na vida humana, tpico da modernidade, se con rma a cada dia, atravs do inexorvel e sugestivamente irreversvel processo de urbanizao do mundo. De nitivamente, os huma-nos escolheram viver em cidades.

    Sabe-se como so complexas as repercusses da acentuada urbanizao contempornea, do mesmo modo que se receia a sua futura evoluo. As cidades de hoje esbanjam problemas de todos os tipos. No falta com que nos deixemos preocupar. Os grandes aglomerados humanos sempre foram considerados um problema sociolgico nada desprezvel. Constituem uma exaltante matria de investigao nas Cincias Sociais porque anunciam com-portamentos e condutas, mas tambm imaginrios e sociabilidades, que se diferenciam a cada instante. No ser exagerado dizer, portanto, que a cidade o objecto par excellence das Cincias Sociais. Nela decantam e reverbe-ram, em primeira mo, as aces, reaces e con itos que se fazem presen-tes no curso da vida quotidiana. Por essa razo, entender a complexidade da vida urbana contempornea mais parece ser uma condio necessria para se compreender as sociedades actuais, face crise de e ccia simblica do estado-nao em decorrncia da transversalidade global dos uxos culturais.

    A esta complexidade das cidades contemporneas corresponde a cres-cente di culdade de estud-la. Esse o desa o plural, tambm, que temos perante ns. Mais do que uma evidente multidisciplinaridade, as anlises

  • PLURAL DE CIDADE: NOVOS LXICOS URBANOS8

    contemporneas sobre as cidades precisam de perspectivas analticas hetero-doxas. Por outras palavras, necessitam de abordagens culturais originais e de novos lxicos que dem conta das interfaces e das liminaridades que as dspa-res prticas urbanas apresentam hoje. Essas so as cidades que existem den-tro da cidade, sujeitas a rpidas metamorfoses. A linguagem do seu retrato carece tambm de contnua actualizao. Se as coisas mudam na cidade sem que mudem e se renovem os mtodos e os lxicos da sua traduo, o futuro urbano, que a nal o futuro cultural de todos ns, s pode tornar-se mais complexo e sem esperana.

    Este livro constitui uma tentativa de abordar parte das diferentes feies que a cidade contempornea revela. Nele esto reunidos textos que procuram analisar, sob diferentes enfoques empricos e variadas perspectivas tericas, esse mosaico multifacetado que o plural de cidade contemporneo. Temas diversos so abordados por estudiosos brasileiros e portugueses, que inte-gram actualmente a Rede Brasil-Portugal de Estudos Urbanos, grupo de pes-quisa que desde 2006 vem trabalhando em conjunto no esforo de um estudo comparativo entre cidades brasileiras e portuguesas. O grupo conta tambm com a colaborao de colegas de outras nacionalidades, numa experincia de alargamento de pontos de vista sobre a cidade que apenas as limitaes nanceiras e logsticas nos impedem, por enquanto, de multiplicar.

    A Rede Brasil-Portugal de Estudos Urbanos nanciada pelo Programa Comunidades dos Pases de Lngua Portuguesa CPLP do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cient co e Tecnolgico CNPq/Brasil; pelo Programa de Cooperao Bilateral entre a Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior CAPES/Brasil e a Fundao para a Cincia e Tecnologia FCT, do Ministrio da Cincia, Tecnologia e Ensino Superior/Portugal; pelo Centro de Estudos Sociais e a Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e pelo Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe/Brasil.

    Por m, no ser demais sublinhar que este livro no pretende consoli-dar conceitos e abordagens novas em substituio de outros, eventualmente superados. Ao contrrio, pretende-se to somente contribuir para a abertura de um debate com vista actualizao do que chamamos estudos urbanos. Um debate que, sendo urgente, s fruti car na medida em que saiba ser plural.

    CARLOS FORTUNA

    ROGERIO PROENA LEITE

  • SECO I

    Artes de fazer a cidade

  • 1. PATRIMNIO CULTUR AL E CIDADE

    Antonio A. Arantes

    Convm rea rmar desde logo que a expresso patrimnio cultural no faz parte do instrumental terico desenvolvido para interpretar ou explicar o social. Ela designa de fato construes ideolgicas ou representaes que requerem, elas mesmas, explicao. Assim, estas re exes focalizam o car-ter sui generis das realidades patrimoniais no contexto da dinmica cultural, iluminando questes de natureza antropolgica prprias a esta temtica, e explorando aspectos da participao do patrimnio na construo da expe-rincia urbana contempornea.

    I

    Os grupos humanos atribuem valor diferenciado a estruturas edi cadas e a elementos da natureza que balizam seus territrios, ancoram suas vises de mundo, materializam crenas ou testemunham episdios marcantes da memria coletiva. Cultivam atividades, conhecimentos e modos de saber--fazer que, ao mesmo tempo, servem a ns prticos e identi cam, diferenciam e hierarquizam categorias e estratos sociais, participando da estruturao da vida em sociedade, da formao das identidades e da alimentao do senti-mento de pertena.

    Essas realidades so inseparveis dos meios sociais que as produzem, pois deles recebem sua seiva, vitalidade e razo de ser. Mas assim como so criadas, nutridas e aprimoradas, elas podem ser modi cadas ou abandonadas no cons-tante uxo da vida coletiva, onde preservao e destruio so faces da mesma dinmica pela qual as estruturas sociais se reproduzem e se transformam.

    Entretanto, o que se denomina patrimnio cultural, para efeitos de pol-ticas de preservao e promoo desenvolvidas pelo Estado que o tema do presente ensaio no se confunde com esse conjunto de atividades, artefatos e conhecimentos integrados vida social. Tampouco a idia de preservao faria sentido, se aplicada totalidade das referncias culturais compartilha-das; ela seria uma co conservadora, necessariamente antagnica emer-gncia do futuro no presente.

  • PLURAL DE CIDADE: NOVOS LXICOS URBANOS12

    Diversamente de outras representaes coletivas, o patrimnio cultural strito sensu institudo por um complexo processo de atribuio de valor que ocorre na esfera pblica, aqui entendida como o conjunto de instituies de representao e de participao da sociedade civil no espao poltico-admi-nistrativo do Estado. Eis o universo mais amplo a que pertencem as realidades culturais ditas patrimoniais, ou seja, o contexto em que o objeto espec co destas re exes adquire a condio sui generis de integrar representaes sim-blicas de identidade e, como tal, de participar de processos culturais, polti-cos e da economia.

    II

    Patrimnio no se confunde com o que usualmente se denomina costume. Essa distino crucial para se compreender o sentido da preservao enquanto prtica social e suas conseqncias para a dinmica cultural e para a gesto do patrimnio nas cidades.

    Acordos e convenes internacionais tm balizado a formao de uma esfera pblica mundial para questes de patrimnio, assim como o desen-volvimento de polticas de preservao em diversos pases, principalmente a partir da dcada de 1930. Os documentos fundadores desse processo so as Cartas de Atenas, em suas edies de 1931, assinada pelo Escritrio Interna-cional dos Museus da Sociedade das Naes, e de 1933, que tem a chancela da assemblia do CIAM Congresso Internacional de Arquitetura Moderna. A Carta de 1931 focaliza, entre outros assuntos, legislaes nacionais para pro-teo dos monumentos de interesse histrico, artstico ou cient co (Cury: 2000,14). Entre os temas abordados por esse documento merece destaque, do ponto de vista destas re exes, a referncia s di culdades enfrentadas pelos pases participantes de conciliar o direito pblico com o particular nessa matria, e tendncia geral consagrada em suas legislaes no sentido de se reconhecer o direito da coletividade em relao propriedade privada (idem, ibidem). Em vista disso, a reunio aprovou unanimemente as bases do princpio de precedncia da funo social da propriedade sobre os interesses privados, constituindo o que , sem dvida, o principal fundamento jurdico da preservao.

    A Carta de 1933 pe em destaque, por sua vez, o patrimnio no contexto da cidade e das condies de vida no meio urbano, especialmente em zonas histricas. No captulo dedicado ao patrimnio l-se que

  • PATRIMNIO CULTURAL E CIDADE 13

    a vida de uma cidade [...] se manifesta [...] por obras materiais, traados ou cons-trues que lhe conferem sua personalidade prpria e dos quais emana pouco a pouco a sua alma. So testemunhos preciosos do passado que sero respeitados, a princpio por seu valor histrico ou sentimental, depois porque alguns trazem uma virtude plstica [...]

    (idem, 52).

    O documento estabelece, alm disso, dois parmetros importantes para a preservao ao a rmar que (1) nem tudo que passado tem, por de nio, direito perenidade e, em conseqncia, convm escolher com sabedoria o que deve ser respeitado, e que (2) copiar servilmente o passado condenar-se mentira, erigir o falso como princpio (idem, 54).

    As polticas modernas de patrimnio formam-se, assim, na Europa com o objetivo de preservar monumentos de pedra e cal, de valor histrico, artstico ou cient co excepcional; a autenticidade gura nesses escritos como impor-tante marco das prticas de conservao e restauro.

    No cabe passar em revista nestas pginas todo o processo de mudana dos parmetros tericos e prticos da preservao at nossos dias. Mas, para delimitar convenientemente o objeto deste ensaio, deve-se mencionar ainda a Carta Internacional sobre Conservao e Restaurao de Monumentos e Stios, aprovada no II Congresso Internacional de Arquitetos e Tcnicos dos Monumentos Histricos, em 1964. Este documento, conhecido como Carta de Veneza, amplia o conceito de patrimnio at ento vigente ao formular em seu Art 1 que

    [a] noo de monumento histrico compreende a criao arquitetnica isolada, bem como o sitio urbano ou rural que d testemunho de uma civilizao particular, de uma evoluo signi cativa ou de um acontecimento histrico. Estende-se no s s grandes criaes, mas tambm s obras modestas, que tenham adquirido, com o tempo, uma signi cao cultural

    (Idem, 92).

    Ela a rma, tambm, no Artigo 3, retomando a Carta de Atenas, que o obje-tivo da conservao e da restaurao salvaguardar tanto a obra de arte, quanto o testemunho histrico e estabelece ainda que: Art.5 A conservao dos monumentos sempre favorecida por sua destinao a uma funo til sociedade [...]; Art.6 A conservao de um monumento implica a preser-vao de uma ambincia em sua escala [...], e Art.7 O monumento insepa-

  • PLURAL DE CIDADE: NOVOS LXICOS URBANOS14

    rvel da histria de que testemunho e do meio em que se situa [...]. (idem, p.92-93)

    Assim, embora mantendo no foco da preservao exclusivamente bens de natureza material, a Carta de Veneza opera signi cativa ruptura com as conce-pes at ento estabelecidas. Primeiramente por incluir a arquitetura vern-cula numa prtica at ento exclusivamente voltada a bens monumentais; e, alm disso, por ampliar o enquadramento do tema, considerando relevantes para o equacionamento das intervenes de preservao no apenas as edi -caes, mas tambm seus usos e aspectos contextuais tanto arquitetnicos, quanto histricos e sociais do patrimnio. Essa mudana de enfoque abre caminho para integrar problemtica do patrimnio as aes desenvolvidas pelos sujeitos com quem, ou para quem, se preserva; assim como os senti-dos por eles atribudos aos bens patrimoniais, ou sua signi cao cultural.

    A UNESCO, a partir de sua criao em 1945, tornou-se o centro mundial de referncia para o desenvolvimento das bases tcnicas e conceituais da preservao, assim como o frum onde se tem celebrado importantes acor-dos multilaterais sobre o assunto. Duas Convenes devem ser tambm aqui mencionadas: a de 1972, que trata da Proteo do Patrimnio Mundial, Cul-tural e Natural, e a que dispe sobre a Salvaguarda do Patrimnio Cultural Intangvel, de 2003.

    A primeira estende a preservao aos bens naturais, e institui a universali-dade como sendo mais um critrio de atribuio de valor patrimonial. Ainda no esprito das Cartas de Atenas e de Veneza, ela de ne em seu Artigo 1 que so considerados patrimnio cultural mundial por contraste a patrim-nio natural os monumentos que tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da histria, da arte ou da cincia; os conjuntos a que se atri-buam os mesmos valores, e os stios, ou seja, obras do homem ou obras con-jugadas do homem e da natureza [....] de valor excepcional do ponto de vista histrico, esttico, etnolgico ou antropolgico.

    A segunda, retomando e re nando questes abordadas pela Recomen-dao para a Salvaguarda da Cultura Tradicional e do Folclore, aprovada em 1989, e pela Declarao Universal sobre a Diversidade Cultural, em 2001, estabelece uma ruptura conceitual radical dos paradigmas da preservao. Ela no s considera bens intangveis como objeto deste campo, mas legitima seu valor referencial para os mais diversos grupos sociais, sua natureza din-mica e inclui suas condies de produo como parte do objeto a ser preser-vado. O conceito de base adotado por esta nova perspectiva formulado nos seguintes termos:

  • PATRIMNIO CULTURAL E CIDADE 15

    Art. 2, 1. Entende-se por patrimnio cultural imaterial as prticas, represen-taes, expresses, conhecimentos e tcnicas junto com os instrumentos, obje-tos, artefatos e lugares culturais que lhes so associados que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivduos reconhecem como parte integrante de seu patrimnio cultural. Este patrimnio [..] constantemente recriado pelas comuni-dades e grupos em funo de seu ambiente, de sua interao com a natureza e de sua histria, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito diversidade cultural e criatividade humana.

    (Conveno para a Salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial. www.unesco.org.br)

    A ampliao da proteo o cial aos bens intangveis criou a necessidade de se desenvolverem instrumentos jurdicos e administrativos que venham a com-plementar os preceitos e procedimentos institucionais vigentes. Ela instigou, ainda que de forma indireta, a re exo e as prticas de preservao a buscarem superar a dicotomia conceitualmente falaciosa entre bens tangveis e intan-gveis. Alm disso, a frase aparentemente tautolgica do texto citado onde se a rma que patrimnio o que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivduos reconhecem como parte integrante de seu patrimnio cultu-ral, ao conferir legitimidade auto-de nio pelos sujeitos sociais, implicita-mente articula a preservao a modos de vida e dinmica cultural.

    Essa mudana de enfoque abre o campo do patrimnio para questes de natureza tica, jurdica, poltica e humanitria, sobretudo em relao aos direitos e aos modos de vida das populaes indgenas e tradicionais. Esse , por certo, o principal desa o a ser enfrentado pelas polticas de patrimnio (tangvel ou intangvel) em todo o mundo.

    A ampliao do espao de participao dos povos indgenas, das popu-laes tradicionais e das camadas populares nas polticas de preservao vem sendo acompanhada pela crescente percepo da importncia da sustentabi-lidade como fator determinante da e ccia das polticas de patrimnio, par-ticularmente no caso do imaterial. Como se sabe, as culturas so realidades vivas e mutveis, e sua produo, continuidade e mudana dependem de con-dies histricas e socioambientais espec cas. Nesse contexto, sustentabi-lidade refere-se aos aspectos prticos da vida social, ou seja, disponibilidade de recursos naturais necessrios reproduo de prticas, saberes e formas de expresso, e diz respeito, tambm, prtica e transmisso de habilidades e conhecimentos, assim como expresso dos valores a eles associados. Mas sustentabilidade no diz respeito exclusivamente ao patrimnio imaterial, uma vez que a integrao entre o planejamento e a conservao do patri-

  • PLURAL DE CIDADE: NOVOS LXICOS URBANOS16

    mnio ambiental urbano depende do reconhecimento da singularidade das reas preservadas, assim como das condies de vida nas cidades e centros histricos. Em ambos os casos, a pergunta que se coloca : de que forma os programas implementados pelas agncias de preservao afetam as condies de reproduo social do patrimnio imaterial e a integrao do patrimnio ambiental urbano dinmica das cidades?

    III

    O carter a um s tempo abstrato e abrangente dos smbolos nacionais con-traposto ao carter territorial e localizado da experincia social efetiva leva a indagar se, at que ponto e para quem, as representaes patrimoniais consti-tuiriam de fato referncias de pertencimento nao enquanto comunidade imaginada, para usar a sugestiva expresso cunhada por Benedict Anderson (1983).

    fato que a preservao tem privilegiado historicamente bens representa-tivos dos valores polticos e estticos das classes dominantes, mesmo em pa-ses em que a democracia se encontra consolidada; diferenas e desigualdades sociais (tanto no mbito interno das naes, quanto entre povos e regies) tm estado praticamente ausentes dos acervos de bens o cialmente protegi-dos. Mas nem sempre esse o caso. O rpido sobrevo das mudanas imple-mentadas nos parmetros conceituais da preservao ao longo dos ltimos 70 anos feito anteriormente mostrou que essas normas tm sido modi ca-das, ainda que a contrapelo de opinies majoritrias (Velho, 2006). Sendo dependentes dos valores que orientam os campos pro ssionais envolvidos e as aes do Estado em determinada conjuntura, elas mesmas so produtos da histria e, portanto, realidades dinmicas.

    Para bem entender a e ccia simblica do patrimnio preciso matizar a compreenso de seus efeitos sobre a formao da nao e da cidadania, e lem-brar que embora a preservao legitime, por de nio, os marcos e smbolos de que se apropria, ela no o faz automaticamente. A produo do patrim-nio , no fundamental, uma questo de atribuio de valores e construo de sentidos. Portanto, diferena, diversidade e con ito lhes so absolutamente inescapveis (Arantes, 2007). Quando mais prximas e sensveis as polticas patrimoniais estiverem da diversidade e diferena efetivamente presentes nas assim chamadas comunidades culturais, mais os instrumentos jurdicos des-

  • PATRIMNIO CULTURAL E CIDADE 17

    sas polticas devero operar a mediao entre universos culturais distintos e no raramente con itantes.

    O patrimnio pode ser integrado s culturas locais ou recusado por elas; tudo depende dos usos sociais a que vier a servir. Inmeros exemplos corro-boram esta a rmao. Entre eles, bastante esclarecedor o con ito ocorrido em So Paulo, em torno da revitalizao da Capela de So Miguel, construda em 1622, e que envolveu artistas populares, rgos de preservao e represen-tantes da Cria Metropolitana (Arantes, 1984: 149-74). Apesar dos reiterados esforos das autoridades responsveis por seu uso e conservao, essa capela histrica localizada em um bairro popular e industrial da cidade de So Paulo mantinha-se por muito tempo vazia e margem da vida religiosa e cultural do bairro.

    Em 1978, quando se iniciava o processo de redemocratizao no Brasil, a instituio municipal de preservao decidiu estimular sua re-incorporao vida do bairro e regio por meio de um programa elaborado com a parti-cipao dos produtores culturais locais. O programa experimental foi bem sucedido, uma vez que obteve resposta entusistica da populao e compro-vou a compatibilidade entre o uso da capela como lugar de disseminao de expresses culturais populares e as normas de conservao da edi cao tom-bada. Contudo, ao longo do processo de ocupao, con guraram-se interesses con ituantes entre a populao e os gestores e, em conseqncia, o programa no foi implementado. Em relao edi cao, prevaleceu o uso orientado pela funo esttico-religiosa do monumento. Do ponto de vista dos ocupan-tes e simpatizantes, o con ito gerou um resultado positivo inesperado, uma vez que levou formao de uma organizao poltica, o Movimento Popular de Arte, que foi uma das entidades pioneiras entre os movimentos sociais do perodo.

    Em suma, tendo em vista que a dialtica de a rmao e contestao de hegemonias constantemente modi ca, refaz e desloca as identidades, e que a criatividade humana reinventa incessantemente o social, entende-se que o patrimnio possa ser esquecido, re-encontrado, refeito, reinventado, ou des-encadeie a construo de sentidos simblicos inesperados. A proteo o cial no lhe garante um lugar seguro no panteo institucional da cultura. Este um desa o perene e estrutural que se coloca s instituies responsveis pela proteo, conservao e uso desses tesouros o cialmente protegidos.

  • PLURAL DE CIDADE: NOVOS LXICOS URBANOS18

    IV

    Uma das entradas para o tema da insero do patrimnio nas cidades con-temporneas oferecida pelo conceito de patrimnio ambiental urbano. Esse conceito (Bezerra de Meneses, 2006: 36-9) abarca, como se sabe, trs aspectos da realidade urbana: sua condio de artefato, de campo de foras sociais e de agregado de representaes simblicas.

    bastante oportuna a retomada, na conjuntura atual, de uma compreen-so totalizante da cidade, tal como prope esse conceito e como pratica a abordagem designada conservao integrada de centros histricos. Asso-ciando a noo de ambiente de patrimnio urbano, esse enfoque induz a re exo e a prtica patrimoniais a integrarem aos aspectos arquitetnicos, urbansticos, histricos e estticos usualmente considerados, aspectos intan-gveis dos bens formadores da paisagem urbana, tais como tcnicas e conhe-cimentos tradicionais utilizados em sua construo, usos efetivos e formas de apropriao desenvolvidas pela populao, entre outros. Ele permite incor-porar, tambm, os sentidos e signi cados atuais atribudos a esses bens, aos valores pelos quais os habitantes das cidades reconhecem nas edi caes e espaos preservados mais do que amontoados de sobras do passado, ou pano de fundo em relao ao qual a experincia social e pessoal poderiam ser indi-ferentes. Dito de outro modo, essa perspectiva permite ressaltar os sentidos de lugar que nutrem a experincia de habitar as cidades e o constante refazer das identidades no espao urbano (Arantes, 2003: 255-60).

    Lugares so espaos apropriados pela ao humana. So realidades a um s tempo tangveis e intangveis, concretas e simblicas, artefatos e senti-dos resultantes da articulao entre sujeitos (identidades pessoais e sociais), prticas (atividades cotidianas ou rituais) e referncias espaos-temporais (memria e histria). So realidades que desa am a dicotomia estruturante das prticas patrimoniais e que indicam claramente a necessidade de sua superao, pois como a rma Yai (2007: 75-6) em sua re exo sobre o patri-mnio com base nas tradies africanas tudo est em tudo, o imaterial est no material [...] e os mortos nunca esto realmente mortos.

    Para compreender a dimenso social do patrimnio nas cidades, fun-damental considerar o papel dos bens preservados enquanto agregados de marcos territoriais, culturais e histricos na formao e transformao dos sentidos de localizao e de pertencimento, assim como na formao da experincia social e da conscincia de si. Como argumentei em outro tra-balho (Arantes, 2000b) com base em escritos de Eclia Bosi (1979, 1992),

  • PATRIMNIO CULTURAL E CIDADE 19

    a memria social, assim como a pessoal, apresenta pontos de amarrao, experincias em que vrias geraes ancoram as lembranas da sua cidade e que se referem a velhos lugares que so inseparveis do que neles ocorreu. Se o espao capaz de exprimir a condio do ser no mundo, a rma ela, a memria escolhe lugares privilegiados de onde retira a sua seiva. (Bosi, 1979: 366-67) Os sentidos psicossociais do patrimnio que fazem parte da expe-rincia de habitar uma cidade so constantemente refeitos e, re exivamente, acumulados nos marcos tangveis que identi cam e estruturam a paisagem urbana (Ribeiro, 2007).

    Enfatizando os processos polticos e econmicos que estruturam os con-juntos de pontos focais identi cveis no espao urbano, a sociloga S. Zukin, inspirada em J. Jackson (1984), a rma, sinteticamente,

    quer tomemos um ponto de vista histrico, quer tomemos um ponto de vista estru-tural, a paisagem claramente uma ordem espacial imposta ao ambiente cons-trudo ou natural. Portanto, ela sempre socialmente construda: edi cada em torno de instituies sociais dominantes (a igreja, o latifndio, a fbrica, a franquia corporativa) e ordenada pelo poder dessas instituies

    (Zukin, 2000: 84).

    Considerando que a experincia social tem sido profundamente marcada por migraes e deslocamentos forados, assim como pela interao social que ocorre distncia e em tempo real, torna-se evidente que o sentimento de pertencer a coletividades nacionais, regionais ou locais, ocupando posies reconhecveis em mapas sociais territorializados, ganha nova signi cao e importncia. Essas so motivaes e necessidades que se manifestam atual-mente na incluso de demandas de natureza patrimonial na construo de sentidos de lugar no espao urbano.

    Em outros termos, a economia investe hoje pesadamente na re-inveno da diversidade cultural, assim como na re-quali cao dos fragmentos de his-tria sobrepostos e amalgamados na paisagem urbana. Iniciativas de reabili-tao de ncleos histricos e de edi caes preservadas so praticadas por um nmero crescente de atores e grupos sociais e, ao mesmo tempo, tornam-se alvos da ateno de agentes de publicidade e marketing, com vistas criao de negcios e mercadorias de in exo cultural, ou com valor cultural agre-gado. Esses investimentos tm crescido signi cativamente nas ltimas dca-das, colocando novas questes ao que se poderia designar como a agenda contempornea do patrimnio (Zukin, 1991, 2000; Smith, 1996; Fortuna, 1997; Motta, 2000; Rubino, nesta colectnea).

  • PLURAL DE CIDADE: NOVOS LXICOS URBANOS20

    Na re-quali cao de centros histricos tm prevalecido critrios de inter-veno que reforam a dimenso esttica monumental (mega-projetos de valorizao de fachadas e de iluminao) e os sentidos alegricos dos bens patrimoniais. Esses critrios contribuem para que se considerem substitu-veis ou descartveis edi caes protegidas em razo de sua singularidade. Alm disso, respondendo em primeiro lugar, e muitas vezes unicamente, a novas oportunidades de negcio, essa hiper-valorizao do aspecto esttico do patrimnio sobrepe-se ainda frequentemente aos interesses e necessida-des das populaes que vm ocupando tradicionalmente reas que se torna-ram protegidas (Arantes, 2000a; Leite, 2004).

    preciso enfatizar que o patrimnio enquanto recurso econmico no se encontra necessariamente vinculado especulao. certo que mega-empre-endimentos urbansticos e tursticos se valem dessa tendncia e a estimulam por vezes com consequncias desastrosas. Mas tambm verdade que progra-mas de gerao de renda, de consolidao da cultura pblica e da cidadania nutrem-se e buscam e ccia no fortalecimento de tudo aquilo que a popu-lao pode fazer, com os recursos materiais e imateriais de que dispe e acu-mulou nos lugares onde vive. O patrimnio urbano bom para o desenvolvi-mento sustentvel das cidades, ele contribui para consolidar a cultura pblica e tambm, porque no, bom para os negcios. Por todas essas razes, ele deve ser valorizado. O desa o que se apresenta encontrar o ponto de equi-lbrio entre essas foras, ou seja, construir a sustentabilidade da preservao, atentando para os seus aspectos simblicos, econmicos e scio-ambientais.

    A noo de sustentabilidade foi incorporada ao discurso e prtica dos ambientalistas pelo menos desde 1987. A referncia clssica o relatrio de Brundland que a derivou de um princpio tico claro e simples: desen-volvimento sustentvel aquele que satisfaz necessidades bsicas humanas presentes, sem causar prejuzo para as geraes futuras. A exigncia de sus-tentabilidade implica na responsabilidade social dos agentes (indivduos e instituies) da preservao e deve, com urgncia, ser convidada mesa de discusso sobre o patrimnio cultural. Como a rmou Hans-Jacob Road

    [desenvolvimento sustentvel e preservao do patrimnio] encontram-se na cidade, e devem ser integrados. A cidade representa a escala menor na qual se iden-ti cam grandes mudanas ambientais. Ela , tambm, a escala menor em que esses problemas bsicos podem ser resolvidos

    (Road 1999:110).

  • PATRIMNIO CULTURAL E CIDADE 21

    Como argumentei em outro trabalho (Arantes, 1999: 131-2), para ser efe-tivamente sustentvel a conservao integrada deve evitar pelo menos trs males: (i) a neutralizao dos sentidos de lugar efetivamente construdos pela re-apropriao do patrimnio por parte da populao; (ii) a construo de sucedneos de espaos pblicos e (iii) o uso de dispositivos de segurana que segreguem a populao local em benefcio dos ocupantes ocasionais.

    Torna-se oportuno fortalecer no caso espec co do patrimnio ambiental urbano a perspectiva da integrao entre a conservao e o planejamento, a partir do reconhecimento e valorizao da singularidade das reas preserva-das (enquanto conjuntos de artefatos, prticas e signi caes simblicas) no contexto mais amplo da cidade. Um instrumento til para tal m a deno-minada gesto compartilhada (www.iphan.gov.br), que valoriza a insero do patrimnio na vida cotidiana e procura equacionar, em termos prticos e de forma efetiva, o preceito de responsabilidades concorrentes entre a socie-dade civil e as esferas federal, estadual e municipal do poder pblico.

    o modo de gesto do patrimnio que torna ou no vivel habitar e reali-zar empreendimentos comerciais nos stios histricos preservados. Em ques-tes de cultura o como em geral muito mais importante do que o que se faz. Portanto, o principal objetivo das polticas urbanas de patrimnio deve ser o desenvolvimento de modos sustentados de apropriao de estruturas urbanas e arquitetnicas nas cidades e, para tanto, melhorar as condies de moradia e de vida dos habitantes de ncleos protegidos.

    Estes so temas de grande relevncia prtica, que devem passar a merecer mais ateno de gestores e pesquisadores uma vez que se torna parte da viso dos especialistas em polticas sociais, a ideia de que a proteo, valorizao e promoo do patrimnio cultural podem contribuir para o desenvolvimento social e econmico. Resta veri car empiricamente, e caso a caso, que limites e desa os so trazidos por essas novas oportunidades. Em especial, coloca-se o desa o de construir indicadores culturais, sociais e econmicos que permi-tam avaliar as transformaes induzidas pelos gestores do patrimnio sobre a qualidade de vida, assim como sobre os modos de apropriao prtica e sim-blica do espao urbano.

    Eis, em breves linhas, o campo recoberto pelo presente tpico: a atribuio de valor patrimonial, na esfera pblica, a artefatos e prticas sociais correntes; alguns parmetros conceituais dessa prtica; e sua insero na dinmica cul-tural e no mercado, com nfase espacial nas realidades urbanas. Dos pontos de vista da antropologia e do direito, diversos e complexos so os aspectos do problema. Do ponto de vista poltico, imenso o desa o de tornar efetivo o

  • PLURAL DE CIDADE: NOVOS LXICOS URBANOS22

    papel de protagonista que as convenes internacionais e a opinio pblica atribuem aos diferentes grupos sociais. Caminhamos muito desde a dcada de 1930, mas h ainda um enorme espao a ser preenchido pela re exo e pela prtica pro ssional.

  • PATRIMNIO CULTURAL E CIDADE 23

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  • 2. ENOBRECIMENTO URBANO1

    Silvana Rubino

    No segundo volume de suas memrias, a escritora anglo-africana Doris Les-sing narra sua odissia em busca de um lugar para morar na fascinante Lon-dres do ps-guerra. Os bairros antes viveis estavam caros, impraticveis, e em dado momento ela nomeia: A palavra gentri cation, quer dizer, a transformao gradual de uma zona popular em regio nobre, ainda no fazia parte do vocabulrio (Lessing, 1998: 402). No fazia mesmo. O termo foi usado pela primeira vez na mesma Inglaterra em 1964, pela sociloga Ruth Glass:

    [u]m por um, muitos dos quarteires de classe trabalhadora de Londres foram invadidos pelas classes mdias, alta e baixa. Casinhas e pardieiros rotos e simples dois cmodos embaixo, dois em cima foram tomados, quando seus aluguis expi-raram, e se tornaram residncias caras e elegantes. Grandes casas vitorianas, degra-dadas h muito tempo ou recentemente usadas como penses ou outro tipo de ocupao mltipla foram valorizadas de novo. Hoje em dia, muitas dessas casas foram subdivididas em ats dispendiosos ou houselets (para usar um jargo snob). O status social e o valor de tais moradias freqentemente inverso ao seu tamanho, e de qualquer modo muito in acionado em comparao com os nveis anteriores do bairro. Uma vez que esse processo de gentri cation comea, ele vai rapidamente se espalhando at que a maioria dos ocupantes trabalhadores originais so desloca-dos, e todo o carter social do bairro alterado

    (Glass, 1964: xviii-xix).

    Duas dcadas depois, a palavra que faltava experincia social da autora de O carn dourado, e o termo descritivo de Glass passavam a constar nos dicio-nrios de lngua inglesa. A meno necessidade de nomear, de encontrar um termo para uma prtica social j identi cvel no fortuita. Se o termo

    1 Optamos aqui em chamar enobrecimento urbano o que a bibliogra a corrente deno-mina gentri cation, traduzindo ou no o termo, por razes que veremos ao longo desse texto.

  • PLURAL DE CIDADE: NOVOS LXICOS URBANOS26

    foi cunhado nos anos 1960, aqueles em que Jane Jacobs colocava o dedo na ferida das grandes cidades norte-americanas, o debate que rede niu o termo gentri cation dos anos 1980 e 1990, ou seja, da dcada que muitos econo-mistas julgaram perdida e daquela cuja nomeao de uma nova ordem mun-dial trouxe o espao como categoria central para a re exo social. No de se espantar, pois, o predomnio dos gegrafos urbanos e das explicaes cen-tradas na economia nesse debate a respeito das origens e da motivao desse fato scio-espacial.

    Mais do que isso: se concordamos com Atkinson e Bridge (2005), a gentri -cation global, no mais con nada s cidades do ocidente. Tampouco limita-se s cidades denominadas globais. Esse espraiamento global da gentri cation, que inclui pases antes comunistas ou, nos termos de Neil Smith (2000), a gentri cao generalizada traz questes a respeito de sua extenso: seria parte da globalizao? Ou seria a expanso do termo que teria gerado o que Bourdieu denominou efeito teoria?

    Um conceito descritivo e as acepes agregadasRetomando a acepo original, gostaria de chamar a ateno para dois aspec-tos. Em primeiro lugar, a no alterao do espao construdo. As casinhas modestas e geminadas a que Glass se referia certamente so as mesmas habi-taes operrias de pssimas condies a que Frederich Engels se referia no texto A grande cidade, de meados do sculo XIX. Temos em um sculo e meio uma mudana de enquadramento, de percepo e classi cao na qual o que antes era descrito com o mais degradado dos ambientes revestido de charme e distino, em movimento semelhante a todo o patrimnio indus-trial.2 No um processo de re-signi cao baseado num bota abaixo, nos moldes da reforma de Paris da segunda metade do XIX ou da proposta que Le Corbusier fez para a mesma cidade nos anos 1920. Trata-se, ao contrrio, de um processo destrutivo de relaes sociais que paradoxalmente mantm e preserva grande parte das caractersticas espaciais. Em segundo lugar, chama-ria a ateno para o carter assumidamente antimodernista desses processos de ocupao do espao urbano nos anos 1960, ligados ento reabilitao de reas tidas como obsoletas, no por acaso contemporneos do best-seller

    2 Pensemos, por exemplo, nas descries de Pugin no sculo XIX, nas quais a cha-min era um sinal de degradao e na aura nostlgica que estas adquiriram em diversas metrpoles.

  • ENOBRECIMENTO URBANO 27

    de Jane Jacobs, Morte e vida das grandes cidades (americanas) (Jacobs, 2003), no qual a j mencionada jornalista canadense celebrava a diversidade dos usos, a espontaneidade da ocupao e a desordem vital da cidade pedestre alm do aproveitamento das construes antigas em meio s novas. Uma pergunta que emerge dessas duas observaes pode ser: movimentos que j classi ca-mos como antpodas, como preservar e demolir/construir, podem ser vin-culados na paisagem urbana contempornea? Se sim, ser o enobrecimento urbano a sua conexo?

    Vinte anos depois da cunhagem do termo (ou seja, h vinte anos atrs), Smith e Williams de niram a gentri cation: como a reabilitao de casas traba-lhadoras e abandonadas e conseqentemente a transformao de uma rea em um bairro de classe mdia (Smith e Williams, 1986. Grifos adicionais). A aparente espontaneidade descrita por Glass era esmaecida enquanto os contornos de uma poltica urbana se delineavam e nesse momento a palavra ganhou novo flego, percorrendo um certo translado: de termo explicativo e descritivo a conceito analtico.

    O gegrafo Tom Slater (s.d.) classi ca (com as conseqentes perdas desse tipo de diviso) duas vertentes tericas (ao mesmo tempo polticas) nos estu-dos sobre o tema e o termo. De um lado, autores que pensam a gentri cation com nfase em um lote de imveis, em reas abandonadas e no papel das nanas pblicas e privadas; de outro, a nfase recai no papel dos gentri -cadores, dos pioneiros, a chamada nova classe mdia urbana, suas demandas e prticas de consumo. No primeiro argumento, temos a presena de nidora do gegrafo Neil Smith (2000), para quem tais processos ocorrem como uma volta, um retorno do capital ao centro, o que estabelece novas possibilidades de realocao residencial. O estoque de imveis vagos, subestimados ou com usos pouco lucrativos um pr-requisito. Mas, para Smith, no se trata de uma volta das pessoas ao centro e sim do capital, e as foras desse processo so a indstria imobiliria e a indstria cultural. Em lugar de enfatizar os cha-mados pioneiros que descobrem um bairro e o alteram com sua presena, ao, padres de consumo, Smith enfatiza o papel de construtores, empre-endedores, hipotecas, agentes imobilirios, etc. Alguns grupos retornam, certo, mas estes so apenas alguns dos atores sociais dessa trama. Para ele, o assim chamado renascimento urbano foi mais estimulado por foras econ-micas do que culturais (idem). Os argumentos de Smith, potentes quando ana-lisam Nova York, se enfraquecem quando ele postula que o fenmeno vai da Austrlia at o Brasil usando, no nosso caso, exemplos equivocados como os

  • PLURAL DE CIDADE: NOVOS LXICOS URBANOS28

    bairros jardins de So Paulo.3 Como lembra o gegrafo Tim Butler, a gentri ca-tion ocorre em diversas cidades e nesse sentido propriamente um fenmeno global, mas no uma garrafa de Coca-cola.4

    O argumento central de Smith reside na descontitnuidade do investimento (rent-gap), bastante conhecido, uma alternncia de investimento e desenvesti-mento, na qual esse ltimo produz, em valores de terra urbana e propriedades construdas, a possibilidade do reinvestimento. Eis a chave de seu argumento: a relao entre valor da terra e da propriedade, e quando o rent gap foi muito longe, pode-se iniciar a gentri cao por atores diferentes, e c estamos de volta, diz Smith, relao entre produo e consumo: todas as preferncias de consumo no seriam nada se no houvesse nanciamento. As prefern-cias no so pr-requisitos uma vez que elas so criadas socialmente (Smith, 1979: 545-6, apud Hamnett, 1991: 179). De acordo com (o tambm gegrafo) Hammet (1991), os gentri cadores de Smith so meros fantoches passivos das exigncias do capital, e temos aqui uma fragilidade em sua formulao, uma vez que isso no explica de onde vem as preferncias socialmente cons-trudas, no caso, no explica por que alguns poucos resolvem morar no centro e se tornar um agente do enobrecimento enquanto a maioria sonha em morar no subrbio. A distino entre produo e consumo nesse caso no explica quem so esses sujeitos sociais.

    A abordagem alternativa enfatiza o consumo e um pool de possveis agentes do enobrecimento urbano. Ao contrrio de Smith, temos uma anlise mais focada em bases etnogr cas e dados qualitativos, e a tnica recai sobre os agentes dessa transformao scio-espacial e suas divises em gnero, raa, capital cultural, classes de idade e estilo de vida. Aqui podemos agrupar David Ley, Caroline Mullins e Beaugerard (apud Hamnett, 1991), que assina-lam o papel crucial desempenhado pelas mudanas na estrutura industrial e

    3 Os chamados jardins de So Paulo foram projetados por uma companhia de capital ingls a partir das propostas de garden cities de Ebenezer Howard, contando com a presena do planejador ingls Barry Parker. Foram concebidos como bairro de elite, como notou Lvi-Straus em 1935: ... os milionrios abandonaram a avenida Paulista. Seguindo a expan-so da cidade, desceram com ela at o sul da colina para bairros sossegados de ruas sinu-osas. (1998 [1955]:94) Tais bairros no passaram por qualquer decrscimo em seu valor nanceiro e simblico que justi casse a incluso como um exemplo de bairro enobrecido.

    4 Gentri cation and Globalization: the emergence of a middle range theory? (http://www.portedeurope.org/IMG/pdf/cahier_ville014.pdf ).

  • ENOBRECIMENTO URBANO 29

    ocupacional, situando o gentri cador entre o pro ssional urbano e a fraco gerencial, uma nova classe mdia liberal que valoriza a preservao histrica dos centros e o consumo de mercadorias no estandartizadas (Bridge, 2001: 205). Explicar o que eles fazem e porque vo morar nos centros exige que nos desloquemos da esfera da produo para a da reproduo e do consumo. Alm disso, prossegue, no h explicao para o no enobrecimento de algu-mas reas que sofreram o rent-gap, e arrisco nesse paper propor que apenas a histria da ocupao de cada cidade pode dar pistas, estejam elas imersas ou no em processos mais amplos de globalizao.

    Do exposto acima, temos mais do que uma disputa a respeito do signi -cado do termo gentri cation, mas da perene tenso entre estrutura e agncia trazida para sua aplicao. Como assinala Bridge (idem: 206), isso se desdobra para uma oposio entre economia e cultura em Lees, produo e consumo em Zukin, modernidade e ps-modenidade em Featherstone, etc.

    Em autores como Butler essa abordagem avana para um caminho inter-medirio e consumo torna-se uma via de acesso no apenas classe ou gnero, mas formao cultural. Hamnett e Butler indagam, a nal, o que querem os grupos que elegem viver em reas centrais? Temos alguns atalhos interessantes na re exo de Sharon Zukin nos anos 1980, quando em Loft Living a sociloga buscou unir uma abordagem mais economicista e com foco na produo outra que podemos chamar culturalista com destaque para o consumo, abordagens s quais ela agrega aspectos legais, no caso, leis que na Nova Iorque de 1964 e 1968 legalizaram o uso residencial de antigos galpes industriais como residncia de artistas, processo que culmina em 1973 com a demarcao do Soho como centro histrico (Zukin, 1989).

    Zukin ampliaria sua re exo em trabalho dos anos 1990 ao trazer para o debate a noo de consumo visual e ao pontuar como chave analtica a viso do antroplogo Marshall Sahlins, veri cando de que modo estratgias de pro-duo se articulam a padres culturais. E mantendo a pista de Smith, segundo a qual o pioneirismo urbano daqueles que descobrem um bairro uma jus-ti cativa ideolgica para a apropriao (material e simblica), ela nomeia os atores sociais que ajudam a construir o sistema de produo de uma cidade ps-moderna: o chef de cuisine, o garom que quer ser ator, o curador, o funcio-nrio da galeria de arte etc. Atores e edifcios so parte de uma nova paisagem, ou seja, uma nova ordem social imposta ao ambiente construdo ou natural (Zukin, 2000: 84). Se Raymond Williams havia notado que raramente uma terra em que se trabalha uma paisagem, pois o prprio conceito de paisa-gem implica separao e observao (Willliams, 1989: 167), o prprio traba-

  • PLURAL DE CIDADE: NOVOS LXICOS URBANOS30

    lho culturalizado, a prestao de servios que supe algum capital simblico passam a fazer parte da paisagem a ser consumida. Isso porque capacidade de dominar um espao apropriando-se de bens raros que se encontram nele dis-tribudos e alocados depende do capital que se possui, e mais: o espao fsico permite que o espao social produza ali todos seus efeitos, possibilitando a acumulao de capital social, encontros casuais, uma quase ubiqidade. Esse o argumento de inspirao bourdiesiana que reencontraremos, de forma um pouco distinta, no foucaultiano Donzelot. Nesse sentido, a ateno nos gentri cadores no menos crtica (ou poltica, como querem alguns), como pode parecer, do que a abordagem mais estrutural.

    E pensando em reas desindustrializadas de grandes cidades brasileiras, arrasadas ou transformadas em equipamento cultural, podemos indagar se para que o lugar onde no mais se trabalha, mas que j foi um stio de pro-duo fabril, tornar-se paisagem, ou seja, ser re-enquadrado, se no preciso que junto com as construes ali se apague tambm a memria do trabalho, elegendo um nico edifcio ou conjunto dessa rea para se culturalizar e demolindo o resto. E sobre o resto a ser descartado, e no Brasil possvel citarmos a Mooca em So Paulo e a rea ferroviria em Campinas, preciso perguntar se as novas operaes urbanas posteriores ao bota abaixo podem ser chamadas de enobrecimento, de gentri cation. No creio que possam, se estamos de acordo com a hiptese inicial do lxico do ps-guerra, mas talvez tenhamos a um novo territrio a ser nomeado, pois tampouco se trata da corriqueira e amorfa especulao imobiliria sem adjetivos.

    O argumento de Hamnett (1991) que sem uma rea passvel de gentri -cao e temos aqui o investimento descontinuado nos centros como a con-traface da suburbanizao nada acontece, mas que sem grupos de futuros moradores e nanciamento para tal, tampouco nada sucederia. A nal, em cidades nas quais no h habitao em reas centrais como Dallas ou Phoenix, a gentri cao tem limites, no importa o tamanho da classe dos prestadores de servios. preciso haver demanda por tais reas, e isso depende do cresci-mento do setor de servios e suas oportunidades nos centros, em mudanas demogr cas e de estilos de vida, de mulheres que adentram o mundo do tra-balho, de casais sem lhos com duas fontes de renda etc. e de cidades onde o centro signi que possibilidades de sociabilidade e servios sociais e de cul-tura. Sem esses fatores ao mesmo tempo, no h gentri cao, no importa o tamanho do rent-gap ou do possvel exrcito de gentri cadores. Essa a posio de Hamnett e seu grupo de gegrafos britnico, para quem, sem uma viso integrada e complementar desse problema estamos diante da estria

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    dos homens cegos e do elefante: cada um explica o pedacinho que v, sem con gurar o animal por inteiro. Ou, em outros termos, mesmo se assumindo o rent-gap e a nova classe mdia, o modo como a gentri cao se estabelece continua pouco claro (Bridge, 2000: 206).

    Abordagens recentesNo poderia estar mais de acordo com van Criekingen (2006) quando ele se indaga se as mutaes em espaos antigos fora do mundo anglo-americano correspondem s realidades de Nova Iorque e Londres, assim como quando prope falar de gentri cao em presena de um processo de produo de um espao so sticado e homogneo a partir um espao urbano originalmente degradado (...), o qual (...) apresenta transformaes no seu aspecto exterior pela renovao das edi caes existentes (grifos adicionais) etc. Em seu traba-lho sobre o enobrecimento urbano em Bruxelas, ele distingue a gentri cao residencial e de consumo ou, xa e temporria, assim como o que denomina gentri cao marginal.

    A gentri cao marginal (que parece acontecer em So Paulo em parte da zona oeste e pode ser um contraponto interessante s grandes operaes urbanas da regio sul e sudoeste) um processo pelo qual alguns bairros cen-trais so tomados por uma populao jovem, muito escolarizada, mais abas-tada do que seus antigos moradores, sem serem por isso os ricos da cidade (van Criekingen, 2006: 103). o capital cultural, mais do que apenas o econ-mico que parece nortear escolhas e classi caes. E se fssemos levar adiante esse argumento, seria preciso observar de modo as redes sociais diversas ocupam o espao, de nindo bairros como aqueles que a partir de redes de ajuda mtua formaram enclaves de imigrantes, por exemplo. O primado da distncia e proximidade: pois disso que se trata, uma vez que essa presumida camada escolarizada tem como um contraponto no espao urbano contra-ponto, claro, a ser evitado no apenas os bairros pobres da cidade como aqueles inatingveis e outros, rejeitados por representarem estilos de vida a serem interditados.

    A partir da noo de capital cultural, pode ser um bom momento para introduzirmos a viso de Jacques Donzelot, que pensa o enobrecimento em consonncia com outras duas formas de apropriao do espao, construindo uma tipologia urbana: gentri cation, marginalizao e a periurbanizao, que ele denomina trs velocidades urbanas algo como um tipo ideal, um prin-cpio de inteligibilidade visando entender a lgica dessas que no so apenas divises e sim separaes (Donzelot, 2007:107).

  • PLURAL DE CIDADE: NOVOS LXICOS URBANOS32

    Em sua tipologia, a marginalizao composta de famlias de classe mdia que decidem trocar a cidade por um meio ambiente mais atrativo, muitas vezes impulsionadas pelo preo proibitivo da terra em reas centrais. Oposta, nesse sentido ao enobrecimento, a periurbanizao tambm se diferencia da marginalizao esta diz respeito ao espao fsico e social dos conjuntos habitacionais. Pensados para uma sociedade industrial, sonho dos arquitetos e engenheiros modernos, tais empreendimentos tiveram seus usos e signi -cados alterados quando da reduo do trabalho industrial menos quali cado, assim como de uma ocupao de imigrantes que espantaram moradores de classe mdia. Mudou o enquadramento: de uma ilustrao da modernidade, tais conjuntos passaram a simbolizar a marginalizao, desterro e ostracismo. Os habitantes desses lugares so, para o autor, os sem-escolha, cujas relaes inter-pessoais so de puro constrangimento (aqui no sei se concordo intei-ramente com ele, como se constrangimentos fossem mera questo de classe social), uma vez que eles no podem escolher seus vizinhos (ao contrrio dos outros dois tipos ideais de velocidade urbana) (idem).

    O que Donzelot assinala que eles esto duplamente amarrados, padecem de um duplo constrangimento: moram entre iguais e no podem constituir um ns identitrio, pois no meio francs tais sujeitos sociais podem tudo, menos depender de origem e cultura, pois isso vai de encontro s leis da rep-blica. Para o autor, os espaos marginalizados fazem valer seu nome: relaes marcadas por srios constrangimentos, imobilidade, insegurana no espao comum. Se tais espaos foram deteriorados por uma crise de emprego, not-vel que novos arranjos econmicos no os incluam, que parea recair sobre tais reas um destino social. Eles esto longe, espacial e socialmente, de empregos viveis, o transporte moroso e caro, um caso de desencontro espacial (spatial mismatch) ou que Bourdieu chamou efeito de lugar, ou seja, a falta de capital s faz intensi car essa experincia ela prende a um lugar (Bourdieu, 1993: 164). No por acaso, o smbolo do modernismo e suas boas intenes atadas a um momento de pleno emprego industrial que foi implodido em 1972 foi um extenso conjunto habitacional americano (Harvey, 1992: 45-6).

    Assim, no espanta que aqueles que elegem o espao periurbano procurem se distinguir do primeiro caso, da imobilidade em todos os sentidos. Os habi-tantes das reas marginalizadas seriam um elemento disruptivo nesse estilo de vida calmo e em tese prximo da natureza, e essa incompatibilidade no irrelevante ou temporria. So reas e habitantes impelidos a uma hiper-mobilidade, onipresena do automvel e a relaes interpessoais que visam a proteo do sonho buclico e comunitrio a imagem de uma aldeia. Trata-

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    se de um espao de escolhas (escola, amigos), de viagens dirias e circulao. Os habitantes dos conjuntos habitacionais aparecem como outros, assim como os Bobos que habitam o espao enobrecido, sendo que estes no preci-sam enfrentar as mesmas di culdades os longos trajetos, tampouco a sensa-o de imobilidade.

    Sim, pois trata-se de um movimento oposto, no qual a proteo substi-tuda pela valorizao, pelas relaes inter-pessoais seletivas. Na gentri cation (Donzelot pensa sobretudo em Paris) as pessoas se movem mais por valoriza-o do que por segurana, e no se limita o acesso a quem no se quer, e no se tenta restringir reas a uma elite auto-declarada. O processo seletivo de relaes inter-pessoais aparece como um produto natural do mercado. Ao contrrio dos periurbanitas que perdem tempo se deslocando, os habitantes de bairros enobrecidos no esto presos mobilidade ou imobilidade, pois seu lema a ubiquidade, por conta da proximidade entre casa e trabalho e da e ciente rede real ou virtual que os autoriza a estarem em qualquer lugar do globo. Quanto segurana, o prprio valor da terra mantm os plebeus da banlieue distncia enquanto as lojas operam uma vigilncia discreta.

    Donzelot admite que de nir o enobrecimento a partir de relaes inter-pessoais seletivas pode soar como um nonsense e lembra que at a dcada de 1980 este era um fenmeno marginal associado a um modo de vida bomio este foi o caso do Greenwich Village. Tornou-se contudo o modo de se estar na cidade e um princpio de produo do espao urbano, o modo de se valorizar esse produto chamado cidade que as classes mdias haviam abandonado por sua densidade e seus distrbios. Trata-se de um usufruir das qualidades da cidade sem suas desvantagens, um processo que gera um produto que atrai os que podem por ele pagar, ao mesmo tempo em que garante que os que no podem desapaream. Para ele, Paris constitui um laboratrio de enobre-cimento, assim como Nova Iorque para as grandes cidades globais. O espao enobrecido aquele onde se constri uma carreira, onde as mulheres no dei-xam de trabalhar para cuidar dos lhos (como no espao periurbano), onde se pode ter uma vida social intensa, onde um estado mental global pode acontecer, com seus cafs, restaurantes, lojas e galerias que visam uma comu-nidade mundial, ainda que virtual. Os enobrecidos podem ir trabalhar a p e viver de acordo com tendncias mundiais, ou seja, eles escapam da mobili-dade e da priso ao local por isso a ubiquidade.

    Uma abordagem que escorrega dessa, ainda que no nomeada, trata a gentri cao em termos de habitus e distino. Bridge lembra o papel que o tempo tem como uma fora simblica na teoria social de Pierre Bourdieu e

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    prope um papel similar, seguindo as pistas de David Harvey, para o espao. O espao pode ter o mesmo papel na ordenao simblica de habitus cultu-rais e de classe, e a gentri cao representa uma forma de reestruturao de ordens simblicas de tempo e espao em relaes de classe. Para o gegrafo, a gentri cation lida com uma classe ou fraco de classe em formao, de modo que provvel que seus membros sejam conscientes no apenas de sua rela-o com a classe trabalhadora, mas sobretudo com as outras fraces da classe mdia, que seja uma nova fraco de nida em alguma medida por sua auto-conscincia: A nova classe mdia uma classe re exiva (Bridge, 2001: 211) e se as disposies da burguesia tradicional so tcitas, as prticas estticas da nova classe mdia so pblicas, discursivas e auto-conscientes. A renova-o da habitao de rea central da classe baixa seria um conjunto de prticas inconcebveis h 40 anos, prossegue Bridge, quando a nica ambigidade era a respeito de qual esttica poderia distinguir a classe mdia de seus vizinhos trabalhadores e justi car a compra de uma casa na rea central. Hoje a reno-vao das moradias contrasta com a modernizao pretendida pela classe trabalhadora, assim como com as casas de classe mdia dos subrbios. Pre-servao no lugar de modernizao comeou como uma reao a um habitus de classe trabalhadora, e foi reforado por um senso de distino entre essa classe mdia urbana e aquela que ocupava casas nos subrbios os periurba-nos de Donzelot. A rea central revitalizada torna-se uma vitrina de diferena e distino, e a esttica que sinaliza o aspecto qualitativo. No que tange o espao e suas lutas, o habitus caracterizado por bairros, moradia, estilo de vida e consumo. No caso da gentri cao, diz respeito a uma maximizao da posse de bens raros e nitos (o centro tem seus limites geogr cos), ainda que nem sempre calculados, controlados e conscientes.

    O interessante dessas duas ltimas abordagens, a meu ver, o que permi-tem pensar para as cidades brasileiras.

    Voltando a van Criekingen, no Brasil as pesquisas demonstram (at agora, mas s vezes acho que isso pode mudar logo) que gentri cao pode ser um sinnimo de revitalizao, ou que este pode ser um eufemismo do primeiro, mas isso pouco tem a ver com habitao. Temos um enobrecimento dos even-tos, das festas, dos usos temporrios. mais um enobrecimento vinculado ao tempo do que ao espao, como demonstrou Proena Leite em seu estudo sobre o Bairro do Recife: a gentri cation chegava quando o sol se punha e partia de madrugada (Leite, 2004).

    Talvez uma pista esteja em caractersticas de nosso d cit habitacional no se trata exatamente de um d cit para a parte mais escolarizada de nossas

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    classes mdias. Talvez, como escreveu Lvi-Strauss, aqui a passagem do tempo no signi ca necessariamente uma promoo para nossas cidades; e se isso faz algum sentido, por que quem pode escolher onde habitar escolheria uma antiga rea operria, por exemplo?5 De qualquer modo, proponho a validade de uma pesquisa em reas enobrecidas, com base nas realizadas em Paris nos bairros abastados, pesquisas nas quais a proximidade de atores sociais prove-nientes das mesmas escolas e com pontos convergentes nas suas trajetrias sociais sugerem algo parecido com as redes de sociabilidade de Donzelot.

    Voltemos ao incio desse texto e a seu argumento central, que retoma acunhagem do termo e seus desdobramentos. Gentri cao/enobrecimento, assim como revitalizao,6 requali cao e outros termos anlogos passam a ser um lxico recorrente, que transborda do vocabulrio dos tcnicos e conhecedores, sai dos estudos acadmicos para a imprensa, incorporado pelos movimentos sociais urbanos. Mais do que meros eufemismos para uma forma contempornea de limpeza urbana, tais termos passaram a ser lugares comuns: palavras guarda-chuva que ao cobrir situaes diversas terminam sem signi cado, ou termos associados a um lugar-comum onde falas diver-sas que se encontram (Bresciani, 2001: 343). Num e noutro caso, resta saber como termos tcnicos de saberes eruditos transladaram para a linguagem poltica, administrativa, jornalstica e popular, e que signi cados foram supri-midos e agregados. Se revitalizao transladou para o vocabulrio laudatrio de tais intervenes, enobrecimento transbordou para os movimentos de rei-vindicao de direitos urbanos, de moraria etc. Num e noutro caso, podemos

    5 Valeria uma pesquisa como as conduzidas em Paris pelo casal Pinon.6 Revitalizao um termo que vulgarizou-se de tal forma que perdeu o sentido origi-

    nal. No uso corriqueiro, traz embutida a viso de um lugar antes sem vida, desvitalizado. O conceito, empregado pela UNESCO em suas Normas de Quito de 1962 referia-se a aes de cidadania que pudessem paralisar aes destrutivas. Mas foi na Conferncia de Nairobi de 1976 que o termo ganhou contornos mais ntidos, como parte de uma ao de salvaguarda que deveria abranger identi cao, proteo, conservao, restaurao, reabi-litao e manuteno de conjuntos histricos. Revitalizao seria manter as funes apro-priadas existentes e em particular o comrcio e o artesanato e criar outras novas que, para serem viveis a longo prazo, deveriam ser compatveis com o contexto econmico e social, urbano e regional ou nacional em que se inserem. (...) uma poltica de revitalizao cultural deveria converter os conjuntos histricos em plos de atividades culturais e atribuir-lhes um papel essencial no desenvolvimento cultural das comunidades circundantes IPHAN/MINC (1995: 263-4).

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    nos indagar a respeito da criao de um efeito teoria, como escreveu Bour-dieu no j citado La Misre de Monde.

    Prosseguindo, assim como patrimnio e revitalizao, o enobreci-mento pode ser, para usar a expresso de Christian Topalov, uma palavra da cidade.7 Topalov segue uma formulao de mile Durkheim, para quem o espao no poderia ser ele mesmo se, exatamente como o tempo, no fosse dividido e diferenciado, avaliando o modo como os espaos e as identida-des urbanas so constitudos pela linguagem, por nomes que distinguem, reagrupam, ordenam e quali cam. Tais esquemas classi catrios so per-meveis s distintas posies que a se inscrevem, mas podemos pensar que alguns desses esquemas sejam parte de acordos gerais que mantm em rela-tiva ordem o registro simblico. A linguagem, e a linguagem sobre a cidade, seus cantos, antros e suas classi caes, tudo isso tanto vetor como ind-cio de con itos e suas possveis solues (Depaule e Topalov, 2001: 19-20). Ainda com Durkheim, tais formas de classi cao tornam-se formas sociais, arbitrrias no sentido de serem relativas a um grupo particular (apud Bour-dieu, 2000:8). O que est em jogo com as reas centrais o monoplio da violncia simblica, a que grupos cabem decidir o que fazer com elas, dizer o que elas so ao se construir pretensas vocaes (essa, uma palavra comum ao lxico dos urbanistas). No caso, parece que os estabelecidos invadem o stio dos outsiders, ou melhor, que os novos outsiders tm mais ferramentas simb-licas para enquadrar o lugar do que quem antes o ocupou, ali se estabeleceu durante o rent-gap.

    preciso dizer que os espaos enobrecidos nunca foram antes aqueles da grande misria (ou pelo menos de uma grande misria em tempos recentes, passvel de rememorao); o que no minimiza o padecimento daqueles que se julgavam estabelecidos e se vem invadidos por um tipo peculiar de outsi-der: outsider em relao a outras fraes de classe e outros espaos da mesma cidade, mas indubitavelmente estabelecido para os padres da localidade (ao menos economicamente, embora questes de gnero possam a intervir). Essa proximidade fsica, mais do que a excluso, uma pequena misria, ou melhor, a grande violncia simblica. O espao um lugar onde o poder se a rma e se exerce e os espaos arquitetnicos cujas injunes mudas diri-gem-se diretamente ao corpo, obtendo dele, com a mesma segurana que a

    7 Re ro-me ao amplo projeto de pesquisa Les mots de la ville, que conduzido em diversos pases, sob a direo de Topalov.

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    etiqueta nas sociedades de corte, a reverncia, o respeito (...) so, sem dvida, os componentes mais importantes em razo de sua invisibilidade, da simb-lica do poder e dos efeitos completamente reais do poder simblico (Bour-dieu, 1993: 163). Isso porque no h espao, em uma sociedade hierarqui-zada, que no seja hierarquizado e que no exprima as hierarquias e distncias sociais, sob uma forma mais ou menos deformada e confusa e mais, dissimu-lada pelo efeito de naturalizao que a inscrio durvel das realidades sociais no mundo natural acarreta (idem, 160).

    O lugar enobrecido no est privado de centralidade e capital, mas isso pode ocorrer sob a aparncia de modalidades diversas, pois trata-se de opo-sies simblicas objetivadas no espao fsico. O bairro assim cultural e sim-bolicamente investido potencializa o capital, consagrando cada um dos seus habitantes, ao permitir participar do capital acumulado pelo conjunto dos residentes.

    O enobrecimento urbano no deixa de ser uma modalidade contempo-rnea de higienismo, encoberta por um discurso de vida e apreo cidade. Dialoga com diversas outras formas de ocupao segregao urbana ao con-ferir um valor simblico ao lugar, e a partir da auferir outros valores. Assim ca claro o empenho em revitalizar por meio de equipamentos culturais: preciso um certo capital para se apropriar deles. A nal, a cidade feita de fronteiras, que tanto impedem que os atores sociais considerados imprprios entrem, como que os legtimos saiam e assim se desclassi quem.

    O que preciso, sem dvida, objetivar as escolhas, nomear os constran-gimentos. Para se falar do impacto de um edifcio, ou um conjunto deles, que ao m e ao cabo promovem o enobrecimento, no basta, como fez Mike Davis (1990: 215-21) desquali car os residentes ou os intermedirios sociais, como os arquitetos, que tambm fazem de seus projetos plataformas para seu campo de atuao, e das reas enobrecidas um palco de experimentao de novas linguagens. Estes agem, em outras palavras, segundo padres de inten-o (Baxandall, 2005: 80-1). Ainda que as escolhas menos acusatrias possam parecer menos polticas do que as abraadas pela geogra a marxista, preciso aceitar o desa o de se evitar falsos dilemas. O enobrecimento no apenas uma poltica de excluso, mas uma faceta delicada das dinmicas urbanas, uma vez que quanto mais a rma o valor e o papel da cidade, lembra que o ar da cidade liberta apenas aqueles que sabem e podem nela viver.

    Finalizando, por que enobrecimento urbano? Mais do que uma mera traduo para evitarmos anglicismos, trata-se de um reconhecimento da ori-gem anglo do termo e do quanto ele precisa ser adjetivado para explicar o que

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    acontece em outros mundos. A nal, no portugus falado no Brasil h o lugar comum de se quali car reas, bairros e ruas como nobres. Sem nobreza estrita numa repblica jovem, enobrecimento remete os novos nobres que ocupam espaos urbanos, deixando ali seu nome e suas marcas.

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  • 3. REQUALIFICAO URBANA

    Paulo Peixoto

    Requali cao urbana e reabilitao urbana (o segundo mais que o primeiro) so dois dos termos mais recorrentemente usados em operaes de natureza urbanstica, arquitectnica e de interveno no espao pblico. So expres-ses que se tornaram uma espcie de buzzwords, encerrando em si mesmas um signi cado auto-evidente que quase dispensa qualquer discusso. Trivializa-das, so palavras que invadiram discursos jornalsticos, tcnicos, polticos e cient cos, dando origem a um uso acrtico que merece alguma problemati-zao e conceitualizao. Os vocbulos requali cao e reabilitao urbanas, na variedade de situaes em que so usados, estando enquadrados por uma retrica pluridisciplinar, assumem sentidos diversos, revestindo-se, inevita-velmente, de alguma ambiguidade. O carcter predominantemente tcnico que parecem assumir tende a isent-las, frequente e foradamente, de uma carga poltica que outros processos que as enquadram (enobrecimento, higie-nizao, haussmanizao,1 depurao paisagstica, etc.) transportam consigo de um modo evidente. No seu carcter polissmico, requali cao e reabili-tao urbanas balanam entre o alcance descritivo do seu signi cado e o pen-dor analtico que encerram.

    A gnese da locuo requali cao urbana, retida no ttulo deste texto como componente lexical de uma retrica insinuante relativa s cidades, est forosamente ligada aos processos de urbanizao e aos efeitos que eles indu-zem nas urbes. Entre as dinmicas e os processos sociais que esto na origem da problemtica da requali cao urbana os mais relevantes tm a ver com: a evoluo das economias urbanas, marcada pela expulso das indstrias do sector secundrio para as margens das cidades; a tendncia para a policen-tralidade e a perda de vitalidade dos antigos centros urbanos, num quadro de alargamento incessante da malha urbana e da consequente produo de

    1 A haussmanizao refere-se a uma poltica de demolio, levada a cabo em Paris por Georges-Eugne Haussmann , na segunda metade do sculo XIX, que pretende intervir no espao urbano de modo a controlar, disciplinar e higienizar os comportamentos, assim como a criar referncias e marcadores do espao atravs da monumentalizao .

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    novos centros e de novas margens; a consolidao de um mercado urbano do lazer construdo volta da ideia de espao pblico e do consumo visual; e a emergncia de um cenrio de concorrncia e de competitividade entre cidades que adensa a importncia de factores representacionais e imagticos, assim como de intervenes urbansticas e arquitectnicas que concretizam no espao smbolos de a rmao e de identi cao das cidades.

    Os termos reabilitao urbana e requali cao urbana correspondem a uma frmula que se difundiu de forma ampla, sobretudo com a multiplicao das intervenes nos chamados centros histricos ou nas zonas desprezadas ou maltratadas pelo processo de urbanizao e que, extravasando esse con-texto, acabou por ser convencionada e partilhada por aqueles que desenvol-vem a sua actividade neste domnio. Usadas muitas vezes de forma acrtica e indiferenciada, relativamente a outros termos que se difundiram com uma nova sintaxe que acompanhou o protagonismo crescente dos centros hist-ricos e de reas urbanas negligenciadas entretanto reconvertidas para novos usos, tem-se vindo a assistir a uma progressiva conceitualizao e operacio-nalizao dos termos, quer em domnios tcnicos (Aguiar et al., 1997; CCRN, 1998; AAVV, 1992; AAVV, 2005), quer em domnios cient cos (Ferreira e Craveiro, 1989; Santos e Santos, 1989; Schwartz , 2004; Gottdiener e Budd , 2005), quer ainda em textos de orientaes globais produzidos sob a gide de agncias multilaterais como a UNESCO, o ICOMOS ou o Conselho da Europa , por exemplo.2

    Seguidas do adjectivo urbana, reabilitao, renovao , regenerao , revivi- cao , revitalizao , conservao , preservao , so, a par da requali cao , outros tantos termos utilizados na prtica e na anlise das intervenes nos centros histricos e nas reas urbanas reconvertidas para novos usos . Acres-centando-se-lhes outras, como, por exemplo, reordenamento, restauro ou salvaguarda, no esquecendo que as noes nem sempre so totalmente con-

    2 Deixamos de lado a anlise das cartas e convenes internacionais que esto na origem dos termos aqui discutidos, quer por as mesmas terem sido j abundantemente analisadas (Alho e Cabrita, 1988), quer por ns prprios j o termos feito noutro local (Peixoto, 1997: 47 e ss.). Muitas dessas cartas e convenes podem ser consultadas em lngua portuguesa em Correia e Lopes (2004). Em todo o caso, dada a especi cidade do projecto de pesquisa que enquadra a emergncia deste texto, confere-se alguma relevncia Carta de Lisboa sobre a Reabilitao Urbana Integrada por a mesma ter resultado do Primeiro Encontro Luso-Brasileiro de Reabilitao Urbana, que teve lugar em Lisboa entre 21 e 27 de Outu-bro de 1995.

  • REQUALIFICAO URBANA 43

    sensuais entre pro ssionais com diferentes per s de formao acadmica e disciplinar, a di culdade para seleccionar o termo adequado para caracteri-zar a realidade em causa, qualquer que ela seja, notria. Da que os termos sejam, frequentemente, usados de forma indiferenciada. At porque a mul-tiplicidade de termos no pode ser desligada da variedade e da inextricabi-lidade de problemas, comummente vistos como problemas das cidades, que as operaes que do forma a esses termos procuram enfrentar e resolver.3

    3 A generalidade de problemas, assim como as solues e algumas ideologias que elas transportam, podem ser captadas no discurso tcnico que se segue, proferido no IV Encon-tro Nacional de Municpios Portugueses com Centro Histrico.

    Na realidade, tem-se constatado que a degradao ambiental tem representado parte muito signi cativa da degradao das reas urbanas. Assim, os problemas ambientais nos centros antigos assumem aspectos espec cos: a degradao fsica dos edifcios e consequente abandono do parque habitacional, os espaos abandonados, o aumento da delinquncia, com os problemas a ela inerentes e, por outro lado, os problemas de conges-tionamento do trfego, a poluio sonora e a inexistncia de espaos verdes repercutem-se negativamente no bem-estar das populaes.

    Sendo os centros antigos as reas ainda humanizadas das nossas cidades (aqueles que ainda se encontram habitados), onde ainda se estabelecem relaes de vizinhana, onde ainda poder ser agradvel viver, constata-se que, na maioria, no dispem as suas habitaes das infra-estruturas necessrias, no possuem os equipamentos colectivos, os espaos verdes e de convvio adequados a uma vivncia saudvel e to importante para o equilbrio da sociedade. Assiste-se, confrangedoramente, ao envelhecimento das suas populaes, ao seu desaparecimento. Em substituio das antigas edi caes para habi-tao vo surgindo cada vez mais os edifcios, antigos ou novos, para os servios que impri-mem uma grande dinmica zona durante o dia, mas implicam o seu abandono no horrio ps-laboral. E ento mais fcil instalar-se a delinquncia! Quem que se sente vontade para sair noite nas nossas cidades? De passear a p, calmamente, nas nossas avenidas? (Elas s servem para o estacionamento automvel!).

    Sendo o tecido urbano dos centros histricos essencialmente composto por habitao, de primordial importncia a sua recuperao fsica e ambiental, que deve incluir tambm uma componente sociocultural, com o envolvimento da populao residente. Os centros histricos no podem ser entendidos como uma realidade esttica a preservar, mas sim como um processo dinmico em constante evoluo, posto ao servio da populao.

    A estrutura dos centros histricos contribui para o equilbrio social, oferecendo con-dies propcias ao desenvolvimento de vrias actividades, nomeadamente as culturais e tursticas, favorecendo assim a integrao social, e at criando postos de trabalho.

    A defesa e valorizao do patrimnio constituem uma tarefa colectiva. Assumir uma cultura assumir uma herana e saber o que fazer dela. responder necessidade de pre-servar e conservar, mas tambm de renovar, criar e desenvolver. Nos centros histricos de bairros antigos devidamente recuperados e revitalizados para e com as populaes, ainda

  • PLURAL DE CIDADE: NOVOS LXICOS URBANOS44

    Face aos problemas com que os centros histricos se confrontam (mui-tas vezes tecnicamente dramatizados e circunscritos a uma noo holstica e imprecisa de reabilitao urbana), com a evoluo das polticas urbanas locais, vai-se assistindo a uma compartimentao de termos. O mesmo sucede com as operaes urbansticas de larga escala destinadas a dar uma nova vida a determinados espaos citadinos, quer sejam espaos lisos, quer sejam espaos alvo de reconverso funcional. Formatadas por modelos globais, essas operaes reproduzem tambm uma retrica que favorece a generali-zao e consolidao dos termos. O que revela que a requali cao urbana e a reabilitao urbana se dirigem a problemas e carreiam solues de diferentes naturezas e escalas. Mas uma realidade complexa como a mencionada obriga necessariamente a uma abstraco progressivamente demarcada por noes cada vez mais restritas e tecnicamente partilhadas, de modo a que as intrinca-das situaes concretas possam ir sendo re nadas para permitir a operaciona-lizao das intervenes e a codi cao do campo disciplinar e pro ssional.

    Frequentemente evocada em situaes em que se procura, em simult-neo, concretizar melhoramentos em edifcios localizados nas reas urbanas antigas e centrais, fomentar servios e desenvolver infra-estruturas e equipa-mentos, de modo a conferir uma nova vida a zonas histricas que entraram em depresso, a reabilitao urbana, tal como o manifesta a Carta de Lisboa , corresponde a uma estratgia de gesto urbana baseada em intervenes de diferente natureza orientadas para a conservao da identidade e das carac-tersticas dos sectores reabilitados (SIRCHAL , 1995). O documento elaborado no mbito do Primeiro Encontro Luso-Brasileiro de Reabilitao Urbana declara, na alnea b) do artigo 1, que a reabilitao urbana

    uma estratgia de gesto urbana que procura requali car a cidade existente atra-vs de intervenes mltiplas destinadas a valorizar as potencialidades sociais, econmicas e funcionais a m de melhorar a qualidade de vida das populaes resi-dentes; isso exige o melhoramento das condies fsicas do parque construdo pela sua reabilitao e instalao de equipamentos, infra-estruturas, espaos pblicos, mantendo a identidade e as caractersticas da rea da cidade a que dizem respeito.

    ser possvel encontrar aquela qualidade de vida que todos procuramos (Neves , 1997: 216-217).

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    Tomando por referncia alguns dos glossrios desenvolvidos no mbito de projectos de investigao ou de interveno em zonas urbanas,4 pode acres-centar-se que a reabilitao urbana consiste em orientaes que so toma-das tendo em vista conferir a uma cidade ou a um conjunto histrico as suas qualidades perdidas, a sua dignidade, assim como a sua aptido a desem-penhar uma funo social (Calsat apud SIRCHAL , 1995). Nessa sua misso, a reabilitao urbana procura reparar e refuncionalizar de modo sustentvel um patrimnio arquitectural e urbano que, tendo sido durante muito tempo desprezado, viu recentemente ser-lhe dirigidas aces de revalorizao eco-nmica, prtica e/ou esttica (Merlin e Choay apud SIRCHAL, 1995). A reabi-litao procura readequar o tecido urbano degradado, dando nfase ao seu carcter residencial, e manifestando preocupaes com o patrimnio histrico-arquitectnico e com a manuteno da populao nos centros das cidades (AAVV, 2005). Numa perspectiva estritamente sociolgica, datada por referncia a movimentos sociais urbanos que ocorrem em diferentes tem-pos e espaos, a reabilitao urbana v-se questionada enquanto movimento social que coloca no terreno actores e agentes espec cos com estratgias concretas e de nidas (Faria , 1992).

    J a ideia de renovao urbana , contrariamente ideia de reabilitao , menos marcada por preocupaes relativas autenticidade , embora mante-nha cuidados dessa natureza. Ela remete para uma ideia de transformao de edifcios ou locais, aceitando a mudana de funes, a introduo de novos elementos, alteraes de estilo e de implantao (CriDaup , s. d.). Visa, de modo a permitir a adaptao a uma nova concepo de cidade ou a novas necessidades, a substituio sistemtica de elementos antigos por elemen-tos novos (Calsat apud SIRCHAL , 1995). Enquanto abordagem conceptual, tal como manifestado na Carta de Lisboa , alnea a) do artigo 1, dirige-se a uma realidade urbana degradada qual no reconhecido valor patrimonial e arquitectnico, afastando-se neste aspecto da ideia de reabilitao . Nesse sentido, aponta para a demolio selectiva de construes morfolgica e tipologicamente desadaptadas e para a sua substituio por um novo modelo

    4 Designadamente o SIRCHAL Site International sur la revitalisation des centres historiques des villes dAmrique Latine et des Carabes (1995); o The Urban Conservation Glossary, de Neil Grieve (s. d.), tutor na Universidade de Dundee no curso de ps-graduao de Conservao Urbana Europeia; e o CriDaup (s. d.) Criao de uma Rede Informativa para a Documen-tao de Arquitectura, Urbanstica e Planeamento.

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