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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
ABIMAEL FRANCISCO DO NASCIMENTO
A Teologia do Cordeiro no Evangelho Segundo João
Jo 1,29.19,34-36
MESTRADO EM TEOLOGIA SISTEMÁTICA
SÃO PAULO
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
ABIMAEL FRANCISCO DO NASCIMENTO
A Teologia do Cordeiro no Evangelho Segundo João
Jo 1,29.19,34-36
MESTRADO EM TEOLOGIA SISTEMÁTICA
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre em
Teologia Sistemática, sob a orientação do
Prof. Dr. Pe. Gilvan Leite de Araújo.
SÃO PAULO
2013
Banca Examinadora
__________________________________________
__________________________________________
__________________________________________
“Ele [Jesus] celebrou a ceia pascal com
seus discípulos; em vez, contudo, de imolar o
tradicional cordeiro pascal, converteu-Se Ele
próprio em cordeiro sacrificial. Como „nosso
cordeiro pascal, Jesus foi imolado‟ (1Cor
5,7), para estabelecer, de uma vez por todas,
a definitiva reconciliação entre Deus e a
humanidade” (n. 95)
YOUCAT BRASIL, Catecismo jovem da
Igreja Católica. São Paulo: Paulus, 2013.
AGRADECIMENTOS
Em virtude da possibilidade do desenvolvimento desta pesquisa, agradeço ao bom Deus
que me concedeu as virtudes necessárias para tal empenho; agradeço à minha família pelo
apoio: meus pais, irmãos e cunhados. Manifesto também gratidão à Congregação dos
Missionários do Sagrado Coração, ao Pe. Benedito Ângelo Cortez, msc e ao Superior
Provincial Padre Manoel Ferreira dos Santos Júnior, msc e aos membros do Conselho
Provincial, como também aos confrades que me animaram neste percurso.
Não poderia deixar de agradecer ao Professor Mathias Grenzer, então coordenador da
Pós-graduação de Teologia, com sua paciência e escuta muito me ajudou. Agradeço a todos
os docentes do Programa de Teologia de Pós-graduação da PUC-SP, aqueles que tive como
professores. Em especial atenção ao Professor Gilvan Leite de Araújo, pela orientação na
pesquisa e empenho no propósito de conclusão da mesma.
Para finalizar, agradeço ao Pe. Luís Carlos Araújo Morais, msc pela colaboração na
tradução dos textos e aos corretores de língua portuguesa e ainda ao apoio de Ana Flora
Anderson, Johan Konings, s.j. e Francisco Rubeaux, omi.
RESUMO
Apresente pesquisa pautou-se pelo método de pesquisa bibliográfica, com o fim de
responder à questão lançada sobre o problema: qual a relevância e implicações da imagem
do cordeiro, atribuída a Jesus, no Evangelho segundo João?- Desta interrogação surgem
algumas considerações, tais como: a relevância se dá em virtude da formação da
comunidade que está na base deste Evangelho, isto é, os grupos que formaram a comunidade
joanina, aqueles da primeira hora, conheciam a vida cultual da tradição israelita e a
aplicaram a Jesus por meio da tipologia do cordeiro.
Uma segunda consideração é que o cordeiro era no culto, seja para samaritanos ou para
judeus, um elemento bastante presente, e cumpria desde a ação de graças até a expiação. No
entanto, sua presença mais fixada na memória era aquela ligada à noite da saída do Egito, na
qual Deus ordenou a imolação de um cordeiro pascal. Esta celebração lembrava, a cada ano,
a intervenção divina e alimentava a esperança de um novo êxodo, que libertasse o povo do
julgo dos impérios.
A terceira consideração é sobre a figura do cordeiro e a tradição profética do Segundo
Isaías, que havia proposto uma substituição cúltica: agora um servo, semelhante a um
cordeiro, seria o expiador dos pecados do povo (cf. Is 53,7). O servo de Isaías assume a
função expiatória, algo que era reservado a rituais de sacrifício. Agora, o servo assume esta
função. Diante disto, a saudação de João Batista a Jesus (cf. Jo 1,29) ganha outra vertente,
mas com a possibilidade de aliar as duas ideias, isto é, a saudação Batista parece contemplar,
tanto a perspectiva de Cordeiro Pascal, como de Servo Sofredor. De modo que o Jesus
joanino assume a função de cordeiro, mas, não mais um cordeiro somente para Israel, e sim
para todo o mundo. Com isto, a salvação do Cordeiro-Servo é universal. Ele cumpre a
função de perdoar os pecados e de fazer passar para a vida eterna, visto que reconcilia, com
o seu sangue, a humanidade com Deus.
A saudação de João Batista em Jo 1,29, a princípio se mostra pouco compreensível, no
entanto, a partir de um percurso teológico que culmina no Gólgota, em Jo 19,34-36, faz-se
compreensível o que João Batista havia anunciado na semana inaugural da atividade de
Jesus. Agora, na Paixão, a Páscoa definitiva se realiza, o perdão pleno é dado, por meio da
entrega voluntária do Cordeiro de Deus.
Palavras-chave: Evangelho Segundo João; Cordeiro de Deus; Sacrifício; Páscoa;
Reconciliação.
SUMMARY
This research was guided by the method of literature review, in order to answer the
question put on the problem: Which is the relevance and which are the implications of the
image of the lamb, attributed to Jesus in the Gospel of John? - This question raises some
considerations, such as: the relevance occurs due to the formation of the community that is
the basis of this Gospel, as to say, groups that formed the Johannine community, those of the
first hour, knew the cultic life of the Israelite tradition and applied it to Jesus through the
typology of the lamb.
A second consideration is that the lamb was in the worship, either to Jews or Samaritans,
an element very present, kept from thanksgiving to the atonement. However, their presence
more fixed in memory was that linked to the night of the Exodus, in which God commanded
to sacrifice a paschal lamb. This celebration reminded every year the divine intervention and
cherished the hope of a new exodus, in which the people would be released from the judge
of the empires.
The third consideration is on the figure of the lamb and the prophetic tradition of the
Second Isaiah, who had proposed a cultic replacement: now a servant, like a lamb, would be
the atoning of the sins of the people ( cf. Is 53:7 ). The servant of Isaiah takes the atoning
function, something that was reserved for sacrificial rituals. Now, the servant assumes this
function. Given this, the salutation of John the Baptist to Jesus (cf. Jn 1:29 ) gains another
dimension, but with the possibility of combining the two ideas, as to say, the greeting of the
Batista seems to address both perspective of the Paschal Lamb as well as the Suffering
Servant. So that the Johannine Jesus assumes the role of lamb, but no more a lamb only to
Israel but to the whole world. With this, the salvation of the Lamb-Servant is universal. He
plays the role of forgiving sins and to make passing to eternal life, since He reconciles the
mankind to God through his blood.
The greeting of John the Baptist in John 1:29, in principle shows somewhat
understandable, however, from a theological journey that culminates on Golgotha, in John
19.34-36, it is understandable what John the Baptist had announced in the opening week of
Jesus' activity. Now, in the Passion, the final Easter is accomplished, full forgiveness is
given, through the voluntary surrender of the Lamb of God.
Keywords: the Gospel According to John; Lamb of God; Sacrifice; Easter;
Reconciliation.
SIGLAS E ABREVIAÇÕES
a.C.- Antes de Cristo
Ant- Antonianum
AT- Atualidade Teológica
Bib- Revista Bíblica
CD- Cuadernos Doctorales
DB- Dicionário Bíblico
DBU- Dicionário Bíblico Universal
d. C.- depois de Cristo
DCBNT- Dizionário dei Concetti Biblici del Nuovo Testamento
DCT- Dicionário Crítico de Teologia
DEB- Dicionário Enciclopédico Bíblico
DENT- Dicionário Exegético del Nuevo Testamento
DITNT- Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento
DITAT- Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento
EstB- Estudios Bíblicos
EB-Estudos Bíblicos
GLNT- Grande Lessico del Nuovo Testamento
GLAT- Grande Lessico dell´Antico Testamento
NRT- Nouvelle Revue Théologique
PT- Perspectiva Teológica
CBQ- Catholic Biblical Quarterly
RB- Revue Biblique
VTB- Vocabulário de Teologia Bíblica.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..............................................................................................................08
I CAPÍTULO: A TRADIÇÃO DO CORDEIRO.......................................................18
INTRODUÇÃO.......................................................................................18
1.1 PONTOS COMUNS ENTRE JUDEUS E SAMARITANOS..................................19
1.1.1 A imolação do cordeiro como lugar da identidade e da memória.....................24
1.1.2 Jesus como cordeiro para judeus e samaritanos no interior da comunidade
joanina.......................................................................................................................30
1.2 JOÃO BATISTA E O JUDAÍSMO DO PRIMEIRO
SÉCULO..........................................................................................................................33
1.2.1 O Movimento de João Batista e sua relação com Jesus no Quarto Evangelho
..................................................................................................................................38
1.3 A PROFECIA E JOÃO
BATISTA........................................................................................................................42
1.3.1 A tradição do Servo Sofredor no Primeiro Século.............................................45
1.3.2 A saudação do Batista e o ministério de Jesus...................................................47
1.3.3 A declaração do Batista e o seu ministério........................................................50
II CAPÍTULO: O CORDEIRO NO CULTO NO SEGUNDO TEMPLO E A
INTERPRETAÇÃO JOANINA...................................................................................54
INTRODUÇÃO.......................................................................................54
2.1 CORDEIRO COMO ELEMENTO CULTUAL.......................................................58
2.1.1 O cordeiro nas festas judaicas e a relação com o Quarto Evangelho.................60
2.2 O CAMINHO TEOLÓGICO DE JO 1,29 A 19,34-36.............................................66
2.3 NÃO LHE QUEBRARAM NENHUM OSSO ( Jo 19,36).......................................80
III CAPÍTULO: A COMUNIDADE E O CORDEIRO.............................................89
INTRODUÇÃO.......................................................................................89
3.1 A IMAGEM DO CORDEIRO COMO ELEMENTO DE IDENTIDADE.............91
3.2 O CORDEIRO E SUA RELAÇÃO COM A EXPECTATIVA DO MESSIAS....100
3.2.1 O Cordeiro de Deus e tipologias samaritanas do Messias...............................106
3.3 CORDEIRO: A HUMANIDADE RECONCILIADA COM DEUS.......................111
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................122
BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................126
8
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa se pauta pela busca de compreender a imagem do cordeiro no
Quarto Evangelho, uma vez que somente ele, entre os evangelhos, atribui a Jesus essa
tipologia, pelo que esta investigação, por meio da pesquisa bibliográfica, procura sua
aceitação e relevância para a comunidade joanina.
O Quarto Evangelho está profundamente marcado pela vida litúrgica de Jerusalém,
levando a crer que tivéssemos no interior da comunidade joanina forte influência
sacerdotal, aliás, segundo Simoens, este Evangelho possui grande simbolismo
sacerdotal1, o que inclusive se desdobra em tipologias atribuídas a Jesus, como por
exemplo, a tipologia de cordeiro. Por sua vez, a exegese levantou vários problemas em
torno deste Evangelho, inclusive aliando-o mais à fonte helenista que judaica. Isto se
tornou, no século XX, tema de muitas discussões e mereceu a atenção de grandes
especialistas; junto ao tema da fonte helenista ou judaica se somaram as discussões
sobre a comunidade joanina, sua localização e a problemática da redação do Evangelho.
Na Igreja Primitiva, devido aceitação do Evangelho segundo João por círculos
gnósticos, inicialmente ele sofreu rejeição por parte da Igreja Primitiva2, no entanto, já
no final do século II d.C. personagens como Teófilo de Antioquia e Irineu de Lião
fazem dele citações; também consta nas listas canônicas como Muratori e o Códice de
Claromontanus3, demonstrando que, apesar do problemático uso pelos gnósticos, o
Evangelho joanino conseguiu provar sua identificação com a grande Igreja e compor o
Cânon cristão.
1 SIMOENS, Yves. L´évangile selon Jean. RB, Paris, n. 4, 2000, p. 188: “quoi qu´on en dise à l´heure
actuelle dans les rangs de la grande majorité des exégètes tant catholiques que protestants, cette
symbolique est à dominante sacerdotale. C´est ce qui explique par example la place et l´importance prise
par la scène au temple dès le début de la vie publique de Jésus à Jerusalem selon Jean (Jn 2,13-25). C´est
ce qui explique aussi que la prière de Jésus en Jn 17 soit à juste titre dénominée „sacerdotale‟.” [tradução
nossa: “O que se diz no momento atual nas fileiras da maioria dos exegetas, tanto católicos quanto
protestantes, é que este símbolo possui uma dominante sacerdotal. É isto que explica, por exemplo, o
lugar e a importância tomada pela cena, no templo, desde o princípio da vida pública de Jesus, em
Jerusalém, segundo João (Jo2,13-25). É isto que explica também que a oração de Jesus em Jo 17 seja, a
título justo, denominada „sacerdotal‟.”] 2 VIDAL, Senén. Los escritos originales de la comunidad del Discípulo “amigo” de Jesus: El
Evangelio y las cartas de Juan. Salamanca: Ediciones Sigueme, 1997, p. 14: “su aceptación como
escritura autoritativa („canônica‟) de la iglesia no fue producto de una decisión momentânea, sino un
lento processo a lo largo del siglo II d.C. [...] a la problemática de esa tradición eclesiástica sobre las
orígenes de la literatura juánica (Jn y 1-3 Jn) apuntaban ya las fuertes voces opositoras que desde el
comienzo se alzaron contra ella, especialmente en el caso del evangelio, y cuya dureza e insistência esta
testificada hasta bien entrado el s. III d.C.: lejos de ligar el evangelio al „apóstol‟ Juan, lo hacían obra del
gran hereje Cerinto. Detrás estaba la sospecha de una amplia corriente de la Igresia „ortodoxa‟ ante aquel
escrito incómodo, querido y utilizado por muchos cristianos heréticos de su tiempo, especialmente por
los gnósticos valentinianos y por los montanistas.” 3 Cf. MARGERAT, Daniel (Org). Novo Testamento: história, escritura e teologia. São Paulo: Loyola,
2009, p. 442.
9
No século XX o tema gnóstico e o Evangelho segundo João voltariam a ocupar a
pauta das discussões teológicas. Pois, ao se buscar o pano de fundo do Quarto
Evangelho, alguns teóricos o viram como profundamente gnóstico. O grande nome a
defender esta teoria foi Rudolf Bultmann.
Bultmann defende que o Evangelho joanino está enraizado na gnose mandea,
sobretudo no mito do redentor4; ele desenvolve tal teoria ao realizar o paralelo entre
alguns atributos do Jesus joanino e o referido mito: preexistência, luz versus trevas,
revelar o Pai e o constante uso do verbo conhecer. No entanto, o mito levantado por
Bultmann não está registrado antes do século II d.C., quando o Evangelho já estava
concluído, isto é, não há registro de escritos que indiquem que o mito gnóstico do
redentor existisse antes do II século5. Segundo Fuente, Bultmann aliou o Evangelho
joanino ao gnosticismo mandeu, mas Lietzmann, por meio de pesquisas, demonstrou
que o gnosticismo mandeu surgiu apenas no período árabe-bizantino6. Entretanto, a
teoria bultmanniana ganhou adeptos e se cimentou por um tempo; um dos exemplos é
Koester, que considera o Evangelho joanino como uma interpretação gnóstica dos
ensinamentos de Jesus7.
Com as descobertas de Qumran, na década de quarenta, no século XX, os defensores
do gnosticismo joanino sofreram um golpe, pois propunha que João seria absolutamente
de matriz gnóstico-helenista; mas com as descobertas do Mar Morto, encontrou-se um
grupo, radicalmente judeu, que trazia características semelhantes a algumas propostas
joaninas. De fato “a descoberta dos manuscritos de Qumran permitiu lançar nova luz
sobre as ligações entre João e o judaísmo palestinense”8.
Pela narrativa do Quarto Evangelho, a comunidade joanina se aproximou não só do
judaísmo sacerdotal, mas “a linguagem e as representações religiosas típicas do
Evangelho de João dão testemunho de um grande parentesco com o judaísmo
4 Cf. Idem ibidem, p. 455.
5 Cf. Idem ibidem, p. 456: “se este é o caso- e é o terceiro ponto-, é forçoso então constatar que os
documentos literários gnósticos mais antigos que possuímos datam do século II (o mito do redentor, por
exemplo, só aparece em uma fase ulterior do gnosticismo e de modo algum em suas origens). Esse
diagnóstico se verifica para o evangelho de João; os documentos gnósticos mais intimamente ligados a ele
(p. ex. o hino da Pronoia transmitido no Apocryphon de João) apareceram no século II, ou seja, depois da
redação do evangelho.” 6 Cf. FUENTE, Alfonso de la. Transfondo cultural del Cuarto Evangelio: sobre el ocaso del dilema
judaísmo/gnosticismo. EstB, Madrid, v. 56, n. 4, 1998, p. 495. 7 Cf. KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento: história e literatura do cristianismo
primitivo. V. 02. São Paulo: Paulus, 2005, p. 197: “o Evangelho de João é, portanto um testemunho
importante do desenvolvimento inicial de uma compreensão gnóstica da tradição dos ditos de Jesus e de
uma interpretação espiritualizada dos sacramentos.” 8 MARGERAT, Daniel (Org). Novo Testamento, p. 453.
10
heterodoxo (Qumran, samaritanos, círculos batistas)”9. De certo, que o entorno onde
surgiu este evangelho é complexo e se mostra enriquecido por diversas contribuições10
,
o que retira a exclusividade gnóstica proposta por Bultmann, visto que a comunidade de
Qumran11
trouxe uma nova perspectiva de leitura sobre a comunidade judaica e a
influência que recebeu do pensamento grego. Na mesma linha, o pensamento de Filão
de Alexandria contribui para aproximar o Logos joanino mais do judaísmo que do
helenismo puro.
Entre Filão e o Quarto Evangelho, a idéia do Logos se difere e se identifica. Na ideia
de Filão, o Logos é o ser intermediário, pelo qual, Deus criou tudo, é a “sabedoria, o
espírito, a bondade e o poder”12
; é exposto por Filão como um vigário, pelo qual Deus
cria e governa o mundo, “é um verdadeiro intermediário entre Deus e os homens”13
.
Partes destas características se encontram no Logos joanino, contudo, o Logos de Filão
não é personificado, isto é, não se torna pessoa14
, e aqui há uma grande novidade no
Evangelho segundo João: o Logos se encarna. Ele “se aproxima definitivamente dos
homens com sua graça. Dir-se-ia que na ideia da encarnação estaria encerrada toda a
obra da salvação”15
.
O problema do entorno do Quarto Evangelho se mostra, deste modo, mais judaico
que helenista, mas salvando a consideração de que o judaísmo contemporâneo a Jesus
era mesclado, e se compunha de várias tendências que fugiam à ortodoxia do judaísmo
das autoridades do Templo. Qumran é um exemplo de um judaísmo com um
gnosticismo incipiente, ainda não desenvolvido16
. Assim, o Quarto Evangelho pode sim
9 Idem ibidem, p. 467.
10 Idem ibidem, p. 467.
11 Cf. FUENTE, Alfonso de la. Transfondo cultural del Cuarto Evangelio: sobre el ocaso del dilema
judaísmo/gnosticismo. EstB, p. 498: “pero los textos de Qumrán- que no por pertenencer a una rama
heterodoxa del judaísmo dejan de ser judíos- permiten explicar mucho más. Entre Qumrán y el cuarto
evangelio se dan semejanzas en puntos que no aparecen en la doctrina del judaísmo oficial: dualismo
luz/tinieblas, contraposición vida/muerte.” 12
LOHSE, Eduardo. Contexto e ambiente do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 127. 13
Idem ibidem, p. 127. 14
Cf. SHREINER, Josef; DAUTZENBERG, Gehard. Forma e exigências do Novo Testamento. São
Paulo: Editora Teológica, 2004, p. 296. 15
Idem ibidem, p. 296. 16
Cf. FUENTE, Alfonso de la. Transfondo cultural del Cuarto Evangelio: sobre el ocaso del dilema
judaísmo/gnosticismo. EstB, p. 503: “ahora bien, hoy parece demonstrado que, en el siglo I d.C., esos
rasgos de gnosticismo incipiente se habían extendido por toda la cuenca del Mediterráneo, incluída la
región de Palestina. Formaban parte del conglomerado que fue la cultura helenista. Y, como es sabido,
Palestina, desde la época seléucida, y pese a los triunfos de los Macabeos, se había mostrado bastante
permeable a esa cultura.”
11
ter traços de um gnosticismo ainda nascente, mas recebido do mundo judeu, e não
diretamente de movimentos gregos, como supõe Bultmann17
.
A presente pesquisa parte do princípio de que a comunidade joanina se compôs por
diversos grupos que estavam na região da Palestina, são eles: judeus advindos de
círculos ortodoxos como fariseus e sacerdotes e vindos de círculos heterodoxos, como
Batistas e gregos e ainda do meio samaritano18
. A comunidade joanina é “um grupo de
cristãos de tradição diferente dos sinóticos, mas presente desde o tempo de Jesus até o
séc. II”19
.
Pela fluência de temas complexos como o Logos e o dualismo, e levando-se em
consideração que “sua linguagem é de colorido semítico num grego correto”20
, pode-se
considerar que a comunidade joanina fosse composta também por mestres, isto é,
pessoas que conheciam os temas judeus que estavam na ordem do dia no período da
redação do Evangelho e manuseavam fontes diversas para dar as razões da fé, assim, “a
comunidade joanina não era composta por um grupo de pessoas simples ou ignorantes.
Pelo contrário! Tratava-se de um grupo com certas pretensões culturais”21
.
Para a comunidade joanina, a morte de Jesus é o ponto onde se pode constatar a sua
obra, isto é, “a morte de Jesus constitui o pólo de atração de todo o relato da vida de
Jesus”22
, a tanto que é “possível viver como Jesus porque é possível morrer como ele:
dando a vida”23
. Tendo a morte de Jesus como o ponto alto do Evangelho, a
comunidade demonstra o sentido que dá à saudação Batista em Jo 1,29.36.
A localização da comunidade joanina ajuda a compreender o seu escrito e todos os
recursos que ele utiliza, no entanto, esta não é uma tarefa fácil. Muitos pesquisadores já
têm se debruçado sobre este tema de difícil consenso. A localização mais comum para
esta comunidade está entre a Síria ou a Ásia Menor, mais especificamente em Éfeso24
,
contudo, não se pode negar que sua primeira etapa esteja na Palestina, donde
provavelmente migrou na guerra de 7025
.
Koester localiza a comunidade do Quarto Evangelho na Síria, onde teria tido contato
com outras tradições cristãs, como a petrina:
17
Cf. idem ibidem, p. 493 18
Cf. MARGERAT, Daniel (Org). Novo Testamento, p. 467. 19
NEVES, Joaquim Carreira. Escritos de são João. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2004, p. 61. 20
SCHREINER, Josef; DAUTZENBERG, Gehard. Forma e exigências do Novo Testamento, p. 306. 21
O´CALLAGHAN. José (Org). A formação do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 61. 22
Idem ibidem, p. 61. 23
Idem ibidem, p. 61. 24
Cf. BLANCHARD, Yves-Marie. São João. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 34. 25
Cf. O´CALLAGHAN. José (Org). A formação do Novo Testamento, p. 59.
12
O evangelho de João é produto de uma tradição especial que deve ser
situada na Síria, mas ele pressupõe um desenvolvimento de
comunidades independente de outras igrejas sírias, pelo menos no
princípio. São evidentes no curso de sua evolução contatos com outros
círculos (petrinos) da Síria, especialmente na apropriação de histórias
de milagre e da narrativa da Paixão. Uma dependência dos evangelhos
sinóticos só é possível na última etapa da redação do Evangelho de
João. Característica da tradição joanina é o material que resultou na
formação dos diálogos e discursos que refletem a cristologia e a
soteriologia especificamente joaninos.26
Zumstein considera que situar a comunidade na Síria é algo possível, mas que alguns
fatores são determinantes para localizar a redação final do Evangelho na Ásia Menor,
diz ele,
Para determinar o lugar provável em que foi composto o evangelho, é
preciso levar em conta seis fatores. Deve ser: 1) um lugar onde a
sinagoga dos fariseus tinha um papel importante e onde lhe fosse
possível impor medidas disciplinares; 2) um lugar onde o judaísmo
heterodoxo ainda era florescente; 3) um lugar onde os discípulos de
João Batista veneravam seu falecido mestre; 4) um lugar onde a gnose
iria poder se desenvolver; 5) um lugar onde o grego era de uso
corrente; 6) um lugar onde as figuras de Pedro e de Tomé
desempenhavam um papel eclesial de primeiro plano. A Síria constitui
um espaço onde essas seis condições se reúnem, mas nem por isso se
pode excluir a Ásia Menor [...] a eventual localização do Evangelho
na Síria só valeria para o trabalho do evangelista; a redação final desse
mesmo evangelho e a das epístolas joaninas devem ser situadas
provavelmente na Ásia Menor.27
Levando em consideração a geografia palestinense presente no Evangelho e o fluente
uso das tradições religiosas de Jerusalém, como as festas, a imagem do cordeiro, a
piscina de Siloé e os debates acerca do sábado, não se deve abandonar a hipótese de que
a comunidade do Quarto Evangelho tenha dado seus primeiros passos na Palestina,
aliás, mais próxima à Judéia, uma vez que a atuação de Jesus está mais situada nesta
região, para onde se dirige várias vezes em peregrinação.
Tuñí defende que a comunidade do Evangelho segundo João “surgiu provavelmente
nos círculos próximos a Jerusalém”28
e só com a guerra judaica contra Roma ela migrou
para outras regiões, talvez para Síria e mais tarde para Ásia Menor. Migrando da região
da Judéia, a comunidade levou seus primeiros registros, que foram se somando nas
memórias e interpretações utilizadas pelo redator final, resultando no Evangelho que se
tem hoje.
26
KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testemento, p. 194. 27
MARGERAT, Daniel (Org). Novo Testamento, p. 459. 28
O´CALLAGHAN. José (Org). A formação do Novo Testamento, p. 59.
13
Enfim, como mencionado, localizar a comunidade joanina não é uma tarefa fácil, e
nem definitiva, pois apesar de tantos esforços, ainda permanecem questões a serem
postas, no entanto, é provável que aí na região da Judéia esteja a primeira fase da
comunidade joanina e a base escriturística de seu Evangelho.
Ao lado da localização da comunidade joanina, outra dificuldade é demonstrar as
etapas de redação do Evangelho. O que se nota em uma primeira leitura é que o Quarto
Evangelho possui “desacerto” na continuidade redacional, o que leva a crer que tenha
passado por mais de um escritor e em épocas diferentes. Este “desacerto” é o que Neves
chama de aporias redacionais29
.
Para Neves, as aporias “nos obrigam a concluir que o quarto evangelho não foi
escrito por alguém de maneira harmônica e com uma unidade estrutural e redacional
sem mácula”30
, pelo contrário, o que se mostra é que a questão da autoria, atribuída ao
Discípulo Amado (cf. Jo 21,24), como sendo o apóstolo João31
, passa a ser uma
atribuição moral, ao invés de factual, no entanto, isto não nega que o Discípulo Amado
tenha sido um membro real na comunidade joanina32
. O Discípulo Amado não deve ter
sido o João Apóstolo, mas “foi, com certeza, um discípulo de segunda importância para
a tradição da Igreja dos Sinópticos, mas de primeira grandeza para a tradição joanina”33
.
Quanto à redação, um texto que aponta etapas é a conclusão, isto é, “sem dúvida, 20,30-
31 é uma conclusão. Mas encontramos outra em 21,24-25. Daí se pode concluir que o
cap. 21 é um acréscimo ulterior”34
. Expondo já, ao menos duas redações no Quarto
Evangelho.
A questão joanina da redação ocupou vários especialistas da área bíblica, que se
esforçaram por desenvolver teorias para explicar como se deu o processo redacional do
Quarto Evangelho. Konings utiliza a imagem de um templo para propor as várias etapas
de redação do Evangelho joanino35
e a sua pretensão se somam outros autores.
29
Cf. NEVES, Joaquim Carreira. Escritos de são João, p.40. 30
Idem ibidem, p. 41. 31
Cf. BLANCHARD, Yves-Marie. São João, p. 20. 32
MARGERAT, Daniel (Org). Novo Testamento, p. 459: “levando-se em conta que em João existe uma
certa rivalidade entre Pedro e o discípulo amado e, ainda mais, que a morte do discípulo bem-amado
parece ter constituído um problema para os círculos joaninos, conclui-se que o discípulo amado não deve
ser considerado uma figura puramente simbólica, sem consistência histórica; trata-se de uma figura
conhecida nos círculos joaninos, mais precisamente como o fundador da tradição e da escola joanina.” 33
NEVES, Joaquim Carreira. Escritos de são João, p.46. 34
FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos, v. II. São Paulo: Loyola, 1992, p. 253. 35
Cf. KONINGS, Johan. A memória de Jesus e a manifestação do Pai no Quarto Evangelho. PT, Belo
Horizonte, n. 20, 1988, p. 177: “o atual Evangelho de João é como um templo que contém elementos de
construção anteriores e também alguns acréscimos e adaptações de adequações duvidosas.”
14
Sobre a teoria da redação levantam-se muitas teorias, entre elas seguem algumas:
unidade da composição: essa hipótese defende que todo o Evangelho foi escrito por uma
única pessoa, um único autor, segundo essa hipótese, as dificuldades encontradas no
interior do texto se explicam pelo fato do autor ter feito várias revisões, como que
reeditando com alterações. Ela foi defendida por nomes como Ruckstuhl, Schweizer e
mais tarde por Lindars e Wilckens36
.
Uma segundo hipótese considerada aqui é a defendida por Wellhausen e mais tarde
por Richter, que defendia a existência de um evangelho primitivo, que estava na base do
atual Evangelho, e chegou a tal, por uma série de ampliações37
. Outra hipótese é aquela
defendida por Bultmann: a teoria das fontes. Segundo a qual, o evangelista obteve uma
fonte sobre a Paixão, uma sobre os relatos de milagres e uma terceira fonte sobre os
ditos (logia). Com esse material, segundo Bultmann, o evangelista fez um primeiro
trabalho de redação, que seria ampliado pela redação final38
. Mais recente ganhou
grande aceitação a hipótese levanta por Brown. Ele defende a existência de cinco
camadas redacionais,
A primeira situa-se no estágio da tradição oral; a segunda pertenceria
à reelaboração deste material no meio dos círculos joaninos; a terceira
seria a primeira redação propriamente dita do evangelho; uma quarta
fase pertenceria à retomada que o mesmo autor da terceira redação
faz, acrescentando elementos novos surgidos dentro da Igreja em
tempos posteriores, e a redação final se constituiria numa revisão que
um membro da escola do evangelista teria feito mais tarde.39
A teoria de Brown, segundo Moloney, foi revista e organizada pelo próprio Brown
em três estágios, ao invés de cinco, como em 196640
. Os três estágios apresentados por
Brown, como revisão de sua obra, são: primeiro estágio, que consiste na fase
testemunhal, isto é, como os demais evangelhos, também o de João teve uma
36
Cf. MARGERAT, Daniel (Org). Novo Testamento, p. 445. 37
Cf. Idem ibidem, p. 445. 38
Cf. idem ibidem loc. Cit. 39
MAZZAROLO, Isidoro. Leitura evolutiva dos Evangelhos: a integração de Lucas e João. AT, Rio de
Janeiro, n. 19, 2005, p. 43. 40
Cf. MOLONEY, Francis J. Raymond Brow´s new introduction to the Gospel of John: a presentation-
and questions. CBQ, Washington, n. 01, 2003, p. 3: “In the 1966 commentary, before his work on the
history of the johannine community, Brown suggested a five-stage theory for the development of the
Gospel. He now associates a theory of composition with more recent speculations on the history of the
community development that produced the gospel as we now have it. Brown´s modified theory suggests
that the gospel´s development through three stages parallels the development of all four gospels.”
[tradução nossa: “No comentário de 1966, antes de seu trabalho sobre a história da comunidade joanina,
Brown sugeriu uma teoria dos cinco estágios para o desenvolvimento do Evangelho. Ele, doravante,
associa uma teoria da composição com especulações mais recentes sobre a história do desenvolvimento
da comunidade que produziu o evangelho como nós o temos hoje. A teoria modificada de Brown sugere
que o desenvolvimento do evangelho, em três estágios, faz paralelo com o desenvolvimento de todos os
quatro evangelhos.”]
15
testemunha no grupo dos discípulos41
; o segundo estágio consiste na tradição oral, onde
o Discípulo Amado teve grande importância, aqui alguns relatos já podem ter sido
escritos, seriam décadas nas quais pesa o que o Discípulo Amado ensinou42
; o terceiro
estágio possui dois momentos, um teria o que Brown chama de „evangelista‟, ele seria o
responsável por coletar as tradições do Discípulo Amado e organizá-las junto com
outros materiais, de modo que seja o responsável pela organização teológica de sinais,
discursos e narrativas43
. Na segunda fase do terceiro estágio, Brown considera que há
um redator44
, aquele que trabalhou com o material deixado pelo evangelista e levou o
Quarto Evangelho ao formato que se tem hoje. Ele teria acrescentado o Prólogo e o
Epílogo, segundo Brown.
Contemporânea à revisão de Brown, levantada por Moloney, houve a publicação dos
trabalhos de Vidal, os quais, segundo Neves, são relevantes para a discussão das fases
da comunidade e a redação do Evangelho joanino45
.
Vidal considera que há um princípio comum tanto para o Evangelho segundo João,
como para os sinóticos (Mc, Mt e Lc). Todos teriam se formado de pequenas memórias
(peças) guardadas a partir de relatos e ditos, que eram transmitidos pelas comunidades,
até que chegaram a ser escritos, e desde aí passaram por interpretações e ampliações até
cada tradição (sinótica e joanina) compilar estes escritos em evangelho46
. Considerando
esta proposta é que Vidal desenvolve seu trabalho, realizando a análise de cada „peça‟
41
Cf. Idem ibidem, p. 4. 42
Cf. idem ibidem, p. 4: “Again, in a fashion similar the development of the synoptic tradition, for several
dacades Jesus was proclaimed in the postresurrectional context of a christian community. It is at this stage
that the beloved disciple played a crucial role. This figure, not one of the twelve but a disciple of Jesus,
was the link between the frist and second stage. The bulk of this lengthy period (several decades) would
have been marked by the oral transmission of the tradition of the beloved disciple, but there may have
been something written toward the end of his stage.” [tradução nossa: “Mais uma vez, de maneira similar
ao desenvolvimento da tradição sinóptica, por várias décadas, Jesus foi proclamado no contexto pós-
ressureição de uma comunidade cristã. É neste estágio que o discípulo amado assume um papel crucial.
Esta figura, que não é um dos doze, mas um discípulo de Jesus, foi o elo entre o primeiro e o segundo
estágio. A maior parte deste longo período (décadas) teria sido marcado pela transmissão oral da tradição
do discípulo amado, mas pode ter sido algo escrito no final do seu estágio.”] 43
Cf. Idem ibidem, loc. Cit. 44
Cf. Idem ibidem, p. 4: “Finally, 'the redactor' produced the gospel as we now have it. This figure is
responsible for such features as the Prologue (1:1-18) and the Epilogue (21: 1-25) and for shifting certain
blocks of material within the evagelist´s story from on place to another.” [tradução nossa: "Por último, „o
redator‟ produziu o evangelho como nós o temos hoje. Esta figura é responsável pelos recursos, como o
Prólogo (1,1-18) e o Epílogo (21, 1-25), bem como, pela mudança, de um lugar para outro, de certos
blocos de material, ao interno do relato do evangelista.”] 45
Cf. NEVES, Joaquim Carreira. Escritos de são João, p. 60. 46
Cf. VIDAL, Senén. Los escritos originales de la comunidad del Discípulo “amigo” de Jesus, p. 14.
16
dos textos atuais, na busca da origem da tradição e seu desenvolvimento até chegar ao
texto que temos hoje47
.
Todas estas teorias, com seus diversos acenos, contribuíram para o estudo do Quarto
Evangelho e levam a compreender que este Evangelho surgiu de forma processual, não
foi redigido por uma única pessoa e nem em um mesmo ano; outra ideia comum nas
teorias é o início da comunidade na Palestina e a sua formação vinda de um judaísmo
plural, haja vista a presença de Batistas e Samaritanos. É partindo das origens na
Palestina e considerando que seus primeiros membros eram de grupos diversos do
judaísmo do Primeiro Século, que a presente pesquisa busca elucidar a tipologia do
cordeiro, atribuída a Jesus, como uma imagem que contribuiu para a identidade do
grupo e para sustentar sua teologia da reconciliação em Jesus.
A imagem do cordeiro, que é aceita e acolhida pela comunidade joanina, leva-a a
uma constatação: Jesus é o vínculo de reconciliação com o Pai. Ora, todo o Quarto
Evangelho é uma revelação da unidade entre Jesus e o Pai (cf. Jo 14,8-11). O Filho veio
fazer a vontade do Pai (cf. Jo 17,4), e se torna a oferta de reconciliação entre Deus e a
humanidade, isto é, a humanidade decaída foi presenteada pelo Pai com a oferta
amorosa do Filho, como um cordeiro, que se fez obediente, inclusive até a morte, com
isto, sua entrega é a consumação do amor que há entre o Pai e o Filho, e de fato, só o
amor tem a força necessária para reconciliar.
Para percorrer este caminho, a presente pesquisa se organiza em três capítulos que
possuem subdivisões internas, no entanto, passar-se-á à macro divisão.
O primeiro capítulo busca elucidar a tradição do cordeiro e sua relação com os
samaritanos e João Batista, partindo do pressuposto de membros oriundos destes grupos
na comunidade joanina, procurando responder a pergunta: que sentido tem para
samaritanos e batistas chamar Jesus de cordeiro? A memória da saída do Egito é comum
a samaritanos e judeus. Levando a crer que a primeira memória samaritana referente a
cordeiro seria a libertação do Egito e a formação de um único povo. Por sua vez, a
relação com João Batista traz a problemática da fonte de sua saudação, se Is 53,7 ou o
Cordeiro Pascal (Ex12). Em todo caso, a analogia feita pelo segundo Isaías é litúrgica,
isto é, compara o servo com o cordeiro que expia os pecados, assim, é possível que o
Quarto Evangelho tenha fundido já na saudação Batista, o rito pascal e o sacrifício de
expiação.
47
Cf. Idem ibidem, p. 15.
17
A comunidade joanina, apesar da presença de gente oriunda de vários grupos da
época, parece que predominava a tradição judaica, gente que freqüentava o Templo, que
conhecia a vida litúrgica de Israel, e provavelmente vivia nas imediações de
Jerusalém48
. Pelo que, o segundo capítulo procura expor a vida litúrgica do Segundo
Templo e nela a presença do cordeiro como elemento litúrgico. Nas festas listadas pelo
Quarto Evangelho, todas guardavam sacrifícios de animais, entre eles o cordeiro, o que
reforça o pano de fundo litúrgico à saudação Batista (cf. Jo 1,29.36). No segundo
capítulo é também relevante a citação em Jo 19,36: não lhe quebraram nenhum osso. A
sua fonte é discutível, se o salmo 34 ou Ex 12, contudo, todo o contexto da morte de
Jesus dentro da preparação pascal leva a entender que em Jo 19,36 se completa o que
fora dito em Jo 1,29: eis o cordeiro de Deus.
Constatado, que entre os evangelhos, somente o Quarto Evangelho aplica a Jesus a
tipologia de cordeiro, chega-se a compreender que esta imagem era importante para a
comunidade joanina. Por isso, o terceiro capítulo expõe a singularidade desta tipologia
entre os evangelhos, e liga tal imagem à esperança messiânica de Israel, mas, sobretudo,
defende que Jesus é a oferta de reconciliação apresentada pelo Pai. E sua morte, antes
de ser uma tragédia, é uma entrega voluntária e por amor, em favor da humanidade.
Portanto, os três capítulos da presente pesquisa estão colocados para evidenciar a
propriedade do Evangelho joanino quanto ao tema do cordeiro e ressaltar a formação
desta comunidade, como uma comunidade aberta, formada por diversos grupos,
cultivando o diálogo e a esperança messiânica.
48
Cf. O´CALLAGHAN. José (Org). A formação do Novo Testamento, p. 59.
18
CAPITULO I
A TRADIÇÃO DO CORDEIRO
INTRODUÇÃO
A pesquisa bíblica sobre o Quarto Evangelho encontra diversas interpretações a
respeito da pessoa de Jesus. Entre elas está a imagem do cordeiro que se revela envolta
em muita complexidade, pois em si já traz duas possibilidades: Cordeiro Pascal e Servo
de Deus. Nos textos neotestamentários existem referências à imagem do cordeiro49
que
são aplicadas a Jesus, valendo-se de termos sinônimos, mas com uso cultural
diferenciado, como se perceberá na sequência da pesquisa.
No Evangelho joanino há dois momentos que se referem ao cordeiro explicitamente:
1,29 (no dia seguinte João viu Jesus aproximar-se e disse: eis o cordeiro de Deus que
tira o pecado do mundo) e 1,36 (fixou a vista em Jesus que passava e disse: eis o
cordeiro de Deus) – e ainda outro momento em que a referência é implícita – 19,36
(assim sucedeu para que se cumprisse a Escritura: não lhe quebrareis osso algum).
No capítulo primeiro do Evangelho segundo João, a imagem está associada a tirar o
pecado do mundo50
, e no capítulo dezenove, do mesmo Evangelho, há uma
identificação com o sacrifício realizado no Templo51
. Diante destes textos, levando-se
em consideração que a comunidade joanina possui uma formação complexa e difícil
para se reconstruir52
, é importante supor que, para a comunidade, a identificação de
Jesus como cordeiro fosse relevante, ou seja, como a imagem persiste em aparecer duas
vezes no primeiro capítulo e ainda na narrativa da Paixão, leva a crer que a comunidade
do Quarto Evangelho atribuía valor significativo para a imagem de Jesus como cordeiro.
49
COENEN, L.; BEYREUTHER, E.; BIETENHARD, H. DCBNT. Bologna: EDB, 1976, p 63: “Nel NT
Gesù vienne chiamato 4 volte amnós (Gv 1,29.36; At 8,32; 1Pd 1,19). ; arén compare uma sola volta nel
NT, in Lc 10,3 dove se dice che i discepoli saranno indifesi come le pecore in mezzo ai lupi. ; arnión in
Gv 21,15 la comunità è proprietà di Cristo e abbisogna della fedeltà del discepolo che deve fungere da
pastore.; oltre a Gv 21,15, arníon si trova esclusivamente in Ap (27 volte).” [tradução nossa: No NT Jesus
é chamado 4 vezes de amnós (Jo 1,29.36; At 8,32; 1Pd 1,19). ; Arén aparece somente uma vez no NT, em
Lc 10,3 onde se diz que os discípulos serão indefesos como as ovelhas em meio aos lôbos. ; arnión
aparece em Jo 21,15 onde a comunidade é propriedade de Cristo e necessita da fidelidade do discípulo
que deve agir como pastor. Além de Jo 21,15, arnión se encontra exclusivamente no Ap (27 vezes).”] 50
Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João: palavra de Deus. V. I. São Paulo:
Loyola, 1996, p. 134. 51
Cf. KONINGS, Johan. Evangelho segundo João: amor e fidelidade. São Paulo: Loyola, 2005, p. 343. 52
Cf. VIDAL, Senén. Los escritos originales de la comunidad del discípulo “amigo” de Jesús.
Salamanca: Sigueme, 1997, p. 40.
19
Alguns estudiosos, como Zumstein53
, entendem que a comunidade joanina possuía
membros vindos do grupo do Batista, bem como adeptos provenientes da pluralidade do
judaísmo do primeiro século (fariseus, saduceus, essênios, sacerdotes e judeus da
diáspora)54
e do meio samaritano55
. Diante disto vale a pena uma pesquisa para verificar
a relevância da imagem do cordeiro para cada um dos grupos que formaram a
comunidade do Discípulo Amado, levando em consideração três matrizes grupais:
Judeus, Batistas e Samaritanos56
.
1.1. Pontos comuns entre judeus e samaritanos
No percurso da pesquisa sobre o cordeiro em João, faz-se necessário, como
mencionado anteriormente, levar em consideração a composição da comunidade
joanina. Para Vidal, a comunidade joanina é formada por diversos grupos, entre eles a
comunidade de Sicar (cf. Jo 4,5-41)57
, pelo que cumpre realizar uma retomada histórica
da relação entre judeus e samaritanos, destacando a relevância do cordeiro para as
“duas” tradições.
No tempo de Jesus havia entre judeus e samaritanos uma animosidade que fora
construída ao longo da história e resistia mesmo diante da alegada origem comum: a
saída do Egito.
Quando ocorre a libertação do Egito, os antepassados pertencentes ao povo de Israel
são tratados na memória como sendo um clã, com sucessão harmônica, isto é, o texto
bíblico veterotestamentário constrói uma descendência a partir de Abraão e segue-se às
doze tribos como oriundas da mesma linhagem patriarcal, de onde veio o povo de Isreal
(cf. Js 24). Assim, por longos anos, até a cisão entre o Reino do Sul e o Reino do Norte
53
Cf. MARGUERAT, Daniel (Org). Novo Testamento: história, escritura e teologia. São Paulo: Loyola,
2009, p. 452-456. 54
Cf. GASS, Ildo B. Uma introdução à Bíblia: as comunidades cristãs da primeira geração. São Paulo:
Paulus, 2000, p. 45. 55
Cf. VIDAL, Senén. Los escritos originales de la comunidad del discípulo “amigo” de Jesús, p. 16:
“el relato de la fundación de la comunidad juánica de Sicar en Samaria (4, 5-41) sin paralelo en la
tradición sinóptica, es una narración espléndida sobre la actividad misional de los grupos juánicos en sus
tiempos antiguos.” 56
Aqui poderíamos considerar João Batista como judeu, aliás o seu Movimento é um entre tantos no meio
judaico do primeiro século, no entanto, considerando as particularidades deste Movimento, vale
considera-lo em separado, também por sua relevância em relação à pesquisa sobre o Movimento de Jesus,
como se verá ulteriormente. 57
Cf. VIDAL, Senén. Los escritos originales de la comunidad del discípulo “amigo” de Jesús, p. 40.
20
(cf. 1Rs 12,1-33), Israel era um só povo58
. Todavia, após a morte de Salomão e a subida
de seu filho Roboão ao trono, o Sul e o Norte levaram a termo a tensão que já se
instalara ao início da monarquia, ocasionando a separação entre os dois reinos, elevando
ainda mais a animosidade já existente, embora não tenha sido este ainda o momento da
cisão radical.
Após a queda da Samaria, a Assíria povoou a região com gente vinda de várias
partes, o que, segundo a Judéia, tornou a Samaria uma terra pagã (cf. 1Rs 17,24-41). A
dificuldade de convivência se intensifica após o fim do Exílio da Babilônia59
. Os
repatriados de Judá requerem a pureza, causando grande dificuldade para a convivência
com os samaritanos, os quais pleitearam o direito de construir um templo em Garizim,
que foi erguido somente no começo da época grega, em 33260
, e destruído por João
Hircano, no período dos Macabeus, o que foi o ponto alto dos conflitos61
.
Apesar da significativa existência de conflitos entre estes povos, a realidade histórica
mostra também a presença de grande identidade entre um e outro. Prova disso consiste
na figura dos patriarcas, visto que tanto judeus quanto samaritanos entendem que
Abraão, Isaac e Jacó são seus pais, soma-se a isto várias manifestações religiosas que
identificam a raiz comum a judeus e samaritanos.
No relacionamento com a Escritura, os samaritanos mantêm a tradição do
Pentateuco, legitimando os cinco primeiros livros da Bíblia como sagrados62
e
aceitando-os para o culto e para a instrução na fé63
. Lohse entende que a unidade no
Pentateuco se dá porque quando eles se separaram ainda não havia a compilação e
aceitação geral de outros textos como sagrados, seja a literatura sapiencial ou
58
Cf. SCHMIDT, Francis. O pensamento do Templo de Jerusalém a Qumran. São Paulo: Loyola,
1994, p. 104: “os samaritanos são javistas como o são os judeus da Judéia; como eles, receberam de
Moisés a Torah, praticam a circuncisão, observam o sábado; como eles e com eles somente entre as
nações, são monoteístas. Como eles os samaritanos são filhos de Israel.” 59
Cf. MAIER, Johann. Entre os dois testamentos: história e religião na época do Segundo Templo. São
Paulo: Loyola, 2005, p. 55: “a tradição dos exilados de Judá censurou desde cedo (cf. 2Rs 18,24ss.) os
moradores do território do norte de Israel, por se terem misturado com estrangeiros imigrados, adotando
um sincretismo religioso, sem dúvida principalmente aquela religião popular que apareceu também em
Kuntillad Adjrud em Elefantina. Contudo, depois da repatriação, os chefes do Templo não puderam
manter plenamente essa posição polêmica, o que contrariou a linha exílica, que de fato por vezes interveio
com a ajuda de judeus da Babilônia.” 60
Cf. SCHMIDT, Francis. O pensamento do Templo de Jerusalém a Qumran, p. 105. 61
Cf. LOHSE, Eduardo. Contexto e ambiente do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 14:
“no tempo em que os samaritanos obtiveram seu próprio santuário, reinava uma inimizade profunda entre
eles e os judeus. Tal animosidade finalmente os levou à guerra. No ano 128 a.C., os judeus, sob o
comando de João Hircano, destruíram o templo do monte Garizim.” 62
Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. V. I, p. 261. 63
Vale salientar que os samaritanos possuem uma versão própria do Pentateuco.
21
profética64
. Para Maier, a opção pelo Pentateuco se insere dentro da tensão histórica
entre os dois povos, assim,
os samaritanos adotaram o Pentateuco (com poucas variantes) como
Revelação do Sinai e, como os saduceus mais tarde no judaísmo,
consideraram-no a única base obrigatória da Revelação. É
compreensível que eles não tenham conseguido aceitar a obra
historiográfica deuteronomista, com sua apresentação crítica da
história do reino do Norte.65
O Pentateuco66
, traço comum entre judeus e samaritanos, abre um ponto de diálogo,
pois alguns de seus trechos67
levavam grupos de um e outro povo a esperar a vinda do
Messias. Para os judeus, há muitas interpretações sobre a figura do Messias68
; já para os
samaritanos, conforme tem apontado a pesquisa bíblica, a vinda do Messias estaria de
acordo com o anunciado em Dt 18,15, isto é, “o Senhor teu Deus suscitará para ti, do
meio de ti, dentre teus irmãos, um profeta como eu: é a ele que deverás ouvir”.
Sobre o Messias samaritano não há muitas informações; ao que parece, ele recebia o
nome de Taheb. Seria um Messias semelhante a Moisés69
. Para Léon-Dufour, o Taheb é
mais bem compreendido a partir de um acréscimo que existe na versão samaritana do
Pentateuco,
um notável adendo feito ao texto do decálogo (Ex 20,1-21) na edição
samaritana do Pentateuco poderia confirmar a espera de um profeta.
Ali se lê, imediatamente antes do Código da Aliança: „eu suscitarei
entre teus irmãos um profeta tal como tu (Moisés) e darei minhas
palavras em sua boca‟ (Ex 20,21b). Esse acréscimo, que equivale a Dt
18,15, provaria a crença na volta um profeta que revelaria os
derradeiros segredos divinos.70
64
Cf. LOHSE, Eduardo. Contexto e ambiente do Novo Testamento, p. 14. 65
MAIER, Johann. Entre os dois testamentos, p. 55-56. 66
É importante pontuar que ao se falar de Pentateuco para Judeus e Samaritanos se faz necessária a
consciência que há variações entre os dois pentateucos, sobre o que existe produção literária, a exemplo
de Girón Blanc, em Revista de Ciencias de las Religiones, anejos 2002, VII e também Anderson, em
Revue Biblique, n. 62, 1970. 67
Cf. SOUSA, Rodrigo F. de. O desenvolvimento histórico do messianismo no judaísmo antigo:
diversidade e coerência. Disponível em http://www.usp.br/revistausp/82/02-rodrigo.pdf. Acessado em
22/01/13.p. 12: “Os textos relevantes para a construção do messianismo no corpus bíblico não se limitam
aos que contenham o termo mashiach. Diversos textos, como Gn. 49:10, Nm. 24:17, foram interpretados
messianicamente por grupos diversos no judaísmo do Segundo Templo, com um nível significativo na
coerência da interpretação.” 68
Cf. BAILÃO, Marcos Paulo. O nascimento do messianismo judaita. EB, Petrópolis, n.52, 1997, p. 09:
“no decorrer da história [de Israel] diversos movimentos foram classificados como „messiânicos‟, ou seja,
movimentos que esperavam a mudança na situação de grupos marginalizados pela chagada de um novo
tempo. Este novo tempo se daria pela conjunção entre a ação da divindade e a dos adeptos do
movimento.” 69
Cf. KONINGS, Johan. O tema do messias no Quarto Evangelho. EB, Petrópolis, n. 52, 1997, p. 91:
“para os samaritanos o messias não seria um novo Davi, mas o novo Moisés que eles achavam estar
anunciado em Dt 18, 15.18.” 70
LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. V. I, p. 287.
22
No diálogo com a samaritana, Jesus vai progressivamente assumindo as esperanças
da Samaria, isto é, a mulher vai entendendo que Jesus se identifica com o Messias
esperado, com o Taheb, aquele que pode revelar „os segredos divinos‟, tanto que a
surpresa da mulher não é com a “água viva”, mas porque “me disse tudo que tenho
feito” (cf. Jo 4,29). A descoberta da mulher é progressiva, como propõe o diálogo de
Jesus: primeiro, Jesus é um judeu (cf. Jo 4,9), depois um profeta (cf. 4,19), até
finalmente ser reconhecido como aquele que devia vir (cf. 4,25.39)71
. A esperança é de
tal modo assumida, que os samaritanos que vêm a Jesus por causa da mulher, agora
espalham sua obra a todo o mundo (cf. Jo 4,42). Assim, os samaritanos rompem o
exclusivismo soteriológico de alguns círculos do judaísmo: Jesus é o salvador do
mundo72
.
Para os escritos joaninos, o conceito de mundo73
compreende variantes na relação
com Jesus, isso também está presente no episódio do Batista e dos samaritanos. O
Batista saudou Jesus como cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (cf. Jo 1,29) e
os samaritanos o saudaram como salvador do mundo (cf. Jo 4,42).
No Quarto Evangelho, Jesus está muitas vezes em conflito com o mundo74
. Essa
categoria assume uma variante de não aceitação a Jesus (cf. Jo 14,30), mas, por outro
lado, tanto a saudação do Batista, como dos samaritanos revelam a intensidade da
relação de Jesus com o mundo. Com a saudação samaritana, Moloney entende que há
uma confrontação entre Jesus e o imperador romano e os modelos helenistas de
titularem seus imperadores75
, isto é, o verdadeiro kyrios é Jesus. Para a saudação do
Batista, Léon-Dufour entende que ela recolhe a tradição dos judeus que tinham a
consciência de que Deus redimiria o mundo76
e Israel seria o arauto da instalação da
vontade de Deus. O movimento apocalíptico, como ícone desta tradição, põe o enviado
de Deus como o salvador do mundo77
. Com isto, a saudação samaritana e Batista
expõem que Jesus é Senhor e Redentor do mundo.
71
Cf. MOLONEY, Francis J. The Gospel of John. V. IV. Minnesota: Michel Glazier Book,
1998, p. 126. 72
Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. V. I, p. 300. 73
Cf. SARASA GALLEGO, Luis Guillermo. La filiación de los creyentes en el Evangelio de Juan.
Bogotá: D.C., 2009, p. 478: “el concepto bíblico de (en grego) de cosmos llega a su ponto cúlmen en los
escritos juánicos. De las 185 veces que se usa en el NT, 105 en los escritos juánicos. En primer lugar se
trata del mundo creado; pero tambiém puede significar algo más que el universo material en quanto dice
relación al hombre. Se trata del teatro en el cual se desarrolla el drama de la redención.” 74
Idem, Ibidem, p. 301 75
Cf. MOLONEY, Francis J. The Gospel of John. V. IV, p. 147. 76
Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. V. I, p. 105. 77
Cf. LOHSE, Eduardo. Contexto e ambiente do Novo Testamento, p. 63-65.
23
Outro conceito rico à tradição joanina é o de água viva e a sua fonte. Os membros da
comunidade conheciam o valor da água em regiões desérticas e semidesérticas. Mas a
água pura, a água viva, que emana do poço da Torá é o Dom de Deus78
, é ele que sacia a
sede do ser humano, como prescrevia a tradição.
Entre os comentadores do Quarto Evangelho se encontram López Rosas, Richard
Gúsman, e também Mateos e Barreto que identificam, segundo uma tradição antiga, que
a fonte da água viva é o poço da Torá, poço do qual emana a sabedoria79
. Konings segue
na mesma linha, identificando a água pura com o “simbolismo do AT, a água profunda
(cf. Pr. 18,4; 20,5), a água viva (cf. Sr 21,13; 24,23-34), representa a Sabedoria e a
Lei”80
, assim, judeus e samaritanos identificam “tirar água” com o estudo da Torá81
;
portanto, Jesus ao dizer que dará a água viva (cf. Jo 4, 10.13) se apresenta como a fonte
do culto, da moral e da fé e “ocupará permanentemente o lugar do antigo manancial”82
.
A tradição judaica e samaritana, como visto, entendem que “do poço da Lei brota a
água viva”83
. Além da imagem da Torá, como poço, diversamente as duas tradições
compreendem que do lugar sagrado emana a água da vida; com os samaritanos o poço
está ligado a Jacó; para o mundo judeu a indicação mais corrente é da linhagem
profética, que situa a fonte da água no Templo (cf. Ez 47; Zc 14,8), em Jerusalém84
.
Entre a tradição samaritana e judaica há também o choque sobre a perspectiva da
linhagem dos patriarcas. A Samaria, apesar de ser um povo misto, devido à ocupação
Assíria, tem a firme convicção de ser descendente de Jacó, tradição que se mantinha
fortemente pela presença do poço em Sicar. Por sua vez, a tradição do Sul, mesmo
declarando-se descendente dos patriarcas, teve sua maior ocupação teológica na
78
Cf. LÓPEZ ROSAS, Ricardo; RICHARD GUSMÁN, Pablo. Evangelio y Apocalipsis de San Juan.
Navarra: Verbo Divino, 2006, p. 103-104: “el desconocido regalo o don de Dios es un agua de calidad:
água corriente, viva, no estancada. En AT sabe que Dios es la fuente de águas vivas (Sal 35,10; Jer 2, 13;
cf. Sal 41, 2), y que esto se expresa en la Torá o Instrucción dada para vida de los fieles[...] igualmente,
los rabinos emplean la metáfora referida al estudio de la Torá: „sea tu casa lugar de encuentro de los
sábios, empólvate con el polvo de sus pies, bebe con avidez sus palabras‟ (mAB 1,4). De un buen
discípulo se dice que es „una cisterna encalada que no pierde una gota de agua‟; „R. Eleazar, hijo de Araj,
es una fuente que cresce constantemente‟ (mAB 2,8).” 79
Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de João. São Paulo: Paulinas, 1989, p 220: “o
poço, na tradição judaica, converteu-se em elemento mítico, que sintetiza os poços dos patriarcas e o
manancial que Moisés abriu na rocha do deserto. É figura da própria Lei, que se considerava observada já
pelos patriarcas e formulada mais tarde por Moisés.” 80
KONINGS, Johan. Evangelho segundo João, p. 126. 81
Cf. LÓPEZ ROSAS, Ricardo; RICHARD GUSMÁN, Pablo. Evangelio y Apocalipsis de San Juan, p.
104. 82
MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de João, p. 221. 83
Idem ibidem, p. 220. 84
Cf. Idem ibidem, p. 221.
24
manutenção da teologia davídica85
e na espera de um rei segundo Davi86
, embora
conhecessem a tradição do poço de Sicar e do monte Garizim (cf. Gn 33,19; 48,22; Js
24,32).
1.1.1 A imolação do cordeiro como lugar da identidade e da memória
Em Garizim, lugar de culto e peregrinação. Que segundo o Pentateuco Samaritano, é
um santuário antigo, onde Deus mandou erigir um altar para adoração87
. Portanto, o
lugar onde foi construído o Templo Samaritano no início da época helenista, já possuía
sua longa tradição como santuário88
. Todavia, com o projeto de um só Templo, o
judaísmo pós-exílico não aceitou que se desse termo à construção de Garizim, haja vista
85
Cf. SOUSA, Rodrigo F. de. O desenvolvimento histórico do messianismo no judaísmo antigo:
diversidade e coerência, p. 13: “A promessa feita a Davi de uma “casa” eterna formou a base da
legitimação da dinastia davídica. Diversos textos do Antigo Testamento refletem essa promessa, dentre os
quais podemos ressaltar os chamados “salmos reais” (Salmos 2, 18, 20, 21, 45, 72, 89, 101, 110, 132 e
144), que exaltam o monarca da linhagem de Davi.” 86
Idem ibidem, p. 13: “Diversos textos ecoam a esperança da restauração plena da casa de Davi (Is. 11:1-
9; Ez. 34 e 37; Mq. 5:1-3). Esses textos foram apropriados por diversos grupos no judaísmo antigo e
embasaram a sua esperança messiânica.” 87
Cf. GIRÓN BLANC, Luís Fernando. La version samaritana del Pentateuco. Disponível em:
http/revistadigital/index.php/revistainteracoes/article/viewFile/229/190. Acessado em 22 fevereiro 13,
14:25:30.: “Esta variante recibe su significado profundo en Dt 27,4, donde en lugar de Ebal de la version
judia encontramos Garizim en la samaritana. Según esto, lo prescrito para El monte Ebal es trasladado al
monte Garizim y, así, esté es el lugar que Adonai eligió de antemano. De esta forma justifican los
samaritanos la existência de su centro de culto en el monte Garizim”. Disponível em:
http/revistadigital/index.php/revistainteracoes/article/viewFile/229/190. Acessado em 22 fevereiro 13,
14:25:30. 88 Diante da alegada manifestação de Deus em Garizim, segundo o Pentateuco Samaritano, a diferença
entre Garizim e Jerusalém está no que Sicre identifica e diferencia como lugares de culto, a saber:
“Dentro do mundo bíblico, o espaço sagrado constitui um tema extenso, que foi evoluído durante
séculos. Através das diversas tradições observa-se que: 1) certos lugares adquirem caráter sagrado
porque a divindade se manifesta neles; 2) outros conseguem esta categoria porque um grande
personagem religioso os funda; 3) há momentos capitais da relação com Deus que podem ocorrer no
espaço „profano‟.” (LUÍS SICRE, José. Profetismo em Israel: o profeta, os profetas, a mensagem.
Petrópolis-RJ: Vozes, 2008, p. 382). Assim, Garizim se enquadra dentro da prescrição 1, onde Deus se
manifestou, segundo o Pentateuco Samaritano Dt 27,4. Já o templo de Jerusalém é construído por uma
personalidade, no entanto, sua afirmação como lugar sagrado é, segundo Araújo, construída por imagens
que o associam à manifestação de Deus, como exemplo, a nuvem da presença divina: “Na Sagrada
Escritura, a nuvem como manifestação da glória do Senhor aparece sobre o monte Sinai, sobre o monte
Moriá, acompanhando os israelitas durante a sua marcha pelo deserto, dentro da tenda do deserto e dentro
do Templo ou como sinal escatológico”. E ainda: “o Templo de Jerusalém surge por vontade de Davi e
iniciativa e Salomão: “[...] meu Pai Davi teve a intenção de construir uma casa para o Nome do Senhor
[...] Mas o Senhor disse [...] não serás tu quem edificará esta casa, e sim, teu filho [...]” (1Rs 8.17-19).
Tais moradias após respectivas edificações vêm empossadas pelo seu dono, ou seja, o Senhor, e a tomada
de posse se faz através da manifestação da nuvem que preenche a tenda (Êx 40.34-35) e o Templo (1Rs
8.10-13). A presença divina do Senhor recebe o nome de shekinah”. (ARAUJO, Gilvan Leite de. A Arca
da Aliança. Disponível em:
http://periodicos.est.edu.br/index.php/estudos_teologicos/article/viewFile/205/224. Acessado em 03
novembro 2012, 11:45:20, p. 246- 247.)
25
que “entre a fundação do Garizim e sua destruição em 128 a. C., as relações entre
judeus e samaritanos degradaram-se progressivamente”89
.
O fato de haver Templo em Jerusalém e em Samaria indica que ambos possuíam vida
sacrificial. No tempo de Jesus, Garizim já estava destruído e não há informação clara
sobre a vida cultual da Samaria. Já em relação aos judeus, entre as várias tendências, é
possível afirmar que existia o judaísmo oficial mantenedor do Templo, o que lhe
acarretava uma teologia sacrificial. O Templo era o lugar, por excelência, para se
apresentar os holocaustos (cf. Dt 12,1-12).
A centralidade do sacrifício no Templo de Jerusalém não é um projeto somente
religioso, mas também um projeto político90
que invalida a religião popular e a
existência de outros templos. A política de centralização cultual91
acontece na Reforma
de Josias (cf. 2Rs 23,4ss). Esta Reforma foi possível graças a uma lacuna entre a
dominação Assíria e a dominação Babilônica, na qual Josias buscou a unificação do
povo por meio da vivência religiosa, investindo contra divindades estrangeiras e
focando a prática religiosa sacrificial de Judá em Jerusalém. De fato, a Reforma,
alegada como religiosa, não buscava somente este cunho, mas pelo contrário, com a
destruição do templo de Betel, o chamado templo de Jeroboão (cf. 2Rs 23,15), Josias
tentava levar o reino do Norte a também prestar culto em Jerusalém, onde este seria
centralizado pela sua Reforma político-religiosa.
O alegado início da Reforma se encontra na descoberta do livro da Lei (cf. 2Rs
22,3ss), que alguns consideram se tratar de uma parte do livro do Deuteronômio92
,
porém, uma reforma em Israel já havia sido iniciada por Ezequias (cf. 2Rs 18,4), que
não a pôde concluir devido ao contexto político-externo93
. Deste modo, a Reforma de
Josias parece ser uma continuidade, que terá seu ápice na Festa da Páscoa (cf. 2Rs
23,21: “O rei deu esta ordem a todo o povo: celebrai a Páscoa em honra do Senhor vosso
Deus, como está escrito neste Livro da Aliança.”), obrigando os fiéis a subirem em
89
SCHMIDT, Francis. O pensamento do Templo de Jerusalém a Qumran, p. 108. 90 Cf. RÖMER, Thomas. A chamada história deuteronomista: introdução sociológica, histórica e
literária. Petrópolis: Vozes, 2008, p 11: Segundo a literatura deuteronomista existe apenas um único
santuário legítimo em „Israel‟, o qual, como leitor irá compreender mais tarde, correspondente ao templo
de Jerusalém, embora o nome da cidade nunca seja mencionado nem no Deuteronômio nem no
Pentateuco. A centralização do culto implica também a centralização da economia e da política, como
mostram as leis coligidas em Dt 13-18. 91
Cf. NAKANOSE, Shigeyuki. Uma história para contar: a páscoa de Josias. São Paulo: Paulinas,
2000, p. 197. 92
Cf. BERGANT, Dianne; KARRIS, Robert J. (Orgs). Comentário Bíblico. V. I, São Paulo: Loyola,
2010, p. 291. 93
Cf. NAKANOSE, Shigeyuki. Uma história para contar, p. 75.
26
peregrinação a Jerusalém, pois o combate à religião popular propunha um substituto
para o culto: O Templo de Jerusalém. A Páscoa, que antes era tribal e familiar, agora é
no Templo, com peregrinações anuais a Jerusalém94
. Todavia, em razão das resistências
enfrentadas, a Reforma só encontra sua maior expressão no judaísmo pós-exílico, com
os grupos que, ao voltarem do exílio, requerem a centralidade do culto e a Lei da
Pureza.
A Samaria, ao longo da história, continuará sendo uma resistência à Reforma de
Josias e à pretensão pós-exílica, que queria um só Templo. Aliás,
o argumento principal era que a existência de muitos templos para a
mesma comunidade de Israel era incompatível com a lei do
Deuteronômio, que exigia a destruição de todos os lugares de culto e a
centralização desse em um só templo.95
A realidade de um só templo não foi consenso entre o Povo da Aliança, assim, “O
templo de Garizim estava longe de ser uma exceção”96
, havendo, pois, outros dois
templos fora de Jerusalém: Elefantina97
e Leontópolis98
.
O Templo, em Jerusalém, Samaria, Elefantina ou Leontópolis,99
devia ter uma vida
litúrgica pautada pelo sacrifício. No que diz respeito aos samaritanos, há a cópia de um
calendário deste povo, exposto por Mauch100
. Neste material, na edição de Powels, vê-
se que a vida litúrgica samaritana preservava a Festa da Páscoa101
, contendo, inclusive, a
reserva do dia para a imolação do cordeiro102
.
94
Cf. NAKANOSE, Shigeyuki. Uma história para contar, p. 115. 95
SCHMIDT, Francis. O pensamento do Templo de Jerusalém a Qumran, 106. 96
Idem ibidem, p. 106. 97
Cf. MAIER, Johann. Entre os dois testamentos, p. 46: “existiu uma colônia militar israelita-judaica
em Elefantina. Foi fundada, parece, no fim do século VI a. C., não necessariamente por israelitas do norte
[... ] essa colônia militar possuía um templo, e estava evidentemente convencida de praticar um culto
israelita. Uma missiva oficial sobre a festa da Passah atesta que também para a autoridade persa a colônia
era judaica, ou israelita.” 98
Cf. SCHMIDT, Francis. O pensamento do Templo de Jerusalém a Qumran, p. 107: “quase dois
séculos e meio depois do problema com o Templo de Elefantina, outro santuário devia ser edificado no
Egito. Por volta de 165 a. C. Onias IV, filho do sumo sacerdote Onias III, que circunstâncias políticas
haviam afastado do pontificado em Jerusalém, recebeu de Ptolomeu VI Filometor um território em
Leontópolis com o nome de Heliópolis, no baixo Egito. Ele fundou um templo em forma de torre, cujo
altar foi concebido, diz-nos Flávio Josefo, à imitação do de Jerusalém. Em Leontópolis, os sacrifícios só
foram interrompidos em 73 d.C., quando o templo foi destruído por ordem de Vespasiano.” 99
Idem ibidem, p 108: “ao lado dos judeus que sacrificavam em Jerusalém, havia lugar no seio do povo
de Israel para os que levavam suas oferendas ao Garizim, assim como para os que haviam sacrificado na
casa de Yahô, o deus que está em Elefantina-a-Fortaleza, ou para os que até 73 sacrificavam no Templo
de Leontópolis.” 100
Cf. BAILLET, Maurice. Le calendrier Samaritain. RB, Paris, n. 04, 1978, p. 481. 101
Cf. Idem ibidem, p. 484: “fundamentalment, les Samaritains ont le même système luni-solaire que les
Juifs. A certains traits on reconnaît cependant le caractere plus archaïque de leur calendrier. Ainsi les
mois ne portent pas de noms, mais sont designes pás des numéros. Le premier mois de l´année religieuse
est bien celui que le Pentateuque appella le mois d´Abib, au cours duquel on célèbre la Pâque.” [tradução
nossa: “Fundamentalmente, os Samaritanos possuem o mesmo sistema lunar-solar dos Judeus. Devido a
27
Um detalhe caro a esse calendário, segundo Baillet, é que a festa dos ázimos possuía
distinções da festa do cordeiro103
, o que leva a pensar que os samaritanos, de modo
geral – e não somente no período datado do referido calendário – tinha grande apreço
pelo ritual de sacrifício do cordeiro. Baillet ainda destaca a semelhança com o
calendário de Qumran, sobretudo certa grafia104
. Portanto, apesar de uma distância
legítima (legal) com Judá, os samaritanos continham pontos de identidade não só com o
Templo de Jerusalém, mas também com o judaísmo marginal, como atesta a semelhança
com a comunidade de Qumran. Mas, em todo caso, a raiz desta proximidade se guia
exatamente por terem em comum o Pentateuco, pelo que vale enumerar pontos
explicitamente em comuns entre a Samaria e a Judéia: “Torá, Sábado, Sacrifício Pascal,
Pentecostes, Festa das Tendas e o Dia de Expiação”105
. Sabe-se, portanto, que o Templo
evoca sacrifício, mas, ao se verificar que em Samaria também se celebra a Páscoa,
pode-se entender que a imagem do cordeiro possui relevância para essa comunidade.
A Festa da Páscoa e o Dia de Expiação106
utilizavam para os seus ritos o cordeiro
(gado miúdo), o primeiro, ligado à experiência fundante do povo, a saída do Egito (cf.
Ex 12), e o segundo, à experiência do perdão de Deus (cf. Lv 16), também prevista pelo
calendário samaritano107
. Para o mundo samaritano o problema não era o sacrifício, mas
o lugar em que era realizado, haja vista que uma grande divergência entre eles era o “o
lugar do culto”108
, isto é, Garizim ou Jerusalém (cf. Jo 4,20). Porém, o diálogo de Jesus
com a samaritana supera este impasse e expande a compreensão do lugar do culto,
talvez exatamente porque Jesus encerraria todos os sacrifícios109
.
O episódio da saída do Egito, descrito em Êxodo, diz que Deus passou e livrou os
primogênitos de Israel da morte. É uma memória perpétua (cf. Ex 12,14); nos dias de
Jesus, tanto judeus quanto samaritanos celebravam esta memória, ambos viviam a
certas características, reconhece-se, no entanto, o caráter mais arcaico de seu calendário. Dessa forma, os
mêses não têm nome, mas são designados por números. O primeiro mês do ano religioso é aquele que o
Pentateuco chama de mês de Abib, durante o qual se celebra a Páscoa]. 102
Idem ibidem, p. 487. 103
Cf. Idem ibidem, p. 484. 104
Cf. Idem ibidem, p. 484. 105
LÓPEZ ROSAS, Ricardo; RICHARD GUSMÁN, Pablo. Evangelio y Apocalipsis de San Juan, p
106. 106
O dia do Grande Perdão deve ser celebrado no décimo dia do sétimo mês, como prescreve Lv 16,29;
23,27 e Nm 29, 1.7, já a Páscoa é prevista para o dia catorze do primeiro mês segundo Lv 23,5 e Nm
28,16. 107
Cf. BAILLET, Maurice. Le calendrier Samaritain. RB, p. 491. 108
LÓPEZ ROSAS, Ricardo; RICHARD GUSMÁN, Pablo. Evangelio y Apocalipsis de San Juan, p.
106. 109
Cf. THEISSEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus histórico: um manual. São Paulo: Loyola, 2002, p.
495-496.
28
memória da passagem de Deus, celebrada com a imolação do cordeiro. Os judeus, por
aceitarem os textos dos profetas, dão outras atribuições ao cordeiro, com mais
possibilidades interpretativas quando a ele se referem; no entanto, no texto sagrado
samaritano, a predominância é a imagem do Cordeiro Pascal, que se soma à imagem do
bode que expia o pecado do povo. No texto de Ex 12, a solicitação feita é que seja
sacrificado um cordeiro ou um bode; em Lv 16, a referência é a dois animais: bezerro,
pelos pecados do sumo sacerdote e sua família, e um bode, pelos pecados do povo. Com
isto, um gado miúdo assume os pecados de todo o povo de Israel.
Jesus, ao dialogar com a samaritana, tem consciência dos pontos de divergência110
,
mas, sobretudo, tem consciência da identidade comum entre os dois povos. Também a
comunidade cristã primitiva tem conhecimento destes pontos em comum, os quais
tornam fracos os pontos de conflitos, fazendo com que a aceitação de Jesus se torne um
elo de comunhão.
A Samaria é a primeira comunidade no corpo do Quarto Evangelho a acreditar em
Jesus111
. A fé da Samaria coleta toda a tradição da Torá e a reconhece em Jesus. No
ambiente judaico havia uma série de interpretações sobre a vinda do Messias; também
na Samaria subsistia uma esperança messiânica, inclusive suscitando, como na Galileia
e na Judeia, supostos messias. No início do 1º século d.C., houve na Samaria o
surgimento de um movimento messiânico, liderado por um “profeta samaritano”112
.
Neste movimento o fundador se fazia ver como o “Moisés redivivo”, como os
samaritanos esperavam a partir de Dt 18,15. Tal movimento parece ter encontrado
grande acolhida entre os samaritanos, pois mereceu a atenção de Pilatos, a ponto de este
massacrar o fundador e seus seguidores.
No paralelo entre o judaísmo oficial, presente no diálogo com Nicodemos (cf. Jo 3),
e o diálogo com a samaritana (cf. Jo 4), há uma expressão de fé por parte da samaritana
110
Cf. LÓPEZ ROSAS, Ricardo; RICHARD GUSMÁN, Pablo. Evangelio y Apocalipsis de San Juan, p
106. 111
Cf. KONINGS, Johan. Evangelho segundo João, p. 130: “No Evangelho de João a primeira
comunidade que acredita em Jesus é a dos samaritanos! Ora, qualificado com o título “Salvador do
mundo”, o Jesus-Messias dos samaritanos supera de longe os limites do judaísmo (o messias é salvador
de Israel).” 112
Cf. THEISSEN, Gerd. A religião dos primeiros cristãos: “uma teoria do cristianismo primitivo. São
Paulo: Paulinas, 2009, p. 59: “depois de Jesus, surgiu na Samaria um profeta samaritano que prometeu a
seus seguidores tornar acessível sobre o monte Garizim os utensílios do Templo que Moisés havia
ocultado (F. Josefo, Ant. 18,85). Algo fica evidente: aqui aparece alguém com a pretensão de ser um
Moisés redivivo e de decidir, em favor dos espaços samaritanos, a disputa entre judeus e samaritanos
quanto à legitimidade dos lugares de culto.”
29
que não se encontra no diálogo com Nicodemos113
. Ao que parece, a comunidade
joanina intenta expor a dificuldade do judaísmo oficial em aceitar Jesus, ao passo que o
mundo samaritano, com toda a herança comum aos dois povos, consegue aceitá-lo
como o cumprimento da promessa feita em Dt 18,15ss.
Diante do já exposto na relação entre samaritanos e judeus, faz-se importante
verificar que proveito pode ter a imagem do cordeiro na comunidade joanina, uma vez
que tem membros de origem samaritana e judaica. Os preceitos do Pentateuco e
algumas festas que eram de conhecimento de judeus e samaritanos trazem à comunidade
cristã primitiva a riqueza de comunhão entre estes dois grupos, e, ao que parece, a
imagem do cordeiro chega a identificar, para eles, a ação que Deus realizou em Jesus114
.
O cordeiro para a tradição do Pentateuco é um sinal115
de intervenção divina. A
memória do Cordeiro Pascal traz para judeus e samaritanos a ação de Deus que
preservou o povo da morte. Os primogênitos do Egito morreram (cf. Ex 12), mas as
casas que tinham o sangue do cordeiro não sofreram qualquer dano. A memória
perpétua desta ação fazia com que judeus e samaritanos se sentissem Povo de Deus.
Levava-os a entender o patrimônio comum, pois da passagem de Deus, que trouxe a
saída do Egito, surgiram formas de organização e celebrações memoráveis a todo o
Israel, como exemplo, Sucot, memória do deserto, e Pessah, memória da saída do
Egito116
.
Diante do patrimônio comum se reforça que o fato de Samaria ter sido ocupada por
estrangeiros após a invasão Assíria não parece ser o argumento mais forte para a
cisão117
, nem a construção de Garizim, haja vista que “Garizim não foi o único templo
113
Cf. CASTRO SÁNCHEZ, Secundino. Evangelio de Juan: compreensión exegético-existencial. 3 ed.
Madrid: Comilas, 2001, p. 105: “los samaritanos han confesado lo que era imposible para Nicodemo (3,
3-5). Y ellos han hecho realidad la afirmación del Bautista: „es preciso que él crezca y que yo disminua‟
(3,30). Su radio de acción se extiende no solo al âmbito de Israel, sino al del mundo entero: „salvador del
mundo‟ (4,42).” 114
Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de João, p. 95. 115
O ritual do cordeiro trazia a memória que as casas marcadas pelo sangue do cordeiro foram
preservadas da morte dos primogênitos, deste modo, a cada ano, a Páscoa renovava este sinal da
intervenção, isto é, a marca do sangue do cordeiro sinaliza quem pertence a comunidade eleita e a quem a
ação de Deus preserva da morte. 116
Cf. ARAUJO, Gilvan Leite. História da festa judaica das tendas. São Paulo: Paulinas, 2011, p. 11:
“as solenidades de pessach, shavuot e sucot são consideradas pelo Povo da Aliança como as principais
festas de Israel. Através delas, os israelitas celebram e transmitem a sua história.” 117
Cf. SCHMIDT, Francis. O pensamento do Templo de Jerusalém a Qumran, p. 103: “No Egito
Ptolomaico do meio do século III, uma aldeia do Fayum traz o nome de „Samaeria‟. Decerto esse nome
lhe foi dado por uma colônia samaritana que ali se instalou. Os habitantes dessa aldeia, quer judeus, quer
samaritanos, não se diferenciavam nem por seu onomástico nem por sua designação étnica: aqui como
alhures, nos papiros de Fayum uns e outros são designados como judeus: iudaioi. Em 1979, duas
inscrições samaritanas foram descobertas a menos de cem metros da sinagoga de Delos. Redigidas em
grego, suas datas se situariam entre 250 e 175 a.C. para uma e 150 a.C. para outra. Os samaritanos da ilha
30
fora de Jerusalém”118
. Com a expansão asmonéia, os ânimos se alteraram, mas, segundo
Schmidt119
, Lohse e Maier120
, uma profunda separação ocorre quando João Hircano em
128 a.C. destrói o Templo de Garizim121
, tornando a convivência dos irmãos e vizinhos
sempre mais tensa e agressiva, fazendo com que cada um vivesse a tradição cúltica e
literária de Israel com pontos em comum, e sem diálogo entre si, mas sempre marcada
pelos ritos sacrificiais, como culto da fé monoteísta.
1.1.2 Jesus como cordeiro para judeus e samaritanos no interior da
comunidade joanina
A celebração da Páscoa judaica e samaritana acontece com o sacrifício do cordeiro,
como memória da passagem de Deus. As narrativas comuns aos dois povos trazem
forte acento litúrgico e o cordeiro se torna o símbolo material daquela noite. O cordeiro,
comum aos judeus e samaritanos, ao qual essa pesquisa se refere, é propriamente o
Cordeiro Pascal, aquele que recorda a noite de preparação para a saída do Egito. Essa
liturgia traz samaritanos e judeus para a mesma origem e os possibilita participar da fé
em Jesus como o Cordeiro de Deus.
O cordeiro na tradição comum de judeus e samaritanos se configura como um
possível ponto de unidade, isto é, ver Jesus como cordeiro seria um caminho para a
convivência entre os judeus e samaritanos que aderiram à comunidade do Discípulo
Amado, havendo, assim, proximidade entre os dois grupos acerca deste tema.
Para os judeus presentes na comunidade joanina, há ainda uma particularidade: às
vezes pode parecer que a imagem do cordeiro esteja mais ligada à população de
Jerusalém, por estar lá o Templo onde se oferecem os sacrifícios, no entanto não se
pode perder de vista que também os judeus da Galileia guardavam as festas de
peregrinação, não podendo se excluir os judeus da diáspora. Os judeus da Galileia
realizavam caravanas (cf. Lc 2,41) em direção a Jerusalém na época das festas122
. O
ali se definiam como os „israelitas de Delos que oferecem essas primícias ao santuário de Garizim‟. A
localização dessas inscrições, na proximidade da sinagoga, sugere que judeus e samaritanos estavam
estabelecidos no mesmo bairro.” 118
Idem ibidem, p. 106. 119
Cf. Idem ibidem, p 109. 120
Cf. MAIER, Johann. Entre os dois testamentos, p. 56. 121
Cf. LOHSE, Eduardo. Contexto e ambiente do Novo Testamento, p. 14. 122
Cf. ARAUJO, Gilvan Leite. História da festa judaica das tendas, p. 93: “festas de peregrinação
judaicas, ou seja, pessach, fazendo memória da libertação do Egito, shavout, fazendo memória da
Lei/Aliança no Sinai, e Sucot, fazendo memória dos quarenta anos pelo deserto.”
31
Quarto Evangelho dá testemunho que, por ocasião de uma festa, alguns gregos
desejaram conhecer Jesus (cf. Jo 12), expondo, de forma enfática, que Jerusalém era o
centro cultual do judaísmo, o que leva todos os judeus a conhecerem e manterem viva a
memória das festas, inclusive da Páscoa e tudo que a envolve, como a imagem do
cordeiro.
Na Galileia123
, a pesquisa bíblica tem indagado pela vida judaica em uma terra
considerada sincrética. Muitos habitantes da Galileia não eram de origem israelita, de
forma que também os costumes se diferenciavam, todavia, na mesma Galileia persistia
forte influência teológica do Templo de Jerusalém124
, segundo Schmidt, graças à
expansão asmonéia125
. Para Horsley, Jesus e seu movimento estavam profundamente
enraizados nas tradições de judaicas126
, o que os agrupava entre os peregrinos galileus
que iam a Jerusalém para as festas127
. Também Pagola informa sobre a prática do
judaísmo na Galiléia, mesmo diante da distância geográfica,
De fato, Roma, Herodes e Antipas os tratavam como judeus,
respeitando suas tradições e sua religião. Por outro lado, as escavações
fornecem dados inquestionáveis sobre o caráter judaico da Galiléia
que Jesus conheceu. Por toda parte aparecem miqwaot ou piscinas
para as purificações: os galileus praticavam os mesmos ritos de
purificação como os habitantes da Judéia. A ausência de carne de
porco na alimentação, os recipientes de pedra ou o tipo de sepulturas
falam claramente de sua pertença à religião judaica.128
Quanto aos judeus da diáspora, eles se dirigiam a Jerusalém por ocasião das festas,
mas também em cada região estavam estabelecidas as sinagogas, o que mantinha
123
Cf. GUIJARRO OPORTO, Santiago. La tradición sobre Jesús y los comienzos del
cristianismo en Galilea. EstB. Madrid, v. 63, n. 04, 2005, p. 476. 124
Cf. HORSLEY, Richard A. Arqueologia, história e sociedade na Galiléia: o contexto social de
Jesus e dos rabis. São Paulo: Paulus, 2000, p. 157: “ao longo de sucessivas gerações, a Galiléia foi
incorporada ao estado-templo pelo sumo sacerdócio asmoneu.” 125
Cf. SCHMIDT, Francis. O pensamento do Templo de Jerusalém a Qumran, p. 112: “tratava-se
também de fazer das regiões anexadas um território que participasse da santidade do Templo e cuja
população fosse inteiramente judaica. Daí a política de judaização forçada das populações vencidas, a
entrada do judaísmo marcando-se pela adoção da circuncisão e das leis judaicas. Assim os idumeus, e sob
Aristóbulo I (104-103 ) os itureus na parte norte da Galiléia.” 126
Cf. HORSLEY, Richard A. Arqueologia, história e sociedade na Galiléia, p. 161: “Jesus e os
primeiros integrantes do seu movimento, naturais de aldeias como Nazaré, Caná, Cafarnaum e Corazim,
deviam ter suas raízes profundamente firmes nas traduções israelitas.” 127
Idem ibidem, p. 38: “o fato de que a Galiléia não estava mais sob a jurisdição política do Templo
(após a morte de Herodes Magno 4 a.C.) e dos sacerdotes de Jerusalém, levanta a questão sobre o tipo de
influência que Jerusalém pode ter tido sobre a Galiléia. Estudos sobre as peregrinações às festas no
Templo, como a Páscoa, fizeram uma avaliação exagerada do número de peregrinos em geral e dos
galileus em particular. Há evidências literárias para alguns peregrinos da Galiléia, mas os números
provavelmente baixos.” 128
PAGOLA, José Antonio. Jesus: aproximação histórica. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 52.
32
sempre presente a tradição e a memória do povo por meio do texto sagrado e a
lembrança das festas religiosas.
Como já mencionado, no culto o cordeiro passou a evocar não só a memória da
passagem, mas também uma figura expiatória (cf. Lv 16). No Dia da Expiação, o
sangue é aspergido sobre o sumo sacerdote e sobre o povo; na Páscoa o sangue é
aspergido sobre o umbral das casas. Com isto, a evocação de Jesus como Cordeiro
Pascal traz profundamente a memória do Êxodo. Aliás, segundo Mateos e Barreto, o
Evangelho segundo João está envolvido pelo projeto do Êxodo129
, ou seja, o Quarto
Evangelho retoma as raízes da fé de Israel, onde estão presentes as tribos do Norte e do
Sul.
No entender do Evangelho segundo João, o projeto de libertação iniciado na saída do
Egito é concluído em Jesus130
, o cordeiro imolado para a vida do mundo. Portanto, o
Cordeiro Pascal não só passa a ser uma identidade de cunho judaico para a comunidade
joanina, mas também dá espaço para a compreensão samaritana. Ainda que no ambiente
samaritano tenha a esperança messiânica, a partir de Dt 18,15-20, e espere o Filho de
José131
, este povo conhece bem a tradição do Cordeiro Pascal, o cordeiro que livrou os
primogênitos da morte e salvou o povo (cf. Ex 12,13), de modo que a tipologia do
cordeiro atribuída a Jesus podia contribuir para a convivência entre judeus e samaritanos
no interior da comunidade. Mas, considerando que a comunidade joanina possui sua
formação também com a presença de personagens vindos do Movimento de João
129
Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de João, p. 07: “O tema da Páscoa-aliança leva
em si o tema do êxodo e, com ele, inclui todos os temas subordinados: a presença da glória na Tenda do
Encontro ou santuário (114;2, 19-21) 19,36, o cordeiro (1,29, 19,36), a Lei (3,1ss), a passagem do mar
(6,1), o monte (6,3), o maná (6,31), o caminho do seguimento de Jesus (8,12), a passagem da morte para a
vida (5,24), a passagem do Jordão ( 10,40). Está intimamente relacionado com o tema do Messias (1,17),
que como outro Moisés, tinha de realizar o êxodo definitivo e, portanto, com o da realeza de Jesus. (1,49;
6,15; 12, 13s; 18, 33-19,22).” 130 Cf. BEUTLER, Johannes. L´ebraismo e gli ebrei nel Vangelo di Giovanni. Subsidia Biblica, Roma, v.
29, 2006, p 69: “Gesù è presentato nel quarto vangelo come un secondo Mosè, ma anche come colui che
„sorpassa‟ Mosè e ogni altro personaggio dell‟A.T. Un aspetto importante per il parallelismo tra Gesù e
Mosè è la corrispodenza tra le parole de Gesù „Ego eimi‟ e i temi dell‟ Esodo. Questo parallelismo
conferma l‟impressione che in Gesù Dio regala al suo popolo un nuovo Esodo con una nouva Pasqua e un
Sabato eterno nella Nuova Alleanza”. [tradução nossa: Jesus é apresentado no quarto evangelho como um
segundo Moisés, mas também como aquele que „ultrapassa‟ Moisés e qualquer outro personagem do A.T.
Um aspecto importante do paralelismo entre Jesus e Moisés é a correspondência entre as palavras de Jesus
„Ego eimi‟ e os temas do Êxodo. Este paralelismo confirma a impressão, de que, em Jesus, Deus oferece
ao seu povo, um novo Êxodo, com uma nova Páscoa e um Sábado eterno, na Nova Aliança.] 131
Cf. SILVA, Antonio Carlos Higino da. O Messias samaritano no Evangelho de João. Disponível
em: http://lattes.cnpq.br/7688414808630436. Acessado em 29/10/12, p, 07: “Sendo assim, associamos a
possível origem samaritana da comunidade joanina com a crença no messianismo do Filho de José como
o Taheb samaritano. Esta escolha nos conduz a ampliação do horizonte do judaísmo do segundo Templo e
das interações entre cristão e samaritanos na origem da comunidade”.
33
Batista, vale perguntar pela leitura que eles tinham do cordeiro, isto é: estando eles na
comunidade joanina, como contribuíram à imagem do cordeiro no Quarto Evangelho?
1.2 João Batista e o judaísmo do Primeiro Século
Desde revoltas a partir da ocupação helênica, a Palestina estava permeada por
movimentos judaicos132
, havendo uma diversidade de grupos e uma diversidade de
interpretações da Lei e do Culto. O Quarto Evangelho faz saber a presença de alguns
destes grupos: Sacerdotes (cf. Jo 1,19), Batistas (cf. Jo 1,35) e Fariseus (cf. Jo 3,1).
Entre estes movimentos, o de João Batista possui relação estreita com Jesus, como se
verá ao longo da pesquisa.
João Batista é um personagem conhecido pela tradição neotestamentária cuja
presença é tratada pelos Evangelhos Sinóticos, Atos dos Apóstolos e o Quarto
Evangelho133
. A origem de João Batista é um tema com diversas contribuições. Para
Meier há a possibilidade de que esteja na comunidade de Qumran134
, um movimento
judaico identificado como essênio135
. Todavia, segundo Klein, o modo de João Batista
agir pode lhe ter causado o afastamento desta comunidade136
. Para Pagola, “João era de
família sacerdotal rural”137
, não possuía nenhum mestre e rompeu com o Templo138
,
deslocando-o totalmente da comunidade de Qumran, ao contrário do que defendem
Meier e Klein. Na visão de Barbaglio, “o Batista distancia-se também dos essênios, que
formavam um grupo à parte, um Israel miniatura de puros, devindos tais pela prática da
132
Cf. THEISSEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus histórico, p. 150: “esse judaísmo foi, desde cerca de
200 a. C., tomado por uma corrente de movimentos de renovação, que se moviam no quadro das
convicções básicas comuns.” 133
Cf. URFELS, F. Le baptême a-t-il été institué par Le Christ?. NRT. Bruxelles, n. 04, 2010, p. 569. 134
Cf. MAIER, Johann. Entre os dois testamentos, p. 292-293: “A comunidade de Qumrã [em] seu
início está ligada à atuação do “Mestre da Justiça”, mas até hoje não foi possível identificar com certeza
este homem ou datá-lo[...] as escavações permitiram inicialmente a conclusão de que a construção para
fundação da Khirbet Qumran começou por volta de 130 a.C.” 135
Cf. LOHSE, Eduardo. Contexto e ambiente do Novo Testamento, p. 80: “Desde que foram
conhecidos os textos abrangentes descobertos em Qumrã, muitos pesquisadores têm defendido a tese de
que a comunidade de Qumrã era o centro dos essênios.” 136
Cf. KLEIN, Carlos Jeremias. Apontamentos sobre João Batista nos escritos não bíblicos da
antiguidade cristã. EB. Petrópolis, n. 108, 2010, p. 81: “Ildo Perondi, conta que quem visita a comunidade
de Qumran assiste, na recepção, um filme „ que informa sobre um personagem que esteve na comunidade,
mas que foi expulso por não se adaptar à comunidade. Esse personagem é identificado com o Profeta João
Batista. E se lermos os evangelhos sinóticos, vemos que os traços de João Batista (a radicalidade da sua
proposta) têm muito a ver com a comunidade de Qumran.” 137
PAGOLA, José Antonio. Jesus, p. 89. 138
Idem ibidem, p. 89.
34
lei e pelos banhos de purificação, voltados espiritualmente à próxima vinda última de
Deus”139
.
Na literatura paralela ao Novo Testamento se encontram referências a João Batista,
visto que, “tanto João Batista como Pilatos têm sua existência confirmada não só por
todos os quatro Evangelhos e Atos, mas também por Josefo”140
. O relato de Flávio
Josefo141
sobre o Batista traz traços diferenciados dos Evangelhos; Josefo recolhe a
tradição que alia a causa da morte do Batista ao medo que Herodes Antipas tinha de
uma revolta popular. Distante da tradição dos evangelistas, Josefo liga a imagem do
Batista a questões filosóficas; “em Josefo, João é reduzido a um filósofo moral popular,
ao estilo Greco-romano, com uma leve sugestão de um neopitagórico que executa
purificações rituais”142
.
Para Meier, o problema do Batista entra de cheio na pesquisa sobre o Movimento de
Jesus. Para ele, Jesus está profundamente relacionado ao Batista143
e muitos traços do
ensinamento dele estão permeados pela influência deste. Para Blanchard, no Quarto
Evangelho, o Batista é considerado como o mestre de Jesus,
O quarto evangelho ressalta o enraizamento de Jesus no batismo
administrado do outro lado do Jordão (1,28). João Batista é
apresentado não como precursor, mas como contemporâneo de Jesus e
quase como mestre. Jesus aparece inicialmente na posição de
discípulo.144
Josefo não menciona o encontro entre Jesus e João Batista, mas os evangelhos
sinóticos e o Quarto Evangelho deixam claro que Jesus e o Batista tiveram contatos.
Taylor argumenta que a particularidade de João e de Jesus pode ser vista pela atitude
dos seguidores destes145
. Aliás, Taylor, como outros autores, afirma que João não
139
BARBALGIO, Giuseppe. Jesus, hebreu da Galiléia: pesquisa histórica. São Paulo: Paulinas, 2011,
p. 197. 140
Cf. MEIER, John P. Um judeu marginal: repensando o Jesus histórico. V. II, livro 01. Rio de
Janeiro: Imago, 1996, p. 33. 141
CF. Idem ibidem, p. 33: “O relato sobre João Batista não apresenta ligação, literária e teológica, com o
relato sobre Jesus [...] ela também difere dos quatro Evangelhos (mas não contradiz formalmente) em sua
apresentação tanto do ministério de João como de sua morte.” 142
Idem ibidem, p 90. 143
Cf. Idem ibidem, p. 19-20: “Com bastante frequência, em livros sobre o Jesus histórico, cabe ao
Batista, assim como às histórias de milagres, apenas uma menção descuidada e um mínimo de atenção.
No entanto, uma das coisas mais certas que sabemos sobre Jesus é que ele se submeteu voluntariamente
ao batismo de João pela remissão dos pecados, um evento embaraçoso, que cada um dos evangelistas
tenta neutralizar a seu modo. Mas não se pode neutralizar o Batista tão facilmente. Apesar de todas as
diferenças entre os dois, alguns elementos importantes da pregação e da prática de João se introduziram
no ministério de Jesus, como a água batismal. Portanto, não entender o Batista é não entender Jesus- uma
máxima defendida na obra de alguns estudiosos em tempos recentes.” 144
BLANCHARD, Yves-Marie. São João. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 80. 145
Cf. TAYLOR, Justin. As origens do Cristianismo. São Paulo: Paulinas, 2010, p. 52.
35
constituiu propriamente um grupo de discípulos, mas que, após sua morte, alguns
buscaram viver seu estilo146
.
Em alguns textos evangélicos, o Movimento Batista aparece explicitamente como um
grupo de discípulos: no Evangelho segundo João, quando os discípulos de Jesus e de
João Batista têm um desentendimento, há uma espécie de ciúme da parte dos seguidores
do Batista (cf. Jo 3,26); outro episódio entre os dois grupos está no livro dos Atos dos
Apóstolos, quando alguns que Paulo encontra receberam o batismo de João (cf. At 19);
na literatura sinótica, em Marcos, os discípulos vão buscar o corpo de João para sepultar
(cf. Mc 6,29). Com isto se pode dizer que tanto o Quarto Evangelho como a
comunidade marcana tiveram contato com seguidores do Batista. Também o grupo
paulino encontrou em Éfeso um batismo que parecia ser ministrado por discípulos de
João.
O Movimento de Jesus e a possível identificação com o Batista ganham contornos
mais salientes ao se buscar o Batista e sua pregação. Ora, no contexto judaico do
Segundo Templo muitos eram os movimentos judaicos147
, alguns são conhecidos por
meio dos evangelhos: fariseus, saduceus, zelotes, batistas. Todos tinham a fervorosa
consciência de ser o verdadeiro Israel148
. A Lei encontrava diversas interpretações149
,
um exemplo é a comunidade de Qumran, que era formada por pessoas que a seguiam, e
se consideravam o verdadeiro Israel150
. O rito de ingresso era uma característica dessa
comunidade151
, fazendo com que os seus membros seguissem uma regra interna que os
146
Cf. Idem ibidem, p.53. 147
Cf. SAULNIER, Christiane. A Palestina no tempo de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 74:
“Josefo nos fala de três „seitas‟ (ou correntes de ideias) para depois apresentar efetivamente quatro:
fariseus, saduceus, essênios e Zelotes. De fato, é muito difícil definir esses grupos. Por um lado,
realmente o judaísmo admitia com bastante facilidade divergências consideráveis entre seus membros,
contanto que mantivessem algumas verdades essenciais.” 148
Cf. TAYLOR, Justin. As origens do Cristianismo, p. 91. 149
Cf. ARAUJO, Gilvan Leite. História da festa judaica das tendas, p. 47: “o judaísmo do segundo
Templo será fortemente influenciado pela estrita observância da Lei. Este fato acaba sendo o elemento
comum para a comunidade da restauração. Contudo, diversas correntes se chocam ao propor o modo pelo
qual a Lei deverá ser observada.” 150
Cf. TAYLOR, Justin. As origens do Cristianismo, p. 51: “A observância preceituada é definida em
termos da Lei de Moisés e do que „os profetas revelaram pelo Espírito Santo‟. A comunidade e somente
ela, tem a interpretação inspirada; somente ela é a aliança (1QS 5,8.20; 6,15) e, assim, o verdadeiro
Israel.” 151
Cf. LOHSE, Eduard. Contexto e Ambiente do Novo Testamento, p.78: “a partir do dia de admissão,
cada membro era obrigado a observar as constituições. Antes que alguém „possa aparecer à refeição
comunitária, deve fazer um juramento terrível aos membros da comunidade. Jura honrar e servir à
divindade, cumprir seus deveres com os seres humanos, jamais fazer voluntariamente mal a ninguém,
mesmo que isso lhe seja ordenado, sempre odiar os injustos e ajudar os justos e manter fidelidade a todos
e, particularmente, aos seus superiores.”
36
diferenciava dos demais membros do povo. O grupo do Batista e o Movimento de Jesus
se inserem neste cenário do Segundo Templo, em que há diversos grupos.
A multiplicidade de movimentos internos no judaísmo não se dá pela gratuita
interpretação da Lei, mas pela busca de respostas às dificuldades que surgiam e devido à
busca de fidelidade a Deus, como atesta Overman,
o período de cerca de 165 a. C. a 100 d.C. apresentou uma tendência
crescente para a facciosidade e o sectarismo. O duro tratamento dado a
muitos israelitas por seus governantes selêucidas, a crescente
influência do helenismo e sua sedução para alguns israelitas e aversão
para outros, e os abusos de governantes asmoneus posteriores foram
fatores que levaram à divisão. Entre os elementos que provocaram a
fragmentação no século I d.C. estiveram a ocupação romana, as
escolas rivais e a destruição do Templo de Jerusalém.152
Sobre o Movimento de João Batista, alguns estudiosos como Taylor, como
mencionado, e Meier não consideram que ele tenha formado propriamente um grupo de
discípulos153
, mas sua pregação levou pessoas a se aproximarem dele e a assumirem a
sua prática. A vida do Batista apresentada nos Sinóticos é singular (cf. Mt 3,1-7; Mc
1,1-8; Lc 3,1-9.15-17), identificando-se muito com a vida dos essênios que viviam no
deserto e para lá se retiravam para se dedicarem à Lei; a vida de João, sua vestimenta e
sua alimentação forçam os estudiosos a identificá-lo com um essênio, com estilo
ascético à semelhança de Qumran154
.
Lohse lembra que Flávio Josefo e Filão falam de movimentos ascéticos que “criaram
comunidades estáveis para proteger-se contra qualquer impureza”155
; tinham um estilo
de vida marcado pela obediência à Lei e não estavam próximos ao Templo, aliás, como
escreve Theissen: “o primeiro grupo que suprimiu sua participação no culto sacrificial
foram os essênios”156
, pois a teologia essênia, com grande influência apocalíptica157
,
esperava o fim dos tempos e via no sumo sacerdócio grande impureza. Theissen
considera que João Batista estava na fileira dos judeus que tinham rompido com o
152
OVERMAN, J. Andrew. O evangelho de Mateus e o judaísmo formativo: o mundo das
comunidades de Mateus. São Paulo: Loyola, 1997, p. 21-22. 153
Cf. TAYLOR, Justin. As origens do cristianismo, p. 51: “há quem conclua que, João, sendo um líder
carismático, não tinha discípulos no sentido próprio da palavra, e que só depois de sua morte alguns
grupos afirmaram pertencerem a ele, a fim de se diferenciarem do povo ou resistirem aos discípulos de
Jesus.” 154
Cf. MEIER, John. Um judeu marginal. V. II, livro 1, p. 74: “A semelhança com a dieta dos essênios
ou de Qumrã, embora não prove uma ligação institucional com João, pode, no entanto ser a chave para
seus estranhos hábitos alimentares. Na realidade o que ele comia não é tão incomum entre as pessoas que
costumam habitar regiões desérticas.” 155
LOHSE, Eduard. Contexto e ambiente do Novo testamento, p. 77. 156
THEISSEM, Gerd. A religião dos primeiros cristãos, p. 194. 157
Cf. LOHSE, Eduard. Contexto e ambiente do Novo testamento, p. 65.
37
judaísmo oficial de Jerusalém. “No anúncio de Batista está contida implicitamente [...] o
Templo vigente é impotente para oferecer o perdão efetivo dos pecados”158
.
Mesmo que João Batista receba o qualificativo de essênio, não há como o localizar
em um grupo segundo os apresentados por Filão e Josefo, pois, ao que parece, João não
se preocupava em formar159
um grupo. Ele aparece sozinho no deserto160
e tanto os
evangelhos Sinóticos como Josefo dizem que o povo ia até ele para receber o batismo
(cf. Mc 1,4-5), que é aplicado somente uma vez, ao contrário das abluções essênias161
,
que eram praticadas várias vezes para garantir a pureza.
A prática da imersão não era algo estranho ao povo israelita162
. Desde o livro de
Levítico se encontram muitas práticas de pureza (cf. Lv 11-15) que eram ritualmente
realizadas com água. O rito de imersão era também um rito de purificação comum do
povo. Taylor defende que a imersão era uma prática de adesão a um grupo religioso na
época do Segundo Templo, ou seja, “um rito de entrada em um grupo” 163
. Para o
Batista a imersão assume um caráter contestador-escatológico; a ação de purificação
vem de outro, indicando que, no tempo messiânico, Deus mesmo é quem irá garantir a
pureza ao povo.
contesterait la logique d´auto-justification des rites de purification de
judaïsme où l‟on se lave soi-même. En s‟imposant comme ministre du
baptême, il symboliserait la nécessaire intervention d‟une altetrité, et
finalement de Dieu, pour atteindre à la pureé interieure visée par les
ablutions rituelles.164
Urfels argumenta que o batismo de João possui também caráter profético. Segundo
ele, do ponto de vista profético, o Batista se alia bem aos sinais proféticos do Antigo
158
THEISSEM, Gerd. A religião dos primeiros cristãos, p. 195. 159
Cf. TAYLOR, Justin. As origens do cristianismo, p. 52: “ os evangelhos nunca o mostram [ João
Batista] organizando um grupo de discípulos, nem mesmo chamando-os pessoalmente.” 160
Cf. MEIER, John. Um judeu marginal. V. II, livro 1, p. 66-67: “A afirmação de João ter exercido seu
ministério em um „deserto‟ consta de Marcos 1, 3-34 e par., Q (Mt 11,7 // Lc 7, 24, tanto mais marcante
pois a referência é feita „de passagem‟) e implicitamente nas citações modificadas de Isaías 40, 3, pelo
Batista, em João 1,23: „ eu sou uma voz que clama no deserto, endireitai o caminho do Senhor‟. O uso
que Qumran faz de Is 40,3 para justificar sua própria presença no deserto na Judéia (1QS 8, 13-14; 9, 19-
20) e a descrição de Josefo para Bannus, „ que habitava no deserto , indicam que esse tipo de existência
no deserto era realmente adotado por alguns judeus ao tempo dos ministérios públicos de João e Jesus.” 161
Cf. SAULNIER, Christiane. A Palestina nos tempos de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 82. 162
Cf. CARRA, Elvécio de Jesus. Os movimentos políticos na época de Jesus: sobre a validade da
conflitividade como chave de leitura para compreensão atual da mensagem de Jesus. 2002, p. 38.
Dissertação (Mestrado em Teologia) Pontifícia faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, São
Paulo. 163
TAYLOR, Justin. As origens do cristianismo, p. 49. 164
URFELS, F. Le baptême a-t-il été institué par le Christ?, NRT, p. 571. [tradução nossa: contestaria a
lógica da auto-justificação de ritos de purificação do judaísmo em que se deve lavar-se a si mesmo.
Impondo-se como ministro do batismo, o mesmo simbolizaria a necessária intervenção de uma alteridade
e, finalmente, a intervenção de Deus, esperando a pureza interior visada pelas abluções rituais.]
38
Testamento, que não se situavam no judaísmo oficial, mas ficavam à sua margem165
,
causando choque e estranheza ao judaísmo oficial, tal como nos revelam as perguntas
que são feitas a João no Quarto Evangelho (cf. Jo 1,19-22). As autoridades têm
dificuldade para decifrar quem seja João Batista, não sabem se é o messias ou um
profeta; em todo caso, a sua pregação, transmitida pelos evangelhos, expõe sua missão e
sua relação com o Movimento de Jesus; nos sinóticos (cf. Mt 3,3; Mc 1, 3-4; Lc 3,3-4) e
no Evangelho segundo João, ele é caracterizado como a voz que clama no deserto (cf.
Jo 1,23), preparando os caminhos do Senhor.
1.2.1 O Movimento de João Batista e sua relação com Jesus no Quarto
Evangelho
João Batista prega o batismo para o arrependimento dos pecados e requer que o
arrependimento seja verdadeiro para que aconteça a justiça. No Quarto Evangelho, ele
identifica sua missão a partir de Is 40,3, indicando que ele prepara o caminho para o
Messias. A respeito da vinda do Messias, a delegação de Jerusalém, que vai a João (cf.
Jo 1,19ss) revela que, no mundo de João Batista e de Jesus166
, corria uma esperança
messiânica, havendo uma inquietação pela vinda do Messias, seja dos que nela
acreditem ou rejeitem.
Segundo Scardelai, “é reconhecida a ausência de uma doutrina monolítica do
messianismo judaico”167
, mas o interrogatório que sofre João Batista indica que a sua
pregação alimentava uma proposta messiânica na Palestina de João e Jesus. Diz
Scardelai,
a expectativa messiânica judaica é um fenômeno diversificado,
emergente de um ambiente sociopolítico singular tenso, ligado à
Palestina do Império Romano. Consequentemente, as expressões
messiânicas também foram diversificadas.168
O Quarto Evangelho apresenta João não propriamente como um precursor, mas,
sobretudo, como uma testemunha do messianismo de Jesus169
. Ele se apresenta como a
voz, aquele que prepara o caminho (cf. Jo 1,23), de modo que o centro de sua pregação
165
Cf. Idem ibidem, p. 569. 166
Cf. MOLONEY, Francis J. The Gospel of John. V. IV, p. 52. 167
SCARDELAI, Donizete. Jesus e os messianismos de Israel. EB, Petrópolis, n. 99, 2008, p. 12. 168
Idem ibidem, p. 09 169
Cf. SÁNCHEZ NAVARRO, Luís. Estructura testimonial del Evangelio de Juan. Bib, Roma, v. 86,
fasc. 04. 2005, p. 515.
39
no Quarto Evangelho é o próprio Cristo. Por isso, ao responder ao interrogatório ele não
se deixa confundir com o Messias.
A problematização de João como testemunha de Cristo ganha grandes debates; para
Meier “João foi um judeu independente [...] e que talvez tenha estado em contado
pessoal com Jesus de Nazaré apenas uma vez”170
, mas o Movimento de Jesus teria tido
grande contato com o Movimento de João Batista e alguns do grupo de João teriam
ingressado no grupo de Jesus já na primeira hora e, assim, o discurso de João ganha
relevância não só por uma possível contenda entre os seguidores de Jesus e os de João
Batista171
, mas também por haver membros no grupo de Jesus que vieram do grupo de
João (cf. Jo 1,35-37).
Meier defende que o seguimento a João Batista ganhou maior vitalidade após a sua
morte172
, pelo que os seus seguidores rejeitaram o comportamento dos discípulos de
Jesus. Para sanar dúvidas sobre o ministério de João e o ministério de Jesus, o Quarto
Evangelho não se ausenta em apresentar o ministério do Batista como um testemunho
em favor da messianidade de Jesus173
.
O fato de João ser testemunha de Jesus informa que sua pregação não é oriunda do
judaísmo oficial; os que foram ter com João, interrogá-lo, vieram de Jerusalém (cf. Jo
1,19-23) e estavam possivelmente ligados ao poder central, revelando que a postura do
Batista causava desconfiança às autoridades, tal como atesta Josefo174
. Para Theissen,
tanto João como o Movimento de Jesus se inserem entre os movimentos que criticavam
a maneira que o Templo era administrado e centralizado175
.
A pregação de João e o seu movimento se encontram “fora das instituições
judaicas”176
de sua época, e no lugar do Templo ele oferece o perdão177
; no
oferecimento do perdão se insere o rito do batismo e o anúncio de Jesus como “cordeiro
que tira o pecado do mundo” (cf. Jo 1,29).
170
MEIER, John. Um judeu marginal. V. II, livro 1, p. 36. 171
Cf. Idem ibidem, p.36 172
Cf. Idem ibidem, loc. Cit. 173
Cf. SILVA, Marciano Monteiro da. O testemunho de João Batista. EB, Petrópolis, n. 108, 2010, p. 65:
“O próprio João não atribuía a si mesmo nenhuma função que pudesse trazer a centralidade das atenções
sobre sua pessoa[...]o Batista é apenas testemunha precursora e Aquele que vem após ele é o que deve
revelar-se, o Messias.” 174
Cf. MEIER, John. Um judeu marginal. V. II, livro 1, p. 85. 175
Cf. THEISSEM, Gerd. A religião dos primeiros cristãos, p. 194. 176
CARRA, Elvécio de Jesus. Os movimentos políticos na época de Jesus: sobre a validade da
conflitividade como chave de leitura para compreensão atual da mensagem de Jesus. 2002, p. 38.
Dissertação (Mestrado em Teologia) Pontifícia faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, São
Paulo. 177
Idem ibidem, p. 39.
40
A proposta de João Batista é um tanto desconcertante, mas não exclusiva. Os
essênios são marcados exatamente por um distanciamento do Templo178
. Contudo, o
mundo judaico da Palestina do Segundo Templo estava profundamente marcado pelo
conceito sacrificial e pela figura central do Templo de Jerusalém desde a Reforma de
Josias179
. Portanto, seria difícil considerar que algum grupo judeu se desligasse
facilmente da ideia de culto sacrificial, o que é confirmado pelos documentos de
Qumran, pelo discurso de João Batista no Quarto Evangelho e também pela releitura
que a comunidade de Jesus fez do Templo180
.
A João pode ser atribuída a busca de um culto puro. Ele era crítico com o Templo,
mas sua saudação (cf. Jo 1,29) indica que aguardava o culto puro, que expiaria Israel de
seus pecados. Todavia, no judaísmo oficial, a norma era ter no Templo o lugar do
sacrifício, de modo que uma proposta diferente gerava desconfiança, tal como se mostra
no interrogatório feito a João Batista (cf. Jo 1,24ss).
Ratzinger lembra que
para o judaísmo, a cessação do sacrifício, a destruição do Templo
haveria de ser um choque tremendo. Templo e sacrifício estão no
centro da Torá. Agora deixava de haver qualquer expiação no mundo,
nada que pudesse contrabalançar a sua crescente inquinação em
consequência do mal.181
A colocação de Ratzinger expõe o que significavam o Templo e o sacrifício para o
judeu palestinense, e para os judeus da diáspora que peregrinavam a Jerusalém por
ocasião das festas. Contudo, a respeito da relevância do Templo no Primeiro Século, é
possível encontrar interpretações como as de João Batista e de Qumran; eles
partilhavam a esperança de um culto purificado, por isso romperam com o sumo
sacerdócio. Era uma esperança vivida por outros grupos judaicos, haja vista, a
comunidade autora de Os salmos de Salomão e a comunidade que está por trás de
1Enoque. “As pessoas [das] comunidades dissidentes entendem-se como os verdadeiros
178
Cf. THEISSEM, Gerd. A religião dos primeiros cristãos, p. 194: “O primeiro grupo que suprimiu
sua participação no culto sacrificial foram os essênios. Eles consideravam o Templo de Jerusalém como
impuro. Flávio Josefo narra que eles enviavam para lá apenas ofertas sagradas. Isso ainda não era
fundamentalmente nenhuma recusa do culto sacrificial. A esperança de uma retomada de um culto puro
permanecia.” 179
Cf. DE VAUX, Roland. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2004,
p. 376. 180
Cf. SARASA GALLEGO, Luis Guillermo. La filiación de los creyentes en el Evangelio de Juan.
Bogotá: D.C., 2009, p 341: “Jesús, en el EvJn, se a presentado como quien sustituye continuamente. En
Caná se sustituye las purificaciones de los judios; en Jerusalén, el Templo es sustituído con el cuerpo del
resuscitado; en Samaria se sustutuye el lugar del Templo.” 181
RATZINGER, Joseph- BENTO XVI. Jesus de Nazaré: da entrada em Jerusalém até a ressurreição.
São Paulo: Planeta do Brasil, 2011, p. 42.
41
seguidores e o verdadeiro povo de Deus”182
, o que lhes causava um distanciamento do
culto oficial e alimentava a esperança da purificação do culto.
Tanto para Qumran como para João, as pessoas necessitavam de purificação em
preparação ao tempo escatológico. Contudo, a mediação não era centrada no Templo de
Jerusalém, havendo assim uma alteração de mediação: para o judaísmo oficial, o que
purifica é um conjunto de ritos e o sacrifício no Templo; para João, o batismo se insere
como um rito de purificação em vista da espera do Messias; para Qumran, as constantes
abluções e outras exigências os deixavam prontos para a batalha contra o mal183
. No
Quarto Evangelho, João, como testemunha de Jesus, realiza um batismo provisório, que
prepara o tempo messiânico184
.
Tendo o Batista, segundo Pagola, raízes em uma família sacerdotal rural185
, é
provável que ele trouxesse uma esperança na restauração do culto em Israel, deste
modo, a figura do cordeiro não lhe é algo estranho, mas pelo contrário, assume a
teologia do Êxodo, o que contempla a menção ao Cordeiro de Deus, referida a Jesus.
Vale também ressaltar que a declaração de João só encontra lugar no Quarto Evangelho,
reforçando a teoria que coloca discípulos de João Batista no grupo de Jesus. Diante
disto, o anúncio do Batista também encontra relevância por dar sentido ao movimento
migratório: do grupo de João ao Movimento de Jesus.
Meier considera que o Movimento de João foi o ponto inicial da vida pública de
Jesus186
. Na convivência, os que estavam com João conheceram Jesus e passaram a
segui-lo. No entanto, tudo parece muito simples, mas não resolve o fato de, no texto
joanino, o Batista ser uma testemunha de Jesus, isto é, estar para o crescimento de Jesus
(cf. Jo 3, 30), reconhecendo-o como o Cordeiro de Deus.
Diz Meier, que os “mais importantes discípulos de Jesus primeiro dedicaram sua
fidelidade ao Batista”187
. No Quarto Evangelho, os discípulos de João estiveram com
Jesus quando ele estava na cena com o Batista (cf. Jo 1,35-37), o que deixa claro que o
testemunho de João foi crucial para que alguns de seus discípulos passassem a seguir
Jesus. O Evangelho joanino narra uma contenda quanto ao batismo: o grupo de Jesus
182
OVERMAN, J. Andrew. O evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p. 24. 183
Cf. SCHMIDT, Francis. O pensamento do Templo de Jerusalém a Qumran, p. 149: “a organização
da comunidade, como acampamento do deserto, não só lhe sustenta o distanciamento do Templo, mas a
coloca em marcha para os tempos glorioso-escatológicos.” 184
Cf. URFELS, F. Le baptême a-t-il été institué par le Christ?. NRT, p. 574. 185
Cf. PAGOLA, José Antonio. Jesus, p. 89. 186
Cf. MEIER, John. Um judeu marginal. V. II, livro 1, p. 162. 187
Cf. Idem ibidem, p.165.
42
está batizando e o grupo de João reclama, mas o evangelista não deixa de expor esta
tensão como mais um testemunho a favor de Jesus188
.
O Batista ao anunciar que Jesus é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo
(cf. Jo 1,29), está possivelmente fazendo um anúncio messiânico, pois a Apocalíptica
judaica nutria a imagem de um cordeiro-messias189
, mas a afirmação não se encerra
nesta perspectiva, posto que possa reunir também a tradição do Cordeiro Pascal, aquele
que é usado no sacrifício da memória da libertação e ainda o cordeiro do rito expiatório,
que celebra o perdão de Deus. Todavia, há mais problemas nesta afirmação, pois existe
a associação do termo utilizado por João, como sendo traduzido servo por cordeiro, o
que daria ao Batista o texto de Isaías como fonte (cf. Is 53,7).
No anúncio de João Batista, o que ganha relevância é que João, apesar de não estar
associado ao Templo, de viver no deserto, não perdeu de vista que Israel espera o dia do
sacrifício verdadeiro, razão pela qual a teologia do cordeiro, em suas diversas
particularidades, não estava distante do Batista e tampouco de seus discípulos. Portanto,
o anúncio de João não entra em choque, seja com samaritanos, com judeus palestinenses
ou com judeus da diáspora que formaram a comunidade do Discípulo Amado, havendo,
pois uma releitura do ministério de Jesus em relação à teologia do cordeiro.
Na busca de passos mais largos sobre o cordeiro na tradição de Israel e sua
relevância para a comunidade do Discípulo Amado, são cabíveis uma passagem pela
analogia servo e cordeiro no texto de Is 53,7 e procurar na pesquisa bíblica, quais são as
luzes para a construção desta teologia no Evangelho segundo João.
1.3 A profecia e João Batista
A tradição neotestamentária e a patrística atribuíram a João Batista contornos
proféticos, inclusive reconhecendo-o como o último dos profetas, mas, sobretudo, na
tradição sinótica é aquele que realiza o batismo de conversão (cf. Mt 2,7-12; Mc 1,4; Lc
3,16) e anuncia que o Messias está próximo190
.
Segundo o livro de Malaquias (cf. Ml 3,22-24), antes do Dia da Ira do Senhor, viria o
profeta Elias para propor um caminho de conversão a Israel, chamando o povo a se
188
Cf. DODD, Charles H. A interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Editora Teológica, 2003,
p. 308. 189
Cf. LEÓN-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. V. I, p. 137. 190
Cf. ROSSI, Luiz Alexandre Solano. De Malaquias a João Batista: a volta de Elias. EB. Petrópolis, n.
108, 2010, p. 11.
43
afastar da iniquidade, para seguir os mandamentos de Deus. Esta tradição estava viva no
judaísmo da época de Jesus e uma das constatações é o quadro de perguntas que é
dirigido a João no Quarto Evangelho, uma das perguntas feitas é se João é Elias (cf. Jo
1,19-21). O texto de Malaquias está no século V a.C.191
, indicando que esta tradição já
tinha estrutura sedimentada no corpo religioso do Israel do Primeiro Século, pois no
apêndice expõe a Lei e a Profecia, como entidades caras ao judaísmo palestinense.
Portanto, perguntar se João Batista é Elias não é algo exclusivo da tradição cristã, mas
se apresenta como algo possível no judaísmo do Primeiro Século.
O Batista com seu discurso e seu modo de vida se identifica com um “profeta
escatológico”192
, com estilo ascético semelhante a Elias, aquele profeta que antecederia
a vinda do Messias.
A tradição profética possui várias expressões, não havendo uma uniformidade. A
comunidade cristã logo se identificou mais com a tradição isaiânica, seja em Lucas, com
referência à concepção de Jesus (cf. Lc 1, 26ss), ou em Mateus, com o rebento de Davi
(cf. Mt 1,1), e todos os evangelistas com a tradição do Servo Sofredor para ler a Paixão
de Jesus. No Evangelho joanino, a pesquisa presente busca verificar se a proclamação
do Batista em Jo 1,29 tem raízes no profeta Isaías, aliás, para Beutler, está claro que a
designação de Servo a Jesus, encontra grande espaço no Quarto Evangelho:
Si deve dire che la „realtà‟ del Servo di Dio ha un ruolo importante nel
Vangelo di Giovanni. Anzi, il Servo sofferente sembra costituire una
cornice per la parte narrativa del vangelo, prima della Passione,
iniziando dalla doppia qualifica di Gesù come „agnello di Dio‟ da
parte del Battista in Gv 1,29.36 sino al capitolo 12, versetti 20-43,
dove la teologia del Servo è dominante[...]la figura del Servo di Dio
appare nel Libro d´Isaia in quattro testi: Is 42,1-10; Is 49,1-7; Is 50,4-
11; Is 52, 13-53,12.193
O livro de Isaías, segundo a pesquisa bíblica, não possui somente uma autoria, mas
uma Escola, sendo dividido em Primeiro, Segundo e Terceiro Isaías. A coleção dos
Cânticos do Servo Sofredor se encontra no Segundo Isaías (cf. Is 40-55). O Segundo
Isaías possui uma leitura da soberania de Deus e sua misericórdia. Reimer diz que nesse
191
Idem ibidem, p. 12 192
Cf. Idem ibidem, p. 15. 193
BEUTLER, Johannes. L´ebraismo e gli ebrei nel Vangelo di Giovanni. Subsidia Biblica, 2006, p. 76. [tradução nossa: deve-se dizer que a „realidade‟ do Servo de Deus tem um papel importante no
Evangelho de João. Aliás, o Servo sofredor parece constituir uma moldura na parte narrativa do
evangelho, antes da Paixão, iniciando pela dupla qualificação de Jesus como „cordeiro de Deus‟ por parte
do Batista em Jo 1, 29.36 até ao capítulo 12, versículos 20-43, nos quais a teologia do Servo é dominante
[...] a figura do Servo de Deus aparece no Livro de Isaías em quatro textos: Is 42,1-10; Is 49,1-7; Is 50,4-
11; Is 52, 13-53,12.]
44
“bloco fala-se da consolação ao Israel deportado, da compaixão de Javé e também se
expressam críticas não mais sociais, mas religiosas”194
; com esta informação Reimer
abre a compreensão para os destinatários do Segundo Isaías: primeiro, é um livro para
os que sofreram a deportação, depois são pessoas que buscam uma alternativa à
proposta religiosa da época.
Colllins considera que o Segundo Isaías foi escrito no final do exílio e já tinha
conhecimento dos avanços do rei Ciro sobre a Babilônia, por isto pode celebrar a
libertação. A celebração é apresentada como um Novo Êxodo, como um marco na
exposição da soberania do Senhor sobre os deuses babilônicos e, como ulteriormente
será exposto, o Servo entra em cena com um sentido expiatório195
.
Nos quatro poemas do Servo Sofredor a identificação com personagens bíblicos é
inevitável. Contudo, o que se acentua é que o culto expiatório, antes realizado por
animais, agora é assumido por uma figura humana. Há uma novidade: o que era impuro,
alguém flagelado, considerado pecador, sofredor (cf. Dt 7,15; 28,59), carregou sobre si
as nossas culpas196
. O que diz Reimer sobre a crítica religiosa encontra aqui
plausibilidade, pois o Servo é exposto como alguém impuro (cf. Lv 17-26), mas é ele
que sofre por Israel, lembrando o sentido sacrificial e expiatório que está presente no
culto israelita. A crítica religiosa coloca os textos do Servo Sofredor dentro do período
persa, quando a comunidade que retorna a Israel enfatiza a Lei da Pureza como
identidade do povo, impondo sérias sanções ao seu descumprimento (cf. Esd 7,26).
Levando em consideração que o Segundo Isaías é atribuído a um grupo de sacerdotes
levitas, que foi vítima da segunda deportação; lançado em trabalhos semiescravos e, no
retorno, sofreu o descaso da elite197
, é natural que tivesse críticas a fazer ao sistema
político e religioso e, do mesmo modo, é natural que tivesse consciência da vida cultual
da tradição de Israel. Assim, não seria estranho encontrar no Segundo Isaías a
valorização da função do cordeiro, ainda que assumida por uma pessoa, por um grupo.
O que seria retomado no Primeiro Século, e possivelmente, presente no Movimento de
João Batista e no Movimento de Jesus.
194
Cf. REIMER, Haroldo. Segundo Isaías: Is 40-55. EB. Petrópolis, n. 89, 2006, p. 11. 195
Cf. BERGANT, Dianne; KARRIS, Robert J. (Orgs). Comentário Bíblico. V. I, p. 15. 196
Cf. Idem ibidem, p. 38: “A importância desta passagem vai além da identificação histórica do Servo.
Apresenta um modelo de devoção que admite que o sofrimento possa ter um propósito positivo. Como
tal, rompeu com uma longa tradição bíblica que considerava o sofrimento castigo pelo pecado.” 197
Cf. Idem ibidem, p. 14.
45
1.3.1 A tradição do Servo Sofredor no Primeiro Século
O Cântico do Servo Sofredor encontrou grande acolhida no Israel do Primeiro
Século, conforme se assevera nas descobertas de Qumran e aparentemente se atesta na
afirmação de João Batista sobre Jesus em Jo 1,29. Isaías fez uma aplicação da função do
cordeiro a uma pessoa: a função expiatória é assumida por um servo, que é semelhante
ao “cordeiro levado ao matadouro” (cf. Is 53,7). O Segundo Isaías lega a Israel a figura
de uma pessoa que carrega por seu sofrimento um sentido expiatório-libertador.
A analogia feita em Is 53,6-7 deixa clara a consciência que o profeta tem sobre o
culto e sobre a pureza, no entanto, há uma substituição: o Servo é comparado ao
cordeiro, é o expiador. A analogia com o cordeiro em Isaías abre a possibilidade para
um Messias sofredor; pelo seu sofrimento ele cumpriria uma das funções messiânicas:
perdoar os pecados. O que, segundo Dodd, cumpriria, mesmo sem o sofrimento, pois
uma das funções do Messias judeu é tirar o pecado do mundo198
.
O servo vive claramente uma experiência de sofrimento, o que, no geral, destoa da
teologia oficial no tempo de Jesus e João Batista; no servo estava embrionária a ideia da
existência de um Messias sofredor, que inclusive não parece algo estranho a todo o
judaísmo palestinense. Aliás, o messianismo conhecia desde a espera de um Messias
davídico a um que sofreria a morte. O Messias sofredor, segundo Scardelai199
, nasce
dentro das experiências de frustração e rompimentos. Neste contexto, a experiência
pedia uma releitura da esperança messiânica à luz de fatos dolorosos. Citado por
Scardelai, Knohl menciona que Qumran, antes dos cristãos, já tinha a teologia de um
Messias sofredor a partir dos cânticos do Segundo Isaías200
. A teologia de um Messias
oferecido em sacrifício pelo povo já se encontra em movimentos anteriores ou paralelos
ao Movimento de Jesus, de modo que a afirmação de João Batista ganha novo contorno
e, ao mesmo tempo, Is 53 ganha visibilidade nas experiências de frustrações e
debilidades de Israel201
.
198
Cf. DODD, Charles H. A interpretação do Quarto Evangelho, p. 314: “dar cabo do pecado é uma
função do messias judeu.” 199
Cf. SCARDELAI, Donizete. Jesus e os messianismos de Israel. EB, p. 18: “o clima social tenso pode
ter gerado um „modelo de messias catastrófico‟, apoiado na interpretação de textos bíblicos. Em
ambientes socialmente caóticos como esse, novas crenças em torno de um messias sofredor, e até de um
messias morte podem ter emergido como forma de compensar a desilusão e a perda de expectativas da
nação judaica sob o domínio estrangeiro.” 200
Cf. Idem ibidem, p. 18. 201
Idem ibidem, p. 18: “Os famosos „cânticos do Servo Sofredor‟, do Segundo Isaías, foram usados mais
tarde pelos primeiros cristãos, para iluminar o sentido da morte redentora de Jesus na cruz. Para Knohl,
46
O Segundo Isaías fala de um servo que sofrerá e expiará os pecados do povo,
todavia, alguns autores esforçam-se por associar, pela pesquisa lingüística, a fala de
João Batista em Jo 1,29 ao profeta Isaías. A saber, o Quarto Evangelho, em tradição
remota, para Dautzenberg202
, teria emprestado do aramaico o termo talya, que quer
dizer „cordeiro‟, „menino‟, e „servo‟; com esta possibilidade semântica, o texto joanino
estaria diretamente ligado à substituição sacrificial, pois talya indica também o Cordeiro
Pascal, segundo Dautzenberg. Jeremias, por sua vez, argumenta que o entendimento de
Jesus como cordeiro está originariamente na locução talja de‟laha203
, do aramaico, que
deu origem no grego a amnos tou Teou, isto é, Cordeiro de Deus204
. Blanchard
argumenta que a dificuldade de clareza quanto ao uso de servo ou cordeiro, encontra-se
no fato de servidor, em hebraico, talèh, estar próximo a talja, jogo de palavras que
levou a comunidade joanina a transmitir a afirmação do Batista como amnos, ao invés
de diakomiste205
.
Caso a indicação do Batista tenha suas bases em Is 53,7, cria-se uma dificuldade,
pois o profeta veterotestemantário não utiliza o termo cristhós mas ´ebed e kebes, isto
é, servo e cordeiro, o que leva a crer que a evolução para um Messias sofredor foi um
processo vivido bem posteriormente à escrita de Isaías. No entanto, vale considerar que
o conjunto da obra expõe o Espírito do Senhor sobre o servo, haja vista que, em Is
42,1(eis o meu servo, o meu eleito, em quem tenho prazer. Pus sobre ele meu espírito) o
servo conta com o Espírito de Deus206
. Os essênios ao lerem Isaías viram no quarto
cântico o mesmo personagem sobre quem pousou o espírito, o ungido, de modo que os
primeiros passos para a teologia do Messias sofredor já estavam dados. Com isto, a fala
de João Batista já introduz, no início do Evangelho segundo João, a missão messiânica
de Jesus.
porém, a comunidade de Qumran já se havia apropriado dos textos proféticos do „servo sofredor‟ para
descrever a crença no messias.” 202
Cf. DAUTZENBERG, G. amnós- cordero. In: DENT. Salamanca: Sigueme, 1996, p.211. 203
Cf. JEREMIAS, J. amnós. In: GLNT. V I. Brescia: Paideia, 1965, p. 921: “Nella comunità Cristiana le
parole del Batista assunsero un nuovo significato allorché Giovanni, ovvero la tradizione che egli aveva
presente, tradusse talja´ de´laha con e raffigurò Gesù come il vero agnelo Pasquale.”
[tradução nossa: Na comunidade Cristã, a palavra do Batista assumiu um novo significado, no momento
em que João, ou bem, a tradição que ele tinha presente traduziu talja´ de´laha como e
representou Jesus como o verdadeiro cordeiro Pascal.] 204
Cf. Idem ibidem, p. 917-925. 205
BLANCHARD, Y. Cordeiro de Deus. In: DCT. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2004, p. 461. 206
Cf. SILVA, Valmor da. Eis meu servo: leitura do primeiro canto do Servo Sofredor, segundo Is 42, 1-
7. EB. Petrópolis, n. 89, 2006, p. 47-48.
47
1.3.2 A saudação do Batista e o ministério expiatório de Jesus
Pela tradição profética que o marcou, a afirmação de João Batista não
necessariamente seria posterior à Páscoa, isto é, uma elaboração teológica pós-pascal,
mas, pelo contrário, ao menos em parte, possui todo um contexto que possibilita ser
próprio do Batista esperar e anunciar um Messias que reestabeleceria o culto puro e
verdadeiro em Israel.
Não parece estranho à tradição de Is 53 o conhecimento de um Cordeiro Pascal, de
um cordeiro expiatório, mas é estranho expor uma pessoa como aquele que expia os
pecados de Israel. Todavia, o Quarto Evangelho, ao coletar a tradição da afirmação do
Batista, parece estar dando sustentação à teologia do sacrifício em Jesus e, ao mesmo
tempo, a uma nova teologia da expiação.
O cordeiro em Isaías carrega o pecado de Israel, já a declaração de João Batista diz
que Jesus tira o pecado do mundo. Portando, o indicativo do Quarto Evangelho é mais
amplo, a função expiatória do Cordeiro de Deus tem maior alcance, o que contrasta com
a perspectiva cultual de Isaías e do judaísmo no tempo de Jesus, pois ambos pareciam se
referir unicamente ao povo de Israel e não ao mundo.
Buscando a proclamação Batista e a relação com Is 53, pode-se entender que a
comunidade do Discípulo Amado faz a assimilação de servo por cordeiro na busca de
aliar, desde o início do Evangelho, a imagem de Cordeiro Pascal e de Servo de Deus.
Trazendo, em Jesus, a confluência das funções: expiatória e pascal. Aceitas tanto por
judeu-cristãos como pelo judaísmo marginal de João e o mundo samaritano. Com isto, a
fala do Batista não perde sentido, mas é modelada por uma leitura cristã.
Na perspectiva de Is 53 há uma superação da teologia da pureza, pois o servo assume
as culpas, é impuro, havendo, pois, no último Cântico do Servo, uma superação da
compreensão corrente sobre pureza. Segundo Collins,
a importância desta passagem vai além da identificação histórica do
Servo. Apresenta um novo modelo de devoção que admite que o
sofrimento possa ter um propósito positivo. Como tal, rompeu com
uma longa tradição bíblica que considerava o sofrimento castigo pelo
pecado.207
O sofrimento e inocência do servo são contemplados em Jesus, e assimilados pela
tradição cristã208
, tendo em vista que todos os evangelistas, ao olharem a Paixão de
207
BERGANT, Dianne; KARRIS, Robert J. (Orgs.). Comentário Bíblico. V. I, p. 38. 208
Cf. PAGOLA, José Antonio. Jesus, p. 490-492.
48
Jesus, fizeram-no dentro desta perspectiva, encontrando em Isaías um de seus
fundamentos. Sobressaindo, porém, o Quarto Evangelho, por expor o Batista como uma
testemunha da entrega redentora de Jesus. Segundo Ratzinger, a palavra de João Batista
se torna incompreensível em um primeiro momento, parece até mesmo não haver
clareza se a fala faz alusão à Páscoa de Ex 12, Lv 9 ou Lv 16, e ainda ao servo de Is 53.
No entanto, lembra Ratzinger que em Jo 19 há
uma recordação tácita dos inícios da história de Jesus, daquela hora
em que o Batista dissera: „ eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado
do mundo (Jo 1,29). Aquilo que então devia permanecer ainda
incompreensível – era apenas uma misteriosa alusão a algo do futuro-
agora é realidade. Jesus é o Cordeiro escolhido pelo próprio Deus. Na
Cruz, Ele carrega o pecado do mundo e „tira-fora‟.209
O testemunho do Batista é confirmado somente na cruz, mas, por outro lado, tal
testemunho só é possível em virtude do legado de Is 53, pois o texto construído em
experiência de dor e de crítica religiosa traz para a época de Jesus grande possibilidade
de reflexão, seja para os essênios em Qumran, seja também para os cristãos, visto que
ambos não se diferenciavam do judaísmo oficial por ser um não-judaísmo, mas, ao
contrário, buscavam a fidelidade ao patrimônio da fé judaica.
Ao sofrimento da época, diante da dominação romana e do peso de correntes
legalistas, “o cristianismo primitivo quis oferecer a solução dos problemas fundamentais
do Israel de sua época”210
. Neste propósito, a comunidade joanina viu a teologia do
Servo Sofredor e aplicou-a já na semana inaugural do ministério de Jesus.
De modo geral, o Servo Sofredor é contemplado na Paixão de Cristo, e no Quarto
Evangelho a proclamação do Batista demonstra quem é Jesus já na semana inaugural de
seu ministério, expondo a seus ouvintes a origem de Jesus. João Batista logo em seguida
fala do que aconteceu no batismo de Jesus e revela sua pré-existência (cf. Jo 1,30-35);
mas já na evocação isaiânica se encontra uma leitura da origem do servo; no Segundo
Isaías o servo é de Deus: “eis o meu servo”(Is 42,1). Assim, a analogia expiatória
lançada sobre o sofrimento do servo é feita em virtude de Deus ter dado um servo
expiador. Em Is 52,13 o sucesso do servo é alcançado na medida de sua fidelidade, seu
êxito é carregar os pecados da multidão. Este é o êxito do cordeiro expiador, levar os
pecados, o que ele não faz por si só, mas é apresentado, ofertado pelo próprio Deus211
.
209
RATZINGER, Joseph- BENTO XVI. Jesus de Nazaré, p. 203-204. 210
MAIER, Johann. Entre os dois testamentos, p. 302. 211
Cf. GODOY, Edvilson de. O sacrifício de Cristo: abordagem a partir de René Girard e Raymond
Schwager. São Paulo: Palavra e prece, 2012, p. 107.
49
Léon-Dufour recorda que a fala do Batista coincide de certa forma com Isaías
também na oferta do cordeiro, ou seja, nos cânticos do Servo em Isaías, o servo é de
Deus212
(eis o meu servo- cf. Is 52,13); na proclamação de João, o genitivo de Deus não
coincide com o subjetivo, divino, de tal forma que não se pode substituir por - “eis o
cordeiro divino”, mas de fato João fala “eis o cordeiro de Deus”, indicando, que o
cordeiro é de Deus. O cordeiro joanino assume a função expiatória exatamente por ser
uma oferta de Deus para perdoar os pecados213
.
Levando em consideração a sintaxe da frase, Dautzenberg argumenta que a
afirmação de João Batista está passível de uma analogia à pré-existência e em referência
à morte expiatória de Jesus, pois, o que João diz, faz com que a pessoa de Jesus assuma
a imagem como um ato de verdade, isto é, ele passa a ser não uma referência ao
cordeiro, mas o cordeiro, ele cumpre o que está designado214
, evidenciando a lucidez da
fala de João, que possuía também, clara alusão ao sacrifício expiatório de Jesus.
Seja como cordeiro dado por Deus, segundo León-Dufour, ou como realidade em si
mesma, segundo Dautzenberg, a fala do Batista contempla a tradição do cordeiro e a
tradição do servo. Todavia, a locução do Batista abre para a referência a Isaías ainda
uma questão: o servo „carrega‟ o pecado, já o cordeiro do Batista „tira‟ o pecado. No
212
Cf. LEÓN-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. V. I, p. 135. 213
Cf. MOLONEY, Francis J. Belief in the Word: reading John 1-4.Minneapolis: Fortress press, 1993,
p. 65: “perhaps we need to look further than the Passover lamb to the whole of the ritual practice of Israel,
where the lamb was used both for the sacrificial rites of communion and reconciliation after sin. Through
the use of the lamb, the people of Israel established and renewed their union with God and among
themselves after having sinned. Jesus is now presented as the lamb, but he is not of the same order. Again
the reader reaches beyond familiar traditions. Jesus is not a cultic offering. Jesus is “of God”. The former
way of reconciliation with God was through the ritual of the sacrificed lamb. These rites, so important to
the history, faith, and culture of the People of God have been transcended. [Jesus] he is the one through
whom God enters the human story, offering it perfect reconciliation with him.” [tradução nossa: Talvez,
tenhamos que olhar mais profundamente, para além do cordeiro pascal, o conjunto da prática ritual de
Israel, em que o cordeiro era usado respectivamente para os ritos sacrificiais de comunhão e reconciliação
após o pecado. Através do uso do cordeiro, o povo de Israel estabeleceu e renovou sua união com Deus e
entre si após ter pecado. Jesus é então apresentado como o cordeiro, mas Ele não é cordeiro na mesma
ordem. Novamente o leitor tem um alcance para além das tradições familiares. Jesus não é uma oferta
cultual. Jesus é “oferta de Deus”. A antiga forma de reconciliação com Deus era através do ritual do
cordeiro sacrificado. Estes ritos, tão importantes para a história, a fé e a cultura do Povo de Deus foram
ultrapassados. [Jesus] é aquele através de quem Deus entra na história humana, oferecendo-lhe perfeita
reconciliação com ele.] 214
Cf. DAUTZENBERG, G. amnós- cordero. In: DENT, p. 210: “el Bautista da testimonio no sólo de la
preexitencia de Jésus(Jo 1,30) sino también de su muerte expiatória. Se trata de un enunciado en
imágenes y que sirve para identificar a alguien: una cosa análoga a las palavras ego eimi en Jn. El
genitivo „de Deus‟ tiene en Jn 1,29 una función análoga a la que el adjetivo „verdadero (aletnós)
desempeña en 1,9; 6, 32; 15, 1, es decir, designa a Jesús como el que cumple en si la realidad designada
por la imagem.”
50
léxico do Novo Testamento, o biblista alemão, Jeremias considera clara a função
expiatória universal presente na fala de João215
.
Na reviravolta da indicação de Isaías e de João Batista se encontram as funções que o
cordeiro exercia no culto de Israel. Em Lv 9,1-3, o cordeiro é listado entre os animais do
sacrifício expiatório, com as características de um animal sem defeito. Em Ex 12,1-14 o
cordeiro é usado na memória da saída do Egito e também aqui há referência à escolha
de um cordeiro macho e sem defeito, de um ano. Com isto, pode-se dizer que Is 53
esteja comparando o servo com um “animal” puro, qualificado para o culto: o servo traz
a dignidade de ser uma oferta agradável a Deus. Já a afirmação de João Batista informa
que Jesus é o Cordeiro de Deus que tira o pecado, portanto, Jesus é uma oferta
agradável, aliás, “ele é aquele por quem Deus intervém oferecendo aos homens a
reconciliação perfeita com ele mesmo”216
.
1.3.3 A declaração do Batista e o seu ministério
João Batista ao apresentar Jesus como aquele que tira o pecado do mundo cria um
problema para o seu próprio ofício. O batismo de João tira o pecado, mas a sua
declaração sobre Jesus coloca em crise o seu próprio rito; nos sinóticos (cf. Mt 3,1-6;
Mc 1,4; Lc 3,3), fica claro que o batismo de João é para remissão dos pecados. No
início do Quarto Evangelho, ele mesmo atesta que batiza (cf. Jo 1,26), mas na tensão do
terceiro capítulo entra a função do batismo de João: purificar. A tensão ocorre entre o
grupo de Jesus e o grupo do Batista (cf. Jo 3,22-36), pelo que o Batista dá seu último
testemunho sobre Jesus. Contudo, tanto os sinóticos quando Josefo expõem o batismo
de João como um ato de perdão. Diante disto, por que João afirma que Jesus tira o
pecado do mundo?
João Batista, ao revelar que batiza com água e Jesus com o Espírito Santo (cf. Jo
1,32-33), traz já a noção de seu batismo. Para Monteiro, o Batista não tem fim em si
mesmo, isto é, ele não anuncia a si, mas faz um anúncio acerca da vinda do Messias,
sobretudo no Quarto Evangelho. João Batista é uma testemunha do Messias, por isso
atesta que “ele batiza com água, mas este seu batismo seria seguido de outro superior,
215
Cf. JEREMIAS, J. amnós. In: GLNT. V. I, p. 921: “nello stesso tempo anche (Jo 1,29)
acquista un nuovo significato, quello di „redimire‟ (con un´espiazione che elimina la colpa, - ”.
[tradução nossa: Ao mesmo tempo, também (Jo 1,29) adquire um novo significado, ou seja, o de
„redimir‟ (com uma expiação que elimina a culpa, - 216
LEÓN-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. V. I, p. 138.
51
com o próprio Espírito Santo (Jo 1,33)”217
. O batismo de João estaria preparando o
batismo de Cristo. De acordo com Monteiro,
a água está na esfera física, apenas um elemento natural, mas o
Espírito penetra no próprio interior do coração humano; se por um
lado a água pode simbolizar transformação e purificação, por outro, só
o Espírito é força Divina que pode realizar tais coisas e trazer vida
nova. Portanto, o Batista é apenas testemunha precursora e Aquele que
vem após ele é o que deve revelar-se, o Messias.218
Como visto, Monteiro dispõe de uma base de explicação para a diferença entre o
batismo de João e o batismo de Jesus no Quarto Evangelho, mas a afirmação de João
traz a questão de diferenciação entre „tirar e carregar‟. João, ao falar que Jesus é o
Cordeiro que tira o pecado do mundo, não está relacionado diretamente ao batismo.
Alguns, como Ratzinger, relacionam diretamente ao sacrifício da cruz, onde Jesus
assume, não pelo batismo, mas pela cruz, a função de tirar o pecado.
Quanto à diferenciação entre “tirar e carregar”, Dautzenberg pensa que se faz
desnecessária uma alusão a Isaías, já Monteiro diz que a afirmação do Batista parece
reunir todas as alusões ao cordeiro no AT219
, seja o Cordeiro Pascal, o cordeiro
mencionado em Isaías 53 ou até mesmo o cordeiro para o sacrifício cotidiano, de forma
que a referência se afirma como reconhecimento da função expiatória de Jesus. Mas, em
algumas tradições messiânicas do judaísmo do Segundo Templo, o Messias tinha esta
função, a função de tirar o pecado, isto é, “os judeus esperavam do Messias uma
intervenção que purificaria o povo de seus pecados”220
. Com isto, João Batista estaria
apresentando Jesus como o Messias e abrindo o tempo escatológico, pois o Messias
viria neste tempo, no fim, como lembra a profecia de Malaquias (cf. Ml 3,22-24).
Portanto, a referência a Is 53, para a comunidade joanina, no testemunho do Batista já
traz a missão expiatória e messiânica de Jesus221
.
217
SILVA, Marciano Monteiro da. O testemunho de João no Quarto Evangelho. EB. Petrópolis, n. 108,
2010, p. 65. 218
Idem ibidem, p. 65. 219
Cf. Idem ibidem, p. 66. 220
LEÓN-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. V. I, p. 34. 221
GASPAR, Verônica. Gesú Cristo- L´agnelo Pasquale. Disponível em HTTP://bib.irb.hr/prikazi-
rad?rad=565730. Acessado em 28/06/12: “a partire dalla pasqua la simbologia dell´agnello è divenuta
fondamentale per la comprensione di Cristo. Le parole di Giovanni Battista: „ ecco l´agnello di Dio, ecco
colui Che toglie Il peccato del mondo‟ (Gv 1, 29) possono aver indicato anzitutto il servo de Dio,che com
le sue penitenze vicarie „porta‟ i peccati del mondo; ma nello stesso tempo esse lo facevano riconoscere
come il vero agnelo Pasquale, che espiando cancela i peccati del mondo. Paziente come um agnelo offerto
in sacrifício, il Salvatore è andato a morte per gli altri sulla Croce: con la forza espiatrice della sua morte
innocente ha cancellato la colpa di tutta l´umanitá.” [tradução nossa: a partir da páscoa, a simbologia do
cordeiro se tornou fundamental para a compreensão de Cristo. As palavras de João Batista: „eis o cordeiro
de Deus, eis aquele que tira o pecado do mundo‟ (Jo 1,29) podem ter indicado, acima de tudo, o servo de
52
Ainda sobre as palavras harein e pharein222
vale ressaltar que pharein em Isaías quer
dizer carregar, e no quarto Cântico do Servo Sofredor indica que o servo carrega os
pecados; em Is 53,10 o profeta apresenta que a vida do servo foi oferecida em
„sacrifício pelo pecado‟. A expiação retira o pecado; alguém assume o pecado de
outrem. É o que acontece com o Servo Sofredor, „ele foi traspassado por causa de
nossas transgressões, esmagado em virtude de nossas iniquidades‟ (Is 53,5). O profeta
tem clareza que o servo, cumprindo as funções de „cordeiro levado ao matadouro‟,
expia os pecados, pode-se dizer também, tira o pecado.
Gess considera que a evocação „tira o pecado do mundo‟ está vinculada a Is 53, pois,
como o servo, o cordeiro do Batista é uma oferta pelos pecados. Esta vinculação não
está desprovida de problemas, mas traz luz à declaração do Batista, pois “nenhuma
oferenda trazida pelos homens pode levar embora o pecado do mundo. O próprio Deus,
no entanto, providencia uma oferenda que pode realmente remover o pecado” 223
.
Entre a fala de João e o texto do Segundo Isaías ainda há uma pendência: do mundo.
O servo aparece como aquele que está diretamente relacionado com Israel, havendo
quem defenda que o servo seja Israel mesmo e as nações pagãs os espectadores224
.
Contudo, chama a atenção que o profeta esteja falando para Israel; considerando o texto
como uma crítica religiosa, falando de pessoas excluídas de seu tempo, fica claro que os
pecados carregados, perdoados são os pecados de Israel, o que está em harmonia com
uma grande tradição israelita. Entretanto, a fala do Batista se refere a „tirar o pecado do
mundo‟, o que parece não ser uma expressão que indique pecados individuais ou de
uma nação como Israel, mas do mundo no geral, universalizando a ação expiatória de
Jesus225
.
A fala de João se identifica com a fala dos samaritanos, quando vão até Jesus e o
reconhecem como o „salvador do mundo‟ (cf. Jo 4,42). Salvaguardando a universalidade
da ação de Jesus, a comunidade joanina não só atesta sua acolhida a membros vindos do
Movimento Batista e da Samaria, mas também imprime uma crítica à teologia
exclusivista e centrista do judaísmo oficial.
Deus, que com suas penitências vicárias carrega os pecados do mundo; mas, ao mesmo tempo, as mesmas
o faziam reconhecê-lo como o verdadeiro cordeiro Pascal, que expiando elimina os pecados do mundo.
Paciente como um cordeiro oferecido em sacrificio, o Salvador morre na cruz pelos outros: com a força
expiadora de sua morte inocente cancelou a culpa de toda a humanidade.] 222
BLANCHARD, Yves-Marie. Cordeiro de Deus. In: DCT, p. 461. 223
GESS, J. amnós. In: DITNT. 2 ed, p. 430. 224
Cf. SILVA, Valmor da. Eis meu servo: leitura do primeiro canto do Servo Sofredor, segundo Is 42, 1-
7. EB, p. 46. 225
Cf. GODOY, Edvilson de. O sacrifício de Cristo, p. 106.
53
Apesar de Jesus ser visto em várias festas judaicas, no Evangelho do Discípulo
Amado, há na fala de João uma compreensão messiânica universalista, seja pela
influência samaritana ou pela influência apocalíptica, o que não coincide com a tradição
essênia, visto que a comunidade de Qumran esperava um Messias que viesse
restabelecer o povo de Israel, o resto puro e santo que se refugiou no deserto226
, com um
exclusivismo para o “verdadeiro Israel”. Por outro lado, a saudação samaritana propõe
Jesus como o salvador do mundo, fazendo da crítica ao Templo de Jerusalém um
universalismo da salvação. Jeremias expõe que João ultrapassa a compreensão essênia e
se aproxima da visão dos samaritanos, portanto, não é sem identidade com o todo que o
Evangelho joanino coletou tal tradição. Blanchard nos diz, inclusive, que Jo 1,29 se
integra à teologia do Quarto Evangelho227
, ou como diz o próprio Jeremias,
Gesú ha compiuto la liberazione (elutrotete, 1 Petr. 1,18) dalla
schiavitù del peccato (en tes mataias umon anástrofes patroparadotou,
1 Petr. 1, 18.). Ma la forza espiatrice della sua morte non è, come
quella dell´agnello Pasquale, limitata ad Israel; quale agnus Dei egli
espia la colpa di tutto il mondo (Jo. 1,29 - cosmos), inesorabilmente
sottoposto, senza distinzione di religione e di razza, al giudizio di
Dio.228
O Cordeiro Servo de Deus em Isaías abre diversas possibilidades de problematização
e, como proposto na presente pesquisa, a busca pela relevância da imagem do cordeiro
passa a ganhar tonicidade, seja para os samaritanos, para os que vieram da comunidade
do Batista ou já na tradição judaica mais ampla, como visto na analogia realizada por Is
53.
Sendo assim, chega-se à hipótese de que a morte de Jesus é compreendida pelos
primeiros cristãos como expiatória e universal e, diante do exposto, vale enveredar pelos
ritos de expiação no Israel do Segundo Templo e verificar como a imagem do cordeiro
foi construindo um caminho teológico na comunidade joanina.
226
Cf. URFELS, F. Le baptême a-t-il été institute par le Christ?. NRT, p. 575. 227
Cf. BLANCHARD, Y. Cordeiro de Deus. In: DCT, p. 462. 228
JEREMIAS, J. amnós. In: GLNT. V. I, p. 917-925. [tradução nossa: Jesus realizou a libertação
(elutrotete, 1 Petr. 1,18) da escravidão do pecado (en tes mataias umon anástrofes patroparadotou, 1 Petr.
1, 18.). Mas, a força expiadora de sua morte não é como aquela do cordeiro Pascal, limitada a Israel;
como agnus Dei ele expia a culpa de todo o mundo (Jo1,29 – cosmos), inexoravelmente submisso ao
juízo de Deus, sem distinção de religião e de raça.]
54
CAPÍTULO II
O CORDEIRO NO CULTO NO SEGUNDO TEMPLO E A
INTERPRETAÇÃO JOANINA
INTRODUÇÃO
A vida cultual do Segundo Templo, aquele Templo que Jesus conheceu reformado
por Herodes, o Grande, era o centro da vida litúrgica do judaísmo229
e atraía todos os
anos muitos peregrinos de todas as partes, inclusive da Galileia, onde Jesus viveu e
iniciou o seu ministério. Toda a vida do Templo acontecia por meio de ritos que
estavam na memória do povo e celebravam a intervenção de Deus em seu favor ao
longo da história.
A memória da libertação do Egito tem em sua cerimônia um rito de imolação do
cordeiro (cf. Ex 12), rito que foi assumido na vida litúrgica do Israel antigo e se firmou
ao longo dos anos, gerando uma liturgia sacrificial, merecendo uma legislação própria,
como atesta, sobretudo o Livro de Levítico (cf. Lv 1-7). Nesta mesma linha segue a
vida litúrgica do Segundo Templo, que não foge à regra do sacrifício, o que levava os
cristãos joaninos a conhecerem as prescrições sobre o culto sacrificial e estabelecerem
com este um novo parâmetro a partir da fé em Jesus Cristo.
A vida sacrificial no Segundo Templo dispõe de um vocabulário que vinha se
firmando em Israel desde o período pré-exílico, como atesta Willi-Plein230
; nesse
vocabulário os sacrifícios se mostram com vários fins. Willi-Plein lista zebah selamim
que quer dizer abate de um animal, e era realizado por meio de imolação, em vista da
felicidade do ofertante; hatta´t era realizado pelo pecado e asham era o sacrifício pela
culpa. Von Rad, por sua vez, considera que o texto sacerdotal referente aos sacrifícios é
um tanto complicado231
, mas mesmo assim lista distintamente os sacrifícios em
Israel232
. Para a tradição israelita, o sacrifício indica “fazer aproximar ou então fazer
229
Cf. LOHSE, Eduardo. Contexto e ambiente do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2004, p 139:
“nos dias de Jesus, o Templo da cidade santa não tinha perdido a importância que desde sempre lhe fora
atribuída na história de Israel.” 230
Cf. WILLI-PLEIN, Ina. Sacrifício e culto no Israel do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2001,
p. 27. 231
Cf. VON RAD, Gerhard. Teologia do Antigo Testamento. 2 ed. São Paulo: Aste; Targumim, 2006,
p. 244. 232
Cf. Idem ibidem, p. 245: “os principais tipos de sacrifícios que P distingue são os seguintes: 1. O
„holocasto‟ (´olah ou Kalil, Lv 1); 2. A „oblação‟ (minhah, mistura de farinha, óleo e incenso, Lv 2); 3. O
„sacrifício de comunhão‟ ou „de ação de graças‟ (Shélem, Lv 3); 4. O „sacrifício pelo pecado‟ ou „de
expiação‟ (hatta´t, Lv 4,1-5.13); 5. O „sacrifício pela culpa‟ ou „de reparação‟ (asham, Lv 5,14-19).”
55
subir [...], depois o sacrifício significa a busca de comunhão, de união com Deus”233
,
compreendendo o que diz Monloubou, pode-se facilmente entender porque holocausto
em hebraico é dito com a palavra ´olah que quer dizer subir. Para De Vaux, holocausto,
o ´olah “é o sacrifício que faz subir sobre o altar, do qual sobe a fumaça para Deus
quando é queimado”234
. No holocausto, toda a vítima é queimada, nenhuma parte da
vítima fica para o ofertante.
Entre as nomenclaturas, parece que minhah seja a mais antiga e por isso mais
generalizada. Inicialmente dizia respeito tanto para os sacrifícios cruentos como não
cruentos e queimados ou não no fogo, mais tardiamente é que passou a se referir à
oferta de alimentos235
. Tornou-se a oferta vegetal, “Lv 2,14-16 assimila à minhah a
oferta das primícias, espigas tostadas ou pão assado, acompanhados de azeite e incenso;
uma parte só é queimada sobre o altar”236
. Normalmente acompanhava um sacrifício237
.
O sacrifício zebah selamim ou somente zebah que se convencionou chamar de
sacrifício de comunhão; o que o diferencia do holocausto (´olah) é que “não é a carne
toda da vítima que é sacrificada sobre o altar, mas somente as partes da gordura”238
; a
vítima é repartida entre as partes que participam do sacrifício: Deus, o sacerdote e o
ofertante. Aquele que oferta leva uma parte para consumir; esse rito é observado como
uma refeição sagrada, “o ofertante convidava comensais à refeição, para comer na
presença de Javé”239
.
Além dos sacrifícios já citados, tinham os sacrifícios expiatórios, que na época do
Segundo Templo se tornaram os mais comuns240
. São eles: sacrifício pelo pecado
(hatta´t) e o sacrifício de reparação (´asham). O que os distingue do holocausto é o uso
do sangue, “que não era apenas derramado em torno do altar, mas devia também marcar
os chifres do altar (Lv 4,25-30)”241
. O sacrifício pelo pecado (hatta´t) deve ser oferecido
por três intenções: o pecado individual, pecado do sumo sacerdote e o pecado do povo
de Israel. O elemento principal é o sangue da vítima, que figura como elemento
expiador. Quando o sacrifício é oferecido pelo povo ou pelo sumo sacerdote, o oficiante
233
MONLOUBOU, L.; DU BUIT, F.M. Sacrifício. In: DBU. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 708. 234
DE VAUX, Roland. Instituições de Israel. São Paulo: Vida Nova, 2004, p.453. 235
Cf. VAN IMSCHOOT, P. Sacrifício. In: DEB. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 1356. 236
DE VAUX, Roland. Instituições de Israel, p.459. 237
Cf. VON RAD, Gerhard. Teologia do Antigo Testamento, p. 250. 238
Idem ibidem, p. 251. 239
Idem ibidem, p. 251. 240
Cf. MONLOUBOU, L.; DU BUIT, F.M. Sacrifícios. In: DBU, p. 709. 241
VON RAD, Gerhard. Teologia do Antigo Testamento, p. 253.
56
“faz uma sétupla aspersão diante do véu que fecha o Santo dos Santos”242
. Alguns
pesquisadores, como Von Rad, expressam dificuldade em distinguir o sacrifício pelo
pecado do sacrifício de reparação. No entanto, segundo De Vaux, o sacrifício de
reparação “só é previsto para indivíduos e, por consequência, o sangue nunca é levado
ao Santo”243
e é acompanhado de uma multa prevista em Lv 5,14-26; 7,1-6. Com isto se
podem diferenciar esses dois sacrifícios expiatórios. Um dado relevante, é que,
sobretudo o hatta´t estava presente no Kippur244
.
Enfim, a temática sacrificial de Israel não é central na presente investigação, mas
relevante, pois atesta que estes nomes e os ritos não eram estranhos aos grupos que
formavam a comunidade joanina, sejam samaritanos ou judeus, pois compartilhavam o
livro do Levítico e, possivelmente, em Garizim, os samaritanos realizavam estes
sacrifícios que eram plenamente realizados em Jerusalém.
No geral, os sacrifícios ganhavam um caráter expiatório245
, expressando o
arrependimento dos pecados e a reconciliação com Deus. No Segundo Templo havia
uma forte consciência de puro e impuro, o que despertava nos judeus a necessidade de
sacrifícios para se purificarem de seus pecados, de modo que, aos poucos, o culto
expiatório foi sendo o mais praticado246
.
Theissen considera que a vida do Segundo Templo é marcada profundamente pelo
sacrifício; sendo o sacrifício o centro do culto judaico, de modo que sustenta os dois
axiomas fundamentais do judaísmo: “monoteísmo exclusivo e um nomismo da
aliança”247
. Ambos eram celebrados no sacrifício, que teve início já nos primórdios da
formação do povo, mas se sistematiza à medida que se constroem um templo central,
um clero para servi-lo e uma estrutura ritual a ser observada, que tem seu ponto alto
com a Reforma de Josias, mas alcança o caráter central absoluto para a religião de Judá,
no Segundo Templo, no período pós-exílico. Para De Vaux o “Templo é o sinal visível
da eleição divina, [ por isto] o judaísmo helenístico elege o Templo como o centro do
mundo”248
.
242
DE VAUX, Roland. Instituições de Israel, p.457. 243
Idem ibidem, p.458. 244
Cf. Idem ibidem, p.457. 245
Cf. LÉON-DUFOUR, X. Ritos sacrificiales. In: VTB. Barcelona: Editorial Herder, 1967, p. 730. 246
Cf. THEISSEN, Gerd. A religião dos primeiros cristãos: uma teoria do cristianismo primitivo. São
Paulo: Paulinas, 2009, p. 211: “uma característica da práxis sacrificial pós-exílica é que toda a práxis
sacrificial é compreendida de forma nova a partir da mentalidade expiatória. Todo culto tem por
finalidade simplesmente a expiação de delitos.” 247
Idem ibidem, p. 30. 248
DE VAUX, Roland. Instituições de Israel, p.366.
57
Dentro da vida litúrgica, vários elementos eram solicitados para a celebração do
culto, como por exemplo, o minhah, que era uma oferenda de alimentos levada ao
culto249
, no entanto, central era o sacrifício de animais, onde aparece em evidência a
figura do cordeiro como animal sacrificial. Ele estava presente no rito diário e nos
grandes eventos da vida celebrativa do judaísmo, por isso, a referência feita no Quarto
Evangelho a Jesus como cordeiro é quase impossível que esteja alheia a toda a realidade
do cordeiro no Segundo Templo. Pelo que Theissen concebe que a comunidade do
Quarto Evangelho logo realizou uma substituição250
. Antes, o Templo era o lugar do
encontro, isto é, “o templo é a mediação entre a divindade e a humanidade”251
, mas
agora ninguém vai ao Pai senão por Jesus (cf. Jo 14,6).
Considerando a vida litúrgica do judaísmo no Primeiro Século d.C. e o Evangelho
segundo João, vê-se que o texto está descrito envolto na vida litúrgica do judaísmo,
como atesta Beutler. Para ele, a parte narrativa do Quarto Evangelho acontece dentro
das grandes festas judaicas da época de Jesus252
; também Moloney expõe que o Jesus de
João está relacionado com as grandes festas de peregrinação da época do Segundo
Templo253
, inclusive levantando a suspeita de que na origem da redação do Quarto
Evangelho ainda estivesse em funcionamento o Segundo Templo, isto é, seria antes do
ano 70 d.C., em todo caso, fica evidente que a comunidade redatora conseguiu captar e
transmitir uma relação entre o ministério público de Jesus e a vida litúrgica de
Jerusalém.
249
Cf. WILLI-PLEIN, Ina. Sacrifício e culto no Israel do Antigo Testamento, p. 27. 250
Cf. THEISSEN, Gerd. A religião dos primeiros cristãos, p. 197. 251
SCHMIDT, Francis. O pensamento do Templo de Jerusalém a Qumran. São Paulo: Loyola, 1998,
p. 77. 252
Cf. BEUTLER, Johannes. L´ebraismo e gli ebrei nel Vangelo di Giovanni. Subsidia Biblica, Roma, v.
29, 2006, p. 07. 253
Cf. MOLONEY, Francis J. The Gospel of John. V. IV. Minnesota: Michel Glazier Book, 1998, p.
194: “other Jewish feasts then follow in the correct sequence of the Jewish year: 6:1-71: Passover
(celebrated for seven days in the first month of the year), 7:1-10:21: Tabernacles( celebrated for seven
days in the seventh month of the year), and 10:22-42: Dedication (celebrated for eight days in the ninth
month of the year). The Johannine story of Jesus presence at the feasts of „the Jewish‟ captures the spirit
of Jewish writing that preserves traditions that may be roughly contemporary with the writing of the
Fourth Gospel”. [tradução nossa: segue-se, então, outras festas Judaicas na correta sequência do ano
Judaico: 6:1-71: Páscoa (celebrada durante 7 dias no primeiro mês do ano), 7:1-10:21: Tabernáculos
(celebrada durante 7 dias no sétimo mês do ano) e 10:22-42: Dedicação (celebrada durante 8 dias no nono
mês do ano). O relato Joanino da presença de Jesus nas festas „Judaicas‟ capta o espirito do escrito
Judaico que preserva tradições que podem ser aproximadamente contemporâneas ao escrito do Quarto
Evangelho.]
58
Dentro da liturgia do Templo, um dos elementos que ganhava destaque era o
cordeiro; ele estava presente no culto diário (cf. Lv 6), em grandes festas254
, e ganhava
destaque na solenidade da páscoa (cf. Ex 12). Portanto, o fato de somente o Evangelho
segundo João, entre os evangelhos, registrar Jesus com esta tipologia, leva a algumas
interpretações: primeiro, que possivelmente houvesse sacerdotes no interior da
comunidade joanina255
; também outra possibilidade vai ganhando maior clareza: Jesus
substitui o lugar do encontro com Deus e os ritos256
; outra hipótese levantada é que a
imagem do cordeiro fosse uma tipologia que ajudasse na coesão da comunidade, uma
vez que os grupos da primeira hora, que compuseram esta comunidade, conheciam bem
as tradições aliadas à imagem do cordeiro257
. Pelo que vale a busca pelo cordeiro no
culto do Segundo Templo.
2.1 Cordeiro como elemento cultual
O cordeiro é um dos elementos que está presente no culto judaico, como descreve o
Livro do Levítico; que nos seus primeiros capítulos elenca alguns elementos para o
sacrifício e para ser ofertado no altar (cf. Lv 1-7). Para os sacrifícios são prescritos os
gados graúdos e miúdos, isto é, bovinos e caprinos; para as oblações são prescritos
grãos, sobretudo, trigo (cf. Lv 1-7).
Entre os animais elencados pelo Levítico, está o cordeiro na classe de caprinos, pois
quando o texto utiliza o termo kebe´s do hebraico, está fazendo associação com função
ritual, visto que “se emprega normalmente em passagens classificadas entre os escritos e
em Ezequiel, i.é, em trechos de uma natureza ritualística e sacrificial”258
. Ao traduzir
kebe´s por amnós do grego259
, os textos bíblicos enfatizam que o cordeiro é reconhecido
como um animal para o sacrifício.
254
Cf. GONZÁLEZ ECHEGARI, Joaquín (Org.). A bíblia em seu entorno. São Paulo: Ave-Maria,
2000, p. 330. 255
Cf. SIMOENS, Yves. L´évangile selon Jean: positions et propositions. NRT, Bruxelles, 2000, p. 189. 256
Cf. SARASA GALLEGO, Luis Guillermo. La filiación de los creyentes en el Evangelio de Juan.
Bogotá: D.C., 2009, p 341: “Jesús, en el EvJn, se apresentado como quien sustituye continuamente. En
Caná se sustituye las purificaciones de los judios; en Jerusalén, el Templo es sustituído con el cuerpo del
resuscitado; en Samaria se sustituye el lugar del Templo.” 257
Cf. GASS, Ildo B. Uma introdução à bíblia: as comunidades cristãs da primeira geração. São Paulo:
Paulus, 2005, p. 45-47. 258
Cf. GESS, J. amnós, „cordeiro‟; arên, „cordeiro‟; arnion „cordeiro‟. In: DITNT. São Paulo: Vida
Nova, 2000, p. 429. 259
Idem Ibidem, p. 429.
59
Há na classificação dos caprinos outros termos utilizados que recebem outra
significação, como por exemplo, so´n do hebraico, traduzido na versão grega por
probaton, que “no AT significa, primariamente, a „ovelha‟ como animal útil e gregária
(Gn 30:38; Is 7:21; Am 7:15) e menos como sacrifício”260
. Assim, quando o Evangelho
segundo João, referente a Jesus, utiliza amnos ao invés de probaton tem clara a
referência ao sacrifício; há ainda o termo arnión, originalmente um diminutivo de arén,
também cordeiro, mas o primeiro coincide com a palavra hebraica kaba´s (cf. Jr 11,19
na LXX), que “designa al carnero joven, y en la mayoría de los casos como animal para
el sacrifício”261
. A semântica vai esclarecendo o propósito da comunidade joanina. Ao
chamar Jesus de cordeiro, ela está inclinada à vida sacrificial da religião de Israel.
As referências a Jesus como cordeiro sempre são amnos e arén, e não probaton,
sobretudo no Quarto Evangelho, que utiliza por 17 vezes probaton, mas nunca aplicada
a Jesus, deixando clara a perspectiva sacrificial assumida em Jesus.
O cordeiro era o único elemento que estava, obrigatoriamente, todos os dias no rito
sacrificial no Templo, que consistia,
fundamentalmente nos dois sacrifícios perpétuos, matutino e
vespertino, de um cordeiro de um ano e sem defeito. Ao nascer o sol,
começava o culto com a abertura das portas do santuário, a retirada
das cinzas do altar dos perfumes e a reativação do candelabro. Seguia-
se a degola do cordeiro do sacrifício [...] depois, completava-se o
sacrifício com a queima dos membros da vítima e das oferendas e com
as libações de vinho sobre o altar, e tudo terminava com os cânticos
dos levitas. O sacrifício vespertino transcorria de maneira parecida.262
Como observado, o cordeiro era um elemento essencial no sacrifício diário, e além
destes sacrifícios matutinos e vespertinos, aconteciam ainda os sacrifícios individuais,
que eram celebrados com cordeiros ou outros animais (aves e bois).
O sacrifício do cordeiro ganhou, na vida do Segundo Templo, tamanha
respeitabilidade e necessidade, que, mesmo durante momentos de crise, buscava-se
guardar o sacrifício diário. Sobre tal, recorda Lohse, “durante o sítio de Jerusalém pelos
romanos, ofereceram-se, com grande fidelidade, os sacrifícios diários, até o último
dia”263
. A insistência no sacrifício era também a esperança da intervenção divina, a
quem, pelo sacrifício, o povo se expressa fiel.
260
Idem ibidem, p. 431. 261
DAUTZENBERG, G. amnós- cordero. In: DENT. V. I. Salamanca: Ediciones Sigueme, 1996, p. 212. 262
GONZÁLEZ ECHEGARI, Joaquín (Org.). A bíblia em seu entorno, p. 329. 263
LOHSE, Eduardo. Contexto e ambiente do Novo Testamento, p. 144.
60
A oferenda para o sacrifício matutino e vespertino havia se tornado o cordeiro, por
isso, quando a Jesus é aplicada esta tipologia, o Quarto Evangelho tem claro que Jesus é
uma oferenda para o sacrifício, ou seja, é o cordeiro do novo culto, o que leva os
membros da comunidade joanina a construírem o Evangelho em um espaço que
transcorre dentro das festas judaicas; momentos que Jesus, como um judeu, participou
como peregrino, mas propondo uma interpretação própria sobre as festas em Jerusalém.
2.1.1 O cordeiro nas festas judaicas e a relação com o Quarto Evangelho
Em Jerusalém, no período do Segundo Templo, celebravam-se três grandes
peregrinações por ocasião das três grandes festas. Eram elas: Páscoa, Pentecostes e
Festa das Tendas; além dessas festas existiam ainda outras com menor afluência de
peregrinos: chanukká e o Purim. E outra grande concentração, que pelo caráter
penitencial não seria festa, mas uma grande celebração penitencial era o Yom Kippur, o
Dia do Grande Perdão, que no calendário litúrgico se vinculava à festa das Tendas.
Entre as festas, o Quarto Evangelho registra a presença de Jesus em três delas: Páscoa,
Tendas e Chanukká, chamado no texto evangélico de Dedicação264
. Todas as festas em
Jerusalém tinham particularidades e eram enriquecidas pelos sacrifícios que se
realizavam segundo a intenção da festa e, em sua maioria, o cordeiro aparecia como o
elemento cultual central ou ao menos em destaque na hora dos sacrifícios.
Ao se tratar das festas judaicas, o Evangelho joanino considera que eram conhecidas
não só pelos judeus ligados ao Templo, mas por todos os grupos judaicos do I séc. d.C;
algumas delas eram conhecidas e celebradas pelos samaritanos, em virtude do
Pentateuco. Já a relação entre as festas e os gregos, o que se revela no Quarto
Evangelho, é que alguns gregos vão até Jesus, e o querem conhecer por ocasião de uma
“festa dos judeus” (cf. Jo 12,20); no entanto, apesar de estarem em Jerusalém por
ocasião da Festa da Páscoa, parecem ser prosélitos que subiram a Jerusalém265
. O que
mais uma vez se firma é que os grupos que formaram a comunidade joanina da primeira
hora conheciam a vida litúrgica prescrita pela Torá e, nelas, a presença do cordeiro
como oferta para o sacrifício.
264
Cf. BEUTLER, Johannes. L´ebraismo e gli ebrei nel Vangelo di Giovanni. Subsidia Biblica, , p. 07. 265
Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. Il Vangelo di Giovanni: parte segunda. Brescia: Paideia, 1977, p.
634.
61
No período do Segundo Templo, a Páscoa tinha se tornado uma festa muito
importante para a vida do Templo266
, pois de uma festa familiar passou a ser uma festa
que, obrigatoriamente, deveria passar pelos sacerdotes do Templo. Todavia, devido a
sua origem familiar, há quem não a considere um sacrifício, mas um ritual em família.
Não há como negar que, no Segundo Templo, somente os sacerdotes podiam sacrificar
o cordeiro para a festa da Páscoa.
Murphy-O´connor, escrevendo sobre Paulo, atesta que “na Páscoa, leigos podiam
degolar cordeiros, mas, como eram vítimas para sacrifício, deviam fazer isso no
templo”267
. Por sua vez, Crüsemann268
considera a Páscoa judaica uma celebração
fortemente comunitária, realizando-se como um rito e não necessariamente como um
sacrifício, visto que em Ex 12 a ordem é “que cada um” prepare um cordeiro por
família, o que se repete no livro de Números, referindo-se a “cada israelita”, deixando
claro que no Documento da Torá, a Páscoa não é uma prescrição restrita aos sacerdotes,
como ocorrerá na Reforma de Josias e se cimentará no período do Segundo Templo (cf.
2Rs 23; Esd 6,19-20). Os membros da comunidade joanina pareciam compreender a
Páscoa como uma festa sacrificial, como se perceberá ulteriormente, a tanto que viram
no sacrifício de Jesus a nova Páscoa (cf. Jo 19,37).
A festa da Páscoa, no I séc. d.C., acontecia com grande movimentação de fiéis e com
grande número de sacrifícios de cordeiros269
. O cordeiro deveria ser sacrificado no 14
de Nisan, antes do entardecer (cf. Nm 9). Em si, a Páscoa, no tempo de Jesus, segundo a
tradição judaica, era celebrada “para recordar a libertação do Egito”270
. No Evangelho
segundo João, a Páscoa ganha uma dimensão de analogia com a obra de libertação de
Jesus, sobretudo com a imagem do cordeiro271
, com a qual se entende Jesus como a
oferta de Deus para livrar a humanidade do mal.
No Quarto Evangelho, ao contrário dos sinóticos, Jesus não participa somente de
uma Páscoa, mas está presente em três páscoas, sendo a última o episódio de sua
266
Cf. ARAUJO, Gilvan Leite. História da festa judaica das tendas. São Paulo: Paulinas, 2011, p. 961. 267
Cf. MURPHY-O´CONNOR, Jerome. Paulo de Tarso: história de um apóstolo. São Paulo: Paulus;
Loyola, 2007, p. 37. 268
Cf. CRÜSEMANN, Frank. A Torá: teologia e história social da Lei do Antigo Testamento.
Petrópolis: Vozes, 2008, p. 493: “A festa é em família, mas se refere a toda a „comunidade‟ (edah, qahal,
v. 3.6). o evento é totalmente comunitário. Não se trata de um sacrifício. O Documento Sacerdotal é claro
nisso: os sacrifícios são parte do culto, o qual não existe aqui.” 269
Cf. MURPHY-O´CONNOR, Jerome. Paulo de Tarso, p. 37. 270
GONZÁLEZ ECHEGARI, Joaquín (Org.). A bíblia em seu entorno, p. 328. 271
Cf. TAYLOR, Justin. As origens do cristianismo. São Paulo: Paulinas, 2010, p. 148: “um vestígio da
Páscoa judaica com o qual os cristãos estão muito familiarizados, por causa dos evangelhos e da liturgia,
é o uso da expressão „cordeiro de Deus‟ para Jesus.”
62
execução (cf. Jo 2,13; 6,4; 11,55). Nessas idas a Jerusalém, os discípulos e Jesus
puderam atestar como as pessoas se apressavam para sacrificar o cordeiro272
, uma vez
que, “o elemento mais característico [da Páscoa] era o sacrifício do cordeiro pascal”273
.
Cinquenta dias após a Páscoa acontecia a festa de Pentecostes, que no Evangelho
joanino não possui repercussão; ela celebrava as primícias e teologicamente estava
ligada à entrega da Torá no Sinai. No tempo de Jesus, nesta festa se levavam as
oferendas dos primeiros frutos ao Templo. Nela também os peregrinos podiam
participar de sacrifícios, inclusive dos sacrifícios diários que eram celebrados com o
cordeiro.
No outono acontecia a festa mais popular do I séc. d.C., a Festa das Tendas, mas
também chamada simplesmente de “A Festa”274
. No Evangelho segundo João, nesta
festa (cf. Jo 7) acontece de forma mais explícita a revelação de Jesus275
como Messias,
aliás, era uma festa propícia para tal, dado que nela se vivia a “expectativa do libertador
que Deus mandaria para caçar os invasores romanos e iniciar o novo tempo anunciado
pelos profetas”276
, ou seja, era a festa onde se esperava que o Messias se
manifestasse277
. A manifestação de Jesus, no Templo, no último dia da festa, é colocada
pelo Quarto Evangelho como a revelação do Messias278
(cf. Jo 7,41).
A relação da Festa das Tendas com o cordeiro acontece porque também nela se
celebravam sacrifícios, aliás, “os sacrifícios no Templo eram mais numerosos”279
, pelo
que vale reconhecer que entre eles estava a figura do cordeiro como oferta agradável ao
culto. Vale também atentar que esta festa era bastante popular280
, por isto os discursos
de Jesus devem ter ecoado entre vários que estavam em Jerusalém para celebrar esta
festa, como demonstra o evangelista, ao expor a reação do povo (cf. Jo 7, 31.40-42) e
272
Cf. LOHSE, Eduardo. Contexto e ambiente do Novo Testamento, p.145. 273
GONZÁLEZ ECHEGARI, Joaquín (Org.). A bíblia em seu entorno, p. 329. 274
MOLONEY, Francis J. The Gospel of John. V. IV, p. 233: “Tabernacles was the most popular of the
three pilgrimage feasts and was known as „the feast of YHWH‟ (Lev 23:39; Judg 21:19) or simply „the
feast‟ (1Kgs 8:2, 65; 2 Chron 7:8; Neh 8:14; Isa 30:29; Ezek 45:23)”. [tradução nossa: Tabernáculos era a
mais popular das três festas de peregrinação e era conhecida como „a festa de YHWH‟ (Lev 23,39; Jz
21,19) ou simplesmente „ a festa‟ (1Rs 8,2.65; Cr 7,8; Ne 8,14; Is 30,29; Ez 4,23).] 275
Cf. RODRIGUEZ-RUIZ, Miguel. Estructura del Evangelio de San Juan desde el punto de vista
cristológico y eclesiológico. EstB. Madrid, n. 56, 1998, p. 88: “La revelación de Jesús ante las
autoridades del pueblo judio y la presencia de la Iglesia em 7,1-11,54.” 276
FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos. V. II. São Paulo: Loyola, 1992, p. 356. 277
Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. Il Vangelo di Giovanni: parte prima. Brescia: Paideia, 1977, p.
261. 278
Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de João. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 365. 279
GONZÁLEZ ECHEGARI, Joaquín (Org.). A bíblia em seu entorno, p. 330. 280
Cf. MOLONEY, Francis J. The Gospel of John. V. IV, p. 233.
63
das autoridades (cf. Jo 7,47)281
. Na festa das Tendas, Jesus também pontua sua Paixão,
mas acentuada como regresso para o Pai282
(cf. Jo 7,32-36).
Há também outras festas que são importantes para a vida litúrgica de Israel e trazem
particularidades na relação com o cordeiro. São elas: Chanucá e Purim, no entanto, as
três festas citadas: Páscoa, Pentecostes e Tendas eram as grandes festas de peregrinação
e prestavam serviço à unidade dos judeus283
. As demais festas, Chanucá e Purim
traziam sua importância como festas da memória recente do povo judeu.
A festa da Dedicação remonta à história da libertação do julgo dos selêucidas, em
especial, o julgo de Antíoco IV Epífanes, que profanou o Templo e as práticas religiosas
de Judá284
. Ela era celebrada por meio da iluminação do Templo e das casas e poderia
também ser chamada de celebração das luzes. No Quarto Evangelho, Jesus se declara a
luz do mundo (cf. Jo 8,12), e isto está colocado na transição entre a festa das Tendas (cf.
Jo 7) e a festa da Dedicação (cf. Jo 10). Esta festa acontecia com celebração festiva,
com sacrifícios. No início, na dedicação do Templo, no tempo dos Macabeus,
sucederam sacrifícios como parte das celebrações, o que eram retomados a cada ano na
festa; entre os animais para o sacrifício também se encontra o cordeiro.
A festa do Purim acontecia no mês de Adar (entre fevereiro e março); era a memória
da libertação vinda por Ester (cf. Est 7-8). Na relação com os sacrifícios havia algo
diferenciado: não se celebravam sacrifícios individuais, mas somente coletivos e se
guardava o sacrifício do cordeiro, como prescrição ritual285
. De modo que,
281
Cf. FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos. V. II, p. 355: “Jesus e os judeus à parte,
há um terceiro protagonista: a multidão. Esta demonstra reações espontâneas, mas também contraditórias,
e tem medo dos chefes. A revelação de Jesus é pública e franca; não provoca somente os judeus, mas o
auditório todo, e o divide: 7, 12-13.20.25-27.31.40-43.” 282
Cf. NEVES, Joaquim Carreira das. Escritos de São João. Lisboa: Universidade Católica Editora,
2004, p. 170. 283
Cf. SAULNIER, Christiane. A Palestina no tempo de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 47: “três
festas exercem, em Israel, um papel importante; são momentos em que o povo faz questão de se reunir
para manifestar a solidariedade que une seus membros e para celebrar as grandes intervenções do Senhor,
libertador do seu povo: são as três festas de peregrinação, Páscoa, Pentecostes e Tabernáculos (ou
Tendas). Três vezes ao ano, declara o Deuteronômio, todos os vossos varões se apresentarão diante do
Senhor vosso Deus no lugar em que ele tiver escolhido: na festa dos Ázimos, na festa das Semanas e na
festa das Tendas (Dt 16,16).” 284
Cf. GONZÁLEZ ECHEGARI, Joaquín (Org.). A bíblia em seu entorno, p. 331: “festa de Hanukká (
ou dedicação, cf. Jo 10,22) tinha sido instituída para celebrar a purificação do templo feita por Judas
Macabeu depois da profanação de Antíoco Epífanes (IMac 4,59; IIMac 1,18). O gesto mais característico
era a iluminação do templo, das sinagogas e das casas particulares.” 285
Cf. Idem ibidem, p. 331: “a festa do Purim (das sortes) celebrava-se em meados do mês de Adar para
comemorar a libertação dos judeus persas. Segundo a tradição rabínica os elementos característicos
seriam a leitura sinagogal do livro de Ester, as obras caritativas e os banquetes, precedidos de um dia de
jejum. [no sábado durante o purim] o ritmo dos sacrifícios do templo era diferente nesse dia: não se
ofereciam sacrifícios individuais, senão unicamente os da coletividade, com um sacrifício adicional dos
cordeiros.”
64
reconhecidamente, o cordeiro estava presente em todas estas festas e na vida cotidiana
do Segundo Templo286
.
Entre as práticas religiosas de peregrinação e grande concentração em Jerusalém
existiam ainda duas “festas”, eram o Rosh Hashana (a festa do Ano Novo) e o Yom
Kippur (Dia das Expiações). Estas festas estavam conectadas entre si e com a festa das
Tendas, pois a Rosh Hashana como festa de Ano Novo, era exatamente uma preparação
para o grande Dia de Expiação, que acontecia dez dias depois, o que a condicionava
como uma festa austera. O Rosh Hashana acontecia por volta do mês de tishri
(setembro e outubro).
Na festa de Ano Novo, a tradição do cordeiro como elemento do culto cotidiano, era
mantida, não havendo traços diferenciados do ponto de vista sacrificial, a não ser o
comportamento mais austero da comunidade dos sacerdotes e de todo o povo, como que
já vivendo um exame de consciência, dez dias antes do Dia das Expiações.
Sobre o Kippur, existia na tradição israelita grande respeito por este dia, pois era o
único dia em que o sumo sacerdote estava autorizado a entrar no Santo dos Santos,
lugar onde, segundo a tradição judaica, esteve antes a arca da Aliança com as tábuas da
Torá. Nele também se inseriam ritos de expiação pelo sumo sacerdote e por todo o povo
de Israel, uma vítima era oferecida pelos pecados de todo o povo, o que configurava o
dia como penitencial287
.
Sobre a vítima expiatória do Kippur há clareza sobre o boi que era o animal para
expiar os pecados do sumo sacerdote, já sobre os pecados do povo, a expressão indica
gado miúdo, ao que as traduções se furtam a traduzir por cordeiro e usam os termos
carneiro e bode.
Relendo a Paixão de Jesus e sua relação com o Kippur, os primeiros cristãos logo
justificaram a morte de Jesus como uma morte expiatória288
. Identificaram-no como
286
Cf. COENEN, L.; BEYREUTHER,E.; BIETENHARD, H. Amnós. In: DCBNT. Bologna: EDB, 1976,
p. 62: “amnos vienne usato specialmente dal códice sacerdotale e da Ez, cioé da quegli scritti Che hanno
orientamento sacerotale e cultuale. Secondo essi, l ´agnello è molto importante nel culto israelitico come
vitima sacrificale.”-[tradução nossa: amnos é usado especialmente pelo código sacerdotal e de Ez, isto é,
por aqueles escritos que têm orientamento sacerdotal e cultual. Segundo estes, o cordeiro é muito
importante no culto israelítico como vítima sacrificial.] 287
Cf. GUIJARRO OPORTO, Santiago; SALVADOR GARCIA, Miguel (Org.). Comentário ao Antigo
Testamento. V. I. São Paulo: Ave-Maria, 2002, p. 203: “acontece uma vez por ano (Lv 16,34; Ex 30,10;
Hb 9,6-7), no dia dez do sétimo mês (Lv 16,29), o grande dia da expiação, uma das maiores festas do
outono (Lv 23,27-32; cf. o comentário a Lv 23). Esse era dia de jejum, dia penitencial no qual o povo
esperava conseguir o favor de Deus (Es 8,21-23; Jl 1,14; 2,12.15).” 288
Vários textos bíblicos expõem como as várias interpretações do I séc. d.C. viram a morte de Jesus
como expiatória: 1Cor 15,3; 1Pd 3,18; Rm 5,8; 1Ts 5,10; Ef 1,7; Cl 1,20; Rm 3,25; Hb 2,17; 1Jo 2,2; Hb
9,12; 9,28; 10,10, 10,12.
65
aquele que é ofertado pela culpa do povo, isto talvez tenha se dado mais pela
interpretação da profecia de Isaias, que pelo Kippur289
. No entanto, o Quarto
Evangelho, onde Jesus é chamado de cordeiro, registrou uma oração, que segundo
Ratzinger, citando Feuillet, a entrega de Jesus é sacrificial expiatória, segundo o rito do
Kippur,
a estrutura do rito descrito em Levítico é retomada minuciosamente na
oração de Jesus: tal como o sumo sacerdote cumpre a expiação por si,
pela classe sacerdotal e por toda a comunidade de Israel, assim
também Jesus reza por si mesmo, pelos apóstolos e finalmente por
todos aqueles que depois, por causa da palavra deles, haveriam de
acreditar nEle, ou seja, pela Igreja de todos os tempos (cf. Jo 17,20).290
Na descrição de Ratzinger, inspirada em Feuillet, fica claro que Jesus realiza as três
funções solenes exercidas no Dia de Expiação: sacerdote, oferta e sacrifício. Ele é o
sumo sacerdote que tem acesso ao Santo dos Santos. É também a oferta apta para
perdoar os pecados e, ele mesmo, na sua carne, realiza o sacrifício de perdão.
O Kippur era a única celebração a que o sumo sacerdote estava obrigado a
presidir291
; aliás, sua função se impunha exatamente em virtude do Dia do Perdão, pois
somente ele, neste dia, e unicamente neste, podia entrar no Santo dos Santos292
. Em
nenhum outro dia do ano se podia entrar neste recinto sagrado, do ponto de vista
litúrgico. Neste dia, ele utilizava uma capa de uma costura só; sacrificava os animais e,
com o sangue, aspergia a pedra onde esteve a Arca da Aliança e também aspergia o
povo; e pelo povo e por si apresentava orações de intercessão ao Senhor. O sumo
sacerdote, após a imposição das mãos, despedia o bode para o deserto, para onde levava
o pecado do povo. No entanto, não é, o ir para o deserto que liberta os pecados, mas o
elemento vital que está no animal, isto é, o sangue. Para este mundo sacrificial, o que
289
Cf. BARBAGLIO, Giuseppe. Jesus, hebreu da Galiléia: pesquisa histórica. São Paulo: Paulinas,
2011, p. 531: “Marcos ou sua fonte quiseram especificar qual serviço realizou de fato Jesus, inserindo ali
a crença cristã na sua morte redentora, talvez deixando-se inspirar por uma passagem de Isaías sobre o
servo sofredor de Deus: „para os quais (anth´hon)[os muitos] sua vida (He psykhe) foi entregue à morte
[...] e ele carregou os pecados de muitos e por seus pecados foi entregue à morte‟ (Is 53,12).” 290
RATZINGER, Joseph- BENTO XVI. Jesus de Nazaré: da entrada em Jerusalém até a
ressurreição. São Paulo: Planeta, 2011, p. 81. 291
Cf. JEREMIAS, J. Jerusalém no Tempo de Jesus: pesquisa de história econômico-social no período
neotestamentário. São Paulo: Paulus, 1983, p. 212: “os deveres inerentes ao cargo de sumo sacerdote
eram de natureza principalmente cultual. A Lei de modo expresso prescrevia um único dever para o sumo
sacerdote: o de oficiar no Dia das expiações (Lv 16).” 292
Cf. Idem ibidem, p. 210: “O privilégio mais importante permitia-lhe, e somente a ele entre os mortais,
penetrar no Santo dos santos um dia por ano. A tríplice entrada neste recinto, no Dia das expiações,
significava a entrada diante do Deus propício; tal dignidade traduzia-se nas aparições divinas particulares
com que era honrado o sumo sacerdote nesse Santo dos santos.”
66
realmente expia os pecados é o sangue293
, aquele dom que pode manter a vida: tira-se a
vida de um para doá-la a outros.
O Evangelho joanino, ao relacionar o Dia de Expiação com Jesus, prescreve,
exatamente, que se tira a vida de um para salvar a vida do povo, como se revela na fala
de Caifás294
a respeito da execução de Jesus, mas a relação se intensifica ainda mais,
quando a imagem do sangue é expressada no Quarto Evangelho (cf. Jo19,34). Aliás,
para a tradição judaica, é exatamente o sangue que expiava os pecados (cf. Lv 17). Mas
além do culto expiatório por excelência no Kippur, havia também, no culto diário, a
intenção do perdão dos pecados (cf. Lv 6), o que revelava o sacrifício como expiatório.
Toda esta vida litúrgica era conhecida pela comunidade joanina, que não se demorou a
ver, em Jesus, a vítima expiatória.
Visto que o cordeiro estava fortemente presente na vida litúrgica do Segundo
Templo, fica ainda mais clara a referência cultual presente no Evangelho segundo João,
pelo que vale verificar um caminho teológico que se impõe de Jo 1,29 a 19,34.
2.2 Caminho teológico de Jo 1,29 a 19,34-36
Como explicitado ao longo da pesquisa, a comunidade joanina guardou grande
apreço pela imagem do cordeiro, pelo que não lhe bastando citar por duas vezes na
semana inaugural da atividade pública de Jesus (cf. Jo 1,29.36), ainda guardou relação
com este no episódio da Paixão, seja a lança, na mesma hora da imolação do cordeiro
pascal no Templo (cf. Jo 19,34) e a citação referente ao cordeiro pascal, “não quebrarão
nenhum dos seus ossos”(cf. Jo19,36b), tornando esta imagem algo enfático em sua
redação, tanto que vale recolher algumas passagens relacionadas à semana inaugural e à
Paixão. As passagens indicadas para tal fim são: Jo 2,1-11; 2,13-22; 3,14; 4,13-14.39-
42; 6,44.47; 7,37; 10,18; 12,27-28; 17,1. Diante de tais textos se torna necessário
reforçar que eles estão dispostos para buscar compreender o caminho teológico entre a
saudação do Batista e o episódio da Paixão.
293
Cf. SELTZER, Robert M. O povo judeu, pensamento judaico. V. I. Rio de Janeiro: A.koogan, 1991,
p. 64: “Uma segunda categoria consumava a expiação através do sangue derramado no altar. Porque o
sangue, de acordo com o Pentateuco, é o princípio da vida; o sangue de uma vítima animal expiava
simbolicamente a culpa do ofertante.” 294
Cf. BARBAGLIO, Giuseppe. Jesus, hebreu da Galiléia, p. 494: “o quarto evangelho apresenta dois
traços próprios [na paixão de Jesus]: Caifás o quer condenar como bode expiatório: „é melhor que um só
morra pelo povo‟ (Jo 18,14; 11,49-50); Pilatos fazia de tudo para o libertar, pois estava certo de sua
inocência (Jo 19,12).”
67
Schnackenburg considera que a mensagem do Evangelho joanino passa exatamente
pela constatação da messianidade de Jesus, tendo seu cume na morte expiatória,
havendo um elo entre a saudação do Batista e a Paixão,
Gesù è il Messia nel senso pieno della professione di fede Cristiana, al
quale spetta la preesistenza (1,30, cf. 15) e che con la sua morte
sacrificiale ed espiatrice come „angello di Dio‟ (1,29.36) porta la
salvezza al mondo intero.295
O elo entre Jo 1,29.36 e 19,32-37 será tecido ao longo do Quarto Evangelho,
revelando Jesus como a oferta de Deus. Em várias passagens esta oferta vai se
configurando como oferta de amor que pode chegar até a morte. Já, no capítulo segundo
do Evangelho joanino, encontra-se um episódio ligado com a hora de Jesus: a passagem
das Bodas de Caná, onde acontece o primeiro sinal. Quando é enfatizado na resposta de
Jesus, que “ainda não chegou a minha hora”(cf. Jo 2,4), o que, para comentadores
como Mateos e Barreto, está diretamente ligada ao Gólgota, pois “a novidade que ele
traz está ligada ao momento futuro, „a sua hora‟ (cf. Jo 7,30;8,20;12,23.27;17,1), que
será a hora da sua morte 19,31: sua hora, a de passar deste mundo ao Pai”296
. Também
Léon-Dufour expõe que a referência à hora esteja ligada à exaltação e à glorificação de
Jesus297
. O Evangelho segundo João ilustra que a hora de Jesus transcorrerá todo o
Evangelho e, ao passo que Marcos e as tradições mateana e lucana inserem anúncios da
Paixão (cf. Mt 16,21-23; Mc 8,31; Lc 9,22), o Quarto Evangelho apresenta discursos e
sinais onde a hora fica subentendida.
Além da consideração à hora, neste trecho (cf. Jo 2,1-11), o Evangelho joanino expõe
um tema que aparecerá em momentos cruciais da entrega de Jesus, o tema da
glorificação, isto é, a manifestação da glória de Jesus, que glorifica o Pai (cf. Jo 1,14;
11;40; 12,41), o que terá seu acabamento na cruz298
, quando Jesus, como cordeiro,
realizar a sua entrega, pois o cordeiro ao ser sacrificado, não o faz para a glória do
homem ou para a glória do próprio cordeiro, mas com o intuito de agradar a Deus, de
295
SCHNACKENBURG, Rudolf. Il Vangelo di Giovanni: parte prima. Brescia: Paideia, 1977, p. 379. [tradução nossa: Jesus é o Messias no sentido pleno da profissão de fé Cristã, ao qual pertence a
preexistência (1,30, cf.15) e que com a sua morte sacrificial e expiadora, como „cordeiro de Deus‟
(1,29.36) leva a salvação ao mundo inteiro.] 296
MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de João, p. 140. 297
Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. V. I, p. 181. 298
Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de João, p. 147: “na cruz ocorrerá a
manifestação plena e definitiva da glória-amor, de que dará solene testemunho o evangelista (19,35). De
forma simbólica, a glória-amor manifesta-se ao ficar aberto pela lançada o interior de Jesus e derramar-se
sangue (seu amor que chega a dar a vida pelo homem) e a água (o Espírito ou amor que ele comunica ao
homem).”
68
ser-lhe útil à sua glória, ou seja, à sua presença. Deste modo, já aqui nas bodas de Caná,
além da hora que vai se dirigindo para a cruz (cf. Jo 12,27), também o tema da
glorificação irá se direcionando para este momento (cf. Jo 12,28), onde a entrega do
servo será plena, “levado como cordeiro ao matadouro” (Is 53,7).
Segue-se à passagem de Caná o episódio de Jesus no Templo (cf. Jo 2,13-22). A sua
presença inicialmente se parece com a presença de justos que quiseram purificar o
Templo299
; também se identifica com uma esperança que podia estar em João Batista e
em movimentos como os essênios de Qumran, que pareciam esperar a purificação do
culto, ou seja, esperavam, no tempo de “salvação vindouro, a restauração do culto
legítimo”300
. Mas, em Jo 2,13-22, a temática é da substituição, isto já havia se
configurado na saudação do Batista e ganhado ênfase na substituição das águas para
purificação (cf. Jo 2,7-9); agora ganha maior notoriedade na passagem do Templo, o
que Mateos e Barreto titulam: substituição do Templo301
.
A relação de Jesus com o Templo expõe uma conexão com o contexto anterior em
que Jesus é chamado de Cordeiro de Deus302
, sobre esta passagem (cf. Jo 2,13-22) vale
ressaltar que o Evangelho segundo João, coloca dentro da festa da Páscoa, quando se
imola o cordeiro pascal. Expondo que a relação aqui disposta, no início da vida pública
de Jesus, torna-se reflexo da expectativa do novo culto303
e, ao mesmo tempo, passa a
apontar para a manifestação da glória do Pai na glorificação de Jesus, fazendo de Jesus
o lugar do encontro com Deus304
. Aquele, que antes, havia usado a água da purificação,
agora se torna também o lugar do encontro com Deus, o que será plena na reconstrução
de seu corpo, quando da ressurreição (cf. Jo 2,22).
Nesta passagem de Jo 2,13-22, Jesus desmonta não só a estrutura comercial do
Tempo, mas simbolicamente desestrutura a ordem dos sacrifícios, como se eles já não
299
Cf. MOLONEY, Francis J. Reading John 2:13-22: the purification of the temple. RB, Paris, n 3, 1990,
p. 443: “the disciples in the story and the implied reader who is emerging from the story are able to
recognize in Jesus a passionate figure committed to the honour of God unto death, like Phineas, Elijah or
Mattathias (see Num 25:11; 1Kings 19:10, 14; Sir 48:2; 1 Macc 2:24-26).” [tradução nossa: os discípulos
do relato e o leitor implicado que emerge do mesmo estão aptos a reconhecerem em Jesus uma figura
apaixonada e comprometida com a honra devida a Deus até à morte, tal como Finéias, Eleazar ou
Matatias (cf Num 25,11; 1Rs 19,10.14; Eclo 48,2 Mac 2,24-26).] 300
LOHSE, Eduardo. Contexto e ambiente do Novo Testamento, p. 92. 301
Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de João, p. 150. 302
Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. V. I, p. 193. 303
THEISSEN, Gerd. A religião dos primeiros cristãos, p. 194. 304
Cf. MOLONEY, Francis J. Reading John 2:13-22: the purification of the temple. RB, p. 428: “the
presence of God to Israel in this Temple will be replaced by the presence of the Temple of the body of
Jesus.” [tradução nossa: “a presença de Deus para Israel neste Templo será substituída pela presença do
Templo do corpo de Jesus.”]
69
fossem necessários305
, uma vez que o cordeiro ofertado por Deus estava lá e agora a
ordem do amor é o que seria agradável a Deus306
, substituindo a antiga ordem. Vale
recordar que desde os antigos profetas já existiam posições contrárias à lógica sacrificial
e propostas de substituição por práticas vinculadas à justiça e a misericórdia (cf. Is 1,
11-17; Os 5,6-7).
O sumo sacerdote, responsável pelo Templo, para grupos essênios e apocalípticos
tinha se tornado impuro para prestar culto a Deus307
, e Jesus ao criticar o Templo o faz
direto aos dirigentes do povo, uma vez que a estrutura mercantil do Templo favorecia a
estes. Na discussão com os chefes judeus, Jesus, pela linguagem, demonstra a proposta
de superação dessa estrutura para se chegar ao essencial, pois ao fazer o paralelo
destruir-reerguer, ele utiliza a palavra naós, isto é, santuário. Deixando na descrição
joanina uma sutileza: o santuário é o lugar mais íntimo do Templo e como se pode ver
na descrição do Kippur, somente o sumo sacerdote entra lá uma vez por ano. É, por
excelência, o lugar do encontro com Deus. É também o nome que a tenda recebia antes
da construção do Templo, e agora, o naós, santuário a ser reerguido em três dias será o
seu corpo308
, o mesmo que levará as marcas da entrega e exaltação na cruz (cf. Jo
20,27).
Theissen lembra que não há registro em que Jesus tenha realizado os ritos de
purificação ao se aproximar a Páscoa309
. No entanto, como um judeu que subia em
peregrinação a Jerusalém é possível que os celebrasse. Em si, o caminho teológico do
Jesus joanino é gradual, com aceitações e rejeições, em direção ao sacrifício do
cordeiro. No paralelo entre as bodas de Caná (cf. Jo 2,1-11) e a purificação do Templo
(cf. Jo 2,13-22), Moloney enfatiza que Maria acreditou na palavra de Jesus, ao passo
que os chefes se furtaram a tal confiança310
, o que se estenderá até a execução de Jesus
na cruz. Sua mãe estará lá, e os chefes o entregarão porque não o aceitaram. Por sua
vez, os discípulos mais tarde verão que Jesus não é somente mais um piedoso que zela 305
Cf. TAYLOR, Justin. As origens do cristianismo, p. 55: “no episódio da purificação do Templo (Jo
2,13ss), com uma alusão a sua morte e ressurreição, Jesus neutraliza o sistema comercial de sacrifícios e,
assim, todo o culto expiatório.” 306
Cf. THEISSEN, Gerd. A religião dos primeiros cristãos, p. 268-269. 307
Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. V. I, p. 202. 308
Cf. KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João: amor e fidelidade. São Paulo: Loyola, 2005, p. 109:
“numa típica „reflexão joanina‟ (como no v. 17), o evangelista comenta que Jesus estava falando não do
templo de pedras, e sim do santuário que é ele mesmo (v. 21: „seu corpo‟). Ele é quem vai ser destruído e
„erguido‟ em três dias. Jesus é o verdadeiro santuário, o lugar ou morada em que Deus se deixa
encontrar.” 309
Cf. THEISSEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus histórico: um manual. São Paulo: Loyola, 2002, p.
459. 310
Cf. MOLONEY, Francis J. Reading John 2:13-22: the purification of the temple. RB, p. 447.
70
pela casa do Pai, a exemplo de personagens antigos, mas, o lugar do encontro com o
Pai311
.
Dentro do caminho teológico da saudação Batista ao Gólgota, chama a atenção o fato
de o Quarto Evangelho ter colocado a „purificação do Templo‟ no início da vida
pública de Jesus, ao invés de seguir a cronologia sinótica, que coloca este
acontecimento na semana da Paixão (cf. Mt 21,12-17; Mc 11,15-19; Lc 19,45-48). Para
Flanagan312
, a cronologia sinótica para a purificação do Templo, próxima à morte de
Jesus, é mais aceitável, visto que este seria um gesto chave para sua execução. No
entanto, para a comunidade joanina, a purificação do Templo está posta aí neste paralelo
entre os que crêem e os que não creem, mas o relevante é que o conflito se dá com os
chefes do povo, aqueles que viviam às custas da estrutura central do Templo, ou seja,
aqueles que tinham esvaziado o culto a Deus, mas agora, o “cordeiro de Deus não só
põe ordem no Templo, como manifesta que sua presença torna esses ritos sacrificiais
peremptos”313
. Aqui se apresenta mais um passo do caminho teológico: a Páscoa, que os
chefes impunham ao povo, será substituída pela Páscoa celebrada pelo cordeiro ofertado
por Deus. O ápice desta Páscoa será a reconstrução do santuário que é o corpo chagado
do cordeiro reerguido.
Os dois textos, até agora expostos no caminho teológico, deixam claro que o
Evangelho segundo João se nutre da entrega gratuita de Jesus, por amor ao Pai e aos
seus. Esta oferta recebe forte acento na saudação do Batista e se cumpre no Gólgota;
sendo que Jo 2,1-11 de Jo 2,13-22, apresentam-se mais estreitamente ligados à saudação
do Batista, mas já convergindo para o Gólgota. Como menciona Cavicchia, todo o
Quarto Evangelho anda para o Gólgota314
; lá acontece a glorificação do cordeiro.
No capítulo do Evangelho segundo João, que se segue, aparece um personagem da
aristocracia judaica do Templo. Ora, se antes havia uma dificuldade entre Jesus e os
chefes do Templo, agora aparece Nicodemos, “um dos fariseus e um dos chefes dos
judeus” (cf. Jo 3,1), reforçando a tese de Blanchard, de que havia no grupo de Jesus
311
Cf. Idem ibidem, p. 449. 312
Cf. BERGANT, Dianne; KARRIS, Robert J. (Orgs.). Comentário Bíblico: Evangelhos e Atos,
Cartas, Apocalipse. V. III. São Paulo: Loyola, 2010, p.112: “Jesus vai a Jerusalém no tempo da páscoa
(v.13) no início de seu ministério. Isso contrata com os outros Evangelhos, nos quais Jesus vai a
Jerusalém apenas uma vez e, então, bem no fim de seu ministério[...] é provável que a purificação do
Templo tenha ocorrido quase no fim da vida de Jesus, como os sinóticos indicam (Mateus, Marcos e
Lucas), sendo a última gota que levou à condenação de Jesus.” 313
LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. V. I, p. 197. 314
Cf. CAVICCHIA, Alessandro. Guarderanno a Colui che hanno trafitto. Ant. Roma, n. 3, 2012, p. 452.
71
alguns membros que teriam vindo do grupo dos mestres de Jerusalém315
. A presença de
mestres de Jerusalém, na comunidade do Discípulo Amado, ratifica que a imagem do
cordeiro foi se impondo, porque as bases da comunidade joanina estavam montadas em
grupos que conheciam tal tradição e suas implicações na vida litúrgica de Israel. Mas,
aqui, a pesquisa se deterá sobre o v. 14, quando no diálogo com um dos chefes dos
judeus, o Jesus joanino aproveita o ensejo para indicar qual seria o ganho da fé nele.
O personagem Nicodemos, unicamente presente na tradição joanina, aparece três
vezes: no encontro com Jesus (cf. Jo 3), tentando defender Jesus (cf. Jo 7,50) e nas
narrativas da Paixão, inclusive no sepultamento (cf. Jo 19,39). O fato de se encontrar
buscando o corpo de Jesus parece que Nicodemos compreendeu a fala de Jo 3,14, isto é,
que Jesus, sendo exaltado, traria a vida que se ganha pela elevação, outrora da serpente,
agora do servo-cordeiro316
, pois uma das esperanças prescritas para o servo em Is 52,13,
é que ele será elevado, isto é, glorificado, portanto quando o Quarto Evangelho faz a
transposição da imagem da serpente à Jesus, ele recorre a mais uma das fortes tradições
do deserto (cf. Nm 21,9), a qual era por demais cara aos fariseus, mas aliando-a ao tema
da elevação do servo, trazendo para o centro uma imagem conhecida para Nicodemos.
Todavia, sua plena compreensão será possível no evento do Gólgota, a exemplo da
saudação do Batista.
Na visão de Mateos e Barreto, em Jo 3,14 segue-se a descrição da messianidade de
Jesus, dentro da trajetória do amor que pode assumir até mesmo a morte, uma vez que o
seu poder não se alia aos padrões dos impérios, mas se mostra na capacidade de doar a
própria vida: esta é a messianidade de Jesus, como um cordeiro levado ao matadouro.
Por esta entrega legará a vida eterna, e ao ser humano compete a adesão de fé,
o homem deve dar o passo, saindo das trevas para entrar na zona da
luz, onde está Jesus. Este passo identifica-se com o seu êxodo, que
consiste em sair do „mundo‟, a ordem injusta (8,23; 15,19;
17,6.14.16). Em oposição à adesão recebida em Jerusalém (2,23), que
Jesus não aceitou porque supunha concepção equivocada do seu
messianismo, expõe [agora em 3,14] o verdadeiro termo da adesão: o
Homem levantado, e a autêntica concepção do Messias: o Filho de
Deus, prova de amor.317
O jogo de palavras utilizado pelo evangelista crer e ver se implicam ao longo do
texto evangélico. O crer de Jo 3,14 está relacionado ao olharão de Jo 19,37, seria o “ver
315
Cf. BLANCHARD, Yves-Marie. São João. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 34-35. 316
Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. V. I, p. 232. 317
MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de João, p. 185.
72
da fé”318
; ao ter contato com a narrativa de 19,37 “o leitor/ouvinte lembra-se do olhar
salvífico dirigido ao Filho do Homem „enaltecido‟, simbolizado na serpente que Moisés
alteou no deserto (Jo 3,14-15)”319
. O crer emerge da visão que consegue ultrapassar o
imediato que acontecerá na cruz, lugar da exaltação do amor de Jesus. O ver no
Evangelho joanino não corresponde unicamente à visão óptica, mas, sobretudo, “ver é
ser transformado nessa visão da realidade”320
, ao mesmo tempo, ver é crer, é estar na
presença de Deus (cf. Jo 14,9), e “estar na presença de Deus é ter „a vida eterna‟”321
.
Cavicchia considera que ver e crer se entrelaçam quando a lança traspassa o lado de
Jesus322
, onde se chega à fé ao olhar-crer na prova de amor de Jesus. O ver-crer requer
a adesão ao Filho de Deus e, com isto, o evangelista retoma o tema da oferta de Jo 1,29
e suas conseqüências em Jo 19,34-37, colocando o caminho do crer entre os dois
episódios: a oferta dada por Deus e o sacrifício aceito por amor, o ver e crer estão de tal
modo implicados, que “aquele que vê dá testemunho” (Jo 19,35).
Após o encontro com Nicodemos, aquele que figura a presença de mestres judeus na
comunidade joanina, agora se segue mais uma conexão entre Jo 1,29 e Jo 19,34-37 na
passagem de Jesus pela Samaria (cf. Jo 4,1-42). Uma passagem que fundamenta a
presença de samaritanos no interior da comunidade joanina323
. O primeiro capítulo desta
pesquisa já se deteve sobre a relação entre judeus e samaritanos e as implicações a
respeito do culto e da Torá. No entanto, agora esta passagem se mostra como mais um
passo que converge para o Gólgota e expõe Jesus mais uma vez propondo uma
substituição cúltica. Aqui a pesquisa se deterá sobre dois pontos específicos: Jo 4,10:
Jesus respondeu: „se conhecesses o dom de Deus e quem é aquele que te diz: dá-me de
beber‟, tu lhe pedirias, e ele te daria a água viva e ainda o texto de Jo 4,21: mulher
acredita-me: vem a hora em que nem nesta montanha, nem em Jerusalém adorareis o
318
MAGGIONI, Bruno. Os relatos evangélicos da paixão. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 328. 319
MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de João, p. 186. 320
SCROGGS, Robin. O Jesus do povo: trajetórias no cristianismo primitivo. São Paulo: Paulus, 2012,
p. 285. 321
Idem ibidem, 284. 322
Cf. CAVICCHIA, Alessandro. Guarderanno a Colui che hanno trafitto. Ant., p. 463: “la temática
„vedere‟ e „credere‟ diventa oltremodo significativa quando è conessa con il segno del Figlio dell´Uomo,
che ricorre in modo esplicito in quatro brani: 1,50-51, nel dialogo con Natanaele; in 3,12-18, nel dialogo
con Nicodemo; in 8,28-30 durante la Festa de Capanne;[...]tra questi brani si può notare una sorta di lenta
manifestazione del fatto che l´essere innalzato e glorificato coincide con il dare la vita e morrire.” [
tradução nossa: a temática „ver e „crer‟ torna-se sobremodo significativa quando é interligada ao sinal do
Filho do Homem, que ocorre de modo explícito em quatro trechos: 1,50-51, no diálogo com Natanael; em
3,12-18, no diálogo com Nicodemos; em 8,28-30 durante a Festa das Tendas; [...] nestes trechos é
possível perceber uma espécie de lenta manifestação do fato que o ser exaltado e glorificado coinscide
com o dar a vida e morrer.] 323
Cf. BLANCHARD, Yves-Marie. São João, p. 35.
73
Pai. Estas duas passagens, dentro do conjunto do encontro com a samaritana, expõem a
convergência para o Gólgota.
Em Jo 4,10, Jesus se coloca como a fonte de água viva; fonte que antes era
identificada com a Torá324
, e agora sofre uma substituição, segundo a comunidade
joanina. Tal fato será pleno quando do lado de Jesus sair sangue e água. Na cruz, no
episódio do coração traspassado (cf. Jo 19,37), Jesus é a fonte de água viva, que é
interpretado como doação da vida eterna, pois Jesus doa a própria vida e doa o
Espírito325
, uma vez que a imagem da água viva326
passa a ser vista como o Espírito327
.
A água viva indica o Espírito que Jesus dará aos que nele creem,
observe-se que Jesus nunca diz „Eu sou a água viva‟ como diz „Eu sou
o pão‟, mas sempre: „darei a água...‟, porque a água é o símbolo do
Espírito, e não imediatamente de Jesus. Mas no conjunto do
Evangelho a água é símbolo não somente do Espírito, mas também da
revelação de Cristo.328
Segundo o Evangelho joanino, além da substituição da fonte de água viva, que a
tradição judaica e samaritana reconheciam como sendo a Torá, Jesus propõe também
uma substituição do lugar do culto. Aquilo que havia sido indicado na passagem da
„purificação‟ do Templo (cf. Jo 2,13-22), agora é retomado no diálogo com a
samaritana; isto é bastante relevante para a convivência de judeus e samaritanos no
interior da comunidade joanina, uma vez que, um dos grandes entraves entre estes
povos era o lugar para o culto. Segundo os samaritanos, o lugar seria Garizim e para os
judeus, o lugar determinado por Deus seria Jerusalém. No entanto, o Jesus joanino
depõe os dois lugares e declara que nem aqui nem ali, mas em espírito e verdade (cf. Jo
4,23), despertando mais uma reflexão sobre a substituição que ele realiza: primeiro a
Torá, sendo ele a fonte de água viva; depois Garizim e Jerusalém, sendo ele o lugar de
culto, aliás, como cordeiro ele é o novo lugar de culto e a oferta para a nova Páscoa,
onde os reinos do Norte e do Sul podem ser novamente um só povo.
324
Cf. SEGALA, Giuseppe. Giovanni. Tusculli: Pauline, 1978, p. 192: “nella tradizione guidaica ed
anche a Qumran (CD 3,16; 6,3-9; 19,34) „acqua viva‟ era chiamata la Tora (= Legge). Gesù la sostituisce.
L´acqua viva che dona diventa principio interiore di vita.” [tradução nossa: na tradição judaica, bem como
em Qumram (CD 3,16; 6,3-9;19,34) „água viva‟ era o nome dado à Tora (=Lei). Jesus a substitui. A água
viva que Ele oferece se torna princípio interior de vida.] 325
Cf. CAVICCHIA, Alessandro. Guarderanno a Colui che hanno trafitto. Ant., p. 456. 326
Cf. SEGALA, Giuseppe. Giovanni, p. 192. 327
Cf. KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João, p. 126. 328
FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos, p. 361.
74
Aquele que dará a água viva, que é o Espírito, é o mesmo que trará o verdadeiro
culto329
, ainda no v. 22 há uma referência à hora, ligando esta fala do Jesus joanino com
o momento do Gólgota, como afirma Rubeaux,
no quarto Evangelho tudo converge para essa hora, que é a hora da
glorificação. É nessa hora que a glória de Deus será total e plenamente
revelada em Jesus Cristo. É nessa hora que Jesus realizará em todos os
sentidos a simbologia do Cordeiro. É nessa hora que vai manifestar-se
a sua divindade.330
De fato, a hora liga profundamente a compreensão de cordeiro com o momento da
entrega, que acontece na cruz; deste modo, o diálogo com a samaritana, não só viabiliza
uma superação de conflito entre os dois povos, “pois o culto e o lugar do culto eram
pontos de divergências entre samaritanos e judeus”331
; mas substitui o núcleo deste
conflito, favorecendo o encontro de samaritanos e judeus no interior da comunidade
joanina. Assim, neste caminho teológico, desde a saudação do Batista até a cruz, a
parada na Samaria foi providencial para se compor mais um nexo entre as duas
passagens, revelando que a adoração não será mais nem em Jerusalém e nem em
Garizim, mas na pessoa de Jesus, aquele que é a verdade do Pai, a oferta do verdadeiro
culto332
.
Em Jo 6,44.47 se encontram mais elementos deste caminho teológico, no que se
refere ao uso do verbo atrair (elkiso), também utilizado em Jo 12,32, quando Jesus no
discurso da despedida se refere a ser exaltado (upsotenai), levantado, para indicar de
que morte iria morrer (cf. Jo 12,33), referindo-se à morte na cruz. Nestas duas
passagens Jo 6,44 e Jo 12,32 o uso do verbo elkiso333
, segundo Schnackenburg, recorda
a atração por amor que Deus promete em Os 11,4 e em Jr 38,3, segundo a tradução
LXX334
, revelando que a atração é um ato de amor de Deus e não uma imposição,
329
Cf. RUBEAUX, Francisco. Ainda não havia o Espírito: o Espírito Santo no quarto Evangelho. EB,
Petrópolis, n.45, 1995, p. 38: “Jesus é o Novo Templo e, portanto o lugar onde reside o Espírito. A
presença em Jesus, do Espírito, o revela também como o Templo escatológico: o Templo, nem em
Jerusalém nem nessa montanha, mas onde estão os adoradores em Espírito e Verdade.” 330
Idem ibidem, p. 39. 331
Cf. BERNARDINO, Orides. O diálogo de Jesus com a samaritana: os verdadeiros adoradores adorarão
o Pai em espírito e em verdade. EB, Petrópolis, n. 106, 2010, p. 70. 332
Cf. DEBATIN, Osmar. A compreensão da verdade no Quarto Evangelho. EB, Petrópolis, n. 106,
2010, p. 53: “A „verdade‟ de Cristo é a „verdade‟ porque é a „verdade‟ de Deus: „eu estou no Pai e o Pai
em mim‟ (Jo 14,11). Ela, portanto, nos é transmitida na pessoa de Jesus Cristo. E, a „verdade‟ que está em
Cristo conduz os seres humanos à „verdade‟ de Deus (14,6), porque, em realidade, eles também se tornam
uma partícula da „verdade‟, desde que venham a ser remidos pelo sangue do Cordeiro (Jo 3,33; 17,3; Ap
3,7).” 333
Cf. RODRIGUEZ LLAMAS, Juan Miguel. Za 12,10 en Jn 19,37: estudio desde la perspectiva de la
teologia bíblica. CD, v. 57, 2011, p. 34: “designa en definitiva la función soteriológica del Hijo del
Hombre: el Padre llama a los hombres en Cristo, invitándoles a compartir su vida divina.” 334
Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. Il Vangelo di Giovanni: parte seconda, p. 110.
75
portanto, inserir este verbo dentro do discurso do pão da vida, expõe a entrega como um
ato gratuito de amor.
Uma peculiaridade da concepção de atração joanina é o paralelo levantado pelo
comentário de Mateos e Barreto335
: na primeira Páscoa que, no Quarto Evangelho, Jesus
foi a Jerusalém, ele fez a substituição a respeito do Templo e na terceira Páscoa, “nesta
festa devia-se subir a Jerusalém (cf. Jo 2,13; 11,55), mas o povo seguirá Jesus em vez
de ir em peregrinação à capital”336
, indicando, já um conflito entre os que se sentem
atraídos e os que optam por rejeitar Jesus. O que vai delineando, segundo Mateos e
Barreto, a diferenciação entre a Páscoa dos chefes judeus e a Páscoa de Jesus, “dando
início ao novo êxodo”337
, naquele que é o Cordeiro Pascal, o qual atrai, pela graça do
Pai, todos a si, não excluindo ninguém, a não ser aqueles que optam pelo contrário338
.
A atração será plena na cruz, onde o crer e o ver coincidem339
, de modo, que ter a
visão atraída por Jesus pode implicar fé, visto que se contemplará a prova de amor de
Deus em Jesus340
, e, ao mesmo tempo, abrir-se-á à comunhão com Deus, pelo que se
pode recordar que um dos fins dos sacrifícios no culto em Israel é retomar esta
comunhão. E uma vez, a Páscoa sendo vivida agora em Jesus, Ele é o lugar da
comunhão e a nova Páscoa, isto é, o cordeiro assume aquela função que tinha se dado na
noite do antigo êxodo. A marca nos umbrais atraía o favor de Deus e poupava da morte
(cf. Ex 12,13); por sua vez, agora o Pai atrai a Jesus e poupa da morte eterna os que nele
creem, dá a vida eterna (cf. Jo 6,47).
Prosseguindo na constatação do caminho teológico entre Jo 1,29 e 19,34-37, verifica-
se que na redação do Quarto Evangelho, a comunidade joanina se empenhou em coletar
tradições que viabilizassem o seu projeto teológico, tendo seu ponto alto no Gólgota;
elemento que percorre todo o Evangelho, com acenos bem claros, com o fim de
convergir para a elucidação da saudação Batista: eis o cordeiro de Deus (Jo 1,29), que
acontece no evento da cruz341
.
335
Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de João, p. 293. 336
Idem ibidem, p. 300. 337
Idem ibidem, p. 300. 338
Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. Il Vangelo di Giovanni: parte seconda, p. 110. 339
Cf. RODRIGUEZ LLAMAS, Juan Miguel. Za 12,10 en Jn 19,37: estudio desde la perspectiva de la
teologia bíblica. CD, p. 39. 340
Cf. Idem ibidem, p. 34: “sin embargo el evangelista va más allá: contempla la crucifixión como el
comienzo de la glorificación de Cristo, de su ascenso al Padre trás cumplir la misión que le fue
encomendada. La tarea de Cristo es, por su própria natureleza soteriológica e se orienta a mostra el amor
de Dios a los hombres, para que éstos, atraídos por Jesucristo entren en comunión con el Padre.” 341
Cf. CAVICCHIA, Alessandro. Guarderanno a Colui che hanno trafitto. Ant. Roma, n. 3, 2012, p. 452:
“tutto il Vangelo, e verosimilmente molti dei singoli episodi che lo costituiscono, sembrano convergere
76
Em Jo 7,37 se encontra mais um aceno entre a saudação do Batista e o Gólgota. Até
o presente texto, os acenos estão mais referentes à festa da Páscoa, mas aqui ele se
encontra dentro da festa mais popular em Jerusalém342
, a Festa das Tendas. O relato
informa que “no último dia e mais importante da festa” (Jo 7,37), Jesus se proclama
aquele que mata a sede do povo. Ora, a Festa das Tendas acontecia com vários ritos,
entre eles o rito de libação da água343
, que inclusive lembrava a travessia do deserto344
e
agora, aquele que já havia substituído, segundo o Evangelho joanino, o cordeiro, o
Templo, as talhas da purificação, a Torá, agora substitui a fonte da água da festa345
. O
rito de se ir à piscina de Siloé346
perde sentido, pois agora Jesus é a fonte da verdadeira
vida, o que se cumprirá plenamente na cruz. Lá é dado o Espírito, como menciona Jo
7,39; Espírito que seria concedido mediante a sua glorificação347
. O Quarto Evangelho
ao aliar o dom da água com o dom do Espírito coloca Jesus em mais uma situação de
substituição em relação ao Templo, uma vez que na tradição do profeta Ezequiel, é do
Templo que jorra a água que vai gerando vida por onde passa (cf. Ez 47,1.8-12), mas,
agora, a vida verdadeira nasce do Espírito que jorra do lado aberto de Jesus na hora da
sua glorificação348
.
O caminho rumo ao Gólgota vai ganhando contornos de entrega; o cordeiro vai se
apresentando como oferta consciente e livre como atesta Jo 10,18, ao Jesus afirmar que
“ninguém me tira a vida, mas eu a dou por própria vontade. Eu tenho o poder de dá-la,
como tenho poder de recebê-la de novo”. Neste contexto do discurso do bom pastor,
Jesus expõe sua capacidade de se despojar da própria vida para garantir a vida ao
verso il momento del Golgota, che diventa culminante”. [tradução nossa: todo o Evangelho, e
verossimilmente muitos dos episódios singulares que o constituem, parecem convergir para o momento
do Gólgota, que se torna culminante.] 342
Cf. MOLONEY, Francis J. The Gospel of John. V. IV, p. 233. 343
Cf. AVRIL, Anne-Catherine. As festas judaicas. São Paulo: Paulus, 1997, p. 75: “na época do
Templo, a partir da segunda noite da festa, tirava-se água, solenemente, em Siloé. Levavam-se em
procissão, com círios e muita alegria, até o altar do Templo pra fazer as libações. Esta cerimônia estava
provavelmente ligada à próxima chegada das chuvas. A água era o símbolo do Espírito Santo.” 344
Cf.Idem ibidem, p. 62. 345
Cf. SEGALA, Giuseppe. Giovanni, p. 260. 346
Cf. GONZÁLEZ ECHEGARI, Joaquín (Org.). A bíblia em seu entorno, p. 330: “[na Festa dos
Tabernáculos] os pátios do templo eram ilumados e o povo dançava durante toda a noite até a chegada do
alvorecer, quando se descia à piscina de Siloé para recolher a água da libação que seria oferecida no altar” 347
Cf. RUBEAUX, Francisco. Ainda não havia o Espírito: o Espírito Santo no quarto Evangelho. EB, p.
40: “do lado aberto de Jesus, que está na cruz da glorificação, não podemos esquecer, saem sangue e
água, fato que nos faz lembrar a atitude de Jesus no último dia da festa das tendas, no Templo de
Jerusalém.” 348
Cf. Idem ibidem, p. 40: “a simbologia usada por João para falar do Espírito encontra, na hora da cruz-
glorificação, seu pleno sentido. Se nos lembrarmos ainda do profeta Ezequiel: „a água descia do lado
direito do Templo[...]‟(Ez 47,1), poderemos unir este pensamento teológico ao de João quanto ao dom do
Espírito [pois][...] do novo Templo que é Jesus, vem o Espírito que como uma água viva sacia todos
aqueles que buscam o Caminho, a Verdade e a Vida.”
77
rebanho; agora parece que o Evangelho segundo João quer substituir aqueles que ao
longo o Evangelho foram resistindo à revelação de Jesus, isto é, agora ele demonstra
que os chefes dos judeus, aqueles que ele chamou de judeus ao longo do texto, nem
cuidam das ovelhas e nem são capazes de dar a vida, retomando uma crítica à lideranças
que havia sido feita pelo profeta Ezequiel (cf. Ez 34). No entanto, em Ezequiel não
figurava a capacidade de o pastor dar a vida por suas ovelhas, mas cuidar delas, por sua
vez, o discurso de Jesus traz uma novidade: a capacidade de o pastor dar a vida349
.
Ao se considerar a proposta de Rodriguez Llamas, a figura do bom pastor joanino
seria a ação de Deus contrária à má atitude dos maus pastores em Zc 10,2, àqueles que
causaram a dispersão do povo350
; por atitude contrária, o pastor vai reunir o rebanho,
mesmo que entregando sua vida,
el hecho de el redactor de Cuarto evangelio haya considerado
oportuno incluirlos a continuación del v. 16 sugere que la muerte de
Jesucristo era condición necesaria para que se produjera la reunión
efectiva de las ovejas [...] las esperanzas de unidad de Zacarías
proyectadas en el capítulo 10 de San Juan hacen surgir una nueva
característica del pastor: se trata de una figura mesiánica cuyo
cometido es reunir nuevamente a los que estabam dispersos.351
Seguindo esta linha de raciocínio, Rodriguez Llamas considera que as lamentações
que se seguem a Zc 12,10 são assumidas no Quarto Evangelho, quando se vive uma
contemplação dolorida do transpassado352
. Por sua vez, para Cavicchia, a fórmula
introdutória em Zc 12 se assemelha aos cânticos do Servo Sofredor (cf. Is 42-53),
fazendo do Senhor aquele que provê um servo, que, por uma morte expiadora, trará a
misericórdia ao seu povo, de modo que o traspassado de Zc 12,10 chega a se identificar
com o servo de Is 53,5353
, ou seja, aquele que é traspassado é o mesmo que é “levado
como cordeiro ao matadouro” (Is 53,7). O texto de Isaías revela que este servo vai
trazer o perdão354
e dá a entender que reunirá a multidão, algo semelhante ao que propõe
Rodriguez Llamas quando identifica o traspassado com o pastor.
349
Cf. RODRIGUEZ LLAMAS, Juan Miguel. Za 12,10 en Jn 19,37: estudio desde la perspectiva de la
teologia bíblica. CD, p. 62. 350
Cf. Idem ibidem, p. 74. 351
Idem ibidem, p. 75. 352
Cf. Idem ibidem, p. 78. 353
Cf. CAVICCHIA, Alessandro. Guarderanno a Colui che hanno trafitto. Ant., p. 247. 354
Cf. Idem ibidem, p. 247: „Il texto di Isaia non dice tuttavia como quest´uomo sia stato ucciso, o da chi,
ma solo che il risultato della sua morte offerta in sacrifício espiatorio è la reintegrazione del servo stesso,
adombrando così un´idea di risurrezione, ed il perdono di coloro che hanno condannato”. [tradução nossa:
O texto de Isaías não diz, no entanto, como este homem foi morto, nem por quem, mas tão somente, que o
resultado de sua morte, oferecida em sacrifício expiatório é a reintegração do servo mesmo, velando
assim uma idéia de ressurreição e de perdão daqueles que o condenaram.]
78
O dom do perdão favorece uma identificação entre a figura do servo e o dia do
traspassado do profeta Zacarias (cf. Zc 13,1 e Is 53,11), o que faz esses textos terem
caráter messiânico. Segundo Cavicchia, em Zc 12,10 e em Is 53: aí está a origem da
espera de um Messias que viria a sofrer pelo povo355
.
Diante de toda a problematização que passa o discurso do bom pastor, o relevante
para a presente pesquisa é que o Jesus joanino assume as esperanças messiânicas,
sobretudo as que dizem respeito àquela referente ao Messias sofredor, como já era
pontuado no primeiro capítulo desta pesquisa. De certo modo, o plano teológico da
comunidade joanina vai se desenvolvendo com a constatação de que o cordeiro é o
servo-expiador, o mesmo traspassado, que traz o perdão e a vida eterna para todos os
que se deixarem atrair. Todavia, esta entrega não se configura como uma imposição,
mas numa entrega livre e consciente, como expõe o texto de Jo 10,18: “ninguém tira a
minha vida, eu a dou”.
Dando continuidade ao caminho teológico entre Jo 1,29 e 19,34-37, chega-se a dois
textos que se interpenetram e comunicam a proximidade da hora de Jesus. São eles Jo
12,27-28 e Jo 17,1. Ambos são dados como textos da despedida de Jesus356
, o que será
demonstrado também pela linguagem, uma vez que a partir de 11,55, não se verá mais
a expressão „Páscoa dos judeus‟, mas somente Páscoa, o que Mateos e Barreto analisam
considerando que,
a partir de 12,1 (11,55b é ambíguo), chamar-se-á simplesmente de „a
Páscoa‟, pois se referirá, sobretudo à Páscoa de Jesus, que é a de
Deus. Esta chegará ao seu termo com o sacrifício do Cordeiro (19,28-
30), ao passo que a Páscoa judaica ficará trancada na preparação e
nunca chegará a ser celebrada (19,42).357
O nexo entre a saudação do Batista e a hora da auto-oferta de Jesus se entrelaçam,
significando que, de fato, o novo cordeiro manifesta a glória do Pai; ele é a presença de
Deus, como outrora o foi a tenda no deserto; Jesus que tanto substitui, agora é a
shekinah de Deus358
. A manifestação da glória acontece nos sinais, mas por excelência
acontece no Gólgota, uma vez que “a glorificação de Jesus não é levada a efeito
355
Cf. Idem ibidem, p. 442. 356
Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de João, p. 517. 357
Idem ibidem, p. 517. 358
Cf. ARAÚJO, Gilvan Leite de. ARCA DA ALIANÇA, in
http://periodicos.est.edu.br/index.php/estudos_teologicos/article/viewFile/205/224 acessado em
03/11/2012, p. 247: “No relato da consagração do Templo de Jerusalém, o tema da nuvem,
possivelmente, aparece dentro da tradição sacerdotal e quer dizer que o Senhor toma posse do Templo,
como é sugerido pelo próprio texto a partir da exclamação de reconhecimento de Salomão. Nessa
perspectiva, entramos no tema da shekinah ou da presença divina.”
79
meramente por sua entrada no céu; torna-se uma realidade por seus sofrimentos, morte e
ressurreição (Jo 12:23-28)”359
.
A passagem de Jo 12,27-28 é uma expressão do lamento de Jesus, e de sua
intimidade com Pai, de modo que o seu propósito se expõe como sendo o desejo de
glorificar o nome de seu Pai (cf. Jo 12,28a), aliando o conceito da hora da morte de
Jesus à hora da glorificação360
, fazendo de ambos um só momento teológico, no qual se
cumpre todo o caminho teológico do Quarto Evangelho. Este cumprimento, segundo
Schnackenburg, é tão tenebroso em João quanto nos sinóticos361
, ou seja, a hora da cruz,
não se romantiza no Evangelho segundo João, mas pelo contrário, ao Jesus joanino
dizer: “minha alma está perturbada” (Jo 12,27a), está exatamente dando à proximidade
da cruz o temor que lhe é devido, no entanto, a determinação de Jesus e sua fidelidade
ao Pai se revelam como mais fortes que a dor da cruz (cf. Jo 12,27b). Por sua vez, o Pai
não lhe falta e o glorificará logo (cf. Jo 12,28), de modo que Jesus conta com o amor
eterno do Pai362
e convictamente não se sente sozinho.
A chegada da hora é também tema em Jo 17,1, quando em mais uma moldura de
despedida Jesus eleva orações ao Pai, com uma clara conotação de conclusão da obra
que o Pai lhe confiou. Aqui em 17,1, apresenta-se mais uma vez a temática da hora363
aliada à glorificação, no entanto, trazendo um adicional (cf. Jo 17,5): Jesus existia antes
da criação do mundo, como é atestado no prólogo joanino (cf. Jo 1,1-3), e que se
expressa de forma cabal em Jo 17,5.
O que ocorrerá, a partir de Jo 17 será o processo de execução de Jesus, e a
manifestação de sua glória, mas sempre com as marcas da exaltação na cruz (cf. Jo
20,27). Quanto a sua execução, é chegada em Jo 19, entretanto, para a comunidade
joanina, a morte de Jesus não se dá como a entrega de um homem à morte; Jesus não é
somente um homem de fé, que confia em Deus e aceita a morte. Ao contrário, a
comunidade joanina, ao longo deste caminho teológico vai tecendo a verdadeira
natureza da morte de Jesus e a sua função dentro do plano de salvação de Deus. Para o
359
AALEN, S. doxa, „esplendor‟, „glória‟, „reputação‟. In: DITNT. São Paulo: Vida Nova, 2000, p. 903. 360
Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. Il Vangelo di Giovanni: parte seconda, p. 641. 361
Cf. Idem ibidem, p. 642. 362
Cf. Idem ibidem, p. 643. 363
Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de João, p. 517: “chegou „a hora‟ anunciada em
Caná (2,4), cujo período começou seis dias antes da Páscoa (12,1.23); esta hora provoca a crise de Jesus
(12,27). Aqui não só anuncia que chegou, mas que também a aceita plenamente. Diante de sua hora, que
culminará em sua morte, Jesus está inteiramente tranquilo.”
80
Evangelho segundo João, Jesus é o Cordeiro Pascal, o sangue da nova aliança. Aqui se
realiza e conclui o novo êxodo364
que se havia anunciado na saudação do Batista.
O crucificado-traspassado é entendido, como visto em Rodriguez Llamas, como o
pastor ferido de Zacarias. Entretanto, deve chamar a atenção do leitor, que a imagem do
traspassado, está aí colocada na confirmação de uma prescrição pascal: “não lhe
quebraram nenhum osso” (Jo 19,36), no que agora a pesquisa se deterá.
2.3 Não lhe quebraram nenhum osso (Jo 19,36)
A comunidade joanina vai ao longo do Evangelho dando traços de sua composição e
trabalho de redação, pelo que vale recordar: a imagem do cordeiro, comum às várias
tradições no interior da comunidade joanina, favoreceu que a comunidade olhasse a
vida de Jesus e sua Paixão dentro de uma perspectiva litúrgica, em um processo
litúrgico que acompanhou por três anos as festas de Israel365
. Por exemplo, Jesus vai a
Jerusalém a três Páscoas (cf. Jo 2,13; 6,4; 12,1), ao passo que a tradição sinótica
menciona apenas uma Páscoa (cf. Mt 26,17; Mc 14,12ss; Lc 22, 7ss), informando o
leitor como a vida litúrgica do Povo da Aliança é importante para a comunidade
joanina.
Além da constatação da relevância das festas religiosas no Quarto Evangelho, toma
importância a saudação do Batista em Jo 1,29 e uma citação no episódio da Paixão, em
Jo 19,36; que atentam para a imagem do Cordeiro Pascal. Sobre a fala de João Batista,
como já mencionado, diz-se que pode haver, segundo o biblista Jeremias, quanto à
fonte, uma identificação com o Servo Sofredor, tendo sido possível um erro de
tradução, ao se traduzir talja de´laha do aramaico (que no hebraico seria:´ebed jhwh-
servo do Senhor) por amnós tou Teou para o Grego, visto que talja indica no aramaico
tanto servo como cordeiro366
. Parece que a comunidade joanina optou por uma junção
entre servo e cordeiro, na pessoa de Jesus. A imagem do Cordeiro Pascal recorda a
memória do Êxodo, isto é, da Páscoa, tema bastante frequente no Evangelho joanino,
364
Cf. Idem ibidem, p. 94: “a menção do cordeiro de Deus deve-se considerar, em primeiro lugar, à luz do
prólogo (1,14-17), dada a íntima conexão que tem com ele esta perícope (1,15.30). Ali, a pessoa e obra de
Jesus foram apresentadas em chave de êxodo (1,14: acampou, plenitude de glória; 1,14.16: nova
comunidade; 1,15.17: nova aliança), ou seja, em chave pascal. Também a oposição de Jesus Messias a
Moisés (Jo 1,17) inclui a idéia de novo êxodo. [...]estes dados tornam indubitável a expressão „o Cordeiro
de Deus‟, que anuncia ao mesmo tempo a morte de Jesus e a nova Páscoa, ou seja, o êxodo que Deus
realizará.” 365
Cf. BLANCHARD, Yves-Marie. São João, p. 13. 366
Cf. JEREMIAS, J. amnós. In: GLNT. V. I. Brescia: Paideia, 1965, p. 920.
81
como visto no caminho teológico e constatado ao se buscar a presença do cordeiro na
vida litúrgica de Israel. Por sua vez, a imagem do servo retrata o justo que carrega
nossos pecados, não tendo nenhuma culpa. Assume a expiação pelos pecados de
outrem. Diante do exposto, outro problema relevante, refere-se à fonte da citação: “não
lhe quebraram nenhum osso” (Jo 19,36), pelo que se pergunta: o Evangelho segundo
João está se referindo ao Cordeiro Pascal ou ao justo do Sl 34,21?
Segundo Léon-Dufour, Jo 19,36, teria a fonte em mais de uma passagem bíblica367
,
isto é, o redator joanino teria pensado não somente no Cordeiro Pascal de Ex 12 e Nm 9,
mas também no justo que sofre, do qual Deus conserva os ossos, segundo o Sl 34,21 (o
Senhor preserva todos os seus ossos, nem um só se quebrará). Deste modo, o Quarto
Evangelho faria uma junção entre as duas imagens. Esta perspectiva quanto à fonte
joanina também é compartilhada por Moloney, ao considerar que o Evangelho segundo
João utiliza, de forma não literal, a frase do Sl 34, mas tendo também em vista uma
prescrição ritual para o Cordeiro Pascal368
, constituindo, teologicamente, Jesus como
cordeiro e como o justo que sofre, mesmo sendo inocente, como ocorre na associação
entre a Paixão de Jesus e o destino do Servo Sofredor.
Tanto Léon-Dufour quanto Moloney, para fundamentar suas posições, utilizam a
pesquisa realizada por Menken369
, que defende em Jo 19,36 a citação do Sl 34,21, mas
mantendo a proposta de entender a entrega de Jesus, como a entrega do Cordeiro de
Deus; assim, Jesus é, segundo a pesquisa sobre a fonte, apresentado como o justo
sofredor e como o Cordeiro Pascal.
A respeito da fonte joanina ainda se levanta a possibilidade de o Sl 34,21 estar aí
para indicar desde a cruz o evento da ressurreição, como hipoteticamente lembra León-
Dufour; de fato, a tradição judaica defende a integridade do corpo, inclusive dos ossos,
para que aconteça a ressurreição. Deste modo, a citação estaria aí posta não para
367
Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João: palavra de Deus. V. IV. São
Paulo: Loyola, 1996, p. 123: “essa citação interpreta o fato de que os soldados não quebraram as pernas
do Crucificado. A citação não é literal e pode corresponder a duas passagens diferentes da Bíblia.” 368
Cf. MOLONEY, Francis J. Reading John 2:13-22: the purification of the temple. RB, p. 505. 369
Cf. MOLONEY, Francis J. The Gospel of John. V. IV, p. 509: “as well as the reference to Exod
12:10,46; Nm 9,12, there may also be reference to the righteous sufferer (cf. Ps 34,20-12). Menken, Old
Testament Quotations 147-166, shows that elements from the psalm and the Pentateuchal texts have been
combined in a way common in contemporary Jewish and Christian exegesis. Psalm 34,21 is the primary
text but the addition of the Pentateuchal texts indicates the evangelist´s understanding of Jesus as both the
righteous sufferer and the Paschal Lamb.” [tradução nossa: assim como a referência a Êxodo 12,10.46;
Nm 9,12, pode haver também referência ao justo sofredor (cf Sl 34,20-12). Menken, em Old Testament
Quotations (Citações do Antigo Testamento) 147-166 mostra que elementos dos salmos e dos textos
pentateuticos foram combinados de maneira comum na Exegese Judaica e Cristã contemporâneas. O
Salmo 34,21 é o texto principal, mas a adição dos textos pentateuticos indica a compreensão do
evangelista sobre Jesus como o justo sofredor e o Cordeiro Pascal.]
82
identificar Jesus com este ou aquele, mas para registrar que o seu corpo permaneceu
apto à ressurreição370
, no entanto, considerando a fala do Batista, a ligação do Jesus
joanino com a vida litúrgica de seu povo e os passos dados ao longo do caminho
teológico, é provável que tal intenção não estivesse distante, contudo não deve ser a
central.
Na comparação entre os textos, León-Dufour, a partir da pesquisa de Menken,
constata que “Jo retém o futuro singular do verbo do Salmo, mas usa o termo de Ex/Nm
para „osso‟”371
, isto é, há uma clara junção joanina no uso da fonte, de modo que “o
evangelista pode assim estar mostrando, pela referência simultânea a Sl 34 e Ex 12, que
o Cristo, que cumpre a profecia do Servo fiel, é também o verdadeiro Cordeiro pascal,
pelo qual Deus liberta o seu povo”372
.
No entender de Vidal, a proposta joanina ao fazer uma citação em Jo 19,36 não está
inicialmente aludindo a nenhuma teologia, seja do cordeiro ou do justo sofredor, mas
cumprindo algo que era corriqueiro nas situações de crucificação. Para se apressar a
morte aos crucificados, praticava-se o crurifragium, ou seja, quebravam-se as pernas
para que morressem mais rápido ou se aplicava outro golpe com o mesmo fim. No caso
de dúvida se podia atestar a morte pelo uso da lança, como ocorreu com Jesus373
.
Portanto, segundo Vidal, o que o Evangelho joanino narra, não passa de algo comum
nas crucificações, tanto que ele aplica o fato de saírem sangue e água como algo
inicialmente desprovido de simbolismo, visto que,
la frase „al punto salió (por la abertura hecha en el „pecho‟) sangre y
água‟ tiene la clara función de señalar la muerte efectiva de Jesús. No
hay que entenderla como un informe de un testigo ocular, sino como
una expresión tópica de la muerte, desde los conocimientos médicos
de entonces [...] ni tampoco señala un acontecimiento extraordinário,
con um sentido profundo simbólico.374
Todavia, apesar de Vidal considerar inicialmente Jo 19,34-37 como acontecimentos
fáticos, e desconsiderar elementos simbólicos, o mesmo Vidal passa a buscar como a
comunidade joanina viu estes acontecimentos, no que reconhece uma série de
interpretações a partir das escrituras375
. Para ele, os acontecimentos comuns ao processo
de crucifixão são lidos em Jesus em uma ótica de cumprimento da Escritura. Em 19,36,
370
Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. V. IV, p. 124. 371
Idem ibidem, p. 124. 372
Idem ibidem, p. 124. 373
Cf. VIDAL, Senén. Los escritos originales de la comunidad del Discípulo “amigo” de Jesus, p.
273. 374
Idem ibidem, loc. Cit.. 375
Cf. Idem ibidem, p. 274.
83
Vidal, ao buscar a interpretação da comunidade joanina, considera que o redator não
queria se referir ao cordeiro pascal, mas ao justo sofredor do Sl 34.
Diferente de León-Dufour e de Moloney que seguem a linha de raciocínio de
Menken; indo por outra via, Vidal argumenta que
uno de cuyos motivos claves es la presentación de Jesús como él
„justo sufriente‟ (cf. especialmente notas a 19,23-24.28.30), y no la
que lo refiere al cordero Pascual (Ex 12,10 [según el texto griego];
12,46; Núm 9,12): la forma imperativa, de mandato legal („no
romperéis‟, „no romperám‟), de estos textos sobre el cordero Pascual
no equivale a la forma afirmativa, de promesa („no será roto‟), de
nuestro texto, idêntica a la del Sal 34,21.376
Com a argumentação sobre a introdução e sobre o modo verbal, torna-se viável a
proposta de Vidal, que ao considerar a junção das imagens, cordeiro pascal e justo
sofredor, argumenta que tal só se faz no que ele considera uma segunda etapa de
redação, em vista de fazer encontrar sentido a saudação do Batista em Jo 1,29377
,
contudo, a elaboração de Menken, aceita por Léon-Dufour e Moloney, ao considerar as
versões e o uso linguístico do Quarto Evangelho, que “retém o futuro singular do verbo
do Salmo, mas usa o termo de Ex/Nm para osso”378
, expõe que o redator joanino
intentou uma junção das duas imagens, isto é, Jesus é o Cordeiro Pascal e o justo
sofredor. Entretanto, algumas notas da narrativa joanina da paixão pendem com maior
afinco à imagem de Cordeiro Pascal.
O episódio que narra Jo 19,36 acontece dentro de um contexto de Páscoa. Era
„preparação‟ (cf. Jo 19,31), não somente para shabat, mas, sobretudo para a Páscoa,
fazendo coincidir a morte de Jesus com a imolação dos cordeiros no Templo, aqueles
cordeiros que serviriam ao ritual pascal. Assim, pode-se constatar uma primeira ligação
entre a Páscoa dos judeus e a narrativa do Quarto Evangelho379
.
O fato de o evangelista recorrer ao detalhe da preparação cria outra possibilidade que
liga Jo 19,36 ao evento pascal, pois a tradição judaica prescreve que os corpos
executados em penas capitais devem ser sepultados no mesmo dia380
(Dt 21,22-23:
quando alguém tiver cometido um crime de pena capital e for executado e suspenso
376
Idem ibidem, p. 274. 377
Cf. Idem ibidem, p. 273. 378
LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. V. IV, p. 124. 379
Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de João, p. 817. 380
Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. V. IV, p. 116: “a iniciativa dos
„judeus‟, isto é, dos sumos sacerdotes (cf. 19,21) é historicamente plausível: os judeus não toleravam o
costume romano segundo o qual os crucificados ficavam expostos diversos dias da morte, pois a lei
judaica prescrevia o enterro antes do por-do-sol, para que a maldição que os atingira não contaminasse a
terra de Israel.”
84
numa árvore, o cadáver não poderá ficar ali durante a noite, mas deverá sepultá-lo no
mesmo dia. ), assim, mesmo que não fosse Páscoa, os corpos deveriam ser tirados do
madeiro, para que se observasse a lei judaica. Ao Evangelho joanino insistir por duas
vezes em „preparação‟ (cf. 19,14.31), diz-nos que o seu foco não é o cumprimento da lei
judaica, mas a festa pascal, emoldurando, a execução de Jesus com o enredo pascal,
vendo-o como um elemento central na festa: o cordeiro.
Ao invocar a „preparação‟, a comunidade joanina está informando um dado histórico,
sobre o qual a Páscoa de fato, caiu no Shabat, algo que no calendário gregoriano
corresponde a 7 de abril do ano 30381
. Portanto, a conexão feita pelo Quarto Evangelho,
além de favorecer maior prescrição histórica, também liga profundamente o evento da
Paixão de Jesus com a Páscoa, em especial com o cordeiro ritual, aquele que realiza o
novo êxodo382
.
Na construção da narrativa joanina sobre a Paixão, chama a atenção um dado próprio
joanino em Jo 19,14, onde o redator uniu o dado da hora com o informe da preparação
(Jo 19,14: era o dia de preparação da páscoa, por volta do meio-dia). Tal constatação
joanina é interpretada por Mateos e Barreto como mais uma ironia joanina, levando a
entender que os chefes dos judeus ficarão na preparação, mas não a celebrarão, ao
passo, que Jesus, o novo cordeiro, celebrará a nova Páscoa383
, realizando assim o novo
êxodo384
.
A hora em que Jesus é entregue para ser crucificado (cf. Jo 19,14-16) é a mesma
hora, em que, no dia de preparação, as mulheres estão em casa preparando a sala para a
festa e os homens se dirigem com o cordeiro ao Templo para serem imolados, pois esse
rito iniciava por volta da sexta-hora. Destarte, o que se afirma mais uma vez, é que a
comunidade joanina quis que a entrega de Jesus aos que lhe iriam sacrificar, coincidisse
com a mesma hora que os cordeiros eram sacrificados no Templo. Assim, aquele que
381
Cf. BLANCHARD, Yves-Marie. São João, p. 32. 382
Cf. ANDERSON, Ana Flora. O Evangelho da Cruz. EB. Petrópolis, n. 8, 1987, p. 36: “A unidade
teológica do todo poderá, pois, ser estruturada a partir do sentido da libertação e da nova integração da
humanidade que vem pela morte de Jesus como realidade pascal. Pois de fato, Ele é o Cordeiro de Deus
que tira o pecado do mundo (cf. Jo 1,29).” 383
Cf. BARRIOCANAL GÓMEZ, José Luis. Jesus como nuevo Moisés en El Evangelio de Juan. EB.
Madrid, v. 67, n. 3, 2009, p. 434: “con Jesucristo se cumple um nuevo y definitivo êxodo de la esclavitud
del pecado, que conduce a la muerte, a la vida de gracia y verdad [...] Jesús es, pues, el verdadero
„cordero pascual‟.” 384
Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de João, p. 790: “sendo a cena toda antecipação
da cruz, também a hora adiantada a de sua morte; são os sumos sacerdotes que, ao rejeitar Jesus, matam o
Cordeiro. Preparam assim, como Judas (13,29 lit.), o necessário para a páscoa, da qual não participarão.”
85
antes havia substituído o Templo, a Torá, agora substituísse o cordeiro, cumprindo o
que se havia anunciado em Jo 1,29: “eis o cordeiro de Deus”.
Tanto Anderson quanto Mateos e Barreto concordam que esta associação de Jesus
com o cordeiro, tão elaborada pelo Quarto Evangelho, está para o fim de expor a
messianidade de Jesus, uma vez que tanto na semana inaugural de seu ministério, como
na última semana estão contidos a condição de Filho de Deus e o dom do Espírito doado
à comunidade385
, da mesma forma que antes o Batista o havia revelado cordeiro e Filho
de Deus e também como aquele que doa o Espírito (cf. Jo 1,29.33.34),
Jo retoma aqui [19,14], portanto, o tema do Cordeiro de Deus, que
abre o testemunho de João Batista a respeito de Jesus (1,29.36); com
ele identificava o Messias e descrevia sua missão. Recorde-se que a
designação de „o Cordeiro de Deus‟ estava em paralelo com a de
„Filho de Deus‟ (1,34) e que a missão do Cordeiro „tirar o pecado do
mundo‟, seria realizada „batizando com o Espírito Santo‟ (1,33). Toda
esta concepção do Messias está presente nesta passagem, ao se
retomar o tema pascal para levá-lo à sua conclusão. Esta é a última de
seis festas mencionadas no evangelho (2,13; 5,1; 6,4; 7,2; 10,22; 12,1)
e a terceira Páscoa (2,13;6,4; 12,1).386
A comunidade joanina, como conhecedora da vida litúrgica de Jerusalém, sabia o
que vinha a significar chamar Jesus de cordeiro e ainda mais de Cordeiro Pascal, por
isso, tal insistência, que perpassa todo o texto, por meio de um caminho teológico,
esclarece-se, agora, na moldura pascal colocada envolta da Paixão de Cristo, seja na
referência ao dia de preparação ou à sexta-hora, como também no fato de sair
imediatamente sangue e água do lado de Jesus (cf. Jo 19,34). Além destes aspectos já
salientados, a referência a ramo de hissopo reforça a ligação entre a narrativa joanina da
Paixão e o ritual da Páscoa.
Quanto ao hissopo, caso se retome o texto de Ex 12,22-23, lá este ramo está dentro
do rito do cordeiro pascal, diz-se: “Moisés convocou todos os anciãos de Israel e lhes
disse:‟ ide, tomai um animal para cada família e imolai a vítima da Páscoa. Tomai um
ramo de hissopo[grifo nosso], molhai-o no sangue que estiver na bacia e marcai com o
sangue a moldura das portas”. O Evangelho segundo João usa a mesma expressão:
ramo de hissopo, o que, segundo Segala, o evangelista faz identificando Jesus com o
rito do cordeiro pascal. Por outro lado, chama também a atenção, que esta referência
está unicamente em João, uma vez que breve vista pela Paixão nos sinóticos não se
385
Cf. ANDERSON, Ana Flora. O Evangelho da Cruz. EB, p. 36: “a paixão ou a morte e ressurreição de
Jesus, é o princípio e a fonte de libertação e de integração na verdade e no amor. A paixão é o serviço
messiânico que resgata, ou comunica o Espírito de liberdade e vida.” 386
MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de João, p. 790.
86
encontra esta menção (cf. Mt 27,32-44; Mc 15,21-32; Lc 23,26-43), fazendo desta
referência mais um aporte à constatação da teologia joanina, que vê Jesus como
Cordeiro Pascal387
.
Na visão de Segala há uma simbologia entre Jesus e o cordeiro pascal, quando o
evangelista utiliza a expressão ramo de hissopo. Por sua vez, Lopez Rosas levanta a
ligação entre passagem de Jo 19,29 e Ex 12,22-23; no entanto, lembra que o hissopo
está presente em outros ritos litúrgicos de Israel, por exemplo, no rito de purificação da
lepra em Lv 14,4-6. Diante disto, Lopez Rosas propõe que a função tanto pascal, quanto
nos ritos de purificação é proteger as pessoas, estar sob a proteção de Deus, de modo
que João teria colocado aí esta referência, exatamente para isto, para deixar nítido que
Jesus estava sob a proteção de Deus388
.
Entre a proposta de Segala e a de Lopez Rosas, não se omite a relação entre a
menção joanina sobre o uso do hissopo e o ritual pascal. O que os diferencia é o
alargamento do uso do hissopo nos ritos de purificação que Lopez Rosas constata em
Lv 14; todavia, permanece como uma referência pascal no episódio da Paixão segundo
o Evangelho joanino.
Para concluir o projeto teológico, não bastou ao Evangelho segundo João mencionar
que era a preparação, que havia sido entregue à sexta hora, que se usou o hissopo ou que
não lhe quebraram os ossos (cf. Jo 19,14.36); ele ainda quis dizer mais: imediatamente
saiu sangue e água (Jo 19,34). Este dizer retoma uma das prescrições rituais de Israel
referente ao sacrifício. Segundo Lv 17, as leis que regem a santidade, a lei sobre o
sangue requer que todo o sangue seja tirado do animal, tanto para os sacrifícios como
387
Cf. SEGALA, Giuseppe. Giovanni, p. 455: “l´issopo è una pianta que cresce sui muri ( 1Re 4,33). Ce
ne sono di diverse specie, ma anche le più grandi sembrano possano servire allo scopo. Di solito serviva
per aspergere. Da qui l´origine della variante „giavellotto‟ (cfr. Apparato critico). Se „issopo‟ è originale
potrebbe darsi abbia un senso simbólico in rapporto a Es 12,22, dove l´issopo viene usato per aspergere il
sangue dell´agnello pasquale. Certo, il simbolismo è lontano da un paralelismo, ma Esso non segue la
nostra lógica. In questo caso Gesù sarebbe indirettamente indicato come agnello Pasquale.” [ tradução
nossa: o hissôpo é uma planta que cresce sobre os muros (1Rs 4,33). Existem várias espécies, mas, até
mesmo as mais velhas, parecem poder servir ao objetivo a que se prestam. Geralmente serviam para
aspergir. Daí brota a origem da variante „dardo‟ (cf. Apparato critico). Se o „hissôpo‟ é original poderia
ser que tenha um sentido simbólico em relação a Ex 12,22, em que o mesmo é usado para aspergir o
sangue do cordeiro pascal. É verdade que o simbolismo está longe de um paralelismo, mas, o mesmo, não
segue a nossa lógica. Neste caso, Jesus seria indiretamente indicado como cordeiro Pascal.] 388
Cf. LÓPEZ ROSAS, Ricardo; RICHARD GUSMÁN, Pablo. Evangelio y Apocalipsis de San Juan.
Navarra: Verbo Divino, 2006, p. 271: “se trata quizá de un tipo de orégano, cuyos talos, cortos y
delgados, serían incapaces de soportar una esponja empadada de vinagre, si no es un manojo atado. Sin
embargo, hay que recordar que esa yerba se emplea en asperciones purificatórias (Lv 14,4), y está
prescrita para el ritual pascual (Ex 12,22); sirve para señalar las puertas de las casas de los israelitas con
la sangre de la víctima Pascual y recordar que Yahvé preservó a los israelitas ante el exterminador. Esta
función puede tener en Jn 19,29s: garantizar la protección del Dios fiel a su Hijo enviado.”
87
para o consumo, sendo, portanto, proibido ao israelita comer “qualquer espécie de
sangue” (Lv 17,10), pois “a vida da pessoa está no sangue” (Lv 17,11). Com isto, a
tradição das leis em Israel propõe o sangue como sagrado e como vida, daí decorre que
tirar o sangue é tirar a vida, mas o animal ao ser sacrificado ou se prender uma caça, o
sangue tem que ser tirado imediatamente, seja para ser posto sobre o altar (cf. Lv
17,11), para que aconteça a expiação ou para lançá-lo à terra e cobri-lo (cf. Lv 17,13),
no caso de uma caça, para que não se perca o reconhecimento de “Deus como fonte da
vida”389
. Desta normativa sacerdotal, o que se relaciona diretamente com o Evangelho
segundo João, é que nos cordeiros ao serem sacrificados, o sangue não poderia coagular,
pois todo o sangue deveria ser tirado, seja com o cordeiro ou com os demais animais
apresentados para o sacrifício (cf. Lv 17), e isto, a comunidade joanina, que conhecia a
função do cordeiro como elemento ritual, devia saber bem. Por isso chama a atenção o
uso que o Quarto Evangelho faz da expressão “e imediatamente saiu sangue e água”
(Jo 19,34). Informando ao leitor que o sacrifício foi realizado corretamente, e à hora que
os cordeiros eram sacrificados no Templo, o cordeiro dado por Deus se apresentava em
sacrifício agradável, para que se celebrasse a nova Páscoa. Nesta celebração, também o
cordeiro dá o seu sangue que não teve tempo para coagular, mas jorrou do lado390
, como
acontecia com os cordeiros sacrificados no Templo.
Sair imediatamente sangue e água pode dizer respeito a algo puramente natural391
,
todavia, para a comunidade joanina, que viu na entrega de Jesus a imagem do cordeiro,
fica claro que o imediatamente queria dizer mais que algo natural; quis dizer que o
sangue de Jesus não havia coagulado, e que da doação de sua vida (sangue) a
humanidade teria agora a acesso à vida eterna, no sangue do Cordeiro Pascal392
.
A comunidade joanina, tendo na sua base grupos que conheciam as normativas
rituais da Torá, ao usarem a citação não lhe quebraram nenhum osso não só
expressaram uma junção entre o justo perseguido (cf. Sl 34,21) e a imagem do cordeiro,
como quiseram unir na narrativa outra prescrição ritual de sacrifício, que também se
389
BERGANT, Dianne; KARRIS, Robert J. (Orgs). Comentário Bíblico. V. III, p. 135. 390
Cf. SEGALA, Giuseppe. Giovanni, p. 456: “altri, il segno del sacrificio della vittima- il sacerdote
infatti doveva colpire la vittima al cuore per farne uscire il sangue.” [ tradução nossa: mais ainda, como
sinal do sacrifício da vítima – o sacerdote, de fato, devia ferir a vítima no coração para fazer sair o
sangue.] 391
Cf. KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João, p. 342. 392
Cf. BARREIRA, Álvaro. Vimos sua glória: como Jesus vê e olha e como é visto e olhado no
evangelho de João. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 144: “[João] penetra no mistério do lado aberto de Jesus
crucificado e proclama o sentido espiritual do sangue e da água que saíram de seu peito: o sangue do
Cordeiro pascal que liberta os cativos e a água que lava os pecados do mundo.”
88
aplicava ao cordeiro pascal: providenciar que o sangue saísse imediatamente393
. Para a
comunidade joanina, há na narrativa da Paixão uma junção de imagens que convergem
para a cruz, todas pré-anunciadas no interior do texto do Quarto Evangelho, sobretudo o
Servo Sofredor, o justo perseguido, a morte expiatória do justo e a imagem que se
sobrepõe: o Cordeiro Pascal394
. O Evangelho segundo João, coloca a Paixão na
preparação da Páscoa dos judeus, dia e hora referencial das imolações dos cordeiros395
,
fazendo cumprir o que tinha sido anunciado em Jo 1,29: “eis o cordeiro do Deus que
tira o pecado do mundo”.
Na Paixão se manifesta a glória de Jesus396
, que se estenderá à ressurreição, projeto
que a comunidade joanina construiu em suas várias etapas de redação397
, constituindo
assim, a unidade teológica do Evangelho segundo João, e pode-se até mesmo dizer, da
tradição joanina, uma vez que a imagem do cordeiro parece ter se cimentado de tal
forma no interior da teologia desta comunidade, que a fazia diferenciar e coincidir com
outras comunidades de seguidores de Jesus.
393
Cf. MAGGIONI, Bruno. Os relatos evangélicos da Paixão. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 30: “o
cordeiro pascal não somente não devia ser quebrado, mas era morto de modo que o sangue saísse. Uma
das leis mais severas era, justamente, que o sangue não coagulasse. Talvez seja também por isso que
aparece a anotação de João: „e imediatamente saiu sangue[...]‟(Jo 19,34).” 394
Cf. BARREIRA, Álvaro. Vimos sua glória, p. 144: “como pano de fundo do relato está também o
tema do Servo Sofredor (Is 53,10-12), do Justo que carrega os pecados de mundo, que nos liberta da
escravidão. Pela morte de Jesus Cristo na cruz, o novo povo de Deus é libertado de toda escravidão e de
todo pecado (1,29; 8,21.23), é feita a nova e eterna aliança de Deus com os seres humanos”. 395
Cf. COTHENET, Eduard. Os escritos de são João e a epístola aos Hebreus. São Paulo: Paulinas,
1988, p. 106: “o relato da paixão termina com uma citação que evoca o ritual do cordeiro pascal: „nenhum
osso lhe será quebrado‟ (Jo 19,36). Ora, João tivera o cuidado de retificar a cronologia sinótica situando o
processo e a morte de Jesus na véspera da páscoa judaica (18,28). Jesus morre, pois, na hora em que, no
Templo, imolavam-se os cordeiros. Assim se realiza a profecia misteriosa de João Batista.” 396
Cf. BARREIRA, Álvaro. Vimos sua glória, p. 149: na morte de Jesus Cristo na cruz brilhou com o
máximo esplendor sua glória, a glória que tinha junto do Pai „antes que o mundo existisse‟ (17,5). A hora
da „glória‟, anunciada no discurso de despedida de Jesus em forma de oração- „Pai, chegou a hora.
Glorifica teu filho, para que teu filho te glorifique‟ (17,1)-, realizou-se na crucifixão e morte de Jesus
elevado na cruz.” 397
Cf. VIDAL, Senén. Los escritos originales de la comunidad del Discípulo “amigo” de Jesus, p. 15.
89
CAPÍTULO III
A COMUNIDADE E O CORDEIRO
INTRODUÇÃO
Reconhecidamente a comunidade joanina foi marcada pela centralidade da pessoa de
Jesus, isto é, se os sinóticos enriqueceram seus escritos com a imagem do Reino de
Deus398
, por sua vez, a comunidade do Discípulo Amado, centrou os discursos e
imagens na pessoa de Jesus399
, tendo-o como o centro absoluto em comunhão com o
Pai, de modo que Jesus e o Pai são um só (cf. Jo 10,30); Jesus é o revelador do Pai e o
faz por ser a oferta de Deus para que o mundo se reconcilie e entre em comunhão com
ele. No ato da reconciliação se encontra o evento da cruz, como o centro de todo o
Evangelho400
. Como observado no capítulo anterior, todo o Quarto Evangelho converge
para o Gólgota, fazendo deste momento a glorificação-exaltação de Jesus e do Pai (cf.
Jo 17,1). No acontecimento do Gólgota dá-se o que João Batista havia anunciado na
semana inaugural da atividade pública de Jesus (cf. Jo 1,29): a oferta do cordeiro, pois
“Jesus morre como cordeiro pascal, como João Batista havia anunciado”401
.
A comunidade joanina, originada de um judaísmo heterodoxo402
e também com
membros provindos do mundo samaritano403
, está marcada pelo conhecimento da vida
litúrgica do Segundo Templo, o que leva seu escrito a coincidir a vida pública de Jesus
com o calendário litúrgico do povo de Israel, pelo que a comunidade associa a pessoa de
398
No Quarto Evangelho a temática do Reino de Deus que está nos Sinóticos corresponde a Vida, isto é,
“a vida de que fala João é sempre a vida definitiva que começa com o dom do Espírito Santo” (MATEOS,
Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de João. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 19). Jesus vem para
oferecer esta vida, ou seja, estão em paralelo, nos sinóticos, Jesus irrompe o Reino de Deus, no Evangelho
segundo João, ele vem dar a vida verdadeira. 399
TUÑÍ, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Escritos joaninos e cartas apostólicas. São Paulo: Ave-Maria,
1999, p. 75: “nas apresentações dos sinóticos o tema „reino de Deus‟ (dos céus) é um tema especialmente
preferido e amplamente desenvolvido [...] a ausência de qualquer temática do reino de Deus em João-
com exceção de Jo 3,3-8, que por outra parte, tem interpretado o tema joaninamente - e a concentração,
por sua vez, de toda a pregação de Jesus em sua mesma pessoa, confere a esse escrito um caráter de
concentração cristológica de primeira ordem.” 400
Idem ibidem, p. 68: “na atual estruturado evangelho está claro que o relato da morte de Jesus atua
como ponto de atração que polariza todo o ministério de Jesus. Neste sentido podemos afirmar que ele
atua como princípio estruturador de toda a obra.” 401
Idem ibidem, p. 66. 402
Por judaísmo heterodoxo se incluem e compreendem aqueles grupos que estavam fora da ortodoxia do
Templo, apesar de conhecê-la. Dois exemplos deste judaísmo seriam os essênios de Qumran e o
Movimento de João Batista. 403
GASS, Ildo B. Uma introdução à Bíblia: as comunidades cristãs a partir da segunda geração. São
Paulo: Cebi; Paulus, 2005, p. 120: “as comunidades do Discípulo Amado organizaram-se a partir de
judeus, especialmente da Galiléia, onde Maria Madalena certamente teve um papel destacado. Juntaram-
se a eles muitos discípulos de João Batista, samaritanos e helenistas.”
90
Jesus a elementos litúrgicos, por exemplo, o cordeiro404
, fazendo de seu ministério algo
semelhante ao que já estava na tradição judaica: um servo sofredor, que dá a vida pelo
seu povo405
. Para Pagola, Jesus viveu sua morte como consequência de uma opção que a
colocava claramente como possibilidade. Pagola afirma que, historicamente, “Jesus não
interpretou sua morte a partir de uma perspectiva sacrificial. Não a entendeu como um
sacrifício de expiação oferecido ao Pai”406
. Entretanto, a comunidade dos seguidores de
Jesus logo viu na sua entrega um evento salvífico, a tanto que para o Quarto Evangelho,
só nela, na morte, pode-se compreender o ministério de amor de Jesus, aliás,
“compreender o significado da morte de Jesus é entender a revelação que move o
Evangelho: o triunfo do amor sobre a morte”407
.
Uma das maneiras que o Quarto Evangelho encontrou para interpretar o ministério
de Jesus foi identificando-o com o cordeiro408
, fazendo desta imagem uma identificação
da teologia da comunidade. Sendo, assim, marcada pela vida cúltica de Israel com esta
imagem, a comunidade do Discípulo Amado expõe a iniciativa divina em favor do
povo, uma vez que, na antiga páscoa, “é o próprio Deus que realiza [...], é ele que, por
amor, intervém diretamente em favor de seu povo”409
. Do mesmo modo, agora, na
Páscoa de Jesus, segundo a saudação do Batista (cf. Jo 1,29), a iniciativa é do próprio
Deus em favor do povo, isto é, Deus oferta o cordeiro410
para a reconciliação com a
humanidade, destarte que o ministério de Jesus, culminado na cruz, está para a
comunhão e reconciliação com Deus. A Páscoa de Jesus é “por assim dizer a festa para
sempre acessível da reconciliação de Deus com os homens”411
.
A comunidade joanina, enriquecida pela imagem do cordeiro, entra na grande
comunidade dos seguidores de Jesus, uma vez que tradições neotestamentárias (cf. At
8,32-34; 1Pd 1,19) também fizeram esta associação de Jesus com a imagem do
404
DIEZ MERINO, Luis. El cordero de Dios en el Nuevo Testamento y en el Targum. EstB, Madrid, v.
64, n. 3-4, 2006, p. 582: “en El templo se oferecían corderos como holocaustos y como víctimas (Lv 9,3;
Nm 15,5) para reconciliar o purificar al pueblo, o a personas individuales (p.e. leprosos: Lv 14,10).” 405
Cf. ÁBREGO DE LACY, José Maria. La esperanza mesiânica en los libros proféticos: evolución y
desarrollo. EstB, Madrid, v. 62, n. 4, p. 423, 2004. 406
PAGOLA, José Antonio. Jesus: aproximação histórica. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 419. 407
ERANDES FERNANDES, Cézar L. O sentido da cruz: no evangelho de João. São Paulo: Paulina,
2002, p. 21. 408 LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João: palavra de Deus. V. I. São Paulo:
Loyola, 1996, p. 138: “o termo „cordeiro‟ evoca por si mesmo os sacrifícios de Israel, onde normalmente
eram utilizados os animais de pequeno porte, tanto nos ritos de comunhão como nos de reconciliação
depois do pecado. O cordeiro era usado igualmente no sacrifício cotidiano do Templo.” 409
AVRIL, Anne-Catherine. As festas judaicas. São Paulo: Paulus, 1997, p. 39. 410
Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. V. I, p. 135. 411
RATZINGER, Joseph- BENTO XVI. Jesus de Nazaré: da entrada em Jerusalém até a
ressurreição. São Paulo: Planeta, 2011, p. 82.
91
cordeiro412
. A comunidade joanina entra em uma tradição já corrente. Todavia, na
compreensão joanina, a imagem do cordeiro, pelo evento da cruz e pelas alusões no
interior do Evangelho, torna-se nuclear para o entendimento do ministério de Jesus413
.
Portanto, a imagem do cordeiro, além de realizar uma junção entre várias
tipologias veterotestamentárias (Cordeiro Pascal, Sacrifício Expiatório, Servo do Senhor
e Justo Perseguido), também marcou a identidade da comunidade, pelo que, poderia ser
chamada de a comunidade do Cordeiro.
3.1 A imagem do cordeiro como elemento de identidade
A atribuição de Jesus como cordeiro está presente no Evangelho segundo João e em
outros escritos neotestamentários, mas com o termo amnós, encontra-se somente em At
8,32 e 1Pd 1,19414
. Em outros textos a referência aparece com termos distintos415
. Em
At 8,32, a referência se dá quando Filipe encontra um etíope que está lendo o texto do
profeta Isaías, sem saber a quem se refere, quando o profeta diz: como ovelha levada ao
matadouro e como um cordeiro...; ao que Felipe logo apresentou Jesus como o servo-
cordeiro exposto pelo profeta Isaías (cf. Is 53). No entanto, o texto de Atos não se
demorou na descrição da catequese de Filipe, mas passou rápido à conversão do etíope,
registrando o seu desejo de ser batizado (cf. At 8,36-38). Tal contexto informa que a
comunidade dos Atos dos Apóstolos não fugiu em compreender que a analogia do
cordeiro, referida ao servo de Is 53,7, na verdade se aplica a Jesus, pois nele se cumpre
a profecia. E, mesmo não tendo a descrição da catequese de Filipe, torna-se evidente
que esta passagem foi o ponto de partida do anúncio, pois o próprio texto diz: e
começando por esta passagem da Escritura, Filipe pôs-se a falar anunciando-lhe Jesus
(At 8,35). O termo utilizado em At 8,32 é amnós, o mesmo de Jo 1,29.
O Filipe que se encontrou com o camareiro etíope é o mesmo a quem os gregos
procuraram em Jo 12,20-21. Também é o mesmo que em At 8,4-5 esteve em Samaria
anunciando o evangelho. Revela-se a presença de Filipe como interlocutor com culturas
diferenciadas da judaica, fazendo-lhe, como defende Gass, um autêntico membro da
412
DIEZ MERINO, Luis. El cordero de Dios en el Nuevo Testamento y en el Targum. EstB, p. 585-586:
“La tradición ha considerado a Cristo como „al verdadero cordero‟ Pascual. [...]esta tradición primitiva
vio en Cristo al verdadero cordero Pascual, y así lo comprobamos en las orígenes mismo del
cristianismo.” 413
Cf.Idem ibidem, p. 592, 2006. 414
Cf. GESS, J. Amnós. In: DITNT. 2 ed. São Paulo: Vida Nova, 2000, p. 430. 415
Cf. JEREMIAS, J. Arnión. In: GLNT. V. I. Brescia: Paideia, 1965, p. 924.
92
comunidade joanina, pois as comunidades joaninas “teimavam em ser fiéis ao projeto de
Jesus de Nazaré, vivendo a partilha fraterna em comunidades, onde não havia
discriminação nas relações de gênero, nem de etnia ou de classe”416
.
Em 1Pd 1,19 Jesus é reconhecido como o amnós, o cordeiro sacrificial, a quem a
carta petrina relaciona dois atributos do cordeiro pascal: cordeiro sem defeito e sem
mácula (cf. 1Pd 1,19b). Deste modo, a relação da Primeira Carta de Pedro com a
imagem do cordeiro se diferencia na fonte da passagem de At 8,32; lá o termo amnós
está posto dentro de uma citação de Is 53, o que se torna base da pregação de Felipe417
.
Por sua vez, a Primeira Carta de Pedro, faz menção à prescrição do Cordeiro Pascal, que
estava em Ex 12 (um macho sem defeito), mas pode também estar se referindo aos
vários ritos sacrificiais realizados com o cordeiro418
. Nenhum dos dois textos se deixou
deter por muito tempo na temática do cordeiro; todavia, indica, claramente, que esta
imagem era uma das tipologias com que as comunidades cristãs tornavam o ministério
de Jesus mais conhecido. Por sua vez, o Quarto Evangelho tem consciência de que há
outras tipologias atribuídas a Jesus, mas quis usar a imagem do cordeiro, citada duas
vezes (cf. Jo 1,29.36) e com uma referência ao Cordeiro Pascal no episódio da Paixão
(cf. Jo 19,36).
Como proposto por vários estudiosos419
, o Quarto Evangelho é fruto de um longo
processo de redação, mas guardou a sua unidade, isto é, o “4º Evangelho como temos
hoje, certamente passou por um processo de redação que durou várias décadas”420
; mas
isso não lhe tirou a unidade temática. Assim, existe entre a primeira intuição e a intuição
do redator final uma comunhão que faz com que não se descarte e nem se desconecte a
416
GASS, Ildo B. Uma introdução à Bíblia, p. 138. 417
BERGANT, Dianne; KARRIS, Robert J. (Orgs). Comentário Bíblico: Evangelhos e Atos, Cartas,
Apocalipse. V. III. São Paulo: Loyola, 2010,p. 158: “Lucas também insiste repetidas vezes que as
escrituras precisam ser explicadas. Os discípulos na Estrada de Emaús e em Jerusalém precisam que
Jesus ressuscitado interpretasse para eles as Escrituras (Lc 24,25-32.44-47) […] por isso, aqui Filipe tem
de explicar ao eunuco que Is 53, 7-8 não se referia a Isaías, mas a Jesus (como At 2 explicara que Sl 16;
110 não se referiam a David, mas a Jesus) e profetizava sua morte abnegada (At 8,31-35).” 418 Cf. DODD, Charles. A interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Editora Teológica, 2003, p.
306. 419
A saber: SHREINER, Josef; DAUTZENBERG, Gerhard. Forma e exigências do Novo Testamento.
São Paulo: Paulus-Teológica, 2004; TUÑÍ, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Escritos joaninos e cartas
apostólicas. São Paulo: Ave-Maria, 1999; GASS, Ildo Bohn. Uma introdução à Bíblia: as comunidades
cristãs a partir da segundo geração. São Paulo: Cebi/Paulus, 2005; BROWN, R.E. A comunidade do
discípulo Amado. São Paulo: Paulinas, 1983; BLANCHARD, Yves-Marie. São João. São Paulo:
Paulinas, 2004; MOLONEY, Francis J. The Gospel of John. V. IV. Minnesota: Michel Glazier Book,
1998; VIDAL, Senén. Los escritos originales de la comunidad del Discípulo “amigo” de Jesus: El
Evangelio y lãs cartas de Juan. Salamanca: ediciones sigueme, 1997. 420
GASS, Ildo B. Uma introdução à Bíblia, p. 120.
93
vida toda de Jesus421
: sua encarnação e morte-ressurreição422
. Fica assim, evidente, que
apesar do Gólgota ser o ponto de convergência do Quarto Evangelho, o ministério
público de Jesus está em unidade temática, de modo que o plano teológico orientado
para o Gólgota perpassa todo o Quarto Evangelho. Mas o relevante, agora, é que a
imagem do cordeiro dentro do processo de redação do Evangelho não se perdeu e foi,
segundo Vidal423
, realçada, pelo que considera que numa etapa posterior às narrativas da
Paixão, o redator aliou a imagem de 19,36 (não lhe quebraram nenhum osso) com o que
tinha em mãos em Jo 1,29 (eis o cordeiro de Deus)424
.
A imagem do cordeiro marcou profundamente a comunidade joanina; é o que se
percebe também ao se considerar a imagem presente em outros escritos atribuídos a esta
comunidade, aliás, quando se buscou a raiz do Evangelho joanino, encontrou-se, o que
alguns estudiosos, como Zumstein, consideram uma Escola Joanina, visto que,
o trabalho literário e teológico que levou à redação de João se estende
por vários decênios. Supõe a existência de um meio estável no qual as
tradições próprias das Igrejas joaninas foram recolhidas, cotejadas,
reinterpretadas e transmitidas, um meio em que esse trabalho
teológico e literário desembocou na redação progressiva do evangelho
e, depois, das epístolas. É, portanto, legítimo supor que esta tarefa
tenha sido cumprida por um círculo teológico- a escola joanina.425
Este meio joanino, chamado de Escola Joanina426
, foi se desenvolvendo a partir de
um núcleo histórico que inicialmente estava formado pelo judaísmo palestinense e se
421 Vale recordar que as teorias acerca da redação do Quarto Evangelho ainda se encontram em amplo
debate, mesmo considerando as importantes contribuições de Bultmann, Brown, Moloney e mais
recentemente, Vidal. 422
RODRÍGUEZ RUIZ, Miguel. Cuarto Evangelio, Cartas de Juan: introducción y comentário de J. José
Bartolomé. EstB, Madrid, v. 61, n. 4, 2003, p. 568: “ciertamente hay uma continuidad entre la
encarnación y la muerte en la cruz o exaltación en ella, porque la persona del Verbo es la misma, pero la
muerte de Jesús es algo más que „la última prueba‟, es la prueba por excelência de que Jesús, por así
decir, recupera la „gloria de su preexistencia‟ (cf. 1,1-2; 13,1; 17,2).” 423
Senén Vidal considera que o IV Evangelho passou por várias etapas de redação e o material coletado
se organiza em diferentes titulações: TB- Tradições Básicas, que são comuns tanto a João como aos
sinóticos; T- Tradições Soltas, estão aí tradições como as de João Batista; CM- Coleção de Milagres,
estão aqui os relatos dos sinais; RP- Relatos da Paixão, é uma fonte para os textos da Paixão, tanto em Jo
como nos sinóticos; estas fontes originaram as várias etapas de redação: E1: primeiro Evangelho; E2:
segundo Evangelho; E3: terceiro Evangelho; E4: quarto Evangelho. Fonte: VIDAL, Senén. Los escritos
originales de la comunidad del Discípulo “amigo” de Jesus: El Evangelio y las cartas de Juan.
Salamanca: ediciones sigueme, 1997. 424
VIDAL, Senén. Los escritos originales de la comunidad del Discípulo “amigo” de Jesus: El
Evangelio y lãs cartas de Juan. Salamanca: ediciones sigueme, 1997, 274: “sin embargo, sí es muy
probable que el autor de E1 entendiera ese texto de RP tradicional en referencia a Jesús como cordero
pascual, ya que se trata de un motivo típico de su obra.” 425
MARGERAT, Daniel (Org). Novo Testamento: história, escritura e teologia. São Paulo: Loyola,
2009, p. 457. 426
Cf. VIDAL, Senén. Los escritos originales de la comunidad del Discípulo “amigo” de Jesus, p. 41.
94
abriu aos samaritanos427
, demonstrando a comunidade joanina como uma comunidade
com raízes profundamente judaicas, mas ao mesmo tempo aberto, dando assim
possibilidade para que várias tradições possam ser nela encontradas, o que demonstra
uma comunidade que se abre ao diálogo, como se pode constatar nos vários diálogos
que estão presentes no Evangelho segundo João (cf. Jo 3,1-21; 4,1-26 e 8,1-11); os
vários elementos, que marcam a pluralidade do ambiente do Quarto Evangelho, expõem
sua dinâmica missionária para levar vários povos a aceitar Jesus428
.
Quanto à relação com o judaísmo, sabe-se que o Evangelho joanino expõe bem a
expulsão da sinagoga429
(cf. Jo 9,22;12,42;16,2), o que requereu maturar a
reinterpretação do legado judaico dentro da comunidade joanina, isto é, houve uma
ressignificação do judaísmo à luz da pessoa de Jesus, pois os grupos que antes
frequentavam o Templo e a sinagoga, e tinham a Lei como centro da Revelação, agora
passavam a ver em Jesus a realização da Palavra, das Festas e da Lei430
. Uma destas
interpretações é a imagem do cordeiro, que não está somente no corpo do Quarto
Evangelho, mas também ressoa em outros escritos da Escola Joanina. Informando, que a
reinterpretação não foi somente na primeira hora, mas foi sendo gestada ao menos por
duas gerações da comunidade joanina, o que culminou no registro escrito que se tem
hoje.
No que se nomina Escola Joanina, a referência a Jesus com a tipologia de cordeiro
também se encontra na Primeira Carta de João431
. Entre as diferenciações levantadas
entre a Carta e o Evangelho está no centro a temática da imagem do cordeiro, pois
estudiosos, como Gass, defendem que o Evangelho segundo João ao se referir ao
cordeiro, não faz uma leitura expiatória sobre o ministério de Jesus,
427
Cf. MARGERAT, Daniel (Org). Novo Testamento, p. 452-454. 428
FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos. V. II. São Paulo: Loyola, 1995, p. 26: “um
evangelho aberto em muitas direções, este é um primeiro dado que deve de toda maneira ser reconhecido,
sendo uma das razões do fascínio do evangelho de João. Espíritos diversos se sentem interpelados por sua
mensagem. É aberto, não no sentido de aflorarem ora numa, ora noutra página motivos disparatados,
cada um referindo ao seu próprio ambiente. Pelo contrário, os mesmos motivos (não muito numerosos,
nem motivos variados), símbolos, vocábulos são simultaneamente abertos a ressonâncias múltiplas [...]e
não se pense que as diversas mentalidades possam ler simplesmente o evangelho cada um de seu modo,
interpretando-o conforme seus próprios conceitos. Pelo contrário: cada espírito se sente envolvido e
julgado, convidado a sair da própria idolatria para abrir-se a Cristo.” 429
Cf. SHREINER, Josef; DAUTZENBERG, Gerhard. Forma e exigências do Novo Testamento. São
Paulo: Paulus-Teológica, 2004, p. 306. 430
Cf. GASS, Ildo B. Uma introdução à Bíblia, p. 124. 431
MARGERAT, Daniel (Org). Novo Testamento, p. 477: “um inegável parentesco- seja no nível da
terminologia/estilística, seja no nível teológico- une 1Jo a João. Essa proximidade não tem nada de
surpreendente, já que tanto João como 1 João emanam de uma mesma escola teológica e partilham,
portanto, a mesma linguagem- uma linguagem muito original, aliás, no ambiente do cristianismo
nascente.”
95
podemos perceber diferenças teológicas entre o 4º Evangelho e as
Cartas. Uma é que 1Jo 2,2 e 4,10 apresentam Jesus como „vítima de
expiação‟. Nenhuma vez, o 4º Evangelho compreende a morte de
Jesus no sentido de sacrifício. Outra diferença teológica é a espera da
parusia, da vinda iminente de Jesus [e] no Evangelho, não se espera
pelo retorno de Jesus.432
Tanto Gass como Zumstein reconhecem que algumas diferenças teológicas não
anulam a relação profunda que há entre as Cartas e o Quarto Evangelho433
, fazendo com
que estes sejam memórias de uma mesma comunidade, mas em momentos vivenciais
diferentes. Todavia, a proposta de Gass, sobre a ausência de compreensão sacrificial a
respeito da morte de Jesus no Quarto Evangelho, parece desprovida de fundamento
escriturístico, visto que a saudação do Batista (cf. Jo 1,29), utilizando o termo amnós
trazia exatamente a figura do cordeiro que se utilizava no sacrifício. Com este termo se
evidenciava que “o cordeiro desempenhava um papel importante como animal
sacrificial no culto público de Israel”434
. Sobre a expiação pode-se reconhecer a fala de
Caifás (cf. Jo 18,14) como uma nota que dá tom expiatório à entrega de Jesus435
e na
mesma linha seguem as imagens que relacionam Jesus com o rito do Dia de
Expiação436
. Ademais, a visão da morte de Jesus como expiatória, não foi algo comum
somente à comunidade joanina, mas corrente no cristianismo nascente, como atestam
várias referências (cf. 1Cor 15,3; 1Pd 3,18; Rm 5,8; 1Ts 5,10; Ef 1,7; Cl 1,20; Rm 3,25;
Hb 2,17; 1Jo 2,2; Hb 9,12; 9,28; 10,10, 10,12).
Na relação com a expiação, a particularidade joanina se encontra na continuidade, ou
seja, não bastasse constar e incidir no texto do Quarto Evangelho, também aparece na
Primeira Carta de João, onde Jesus morre para expiar os pecados437
da humanidade.
Em meio às demais comunidades cristãs, o grupo joanino foi profundamente
marcado pela imagem do cordeiro e pela ressignificação do patrimônio judaico. Sobre a
escolha do cordeiro como tipologia para Cristo, há que se perguntar “por que”; ao que
432
GASS, Ildo B. Uma introdução à Bíblia, p. 133. 433
MARGERAT, Daniel (Org). Novo Testamento, p. 477: “o fato de surgirem diferenças substanciais
tanto no vocábulo utilizado como nas representações teológicas não constitui um argumento que exclua,
de uma vez, a hipótese de um só autor [escola] para dos dois escritos. De fato, temos o direito de supor
que tais mudanças possam resultar de situações, de gêneros literários e de estratégias argumentativas
diferentes.” 434
GESS, J. amnós. In: DITNT. 2 ed, p. 429. 435
BARBAGLIO, Giuseppe. Jesus, hebreu da Galiléia: pesquisa histórica. São Paulo: Paulinas, 2011, p.
494: “o quarto evangelho apresenta dois traços próprios [na paixão de Jesus]: Caifás o quer condenar
como bode expiatório: „é melhor que um só morra pelo povo‟ (Jo 18,14; 11, 49-50).” 436
RATZINGER, Joseph- BENTO XVI. Jesus de Nazaré: da entrada em Jerusalém até a ressurreição, p.
82: “a oração sacerdotal de Jesus é a atuação do dia da Expiação, é por assim dizer a festa para sempre
acessível da reconciliação de Deus com os homens.” 437
Cf. FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos. V. II, p. 295.
96
se pode responder primeiro, que é devido ser uma imagem comum aos vários grupos da
primeira hora que estão na base da tradição joanina; todos conhecem as funções
atribuídas ao cordeiro, tanto na vida cúltica de Judá quanto na da Samaria.
Fabris e Maggioni defendem o que seria a segunda razão para o uso da imagem do
cordeiro atribuída a Jesus. Para eles, “o cordeiro é a imagem de uma obediência e de um
amor que vão até a cruz; e o cordeiro é a imagem do servo de Deus que toma sobre si
(leva) o pecado do povo”438
. Fazendo da imagem do cordeiro a constatação da entrega
voluntária e amorosa de Jesus por obediência e amor para levar ao conhecimento do
amor do Pai439
. Na base do pensamento de Fabris e Maggioni parece estar a descrição
de Is 53, que faz a analogia entre a mansidão do cordeiro e a mansidão do Servo do
Deus. Ora, a comunidade joanina parece ter entendido exatamente isto, de modo que a
morte de Jesus no Quarto Evangelho é retratada com serenidade e de forma
majestosa440
: uma entrega voluntária que fará Jesus voltar para o Pai441
.
Sendo a tradição joanina uma tradição aberta, em diálogo; fica evidente que a
comunidade do cordeiro se caracteriza também por anunciar que o evento da cruz tem
alcance universal442
, ou seja, a oferta de Jesus é para que o mundo saia da condição de
pecado, daí a expressão “tira o pecado do mundo” (cf. Jo 1,29), pois o cordeiro que
serviria unicamente para o povo de Israel, agora expande a toda a humanidade o bem do
seu ministério443
. Nesta mesma linha segue a Primeira Carta de João, que parece
parafrasear o Evangelho ao dizer: “Ele é a oferenda de expiação por nossos pecados, e
não só pelos nossos, mas também pelos pecados do mundo inteiro”(1Jo 2,2), à
semelhança de “eis o cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29).
O cordeiro é de Deus, de modo que Deus tem direito sobre ele, e faz dele aquela
oferta pelos pecados do mundo; a oferta a que se refere 1Jo 2,2, é exatamente a
438
FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos. V. II, p. 294. 439
Cf. ERNANDES FERNANDES, Cézar L. O sentido da cruz, p. 21. 440
TUÑÍ, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Escritos joaninos e cartas apostólicas, p. 65: “é Jesus quem
dá a própria vida, ninguém lhe tira (cf. 10,18). A Paixão se converte numa marcha triunfal de Jesus para a
cruz. A morte de Jesus é mais uma vitória de que uma derrota. A cruz é mais um trono que um patíbulo.” 441
Cf. SCROGGS, Robin. O Jesus do povo: trajetórias no cristianismo primitivo. São Paulo: Paulus,
2012, p. 278. 442
Cf. LÓPEZ ROSAS, Ricardo; RICHARD GUSMÁN, Pablo. Evangelio y Apocalipsis de San Juan.
Navarra: Verbo Divino, 2006, p. 269. 443
Cf. DIEZ MERINO, Luis. El cordero de Dios en el Nuevo Testamento y en el Targum. EstB, p. 588:
“paciente, como un cordero, ofrecido en sacrifício, el Salvador fue la muerte por los otros sobre la cruz;
con fuerza expiadora de su muerte inocente borro la culpa (cf. Jn 1,29) de toda la humanidad (Jn 1,29).
Así como en outro tiempo la sangre de los corderos pascuales tuvo parte en la liberación de Egipto, así,
con la fuerza expiadora del su sangr, Jesús há realizado la liberación (elytrozete, 1 Pd, 1,18). De la
esclavitud del pecado (1Pd 1,18). Pero la fuerza expiadora de su muerte, no está, como la del cordero
Pascual, limitada a Israel. Como cordero de Dios expíala culpa de todo el mundo (Jn 1,29), que está
sometido inexorablemente, sin distinción ni de religión ni de raza, al juicio de Dios.”
97
anunciada já no Quarto Evangelho, em Jo 1,29. É nela que Deus tira os pecados não só
da comunidade, mas do mundo inteiro444
. Jesus é a oferenda de Deus, aceita em total
liberdade445
. Diante disto se pode entender que não há cisão teológica entre as Cartas e o
Evangelho no que toca ao ministério do cordeiro, mas uma acentuação diferenciada; no
Evangelho segundo João, a acentuação pende mais para o rito da Páscoa e as Cartas
pendem mais para o rito do Dia de Expiação, mas ambos se encontram aliadas à
imagem do cordeiro dentro da tradição judaica, fazendo desta imagem algo significativo
a toda a Escola Joanina.
A diferença de acentuação compõe já uma realidade presente no Quarto Evangelho,
pois, “o Evangelho não é uma túnica sem costura. As tradições utilizadas pelo autor não
são de todo consistentes; é quase certo que a própria comunidade tinha várias
perspectivas, e todas concordavam umas com as outras.”446
Do mesmo modo, as Cartas
Joaninas, e, em primeiro lugar, a Primeira Carta de João traz uma realidade diferenciada
do Evangelho, o que a faz reinterpretar o Evangelho de outro lugar histórico, isto é,
1Jo se situa depois da composição do evangelho, isso significa que os
conceitos teológicos fundamentais utilizados pelo evangelista foram
reinterpretados em 1Jo. Em outras palavras, o autor de 1Jo, apoiando-
se no evangelho como numa tradição estabelecida, tenta dizer de novo
o seu sentido numa situação nova.447
Esta reinterpretação de temas do Evangelho acontece também na Segunda e Terceira
João, aliás, “os dois temas principais de 1Jo, a saber, a explosão de uma crise no seio
das Igrejas joaninas e a exortação a amar o irmão reaparecem em 2 e 3 João.”448
No
entanto, não se deve “ignorar diferenças substanciais”449
. Todavia, um traço comum
nesta tradição é a referência, ainda que subentendida, à entrega voluntária de Jesus, isto
é, mesmo com a crise interna, que se revela nestas Cartas, o mandamento do amor e da
obediência, que são virtudes de Jesus, estão presentes nas Cartas, fazendo eco à entrega
de Jesus por amor, pois, “não há maior amor que dar a vida por seus amigos” (cf. Jo
15,31).
Além do Evangelho e das Cartas, há ainda o livro do Apocalipse, que se chegou a
considerar como um escrito do meio joanino. Sobretudo, pelo fato de o autor se nomear
444
Idem ibidem, p. 589: “El Cordero de Dios es um cordero que pertenence a Dios en propriedad, sobre el
que tiene derecho; si a esta idéia se le une lo de “quitar el pecado” se puede fácilmente concluir que Dios
usará de su derecho y que es por el sacrifício del Cordero de Dios como será quitado el pecado.” 445
Cf. TUÑÍ, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Escritos joaninos e cartas apostólicas, p. 65. 446
SCROGGS, Robin. O Jesus do povo, p. 281. 447
MARGERAT, Daniel (Org). Novo Testamento, p. 479. 448
Idem ibidem, p. 489. 449
Idem ibidem, p. 489.
98
João (cf. Ap 1,9), alguns comentadores antigos, como Irineu, chegaram a ligar o João do
Apocalipse ao mesmo João das Cartas e do Evangelho450
. No entanto, a pesquisa bíblica
caminha no sentido que partilha Cuvilier, ao dizer que o autor de Apocalipse “deve
tratar-se de um personagem importante das comunidades asiáticas do fim do século I,
talvez um membro influente de um círculo de profetas cristãos itinerantes (cf. Ap
22,6)”451
. Com isso se desloca claramente a autoria do Apóstolo João, mas não a
descarta dos círculos joaninos.
O livro do Apocalipse traz influência da “teologia paulina, mas de modo especial das
comunidades do Discípulo Amado”452
e mesmo que haja uma diferença quanto à
linguagem e ao uso de termos, há certa semelhança: algumas delas são “o tema da água
viva (cf. Ap 7,16s; 21,6; 22,1.17/ Jo 4,10.13s; 7,37-39), a designação de Jesus como
„Palavra de Deus‟ (cf. Ap 19,13, cf. Jo 1,1) e o título cristológico „Cordeiro‟ (29 vezes
no Apocalipse, cf. Jo 1,29.36)”453
. Já com as Cartas coincide “as divisões internas das
comunidades provocadas pelas tendências gnósticas, tanto o Apocalipse como as Cartas
atribuídas a João fazem referência a elas (cf. Ap 2-3; 1Jo 4,1-6)”454
.
Para Gass é possível que o meio onde surgiu o Apocalipse de João tenha tido contato
com a tradição joanina, mas até mesmo é possível que esteja em outra comunidade que
não as joaninas455
, contudo, chama a atenção o uso do termo „cordeiro‟, que ocorre 29
vezes neste livro, e duas vezes no texto do Quarto Evangelho.
Em Jo 1,29 o termo utilizado para cordeiro é o termo amnós456
, já bastante explorado
ao longo da pesquisa, ao passo que o termo utilizado pelo livro do Apocalipse é
arnion457
. Este termo aparece no Apocalipse por 29 vezes, dos quais 28 referidas a Jesus
e uma referida ao anticristo (cf. Ap 13,11)458
. Mesmo com a diferença entre os termos
usados, pesquisadores como Cuvilier e Gass levam em consideração como identidade
entre a tradição joanina e o Apocalipse a ocorrência de cordeiro nestes escritos.
O termo arnion acontece no Evangelho segundo João somente em Jo 21,15
(apascenta meus cordeiros) e não está aplicado a Jesus, como acontece em Jo 1,29.36
com amnós, mas ao grupo que deveria ser apascentado por Pedro, ao que indica a Igreja.
450
Cf. Idem ibidem, p. 500. 451
Idem ibidem, p. 500. 452
GASS, Ildo B. Uma introdução à Bíblia, p. 100. 453
MARGERAT, Daniel (Org). Novo Testamento, p. 502. 454
GASS, Ildo B. Uma introdução à Bíblia, p. 100. 455
Cf. Idem ibidem, p. 100. 456
Cf. BLANCHARD, Y. Cordeiro de Deus. In: DCT, p. 462. 457
Cf. Idem ibidem, p. 461: “na origem diminutivo de arén.” 458
Cf. JEREMIAS, J. amnós. In: GLNT. V. I. Brescia: Paideia, 1965, p. 917-925.
99
Fora dessa passagem, o termo se encontra somente no Apocalipse459
e aqui ele designa
o “Cordeiro Vencedor”460
. Dodd já havia interpretado que a base do cordeiro na tradição
joanina estaria na linha da apocalíptica judaica, que conhece um cordeiro vencedor461
associado à imagem de Messias. Assim, a tradição joanina estaria contemplada no
Apocalipse de João, contudo, Dodd está pensando no cordeiro retratado na literatura
apocalíptica judaica462
. Já o Apocalipse de João apresenta o cordeiro imolado, ou seja, o
cordeiro vitorioso traz as marcas do imolado, que por sua vez traz semelhança com o
cordeiro joanino, pois as imagens de cordeiro na tradição joanina apontam para uma
oferta, em vista de tirar o pecado do mundo (cf. Jo 1,29), e, em Primeira João, para
expiar os pecados da humanidade com o seu sangue (cf. 1Jo 2,2). Portanto, o cordeiro
com as marcas da imolação (cf. Ap 5,6; cf. 5,9.12; 13,18) não se distancia do cordeiro
apresentado para o sacrifício, o amnós463
, aliás, “la desginación del arnin „como
inmolado‟ (cf. Ap 5,6.9,12;13,18) y la referencia al efecto salvífico de su sangre señalan
la conexón con los enunciados del NT acerca de Jesús como cordero sacrificial”464
.
Blanchard defende que “desde os LXX os três termos amnós, arén e arnion parecem
equivalentes”465
. Pode-se, pois, considerar que o Apocalipse, fazendo uso de um tipo
literário bastante difundido no judaísmo do Primeiro Século, e diante “do motivo dos
sofrimentos da comunidade, a sua resposta é [...] claramente cristã”466
, partilhando,
então, a tipologia do cordeiro, presente também na tradição joanina, aliando-a com a
tipologia da literatura apocalíptica judaica, por isto, “em resumo, pode se dizer que
amnós tou theou denota a oferenda de Deus, Cristo, destinado por Ele para levar os
pecados do mundo, enquanto arnion ressalta o fato de que Aquele que é o Senhor eterno
também é Cristo crucificado por nós”467
.
O uso de um termo correlato para cordeiro, mas com uma teologia associada, reforça
o argumento de que o autor do Apocalipse de João tenha tido conhecimento dos escritos
joaninos que circulavam em algumas comunidades do cristianismo do Primeiro Século,
ou até mesmo que o autor seja de uma comunidade de “herança do Discípulo
459
Cf. GESS, J. amnós. In: DITNT, p. 430. 460
BLANCHARD, Y. Cordeiro de Deus. In: DCT, p. 461. 461
Cf. DODD, Charles. A interpretação do Quarto Evangelho, p. 311-314. 462
Cf. PROENÇA, Eduardo (Org.). Apócrifos e pseudo-epígrafos da Bíblia. V.I. São Paulo: Fonte
Editorial, 2010, p, 313: “Então o Senhor das ovelhas enviou o cordeiro e estabeleceu-o com carneiro e
líder das ovelhas.” 463
Cf. JEREMIAS, J. amnós. In: GLNT. V. I, p. 926. 464
DAUTZENBERG, G. arnion. In: DENT. V. I. Salamanca-ES: Ediciones Sigueme, 1996, p. 211. 465
BLANCHARD, Y. Cordeiro de Deus. In: DCT, p. 461. 466
SHREINER, Josef; DAUTZENBERG, Gerhard. Forma e exigências do Novo Testamento, p. 432. 467
GESS, J. amnós. In: DITNT, p. 430.
100
Amado”468
. Contudo, o que fica claro é que a identidade das comunidades do Discípulo
Amado passa pelo mandamento do amor e pela entrega de Jesus como cordeiro. Seriam
estes elementos o elo comum entre o Evangelho, as Cartas e até mesmo o Apocalipse,
incluindo aí a divisão interna da comunidade e o combate ao gnosticismo, presentes
tanto nas Cartas, quanto no Apocalipse469
.
Como observado, a titulação e analogia de Jesus como cordeiro, entre os escritos
neotestamentários, não é exclusividade da Escola Joanina, no entanto, a acentuação
acontece nesta Escola, passando por elaboração teológica a cada contexto que se
impunha, mas mantendo os elementos comuns dentro de acenos próprios exigidos pela
realidade. Diante disto, vale buscar a relação implícita entre Messias e Cordeiro, uma
vez que a expectativa do Messias é temática fundamental no Quarto Evangelho.
3.2 O cordeiro e sua relação com a expectativa do Messias
A comunidade joanina guardou apreço pela imagem do cordeiro, conciliando várias
nuances, seja no sacrifício expiatório ou no rito pascal, no entanto, há ainda outras
imagens aplicadas a Jesus no Quarto Evangelho: o Logos (cf. Jo 1,14), a Luz (cf. Jo
8,12), o Bom Pastor (cf. Jo 10,14), o Filho do Homem (cf. Jo 1,51), o Pão da Vida (cf.
Jo 6,35). Todas estas imagens estão relacionadas com o grande título dado a Jesus, o de
Cristo, isto é, o ungido, de modo que no Quarto Evangelho,
A „busca‟ pelo Messias é um movimento fundamental da parte das
pessoas que crêem e esperam, movimento que atravessa todo o
evangelho (Cf. 1,38; 6,24.26; 7,11.31-36; 18,4.8; 20,15). A essa busca
corresponde a „vinda‟ do Messias para os que o buscam, que assim
podem encontrá-lo (1,41.45).470
As perguntas dirigidas a João Batista revelam que alguns grupos judeus, no I séc.
d.C., tinham a preocupação pela vinda do Messias. Pelo registro do interrogatório do
Batista, pode-se bem compreender que a comunidade joanina não se saiu deste contexto,
como afirma Klopstock: o tema da busca do messias seria um tema central na produção
literária da comunidade joanina471
. No entanto, na pesquisa surge um complicador:
segundo Blanchard472
, as raízes messiânicas do Evangelho segundo João se encontram
vinculadas com a Samaria, todavia, o Evangelho está repleto da tradição judaica, ao que
468
GASS, Ildo B. Uma introdução à Bíblia, p. 100. 469
Cf. Idem ibidem, p. 100. 470
KLOPSTOCK, Friedrich G. O Messias. São Paulo: Loyola, 2008, p. 113. 471
Cf. Idem ibidem, p. 114. 472
Cf. BLANCHARD, Yves-Marie. São João. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 91.
101
Higino da Silva, com base em Boismard, argumenta que no processo de redação foi se
assumindo mais as tradições do Sul e abrindo mão das tradições do Norte473
. Inclusive
no que toca ao tema do Messias.
Na perspectiva joanina de apresentar o messias, tema recorrente no Quarto
Evangelho, o Prólogo já guarda acenos claros acerca da pré-existência e da
messianidade de Jesus474
, mas é na semana inaugural que se dá a titulação que revela
Jesus como Messias. Nesta semana encontra-se João Batista, aquele que declara não ser
o Messias, mas o que tem a missão de revelar Jesus475
. Assim, a partir do testemunho de
João Batista, Jesus recebe alguns títulos que o expõe como Messias, alguns deles são:
Cordeiro de Deus, Filho de Deus e Rei de Israel (cf. Jo 1,29.49), que fazem parte de
uma cena que os entrecruzam e lhes tornam equivalentes, isto é, “a expressão o amnos
tou theou, na sua primeira intenção é provavelmente um título messiânico, virtualmente
equivalente ao basileus tou Israel”476
.
Para Mincato, a indicação de Jesus como Messias, que se dá no encontro com o
Batista, acontece inicialmente com o título Cordeiro de Deus e se conclui com o título
de Filho de Deus, de modo que ambos estejam correlacionados ou paralelos477
. Sobre o
título „Filho de Deus‟ há uma aproximação com a teologia davídica, pois “ao entronizar
o rei Davi, Deus o declara seu filho”478
. Dessa maneira, Jesus assume um messianismo
régio, visto que „a concepção de Messias como filho de Deus é preparada nas tradições
veterotestamentárias do rei (também chamado „ungido‟) como filho de Deus: cf. Sl
2,2.7; 89,26s.; 1Sm 7,12-14”479
. A titulação do rei não acontece direta como no caso
referente a Jesus, mas na expressão „meu filho‟. Aqui se pode compreender a fala de
Natanael, ao chamar Jesus de rei de Israel, ou seja, a afirmação está associada à imagem
messiânica de realeza. No entanto, o rei Davi ou outro rei ao ser chamado de „filho de
473
SILVA, Antonio Carlos Higino da. O Messias samaritano do Evangelho de João. Disponível em
HTTP://lattes.cnpq.br/7688414808630436. Acessado em 10 de Maio de 2013 às 10:45:25. P. 06: “as
adequações que encontramos vão paulatinamente transferindo a base da tradição da Samaria para a
Judéia. O Profeta vai ganhando as configurações do Messias (Cristo) que era esperado pelos judeus de
Jerusalém.” 474
Cf. TUÑÍ, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Escritos joaninos e cartas apostólicas, p. 87. 475
KLOPSTOCK, Friedrich G. O Messias, p. 115: “a tarefa de João Batista consiste em „revelar a Israel‟
Jesus como Messias (1,31). Para tanto, ele declara veementemente não ser o „Cristo‟ (1,20; 3,28), mas se
apresenta como a primeira testemunha eminente de Jesus como „aquele que vem depois dele‟ e portador
exclusivo do Espírito (1,6-8.15.19-34).” 476
DODD, Charles. A interpretação do Quarto Evangelho, p. 315. 477
MINCATO, Ramiro. Confissão de Natanael (Jo 1,43-51) e o modo da revelação no Quarto Evangelho.
TC, v. 159, Porto Alegre, 2008, p. 10: “Na primeira parte, quando trata do testemunho de João Batista
(1,19-34), a confissão culminante é o título „Filho de Deus‟ (1,34), paralelo a „Cordeiro de Deus‟ (1,29).
Ambos esses títulos são messiânicos.” 478
Idem ibidem, p. 11. 479
THEISSEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus histórico: um manual. São Paulo: Loyola, 2002, p. 638.
102
Deus‟ o é de forma metafórica, porque não há neles a condição metafísica de filho de
Deus; já em Jesus, o Quarto Evangelho trabalha exatamente para expor isto: Jesus é
Filho de Deus, participa de sua natureza divina e, ao mesmo tempo, este filho é dado à
humanidade para demonstrar o amor do Pai.
O título Filho de Deus diz que Jesus veio de Deus, e o seu messianismo é vontade do
Pai, do mesmo modo, o paralelo „Cordeiro de Deus‟ se revela como uma expressão
aplicada a Jesus, no mesmo grau de Filho de Deus. Por outro lado, há de se considerar
que por trás da expressão „Cordeiro de Deus‟ está a analogia do Servo Sofredor, com
bases em Is 53480
, mas ao mesmo tempo, segundo uma antiga tradição, não elimina a
concepção de um Messias régio.
A comunidade joanina trazia a forte preocupação de Jesus como centro do seu
Evangelho, porque o tem como o tema mais importante. Ele é “o objeto da fé”481
, pois é
o Messias (cf. Jo 1,41). Assim, a declaração Batista de que Jesus é o Cordeiro de Deus
não está isenta deste propósito joanino de apresentar Jesus como o Messias482
, todavia,
o título de cordeiro assimila várias perspectivas, entre elas a de Servos Sofredor483
.
Então, como o título de Filho de Deus e Rei de Israel, que trazem a hermenêutica de um
Messias régio, podem ser paralelos a Cordeiro de Deus?
Segundo Ábrego de Lacy, a fundamentação de Jesus como Messias está
profundamente enraizada nas tradições veterotestamentárias484
. Já no que se refere ao
título Cordeiro de Deus, segundo Léon-Dufour, “não se reconhece na tradição judaica
um „título‟ messiânico semelhante”485
, todavia, “é sobre a designação de Jesus como
Cordeiro de Deus que, depois de seu colóquio com ele, André declara a seu irmão
Pedro: „nós encontramos o Messias‟ (1,41)”486
. De fato, esta titulação não está
registrada na tradição judaica do Messias, ao menos de forma mais comum; uma prova
480
Cf. TUÑÍ, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Escritos joaninos e cartas apostólicas, p. 294. 481
Idem ibidem, p. 87. 482
FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos. V. II, p. 294: “a narração que encontramos
no vv. 29-34 não pretende narrar o batismo de Jesus, e sim indicar quando e como o Batista reconheceu o
Messias. Mas é sobretudo uma confissão de fé em Cristo que se articula em três afirmações: eis o
Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (v. 29); eu vi o espírito descer como uma pomba e
permanecer sobre ele (v. 32); ele é o Filho de Deus (v. 34).” 483
Cf. Idem ibidem, p. 294. 484
ÁBREGO DE LACY, José Maria. La esperanza mesiânica en los libros proféticos: evolución y
desarrollo. EstB, p. 414: “la originalidad del NT en el tratamiento del mesianismo no se limito a mezclar
heterodoxamente dos figuras salvíficas de perfiles tan diferentes como el Siervo de Yahvé y el Mesias
político. El perfil de Jesús, el Mesìas, tal como lo dibuja el NT hunde sus raíces en una corriente de
esparanza mesiànica ya presente en el AT y fundamentalmente revisada en el destierro.” 485 LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. V. I, p. 136. 486
Idem ibidem, p. 136.
103
disto é que tal título aparece somente no Quarto Evangelho, como que não interessando
à tradição sinótica.
Na linha interpretativa da saudação do Batista (cf. Jo 1,29) e sua relação com a
esperança messiânica, Dodd reconhece que é difícil associar cordeiro a Messias dentro
do judaísmo do Primeiro Século, o que causa à interpretação joanina uma dificuldade487
.
Para Dodd, esta associação só pode acontecer, como já exposto, com base na literatura
apocalíptica, isto é, o Quarto Evangelho, segundo Dodd, utilizou de uma fonte
apocalíptica para aplicar a Jesus a titulação messiânica de cordeiro, segundo ele,
não obstante o evangelista não ter simpatia alguma para com a
escatologia apocalíptica, ele certamente não a ignora. A dificuldade
principal é que o termo usado no Apocalipse de João não é amnós mas
arnion. Todavia, nos apocalipses que estão detrás deles amnós, como
também aren, krios e probaton, é usado em se tratando do carneiro-
guia do rebanho. Enquanto que o autor de Apocalipse de João
escolheu o termo arnion, outros cristãos de língua grega que
pensavam no Messias em termos apocalípticos, podem perfeitamente
ter escolhido amnós.488
O mesmo Dodd, ao se fazer a pergunta sobre a associação de Cordeiro de Deus e os
títulos posteriores: Filho de Deus e Rei de Israel (cf. Jo 1,49), que são títulos
messiânicos régios, encontrados na tradição judaica, considera que esta associação
provém da literatura apocalíptica que o Quarto Evangelho teve como fonte, nela “o
cordeiro de chifres ou o jovem cordeiro como chefe do rebanho”489
assume função
régia, o que fundamentaria a sessão de títulos messiânicos no primeiro capítulo do
Quarto Evangelho490
.
Ao lado da proposta de Dodd, que afirma Cordeiro de Deus como título
messiânico491
, está Léon-Dufour, que, considerando a fonte apocalíptica nos apócrifos,
vê o uso de Cordeiro, no Evangelho segundo João, também como um título
messiânico492
. Ao lado destas propostas se encontra a visão de Diez Merino, para ele, o
Quarto Evangelho, ao registrar a saudação Batista (cf. Jo 1,29), tinha em mente a
487
Cf. DODD, Charles. A interpretação do Quarto Evangelho, p. 315. 488
Idem ibidem, p. 313-314. 489
Idem ibidem, p. 314. 490
Idem ibidem, p. 303: “o primeiro capítulo do evangelho, desde o fim do Prólogo, é formado por uma
série de „testemunhos‟ sobre Jesus, levando a uma declaração solene de sua parte. O evangelista compôs
assim esta introdução como que para apresentar os principais títulos dados a Jesus na Igreja primitiva:
„Messias‟, ou „Cristo” (1,41). [...]começou sua obra citando os títulos messiânicos tradicionais do Senhor.
Pois no uso do cristianismo primitivo todos eles são messiânicos, embora quanto à maioria deles não se
consegue provar que foram correntes neste sentido no judaísmo pré-cristão.” [itálico nosso]. 491
Idem ibidem, p. 314: “pelo contexto se nota que o evangelista entendeu „o Cordeiro de Deus‟ como
sinônimo de „Messias‟.” 492
Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. V. I, p. 138.
104
messianidade de Jesus, e sim, queria fazer uma analogia entre o Messias e o cordeiro,
que ao mesmo tempo é Filho de Deus493
. É possível que tal analogia entre um Servo
Sofredor e um título régio estivesse sustentada em uma tradição que decorria ainda do
período pré-exílico; esta tradição remonta, segundo Ábrego de Lacy, ao rei Josias.
O título Messias inicialmente está ligado a figuras históricas, a pessoas que eram
ungidas, e por isso passavam a ganhar relevância em meio ao resto do povo; aos poucos,
o rito dirigido a sacerdotes, profetas e reis494
, vai adquirindo uma interpretação de
intervenção divina, isto é, Deus enviaria um ungido para libertar o povo; este enviado de
Deus vai recebendo muitas conotações. Devido à teologia davídica, Davi se torna um
modelo messiânico; afirmando assim, que Deus age em favor de seu povo por meio do
rei495
. De fato, a obra de Davi, segundo alguns textos veterotestamentários, mostrou-se
tão agradável aos olhos de Deus, que o oráculo do profeta Natan prescreve um
compromisso de Deus com a descendência de Davi (cf. 2Sm 7,16), o que „fundará‟ a
esperança de um Messias davídico496
.
Historicamente, o rei que mais se assemelhou a Davi em obras e piedade, teria sido o
rei Josias497
, merecendo grande reconhecimento na tradição judaica, isto porque fez um
projeto de reunificação de todo o território de Israel, por meio de uma reforma político-
religiosa (cf. 2Rs 22), o que atribui ao rei Josias os requisitos de um grande rei, ou ao
menos de um rei desejado por Judá498
.
A passagem de Josias pela monarquia do Sul foi marcada por expansões. É
justamente em uma batalha que ele morre; tal morte em batalha causou crise à teologia
da dinastia davídica, pois surgia a questão: Deus foi ou não fiel a Davi?- A respeito de
sua morte, em 2Rs 23,28-30, a narrativa é sucinta e não permite acompanhar o seu
significado. Já Crônicas ao relatar a morte do rei procura uma causa: “não escutou as
493
DIEZ MERINO, Luis. El cordero de Dios en el Nuevo Testamento y en el Targum. EstB, p. 592:
“Juan Bautista tênia, pues, em su mente, al Mesías, justo e inocente, voluntariamente inmolado y quitando
el pecado del mundo, después de haberlo tomado a su cargo y haberlo expiado su sangre. El Cordero que
se há mostrado no es solamente el cordero divino, el cordero enviado por Dios; él es el Cordero de Dios, a
título de propriedad, el Hijo de Dios que cumplía con los sufrimientos y la muerte, su misíon redentora.” 494
Cf. THEISSEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus histórico, p. 559. 495
ÁBREGO DE LACY, José Maria. La esperanza mesiânica en los libros proféticos: evolución y
desarrollo. EstB, p. 416: “con David la monarquia adquirió características de intervención específica de
Yahvé en favor de su pueblo.” 496
Cf. Idem ibidem, p. 417. 497
NAKANOSE, Shigeyuki. Uma história para contar: a páscoa de Josias. São Paulo: Paulinas, 2000,
p.66: “ao ler 2Rs 22,1-23,30 constatamos que os redatores ressaltam o papel de Josias como o melhor rei,
um homem fiel a Javé (22,2), empenhado na conservação do Templo (23,4-7) e no cumprimento da Lei
(22,13.19;23,1-3).” 498
ÁBREGO DE LACY, José Maria. La esperanza mesiânica en los libros proféticos: evolución y
desarrollo. EstB, p. 420; “1) el sentimiento anti-Betel, 2) la tendencia pro-levítica en el culto, y 3) la
ideologia del David redivivus.”
105
palavras de Nacao, as quais vinham de Deus” ( 2Cr 35,22). Justificando que a morte de
Josias foi fruto de desobediência, contudo não deixou de merecer pranto em Jerusalém e
homenagens (cf. 2Cr 35,25), visto que sua obra foi “de acordo com a Lei do Senhor”(
2Cr 35,26).
O fim não desejado de Josias fez surgir uma interpretação de morrer pelo povo, isto
é, o rei justo não morreu simplesmente, mas morreu em uma batalha a favor de sua
nação. Deste modo, a dinastia davídica, que havia entrado em crise passa a se refazer, a
tal ponto, que para Ábrego de Lacy, concordando com Laato, este fato se torna o relato
base de Zc 12,9-13,1 e de Is 53; portanto, Ábrego de Lacy lança sobre Is 53 a releitura
do que se passou em Meguido, pelo que enumera as semelhanças, a saber,
en efecto, una lamentación suele tener una eulogia acentuada del
difunto (el siervo, „sin rostro ni apariencia‟); se destaca su importancia
en la sociedad (el siervo, „despreciado, sin atención‟); se alaba su
heroicidad y coraje (el siervo, „como cordero al matadero‟); es
esencial un funeral solemne (no para el siervo „con los malvados‟). La
muerte de Josías, duro golpe para los círculos dtrs, formaria un
transfondo histórico-tradicional homogêneo para la magnitud del
dolor reflejado em Is 53.499
Com a consideração de Ábrego de Lacy, partilhada por Laato, estaria em Meguido
não somente um fundo histórico da narrativa de Is 53, mas também um possível
fundamento para a morte vicária, e, também, estaria fundamentando a sorte da morte de
um justo pelos pecados do povo500
, de sorte que a analogia de cordeiro e servo estaria
justamente aliando duas tipologias, a princípio muito distantes: o messias régio e o
messias servo sofredor.
O Messias régio é Filho de Deus e, ao mesmo tempo, é Servo Sofredor. Está disposto
a dar sua vida pelo povo, assim, pode-se compreender que a comunidade joanina, ao pôr
em paralelo os títulos „Cordeiro e Deus‟ e „Filho de Deus‟, provavelmente, além da
hipótese de Dodd, ligada aos apócrifos apocalípticos, tivesse também em mente esta
junção que, segundo Ábrego de Lacy, já havia sido feita em Is 53.
Ainda que com fontes diversas, tanto Dodd, quanto Léon-Dufour, Diez Merino e
Ábrego de Lacy concordam que o cordeiro joanino torna-se uma tipologia messiânica
atribuída a Jesus, com o Batista cumprindo sua missão: revelar o Messias501
. Por sua
499
Idem Ibidem, p. 422. 500
Idem ibidem, p. 423: “con Josías- y con su muerte-, no sólo se refuerza la corriente mésianica que
unifica los reinos bajo un nuevo David, sino que tambiém se inicia la reconsideración del justo que muere
por los pecadores.” 501
Cf. FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos. V. II, p. 293.
106
vez, a comunidade que convivia com outras perspectivas messiânicas502
viu nesta
imagem algo que reunia as características do ministério de Jesus, ou seja, a tipologia de
cordeiro-servo reúne não somente a visão régia do Messias, mas também a de
conhecedor da Lei e a função expiatória, que se esperava do Messias503
. Quanto a
esperança de reunificação, parece que a contribuição samaritana foi importante, pois a
tipologia do Messias samaritano trazia esta atribuição: a reunificação de Israel e a
universalização da ação do Messias (cf. Jo 4,42).
Segundo Ábrego de Lacy, com Josias a corte passou a sonhar com a reunificação de
Israel504
, o que na tradição foi sonhado por alguns profetas505
.
3.2.1 O Cordeiro de Deus e as tipologias samaritanas de Messias
No encontro com Natanael, que surge da segunda evocação de Jesus como
cordeiro506
(1,36), o Quarto Evangelho relaciona títulos messiânicos: Messias, Filho de
José, Filho de Deus e Rei de Israel (cf. Jo 1,41.45.49). Dentro da perspectiva de
reunificação do povo, o título „filho de José‟, aparecerá não somente aí, mas também em
Jo 6,42. A princípio, ambos parecem dizer respeito à família de Jesus, sua origem. No
entanto, considerando a ironia joanina e sua perspectiva de revelar o Messias, esta
referência se dirige também à antiga tradição sobre o messianismo do Filho de José507
.
502
GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino. Qumran e o Novo Testamento: mitos e realidades. AT. Rio de
Janeiro, n. 31, 2009, p. 51: “o Messias no Novo Testamento tem muitas facetas: é um homem,
descendente de Davi; é, ao mesmo tempo, um Sacerdote que expia os pecados do mundo (o que parece
implicar numa descendência aarônica ou levítica); é um profeta, como Moisés que proclama uma nova
Lei; e é, ao mesmo tempo, uma figura celeste, o Filho de Deus.” 503
DIEZ MERINO, Luis. El cordero de Dios en el Nuevo Testamento y en el Targum. EstB, p. 594:
“tanto el Cordero, como el Siervo, tienen una misma misión universal, que es la de abolir el pecado[...]
será de diversos modos: 1) el Siervo se mostrará como Siervo-doctor de la Ley de Dios, en especial en la
persona de Jesús; pues la misión del Siervo será una enseñanza que permitirá que los hombres conozcan y
cumplan la voluntad de Dios, y como consecuencia, evitarán el pecado (Is 42, 1-4); 2) El Siervo será
totalmente puro, y proporcionará a los hombres fuerza para que no vuevan a pecar; por eso la santidad del
pueblo de Dios será uno de los caracteres de los tiempos mesiánicos; 3) El Siervo, afinazado en su
inocência, bautizará en el Espíritu, que él mismo recebió, y comunicará este mismo Espíritu que se
transformará en el hombre en princípio de vida nueva y de proceder intachable (Is 2,1-9;32,15-19;44,3-5;
cf. Ex 36,26s); 4) El Siervo tendrá, ante todo, una misión expiatória: ha de sufrir y morir por los
hombres.” 504
ÁBREGO DE LACY, José Maria. La esperanza mesiânica en los libros proféticos: evolución y
desarrollo. EstB, p. 420. 505
Cf. Idem ibidem, p. 418-419. 506
Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de João. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 108:
“João pronuncia sua declaração em presença de dois discípulos. Ao repetir o incipit da declaração
anterior (1,29: olhai o Cordeiro de Deus), o autor faz ver que João comunica aos seus discípulos o
conteúdo inteiro daquela. Eles conhecem assim a qualidade do Messias; sabem que ele inaugurará a nova
páscoa e a nova aliança e realizará a libertação definitiva.” 507
Cf. Idem ibidem, p. 109.
107
O Filho de José, como título messiânico está diretamente ligado à esperança da
reunificação dos dois reinos, pois esse título, na Judéia, estaria relacionado à Ez 37,15-
28, pelo que a “interpretação de Ez 37,24 [...] buscaria reunificar as regiões da Samaria
e da Judéia sob o reinado de Jesus. Um rei para os dois povos, Judá e Israel
(Samaria)”508
. Para Mateos e Barreto, “o conteúdo deste texto profético corresponde
perfeitamente à descrição de Jesus feita por Felipe e Natanael”509
, uma vez que
consideram Jesus não somente como Filho de Deus, mas também como rei de Israel,
trazendo à messianidade de Jesus, iniciada com a saudação Batista (1,36: eis Cordeiro
de Deus), a condição régia.
A condição régia está sutilmente sob a imagem da reunificação, pois se cordeiro
lembra o Servo Sofredor, que tem, segundo Ábrego de Lacy e Laato, suas raízes
históricas no episódio de Meguido, por sua vez, associa-se à imagem messiânica de
Filho de José, que lembra, segundo Silva, um Messias sofredor510
, a exemplo do que se
cimentou a partir de Is 53, que seria uma das bases da saudação Batista em Jo
1,29.36511
.
O cordeiro como elemento comum aos vários grupos que formaram a comunidade
joanina, traz à teologia do Quarto Evangelho a constatação de que Jesus é Messias e
Rei; aqui se entende porque a sequência de proclamação se abre com a declaração do
Batista (cf. Jo 1,29.36ss), o que se segue pelo movimento dos discípulos que vão
conhecendo Jesus e mostrando a outros. O processo de proclamações culmina com o
título rei de Israel; e mesmo que Natanael esteja pensando em uma perspectiva
nacionalista, o Quarto Evangelho deixa entre linhas que há a conjugação com o Filho de
José, fazendo de Jesus o reunificador.
Levando em consideração a sucessão de títulos messiânicos após a proclamação
Batista (cf. Jo 1,29.36), constata-se que essas interpretações trazem a messianidade de
Jesus mais para o mundo judaico, contudo, há alguns trechos desde Jo 1,29 que inserem
já uma associação com o meio samaritano.
508
SILVA, Antonio Carlos Higino da. O Messias samaritano do Evangelho de João. Disponível em
HTTP://lattes.cnpq.br/7688414808630436. P. 5, acessado em 10 de Maio de 2013 às 10:45:25. 509
MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de João, p. 120. 510
SILVA, Antonio Carlos Higino da. O Messias samaritano do Evangelho de João. Disponível em
HTTP://lattes.cnpq.br/7688414808630436. Acessado em 10 de Maio de 2013 às 10:45:25, p. 10: “o
messias filho de Davi é um messias triunfante enquanto o Ephraim, ou o messias Filho de José é um tipo
muito diferente de messias e reflete um novo tipo de messianismo. Este tipo de messianismo envolve
sofrer e morrer.” 511
Cf. NEVES, Joaquim Carreira das. Escritos de São João. Lisboa: Universidade Católica Editora,
2004, p. 131.
108
O cordeiro era símbolo de libertação tanto para judeus como para samaritanos, pelo
que a imagem do Cordeiro Pascal perpassa todo o Quarto Evangelho512
; realizando
associação entre Jesus e o cordeiro. O Evangelho segundo João parece associar também
outras imagens no título Cordeiro de Deus513
, mas é a partir de Jo 1,36 que aparecem
algumas atribuições do Messias samaritano: aquele de quem escreveu Moisés na Lei e
Filho de José.
Aquele sobre quem escreveu Moisés na Lei (cf. Jo 1,45) é o profeta esperado pelos
samaritanos: o novo Moisés514
; o Messias samaritano está fundamentado em Dt 18,15-
20, o que teria sido predito por Moisés, daí se pode compreender a fala de Felipe ao
dizer que Jesus estava na Lei de Moisés515
. Vendo Jesus como o Messias esperado pela
Samaria, o Quarto Evangelho faz acontecer, mais uma aproximação entre estes dois
povos, por sua vez, ao evocar os profetas (cf. Jo 1,45), Felipe traz o patrimônio do Sul,
aliando as duas tradições no interior da comunidade joanina, mas, para amadurecer a
concepção de um Ungindo sofredor, parece ter sido essencial à comunidade joanina a
contribuição samaritana516
.
Blanchard expõe que os samaritanos trouxeram grande contribuição à interpretação
messiânica sobre Jesus, assim, o aporte samaritano “pode ter mudado o curso da
cristologia joanina conferindo ao „Salvador‟ atribuições muito mais amplas do que as do
Messias de Israel”517
. Com isso, a saudação Batista ganharia uma interpretação mais
plausível, isto é, a imagem cordeiro-servo com alcance universal seria mais bem aceita.
512
Cf. MOLLAT, Donatien. Études Johaniques. Paris: editions Du seuil, 1979. P. 22: “ mais c´est la fête
de la paque, qui est mise par Jean avec le plus d´insistance en relation avec Jésus. Une première fois, au
seuil du ministère public, Jésus monte à Jerusalém pour purifier le Temple, centre des solennités pascales,
des profanations qui le souillent; Jésus annonce qu´immolé par les Juifs, et ressuscité, il será dans son
corps la victime et le sanctuarie de la Pâque nouvelle et veritable. Puis c´est la multiplication des pains
que est à son tour liée à la Pâque[...]surtout, le lien de la mort de Jésus avec la fete de la Pâque.” [tradução
nossa: porém, é a festa da páscoa, que é apresentada, com mais insistência, por João, em relação a Jesus.
Uma primeira vez, no início do ministério público, Jesus se dirige a Jerusalém, para purificar o Templo
(centro das solenidades pascais) das profanações que lhe contaminam; Jesus anuncia que imolado pelos
Judeus e ressuscitado, Ele será, no seu corpo, a vítima e o santuário da Páscoa nova e verdadeira. Depois,
por sua vez, a multiplicação dos pães é associada à Páscoa[...]especialmente a ligação da morte de Jesus
com a festa da Páscoa.] 513
LAGRANGE, Le P. M. Évangile selon Saint Jean. Paris: Librairie Lecoffre, 1948, p. 39: “Cet agneau
est, ou bien l ´agneau des sacrifices du Temple, ou bien l´agneau pascal, ou bien une figure du serviteur
de Iahvé dans Isaïe.” [tradução nossa: este cordeiro é tanto o cordeiro dos sacrifícios do Templo, como o
cordeiro pascal, ou ainda, uma figura do servo de Iahvé do livro de Isaías.] 514
FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos. V. II, p 317: “Os samaritanos esperavam o
Messias como um novo Moisés, um Moisés redivivo.” 515
LÓPEZ ROSAS, Ricardo; RICHARD GUSMÁN, Pablo. Evangelio y Apocalipsis de San Juan, p.
63: “en efecto, en Dt 18, 15-20 Moisés escribió sobre la venida de un gran profeta que recibiría de Dios
mismo sus palabras y las transmitiría para vida o para muerte según fueran escuchadas o no.” 516
Idem ibidem, p. 111: “quizá fueron esos médios [samaritanos] los que aportaron elementos para forjar
una cristología no davídica, donde los rasgos dolientes del Mesías tendrían cabida.” 517
BLANCHARD, Yves-Marie. São João, p. 91.
109
Frente a isto, vale ressaltar que o ministério de João Batista também se deu em território
samaritano, onde provavelmente encontrou alguns adeptos, o que já antecipa a
convivência no interior da comunidade joanina.
O fato de João Batista ter se ocupado também da Samaria não é um consenso entre
os pesquisadores. Nomes como Konings, Mateos e Barreto e Castro Sánches
argumentam que a indicação de Enon e Salim, podem se referir à Decápole518
, em
Citópolis. Mas, para Moloney, os nomes sugerem a Samaria519
. Em todo caso, João
Batista passa a exercer seu ministério fora das terras da Judéia, onde provavelmente
havia recebido alguma repressão520
. Castro Sánches diz que este trecho está posto aí
para fazer uma transição entre a Judéia de Nicodemos e a Samaria da mulher
samaritana521
. Do ponto de vista da expansão do anúncio da vinda do Messias, a
localização de João Batista antecipa a proclamação que farão os samaritanos, quando
veem Jesus como o salvador do mundo (cf. Jo 4,42).
João Batista está fora do território da Judéia522
, possivelmente na Samaria. Assim,
seu ministério testemunhal523
, presente no Quarto Evangelho, ultrapassa a Judéia e
chega à Samaria, indicando que também a este povo estava destinado o Messias, aquele,
que ele deveria testemunhar524
. De modo, que a alusão a uma terra fora da Judéia traz, à
memória, a primeira saudação que João dirigiu a Jesus: eis cordeiro de Deus que tira o
pecado do mundo (Jo 1,29), não encerrando o ministério redentor do Cordeiro de Deus
somente em Israel, mas alargando-o a todo o mundo.
João Batista parece está mais perto da Samaria (cf. Jo 3,23), segundo Léon-Dufour
“uns quatro ou cinco quilômetros a leste de Siquém”525
. Esta localização traz uma das
518
KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João: amor e fidelidade. São Paulo: Loyola, 2005, p. 120;
CASTRO SÁNCHEZ, Secundino. Evangelio de Juan: compreensión exegético-existencial. 3 ed.
Madrid: Comilas, 2001, p. 97-98; MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de João. São Paulo:
Paulinas, 1989, p. 200-201. 519
Cf. MOLONEY, Francis J. The Gospel of John. V. IV. Minnesota: Michel Glazier Book, 1998, p.
105. 520
Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de João, p. 201. 521
Cf. CASTRO SÁNCHEZ, Secundino. Evangelio de Juan: comprensión exegético-existencial. 3 ed.
Madrid: Comilas, 2001, p. 100. 522
Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de João, p. 201. 523
ZEVINI, Giorgio. Evangelho segundo João. São Paulo: Editora Salesiana Dom Bosco, 1987, p. 69:
“o Batista, que Deus enviou para o meio dos homens para batizar com água (v. 33) e tem sua missão de
reconhecer o Messias.” 524
SILVA, Marciano Monteiro da. O testemunho de João Batista no Quarto Evangelho. EB. Petrópolis,
n. 108, 2010, p. 59: “No Quarto Evangelho a figura de João, mais que um batizador, é a testemunha que
o próprio Deus envia para ser a voz que anuncia a chegada daquele que batizará com o Espírito Santo.
Ele vem não para manifestar a si mesmo, mas para que, através dele, o Cristo-Esposo se revele a Israel
numa abertura universal.” 525
LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. V. I, p. 247.
110
propriedades do Quarto Evangelho: fatos ocorridos na Samaria. Higino da Silva lista
alguns fatos526
e algumas alusões ao mundo samaritano, culminando com a estadia de
Jesus em Efraim (cf. Jo 11,54), associando-o ao Ben Efraim (Filho de José). Toda a
relação messiânica entre João Batista e Jesus tem seu início na saudação do cordeiro527
,
ainda que com influência apócrifa528
, aliás, desde a negação messiânica do Batista se
abre a sequência da revelação de Jesus, relacionando, na semana inaugural vários títulos
messiânicos com Jesus,
No primeiro dia (1,19-28), João Batista explica que ele não é o
messias, nem Elias ( o precursor do Dia de Javé, segundo Ml 3,23-24;
Eclo 48,9-10), nem o „Profeta‟ (título messiânico). No segundo dia
(1,29-34), o Batista apresenta Jesus aos discípulos como o „Cordeiro
de Deus‟ (1,29) e como „Filho de Deus‟ (1,34), títulos com valor
messiânico, que vêm completar a negação do Batista, quanto à sua
própria messianidade.529
O tema da messianidade no Evangelho segundo João é bastante evidente, o que se
pode ver ao considerar que,
João é único em todo o NT a traduzir para grego a forma
hebraica/aramaica meshiah (1,41: „encontramos o Messias! – que quer
dizer Cristo‟; 4,25: eu sei que o Messias, que é chamado Cristo, está
para vir”). O designativo Christos aparece 17 vezes em João, o
composto “Jesus Cristo” duas vezes (1,17; 17,3).530
A relação entre Cordeiro de Deus e Messias é evidente no texto do Evangelho
segundo João, sem deixar de considerar a fonte apocalíptica judaica e profética em Is
53; portanto, como atesta Konings, Cordeiro de Deus é um título messiânico531
. Ele
dialoga com as várias tradições presentes no Evangelho segundo João. Por sua vez,
526
SILVA, Antonio Carlos Higino da. O Messias samaritano no Evangelho de João. Disponível em:
http://lattes.cnpq.br/7688414808630436. Acessado em: 29 outubro 12, 10:45:20, p. 08: “Os fatos
ocorridos na Samaria que são relatados no evangelho são únicos na narrativa dos evangelhos canônicos,
como:
• João Batista em Enom - O evangelho apresenta o Batista é colocado na região de Siquém (Enon e
Salim), no coração da Samaria dando independência a esta tradição se comparada aos sinópticos que o
coloca a margem do Jordão.
• Vocação de Filipe e Natanael – Jesus é anunciado como o Profeta semelhante a Moisés, anunciado em
Dt 18,18. E lembramos que Filipe e Natanael são encontrados entre os primeiros convocados apenas no
evangelho de João. Destacamos que as expectativas messiânicas dos samaritanos estão centradas neste
Profeta.
• A tradição samaritana em 1,43ss que apresenta Jesus como rei de Israel, herdeiro do patriarca José.
Diferente da linha de sucessão patriarcal davídica apresentada nos sinópticos.
• Jesus e o diálogo com a Samaritana: a fonte de Jacó não é longe de Enon onde estava o Batista. Na
verdade, estão próximos também pela teologia que coloca o Batista na Samaria para que os samaritanos
estejam prontos ao anúncio de Jesus.” 527
Cf. KONINGS, Johan. O tema do messias no Quarto Evangelho. EB. Petrópolis, n. 52, 1997, p. 90. 528 Cf. DODD, Charles. A interpretação do Quarto Evangelho, p. 307. 529
KONINGS, Johan. O tema do messias no Quarto Evangelho. EB, p. 90. 530
NEVES, Joaquim Carreira das. Escritos de São João, p. 84. 531
Cf. KONINGS, Johan. O tema do messias no Quarto Evangelho. EB, p. 90.
111
Neves considera que a proclamação de Jesus como Messias é o grande tema na teologia
do Quarto Evangelho532
, que tem seu esquema discursivo inaugural na negação de João
Batista (cf. Jo 1,19-21) versus afirmação sobre Jesus (cf. Jo 1,29-34). De fato, como diz
Moloney, João Batista introduz o tema messiânico533
. Esta introdução é feita
inicialmente com a saudação Batista: eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do
mundo (Jo 1,29).
A comunidade joanina soube acolher a tradição do Batista e a contribuição
samaritana e inseri-las em seu escopo escriturístico, o que, com certeza, tinha um
propósito: relacionar o Cordeiro de Deus à missão de Jesus; de modo que a teologia do
Quarto Evangelho parece pretender expor o que decorre da imagem de Jesus como
Cordeiro de Deus. Frente a isto, já se pode dizer que a primeira implicação seja “tirar o
pecado do mundo” (Jo 1,29), o que já está claro na saudação Batista. Este “tirar o
pecado”, indica reconciliar, de sorte, que o ministério do Cordeiro de Deus traria uma
humanidade reconciliada com o próprio Deus, tal é o que nos ocupará no próximo
tópico.
3.3 Cordeiro: a humanidade reconciliada com Deus
Reconhecendo a saudação Batista como uma saudação com fundo sacerdotal534
, está
se expondo que a vida e morte de Jesus podem ser entendidas como uma entrega, e de
fato, o Quarto Evangelho organiza seu projeto rumo à cruz535
. Deste modo, já está
vislumbrada a possibilidade da morte violenta com a qual Jesus haveria de morrer.
Entretanto, não parece ser esta ao longo do texto, a consciência de Jesus536
. Jesus e João
Batista conheciam o fim de alguns dos profetas; por conseguinte, já poderiam suspeitar
de seu próprio fim. Levantar a hipótese de uma morte violenta por parte das autoridades
não seria algo impossível, nem a João Batista e tão pouco a Jesus.
A respeito da interpretação da vida e execução do Batista, alguns dos seus discípulos
deram uma interpretação gloriosa, pelo que continuaram a batizar seguindo sua
532
Cf. NEVES, Joaquim Carreira das. Escritos de São João, p. 84. 533
Cf. MOLONEY, Francis J. The Gospel of John. V. IV, p. 52. 534
Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. V. I, p. 126. 535
COLAVECCHIO, Ronaldo L. Jesus de Nazareu: a experiência de Deus no Evangelho de São João.
São Paulo: Loyola, 2007, p. 11: “desde cedo, no Evangelho de João, o leitor sabe que Jesus de Nazaré é
um homem condenado à morte.” 536
THEISSEN, Gerd. A religião dos primeiros cristãos: uma teoria do cristianismo primitivo. São
Paulo: Paulinas, 2009, p. 198: “é improvável que, historicamente, Jesus tivesse conscientemente querido
sua morte como morte sacrificial.”
112
prática537
, mas esta tradição não se expandiu largamente, seja no tempo ou no espaço.
Por sua vez, a morte de Jesus encontrou entre seus discípulos uma interpretação que se
sustentou e levou-os a reinterpretarem a Escritura e a Lei à luz de Jesus538
. Os escritos
compilados no Novo Testamento são uma prova cabal destas interpretações.
Inicialmente, a morte de Jesus foi um desastre, “os discípulos experimentaram sua
execução como uma catástrofe”539
; mas eles tinham, na vida pública de Jesus, alguns
elementos que ajudaram a uma reinterpretação, pois “na vida do Jesus histórico já
existia um suporte para a posterior interpretação sacrificial de sua morte”540
. Não foi
difícil aos discípulos chegarem a interpretar a morte de Jesus do ponto de vista da
teologia sacrificial.
A teologia sacrificial de reconciliação em Israel traz no seu seio a teologia da
substituição, isto é, por meio de um sacrifício o devedor paga a sua dívida; aquele que
cometeu um pecado contra um preceito, ou um ato de impureza, expõe uma vítima
sacrificial em seu lugar. O sangue desta vítima recoloca o devedor conciliado com o
credor, no caso da fé de Israel: Deus e o pecador. Dentro deste raciocínio sacro de
Israel, os discípulos passaram a compreender a morte de Jesus, tendo-a como um ato de
reconciliação, que perdoava as dívidas do mundo (cf. Jo 1,29).
A teologia da dívida parece bastante simples, porém, requer uma substituição radical
para os judeu-cristãos, pois até então, os judeu-cristãos conheciam os sacrifícios do
Templo, que eram realizados com animais, e por outro lado, tanto os judeu-cristãos
como os samaritanos, convertidos a Jesus, conheciam a rejeição do Deus da Aliança ao
sacrifício humano (cf. Gn 22,1-18). Os seguidores de Jesus levaram a termo o que havia
sido predito em Is 53: um servo será sacrificado pelo povo, de modo que agora os
cristãos passavam a cultuar um sacrifício humano541
. Neste sacrifício humano, a
537
LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. V. I, p. 125: “sua atividade [do
Batista] se estende do outono de 27 à primavera de 29, durante o segundo período de Qumran, em que
dominava um essenismo de característica zelote. Profundamente original, este período teve repercussão
notável, como aponta o mesmo Josefo. Um movimento batista brilhava em Éfeso, segundo uma menção
dos Atos dos Apóstolos [19,1-4], bem depois da morte de João; sua sobrevivência pode ser encontrada na
Síria até o ano 300.”
538 Cf. THEISSEN, Gerd. A religião dos primeiros cristãos, p. 268.
539 Idem ibidem, p. 198.
540 Idem ibidem, p. 198.
541 Idem ibidem, p. 16: “os primeiros cristãos desenvolveram, na verdade, um sistema de sinais sem
templo, sem sacrifício, sem sacerdote, e conservaram, então, de forma dissimulada em suas
interpretações, esses elementos tradicionais de sistemas religiosos, muitas vezes até mesmo numa forma
arcaica já então ultrapassada: eles cessaram, com efeito, de sacrificar animais, mas, em suas
interpretações, reativaram uma forma de sacrifício de há muito superada: o sacrifício de pessoas – como o
sacrifício expiatório de Jesus.”
113
comunidade experimentou a salvação542
e soube que “a entrega de Cristo, Filho de
Deus, na cruz tem um significado infinitamente superior ao culto sacrificial sangrento
do Templo de Jerusalém”543
, pois traz a paga da dívida, isto é, Deus não precisa mais de
sacrifícios, agora, o amor se expressa como a maior exigência da fé, pois, a morte de
Jesus, apesar de sangrenta, foi uma entrega por amor544
, e é exatamente o amor que
redime.
No Quarto Evangelho, apesar dos pontos que indicam a morte de Jesus como
sacrifício, predomina a visão gloriosa da morte de Jesus. A partir do capítulo doze (Jo
12) deste Evangelho se faz mais acentuada uma teologia da morte de Jesus, vendo-a
como glória, de onde decorre a salvação do homem. Esta morte está paralela à Páscoa
dos judeus, para a qual eles se preparavam (cf. Jo 12,1). De fato, Jesus sobe a Jerusalém
para ir a mais uma páscoa545
. Aqui intensifica o conflito com as autoridades judaicas
que o querem desacreditar e até mesmo prender546
, mas o que visualizam é o
crescimento do seguimento a Jesus (cf. Jo 12,20), inclusive com a procura de gregos por
ele, e não somente estes, mas também um número de judeus. Sobre os gregos,
Schnakenburg considera que sejam prosélitos, pessoas pagãs próximas ao judaísmo547
.
Esta busca por Jesus revela o alcance universal de sua salvação, pois, a sua morte não se
configura, primeiramente, em sacrifício particular, mas em uma exaltação, que dará
frutos abundantes à missão do próprio Jesus e à sua comunidade.
542
GODOY, Edvilson de. O sacrifício de Cristo: abordagem a partir de René Girard e Raymund
Schwager. São Paulo: Palabra &p prece, 2012, p. 144: “Os cristãos viveram a experiência da salvação
realizada por Cristo.” 543
Idem ibidem, p. 144. 544
ERNANDES FERNANDES, Cézar L. O sentido da cruz, p. 21: “compreender o significado da morte
de Jesus é entender a revelação que move o Evangelho: o triunfo do amor sobre a morte” 545
GODOY, Edvilson de. O sacrifício de Cristo, p. 58: “Jesus vai a Jerusalém para celebrar a páscoa,
como qualquer hebreu daquela época.” 546
SCHNACKENBURG, Rudolf. Il Vangelo di Giovanni: parte segunda. Brescia: Paideia, 1977, P.
600: “le autorità giudaiche procedono inesorabili contro Gesù (11,57) e cercano di soffocare con ogni
mezzo la fede in lui (cfr. 12,10s.). Ma già si delinea la vitoria della fede in Cristo: un grande numero di
Giudei non si lascia dissuadire dal seguire Gesù (12,12.19) e vengono dei Greci per vedere Gesù
(12,20s.): un quadro molto promettente della chiesa costituita di giudei e pagani. Il trionfo di Gesù è
fondato sulla sua morte: con essa suona l´ora della glorificazione del Figlio di Dio (12,23).” [tradução
nossa: as autoridades judaicas agem inexoráveis contra Jesus (11,57) e procuram sufocar, por quaisquer
meios a fé que é depositada nele (cfr. 12,10s.). Porém, já se delineia a vitória da fé em Cristo: um grande
número de Judeus não se deixa dissuadir do seguimento a Jesus (12,12.19) e alguns gregos vêm para ver
Jesus (12,20s.): um quadro muito promissor da igreja constituída de judeus e pagãos. O triunfo de Jesus é
fundado sobre a morte: com a mesma, soa a hora da glorificação do Filho de Deus (12,23).] 547
Idem ibidem, p. 634: “I „greci‟ non sono giudei di língua grega, ma greci di nascita(cfr. A 7,35), che
come proseliti hanno aderito al giudaismo. Il loro proposito di „adorare‟ in occasione della festa, vale dire
di venerare Dio, fa pensare che si tratti di cosiddetti‟timorati di Dio‟,che non potevano mangiare l´agnello
pascuale.” [tradução nossa: os „gregos‟ não são judeus de língua grega, mas gregos de nascimento (cfr. A
7,35), que como prosélitos aderiram ao judaísmo. O propósito deles de „adorar‟ por ocasião da festa e,
vale dizer, de venerar a Deus, faz pensar que se trate dos assim chamados „tementes a Deus‟ que não
podiam comer o cordeiro pascal.]
114
A morte de Jesus é salvação universal; é para todo o mundo. Tal como havia se
expressado João Batista em sua saudação (cf. Jo 1,29). Esta salvação consiste em ter a
vida de volta, a vida eterna a partir da cruz, visto que, “a salvação do homem é realizada
de forma decisiva, não só pela sua encarnação ou na continuidade de sua vida mortal,
mas na sua morte”548
.
Nas comunidades primitivas logo se considerou que o Pai exaltou Jesus após a
ressurreição (cf. Fl 2,9; At 2,33). Por sua vez, o Quarto Evangelho passa a considerar tal
exaltação na cruz; o que se havia anunciado no encontro com Nicodemos (cf. Jo 3,14)
passa em Jo 12 a ficar mais claro a qual exaltação Jesus se referia. Deste modo, o
Quarto Evangelho antecipa a exaltação, com o que anuncia sua obra: atrair todos a si
(cf. Jo 12,32). Com isto, o Evangelho joanino se coloca dentro da tradição primitiva da
exaltação, convergindo para o que transmitem outros escritos neotestamentários549
.
Todavia, guardando primeiro o conceito de exaltação-glorificação para a morte de
Jesus, ao invés de propriamente condicioná-los à ressurreição. De fato, a hora da morte
no Evangelho segundo João, é a hora da glória e da exaltação550
, tanto que a narração da
Paixão é moldada por uma pompa de realeza551
. Da morte de Jesus emerge a reunião
dos filhos de Deus552
, agora compostos não mais somente por judeus, mas também por
pagãos e inclusive por samaritanos, que formam a família de Deus553
.
548
ERNANDES FERNANDES, Cézar L. O sentido da cruz, p. 34. 549
SCHNACKENBURG, Rudolf. Il Vangelo di Giovanni, parte segunda, p. 659: “la morte di Gesù sulla
Croce per Giovanni ha acquisitato un determinato aspetto, un valore teologico suo proprio. Sulla Croce
egli conferisce un significato traslato teologico che concorda con quello elaborato molto presto nella
chiesa primitiva, secondo cui Gesù con la sua risurrezione o dopo di essa è stato „esaltato‟ presso Dio.”
[tradução nossa: a morte de Jesus na Cruz, adquiriu, para João, um determinado aspecto, um valor
teológico próprio. Na Cruz, ele confere um significado teológico metafórico que concorda com aquele
elaborado bem cedo na igreja primitiva, segundo o qual, Jesus com a sua ressureição ou depois desta, foi
„exaltado‟ junto de Deus.] 550
Idem ibidem, p. 600: “Il seme di frumento che morre da molto frutto (12,24), la Croce diventa
esaltazione, per la quale il Figlio dell´uomo trae tutti a sé (12,32s). In tal modo l´ora più oscura di Gesù se
muta in rivelazione della sua gloria (12,27), la potenza del principe di questo mondo è infranta (12,31).
Questo Cristo rimane in eterno, per paradossale che ciò posa sembrare di fronte alla sua morte (cfr.
12,34).” [tradução nossa: o grão de trigo que morre dá muito fruto (12,24), a Cruz se torna exaltação pela
qual o Filho do homem atrai todos a si (12,32s). Desta forma, a hora mais obscura de Jesus se transforma
em revelação de sua glória (12,27), o poder do príncipe deste mundo é quebrado (12,31). Este Cristo
permanece para sempre, por mais que isto possa parecer um paradoxo diante de sua morte (cfr.12,34).] 551
Cf. NEVES, Joaquim Carreira das. Escritos de São João, p. 263. 552
Idem ibidem, p. 274: “a finalidade da acção do Êxodo é „não deixar que o exterminador entre nas casas
[dos judeus] para as ferir‟ (12,23c) e a da Cruz, segundo João, é levar à „consumação‟ a obra do Pai no
seu Filho para que „os seus‟ (ta idia) sejam um só na nova família nascida na Cruz.” 553
SCHNACKENBURG, Rudolf. Il Vangelo di Giovanni, parte segunda, p. 652: “ l´aspetto positivo più
importante dell´ora di Gesù consiste nella salvezza dei credenti, e precisamente in una dimensione
universale: di tutti gli uomini che vengono a lui e da lui si lasciano guidare.” [tradução nossa: o aspecto
positivo mais importante da hora de Jesus consiste na salvação dos crentes, e precisamente numa
dimensão universal: de todos os homens que vêm a ele e se deixam guiar por ele.]
115
O conceito de morte sacrificial não ficou fora do Quarto Evangelho, ainda que
predominando uma visão gloriosa da hora de Jesus. O Evangelho segundo João possuía
a consciência de que o pecado gerava uma separação entre Deus e o homem. Separação
que no mundo de Israel era quebrada pelos ritos de sacrifício, pelos quais o povo se
reconciliava com Deus, de sorte que, a vida do animal, doada em sacrifício, reconstituía
a relação quebrada. A relação também estava rompida entre os homens, mas a morte de
Jesus cumpria o desejo de reunificação do povo, sonho que se alimentava em alguns
grupos judaicos desde o tempo de Josias. Agora, a comunidade joanina, diante da
pluralidade de seu grupo, via os frutos da glorificação de Jesus e compreendia o que
queria dizer atrairei todos a mim (cf. Jo 12,32). Outra esperança messiânica que se
cumpria é o perdão dos pecados554
, foi isto que o Batista pronunciou, e uma vez o
Mestre exaltado, cumpria-se este anúncio; agora, os pecados não são perdoados pelos
sacrifícios do Templo, mas pela cruz de Jesus. Diante disto, o Quarto Evangelho
assimila a morte de Jesus também como sacrifício, como sacrifício de reconciliação.
A separação entre Deus e o homem vigorava555
na consciência dos judeus, haja vista
a numerosa sucessão de sacrifícios no Templo e a celebração de Kippur556
. Por sua vez,
a comunidade cristã não dispensou tal compreensão, pois intuía, desde os ensinamentos
de Jesus, que o Pai mesmo iria buscar se reconciliar com o povo, o próprio Deus
tomaria a iniciativa. O Quarto Evangelho, com forte acento sacerdotal, ao expor Jesus
como o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (cf. Jo 1,29), não faz outra coisa
senão dizer: Deus tomou a iniciativa. Assim, a entrega de Jesus está no programa do
Evangelho desde o início. Esta entrega se faz necessária557
, segundo a teologia do
Quarto Evangelho, tanto que “ninguém tira minha vida eu a dou” ( cf. Jo 10,18); é o
que afirma o Jesus joanino, fazendo de sua morte uma entrega de amor, amor que
reconcilia558
.
554
DODD, Charles. A interpretação do Quarto Evangelho, p. 314: “dar cabo do pecado é uma função
do Messias judeu, sem ligação alguma com o pensamento de uma morte redentora. Por exemplo:
Testamento de Levi, 18,9.” 555
THEISSEN, Gerd. A religião dos primeiros cristãos, p. 202: “nas interpretações da morte de Jesus
como sacramentum não existe nenhuma analogia entre o agir de Deus, de Cristo e do ser humano; ao
contrário, acentua-se exatamente a distância entre Deus e o ser humano. A ordem da „justiça‟, que liga
Deus e homem, é profundamente perturbada pela injustiça humana: sua restauração exigia a „expiação‟. O
relacionamento pessoal entre Deus e homem tornou-se „inimizade‟, de modo que Deus e homem precisam
ser reconciliados.” 556
Cf. AVRIL, Anne-Catherine. As festas judaicas, p. 123. 557 SCHNACKENBURG, Rudolf. Il Vangelo di Giovanni, parte segunda, p. 636: “ la morte de Gesù è
necessária per portare abbondanti frutti missionari.” [tradução nossa: a morte de Jesus é necessária para
levar abundantes frutos missionários.] 558
Cf. ERNANDES FERNANDES, Cézar L. O sentido da cruz, p. 37.
116
O sacrifício do cordeiro trazia benefícios para quem o ofertava, por sua vez, o
sacrifício do Cordeiro de Deus traz benefícios para a humanidade. Deus oferta e nós
somos beneficiados, somos aí reconciliados com Deus, ou seja, Jesus se entrega para
romper o muro que se tinha imposto entre o homem e Deus, e o rompe com a sua
entrega por amor, a ponto de poder nos reconciliar com o Pai559
.
O ato de entrega de Jesus é também um ato de obediência; para o Evangelho segundo
João, a morte de Jesus identificada com a entrega do Servo do Senhor, é um ato de
entrega consciente, por isso é possível supor que Jesus mediante a proximidade da
perseguição e o rumo que ia tomando sua vida, pode ter se identificado pessoalmente
com o Servo do Senhor560
. No que diz respeito à comunidade joanina, ela facilmente
interpretou a saudação do Batista como um sinal de obediência, pois o Servo, em
analogia ao cordeiro, torna-se sinal de obediência; tal sinal é encarnado na pessoa de
Jesus. Ora, se há necessidade de reconciliação é porque uma das partes desobedeceu ao
estabelecido, por isso, pode-se considerar que a obediência era elemento chave na
Aliança com Deus561
.
A Nova Aliança, agora destinada a toda a humanidade, é celebrada por Deus mesmo,
[a] fidelidade consiste no fato de Ele agir não apenas como Deus
diante dos homens, mas também como homem diante de Deus,
fundando assim a Aliança de modo irrevogavelmente estável. Por isso
a figura do Servo de Deus, que carrega o pecado de muitos (Is 53,12),
deve ser ligada com a promessa da Nova Aliança fundada de maneira
indestrutível.562
A figura do Servo, ou sua analogia ao cordeiro, aparece como elemento de
obediência563
, até mesmo frente à morte. Ao que parece, foi isto que a comunidade
joanina viu plenamente em Jesus, uma obediência capaz de corrigir a desobediência
humana. Diz Ratzinger que, na última ceia, Cristo quis atrair a “humanidade na sua
obediência vicária”564
, que leva à cruz, que é glória, mas também é sacrifício de
reconciliação565
.
559
THEISSEN, Gerd. A religião dos primeiros cristãos, p. 204: “ morrer pelos pecados ou por nós, pode
também aparecer como doação de amor. O amor visa à reconciliação entre parceiros inimizados.” 560
GODOY, Edvilson de. O sacrifício de Cristo, p. 58: “Jesus interpretou sua missão, paixão e morte à
luz da figura do servo do Senhor.” 561
Cf. RATZINGER, Joseph- BENTO XVI. Jesus de Nazaré, p. 126. 562
Idem ibidem, p. 126. 563
FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos. V. II, p. 294: “o cordeiro é a imagem de uma
obediência e de um amor que vão até a cruz; e o cordeiro é a imagem do servo de Deus que toma sobre si
(leva) o pecado do povo.” 564 RATZINGER, Joseph- BENTO XVI. Jesus de Nazaré, p. 126. 565
Cf. THEISSEN, Gerd. A religião dos primeiros cristãos, p. 204.
117
A comunidade do Discípulo Amado566
, dada sua rica presença de diversas tradições,
viveu uma síntese sobre o evento da crucificação. Para ela, a cruz é o ponto mais alto da
revelação de Jesus, o que faz da ressurreição um desdobramento da realeza e da
revelação estabelecida na cruz567
. É lá onde sua exaltação acontece; onde sua glória é
manifestada568
. Assim, cumpre-se o que o Quarto Evangelho havia anunciado em Jo
1,29: Jesus é obediente até a morte, como o Servo, semelhante ao cordeiro vivendo a
entrega.
A morte do Servo de Deus, que é levado ao matadouro como cordeiro (cf. Is 53), traz
o perdão dos pecados. Segundo o Quarto Evangelho, a cruz de Jesus atrai todos a si, e
manifesta a glória do Pai no Filho. Jesus reconcilia o mundo com Deus, apaga a dívida
dos homens. Ora, o Servo carrega o pecado (cf. Is 53), Jesus tira o pecado (cf. Jo 1,29);
o ministério do Cordeiro de Deus é exatamente este: tirar o pecado, reconciliar.
Os escritos neotestamentários são herdeiros de uma antiga consciência de
rompimento com Deus, que gerava a necessidade de reconciliação, pelo que surgiram
ritos para tal fim. Deste modo, também o Evangelho segundo João, apesar de
predominar a visão de gloria e exaltação, o evento da morte de Jesus não foge a atender
à lógica de rompimento com Deus e necessidade de reconciliação569
.
A respeito da necessidade de reconciliação, o Antigo Testamento utiliza ritos e
termos referentes. Um deles é Kapar, que diretamente quer dizer: cobrir, ocultar. Este
termo foi utilizado no culto “em sentido técnico, para indicar um ato de expiação,
realizado através da aspersão do sangue da vítima”570
. Com este rito, o ofertante do
sacrifício retira o que impedia a reconciliação. O que acontece é a oferta de um inocente
em lugar de um culpado. Na teologia do substituto, o animal torna-se o substituto do
566
Cf. VIDAL, Senén. Los escritos originales de la comunidad del Discípulo “amigo” de Jesus, p. 40. 567
Cf. NEVES, Joaquim Carreira das. Escritos de São João, p. 278. 568
SCHNACKENBURG, Rudolf. Il Vangelo di Giovanni, parte segunda, p. 632: “tutta la sezione 12,20-
36 opera dell´evangelista, che inoltre utilizza a modo suo soltanto alcuni „logiasinottici‟ (vv. 25s) e la
scena sul Monte degli Olivi (v. 27). Com grande abilità costrittiva egli ha trovato una conclusione adatta
all´atività pubblica di Gesù: uno sguardo alla morte de Gesù sulla Croce (vv. 24.33), che però egli
considera come l´ora della „esaltazione‟ del Figlio dell´uomo (vv. 23.32), cioè della glorificazione e della
vittoria di Gesù (vv. 31s)” [tradução nossa: toda a sessão 12,20-36, obra do evangelista, que além disso,
utiliza, a seu modo, apenas alguns „logiasinottici‟ (vv.25s) e a cena do Monte das Oliveiras (v.27). Com
grande habilidade coercitiva ele encontrou uma conclusão adaptada à atividade pública de Jesus: um olhar
direcionado à morte de Jesus na cruz (vv.24.33), que, porém, ele considera como obra da „exaltação‟ do
Filho do homem (vv.23.32), isto é, da glorificação e da vitória de Jesus (vv.31s).] 569
Cf. THEISSEN, Gerd. A religião dos primeiros cristãos, p. 202. 570 MACKENZIE, J. L. Expiação. In: DB, 3 ed. São Paulo: Paulus, 1983, p. 329.
118
pecador, para que aconteça a reconciliação. A palavra Kapar, em sua derivação koper,
traduz bem a compreensão veterotestamentária de reconciliação571
.
Mackenzie considera que koper não indicaria propriamente expiação no sentido
genérico, mas estaria mais especificamente ligado a resgate, redenção572
, mas, tal
compreensão não rompe o que se busca com a expiação: reconciliar; assim, tornam-se
linguagens para comunicar o meio de chegar ao mesmo fim: reconciliação.
No Novo Testamento, a compreensão de reconciliação herda o que decorre de
expiação e resgate do Antigo Testamento. Há quem chegue a considerar, que Kapar,
cobrir e ocultar estariam posto para indicar, providencialmente, de forma prefigurada,
que os ritos do Antigo Testamento somente encobriam o pecado, pois quem o apagaria
de fato seria Jesus Cristo. Contudo, segundo Harris, “não existe quase nada que
favoreça este ponto de vista”573
.
Na passagem para o grego os termos Kapar e koper assumem traduções e derivados
que são utilizados pelo Novo Testamento: hilaskesthai, hilasmos, hilasterion que
indicam: reconciliar, tornar favorável, reconciliação, o meio de reconciliação574
. Além
do uso na literatura paulina (cf. Rm 3,25), o uso de hilasmos se dá na Primeira Carta de
João, de forma recorrente, em 1Jo 2,2 e 4,10, onde “o próprio Cristo é hilasmos,
reconciliação para os nossos pecados”575
. Com isso se ratifica que a comunidade joanina
também via a entrega de Jesus como um ato de reconciliação; ato que ele faz enquanto
representante da humanidade. Tal interpretação vigorava nas primeiras comunidades e
se transmitiu pelos escritos neotestamentários576
, pelo que o Quarto Evangelho, logo
considera que a vítima inocente, dada em razão de nossa culpa é o cordeiro; o Cordeiro
de Deus como vítima de reconciliação.
A reconciliação realizada por Jesus, o Cordeiro de Deus, é iniciativa do próprio
Deus, como recorda León-Dufour577
. Antes, o homem ofertava oferendas para chegar a
Deus, agora, a ação se inverte e Deus doa uma oferenda para chegar ao homem. A
571
HARRIS, R. L. koper. In: DITAT. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 744: “a partir do sentido de koper,
„resgate‟, pode-se entender melhor o significado de Kapar. Significa „expiar mediante o oferecimento de
um substituto‟. A grande maioria dos usos diz respeito ao ritual realizado pelos sacerdotes de aspergir o
sangue sacrificial, assim, „fazendo expiação‟ pelo adorador. Existem 49 casos de tal uso apenas em
Levítico, e nesse livro não há confirmação do uso da palavra com qualquer outro sentido.” 572
Cf. MACKENZIE, J. L. Expiação. In: DB, 3 ed. São Paulo: Paulus, 1983, p. 329. 573
HARRIS, R. L. koper. In: DITAT, p. 743. 574
Cf. MACKENZIE, J. L. Expiação. In: DB, 3 ed, p. 329. 575
Idem ibidem, p. 329. 576
THEISSEN, Gerd. A religião dos primeiros cristãos, p. 180: “o perdão dos pecados se dava,
segundo um antigo consenso cristão primitivo, com a morte expiatória de Jesus (1Cor 15,3-5).” 577
Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. V. I, p. 135.
119
oferenda de Deus é Jesus. Mas esta ação, iniciada por Deus não é uma ação que viola a
liberdade de Jesus, pelo contrário, o Quarto Evangelho, além da imagem do cordeiro
atribuída a Jesus, vai enfatizar que a entrega de Jesus é um ato de livre amor para
manifestar a glória do Pai, que consiste em um serviço à própria humanidade,
é justamente o fato de que Jesus manifestará a glória do Homem que
possibilitará sua missão. Não proporá doutrina nem ideologia, e sim
mostrará o desígnio criador de Deus, que significa a plenitude
humana. Quer devolver ao homem seu valor fundamental, acima de
toda a ideologia.578
De fato, a morte de Jesus, antes de ser uma condenação é uma entrega que estava
programada desde o início do Quarto Evangelho, não primeiramente como um
sacrifício, mas como um serviço do Servo de Deus. Em Jo 12, volta a referência ao
Servo de Deus, visto que o Servo manifestará a glória de Deus (Disse-me: „tu és o meu
servo, Israel, em ti manifestarei minha glória‟ Is 49,5), assim, o Jesus joanino não
chega a fazer anúncios da Paixão, como nos sinóticos (cf. Mt 16,21-23; Mc 8,31-32; Lc
9,22-23), mas, com a manifestação da glória, entra em um itinerário de entrega
semelhante a de um cordeiro (cf. Is 53,7) que, objetivamente, traduziu-se na cruz. A
vida de Jesus revela a glória do Pai em situação contraditória: dor e sofrimento versus
glória e salvação579
.
A manifestação da glória é um tema recorrente no Quarto Evangelho (cf. Jo 1,14),
mas com maior incidência nos textos diretamente ligados à Paixão, o que faz o leitor
joanino colocar a obra de Jesus dentro do conjunto teológico que chega à cruz,
o tema da glorificação se encontra no início (13,31-32) e no final
(17,1.4-5.10.22.24) dos diálogos de despedida. Mas, à margem desta
relação literária, existe uma relação mais profunda: o tema da
exaltação e glorificação, com o seu enlace inequívoco com a cruz e
com a morte de Jesus (ser erguido na cruz, cf. 3,13-14; 8,28; 12,32-
33), apresenta a vertente palpável e visível do mistério da morte. Pois
bem, esta morte, vista em profundidade- quer dizer, vista
teologicamente-, é a passagem ao Pai, a caminhada de Jesus, a volta
para onde se encontrava antes da criação do mundo (17,24; f. 17,5).580
A Paixão de Jesus no Evangelho segundo João é profundamente marcada pela lógica:
glorificação-exaltação, que perpassa a entrega do servo. Há inclusive entre os teólogos,
quem defenda que Jesus, em um dado momento de sua vida, viu-se como o Servo
Sofredor. Um destes teólogos é Godoy, ao elucidar que Jesus, viu-se como o Servo de
578 MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de João, p. 545. 579
Cf. LÓPEZ ROSAS, Ricardo; RICHARD GUSMÁN, Pablo. Evangelio y Apocalipsis de San Juan,
p. 217. 580
TUÑÍ, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Escritos joaninos e cartas apostólicas, p. 61.
120
Deus581
, fazendo de sua eventual morte, um evento vicário, pois “o sofrimento do servo
é vicário, deve aceitar a morte para realizar o plano de Deus”582
. Diante do avanço das
hostilidades das autoridades judaicas, Jesus percebeu que poderia sofrer uma morte
violenta583
, o que pode tê-lo levado a uma interpretação do Servo Sofredor sobre si.
Para o Evangelho segundo João, não basta ver a morte de Jesus como um evento
violento, o que o faz expressá-la como uma entronização584
, pois a morte torna-se
exaltação à semelhança da exaltação da serpente no deserto (cf. Jo 3,14), onde se poderá
contemplar a fé e a salvação585
.
A exaltação a que se refere o Quarto Evangelho também liga a Paixão joanina à
tradição do Servo do Senhor, pois uma das promessas dirigidas ao servo é a promessa
de exaltação (eis que meu Servo será bem sucedido, subirá, será exaltado e elevado bem
alto. Is 52,13), de modo que ela não traz somente a memória da serpente no deserto,
mas se insere no programa joanino que ricamente interpreta o ministério de Jesus à luz
do Servo do Senhor586
.
Considerando que glorificação e exaltação sejam duas atribuições que estão na
relação entre Deus e o seu servo, pode-se claramente ratificar a imagem cordeiro-servo
no Quarto Evangelho. Frente a isto, Diez Merino considera que a imagem do servo e a
imagem do Cordeiro de Deus se referem à missão universal de tirar o pecado do
mundo587
, de modo que,
el bautismo de Jesús inicia la actuación de la salvación, y a su vez,
prefigura el misterio Pascual en sus dos fases: humillación y
glorificación, y ya contiene en gérmen toda la obra salvífica. Para
Juan evangelista, cuando el Precursor presenta a Jesús como „Cordero
de Dios‟ que sale de las águas del Jordán, ya contempla la salvación
de la humanidad mistéricamente anticipada.588
581
Cf. GODOY, Edvilson de. O sacrifício de Cristo, p. 58. 582
Idem ibidem, p. 58. 583
Cf. Idem ibidem, p. 96. 584
Cf. NEVES, Joaquim Carreira das. Escritos de São João, p. 262. 585
AUWERS, Jean-Marie. La nuit de Nicodème. (Jean 3,2;19,39) ou l´ombre Du langage. RB. Paris, n.
04, 1990, p. 486: “Une nuit à l´époque de la Pâque- et peut-être la nuit même de la Pâque- Nicodème
vient trouver Jésus et lui dit, en des termes qui rappellent la mission de Moïse: „nous savons que tu es un
prophete accrédité par Dieu‟. A cette confession de foi, Jésus répond par un enseignement sur la Pâque
définitive qu´accomplira son exaltation et à laquelle le baptême associera les croyants.” [tradução nossa:
numa noite do período da Páscoa e, talvez, a noite mesma da Páscoa, Nicodemos vem encontrar-se com
Jesus e lhe diz em termos que fazem recordar a missão de Moisés: „Nós sabemos que tu és um profeta
acreditado por Deus‟. A esta confissão de fé, Jesus responde com um ensinamento sobre a Páscoa
definitiva que cumprirá sua exaltação e à qual o batismo associará os crentes.] 586
Cf. DIEZ MERINO, Luis. El cordero de Dios en el Nuevo Testamento y en el Targum. EstB, p. 594. 587
Cf. Idem ibidem, p. 594. 588
Idem ibidem, p. 595.
121
A entrega de Jesus obediente ao Pai, como observado até então, faz parte de um
projeto de reconciliação, que passa pelo perdão dos pecados, celebrado na entrega do
Cordeiro de Deus. A morte de Jesus se torna um evento glorioso e de exaltação589
, que
manifesta o amor de Deus. De fato, “o convite à comunhão [com Deus] se dá no alto da
cruz, onde Deus revela em Jesus Cristo o seu amor atraente pelos homens”590. Com isso,
a comunidade joanina quis expor a dimensão gloriosa da entrega de Jesus, mas sem
negar o sacrifício que reconcilia a humanidade com Deus, pois a morte de Jesus é um
ganho para a salvação da humanidade591
.
A comunidade do Discípulo Amado, claramente, viu a morte de Jesus como a
reconciliação, pois foi uma entrega de amor que chamou a humanidade à comunhão
com Deus. Entre o Pai e o Filho se manifestou abundantemente esta comunhão, assim,
por meio do Filho, exaltado e glorificado, a humanidade pode chegar ao Pai.
589 KONINGS, Johan. A memória de Jesus e a manifestação do Pai no Quarto Evangelho. PT, Belo
Horizonte, n. 20, 1988, p. 192: “Para Jo, a morte de Jesus não é um acidente de percurso consertado
posteriormente por Deus na ressurreição-exaltação. A própria morte é exaltação, levantamento ao alto: é
ato soberano, no qual Jesus manifesta a doxa (glória) que também transparece na ressurreição [...] é na
cruz que aparece o rosto do Deus-que-é-amor, o Deus que se experimenta na ágape, e que Jesus veio
mostrar ao mundo.” 590
ERNANDES FERNANDES, Cézar L. O sentido da cruz, p. 37. 591
Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. Il Vangelo di Giovanni, parte segunda, p. 652.
122
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa se pautou pelo método de pesquisa bibliográfica, com o fim de
coletar dados que dessem suporte à intuição que a fez surgir: a imagem do Cordeiro no
Evangelho segundo João, sua aceitação e relevância para a comunidade joanina.
Como exposto, a comunidade joanina se formou a partir de vários grupos que
existiam na Palestina no Primeiro Século d.C.; destes grupos alguns membros saíram
para ingressarem no Movimento de Jesus. Um exemplo apresentado ao longo da
pesquisa são alguns membros do grupo de João Batista, mas, também relevante é a
presença de membros vindos do meio samaritano e grego, além daqueles que viviam o
judaísmo oficial em Jerusalém, como gente vinda do farisaísmo. De tudo isto, a
pergunta elaborada é sobre a imagem do cordeiro para estes grupos, uma vez que se
apresenta de forma direta em Jo 1,29.36 e de forma implícita em Jo 19,36: como esta
imagem se impôs? Qual a sua fundamentação?- Tais perguntas primeiro se justificam
porque entre os evangelhos, somente João tem o texto da saudação do Batista e somente
ele lembra que de Jesus não se quebrou nenhum osso na Paixão (cf. Jo 19,36), assim, a
imagem do cordeiro se impõe como uma propriedade da cristologia joanina.
A afirmação do patrimônio comum entre judeus e samaritanos é algo problemático,
visto que o Israel do norte se miscigenou com outros povos, em virtude da ação Assíria
(cf. 2Rs 17,24ss) e, no entanto, este povo miscigenado continuou a guardar elementos
que eram próprios da tradição de Israel, como as festas e uma versão do Pentateuco.
Havendo uma predominância de aspectos religiosos que vinculavam a Samaria com a
Judéia. Por isso, no primeiro momento da pesquisa, o que se viu foi uma herança
comum, isto é, judeus e samaritanos partilhavam a imagem do Cordeiro Pascal como
símbolo de libertação. A cada Páscoa que celebravam, recordavam a libertação do Egito
e comemoravam a intervenção de Deus em favor do povo, aliás, o livro de Segundo
Crônicas registra que no tempo de Ezequias, pessoas das tribos no Norte, subiram para
festejar a Páscoa em Jerusalém (cf. 2Cr 30,10-15); fizeram a memória da libertação,
com os ázimos e a imolação do cordeiro.
Em Jesus o cordeiro é novamente dado, ou seja, Deus tinha tomado a iniciativa no
passado, o faz novamente, assim, em Jesus, o Cordeiro da nova Páscoa, Deus toma
novamente a iniciativa; aquele do qual não se quebrou nenhum osso, é o verdadeiro
Cordeiro e a verdadeira Páscoa; a herança comum era novamente recolocada, judeus e
samaritanos podiam celebrar a libertação definitiva. O povo que vivia um conflito
123
étnico-religioso, agora, no interior da comunidade joanina, em convivência, podia
celebrar a Páscoa universal.
No interior da comunidade do Quarto Evangelho, a convivência com os que outrora
eram discípulos do Batista parece ter sido um elemento importante para sustentar a
imagem do cordeiro. A menção feita a Jesus com este título está nos lábios de João
Batista, e se repete (cf. Jo 1,29.36), levando os discípulo de João a quererem seguir
Jesus (cf. Jo 1,37). Pode-se concluir que provavelmente a comunidade joanina teve no
seu interior membros vindos do meio Batista. A pesar de momentos de tensão (cf. Jo
3,24-26), o que sobressai no Quarto Evangelho é João Batista como a grande
testemunha da messianidade de Jesus. De fato, nas suas várias fases de redação é
possível que o Quarto Evangelho tenha abandonado alguns dados, explicado termos,
adicionando outra conclusão, no entanto, a relação de João Batista com Jesus se mantém
na feição de testemunho deste em relação a messianidade de Jesus. A imagem do
cordeiro é uma demonstração do testemunho de João Batista. Ela permanece aí, não
somente para dizer que Jesus é maior que João Batista, mas para afirmar que Jesus é o
Cordeiro de Deus.
As possibilidades de fontes para a saudação Batista, como abordado na pesquisa, vão
desde Is 53,7 a apocalíptica judaica; a possibilidade de Is 53,7 como fonte, alia a missão
de Jesus com a mística do Servo Sofredor, e coloca o tema do sacrifício em pauta, pois
o servo em Isaías é semelhante ao cordeiro levado para o matadouro (cf. Is 53,7), ele
carrega os pecados de outrem; aqui se pode entender porque Jesus tira o pecado do
mundo, pois assume a função expiatória do cordeiro, seja no culto cotidiano do Templo
de Jerusalém, seja no Grande Dia de Expiação. Este mesmo Jesus, saudado por João
Batista, é aquele do qual não se quebrou nenhum osso (cf. Jo 19,36), o que
imediatamente lembra a prescrição para a Páscoa (cf. Ex 12,46; Nm 9,12); colocando na
Paixão de Jesus o elemento pascal, o que se afirma por todo o entorno na narração
joanina, pois na narrativa da Paixão, o Quarto Evangelho escreve várias vezes algo que
esteja relacionado a proximidade da Páscoa (cf. Jo 12,1; 13,1; 18,28; 19,14), expondo
Jesus como a nova Páscoa, o Cordeiro de Deus, aquele que traz a libertação definitiva.
A associação imediata entre Jo 19,36 e o Cordeiro Pascal é questionada, sobretudo ao
se considerar que o Quarto Evangelho pode ter como fonte o Sl 34,21, que faz
referência ao justo que sofre, e que conta com a guarda do Senhor, no entanto, segundo
se demonstrou ao longo da pesquisa, apoiado em nomes como Moloney e Léon-Dufour,
o Quarto Evangelho utilizou de um cruzamento entre as duas fontes: Ex 12,46 e Sl
124
34,21, ao utilizar recursos lingüísticos para proveito de uma, sem destituir a outra. Mas
ganha relevo considerar que todo o contexto joanino aponta com maior clareza para o
Cordeiro Pascal.
A titulação de Cordeiro de Deus (Jo 1,29.36) a Jesus é colocada dentro de uma série
de títulos messiânicos, que eram utilizados na comunidade primitiva, o que leva a crer
que seja um título messiânico, pelo que a investigação levou à fonte apocalíptica, pois
nela há a imagem de um caprino-rei que é apresentado com características messiânicas,
o que sustentaria a afirmação de Cordeiro de Deus como um título para o Messias.
Outra possibilidade, levantada pela pesquisa, é o patrimônio do Servo Sofredor que se
havia formado a partir de Is 53,7. A imagem do Servo Sofredor agregaria também a
esperança de um Messias, que a exemplo do rei Josias morreria pelo povo. Portanto, o
título Cordeiro de Deus se mostra com pretensão messiânica e dialoga com várias
correntes judaicas, a apocalíptica e a tradição do Servo Sofredor, de modo que, a
saudação Batista, sustenta-se como um testemunho da messianidade de Jesus.
A aceitação da imagem do cordeiro atribuída a Jesus tinha a seu favor o culto diário
de Jerusalém. É sabido que entre os animais usados no Templo de Jerusalém, o cordeiro
estava no sacrifício matinal e vespertino, pelo que, associar uma pessoa a cordeiro
estaria ligando-a diretamente ao culto de Israel. Assim, a afirmação Batista, presente
apenas no Quarto Evangelho, expõe que essa comunidade conhece o culto de Israel e
por conhecê-lo, assimilou uma das imagens do culto para ver, em Jesus, a substituição
cultica, isto é, Jesus que substitui as talhas da purificação em Caná (cf. Jo 2,6-9), e que
se refere ao seu corpo como santuário (cf. Jo 2,19), é também o cordeiro do culto
definitivo, ou seja, na construção da identidade própria, a comunidade joanina pode ver
em Jesus, o Cordeiro de Deus, aquele em quem se encerra todo culto sacrificial.
O cordeiro era de fato relevante para o culto em Israel, não somente no culto diário,
mas na celebração da Páscoa. Por sua vez, o Jesus joanino, ao ser titulado como
cordeiro, traz um atributivo: que tira o pecado do mundo (Jo 1,29). O cordeiro do culto
diário cumpria várias funções desde ação de graças a expiação; já o Cordeiro Pascal
pela sua imolação lembrava a libertação realizada por Deus, quando da saída do Egito;
no entanto, existia ainda uma celebração em que um gado miúdo ganhava destaque, era
o Dia da Expiação. Nele, ritualmente, os caprinos tinham proveito de perdoar, por meio
de ritos conduzidos pelo sumo sacerdote. Mas agora, segundo a cristologia joanina,
Jesus, que reza a oração sacerdotal (cf. Jo 17), e chega ao sacrifício com uma túnica sem
costura (cf. Jo 19,23), substitui o sumo sacerdote. Mas o Quarto Evangelho é mais
125
complexo e envolve a Paixão e Morte de Jesus como uma entrega voluntária, com
dignidade real, de modo, que sua condenação e execução recebem ares monárquicos; de
fato, para o Evangelho Segundo João, a morte de Jesus é sua glorificação, é o seu
retorno ao Pai, ao que era antes (cf. Jo 17,5). Este Jesus, que é glorificado, sua morte
tem o poder de perdoar pecados, sua missão é salvar, é trazer a vida verdadeira, diante
disto, a afirmação Batista traz o Cordeiro de Deus como aquele que tira o pecado do
mundo, exatamente por ser a Páscoa definitiva, aquela que vence o chefe deste mundo
(cf. Jo 16,11): o mundo do pecado. É sua entrega voluntária por força do amor, que
reconcilia a humanidade com Deus, dado que o cordeiro também trazia esta imagem de
reconciliar, em especial no culto expiatório, onde substituía o culpado e era ofertado em
sacrifício, como vítima de reconciliação. Assim, a entrega de Jesus é reconciliação para
o mundo e ganha para a humanidade o acesso à glória de Deus, pois “a Lei foi dada por
Moisés, a graça e a verdade por Jesus” (Jo 1,17).
A imagem do cordeiro, portanto, é aceita na comunidade joanina, primeiro por ser
comum aos membros da comunidade, isto é, todos conheciam a tradição do Cordeiro
Pascal e a vida sacrificial prescrita pelo livro do Levítico e lá a presença do cordeiro.
Quanto a imagem do Servo Sofredor, em especial os membros oriundos da Judéia ou
próximos aos seus círculos, inclusive na diáspora, conheciam a analogia entre o servo e
o cordeiro no profeta Isaías, e também sabiam da florescente produção apocalíptica
judaica, onde se encontrava um messias-cordeiro. Com isto, ratifica-se não somente que
a imagem do cordeiro foi aceita pela comunidade joanina, mas, sobretudo, foi relevante
para expor o ministério de Jesus à humanidade: reconciliá-la com o Pai.
126
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