principe dos lobos - 2ª ed. - rogerio prego

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Digitalização exclusivamente para fins didáticos, e pessoas que de uma forma ou outra não podem ter acesso ao livro impresso. É proibido qual- quer tipo de comercialização desse arquivo. Prefira sempre comprar o livro original, e apoie o autor a escrever novos livros. http://clubedeautores.com.br/book/182815--PRINCIPE_DOS_LOBOS

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Page 1: PRINCIPE DOS LOBOS - 2ª ED. - ROGERIO PREGO

Digitalização exclusivamente para fins didáticos, e pessoas que de uma forma ou outra não podem ter acesso ao livro impresso. É proibido qual-quer tipo de comercialização desse arquivo. Prefira sempre comprar o livro original, e apoie o autor a escrever novos livros.

http://clubedeautores.com.br/book/182815--PRINCIPE_DOS_LOBOS

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2 | Rogério Prego

ROGÉRIO PREGO

PRÍNCIPE DOS LOBOS

Uma aventura dantesca

2ª edição revisada e ampliada

©2015 by Rogério Prego

Direitos reservados desta edição à Rogério Prego. Todos os direitos reservados. Proibida a tradução ou adaptação para todos os países e reprodução total ou parcial. (Sanções previstas na Lei 9.610 de 20/06/98).

CIP – Brasil – Catalogação na Fonte BIBLIOTECA PÚBLICA ESTADUAL PIO VARGAS

PRE Prego, Rogério pri Príncipe dos lobos: uma aventura dantesca/ Rogério Prego. 2.ed., rev. e ampliada. Goiânia: edição do autor, 2015 197 p.

1. Literatura brasileira ― Romance. I. Título

ISBN 978-14-959-4004-0 CDU: 821.134.3(81)-31

Impresso no Brasil Índice para catálogo sistemático: Printed in Brazil ― 2015 CDU: 821.134.3(81)-31

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Para Pollyanna Rodrigues, minha esposa amiga, sempre presente e incentivadora. Agradeço aos meus pais Orlando e Milena Nunes pelo apoio e confiança incondicional. A Daniela Nunes de Souza, minha irmã. E aos amigos: Cristiano Rodrigues de Souza, e Henrique Martins da Silva.

Nota de Edição

A primeira edição deste romance foi publicada em 14/02/2014 através da Amazon.com (publicação por demanda). Posteriormente em 14/03/2014 através do Clubedeautores.com (também publicação por demanda). O que justificou esta segunda edição, foi o fato de termos aplicado uma revisão mais apura-da, a inclusão de um prefácio, a separação de capítulos com títulos, e ampliação do texto.

SUMÁRIO

O PESADELO ANGUSTIANTE

A FLORESTA ESCURA

O PARAÍSO E O CÍRCULO DOS SANTOS

O POÇO HORRÍVEL

Por um lado, não se sabe nada, e por outro,

não se compreende aquilo que se sabe...

“O Espião” (Máximo Gorki)

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O PESADELO ANGUSTIANTE

Felicidade foi se embora E a saudade no meu peito ainda mora

E é por isso que eu gosto lá de fora Porque sei que a falsidade não vigora.

A minha casa fica lá de traz do mundo...

“Felicidade” (Caetano Veloso)

FRIO CLARÃO da lua veio pálido luzir, por contrastes acinzentados, um rapaz sentado aos modos e aspecto de um mendigo. Escorado numa porta de aço, vestindo uma blusa velha

de moletom preto com capuz, segura um pequeno cachimbo na boca e quando risca o isqueiro, lembra que sua mãe o usa para acender a chama do fogão. Sob o efeito da mordaz fumaça nos pulmões, sua memória faz resvalar a imagem da mãe no lacrimejar dos seus olhos: na cozinha ela canta com sua voz triste enquanto lava as vasilhas. Atrás dela, à mesa, está o pequeno Ro-binson, cujos olhos se alongam com pena da mãe. Edileusa só queria estar longe deste deserto árido em que se encontra; laçar um cavalo e ser pior que limpa trilhos correndo na frente do trem, como na letra da caetana música que canta. Mas, seu caminho é longo e penoso através do deserto. Às vezes Edileusa se pergunta por qual razão lava aquelas vasilhas, se mal tem o que comer! A cozinha parece fornalha de um trem, além de quente, a panela de pressão está no fogo — o feijão cozinha com mais água do que grãos —, a chaleira apita forte, ela percebe o filho.

“O trem não pode parar! Definitivamente não!” Coloca o restante do pó no coador; ajeita a garrafa; despeja a água quente... Enxuga a frigi-

deira; os ovos fritam; e o garoto observa. Leva à mesa o pão murcho que guarda numa vasilha de plástico. Os olhos de Robinson parecem duas jabuticabas incrustadas em bolinhas de gude branco, grandes e infantis, de visão alongada, tocam o rosto de sua mãe. E a menina dos olhos é como uma lua cheia no canto de um céu preto atento as palavras da mãe:

— Seu pai dizia que o café foi descoberto na Etiópia. Quando pastores se atinaram que seus rebanhos ficavam acordados a noite inteira, depois de comer folhas e frutos do cafezal... O Bra-sil teve até uma economia chamada café com leite...

Edileusa tenta se lembrar de mais coisas que seu falecido marido dizia, mas é inútil. Para ela o rebanho são os trabalhadores, que ao invés da noite, ficam acordados o dia todo. Edileusa não comerá o ovo no pão, é para o filho, apenas o “chafé” esquentará a barriga magra, até a hora de comer o feijão que tilinta na panela. Pelo menos Robinson tem a merenda da creche. — Que estejam vivos e despertos pra trabalhar, não é isso que o governo fornece pras indústrias & comércio?...

Edileusa ia arrumar um lugar para mudar naquela semana, pois já tem dias que o dono da casa bate à porta e ela não tem dinheiro. Seus móveis já são poucos, bem velhos, o que quer dizer: mal conservados. Com tantas mudanças só ficavam mais feios. Já estava desempregada há tempos. — Tem coisa pior prum burro de indústria & comércio do que ficar sem carregar carga, que já é tão acostumado?...

O

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Numa manhã, Edileusa estava ao portão de casa, recebia alguém muito impaciente. Robin-son ouviu de longe a voz envergonhada da mãe, dizendo:

— Ô seu Nogueira, fico até com vergonha, mas não tenho dinheiro... — Fico até com dó da senhora. Sem marido, sem os filhos

que trabalhavam, mas não tenho o que fazer... Não posso fazer caridade... Já procurou se pega o bolsa família? A senhora não têm irmãs?...

Às vistas de Robinson, Seu Nogueira é um senhor alto, de topo calvo, sem camisa com tufos de pelo branco amostra, de bermudinha e chinelos. Empunhando com a esquerda viril uma corrente que termina enroscada no pescoço de um pastor alemão de orelhas rijas. Estranhando a chegada de Robinson, o cão paralisado perscrutou o pequeno humanoide. Latiu avançando e se Seu Nogueira não segura o cão, arrancava o nariz de Robinson, que correu com olhos arrega-lados quase caindo da cara, indo se refugiar debaixo do tanque de lavar roupas.

— Olha Dona Edileusa, como eu disse não posso fazer caridade! Infelizmente peço-lhe gen-tilmente que desocupe o imóvel! — o homem exclamou e foi embora quase arrastando o ira-cundo cão que latia.

Dona Edileusa fechou o portão, entrou segurando choro forte na garganta pensando: “Sou mulher, e vou dar jeito!...” Em seguida, gritou:

— Robinson larga de ser medroso, menino!... O rapaz aos modos e aspecto de um mendigo, sentado no interior de uma manilha, com me-

do, vestindo moletom preto velho com capuz cobrindo a cabeça, olhava a chuva lá fora, atra-vessada pelo clarão da lua que espiava a terra entre nuvens escuras. Ao redor, uma obra públi-ca já desgastada pelo tempo. Parecia um campo de guerra a muito esquecido, e do alto o lugar parecia um esboço medonho do que seria um espaço destinado a programações culturais, es-portivas e de lazer. Mas em sua dignidade restringida, o rapaz olhava a água cair do céu, atra-vessada pela tétrica luz. As marcas do passado revelam de suas reminiscências outros dias de chu- va...

Quando Edileusa viu mais uma semana passar, como uma imensa máquina locomotiva pa-rando na estação. Viu o céu acinzentado como se intumescido pela densa fumaça da fornalha da máquina. Viu os trilhos que eram minutos, e segundos angustiantes — vendo que além de tor-nar-se poeira, os segundos esfriavam nas veias. — Enfim, o apito anunciava o final de semana retumbando no peito que arfava cansado. Ela imaginou o céu abrindo colorido como o algodão doce da infância, mas o céu abriu medonho como as asas de um morcego. Triste! Derramando chuva grossa, parecia chorar em desespero, gritava trovões, cuspia raios! E assim, a preguiça era incomodada quando os pelos da coberta pinicavam a pele, um ronco seco mugia na barriga murcha, e o filho pequeno com seus olhos de gado magro; sempre procurando algo nos olhos da mãe — estaria doente? — Teria que levantar e preparar o café, pegar o pão murcho da vasi-lha de plástico, e ao menos o café esquentaria seu estômago sedicioso. — As máquinas de tra-balho, as loucas movedoras do progresso humano funcionam assim...

E ao final do domingo ouvia-se a segunda-feira chegando, o batuque frenético do ligar da máquina... O apito febril corta as cabeças como se atravessando nuvens em bolinhas, sem cor, triste algodão doce branco, mas era açúcar? Creio que amargo, pois ninguém parecia estar feliz. Parecendo crianças birrentas, estressadas, foram acordadas justamente quando o sono ficou gostoso — como se estivessem voando e um marginal cortasse suas asas!

E a louca emotiva semana iniciou sua mastigação de minutos, segundos e pessoas. Cedinho, entre cinco e seis da manhã, despeja levas e mais levas de trabalhadores na cidade, como reba-nho marcado fazendo de tudo para sorrir no fim de mês, e conseguem... Ora!... Essa é a felicida-de de comprar as coisas, só não pode é ficar doente ou precisar da Justiça, não é isso que o go-verno fornece pras indústrias & comércio?...

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............................................................. Não voam nem se pode flutuar!

Como sempre, Edileusa deixa o pequeno na creche, etecétera e tal... Revoava em sua cabeça a voz do Seu Nogueira: “Já procurou se pega o bolsa família? A senhora não têm irmãs?”

— “A senhora não têm irmãs?” — ela balbuciou entre lábios. — Deus do céu dê-me forças! Hoje falo com Jandira!

— Mãe! Ainda vou ganhar o suficiente pra dar pra senhora uma vida melhor! — exclamou o pequeno Robinson na porta da creche... Tão pequeno...

Edileusa tomou-se surpresa, impotente, não encontrou palavras. Mulher de triste sina. Per-dera o marido e os filhos grandes que trabalhavam. Só lhe restava um peso extra, criança inap-ta ao trabalho, mas era bom menino — seria louca em por todas as suas esperanças nele? — Queria-lhe bem, isso já era o suficiente para si.

Logo vieram encaminhá-lo para o interior da creche, e ela não precisou inventar palavra. Despediram-se de longe com pequenas lágrimas. Robinson decerto, sentindo que sua mãe nun-ca mais voltaria, livrara-se do peso. Enquanto Edileusa, decerto, sentindo que daquele fardo nunca poderia se livrar.

Vocês que fazem parte dessa massa Que passa nos projetos do futuro É duro tanto ter que caminhar

E dar muito mais do que receber...

“Admirável Gado Novo” (Zé Ramalho)

>> <<

Dois rapazes esquálidos desciam a rua em bairro de trabalhadores, mesmo ainda cedo, não se via movimento. Um vestido de moletom preto velho, com capuz cobria a cabeça, mãos enfiadas nos bolsos do moletom na altura da barriga. O outro também vestido de moletom, só que bege camuflado, mantinha o capuz nas costas, de cabelos castanhos e bochechas murchas. Ambos de bermuda tactel e chinelos, mas estampas diferentes. Param diante o portão de uma casa, olham ao redor, o de moletom bege camuflado exclama:

— Junta as mãos aí!... — Vê se num demora, Marco! — disse o outro dando apoio com as mãos. Marco, do muro sumiu para dentro da casa, o de moletom preto enfiou as mãos no bolso da

blusa e olhou ao redor, ficou na vigília, aflito. Um bom tempo depois, Marco reapareceu. — Psiu... — fez. — Porra véio, cê demorou! — o outro resmungou pegando a sacola grande que Marco trazia,

este pulou pra calçada. A sacola estava abarrotada de coisas, os rapazes riam e sorriam, e se repreendiam quando o outro fazia um tom mais alto.

— O velho ainda tava com grana môcada, pira? Saca só! — Marco mostrou um bolo de di-nheiro, o outro fez barulho de risadas na garganta. E se foram subindo a rua.

— Seu Aurélio vai te matar quando te pegar!

>> <<

Aurélio, marido de Jandira a irmã mais velha de Edileusa. Baixo e gordinho, de cabelos ralos arrepiados, olhos arregalados, sorria e ria como um lunático mostrando os incisivos centrais separados e grandes. Motivo de piadas, chistes e chacotas na rua e no emprego, mas em casa era enérgico e potente em todos os sentidos. Além de Jandira tem em casa um casal de filhos.

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Petúnia, a filhinha, a princesinha, o dodói. Marco, mais velho que a princesa, e um pouco mais velho que Robinson, é o mau criado, obsceno e perverso — o capeta em pele de criança.

Aurélio passou as mãos nas coisas de Edileusa, vendeu o que prestava e tacou no lixo o que não dava pra vender. Enfiou as trouxas da cunhada no porta-malas do Monza GLS ’96; largou a chave da casa com uma vizinha; e chisparam antes de ouvir o arrastar dos chinelos do Seu No-gueira e a respiração molhada do pastor alemão. Aurélio não queria saber e não deixou Edileu-sa expressar qualquer opinião, ou desejo. Durante a semana levou-a para fazer o cadastro do bolsa família, pegar cesta básica do município, e tudo o que ela tinha direito como mãe pobre, desempregada e viúva.

Disse pra mulher Jandira: — Queria uma empregada? Agora tem uma de graça, então desfaz essa cara de bosta! — sol-

tou uma gargalhada depravada e apertou a bunda da mulher. Edileusa enrubesceu envergo-nhada num canto com o filho.

Depois que Aurélio saiu remedando a própria gargalhada, ela se aproximou da irmã carran-cuda.

— Se preocupa não, o incômodo será por pouco tempo, irmã! — disse em tom de suplica. — Por pouco tempo? — tornou Jandira. — Do jeito que o Aurélio ta empolgado? Só do muni-

cípio tu arrancou duas cestas básicas pra ele... Larga de ser fingida, Edileusa! Foi a primeira a casar, se achando superior às irmãs, de mim principalmente, a mais velha encalhada né? Agora, olha aí a viuvinha safada de olho no marido da irmã mais velha! — exclamou e riu como uma gralha matraqueira.

— Que isso, Jandira? Deus-me-livre... Misericórdia!... Jandira ainda ria como uma gralha matraqueira, enquanto Edileusa enrubesceu envergo-

nhada, retirou-se com o filho para o quartinho de empregada. Cama de campanha forrada com sapeca-negrim, um armário e suas trouxas. Edileusa sentou na cama de campanha desconsola-da arfando no peito a tristeza, e a saudade do marido. Robinson permaneceu no canto quase escondido atrás do armário.

— Sai daí, menino! Ele saiu e veio para perto da mãe: — Mãe! Ainda vou ganhar o suficiente pra dar pra senhora uma vida melhor! — exclamou

Robinson. — Eia... Agora só sabe falar isso? E o que vai fazer menino?... — Vou comprar coisas pra vender... E vou ganhar o suficiente pra dar pra senhora uma vida

melhor... Foram interrompidos pelo bater violento na porta, e Jandira gritando: — Hei viuvinha passista de escola de samba, tem muito que fazer aqui!... Vê se não me enro-

la! Edileusa levantou e antes de abrir a porta, olhou para o filho, tomada de estranheza. — Eu, hein?!... “Dinheiro não se acha na rua!”. Fique aqui!... — abriu a porta e saiu fechando-

a atrás de si. — Passista de escola de samba?... — Edileusa perguntou para escárnio da irmã: — É!... tá fazendo regime né, safadinha, querendo ser passista de escola de samba! Edileusa olhou-se surpresa, sabia que era fome, e não regime, mas sentiu-se orgulhosa. Re-

cebeu o cabo do esfregão das mãos da irmã e quase saiu se exibindo, sambando. Mas enfim, enrubesceu envergonhada.

>> <<

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Edileusa lavava, passava, limpava, escovava, fazia almoço. Jandira lixava as unhas, engordava, e ria como uma gralha matraqueira e monitorando a irmã, dava ordens e depois inspecionava. Eram assim todos os dias de Edileusa. Enquanto Robinson passava a maior parte do tempo no quartinho. Ele sentia o cheirinho do almoço repercutindo no ronronar de sua barriga, mas às vezes sua mãe o esquecia, pensava: “Coitada, trabalhando muito!”.

Marco abriu a porta do quartinho e ficou olhando Robinson, depois perguntou: — Por que não sai daí? Penso que você é doente. Será que é surdo? ...Ou mudo? O que há

com você?... Você é retardado?

>> << Edileusa limpava a casa da irmã envolvendo o filho, o rodo, a vassoura, os calos, enquanto sua alma esvaia-se pelos olhos... Seca e vazia! Sem valor objetivo na vida padecia entre interroga-ções amargas e angustiantes. “Já que se morre nada tem importância, a resignação se torna le-gítima, e todo empreendimento se reveste de um caráter provisório e relativo”.

Edileusa percebia os olhos de Robinson sobre ela — e como a incomodava aquele olhar de gado doméstico, magro, faminto. — Por sua vez, Robinson preocupava-se com a mãe, mas era pequeno e se sentia um idiota, o que faria? Edileusa deu-lhe um sopapo forte no pé do ouvido, e um beliscão doído no ombro.

Robinson, com medo das pancadas, voltou-se para sua vida furtiva, sem chamar atenção. Não falava com ninguém e ajudava a mãe cansando-se ao máximo possível para não ter forças para pensamentos. Edileusa ia dormir cedo. Às vezes Robinson ficava parado perto do portal entre a cozinha e a sala, observando os modos de Aurélio.

Aurélio esparramado no sofá, no canto da sala, assistia a sua novela. Jandira mais para o lado da porta que dava para garagem dormia numa cadeira de fio de nylon. Quando chegou Petúnia, que foi logo sentando ao lado do pai, ele a abraçou com a direita acariciando o joelhinho da fi-lha com voz de mimar. Petúnia, uma boneca segurando outra, a princesinha do papai.

Brincando como se a filha fosse boneca, colocou-a no colo, levantou sua saia, acariciava com voz de mimar. E ocupado no brincar com o corpo da filha, nem poderia notar, que era Robinson diante do portal, impassível no escuro da cozinha, observava as carícias, escutava a voz de mi-mar de Aurélio, o arfar ressonante de Jandira.

De repente, de frente com Robinson, surgiu Marco, na cozinha a meia luz que vinha da sala, suas bochechas estavam ligeiramente estufadas, cenho duro, franzido. Os meninos se olharam.

— O que está xeretando? — Marco perguntou cochichando ao primo, o qual indiferente não respondeu. Olhou de relance o que Robinson observava, depois fixou seu olhar no pai dizendo ao primo:

— Bem que você poderia me ajudar a matar ele! — voltou a fitar Robinson, o qual permane-cia silencioso.

— Você é doente? — Marco objetou. — Penso que você é mudo... Você fica excitado? — aproximou e deu tapinhas nas partes íntimas do primo.

— Hei!... — Robinson reagiu. — Xip!... — sussurrou Marco fazendo sinal de silêncio para o primo e sorriu dizendo: — Então você fala?... — riu baixinho e agarrou Robinson pelo braço. — Vamos ficar ali no

cantinho, só nós dois! Robinson empurrou o primo, mas Marco o segurava forte pelo braço, quase cravando as u-

nhas. — Vem!... Vem!... — fazia Marco arrastando Robinson para o canto mais escuro da cozinha.

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De repente a luz foi ligada, Marco soltou Robinson, era Jandira ainda ressonando, nem nota-ra os meninos, foi direto à geladeira. Robinson correu para o quartinho da mãe Edileusa. Marco ficou fitando os movimentos da mãe Jandira, com ódio nos olhos.

>> <<

As cenas eram repetidas, se repetiam quase diariamente, com acréscimo ou decréscimo de

um ato. Quando Aurélio não estava acariciando a filha no colo com voz de mimar, estava sur-rando Marco no colo com voz de fuzilar:

— Chora cão!... Chora cão!... — Aurélio gritava, Marco endurecia as nádegas e o cenho, não chorava e nem pedia ao pai que parasse.

— Chora cão!... Chora cão!... — Aurélio gritava. Jandira lixava as unhas e ria se divertindo toda, tremelicava de prazer. E as surras que Marco

levava, para Robinson, não pareciam ser muito diferentes do que ele fazia para merecê-las. Traseiro esfolado, Marco suspendia as calças e corria para o fundo da casa. E a falta de pai não tem nada que remedeie. O carrasco, esse sim se fazia sempre presente, o que era pai, senão car-rasco?

Noutros dias era um silêncio absoluto de gente, salvo o som da TV. Edileusa e Robinson fica-vam no quartinho de olhos fitos no escuro, na mesma cama de campanha; quatro fracas luzi-nhas perscrutando o escuro. Remoendo imagens lacrimejadas... O sorriso do marido aparecia-lhe nítido, bonito, pura alegria e arte de viver. O resto da imagem lacrimejada pelo tempo desli-zava salgada marcando vincos no rosto, diluindo-se evanescia. Podia ver os vultos dos filhos mais velhos, se arrumando para o trabalho com o pai, na cozinha tomavam o café, beijavam a mãe graciosa. Chegou a trágica notícia que todos estavam mortos. Seu pranto apagava-se la-crimejado, entre sulcos, nos vincos envelhecia na memória, embranquecida evanescia.

E a fraquinha luz que cintilava nos olhos de Robinson, bem que poderia ser o sol de uma re-mota tarde ou manhã, não se lembrava dos irmãos nem do rosto do pai. Lembrava-se apenas dos dedos do pai batucando samba no balcão do boteco, que talvez ficasse entre sua casa e a padaria. Imitando bateria de escola de samba esperava ansioso o gole da pinga. Nós grossos, tendões enérgicos, flexionavam em passos marcando tempo como baqueta, batia o polegar.

Imagens lacrimejadas, mãos calejadas e vincadas de rachaduras, mãos de trabalhador bra-çal. De pobre lavrador que preparou a terra, para pobre servente que preparou o cimento. Sem saber que ele mesmo era a argamassa, parte da massa de manobra política. Expropriado de sua alcova sonhou em ser o próximo felizardo ganhador da loteria. Aí sim, ele seria rei e legislador da própria vida. O pobre garoto que acompanhava o pai seria doutor! Na gaveta ainda estava o envelope de plástico, com seus jogos da loteria, sonho que se apagou lacrimejado com ele, entre sulcos e vincos envelhecia na memória, embranquecida evanescia entre fendas de labirinto. E a falta de pai não tem nada que remedeie — aquele que guardava o futuro do filho, mesmo que por ventura marionete dos seus sonhos —, teria o seu direito de viver em paz, acolhido decer-to.

A novela escandalosa da TV rompia o silêncio, exemplo mau feito de convivência conjugal e familiar, preenchia os desejos. Por isso os dias eram os mesmos, e as semanas eram as mesmas. Por conseguinte, os meses esvaiam-se, a vida inteira jogada no sofá — naquela coisa chamada vida, Edileusa e Robinson sobreviviam. Enquanto, os lobos uivavam pra lua. Os anos engoliam gente, vomitava indigentes, remexia feridas. Eram azuis, pois o ano composto de ar é muito, muito azul claro. Seu jorro vibrante tira o fôlego do céu pintado durante o nascer e o pôr do sol.

Aurélio chegava frustrado do trabalho. Bêbado e com raiva dos amigos que viviam fazendo de si a piada do dia. Não se contentava com sua bonequinha, ou em espancar o filho, ia pra cima da esposa e surrava-a como um animal endemoniado. Levava-a pro quarto e a estuprava. Jandi-

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ra invadida pelo demônio gemia em transe louco. Aurélio grunhia como um porco, e saciava-se sobre a carne que espancava. Edileusa e Robinson refugiados no quartinho eram quatro brasas no escuro perscrutando a gritaria lá de fora. Robinson escutava as gargalhadas de Marco no fundo da casa. O que era pai, senão carrasco?

No outro dia, Edileusa objetou a irmã: — Até quando vai aguentar isso, minha irmã?... — Ah, viuvinha perva! Então fica ouvindo de trás da porta né, com inveja do pau grande, e

pesado do meu marido! Você tem muito que fazer aqui!... Olha as roupas sujas! — e ria como uma gralha matraqueira enervada de luxúria louca.

— Que isso, Jandira? Deus-me-livre... Misericórdia!...

>> <<

Glorinha, a irmã mais nova, apareceu num fim de semana com o marido Geraldo. Baixa, cabelos tingidos de loiro com raízes pretas, biotipo entre a gordura de Jandira e a magreza de Edileusa, de sorriso contido, mas alegre e desenvolta. Aurélio encheu-se de indiretas e brincadeiras para envergonhar a cunhada e principalmente o concunhado Geraldo, gari como a esposa, não ligava para os abusos de Aurélio. Geraldo é magro, e perto dos demais parecia ser alto. De voz fanho-sa, que tentava disfarçar prendendo o ar na garganta ao falar. Aurélio não gostava das visitas, e fazia de tudo para demonstrar indiretamente. Edileusa, só carinhos com a irmã mais nova, o que para Aurélio não passava de bajulação.

— Por que não vai morar com ela? — ele indagou subitamente Edileusa, e ao ver as irmãs enrubescerem completou:

— É só pocrizia! — E você deixa Aurélio? — contrapôs Jandira rindo, trazendo cerveja. — E por que não?! — ele replicou irritado. Jandira se calou, um minuto de silêncio constrangedor. Geraldo tomou um gole da cerveja, e

tentou tirar uma nota de suas cordas vocais, para quebrar o silêncio, mas sem argumento en-gasgou-se prendendo o ar na garganta reproduzindo apenas um “é” sustenido. Glorinha tor-nando a nota natural tomou para si um argumento bequadro:

— Estamos pensando em trocar nosso carro por outro mais novo! ...Agora que estou traba-lhando na Prefeitura, está muito fácil de abrir crediário, sabe? A melhor coisa que eu fiz foi fa-zer esse concurso. É uma profissão digna como outra qualquer. Mas ainda tem gente com muito preconceito, que prefere ganhar menos em outro trabalho!

— Você varre rua? — perguntou Jandira. — Sim, e foi varrendo a rua na porta da cessonára, quer dizer, como diz mesmo, Geraldo? —

Glorinha riu alto. — Concess. ... — Concessionária isso! — riu. — Foi varrendo a calçada da concessionária, que eu encantei

nesse aí que temos, o vendedor me chamou pra entrar... Nossa, eu nem sabia que varredor de rua podia comprar um carro, mesmo sem experiência profissional — continuou rindo. — Es-tamos pagando juntos, eu e o Geraldo.

Geraldo ficou sem graça, Aurélio riu da cara dele, mas antes que fizesse uma piada, Geraldo passou na frente:

— É... mas agora tou pagando sozinho, né Glória? — Glorinha confirmou com a cabeça. — É... a Glorinha tava achando que o que eu tinha era sem jeito, mas tava mesmo, sabe?...

— Também quero trocar os móveis, mas já fiz primeiro crediário pra comprar os eletros de casa... tamo com TV grande de LCD. Trocamos geladeira... E o carro, né gente! tamo fazendo plano pra trocar o carro!

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— Eu acho que podemos fazer as coisas juntos, num sabe? — Geraldo rebateu rubro. Ele usa camisa aberta no peito, e jura que ali se encontra um tufo de pelos, que fica cofiando.

Mas na verdade tem o peito pelado e franzino. E ainda rubro, completou: — Sou eu que pago o aluguel, energia, água e essas coisas! O casal falou de mais feitos em conjunto, mas em conjunto não engrandecia os feitos. Todos

começaram achar que Geraldo não dava conta de sustentar a casa sozinho e precisava da mu-lher. E ainda, acharam que Glorinha estava trabalhan- do de mais por conta da “frouxidão” do marido.

Edileusa achava graça, olhou as horas, e correu para cozinha para preparar o almoço. — Eia Geraldo, mas você está frouxo hein! — afirmou Jandira. — É a mulher que tá fazendo

as coisa tudo... Olha aí Aurélio! Aqui é assim não, Glorinha! Geraldo engoliu o machismo que a cunhada lhe atirou na cara, seco pela goela, pois tremeli-

cando tacou um gole da cerveja goela abaixo pra ajudar a descer a injúria sofrida. Enquanto Aurélio deu de ombros, perguntando a cunhada:

— Quanto está ganhando, Glorinha? — Ué, chega ao final das contas uns R$ 1,200 mil... — E eu recebo mais, ó gente! — insistiu Geraldo. — É que vocês não sabem o que é crescer

juntos... Não que estava feio sem a Glória trabalhando. Mas com ela trabalhando só nós dois conseguimos quase R$ 5 mil, poxa. Fora os menino que não dão despesa, o mais novo mesmo tá trabalhando de aprendiz, olha hein...! O mais velho já está se preparando pro próximo concurso da Prefeitura...!

— Quanto vai custar a nossa piscina, Aurélio? — Perguntou Jandira ao marido, ignorando Geraldo.

— Minha piscina? — Aurélio retornou a pergunta, mexia nos dedos do pé, averiguando algo. Todos repararam Aurélio mexer nos dedos, e este sentiu necessidade de se explicar:

— Eu estava com umas frieiras entre os dedos, mas nossa...! como tava ruim. Agora tá bele-za! Ontem no banheiro pedi pra Jandira fazer xixi no meu pé, me falaram disso. E olha só! — Aurélio mexeu com os dedos para todos verem:

— Novo em folha! Geraldo chegou a se aproximar pra averiguar, achou interessante. Glorinha riu olhando para

irmã. — Ora gente! — disse Jandira envergonhada. — Disseram

que urina de mulher é bom...! — se explicou irritada. — Até o xixi tem serventia, né mesmo?! — disse Geraldo rindo, e ao ver a cunhada doída,

sentiu-se vingado. — Então, só a minha piscina é o salário de vocês! — Aurélio explicou e riu grave. — Hum... Piscina? — Glorinha encantou-se. — Piscina...! — Geraldo prolongou o encantamento. — O senhor ainda está lá na oficina com

o Janjão? — Que Janjão?! Aquele ali é um zero, rapaz! Estou na oficina da Vôksí, trabalhando com ca-

minhão grande, entende? Só com a hora extra eu pago o pedreiro e o oreia pra fazer minha pis-cina! E então, Edileusa? Já tá saindo o almoço?!

Aurélio regulava a cerveja, a visita ficava com copo vazio tempão. Jandira abria mais uma garrafa, Aurélio fazia cara feia, fazia piada com a cara da mulher que estava ficando tonta, gri-tava pra Edileusa trazer alguma coisa. Os meninos espiavam, passavam na frente. Petúnia era elogiada daqui e dali, enquanto pai ficava orgulhoso. Robinson deslocado se movimentava pe-los cantos, Marco ora fingia que ia chutá-lo ora que ia socá-lo, e tentando fugir do primo, Robin-son esbarrou na mãe, levou um beliscão doído no ombro de lacrimejar os olhos. Marco correu atrás do cachorro. Geraldo cofiava seus pelos imaginários, e Glorinha contava o que queria fa-

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zer em sua casa, que tinha visto uma piscina de plástico na promoção, de plástico, mas bem grande, mostrou o tamanho. “Bem grande mesmo!” — dizia, e Edileusa por fim serviu o almoço. O cachorro gritou no fundo da casa, Jandira gritou de volta que ia esfolar Marco se ele não pa-rasse de atazanar o pobre do cão. Depois de almoçar, Aurélio saiu pra ver TV, e dormiu no sofá, enquanto Jandira foi pra cama. Edileusa ressonava sentada na cadeira, então Geraldo e Glori-nha viram no relógio imaginário a hora de ir embora.

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No sábado, Robinson estava de cócoras, próximo ao tanque de lavar roupas, na área de serviço contígua à cozinha. Quando o cachorro o viu, rosnou mostrando os dentinhos, porém tornando-se dócil, veio receber os carinhos dele. Nas primeiras escovadelas de seus dedos no pelo curto do cão, foi surpreendido pelo chutão que Marco deu no meio do cão, que saiu ganindo. Assus-tado, Robinson caiu para trás sentado olhando Marco, que ria morbidamente apontando o dedo na sua cara — mostrando decerto, que este estava assustado. Levantava as sobrancelhas e a-pertava a gargalhada na garganta, quando sua mãe veio da cozinha espavorida dando-lhe socos e tapas na cara e onde mais acertava, Marco foi parar caído perto do muro do corredor que da-va pra frente da casa e pros fundos.

— Seu moleque! — gritou Jandira. — Quer matar o cachorro?! — e foi atrás do cãozinho es-ganiçado, e ouviu-se o som carinhoso da voz da mulher lá no fundo da casa.

Marco escorou no muro, uma perna esticada, a outra dobrada, cotovelo apoiado no chão, ria segurando a voz rouquenha na garganta. Com os dedos acariciava os lábios, decerto doíam por causa das pancadas da mãe, mas ria da cara do Robinson, mais assustada ainda. Uma voz de menina cortou a loucura da manhã, Robinson levantou as vistas e viu a prima Petúnia, segu-rando a boneca, vestidas iguais, perguntou ao irmão:

— O que aconteceu? — Ele chutou o cachorro! — disse apontando o Robinson. Antes que Robinson dissesse uma palavra, foi atingindo pela boneca na cabeça, quatro vezes,

a mãozinha de plástico da boneca cortou-lhe o lábio, Marco caiu na gargalhada socando o chão, e não viu sua mãe voltando com uma vassoura.

— Do que tá rindo?!... — ela gritou dando vassouradas no menino, ele levantou sob as vas-souradas e correu pra rua.

Na passagem pra cozinha, Jandira deu vassourada em Robinson, como se o varresse para debaixo da cuba do tanque. Petúnia correu da mãe gritando:

— Se me tocar, conto pro papai!... — Ah sua vadiazinha!... Naquele sábado, Aurélio trabalhou até tardinha. Quando o papai chegou, a menina correu e

contou-lhe que a mãe havia batido nela com a vassoura, mentira é claro, que a mãe tentou ex-plicar ao papai. Não adiantou nada, nesse fim de dia quem acabou apanhando feio de cinto foi Jandira. Enquanto Robinson escutava as gargalhadas de Marco no fundo da casa. Agora era Marco quem tremelicava vingado de prazer. Mas, dessa vez, Edileusa levantou da cama, deu um tapão e um beliscão em Robinson exclamando:

— Fica quietinho aqui hein! Se sair do quarto quem vai apanhar de peia é você! Ouviu?! — e saiu fechando a porta atrás de si. Robinson ouviu o grito da mãe na sala onde Jandira apanhava de cinto do marido.

— Para com isso, homem! Isso não é coisa de Deus...! Jandira, com a blusa rasgada, livrou-se do marido e pulou na irmã segurando-a pelos cabe-

los, dando-lhe joelhadas, puxando os cabelos dela gritou: — Viuvinha sem vergonha!... Vai morrer com inveja?!...

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Edileusa assustada apanhava sem reação, pois sua intenção era ajudar a irmã. Aurélio, sem camisa, jogou-se entre as irmãs, separando-as empurrou a mulher para trás. Jandira caiu no sofá gritando, enquanto Aurélio agarrou a cunhada.

— Ah...! Cunhadinha...! — E lambeu o rosto de Edileusa, ele fedia a álcool.

Aurélio arrastou a cunhada pro quarto. Jandira levantou do sofá e tentou tirar Edileusa das mãos de Aurélio com tapas e pontapés. Aurélio continuava a arrastar Edileusa pro quarto, quando chegou à porta empurrou Jandira para trás novamente. Trancou-se com a cunhada no quarto, esta gritava de desespero, e Jandira de raiva surrava a porta, rosnava como um cão xin-gando a irmã.

Robinson no quartinho escutava tudo, chorando, em desespero tentou abrir a porta, mas descobriu que a mãe havia trancado. Ouvia as gargalhadas de Marco no fundo da casa, e o outro como um animal endemoniado grunhindo como um porco. O animal se cevava sobre a carne que espancava. Edileusa, invadida pelo demônio parecia gemer em transe entre pavor e prazer. Robinson lembrou-se do tapão, do beliscão e ordem da mãe, e se escondeu atrás do armário com medo dos lobos.

Jandira chorava, urrando surrava a porta, e xingava a irmã. Os gritos e gemidos se mistura-vam na cabeça de Robinson, até que achou dentro de si, um canto escuro e silencioso. De re-pente estava na cozinha da velha casa, onde morava com a mãe Edileusa. Uma sombra perto da pia fazia movimentos de lavar pratos, e à sua esquerda, o cão de Seu Nogueira, de orelhas em-pinadas parecia um lobo parado olhando Robinson. A porta do quarto abriu, Robinson viu sua mãe nua e machucada. Ela fechou a porta atrás de si, e o escuro tragou os sons e qualquer coisa que pudesse identificar o sábado.

No domingo, perto do meio-dia, Glorinha e Geraldo apareceram. Jandira e Aurélio estavam na garagem. Jandira lixava as unhas do pé de Aurélio, e Geraldo encontrou-se num estranha-mento, ao mesmo tempo inveja. Glorinha reparou nos hematomas da irmã, e marcas de unha-das no cunhado que estava sem camisa. Jandira passou os olhos em Glorinha e Geraldo, mas voltou sua atenção aos pés do marido, serviço que realizava com toda cerimônia, e, dedicação.

— Vieram filar a boia? — indagou rindo Aurélio. — Nada, uma visitinha... — replicou Geraldo, também sorrindo, e nem reparou em hemato-

mas ou marcas de unhadas. — Ê vidão hein, quem dera eu... — Isso não está pra gari, rapaz! — Aurélio riu como um burguês, uma risada com escárnio

intento. Geraldo riu envergonhado por sua posição social, enquanto a esposa passou na frente, preo-

cupada: — E Edileusa?... — Ora, fazendo o almoço! — respondeu rispidamente Jandira, sem olhar no rosto da irmã.

— O que ela estaria fazendo? — Licença! — falou Glorinha constrangida e foi entrando. Geraldo ficou parado lá na entrada da garagem admirando o casal em sua toalete, enquanto

cofiava seus pelos imaginários do peito. Não sabia por qual razão, mas achava aquela cena bo-nita por demais. “Coisa de gente que tem dinheiro!” — passou pela sua cabeça.

Glorinha encontrou Edileusa na cozinha preparando o frango para por no forno. Com hema-tomas no rosto e braços, parecia um zumbi, se assustou quando viu Glorinha. Baixou a cabeça e disfarçou-se com um sorriso constrangido.

— Ah, minha irmã. Eu imaginei mesmo que você viria! ...Que bom! — disse ela. — O que aconteceu, Edileusa?

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Edileusa proferiu qualquer coisa inaudível, e continuou sua tarefa de cabeça baixa, evitan-do olhar para irmã mais nova.

— Você e Jandira com hematomas, Aurélio com ranhões no peito, no rosto... O que está con-tecendo nessa casa? Fale pelo amor de Deus!

— Vocês são muito invejosas! — Jandira pronunciou em voz alta entrando na cozinha. — Is-so sim! INVEJOSAS! Só porque casaram primeiro do que eu, a irmã mais velha encalhada né!

— Calma Jandira... Antes que Edileusa terminasse a frase, Jandira lhe deu uma bofetada na cara. — Cala a boca! Ainda tem coragem de me dar ordens?...! Depois de se atracar com meu ma-

rido ontem!...? Glorinha arregalou os olhos. Jandira continuou: — É...! maninha. Essa viuvinha perva atracou no meu marido ontem...! Edileusa encolheu-se no canto e começou a chorar. — Não...! eu quis te ajudar... mas ele me arrastou pro quarto e... — articulou chorando, en-

gasgada, não conseguiu terminar. Glorinha arregalou ainda mais os olhos e entendeu tudo: — DEUS DO CÉU! MISERICÓRDIA DEUS PAI! Os meninos apareceram assustados, e Jandira ficou vermelha como uma pimenta, tinindo de

raiva: — Hei...! — exclamou virulenta. — Quem você acha que é pra gritar dentro da minha casa, li-

xeira! Já disse...! é invejosas sim, meu marido pode ser baixo mas tem um pinto enorme e pesa-do, pergunta pressa safada aqui...! — e apontou pra Edileusa que estava em prantos.

Indignada Glorinha urrou: — Misericórdia...! Essa mulher é doida! Essa mulher é doida!...! Glorinha puxou Edileusa pelo braço, enquanto Jandira ainda falava em voz alta os dotes des-

comunais do marido, insistia que eram invejosas por isso. No caminho para o quartinho de Edi-leusa, Glorinha agarrou Robinson pelos cabelos, escorregou rápido a mão pelo rosto do meni-no, arranhando-o com as unhas, segurou-o pela nuca e arrastou mãe e filho para o quartinho e saiu pegando suas coisas e enfiando nas sacolas, armando trouxas. Jandira atrás xingando, e enxotando as irmãs, e Glorinha gritando pelo marido:

— Geraldo! Geraldo! Geraldo...oô!...! — e depois urrava: — Misericórdia...! Essa mulher é doida! Essa mulher é doida...!

— Seu marido nem deve dar conta de levantar uma lata de lixo... O outro coitado, já virou pó no caixão... — Jandira ria como uma gralha matraqueira enervada de luxúria.

Geraldo apareceu com olhos arregalados: — O que foi mulher?...! Que escândalo é esse na casa dos outros...? Hã...! O que seu Aurélio e

dona Jandira vão pensar...? Hã...! Jandira riu ainda mais alto. — O que foi mulher?...! — Geraldo indagava Glorinha, com olhos ainda mais assustados. — Vamo levar eles pra nossa casa, agora...! — ela gritou, e Geraldo não objetou, saiu arras-

tando as trouxas e sacolas, enquanto Glorinha arrastava mãe e filho como se tirasse bonecas sem expressão da casinha que não lhes serviam mais.

— Seu Aurélio tava me mostrando — ia dizendo Geraldo com satisfação a mulher — onde vão fazer a piscina. Os peão já até demarcaram...

Aurélio ajudou Geraldo a enfiar as coisas no porta-malas do Gol “bola” vermelho, enquanto Glorinha batia a porta do carro. Edileusa e Robinson estavam no banco de trás como bonecas inanimadas recém-retiradas da menina má.

— No final do mês a piscina já deve estar cheia d’água! — Aurélio falou pra Geraldo.

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— Entra logo nesse carro, Geraldo! E vamos embora...! — ordenou Glorinha. — Liga pra isso não, seu Aurélio! É coisa de mulher, logo elas se acertam. No final a família

sempre permanece unida! — E quem disse que eu ligo pra isso, rapaz?! — tornou Aurélio. Geraldo desconversou desconsertado, sem estranhamento despediu-se da cunhada, do con-

cunhado, entrou no carro e partiram. No banco de trás Edileusa sentia o balançar do carro, es-correu uma lágrima de seus olhos. Robinson em choque escorou a cabeça no ombro da mãe.

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A casa de Glorinha e Geraldo, em bairro afastado do epicentro citadino, tinha telhas Eternit. Fincada num lote grande cercada por muro sem reboco, de tijolos amarelo avermelhado. O mo-fo parecia levantar-se da terra escalando o pé do muro. Uma parte do lote, coberta por grama alta, e plantas tipo praga, tem na frente uma mangueira alta, de folhas grossas e verdes escuro. O carro atravessou o portão azul desbotado arreganhado para sua passagem. Os pneus rolaram na entrada de cimento batido que se estendia e ainda formava uma rampa e a varanda cercada por mureta. O carro fica na entrada de cimento, descoberto, o que justifica o desbotado no teto.

A varanda é sombreada, têm cadeiras de fio de nylon, de onde levantou um rapaz aparen-tando uns 14/15 anos, ele veio ao encontro dos que chegavam acompanhado por um cachorro de pelagem branca lustrosa malhada de preto, com uma “máscara” marrom em torno dos o-lhos. O cão despreguiçou e fazendo charme com seu olhar dócil atingiu Glorinha e os demais que desciam do carro. Robinson reparou que o cão não parecia um lobo e também parecia ter a barriguinha satisfeita, e bem alimentada. Pequeno, porém maior que o cachorro da casa da tia Jandira.

Geraldo abriu o porta-malas, e o rapaz foi até ele depois de cumprimentar a tia Edileusa com um lustroso: “BENÇA TIA!”

— Ajuda aqui, Cláudio! E você também, Robso! — ordenou Geraldo. Robinson já estava acompanhando a mãe e a tia para o interior da casa. Assustou-se com seu

nome mal falado na boca de Geraldo, mas voltou pra pegar as sacolas, enquanto Cláudio se a-garrou à trouxa. Quando subia a rampa seguindo Cláudio, viu um rapagão surgir do interior da casa, aparentava uns 17/18 anos. Sem camisa, de bermuda e chinelos, coçava o peito, articulou uma confusão de notas agudas e graves:

— Ué, voltaram rápido! Mãe e filho juntos ficaram sentados no sofá de capa alaranjada desbotada, aliás, na sala a TV

grande de LCD, o DVD, e o microssystem destoavam chamando a atenção nos móveis desbota-dos e desgastados. Mãe e filho estavam cercados por Glorinha, Geraldo e os seus dois filhos. O silêncio junto com o olhar de Robinson percorreu a sala.

Edileusa permaneceu de cabeça baixa o tempo todo. “Será que é uma nova vida?” Ora, quem sabe, não é isso que o seio familiar sempre promete? A família é uma associação de ordem na-tural, e religiosa, e essa se parecia com um lar. Geraldo é modesto, porém confiante e trabalha-dor, seus filhos seguem o mesmo caminho, assim como Glorinha, que mostrava um sorriso en-corajador à irmã. Até seu pesinho extra, parecia confortável, com aqueles olhos de gado magro investigando a casa, com medo de que um lobo surgisse de um canto e pulasse nele, mesmo assim parecia estar confortável, mesmo assim!

O que viria depois? Ora, dias e noites, semanas e meses, minutos e horas... A vida.

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No dia seguinte, os rapazes sumiram cedinho pra escola, Geraldo e Glorinha saíam para o tra-balho. Edileusa admirou a irmã no alto da vassoura, enquanto lhe dava as recomendações da casa, hora da chegada dos filhos, que não se preocupasse. Glorinha estava com cabelos bem amarrados para trás, de bandana dobrada e amarrada em torno da testa, uma enorme pochete na cintura, o uniforme e tudo o mais, o motivo da admiração de Edileusa. A irmã mais nova pa-recia algo bonito de se ver, saindo para trabalhar com o marido. Lembrou-se de tempos perdi-dos e fugidios. Ressentiu-se por achar graça do casal, em outra ocasião. Pois, a casa da irmã mais velha ainda era um emaranhado de sentimentos opressores que se enroscavam e escava-vam abismo sem fundo em sua alma, e por fim queria tampar a boca desse abismo. “Era vida nova!” — dizia para si.

Robinson foi acordado pelo cascudo da mãe e com a voz dela trovejando em seus ouvidos: — É feio dormir até tarde na casa dos outros! “Na casa dos outros? Mas não era um lar?” — Robinson guardou a questão para si, pra não

tomar mais cascudos. Por volta do meio-dia, os dois filhos de Glorinha voltaram da escola. César o mais velho pas-

sou a mão na enxada e foi capinar, Edileusa surpreendida ficou admirando o sobrinho, e vendo Cláudio agarrado nos livros da escola, ficou mais encantada com aquele lar. Quando deram du-as horas, Cláudio saiu para o trabalho de aprendiz. Enquanto, César agarrou-se numa barra de ferro que tinha chumbado com cimento latas de tinta nas extremidades. Preparava-se para o concurso da Prefeitura, que além de prova escrita e exame médico, os garis precisavam provar força física. Queria trabalhar de coletor no caminhão equipado com prensa.

— É trabalho pesado! — César dizia para tia Edileusa, numa confusão de notas agudas e graves, em ritmo frenético.

Mais tarde, ele empilhou um monte de entulhos no carrinho de mão e correu pra lá e pra cá, em zigue-zague, em linha reta. Organizou os pedaços de telhas, canos, cabos de vassoura, tran-queira toda escorada no muro.

No final da tarde, Geraldo e Glorinha voltaram do trabalho. Edileusa quis correr pra fazer a janta, se desculpando pela folga. Mas Glorinha riu, disse que não precisava que sempre trazia marmitas pra cada um. Geraldo elogiou César, notando o mato capinado e ensacado. Logo che-gou Cláudio, e a família se reuniu pra jantar.

— Ué! — Glorinha exclamou, vendo que faltou uma marmita pro Robinson. — Eia, preocupa não, irmã! — Edileusa replicou. — Eu como pouco, divido com ele! Dá até

gosto de ver essa família reunida! — disse em tom de alegria, em voz alta, vendo todos senta-dos com suas respectivas marmitas.

Glorinha e Geraldo sorriram orgulhosos. Depois que terminaram a janta, veio a barulheira de amassar marmitas. Ranger de cadeiras

sendo organizadas em torno da mesa. Edileusa e Robinson saíam do caminho de um, do outro. Deslocados foram parar na varanda. Glorinha, marido e filhos revezaram no banheiro, lavaram a boca e afins. Por fim, Geraldo sentou na sua cadeira de balanço na varanda, abriu a camisa e cofiou seus pelos imaginários:

— Esse Governo atual é muito bom, dona Edileusa! Não precisamos viver de caridade dos outros. Temos o que é por direito nosso. Entende essas coisas? Uma vez me disseram que cari-dade e solidariedade são coisas diferentes, e acredito que seja! Ora, pense: caridade é quando alguém rico te dá um troco no natal, enquanto solidariedade é quando alguém igual a você em-presta a própria ferramenta pra você trabalhar. Mas num adianta de nada se você num tem o que comer em casa, vai ter força? E outra, e se o imposto está caro... Entende? Por isso quero ser solidário com a senhora, dona Edileusa! Conheço gente que trabalha para uma empresa terceirizada que presta serviços pra Prefeitura. E podem arrumar um emprego! E olha, tem uma vaga, o que acha?

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— Ó gente..., mas eu não sei fazer nada, seu Geraldo! — É pra faxina..., e que mulher não sabe fazer alguma coisa, hein? — Geraldo disse e riu com

Edileusa. Robinson deslocado andava pra lá e pra cá, até que veio se escorar na mãe. Edileusa afastou

o filho: — Eia, o que o seu tio vai pensar?! Que não consegue se sustentar nas próprias pernas...?! — Quantos anos têm? — Geraldo perguntou pra Robinson. Robinson proferiu coisa ininteligível balançando a cabeça, dando a entender que não sabia.

Edileusa supôs umas datas, ano tal, por fim confirmou o ano de nascimento do menino com muita certeza. Geraldo balbuciou números, e contou os dedos, e espantado chegou numa con-clusão:

— Já tá beirando os 11 anos! Está passado da hora de frequentar a Escola. Tirar registro! Vou pedir pro César ver isso, numa hora que tiver disponível. Menino em casa num presta não..., dona Edileusa! Estando na escola num dá despesas em casa! Em casa fica comendo, es-traga as coisas... Quando é pequeno é uma distração boa, depois vão crescendo e desandam a comer demais. Graças a Deus, os meus já estão grandes e trabalhando!

— Eu vi! Coisa bonita de se ver, seu Geraldo! — ela falou e voltou-se para Robinson em tom zangado: — Vai vendo isso, peste!

— VAI COMEÇAR A NOVELA PAI...! — César gritou da sala. Geraldo pulou da cadeira de ba-lanço e correu pra lá.

A semana escorreu pelos dias, pontuada pelos minutos, e no final cada dia parecia com o ou-tro. A rodinha do carrinho de mão chiou todas as tardes, até que veio o dia da prova, e César não decepcionou ninguém. A comemoração foi festa em casa. Edileusa começou a trabalhar e voltava feliz. César conseguiu vaga na escola para Robinson, e começou a trabalhar no noturno como queria: pegar o lixo deixado nas portas das casas e comércio e jogar no caminhão equi-pado com prensa.

— É trabalho pesado! — disse com emoção em tom grave sem desafinar. — Trabalho ma-drugada afora... E ainda faço cursinho pré-vestibular pela manhã!

— E dorme como uma pedra até as 18hrs. Depois pula da cama, engole qualquer coisa e cor-re pra não perder a partida do caminhão equipado com prensa. — Cláudio completou orgulho-so com o irmão.

César tem como inspiração o tio Geovane, irmão mais novo de Geraldo que encontrou no trabalho duro de gari, a oportunidade para ter uma vida melhor:

— Trabalhando num período e estudando em outro consegui ser aprovado no vestibular para Educação Musical. Recentemente consegui ser transferido para uma função administrati-va para poder estudar...

— É motivo de alegria ver um irmão crescendo na vida — explicou Gerson, o irmão do meio de Geraldo e Geovane. — A ordem lá em casa sempre foi lutar por aquilo que queríamos.

Era um domingo quando os irmãos de Geraldo apareceram para celebrar a conquista do so-brinho César. Geovane de cabelo bem curto, e colado na cabeça trazia um violão preto a tira colo, acompanhado de namorada bonita e muito paparicada por Glorinha. Gerson justificou a falta da sua mulher, que ela estava estudando muito. Sentou-se ao lado de Edileusa.

— Você também trabalha com Geraldo? — Edileusa lhe perguntou. — Sim, somos a turma do GARY! — Gerson respondeu e riu, Edileusa acompanhou o riso

sem entender. — Com o meu salário eu invisto na educação da minha mulher, que estuda contabilidade —

Gerson continuou. — O nosso sonho, meu e da Regiane, é ter mais conforto, pra nós e pra nos-sos filhos. Temos um casal, e um rapa de taxo! O pessoal do serviço estranha, sabe? Acha que a Regiane pode me dar um pé na bunda, enquanto eu fico com o prejuízo, mas depois que a co-

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nhecem, sabe que ela não é dessas. É muito esforçada! Além do quê: temos filhos que amamos muito!

Geovane tocou todo tipo de música naquela tarde. E mesmo a cerveja não sendo regulada, como na casa de Jandira e Aurélio, ninguém ficou bêbado para dar vexame. Comeram bastante carne assada. Divertiam-se muito. Cada um contando uma história engraçada, outra de fundo moral que todos paravam para pensar, outras de cálculo que dava nó na cabeça de Edileusa. Robinson observava, às vezes de longe, outras vezes bem de perto, mas não entendia. Os pri-mos eram maiores que Marco, nenhum ficava fingindo que ia lhe bater. Pelo contrário, César te incomodava oferecendo refrigerante e carne. Não entendia aquilo. Na casa não tinha lugar pra se esconder, sempre César o achava em algum lugar e vinha oferecer alguma coisa pra comer, ou chamá-lo pra ver algum programa na TV, que era muito grande e deixava os olhos de Robin-son magoados.

Na escola era diferente, ninguém o via, senão quando a professora lhe fazia alguma pergunta e não sabia responder, então a classe toda ria e fazia troça dele. A professora reclamava que ele era desatento, e às vezes que ele não tinha jeito. No recreio ficava isolado, um dia reconheceu Marco vindo em sua direção, fugiu dele, em todas as ocasiões que via o primo fugia. Mas um dia, uma turma se reuniu para bater em Robinson e, foi o primo Marco que o tirou da surra. O que não resolveu, pois quando chegou ao lar apanhou da mãe Edileusa, levando surra dupla: por ter arranjado briga no pátio, e pelo recado da professora que insistia em ver Edileusa. Robinson tornou-se “o caso perdido”, tirava notas baixas, mas nunca eram suficientes para reprová-lo. E Edileusa nunca tinha tempo para atender os recados da escola que chegavam.

A Instituição Escolar caía como uma armadura enclausuradora de movimentos e sentimen-tos sobre Robinson. Parecia reforçar sua vontade de fuga. Imaginava-se socando a professora, mas tinha medo de fazê-lo. Pois, achava que era uma falha sua. Nem César, muito menos o i-nexpressivo Cláudio eram assim. Robinson pensava: “Isso é coisa de Marco que não presta!” E sentia muita dor de cabeça, as letras eram miúdas, a lousa ainda maior que a televisão, bem velha, com manchas de pichação, talvez por isso não conseguisse despertar dentro de si vontade de compreender aquilo.

Às vezes a professora parecia um pastor alemão. Robinson tinha medo de encontrar Marco no recreio. Um dia acabou fazendo xixi na calça, lembrou-se do tio Aurélio, e de seus dedos, por conseguinte do sangue vermelho de sua mãe. Chorou! Foi liberado mais cedo nesse dia. Mais um recado enviado, mais uma surra dupla.

Edileusa pelo contrário, chegava muito feliz, falando bem do seu ambiente de trabalho, e às vezes até arriscava contar algumas bobagens cabeludas que escutava por lá, e todos riam. Esta-va cheia de solidariedades com o cunhado, ajudava nas despesas da casa, até ajudou a irmã a trocar de carro por um mais novo. “Só estou retribuindo!” — dizia quase cantando em tom feliz e jovial. Estava adorando a nova vida, única coisa que chateava o dia era o filho sem jeito, “o caso perdido”.

Robinson não reconhecia para si um lugar nessa nova vida. Até o tanque desse tal lar guar-dava coisas super bem organizadas, não dava pra se esconder ali. No quarto puseram um beli-che que Robinson dividia com Cláudio ocupando a cama de baixo. O guarda-roupa colado na parede, cheio de coisas, como no tanque organizado, não oferecia esconderijo. Além do quê, seu corpo crescia e não correspondia ao que pensava de si. Na escola, as garotas faziam-lhe lem-brar das caricias de Aurélio com Petúnia. Um dia, uma dessas garotas veio lhe falar, mas ele vomitou e acordou com febre na outra manhã.

— Zzzzshaahh... — fazia Robinson na cama de baixo do beliche com febre alta. Cláudio ouviu ainda deitado na cama de cima, desceu e percebeu que o primo passava mal.

Chamou a tia Edileusa e os pais, que vieram ver Robinson. Cláudio sentou-se na cama do irmão, que fica ao lado do beliche. O sol ainda dormia, aguardava hora para acordar. Edileusa ficou

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sem jeito, tinha que ir trabalhar, passou a mão no rosto, repreendia Robinson. Glorinha foi fa-zer café, enquanto Geraldo deu solução apaziguadora:

— Não é culpa do garoto, ó gente! Cláudio ajuda seu primo a trocar de roupa!... Deixo a se-nhora com o garoto no CAS, é o jeito. É só a senhora pegar atestado de acompanhante com o médico, que não tem problema no emprego, dona Edileusa.

— Ah! mas é que hoje é aniversário da Eliane... — Edileusa lamentou entre seus botões. — As menina lá té-ia comprar bolo!

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A recepção do Centro de Atendimento à Saúde da Prefeitura estava cheia e barulhenta. As pes-soas reclamavam, doentes e acompanhantes. Quando um homem revoltou-se junto às recep-cionistas, muito alterado tonteou, uma delas se estressou e ameaçou chamar o Guarda. A guer-ra de nervos piorou o quadro do homem, que acabou despencando no chão em cima de sua mochila. A recepcionista gritou pelo Guarda, que veio pedir para o homem levantar-se e voltar para seu lugar, tentou levantá-lo pela camisa, o homem debateu-se, o Guarda deu um chute de leve nas pernas do homem. O homem vomitou. O Guarda saiu. Voltou usando luvas cirúrgicas e máscara, pegou o homem pelos braços e saiu o arrastando. Fraco, o homem se debate mais uma vez, mas é arrastado pelos corredores até ser jogado numa sala.

— Ele foi tratado como um porco! — alguém exclamou indignado. Outro gritou para que as pessoas reagissem, mas ninguém tomou uma atitude, e muito me-

nos ele. — Ninguém filmou? — uma mulher replicou. Assistiam a barbárie, através de suas ilhas individuais de febres, de dores, e nervo. Edileusa

esticava-se toda para ver o que estava acontecendo lá na frente. A paciência desaparece... Eram generalizadas as reclamações por melhoria, se queixam do

péssimo atendimento: da dificuldade de marcar consulta médica, da falta de especialistas e das longas horas de espera.

— Há meses, estou tentando me consultar e não consigo. Faltam especialistas! — diz uma moça atrás de Edileusa.

— Já cheguei há esperar cinco horas para ser atendida — completou outra moça. — Tudo aumenta de preço. Enquanto isso, os homens tornam-se mais baratos! — um ho-

mem carrancudo disse irado. Angustiada, Edileusa não teve outra saída, senão esperar cerca de três horas e meia para ser

atendida, para ouvir a médica mandá-la levar o filho para casa, porque segundo ela, Robinson estava bem. Robinson olhou na mesa da médica, vazia, não tinha pirulitos. Ganhou uma injeção na bunda, e uma cartela de comprimidos.

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Voltou para a escola quase uma semana depois. Na entrada achou uma moeda. Quando saiu para o recreio desembrulhou o pirulito, que comprara com a moeda achada. E saiu no pátio, exibindo a haste branca. Notou que os colegas de escola corriam para uma parte do pátio, cor-reu também em direção da muvuca, acreditando que fosse briga, mas soava de lá musica hip-hop. Esgueirou-se entre os colegas até chegar à frente e ver o grupo de hip-hop fazendo seus malabares dançantes. Cruzando pernas se jogavam no chão rodopiando ao ritmo da batida hip-hop que vinha de um aparelho de som.

Um rapaz esfregava os dedos no vinil. Todos usando roupas características do movimento. Robinson se encantou à primeira vista, viu um deles imitando robô no ritmo break dance. Os

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colegas em volta tentavam imitar. Do robô, o rapaz chacoalhou-se todo no ritmo da batida, imi-tando Robinson passando mal, decerto. Robinson riu, e tentou imitar. Rolou até Michael Jack-son remixado, cheio de squashes. O Moonwalk fez Robinson se apaixonar em definitivo.

Quando a apresentação foi encerrada, e repercutiu no pátio a última batida de hip-hop, a professora de Ed. Física anunciou que as notas daquele semestre seriam baseadas no desem-penho dos alunos nas aulas de hip-hop ministradas pelo líder do grupo, sob sua supervisão. Os alunos foram ao delírio. Robinson estranhou o ar raspando na garganta e formando sílabas na boca.

Não teve pra ninguém. Robinson acompanhava todos os passos e trejeitos ensinados pelo lí-der do grupo hip-hop. Acompanhava sem ouvir vozes, só a batida e os squashes. Não parava enquanto outros eram ensinados. Parecia comunicar-se com a vida como portador da própria energia. Suas pulsões subjetivas estavam postas no ritmo, nas coreografias. Com sua mente em ligação direta com o corpo, a semana foi de muito top rock, foot work, e os freezes e power mo-ves. Moinho de vento: os giros tendo a cabeça como apoio. Dominou tudo, mas gostava mesmo do top rock e os freezes. Pediu várias vezes música do Michael Jackson, o “professor” atendia sempre, pois via que Robinson estava dominando o Moonwalk.

O semestre como moinho de vento foi de muito top rock, foot work, freezes, Power moves. E MOONWALK!... Robinson foi com 10 em Ed. Física, porém ameaçado pelos números, raízes, le-tras e alelos... As demais notas eram vermelhas.

Quando o grupo de hip-hop se despediu, Robinson quase chorou em público. E ficou sentido porque o tanque de lavar roupas no lar não oferecia refúgio. Sentiu que a partir daquele mo-mento, voltaria a ser um idiota retardado, surdo e mudo. Afinal, era isso que as autoridades competentes, em sua vida como um todo, fazia-lhe sentir. Despreparado para o exercício da cidadania, que essas mesmas autoridades diziam ser inerentes à pessoa. Não se via no direito de contestar critérios avaliativos, sem sequer conhecer as instâncias escolares superiores. O que faria?...

Descobriu maneira de cabular aula, se escondendo no banheiro na hora do recreio; quando a aula retornava: Robinson ficava treinando o top rock, os freezes e o Moonwalk! Mas logo foi descoberto pelo Guarda que guardava a escola.

No sábado pela manhã houve a despedida oficial, quando conheceu Marcelo. Um rapaz de estatura mediana, na mesma faixa etária de César, porém aparentando mais velho. Os cabelos bem pretos brilhavam penteados à lá John Travolta nos Embalos de Sábado à Noite, uma mexa caia sobre a testa, e Marcelo falava balançando essa mexa especial. Robinson tinha executado seu top rock, os freezes e encerrou com Moonwalk.

— Véio, tu manda hein...! — exclamou Marcelo. Robinson gesticulou um obrigado com pouca voz. — Meu nome é Marcelo, e o seu? Robinson gesticulou seu nome com pouca voz. — Robson?! — RÓBIN-som! — RÓBIN! Vou te chamar de Róbin!... Como o companheiro do Batman... E aí, como ele você

quer vingar os pais com muito tripsrropssx...? — Marcelo falou e riu imitando os freezes de Ro-binson.

Um dos integrantes do grupo de hip-hop veio e puxou Marcelo abraçando-o pelo pescoço. Falou no ouvido dele, Robinson entendeu que o B. Boy repreendia Marcelo, e que fosse embora; que iria “sujar” para eles; pediu compreensão. Marcelo disse que compreendia, na moral; tam-bém falando no ouvido do B. Boy que os respeitava, e concordava em ir embora. Ambos tensos foram diplomáticos; e não chamaram atenção.

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— Falousss... Róbin!... Massa te conhecer! — Marcelo exclamou com um sorriso de um canto só, e foi embora.

E quando Robinson foi embora para o lar, viu numa esquina Marcelo com Marco. Marcelo encostado num carro parecia estar brigando com Marco. Marcelo deu um sopapo na cara de Marco, Robinson abaixou a cabeça assustado e acelerou os passos. Quase correu para virar ou-tra esquina e, torceu para não ser visto por nenhum dos dois, e não foi, chegou são e salvo em casa. Só faltava ganhar uma surra, mas como a mãe Edileusa saberia disso? Suspirou aliviado.

>> <<

Não era só o Robinson que ia mal com as notas. A escola também ia de mal a pior, com notas vermelhas na Secretaria do Estado. Um colega de outra sala agrediu um dos professores, cha-maram a PM. Robinson pensou que fosse Marco, mas não era. A escola estava toda pichada, o Guarda pegou o pichador, mas depois foi repreendido à noite pelos comparsas do pichador. Estudava mais de 200 alunos ali. Às vezes de manhã a direção encontrava sala com carteiras quebradas, pichação em paredes e lousas. Sofria ação de vândalos sempre. Estes Roubavam TV, computadores, reatores, fios, as lâmpadas e até a escada. E por isso às vezes não tinha aula. Os professores reclamavam do salário, das agressões tanto de alunos e pais, quanto do Estado. Alguns dos professores, taxados de subversivos, eram transferidos, ou sumidos... E por tudo isso numa manhã declarou-se greve!

ESTAMOS EM GREVE!

Nós estamos parados no tempo Não sabemos para onde correr

Estamos todos separados Nessa luta para sobreviver.

Solte seu grito no ar

E sentirás que tudo vai mudar Chegou a hora de tudo mudar

Os submundos ão de se acabar!...

“Ímpeto” (A Chave do Sol)

O professor não quer ser mais um dispositivo alienador. Ora!... A Televisão já não cumpre es-te papel?... Então o Professor deve ser o oreia que prepara a argamassa do poder?!... Os Profes-sores não querem se calar, para eles chegou a hora de se juntar e gritar. E não terão medo do que enfrentar, pois não deixam se levar!... Um minuto além!... Então, num minuto além se en-contram! ............................................................................ Tudo aumenta de preço. Enquanto isso, os homens tornam-se mais baratos!

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A confusão é geral. Alguns se desentendem com outro, não concordam com frases termina-

das com Lênin. Que o comunismo matou muita gente, que o muro de Berlin caiu! A manifesta-ção foi parar nas ruas, nos terminais e estações. Foram para Câmara carregando cartazes bem escritos, panfletos. Foram para Assembleia. Policiais militares cercam, reprimem, e por fim dispersam os professores civis com spray de pimenta, cassetetes e muita força bruta. Assim, como num passe de mágica, lideranças foram compradas, por isso revoltaram-se com o próprio sindicato, desfiliação em massa. Ocupam a Câmara, mais uma vez policiais militares cercam, reprimem, e por fim dispersam os professores civis com spray de pimenta, cassetetes e muita força bruta.

Essa violência militar desnecessária, na rua ganha seu ápice, e só faz dar mais força: indig-nados, os manifestantes ficaram ainda mais revoltados contra o Estado. Receberam apoio da #frente contra o aumento da passagem de ônibus. Então, os policiais agiram de forma ainda mais truculenta. Com aparato de guerra de sítio. Parecia que o Estado havia declarado guerra contra o próprio povo, ou pelo menos contra uma parcela deste — que se descobriam como agentes políticos em luta, como se encontrassem na rua a Ágora ate- niense.

Os policiais, articulados militarmente, mantiveram um estudante imobilizado com a cara no asfalto — era de tarde, horário mais quente. — O professor veio ao socorro do aluno imobiliza-do; alegou que estavam em seu direito de protesto. O policial militar disse que então, fossem para outro lugar, porque ali... imaginem, atrapalhava o trânsito, o direito de ir e vir dos cida-dãos de bem. São capazes de ferir gravemente vinte, trinta pessoas para salvar uma estátua, até matar.

Ora! O monumento pode ser restaurado, uma vida não! A manifestação é justamente pelo di-reito de ir e vir do trabalhador, ora! Sem ser explorado! Ao que parece, não vale mais a pena agarrar ladrões! Começam a prender gente honesta...!

A música do Gabriel, o pensador ecoou no terminal de ônibus: Até quando você vai levando porrada?!

— Esquecem que o transporte urbano para todos é uma concessão pública paga por todos e, por isso pagam dobrado, quer dizer: o contribuinte, também é o consumidor?!

— Chegamos ao ponto de pagar pra trabalhar, e não temos o direito de contestar?! A quem querem enganar?!

— Ora! Os que paga dobrado! ............................................................... Levanta aí que você tem muito protesto pra fazer!

Ninguém levanta. Empurram-se como gado marcado, na engorda, na fila para o abate. É o medo de perder o emprego e para isso não acontecer preferem pagar dobrado! E ainda tem a prestação da TV, da geladeira, do microssystem, e etecétera tudo novo! Quem vai pagar se per-der o emprego?! Os senhores bancos comem nossas vísceras se isso acontecer...

“Nossa...!” — uma mulher faz o sinal da cruz, “MISERICÓRDIA-ÓH-PAI!” [?]. — “Basta que um trabalhador se manifeste dentro de uma fábrica, basta que um trabalhador

desperte nos companheiros espírito de liderança para ser mandado embora. Basta que um tra-balhador fale algumas palavras mais agressivas para ser dispensado. Basta que um trabalhador se defina ideologicamente para ser preso. Eis, aí, algumas dificuldades que os trabalhadores enfrentam.” — expõe o ex-presidente Lula. — “Somente perdendo o medo de perder o empre-go, somente perdendo o medo da repressão (militar), a classe trabalhadora conseguiria subir alguns degraus para chegar ao lugar que é dela dentro da sociedade...” — disse como dirigente sindical à Revista: Encontro com a Civilização Brasileira em 1979.

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No espreme-empurra para dentro do ônibus, reclamam: "tá ruim, tá cheio, não presta, já fui roubado, tá caro". — Mais uma semana! Besta cargueira enfurecida! Isso é a morte, a semana é uma foice! Odeio segundas-feiras, e todas as feiras são insuportáveis! — Que sentido tem isso?! Nem pastel, nem garapa?! O lucro é todo seu?! Nem pão de queijo, nem pão com montanha de presunto, nem tapioca, nada?! Nadica de nada?! — Aguente que a manhã passa rápido. Logo o apito anuncia o almoço, o final de tarde, o final da semana, o final do mês. Depois que pagarmos os senhores bancos, veremos o que sobra. Por 15 dias ao menos dá pra ter o luxo de um bom café da manhã, mas café simplesmente não! — E o manifesto passando por ali impedindo os ônibus de circularem, grita o rebanho: — "Protesto é coisa de vagabundo!"

— O que querem então, viver como gado? — os manifestantes replicam em coro. E outro, mais exaltado:

— "Vagabundo é você que não tem coragem de enfrentar o Governo, seu parado... Seu bos-ta!"

A manifestação passa... Os burros-de-carga voltam a servir. Ora!... Tem coisa pior prum burro de indústria & comércio do que ficar sem carregar carga, que já é tão acostumado?... E os policiais até poderiam se juntar, pois também são servidores públicos, assim como os professo-res: pagos por todos nós. Mas, a diferença é militar... Ora!... Isso não é o que o governo fornece às indústrias & comércio?!...

Enfim, todos nós pagamos por toda essa loucura. E mais louco é quem descobre a trapaça. E no meio disso, satisfazemos os nossos desejos; ligados pelo apetite: a sensual Eros, e o silencio-so Anúbis. ............................................................ Payback’s a bitch motherfucker!

Desconsolados e apáticos. Porém, com o sangue ainda em processo de fermentação, que co-meçava a curtir revanche. Os professores conscienciosos convenceram a si em voltar sua aten-ção à escola; que a conscientização deveria ser em sala de aula; mostrar aos alunos os seus re-ais direitos. Sentiam que só assim poderiam romper a barreira de discursos entre manifestação e população. Deveriam saber lidar com os reaças, que sob ordens da imprensa marrom e Go-verno, com suas rosas brancas, deslocam e inviabilizam outros discursos.

Robinson sentiu-se ainda mais perdido entre esses e outros discursos de mão única. A pro-fessora de História parecia compreender o que se passava com ele. Motivava-o, queria ajudá-lo. Ele gostava dela... Mas, para Robinson toda aquela Instituição aparecia-lhe como um pesadelo; como o pastor alemão de Seu Nogueira metendo medo... ................................................................ Just another brick in the wall!!

As aulas voltaram no mesmo signo do caos. Dessa vez não teve mais como fugir. Enfim, che-gou a intimação da Instituição Escolar à Edileusa, pedindo comparecimento à escola, com pena-lidade de suspensão do aluno, caso o responsável não comparecesse. Robinson levou uma sur-ra. Edileusa em prantos levou as mãos ao alto pedindo clemência divina:

— A falta de pai não tem nada que remedeie! — Me deixa ver essa intimação, dona Edileusa — Geraldo pediu com pena da cunhada. Geraldo leu tudo pontuando com a cabeça, balbuciando, cofiava seus pelos imaginários no

peito, por fim espiou Robinson enfático, fazendo dobras no papo, e bico de pato: — Pode deixar que eu vou lá pra senhora, dona Edileusa. E esse rapazinho vai começar a

tomar jeito sim!... — disse e ajeitou a calça na cintura. — Pena que César não tem tempo mais, para nos ajudar nesses problemas...

Só que Geraldo não pôde ir à escola no dia seguinte. Ferido por um pedaço de vidro deixado em um saco de lixo, cujo resultado foi três pontos na mão e 15 dias de inatividade.

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— Os cidadãos de bem deveriam ser mais humanos e educados ao colocar seu lixo para a co-leta. Consciência é uma demonstração de cidadania. Nós somos trabalhadores. Não seria mal recebermos, como agradecimento, consideração. — Geraldo desabafou. — Vai ter que ficar pra outro dia o problema do Robinson, dona Edileusa...

— Ô Pai do Céu!... E ainda se preocupa com o filho dos outros, seu Geraldo? — Edileusa arre-feceu, e levantou as mãos agradecendo a Deus por ter um cunhado tão bondoso.

>> <<

Um pombo pousou na calçada. Pata rosada quebrada, pendurada, mancava. Sujo e doente. Co-mo um mendigo ciscava ao tempo que perscrutava em volta desconfiado. Seu papo esverdeado reluzia como uma varejeira. O pombo perscrutava, cismado com um rapaz que te observava, deitado aos modos e aspecto de um mendigo, vestindo um moletom preto com capuz. O pássa-ro desconfiava se o rapaz estava vivo ou morto, deitado com outros iguais, e como o pombo, todos moradores de rua. O rapaz notou um fiapo de sacola plástica enroscada na pata do bi-cho...

>> << Robinson reparava a mão enfaixada de tio Geraldo. Esperavam para falar com a diretora na pequena recepção da escola. A diretora apareceu e pediu para que apenas o tio Geraldo entras-se.

A diretora explicou o que estava ocorrendo na escola, com Robinson, enfim, que teria sido melhor a mãe do garoto comparecer e não o tio, mas já era um progresso. Geraldo não compre-endia o problema de Robinson, então a diretora mandou Robinson entrar e lhe deu um papel. Pediu para o garoto ler em voz alta um trecho que apontou. Depois de vários “és” Robinson iniciou sua leitura:

— E-escrevi por que-que quero tonto le fanar a minha três Teresas... pa-pa pra príncipe da condessa eu tenho que pegar teu bruto... a ti bruto... — Robinson foi interrompido por Geraldo que tomou o papel de suas mãos agoniado com sua leitura. Procurou com os olhos frenéticos o trecho...

— “Escrevi porque quero tanto lhe falar de minhas tristezas. Para princípio de conversa, eu tenho que pagar tributo [!]...” — se tivesse um chapéu azul desbotado, Geraldo tinha arrancado da cabeça e amassado. — Que isso?! Moleque burro!

— Acalme-se senhor Geraldo... — apaziguou a diretora. — Pode esperar lá fora Robinson!

Robinson saiu, com o rosto quente de vergonha. E ficou com medo de voltar pra recitar ta-buada. Mais medo ainda quando chegasse ao lar, e o tio contasse para sua mãe. Ia ser esfolado como Marco, só que pelo tio Geraldo, senão por César, porque o tio tava mal da mão. Mas aca-bou sendo mesmo pela mãe Edileusa, que pontuava as pancadas recomendando que ele pedis-se desculpas à diretora da escola e que ia tirar 10 nas outras matérias...

— Como fez naquelas danças de marginal! — ela exclamou enfurecida, e o grito ecoou tri-nando alto no ouvido de Robinson.

A noite cobriu o céu e se confundiu com o dia seguinte. Edileusa levantou com corpo pesado, pesarosa. Acordou Robinson com o cascudo e tapas de costume:

— Você está fazendo isso de propósito Robinson...! Não gosta de ver a minha felicidade, né?! — puxou Robinson da cama pelos cabelos e lhe deu um beliscão doído no braço, um sopapo na orelha, depois saiu do quarto batendo os calcanhares.

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As lágrimas desceram queimando as bochechas de Robinson — escorreram em linha ao can-to da boca, sentiu o sal amargo delas na língua. As piscadelas de não existência, como TV mu-dando de canal, faziam entrever seus sentimentos diluindo-se. Sentir sua cabeça como atraves-sada por uma broca, que rosnava. Procurou em torno de si o pastor alemão do Seu Nogueira... ...................................................................... Is there anybody out there?

Cláudio entrou no quarto, saído do banho; ficou atônito em ver o primo chorando. Robinson enfiou-se numa bermuda tactel preta de estampa floral cinza. Vestiu camiseta velha, sem ver cor ou estampa, enfiou os pés no chinelo e saiu sem levar materiais escolares, nem documen-tos. Queria apenas sair pra rua. No desespero só marcou o rumo da escola. Pensou em entrar lá, e procurar a diretora, se ela negasse seu pedido: ia se ver com seus punhos!

Mais tarde, Edileusa voltou ao lar na hora do almoço. Geraldo, na varanda, lia jornal balan-çando na cadeira. De inatividade por conta dos três pontos. Viu Edileusa entrar. A cunhada re-clamou dor de cabeça, por isso veio mais cedo. Então Geraldo disse que podia fazer uma mas-sagem, “com uma mão!” Disse, e completou: “Sou bom nisso!”

Robinson não foi assistir à aula. Nem procurar a diretora, ficou sentado no meio fio próximo à escola, aborrecido. Viu Marco, seu primo, aproximar segurando uma latinha de alumínio vazi-a, sentou-se ao seu lado. Robinson afastou-se um pouco do primo, que havia se sentado muito próximo. Marco muito magro parecia ter o estômago colado nas costas, sujo, vestido de ber-muda tactel, blusa de frio de moletom bege camuflado, mantinha o capuz nas costas, de cabelos castanhos e bochechas murchas.

— Você não quer sentir meu corpo, priminho? — perguntou Marco. — Parece que está abor-recido...

Robinson olhou com reprovação o primo e lembrou-se do que este havia lhe dito na ocasião em que se conheceram: “Porque não sai daí? Penso que você é doente... surdo?... mudo? O que há com você?... retardado?” — e pela cara de dor que Robinson fez, decerto replicou a lembran-ça argumentando: — “Devo ser, nem sei ler, penso que sou mesmo um burro... retardado? Devo ser!”.

Marco furando a lata de alumínio, com pedaço de ferro qualquer, continuou: — Quando estamos aborrecidos... — disse o primo sem o-

lhar na cara do outro — é bom sentir o calor de outro corpo, sabia? Podemos nos abraçar... Se quiser!

— Sai fora, qual é?... Por fim, curioso perguntou ao primo Marco: — O que está fazendo? — Um cachimbo, ora! — Cachimbo?... Pra quê?... Marco sacou quatro pedras brancas do bolso e mostrou para Robinson. — Te dou uma! — O que é isso? — perguntou Robinson olhando curioso à pedra na sua mão. — Vem comigo que te mostro. — Marco levantou. Robinson ressabiado com o primo, não levantou para acompanhá-lo. — Ah, anda logo! — Marco açodou, e não esperou pela decisão de Robinson, que acabou le-

vantando e acompanhando o primo. Andaram para longe, e Marco não parecia ter um destino exato, até que voltou uma rua de-

serta que haviam passado. Decerto da primeira vez que passaram, Marco averiguou o movi-mento. Nesta rua havia um lote tomado pelo mato, e uma casa semidemolida no fundo. Marco entrou rápido desaparecendo no mato, Robinson com medo logo atrás. No interior sujo do que um dia foi um lar, Robinson viu um colchão velho, sujo, outras coisas que não conseguiu distin-

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guir, que pareciam sebosas e desfazendo-se, aqui e ali em meio a latinhas de alumínio queima-das com furos, igual ao que o primo carregava. Num canto qualquer, viu camisinhas que pareci-am sujas de bosta, mosquitos acinzentados e grandes, e adiante um rato morto. Acompanhou o primo a outro cômodo, não muito diferente, mas menos sujo. Tinha alguns panos no chão, no canto, que pareciam estar limpos, donde Marco se sentou. Robinson sentou-se ao lado do pri-mo.

— Me dá a pedra, deixa eu te mostrar como ela funciona. Robinson entregou a pedra que tinha ganhado há pouco. — Logo você vai entrar num mundo onde não existem aborrecimentos, priminho! Robinson nunca tinha andado para tão longe, sem o consentimento de sua mãe Edileusa, se-

não uma vez... Edileusa corria pelas ruas desesperada gritando pelo filho pequeno, quando o viu subindo a

rua, feliz como se trouxesse pedras preciosas embrulhadas na camiseta na altura do peito. Edi-leusa correu até ele, deu-lhe tapas com força, brigou e esbravejou contra o pequenino, que para se justificar, disse que tinha catado coisas valiosas que poderiam ser vendidas para pagar o aluguel, e para que ele não fosse comido pelo pastor alemão de Seu Nogueira. Com violência Edileusa bateu nas mãos do pequeno, desfazendo o embrulho da camiseta e dezenas de tampi-nhas de ferro caíram no chão. Edileusa em prantos levou as mãos ao alto pedindo clemência divina. O pequeno imaginou um trovoar cálido fabuloso... Refletia nos olhos de Robinson o fogo do isqueiro de Marco, ele esquentava o fundo da latinha e do buraco que tinha feito saía um vapor branco sinuoso que Marco aspirava. Com a boca em gesto de ósculo, o primo parecia bei-jar uma divindade. Enquanto a pedra, receptáculo desta divindade, sendo queimada, estalava: Crack! Crack! Crack!...

Marco levou a lata à boca de Robinson que chegou para mais perto do primo e imitou o gesto oscular, aspirando a divindade, enquanto a pedra estalava: Crack! Crack! Crack!...

Em segundos a divindade pálida atravessou seu cérebro, como uma bala rompendo os limi-tes enclausuradores ao qual foi submetido à vida inteira até aquele momento. Um efeito esti-mulante e, violento, tomou posse de seus sentidos, seguido por uma sensação de abandono do corpo, de elevação, de purificação. Então, alçando voo como uma fênix atravessou um relâmpa-go repentino. Minutos acima do relâmpago era noite sinistra, e úmida como numa caverna. Um imenso dragão tomou forma entre o vapor pálido. Feito do mesmo vapor, como uma enorme serpente com asas semelhantes às de um grande morcego, abraçou Robinson, que então flutu-ou em meio a um novo sentimento, com os olhos postos nos olhos terríveis do dragão. O mais antigo dos monstros vomitava fogo. Mais uma vez refletia nos olhos de Robinson o fogo do is-queiro de Marco, que esquentava o fundo da latinha e, do buraco que tinha feito, saía uma lín-gua sinuosa. A pedra estalava: Crack! Crack! Crack!...

Robinson sentiu-se do tamanho do monstro, mau e destruidor, um emblema real do pecado, pois havia transgredido a lei, as regras, e as prescrições das autoridades soberanas que há mui-to lhe oprimiam, e, não lhe davam nenhuma chance de obter a querida dignidade. Então, agora, ele imaginava que a tomava para si, enquanto a pedra sendo queimada estalava: Crack! Crack! Crack!...

Mais tarde, dentro da noite, no cômodo menos sujo, onde um dia foi um lar, hoje um arre-medo de casa sem teto e semidemolida, Robinson ressonava debruçado sobre os panos que pareciam estar limpos, com o rosto colado no chão sujo. Tremia de frio, e ressentido com a própria hostilidade inconsciente que experimentara a pouco, via a linha que o ligava a mãe Edi-leusa totalmente destruída e perdida. Decerto, sentia que o colo materno nunca representou amor ou segurança, sentia que sempre havia sido um peso extra, e em seu íntimo culpava as contingências da vida.

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A luz acinzentada da lua atingia o interior da casa por um facho, e na linha do olhar perdido de Robinson, colado ao chão, surgiu um ratinho esgueirando-se entre a sujeira, cheirando a luz acinzentada, levantou-se sobre as patas traseiras e com as dianteiras, que pareciam mãos de gente, tateava a fumaça do cigarro que o primo fumava. Vendo que Robinson tremia de frio, Marco levantou-se, o ratinho assustou-se e correu sumindo entre a sujeira. O primo enfiou a mão num monte de trapos velhos no canto do cômodo, e tirou uma blusa de frio velha de mole-tom preto, e entregou ao Robinson. Ajudou o primo a vestir a blusa, e Robinson dessa vez acei-tou o abraço do primo. E abraçados passaram a noite.

E quando das entranhas da noite saiu o dia, Robinson puxou o capuz da blusa velha de mole-tom preto cobrindo a cabeça, vendo o dia se misturando com a noite. Enquanto, seu cérebro, a usina produtora de desejos, agora órfão em sua essência, clamava pela vinda da divindade para preenchê-lo novamente, e, o esquentar com seu terrível vômito de fogo.

Suas lembranças coagularam como um cranco na parede neural — reminiscências doloridas, que lhe produziam noite profunda. — Seus sentimentos diluíam, e circulavam pesado em suas veias. Seu sistema nervoso tornou-se um circuito estremecido por corrente elétrica; como se houvesse tocado os fios de uma bateria galvânica.

A FLORESTA ESCURA

Did you see the frightened ones? Did you hear the falling bombs?

Did you ever wonder? Why we had to run for shelter?

When the promise of a brave new world Unfurled beneath a clear blue sky...

“Goodbye blue sky” (Pink Floyd)

S DIAS se confundiram com as noites. Robinson nem reparava a decadência de si perante as coisas. O dia e a noite confundidos somavam-se e o resultado eram semanas que se de-

sembocavam em meses soturnos como uma noite profunda. Perambulava, gastando chinelos, e por fim gastos e arrebentados; ou simplesmente esquecidos em algum lugar, não lembrava mais o que foi feito deles. Era sempre noite dentro de si, mesmo que o sol brilhasse. Nessas noi-tes profundas em que punha seus olhos nos olhos do Dragão, santíssima divindade que preen-chia seus desejos obtusos.

Quando estava fora do mundo encantado das pedras, Robinson sentia-se num colchão velho e não tinha coragem de se esticar sobre ele. Sentia-se uma persona non grata, um cão velho sem jeito, que se abandona na rua. O mundo não tinha lugar para ele — o mundo do Lar! Pois, havia

O

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encontrado um melhor, onde visitava seu deus, o Dragão! E sabia onde o encontrar. Robinson queria ouvir o crack crack crack que o satisfazia... Quando se sentia grande e poderoso.

O mundo real, repleto de perigos e cães mais assustadores que o pastor alemão de Seu No-gueira, abria-se em torno de Robinson que o sentia mais velho que si. E não podia deixá-lo des-confiado desse seu sentimento; — teria que enganar o mundo, se não quisesse ser devorado por ele.

Mesmo assim, o aqui fora parecia ser libertador, diferente do enclausurador lá dentro que se parecia com os dedos do tio Aurélio. O aqui fora, dentro da noite, era como as asas do morcego se desfraldando e revelando dentro de si o Dragão, trazendo o poder concentrado que se acha-va dentro do seu peito. Então, poderoso, protegeria a si mesmo...

A poeira de piche das ruas tomava seus pés e pernas. Estava em suas mãos e braços. Robin-son cobria os membros superiores com o moletom preto, parecia projetar-se do asfalto. Amon-toava-se entre outros como ele, projetados do asfalto, feitos da poeira de piche, parte obtusa da cidade cinza que cheira a gasolina. Um ou outro não veste moletom, e não cobre a cabeça. Um ou outro era diferente, vinha de seio abastado — são os mais encrenqueiros. — Enquanto Ra-fael, era de seio pobre...

Robinson e Marco, acompanhando Rafael, esgueiravam entre as casas e os lotes baldios em ruas de terra. Pulavam os muros dos quintais. Roubavam caldeirões e bacias de alumínio. Vas-culhando a cata de fios ou placas de cobre, acreditando que o dono da casa não se encontrava. Porém, em uma casa, uma mulher robusta saiu espavorida rodopiando uma frigideira. Rosnava, mas tinha muito medo em seus olhos esbugalhados. Os rapazes correram dela, desistindo de roubar um botijão de gás, só carregando as coisas que já haviam ensacado. — A mulher ainda acertou a cabeça de Robinson e as costas de Rafael, que se virou rápido e tomou a frigideira das mãos dela. Ela imediatamente parou de rosnar, surpreendida, acreditou que o rapaz se vingari-a; — só que não...

— Obrigado pela panela, minha senhora! — Rafael disse certificando-se do peso da frigidei-ra.

Evadiram-se pulando muros e sumiram entre as casas e lotes baldios. Subiram correndo ruas de terra, e voltaram para o asfalto.

— Panela boa, maninho — dizia Rafael a Robinson — é pesada, saca? Quanto mais pesada, mais troco rende! Depois a gente dá umas volta no centro. Esses letrero de prédio é de cobre, saca? Cobre vale uns troco massa!

Venderam as coisas no ferro-velho. Ao saírem de lá, pegando o caminho da boca, Marco e Rafael perceberam o galo roxo avermelhado na testa de Robinson, e riram. Robinson também riu feliz por tudo ter sido uma aventura. Definitivamente, não queria voltar para o seio que o reprimia. Visto como as pedrinhas brancas o reconduziam ao calor de sua divindade, o Dragão! Trazia-lhe satisfação direta. E ali perto do seu Dragão, não seria um rato importunando a mãe, um peso na vida dela. Não estragava mais o dia dela, enfim, sumiu aliviando o peso de sua vi-da... ............................................................... Why we had to run for shelter?

Entre a muvuca feita pela poeira de piche das ruas, camisas de time de futebol estrangeiro, moletons velhos e chinelos; — robinson, marco, rafael dividem as pedras encantadas. O peque-no empresário conta o dinheiro ao tempo que chegam mais dos seus lânguidos fiéis consumi-dores. Entre a muvuca rafael, marco, robinson se confundem com a poeira de piche das ruas e becos na cidade que cheira a gasolina. Conseguiram o que queriam e se afastam do plano geral. Seus olhos faíscam satisfeitos com a substância mágica, e com infusão de individualidade se afastam do plano coletivo preenchendo o vazio das ruas.

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Vigiam carros por uma moeda, somadas e disputadas. Porém, Robinson não ganhava nada, porque se limitava a se aproximar calado e ficar encarando as pessoas, que se amedrontavam e saiam às pressas com o carro. Em outra ocasião, um homem forte, de camisa polo branca, cabe-lo com corte militar e olhos injetados, gritou com ele:

— Hei crackudo! Fica longe da minha namorada! Robinson estava ao lado do passageiro, o homem gritava por cima da capota, enquanto sua

namorada abriu a porta rápido pulando para o interior do carro, e bateu a porta. Robinson se distanciou bastante, mas o homem ainda o encarava com fúria injetada nos olhos.

— Calma doutor! — Marco exclamou se aproximando. — Ele só quer... O homem de súbito tirou uma pistola preta da cintura e apontou para Marco. — Encosta lá na parede! Encosta! Marco o obedeceu. O homem voltou-se para Robinson: — Você também, crackudo! Encosta lá! Robinson também o obedeceu. Então, o homem entrou no carro e saiu de arrancada. Rafael

viu a situação de longe e soltou uma risada. Marco caiu no chão estacando do peito magro sua risada convulsiva, como tosse de cachorro. Robinson chutou as suas pernas e saiu bufando. E de repente, todos ficaram aturdidos com uma Kombi que passava na rua, em marcha lenta. Os ocupantes, uma mulher e três homens pararam a Kombi por um instante, pareciam trocar in-formações, discutir métodos de abordagem, um deles objetou os demais e por um momento não pareceram estar de acordo com alguma coisa.

— É o pessoal da abordagem da Prefeitura — comentou Rafael. — Passam pedindo pra gen-te aceitar tratamento para dependência química e pra voltar pra nossa casa. Mas não fazem nenhum trabalho de convencimento. Muitas vezes passam e nem descem da Kombi.

Robinson reparou o brasão da Prefeitura estampado na lata da Kombi, por um minuto se es-tremeceu, porque não queria voltar para o convívio familiar. Por fim, a Kombi dobrou a esqui-na. Enquanto, robinson, marco, rafael lavam carros e satisfazem seus desejos individuais; se afastam do plano geral entre a muvuca feita pela poeira de piche. São lânguidos consumidores disputados a facadas e tiros por pequenos empresários que atuam no varejo, afastados do pla-no geral, onde medem seu lucro... Enquanto robinson, marco, rafael têm seu vicio medido na decadência de seus corpos... Ensimesmados, temem qualquer barulho em redor... ........................................................... Did you see the frightened ones?

>> <<

Quer preencher o vazio de quê? Não saiam para as ruas, fiquem em seus carros que na rua entra baratas nos sapatos, vão ao

Shopping que inaugura hoje, lá não tem baratas que entram nos sapatos de gente civilizada... Parados e maravilhados, olham um grande aquário que não é nada mais que uma grande tela de plasma, e os peixes são animação gráfica... Cidadão de bem quer preencher o que a mídia esvazia... ................................................................................................... COM QUÊ?!

— Ora!... Isso não é o que o governo oferece às indústrias & comércio?... Se a mídia é quem esvaziou. Ela é quem deve preencher! ................................................................................................... COM QUÊ?!

— Ora!... Nunca viu as propagandas?!... Se prestasse mais atenção no homem do topete bran-co do telejornal, entenderia melhor as propagandas!

— E os senhores bancos se alimentarão... COM QUÊ?!

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— Ora!... Se prestasse mais atenção nas propagandas entenderia melhor o homem do topete branco do telejornal! .................................................................................................... DE JUROS?!

— Sim!... E só funcionam quando não conseguimos pagá-los e quando chegam as festas que-rem nos seduzir — com musiquetas alegres do velho barbudo — à pagar! Ora!... Fazendo em-préstimo noutro banco!... ............................................................ Payback’s a bitch motherfucker!

E não se enganem eles podem tirar tudo de você, inclusive sua dignidade! E não se enganem pensando que eles são invisíveis! — Operam em bando!

>> <<

No bairro em que Rafael mora, não possui asfalto, sequer tem rede de esgoto. Mas, insistem em fazer análise de esgoto na cidade para encontrar resíduos de drogas... pra quê?... Vá perguntar pra mãe da joana! A estrutura pra isso é cara, exige investimentos na ordem de R$ 2 milhões, e a técnica está sujeita a falhas. Enquanto, Rafael rá!... não anda, malandreia entre a muvuca feita pela poeira de piche das ruas...

Rafael é esperto, Robinson o observa. Mesmo vindo de seio pobre, é ligado nos trocos, tem tino comercial. Sempre consegue uma forma de conseguir esses trocos. Inclusive, presta servi-ços para os pequenos empresários. Robinson ainda observa seu vigor: poderia facilmente ven-cer uma maratona em competição juvenil. Tem fôlego pra correr, e fumar 20 pedras por dia. Robinson observa seu sorriso: quando ele se satisfaz. Enquanto, Marco fica cada vez mais dis-tante e decadente. Porém, foi Rafael tentando passar o Boca para trás, que acabou morrendo baleado numa das ruas de terra do seu bairro. Mas insistem em fazer análise de esgoto para encontrar resíduos de drogas... pra quê?... Vá perguntar pra mãe da joana!

Ao saber da morte de Rafael, Robinson temeu o Boca, é um lobo! Sua boca parece uma ferida aberta quando sorri. Boca é um sujeito tenebroso. Fica próximo ao rebanho feito pela poeira de piche das ruas, como um lobo! Implica com Marco sempre. Porque Marco parecia estar doente: “chama atenção das caridade!” — diz Boca com sua voz de serrote serrando madeira podre.

A alma era uma usina produtora de desejos. Sob o efeito estimulante da droga, Robinson sentia viver mais vida do que poderia viver. Escutando os estalos característicos da aproxima-ção de sua divindade — Crack! Crack! Crack!... —, e as asas do Dragão desfraldavam-se dentro do seu peito. Afinal, ele havia rompido os limites enclausuradores que vivia em família. Quando abandonava seu corpo era como se livrasse daquele mundo opressivo, decadente e incestuoso. E o abandono dessas instâncias lhe possibilitava a solução apaziguadora de seus desejos. Po-rém, quando passava o efeito da droga, experimentava a dor de sentir que estava vivendo me-nos vida do que poderia viver.

Precisava se mover, pois a usina não poderia parar de funcionar, sem seu combustível vinha o nervosismo acompanhado das lembranças, que ele queria evitar. Mas, sem Rafael ficou mais difícil arrumar os trocos. No entanto, misturado àquela muvuca feita pela poeira de piche, esta-va livre para viver toda sorte de experiências.

Para Robinson, Boca é um lobo tenebroso que poria Nogueira e pastor alemão pra correr; e só com uma rosnada serrotando o ar. Ouvia-o rir, parecendo um serrote sincópico na madeira podre. Boca é um sujeito tenebroso; um lobo! Só a polícia andava o incomodando. Em seu terri-tório não aparecia outro pequeno empresário, senão seus dois funcionários que o ajudava nas demandas. Um ou outro de moto trazendo a mercadoria de longe... Boca é um sujeito tenebro-

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so, e faz Robinson se estremecer, observa-o. Certa vez, Boca o pegou com seus olhos de gado magro... Boca serrou o ar pútrido entorno de si:

— Qual é? — Nada... — Robinson murchou estremecido. Boca não aliviava a barra dos garotos, cobrando as dividas que Rafael contraiu em nome dos

três. — Cêis também tão querendo ser queimados feito o Rafael, né... — Boca serrou o ar pútrido. Robinson se estremecia com a lembrança de Rafael morto, traçando caminho frio pela sua

espinha. Debalde, clamava pela vinda da divindade para preenchê-lo novamente e o esquentar com seu terrível vômito de fogo. Mas, Não eram aceitos para lavar carros, nem vigiar. Marco e Robinson perambulavam pelas ruas da cidade que cheira a gasolina. Robinson nervoso e tre-mulo pela abstinência, invadiu um salão de beleza gritando:

— Eu preciso de dez mangos! Causando um grande alvoroço entre os clientes, correria dentro do estabelecimento. Robin-

son continuava a gritar, enquanto Marco puxou a bolsa de uma das clientes, a dona do salão gritava de volta que ia chamar a polícia e que fulano estava vindo, e não sei o que lá mais. Mas, não era só ameaça, o fulano apareceu, usava um colete preto, com um cassetete de madeira, distribuindo pancadas entre os primos, gritava:

— Vou moer esse lixo ne pancada se num raparem daqui! O fulano era aplaudido, os garotos gritavam sob as pancadas e tentavam escapar pra rua.

Sem querer o fulano acertou o cassetete na boca de uma das clientes, aturdido foi acudi-la, en-quanto os garotos aproveitaram a situação pra fugir. Correram correndo até não conseguirem mais, até estarem bem longe dali. Mortificados caíram no chão, Robinson ainda tremulava, a-goniado com a abstinência. Deitado com outros iguais, Robinson viu um pombo pousando na calçada, e enfim, as lembranças surgiam como uma brasa incandescente queimando sua alma. — “Escrevi porque quero tanto lhe falar de minhas tristezas” — imaginou que agora saberia ler aquele pedaço de papel, porque acreditava ter entendido os significados daquelas palavras.

Sentia aquela dor corroendo o peito, tosse seca. Sem aquela ilusão momentânea do bem vi-ver, que sentia ouvindo o estalo de sua divindade, que aquecia sua usina de desejos. Nada mu-daria, ele ficaria ali deitado com outros iguais, e como o pombo, todos moradores de rua. Em sua dignidade restringida, lamentou viver sua vida, sofrer calado naquele mundo triste e escu-ro, escondido no vazio — “Isso não é coisa de Deus!”.

Acompanhando o primo Marco, preenchiam o vazio das ruas. Nem imaginavam que é dever de todos zelar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer trata-mento vexatório — mas, todos, que se encontravam na rua além da muvuca de piche, os enxer-gavam como um lixo que deviam suportar, e se desviar —, portanto, não imaginavam, porque caminhavam através da realidade constituída por olhares mortificadores. Queriam os trocos que essa gente poderia lhes dar — eram como uma espécie de imposto mínimo, porque não queriam mais do que isso. — “Um indivíduo que perde sua dignidade de indivíduo, uma digni-dade que somente a sociedade pode conferir-lhe, só lhe resta a marginalização” — Robinson puxou o capuz da blusa velha de moletom preto cobrindo a cabeça.

Quando chegaram a um dos pontos de lavagem de carro, no bairro que concentrava maior número de prédios comerciais, portanto, onde havia mais carros, foram surpreendidos por um sujeito, aparentando uns 28 anos, de chinelões, colete amarelo velho e roupas sujas. Surgiu dentre os carros gritando:

— Cai fora! — Calma aí chefia! — Marco quis acalmar o sujeito. — A gente é chegado do Rafael! O sujeito se aproximava agressivo, começou a berrar: — Cai fora! Num tão vendo que vão espantar a freguesia? — e continuava a se aproximar.

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— Freguesia? — Robinson o indagou com escárnio e foi surpreendido por um soco no rosto. Robinson se estatelou no chão, enquanto Marco recuou pedindo clemência. Alguns pedes-

tres riam da situação dos garotos, outros apressaram seus passos para os prédios. O sujeito gritava e chutava as pernas de Robinson, mandava o garoto se levantar e “rapar” dali. Então, outro sujeito, também de colete velho amarelo, surgiu dentre os carros com um pedaço de pau correndo em direção aos garotos, Robinson levantou-se como se puxasse o asfalto com as u-nhas, e no mesmo impulso saiu correndo, mas ainda levou algumas pauladas nas costas.

>> <<

Marco também deixava transparecer sua dor, de sentir que estava vivendo menos vida que po-deria viver. Seus olhos as vezes estavam lacrimosos e Robinson nunca sabia se ele estava cho-rando. Outras vezes seus olhos estavam secos e parados, então Robinson chutava o primo: “OU! Tá morto?”, e o primo levantava zangado. Marco ria uma risada convulsiva, enquanto seus bra-ços, mãos e dedos não paravam de se mover um segundo, o que irritava Robinson.

— Ainda tamo sem os troco pras pedra! Num to guentando mais, priminho! — Com Rafael era diferente! — É... É... Eu sei sabeno que era diferente! — riu alto. — Ele tá morto! Mais tem o Piwi! E o

Piwi? — Foi pego pelos homi...! — Eu num to guentando mais, priminho! — E eu tô?! — Ah, priminho! — Temos que arrumar os troco! — Acho que a gente pode ir lá pra’venida! — Tem outro jeito?! — A gente pedi no sinal! — Tá fácil... De madrugada? Ninguém para! — Vamo? Ao longe a boca do túnel engolia os carros. Marco estava agitado, movimentando braços e

pernas de forma exagerada e violenta. Atravessavam o túnel movimentado. Robinson se assus-ta com as buzinas estridentes das motos, e as risadas maníacas do primo, que pareciam as de um coiote demoníaco.

— Hei! Assim está chamando muita atenção! — Robinson disse nervoso. — Qual é priminho?!... — Marco gritou entre suas risadas convulsas. — Temos que ir atrás

do Boca! — Temos que arrumar os troco! — Robinson tornou arrufado com o primo. Marco não é apenas um primo, é como um irmão mais velho. Há pouca diferença de idade

entre os dois. Marco queria andar de mãos dadas, Robinson o empurra: — Qual é?!... Começou a sentir que o primo tornava-se um peso. E olhando o primo de soslaio, constran-

gido, temia ficar sozinho, mesmo sentindo esse peso. Estava num mundo diferente, onde Marco é a única coisa conhecida. Mas, irritava-se com os movimentos exagerados do primo. Empurra-va-o, socava-o forte no chão. Marco muito magro e fraco não conseguia reagir, apenas ria com seu riso maníaco de coiote.

— Vamo lá em casa, então! — ele choramingou. Robinson estremeceu-se: — O quê?... E o seu pai?... A tia Jandira?... tá louco?... — Piff... Vamos em hora que não tem ninguém, lógico!

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— Mas sua mãe sempre es... — Está trabalhando de manicure! Ponto final! Levantaram-se, Marco prosseguiu no assunto, falando da mãe: —... Ela foi trabalhar por inveja da tia Glorinha, sabia? — pululou a imagem da tia Glorinha

na alma de Robinson. — Todo aquele papo de carro novo, e tal... Minha mãe ficou com raiva — e no dia da inauguração da piscina, então... quando ficou sabendo que a tia Edileusa também tava trabalhando, tsk!...

O nome da mãe soou na alma de Robinson com a voz da tia Jandira gritando em tom de or-denança, ficou estremecido. Não lembrava mais desse dia. Havia esquecido por conta do trau-ma que foi a mudança da casa para o lar. Só tinha guardado imagem frisada de Marco pulando como doido na piscina, e a voz do tio Aurélio o fuzilando.

— Ela ficou com cara de bosta!... — Marco riu seu riso de coiote maníaco contorcendo. Tomaram a rua da casa de Marco. Robinson só foi reconhecer onde estava, quando chega-

ram diante o portão da casa. Os primos olharam o movimento da rua. Cedo ainda, mas em bair-ro de trabalhador, horário que todos já estão na muvuca dos trens e ônibus a caminho do tra-balho. Marco ordena:

— Junta as mãos aí... — Vê se num demora, Marco! — Robinson o açodou dando apoio com as mãos. Marco, do muro sumiu para dentro da casa, Robinson enfiou as mãos no bolso da blusa e o-

lhou em redor, ficou na vigília. Um bom tempo depois, Marco reapareceu. — Psiu... — fez Marco. — Porra véio, cê demorou! — Robinson rezingou pegando a sacola grande que Marco trazia,

este pulou pra calçada. A sacola estava abarrotada de coisas, os rapazes riam e sorriam, e se repreendiam quando o

outro fazia um tom mais alto. — O velho ainda tava com grana môcada, pira? Saca só! — Marco mostrou um bolo de di-

nheiro, o outro fez barulho de risadas na garganta. E se foram subindo a rua. — Seu Aurélio vai te matar quando te pegar! Marco riu sobre a exclamação de Robinson, e retrucou: — Não sei quando! ...não sei quando! Já tem um bom tempo que sai daqui, priminho! E não

volto nem morto! ...nem morto!

>> <<

O que puderam vender foi vendido. Levaram o resto na sacola, quando chegaram a boca do Bo-ca, entregaram-na. Marco tirou o bolo de dinheiro do bolso e apontou a sacola, Boca conferiu o conteúdo. Marco o informou:

— Isso deve pagar a conta — tirou umas notas do bolo e entregou ao Boca —, com mais isso, lógico! E com mais essas vale mais umas 20 pedras... — entregou o restante do dinheiro, sorria.

Boca olhou atento, conferiu e reconferiu, enfiou o bolo de dinheiro no bolso. Fez seu sorriso característico: uma ferida. Mas, cintilou um tom lunático desafiador. Boca serrou:

— Isso só paga as conta! — Qual é? — disse Marco enfezado. — Sabe que paga as conta, e vale mais umas 20 pedras

aí...! Irritado, Boca deu uma braçada em Marco derrubando-o longe e veio chutando Marco no

chão. Robinson abaixou a cabeça, impotente, sem saber o que fazer. O som abafado das panca-das em Marco doía fundo na alma de Robinson.

— Pare! — gritou com os olhos fechados.

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Boca de passagem acertou a boca de Robinson, que caiu sobre as pernas, e se sentido sacu-dido por tontura nauseante, como se estivesse em pequena embarcação em volto do mar, vomi-tou água amarelada. Quando o grito de uma sereia cortou o ar como espadas de luz azul e ver-melha. Fez-se silêncio profundo. Boca não batia mais em Marco. Entre piscadelas de não exis-tência, Robinson viu luzes azuis entrecortadas por vermelho-sangue. Viu coturnos, sentiu pan-cada forte na cabeça. Os soturnos coturnos traziam noite profunda e funesta... Engoliu tudo...

...Mais piscadelas de não existência, viu o sorriso ensanguentado de Marco... Viu corredores

de hospital... Noite funesta engoli tudo... ...Mais piscadelas de não existência, entreviu sorriso escovado de Marco... Viu sopa fume-

gando gostoso... Ouviu vozes, entre elas tia Jandira gritando: “Edileusa!”... piscadelas... entre noites de existência funesta, foi engolido!...

>> <<

— Mãe?... — Robinson murmurou, acordando em cama de campanha limpa. Marco à sua frente cutucava o nariz, sentado noutra cama de campanha com lençóis limpos

revirados. Ele estava limpo como os lençóis e parecia ter ganhado mais carne e cor nas boche-chas e abrindo um sorriso gigante na cara, que poderia iluminar uma cidade inteira, saudou o primo:

— Hei, priminho...! Oh...! Estavam num quarto, que parecia de improviso, com divisórias de madeira. Dia claro en-

trando pela janela. Uma cortina azul fazia vez de porta. Marco levantou abrindo a cortina com força descomunal, e anunciou:

— Meu priminho acordou...! Um rapaz apareceu sorrindo. Marco o pegou com uma gravata, socou seu nariz gritando: — Não é com você que’stou falando!... Pescoço!... Um bando de gente apareceu. Puxaram Marco para um lado, o agredido para outro. Marco

pulou no rapaz gritando: — Seu otário enxerido!... Pescoço!... Então, uma muvuca de gente limpa engoliu os brigões, expeliu Marco descabelado de um la-

do, o rapaz agredido doutro, o qual fitava Marco com olhos estalados como duas bolas de gude, ofendido, nariz sangrando. Enfim, desapareceu entre a muvuca preocupada com seu nariz, lim-pavam-no, alguém gritou pra outro buscar maleta de primeiros socorros...

Recomposto, Marco contou o que tinha acontecido: — Os homi pareceu como sempre, só que dessa vez estourou a boca e o Boca — riu alto, lu-

nático como sempre. — Bateram muito nele, priminho! Muito mais do que ele batia em mim... Queimou ele na frente de todos lá... pow!pow! Dois tiros na cara, priminho! Saiu em tudo que é TV... Parece que tem nova direção na chefia — é o que comentaram por lá! — Agora anda, te-mos que sair daqui... — disse e foi arrastando Robinson.

O povo limpo cercou, queriam que quisessem ficar. “Que seria muito bom pra vocês” — dizi-am. — “Que é bom esperar mais um tempo pra desintoxicar” — ainda disseram.

Marco empurrou um, empurrou outro. Deram moletom cinza novo para Robinson. Chinelos, bolachas, caixinhas de achocolatado. Marco deu gravata em um, deu gravata em outro. A muvu-ca de gente limpa engoliu os primos. Um tocava violão, Marco quis quebrá-lo, não deixaram. Robinson trocou seu moletom cinza por outro preto. Abraçaram os primos. Era muito amor, e os primos se sentiam em barriguinha de ursinho de pelúcia. Queriam sair!... “Não é fácil deixar a droga sozinhos, é muito difícil!” — diziam. — “Precisam de auxilio de quem entende” — ainda disseram.

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Queriam sair!... Marco quebrou o violão de um, quebrou o nariz de outro. Sentia cheiro de buraco azedo lavado com xampu, outro ainda queria vê-lo raspado. Enfim, a muvuca de gente limpa expeliu os primos pra rua... Pois queriam sair!... E não podiam mais segurá-los!

— Deusulivre! — Marco resmungou e colocou boné rosa na cabeça e o cobriu com capuz do moletom creme novo. Saiu pela rua, tava de bermuda tactel nova vermelho-sangue e chinelos. Robinson tomava achocolatado e carregava pacote de bolachas.

— É o seguinte, priminho! Vamos lá e explicamos pra nova chefia que o Boca robô nóix..., poxa! eles tem que entender que temos crédito!

— Rafael propáporia um serviço pro lobo... — Lobo?... Que lobo?!... — ... . — Xa' comigo, priminho! Viraram a esquina...

>> <<

Entre a muvuca feita pela poeira de piche das ruas, embaixo de viaduto, encontraram dois su-jeitos mal encarados no lugar do Boca, que não ficaram felizes em ver Marco, enquanto ignora-vam Robinson.

— O que fazem aqui? — Marco perguntou cheio de intimidades. — BICHA!... — gritou um deles e socou Marco. A noite correu entre minutos caliginosos. “Agora, era dois lobos” — Robinson pensou aflito.

Chutavam Marco caído no chão. Mais uma vez a sereia gritou, Robinson assustou. A muvuca se desfez espalhada, mas os lobos ainda pescaram mais dois, além dos primos. Sabendo que Ro-binson estava com Marco, empurraram-no para perto dele e deram-lhe rasteira junto com os outros dois pescados na muvuca. Os lobos riam, enquanto Robinson atônito, só enxergava os soturnos coturnos. Marco debatia-se no chão, continuavam a chutá-lo, seus guinchos e cuspes vermelhos foram esmagados por ronco grave fabuloso, vindo da rua, todos se voltaram para o raio amarelo que o produziu.

Robinson assustado, só enxergava os coturnos soturnos. Enquanto, as vozes chegavam en-trecortadas e misturadas no ouvido, seu peito arfava medroso, e um frio repentino atravessou o estômago vazio como corrente elétrica. Fechou os olhos, bem apertados. O primo chorava convulso, esperneava, bufava e sangrava. Quando ouviu uma voz macia, lúcida, sem marra, sem gírias:

— Você aqui, Marco?! Pensei que nunca mais veria tua cara...! — Parece que tem cordeiro novo no seu rebanho, Draco! — um dos coturnos moveu-se so-

turno. Pareciam referir-se à Robinson. Um dos coturnos soturnos moveu-se diante Robinson, foi

levantado, chorava. — RÓBIN!... — o tal Draco disse em tom alegre. Robinson estremeceu-se, parecia estar sobre um touro mecânico. O tal Draco o segurou pe-

los ombros. Robinson abriu os olhos com medo reconhecendo Marcelo. — E aí Róbin?!... — A voz de Marcelo chegou faiscante nos ouvidos de Robinson, mas ele a-

baixou a cabeça lembrando-se do B. Boy que havia expulsado Marcelo da escola. Os coturnos moveram-se diante Robinson: — Você o conhece, Draco?!... — Claro, é o Róbin!... Ele manda no Breakstyle!... Mostra aí Róbin!... — Marcelo deu tapinhas

de amigo em Robinson.

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Os coturnos voltaram-se à Robinson, o qual sentiu que se não o fizesse, o tal Draco ficaria desmoralizado, o que não seria bom para si. Timidamente colocou os chinelos do lado e sentiu os grânulos do asfalto, pés secos. O tempo parou estufando-se em redor. Robinson enxergou os segundos dilatando-se como num freeze robótico, convulso... Jogou dois passos de top rock para frente; e um Moonwalk longo para trás... Viu os calcanhares dos coturnos se levantarem acom-panhando o movimento...

Marcelo bateu palma, orgulhoso. Os dois lobos cercaram Robinson o saudando, animados, cheios de trejeitos. Os coturnos afastaram. De esguelha viu o rosto do primo Marco, diluído em sangue e entre os coturnos desaparecer soturno... A sereia gritou longe... Deixou arrepio caliginoso, fúnebre em Robinson... O tempo saiu da inér-cia:

— Pô! Que tá fazendo aqui, Róbin? — Marcelo parecia decepcionado com Robinson. Os dentes dos lobos faiscavam entre sorrisos. E Marcelo não havia mudado nada. Apenas as

roupas que agora pareciam ser de grife cara. — Ué... — Robinson desenrolou a língua. — Vim atrás do Dragão! — Marcelo riu. Robinson

continuou: — Sério! Preciso das pedras pra encontrar ele... só-que-que tou sem os troco, en-tende?... mais-mais...

Marcelo não deixou que ele continuasse, com ares de decepção fez gesto aos lobos. Enquan-to, Robinson recebia o que queria, viu de esguelha Marcelo saindo em tempo fugidio, parecen-do descortinar o ar em torno de si entrando para seu mundo. Entrou no carro amarelo que produzia ronco grave fabuloso, gritou fritando os pneus no asfalto. A muvuca voltava a se for-mar como poeira de piche. Robinson despediu-se dos lobos agora sorridentes, e sumiu entre o rebanho que se formava na poeira preta e acinzentada da cidade que cheira a gasolina.

>> << Robinson entrou madrugada adentro procurando lugar. O pretume da noite era entrecortado pelo clarão acinzentado da lua... Percorria ruas vazias de gente. Perturbado por lembranças e vozes. Parecia que uma matilha de cães atravessava sua alma. Sentou-se aos modos de um mendigo, escorado numa porta de aço. A língua da criatura divina se contorce pelo pipo. Satis-faz seus desejos com infusão de individualidade. Seus olhos lacrimejam... ................................................ E a saudade no meu peito ainda mora, E é por isso que eu gosto lá de fora...

Estava com uma porção de pedras no bolso... Edileusa coloca o ovo no pão murcho... Pasto-

res da Etiópia descobriram o café... Trabalhadores acordados! Comeram as folhas e os frutos do cafezal... ................................................... E quando pego meu cavalo e encilho, Sou pior que limpa trilho...

O Dragão levantou-se diante Robinson, desfraldando as asas. Não é nada mais que o próprio Robinson; sentindo o poder em seu peito. A luz da lua por contrastes acinzentados o revela le-vantando-se devagarzinho com inflexões corporais, sente o coração pulsar. Ergueu o rosto e viu a lua; viu gotas de chuva cair; e parou estático em minuto além...

As gotas de chuva batem em seu rosto, e misturando-se às lágrimas, escorrem queimando suas bochechas. Mas quando sua língua saboreia o sal amargo: nem se lembra de mais nada, está chorando por quê? Escutou a matilha... A chuva o despertou do minuto além. Correu, não queria molhar suas pedras encantadas...

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Avenida, na parte velha e decadente da grande cidade, abria-se como um grande abismo es-curo. Orlada por grandes construções esquecidas. Tétrica, recebe a chuva entrecortada pela luz lunar. Robinson corre pela via velha e senti a chuva socando seu corpo e o concreto velho. Viu tapumes inchados — por sol e chuva —, de uma construção velha e esquecida a muito... Entrou por uma fresta debaixo de um grande outdoor que anunciava obra do Estado; destinada a pro-gramações culturais, esportivas e de lazer voltada para a infância e juventude, mas, em sua dig-nidade restringida, nem viu as datas antigas, e os dados...

Rafael! Rafael que entendia dessas coisas. Enquanto, Robinson queria abrigo, e se ficasse a espera molharia até os ossos... e as pedras

encantadas... Esgueirou entre caibros, ferros e materiais decompostos, e achou um conjunto de manilhas, correu para dentro de uma, e de lá viu o resto da chuva cinza cair... O relâmpago a-cinzentado o fotografou encolhendo-se com medo... Verificou os receptáculos de sua santa di-vindade... O relâmpago acinzentado o fotografa novamente, visitando lugares terríveis da sua memória...

........................................................................... Acheronta movebo!

Sozinho e temeroso sacou seu cachimbo. “Velho amigo?... Ou chave de um receptáculo?... Os dois!... Deveria ser!” — sentiu. — Sempre fui invisível!... — gritava para si. — Por que importa-ria?!... Importar-se?!... Com quê?!... — continuava gritando do interior da manilha.

As figuras de Rafael e Marco cortavam sua alma. O primo pulava feito louco de suas lem-branças gerando eco na manilha... Produzia-lhe vazio... A imagem de Rafael atravessou a alma de Robinson, como uma gaivota voejando indo parar longe; e voava em pistas imaginárias despedaçando-se no sorriso de Boca, que parecia uma ferida aberta...

Aspira a língua da divindade que se contorce contida no pipo. Satisfaz seus desejos individu-ais; aterrando lembranças doloridas; afastado dos planos coletivos. Entre a muvuca feita pela poeira de piche úmido... Os lobos sorriam divertidos vendo o show de Robinson; seu top rock e Moonwalk os divertem.

Reparou que os lobos são limpos, dentição completa e limpa, mãos lúcidas e limpas com a-néis de prata, riem risos lúcidos, e entregam o prêmio de Robinson, que se envergonha, mas pega seu prêmio. Como dantes, sumiu entre o rebanho de piche e esgueirou entre caibros, e ferros, e materiais decompostos, e achou sua manilha...

...Ajeitou a pedra com o polegar no pequeno cachimbo, chorava convulso vendo a imagem do B. Boy que o ensinou a dança especial, ele o olhava decepcionado. Robinson envergonhou-se — bochechas quentes — beijou o pipo aspirando a divindade. O isqueiro faiscava. As imagens en-trecortadas produzem chamas, entre flâmulas, labaredas de vozes, entre elas o grito de tia Jan-dira: “EDILEUSA!... tem muito o que fazer aqui! Ah... viuvinha perva!”...

........................................................................... Acheronta movebo!

...Encontrou Marcelo no mesmo lugar anterior. Parecia que o tempo expandia-se ao redor dele, como se ele vivesse numa dimensão diferente dos outros. Escorado em carro diferente, porém potente como o outro, parece uma bala de prata. Conversa sobre negócios com os lo-bos... Draco! Eles o chamam assim. Com sua voz limpa, macia, sem gírias, disse pra Robinson:

— Essas pedras vendidas no varejo são feitas sem contro- le de qualidade... Contendo impurezas como: solução de bateria; éter sulfúrico; cetona entre outros que potencializam sua toxicidade, pra render, entende?... É isso que produz degeneração no tecido pulmonar, pneumonia e outros problemas... e... ..., ou... ..., com... ... .

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Robinson não ouvia mais o som produzido pela voz macia de Marcelo. Viu através dos se-gundos que se dilatavam entorno de Marcelo, um vulto vermelho no interior do carro: lábios de mulher, cabelos louro-cinza sedosos, como noutra dimensão.

“Uma atriz de novela?”... — Questionou-se. Então, ouviu a voz macia do seu Dragão rompendo as camadas de segundos dilatados: — Vem comigo!

Olha Será que ela é moça Será que ela é triste

Será que é o contrário Será que é pintura O rosto da atriz...

“Beatriz” (Chico Buarque)

“Marcelo não se parece com um lobo” — Robinson observou, parecia seu Dragão, provedor de força. Abriu a porta traseira para Robinson, carro diferente da ultima vez que o viu. Robinson entrou, e num segundo fotografou com olhar de câmera a “atriz”, vestido vermelho colado, mostrando curvas galácteas; lábios vermelho-baton entreaberto; e cabelos louro-cinza sedo-sos... ............................................................................ Será que ela é de louça... Será que é de éter... Será que é lou-cura...

Porém, a fotografia se desfez num slow-motion: a “atriz” contorceu em sinal de nojo, repulsa. Robinson abaixou a cabeça de imediato, constrangido, com vergonha convulsa. Sentiu a imun-dice de seu corpo, descalço. Parecia ter-se descolado do chão sendo revolvido em poeira de piche e sido atirado no interior do carro, pregando no assento de couro. Cobria a cabeça com capuz; assim, escondido sentiu uma mistura de medo, vergonha e calor atravessando o estô-mago vazio. Nervoso sentiu calafrio atravessando seu corpo magro: “chama atenção das cari-dade” — diria Boca serrando a imagem podre de Robinson.

Marcelo falou mais quês com os lobos e entrou e se ajeitou fazendo chiado no estofado de couro. A moça dos cabelos louro-cinza sedosos, a “atriz”, entreolhando Robinson com nojo, perguntou atônita:

— Você está louco, Draco?!... “Será que é uma atriz de novela?!” — Robinson questionou-se olhando a moça de esguelha

com vergonha convulsa. — O que foi?! — fez Marcelo. — Trouxe esse mendigo cracudo pra dentro do carro?!... Robinson contorceu-se envergonhado. — É um amigo, Pô!

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— AMIGO?!... E aquele papo de sem gíria, sem marra... E agora traz um mendigo cracudo pro carro, e ainda o chama de AMIGO?!... Draco!

Marcelo deu de ombros. A moça encolheu-se, e voltando-se paro o lado arreganhou o vidro, cuspiu lá fora.

“Lá fora!” — Robinson olhou o rebanho feito pela poeira de piche das ruas... Os lobos perto do carro ouviam e riam... Depois se afastaram indo atender as demandas. Marcelo rodou a cha-ve dando partida no carro. Robinson sentiu-se como na barriga de um monstro, porque o carro rosnava, e gritou fritando pneus no asfalto. Robinson tonteou.

— Você teve sorte, sabia?... — Marcelo procurou Robinson no retrovisor central. — Deu sor-te nesses dias que me encontrou. Não costumo visitar boca... Só que a vizinhança’ qui é de bair-ro nobre, sabia?... — procurou-o novamente no retrovisor central. — Boca é um troço feito por pequeno empresário, rende grana. Mas, como disse, a vizinhança é nobre; sempre aparece boy querendo a “branca de neve”; e exigem qualidade. Por isso d’eu estar aqui hoje... — Você teve sorte, sabia? — repetiu procurando Robinson no retrovisor central.

Marco! Marco não teve sorte? — Robinson questionou-se. Marco! Marco! — Você não fala muito, não é? — Marcelo insiste. A “atriz” ri. Robinson vê seus lábios vermelho-baton através de seu rosto queimando vergo-

nha convulsa. — Você quer o quê, Draco?!... É um mendigo crackudo!... Marcelo procura Robinson no retrovisor central, depois no lateral à sua esquerda. A “atriz”

ri. Marco! Marco quando criança, perguntava: “Por que não sai daí? Penso que você é doente...

surdo?... mudo? O que há com você?... retardado?”. “Marco! Marco não teve sorte!”... — Robinson pensou. E manteve-se quieto, tentando ocupar menos espaço possível. Envergonhava-se com o chia-

do que produzia no estofado de couro. Mantinha os braços colados no corpo, as mãos entrela-çadas no meio das pernas encolhidas, e encolheu os pés sobrepondo-os. Tonteava com o mo-vimento veloz do carro. Marcelo continuava com seu discurso que Robinson desistiu de deci-frar. A “atriz” ria. Via de esguelha seus cabelos sedosos, pele perfumada, que parecia ser quen-te. Marcelo continuava com seu discurso colocando dados numéricos...

Rafael! Rafael que entendia dessas coisas numéricas... “Rafael! Rafael também não teve sorte?” — Robinson indagou-se, mas não conseguiu redar-

guir-se. Tonteava com o movimento veloz do carro. Lembrava-se da ultima vez em que esteve em

um, quando tio Geraldo o deixou com sua mãe no CAS. Lembrou-se de cena anterior, de Cláudio dizendo: “tem dias que ele passa mal”. — Cláudio estava sentado na cama de César ao lado do beliche. César! Lembrou-se do chiado da rodinha do carrinho de mão. Sua mãe deu-lhe um be-liscão doído. “O que vão pensar?!”... Foram para o CAS. Quando saíram, ainda disse à mãe: “Vou comprar coisas pra vender. E vou ganhar o suficiente pra dar pra senhora uma vida melhor”... Edileusa não lhe deu atenção, viu César do outro lado da rua acenando ao lado do Gol G3 cinza, ainda com os plásticos protegendo o estofado. César olhou no retrovisor central procurando Robinson, perguntou: “E aí Rô, tá se sentindo melhor?” — César tinha mania de ser pessoa a-gradável, o que incomodava Robinson. Robinson fugiu do espelho refugiando-se atrás do ban-co. Viu a mãe: seus olhos faiscantes, no banco do passageiro na dianteira do carro; admirava o sobrinho.

Robinson não via o rosto da moça, só seu cabelo louro-cinza sedosos. Ela ria riso de atriz. “Uma atriz de novela?” — Questionou-se.

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— Eu não sou mudo! Eu sei falar! — disse alto do banco de trás. A “atriz” olhou surpresa do banco da frente. Marcelo o procurou no retrovisor central, sorriu. Robinson encolheu-se nova-mente, viu os lábios vermelho-baton entreabertos deixando riso frouxo sair.

— Chegamos! — Marcelo parou o carro próximo ao meio-fio, diante um pitdog. — Um amigo meu costuma guardar a “branca de neve” pra mim aqui!

A “atriz” retocou a maquilagem. Marcelo saiu. Robinson tentou abrir a porta, não conseguiu. A moça soltou seu riso de atriz. Robinson envergonhou-se. Marcelo cumprimentou sei quem, e veio abrir a porta para Robinson; tinha notado sua dificuldade. Já na calçada, tonto e sentindo como se expelido de um monstro: ouviu a gargalhada de atriz. A moça dava a volta pela frente do carro. De salto plataforma, tem coxas torneadas e douradas. Segurava uma bolsa de mão. Vestido curto colado no corpo, vermelho. Robinson enrubesceu sentindo calor atravessar o corpo magro.

— Que é, nunca viram uma prostituta?... — a “atriz” revoltou-se com as pessoas do pitdog que pararam sua mastigação para encará-la atônitos.

Marcelo a repreendeu: — Ou, vê se fica na sua. Senta aí! — e também se sentou. As pessoas ainda ficaram mais atônitas ao ver o “mendigo crackudo”. Robinson sentiu-se al-

vejado por metralhadoras feitas de olhos engordurados. Marcelo puxou cadeira para Robinson e ordenou com voz macia:

— Senta aí! Sentou-se e encolheu-se curvado, como estava no carro:

os braços colados no corpo, as mãos entrelaçadas no meio das pernas encolhidas, e encolheu os pés sobrepondo-os. A “atriz” riu.

— Draco, você é impagável! Andando com uma prostituta e um mendigo cracudo... Num car-ro importado! — riu mais do seu riso de atriz, e, por um estante pareceu resolver uma questão mental num minuto além...

— Fica na sua, Beatriz! “Beatriz! Beatriz! É o nome da Atriz” — Robinson balançou na cadeira. Beatriz acendeu um cigarro. Um rapaz veio e cochichou no ouvido de Marcelo. Os dois saí-

ram. Robinson balançou mais uma vez, ficou sozinho com Beatriz, que o olhava com nojo. En-vergonhada por estar com um mendigo num pitdog de esquina. Robinson reparou seus lábios, vermelho-baton entreabertos soltando fumaça cinza. Olhos de mata atlântica fitando as espi-rais. E através da transparência acinzentada dessas espirais acertou Robinson com seu olhar verde.

Ela tirou outro cigarro do maço, que se encontrava em sua bolsa de mão, pôs na mesa. — Toma! Robinson sentiu calor entre as pernas, esquentando inflado nas coxas, quis levantar-se cor-

rendo para o banheiro e aliviar-se ali mesmo com a mão. Porém, envergonhou-se e pegou o cigarro sem jeito, trêmulo. Puxou seu isqueiro. Sentiu o calor do fogo. Faiscava. A chama brilha-va nos seus olhos pardacentos. Era forte a vontade de satisfazer o peito do Dragão, que arfava na degenerescência dos tecidos pulmonares. Suas mãos suavam inquietas. Calafrio atravessou seu corpo. “O que fazia ali?” — pensa. Tossiu convulso.

Não distinguia mais espaço entre fumaça e as coisas. A brasa brilhava. O peito arfava. A “a-triz” Beatriz cintilava em seus olhos pardacentos. A luz intensa do pitdog acertava Robinson, por treme-treme, tonteava. Cobria a cabeça com capuz; assim, escondido sentiu dentro da blusa velha de moletom preto um suor gelado. Que deveria produzir cheiro desagradável, pois as pessoas olhavam-no incomodadas. Metralhadoras feitas de olhos humanos. “Humanos?!” — Robinson duvidou. Decerto, respeitavam algo sagrado naquele momento para não enxotá-lo dali.

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— Draco! — ouviu a voz de Beatriz. Robinson imaginava-se levantar e matar todos em seu redor, com as labaredas de fogo que

poderia vomitar, e esguichar longe. — Draco,... — ouviu a voz de Beatriz, a “atriz”. “Marcelo não era um lobo” — parecia seu Dragão, provedor de força. — Draco! — ouvia Beatriz chamá-lo. “Draco! Draco! Todos o chamavam assim: Draco! Provedor de força”. — Robinson pensou. Draco! já estava de volta. Retornou ao seu assunto ininteligível para Robinson. Cheio de

termos numéricos... Rafael! Rafael que entendia dessas coisas numéricas... Rafael! Rafael espedaçava-se no sorriso pútrido de Boca. Lobo decadente? Era diferente!

Não, ele era real! — Robinson redarguia-se em rotação convulsa dentro de si. Rafael! Rafael também não teve sorte! Poderia facilmente vencer maratona em competição

juvenil, tinha fôlego para correr. “Mas em chão de terra como é no seu bairro, deve ser difícil, deve machucar os pés...” — Robinson pensou.

Draco falava. Robinson ouviu chiado da rodinha de carrinho de mão. Rotação! Rotação! Tra-balho pesado! Robinson tonteava com o movimento veloz da luz intensa que acertava seus o-lhos pardacentos. “Quem quer ser um gari?... Quando se pode ser o Dragão? Draco!” Robinson pensava em rotações convulsas dentro de si. Enquanto, Draco continuava com seu assunto sem gírias, com voz macia. Robinson não entende, olha a “atriz”, que se chama Beatriz: seu sorriso feito de batom vermelho-sangue...

Sangue... Marco! Marco não teve sorte!... . “Uma atriz de novela?” — Questionou-se. E de dentro do capuz, viu a boca de batom vermelho movendo-se, enquanto gorgomilos deli-

cados produziam riso de atriz, e voz de Beatriz: — Sabe muito bem, Draco! Nada disso importa, são coisas que ninguém vê, sabe?!... Você sa-

be!... — ria. Gorgomilos delicados que produziam riso de Beatriz, e voz de atriz. Tem um quê de deboche,

de sorriso com escarninho intento. — E que mulher não sabe fazer alguma coisa, hein?!... — Robinson ouviu a voz de tio Geraldo

de repente, do nada, sonora. Baixou nervoso o capuz e olhou em redor possesso. Draco e Beatriz olharam-no desconcer-

tados. Robinson não viu o tio ali, só olhos atônito desconhecidos em seu redor. Cobriu a cabeça de volta, e tudo voltou à rotação anterior, o burburinho se entrelaçou de volta à normalidade.

— O que importa nesse mundo de hipócritas, mesmo, é o poder e o sucesso e a riqueza! — diz Beatriz com voz de atriz. — É isso que todos admiram numa pessoa, sabe bem disso, Draco! — disse e soltou uma lufada de fumaça.

Draco tornou com sua voz macia: — As pessoas se realizam de outra forma... Tipo: quer expressar um sentimento, ou uma i-

deia que possa completar a alma de outras... Beatriz riu divertida, fez sorriso de escarninho, tragou seu cigarro deixando marca sobre-

posta de batom no filtro branco. — Ah, vejo muito disso... Pastores, por exemplo: não querem enriquecer?... Imagina... Quem

se ferra é o trabalhador, Draco! E esses malucos tomam o dinheiro suado do trabalhador! Draco riu alto: — Aquele professor universitário anda te visitando ainda? — riu mais: — Fica te enchendo a

cabeça com essas coisas! — Continuou rindo. — Tem nada haver com ele! — Beatriz enfezou.

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Robinson pensou em esbofeteá-la. “Mulher atrevida!” — pensou. Mas, se acalmou com a voz macia de Draco, tornando risada alta para Beatriz. Robinson ria

por dentro com Draco, balbuciou as palavras dele, entoando a voz dele em seu peito, com ar confiante:

— Me diga mais,... o que “seu” professor anda dizendo? — Já disse Draco! Deixa de ser chato! Tem nada haver com ele... — Então, me diga mais do que pensa! — Ora!... As pessoas pouco se importam com poesias, Draco! Pouco se importam com esses

que querem expressar sentimentos. É bobagem... Esse tipo de coisa provoca justamente isso: o esvaziamento...! As pessoas não querem se preencher com amor. Com essas promessas vazias... — disse entre sorrisos: — Querem poder, sucesso, acompanhado com grana! Riqueza material entende...? É isso, já disse: querem se preencher com o que todos admiram numa pessoa, essas coisas...! Como diz aquela música do Titãs? Queremos dinheiro, e não pela metade! — cantaro-lou, riu, deu uma lon- ga tragada no cigarro e jogou a guimba fora.

— “A gente não quer só dinheiro. A gente quer inteiro e não pela metade” — Draco cantaro-lou de volta. — E o trabalhador não pode? — completou.

Beatriz riu divertida: — É justamente isso, é questão de Poder, e não Querer! — Esse Governo atual é muito bom, dona Edileusa! — Robinson ouviu a voz de tio Geraldo

novamente, do nada, sonora: — Não precisamos viver de caridade dos outros. Temos o que é por direito nosso. Entende essas coisas?

Baixou nervoso o capuz e olhou em redor possesso novamente. Draco e Beatriz olharam-no...

— Uma vez me disseram que caridade e solidariedade são coisas diferentes... — Robinson não encontrava o tio ali entre os olhos atônitos dos desconhecidos em seu redor, mas ouvia sua voz: — Caridade é quando alguém rico te dá um troco no natal, enquanto solidariedade é quando alguém igual a você empresta a própria ferramenta pra você trabalhar. Mas num adian-ta de nada se você num tem o que comer em casa, vai ter força? E outra, e se o imposto está caro... .

Enfim, desistiu de encontrar o tio, e soltou sua voz desprendendo-a do peito magro, como um cachorro de rua ganindo:

— Falta so-soli... — avermelhou-se constrangido. Mas, concluiu tentando imitar a voz macia de Draco:

— Falta so-solidarieda... de!... — E o que quer dizer com isso?... — Beatriz o inquiriu. — Ué... — Robinson embananou-se e continuou com dificuldade: — Esse Governo atual é

muito bom, Beatriz! (e repetiu as palavras de tio Geraldo). Beatriz riu. — E o que tem haver?!... — riu mais: — E onde fica o mé-

rito?! Solidariedade é tão diferente de caridade quanto de Poder! Ter sucesso é justamente não depender de solidariedade, ou caridade. O nome disso é Fracasso!... — riu mais.

“Mulher atrevida!” — Robinson pensou, e queria mesmo esbofeteá-la, mas acalmou-se de novo com a voz macia de Draco:

— Mesmo assim, Beatriz! Nisso tu não tinha pensado! — Num futuro próximo estarão todos endividados, isso sim! — voltou-se para Draco: — Po-

de rir, isso foi o professor quem disse, mesmo! E ele tem razão, ora! É o que eu disse: É questão de Poder e não Querer!

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Draco riu. Robinson soltou uma risada de cachorro ganindo o acompanhando. — Então, diga mais! — Draco ordenou. Beatriz continuou: — Todos querem de alguma forma te dominar... Todos querem dominar sua mente, dominar

seu corpo, dominar suas ações. Querem seu dinheiro, querem seu trabalho. Já notei isso, sabe? Trabalhar não traz dinheiro, entende?... O salário serve para comprar roupa para ir trabalhar, comida para ir trabalhar, moradia para ir trabalhar, transporte para ir trabalhar. Isso não é vida...! Eu acredito que exista diferença, entre viver e sobreviver nesse mundo. O que traz di-nheiro, nesse mundo, é você manter um bom bocado de gente trabalhando pra você, como nu-ma corrente, ou como as igrejas faz por aí...

— Puta filósofa! — diz Draco. — Era o que me faltava, Beatriz! ...Mas, tem razão! — Claro que tenho razão. Basta ter algo para oferecer no mercado, né? Uma puta chamada

Beatriz, e/ou as suas pedras encantadas! — disse Beatriz, e voltando-se para Robinson comple-tou: — As pedras valem muito dinheiro. E você as queima, seu estúpido!

“Mulher atrevida!” — Robinson pensou. — Mas para ele, as pedras são pra queimar! — Draco redarguiu rindo. — É... Estou vendo... Um consumidor que não tem dinheiro para pagar o que consome... Tem

sorte de estar vivo... ainda... “Mulher atrevida!” — Pensou. — Eita, ô gente! Está filósofa hoje, essa puta. Assim vai espantar o freguês, sabia? — disse

Draco rindo, olhou para Robinson, e deu tapinhas no ombro dele. Robinson balançado na cadeira fingiu sorriso para Draco em sua vergonha rubra, e toda

conversa de Beatriz era nova para ele. Nunca tinha ouvido algo parecido. Parecia-lhe algo con-ciliador, e por isso subversivo; — estava contra a ordem vigente do mundo, pois deixava esse mundo completamente nu. Sentiu-se tocado de alguma forma em sua ignorância. E como uma faísca lhe passou um pensamento:

“Ou se é explorado, ou se é o explorador, o que escolher ser? Pois, não faria sentindo algum, lutar contra o explorador para não ser mais explorado, o que iria fazer depois, senão explorar?” Isso deixou Robinson zonzo, sem chão, não sabia se poderia escolher o que ser... “Por um lado, não se sabe nada, e por outro, não se compreende aquilo que se sabe...” — sentiu!

— Vamos deixar de papo! — ordenou Draco. — Vamos comer! — e olhou para Robinson. — Não... — ele respondeu visivelmente afetado, tremulo, de pensamentos convulsos. — Ele só quer as pedras, Draco! — intercedeu Beatriz. — Quer ir logo para o mundo encan-

tado! — e riu. “Mulher atrevida!” — Robinson pensou. Olhou Beatriz com olhar de faca, seu riso o machucava. Draco percebendo o que se passava

com Robinson, disfarçadamente enfiou a mão no bolso, e por baixo da mesa balançou a mão fechada.

— Psiu... — fez Draco. — Pega’qui! Robinson sumiu como uma sombra no escuro. Nem viu como saiu do pitdog. Sabia que tinha

uma porção de pedras no bolso — “Branca de Neve” pura, granulada, de qualidade! Por isso, sentia em meio à confusão na sua cabeça, causado pelo papo da Beatriz, um toque de felicidade, ao mesmo tempo em meio a mesma confusão repudiava a frase de Beatriz: “Quer ir logo para o mundo encantado!”.

A frase repetiu em sua cabeça, parecia estar ouvindo a voz de Beatriz, queria matá-la por ter dito isso que o fazia se sentir um burro, um idiota, queria matá-la. Escutava ela rindo, olhava para trás, se tivesse o seguindo iria matá-la. Os sentimentos eram quentes entorno de sua ca-

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beça, em volteios, em espiral o tonteava, parecia estar ouvindo a voz de Beatriz: “Quer ir logo para o mundo encantado!” — olhava para trás, se tivesse o seguindo iria matá-la.

Robinson vomitou água amarelada na calçada, sua boca escancarada assustou as pessoas que passavam, sentiam um misto de medo e nojo do rapaz feito de piche. Ele olhou em redor no redemoinho de pessoas, e se reconhece Beatriz o seguindo iria matá-la.

“Quem é aquela moça, que parecia atriz de televisão? Será que ela é triste, e não gosta do Marcelo? Será que eu poderia entrar na vida dela? Será que ela mora num casão?”

>> <<

De esguelha entre os ferros e caibros, no velho campo de guerra, Robinson encontrou sua mani-lha. Sacou seu pequeno cachimbo, riscou, e a chama do isqueiro envolveu a pedra como a lín-gua incandescente de um dragão. Ecoou a voz de Beatriz: “Quer ir logo para o mundo encanta-do!”

Robinson se sentia num redemoinho de fogo, de chama fosforescente azul, e pela primeira vez sentiu necessidade de controlar aquilo, enfrentar o mau, a destruição, e o pecado que o monstro dentro de si representava. Onde repercute a voz de Beatriz: “As pedras valem muito dinheiro. E você as queima, seu estúpido!”

— Eu não sou burro! — grita para si mesmo. Flutuando em meio a um novo sentimento, ouvia a voz de Beatriz martelando em seu siste-

ma nervoso fazendo parte de seus impulsos revoltos, com o mesmo tom e ênfase, que ouviu pela primeira vez: “Todos querem de alguma forma, te dominar... O que traz dinheiro, nesse mundo, é você manter um bom bocado de gente trabalhando por você”.

— Sim, as pedras valem dinheiro, eu sei! Há alguns dias um homem gastou R$ 25 mil só com pedras para si; — será possível?

E nessa confusão de sentimentos, ele queria voltar a ser o pequeno Robinson. Pois, o fim úl-timo deveria ser a felicidade, algo agradável para si e para todos, pensava entre sentimentos convulsos.

— Mãe?!... — gritou como se quisesse despertar de um terrível pesadelo. Sua voz ecoou na velha obra em redor. — Eu não sou burro! — gritava imaginando dizer à Beatriz. — Pai?!... — ele gritou. Do alto o lugar parecia um esboço medonho do que seria

um espaço destinado a programações culturais, esportivas e de lazer. Mas em sua dignidade restringida, como um garotinho, disse para mãe:

— Vou comprar coisas pra vender, e vou ganhar o suficiente pra dar pra senhora uma vida melhor...

E sua mãe, Edileusa, respondeu: — Basta ter algo para oferecer no mercado, né? Uma puta chamada Beatriz, e/ou as suas pe-

dras encantadas! — Edileusa parecia ressurgir entre o fogo, berrando: — As pedras valem mui-to dinheiro. E você as queima, seu estúpido?!...

Robinson apagou na manilha, o cansaço apoderou-se de seus sentidos. Depois, muito tarde da noite, perturbado e zonzo acordou ouvindo barulho de passos, cochichos e rezas. Encolheu-se com medo, diminuiu a respiração, e evitou qualquer barulho. Viu vultos de roupas brancas, lá fora, pela circunferência da manilha, um túnel que se alongava, e ele permanecia no silêncio, lá no fundo.

Pareciam limpar o chão, mais cochichos, mais rezas de linguajar indecifrável, calaram-se um tempo. Mais rezas estranhas, e cochichos acompanharam o barulho de passos indo embora. E pareceu ter ouvido alguém dizer: “O perigoso, ainda, é ele perder a reeleição”. Deixaram velas

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acesas, que iluminavam o teto arcado. No fundo do túnel, Robinson reparava a dança morna da luz das velas, pareciam chamá-lo. Arrastou-se para fora, e da circunferência, pasmo, viu diante de si no chão: farofa, frango assado, cigarros e uma garrafa de pinga, iluminados por duas velas, branca e preta.

Com mãos e boca ágeis comeu a farofa, o frango, fumou e bebeu a metade da cachaça da garrafa. Fumou mais um cigarro, já com o estômago ardendo, tomou mais um trago da pinga. A cabeça girou, sentiu-se suspenso com uma intensa dor no estômago. Estômago embrulhado, cabeça girando, vomitou, voltou para manilha rastejando. Mas a manilha girava sua cabeça em rotação mais violenta, mais vômito fogo nas tripas. Depois de várias rotações, embrulhos, e vômitos adormeceu. As velas se apagaram: primeiro a branca, tempo depois a preta. Tudo era noite escura novamente, a circunferência era sombra, o sono era morno nas pálpebras roxas.

De repente estava na cozinha da velha casa, onde morava com a mãe Edileusa. Uma sombra perto da pia fazia movimentos de lavar pratos, não tinha barulho de pratos, e um chiado fazia a vez da água. Robinson à mesa, sob véu de torpor morno, viu à esquerda da sombra, o cão de seu Nogueira, de orelhas empinadas parecia um lobo parado o olhando. O coração acelerou-se que-rendo sair pelas janelas d’alma. O lobo levantou-se como um homem, que poderia estar de có-coras, e agora se sentava à sua direita. A sombra que fingia lavar pratos imaginários feitos de sombra tomou todo o ambiente, abrindo-se em mil asas. E o lobo parado encarava-o, seus olhos ardiam como dois aros de fogo. O lobo parecia seu pai, era seu pai? E um chiado fazia a vez da água. Sob a mesa, entre filho e lobo, uma vela começou a queimar na sombra, não é preta, não é branca, é parda!, sua luz morna revela o véu de torpor sobre Robinson, os dentes alvos do lobo, e seus olhos de fogo fixados nele.

— Pai, é o senhor? Então, o lobo rosnou em fúria pulando sobre Robinson, derrubando-o da cadeira, foi ao

chão, mordendo sua barriga arrancou pedaços abrindo entrou pelas tripas que ardiam fogo, queimava, e Robinson gritava, gritava alto. Sentiu o lobo se ajeitar dentro de si e abrir caminho como uma tênia para sua cabeça, tomando sua espinha se tornou Robinson, a janela d’alma a-briu-se de repente, acordou com a boca escancarada, uivando para o dia que nascia hoje. Quan-do já era noite de novo, nem sabia o que tinha feito com o dia. Sob a sombra de uma árvore, longe da luz do poste em frente, era o ponto de Beatriz. E foi ela quem ele viu aproximar, com seu vestido colado e curto mostrando curvas obscenas. Ela, ao ver o espectro sob a sombra da árvore se espantou.

— Você?!... Ele só viu o vermelho dos lábios, agarrou e a beijou forte. Ela deu uma joelhada no saco dele

e o empurrou. Robinson foi ao chão, com olhos lupinos fixos nas janelas da alma de Beatriz. Ela balizou a distância entre si e Robinson ali no chão. Seus olhos faiscaram verdes. Lembrou-se da noite anterior quando estavam no pitdog e disse para Draco: “Você é impagável! Andando com uma prostituta e um mendigo cracudo... Num carro importado!” Então, riu pensando: só uma coisa poderia explicar aquele momento inusitado de sua vida, Draco é carente de amizade! Ora, ele tem dinheiro e poder, mas por balizar-se só nisso senti-se incompleto. Naquele momento de segundos dilatados lembrou-se do que um psicólogo, seu cliente, disse uma vez: “Fazer coisas em companhia de outra pessoa redobra o prazer...” E somou: Os companheiros de Draco nada mais são que parceiros de negócios e as relações de amizades cessam ao mesmo tempo em que a causa que as fez nascer, os negócios. Seus olhos faiscaram outra vez. Voltando do minuto a-lém, via através de suas lentes verdes Robinson à sua frente. Ali no chão, sujo, com olhos lupi-nos e arregalados para ela. Pensou que só poderia fazer uma coisa...

— Venha, eu tenho um lugar pra te dar o que precisa.

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Sim, me leva pra sempre, Beatriz

Me ensina a não andar com os pés no chão Para sempre é sempre por um triz

Aí, diz quantos desastres tem na minha mão Diz se é perigoso a gente ser feliz...

“Beatriz” (Chico Buarque)

O PARAÍSO E O CÍRCULO DOS SANTOS

VAPORARAM as nuvens cinza. No lugar do pretume da noite, um azul profundo tingiu o céu, triunfante; sobre a cidade que cheira a gasolina. Então, o sol rompeu no azul esbanjando

seus raios cálidos sauditas, atingindo o asfalto, revelou num canto da cidade o autódromo. Lu-gar que há muito, nesta cidade, pouco frequentado licitamente — abandonado entre aspas — recebe uma muvuca que se move no ritmo do batidão do funk carioca. ................................................................................ Pancadão automotivo!

Bonés, peitos “bombados” e outros magrelos, despidos, agitados pelo batidão. Moças de ca-belos lisos, alisados, de pouca roupa esbanjam vitalidade. Mesas de som, muvuca ao redor. Pa-redes de som. ........................................................................... Batidão do funk carioca!

Louras, morenas, mulatas nas caçambas das caminhonetes simulam o coito no ritmo do ba-tidão. Coxas torneadas, brancas, pardas, negras de pelos dourados. Movimentam-se através do ritmo, se expressando pelas nádegas arreganhadas, shorts curtos de estampa vermelha, tigresa, turquesa simulam o coito no ritmo do batidão do funk carioca. Pancadão automotivo. Carros enfileirados, porta-malas aberto, exibem a potencia do som.

De repente um som destacou-se: Billie Jean em altos decibéis vindo de uma caminhonete Ford branca, gigante, abrindo caminho entre a muvuca. Draco dirigia, Róbin o acompanhava no banco do carona, sorria grande. Na caçamba, uma parede de som bombando Billie Jean remixa-do, cheio de squashes.

Róbin abriu a porta, e projetou-se como se saltasse de um trampolim para o meio da muvu-ca, exibindo-se no ritmo hip-hop, com belos movimentos rítmicos da dança mágica, com seu Top rock, os freezes, e o Moonwalk! A muvuca agitou-se em seu redor como uma muralha, a-

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plaudindo, uns tentam imitá-lo. Mulheres o cercam, e seu ritmo hip-hop converte-se em simu-lação do coito no ritmo do batidão do funk carioca. ................................................................................ Pancadão automotivo!

Draco trazia engatado na caminhonete, uma carretinha contendo carga coberta por lona a-presentando os contornos de um carro. Abrindo caminho entre a muvuca, surgiu outra cami-nhonete puxando carretinha com carga semelhante. Draco caminhou até a porta e cumprimen-tou o condutor:

— Hei, Rios! O tal Rios desceu da caminhonete. Alto, de peito robusto, camiseta polo, e óculos escuros.

Cabelos curtos bem penteados, bermuda tactel e sapatilhas Adidas — porte de grande empre-sário em seu lazer, disse com riso amigo:

— Preparado pra perder, Draco?! Draco riu de volta: — Não conte com isso! Draco foi até sua carretinha, e descobriu a carga: um Chevette modelo antigo amarelo. Leva-

va aerografado na lata o desenho de um dragão chinês, de escamas verdes e douradas do capô às laterais dianteiras; entre as portas e a roda traseira tem escrito: Prince Draco, com tipos chi-neses. Draco tirou sua camisa de seda bordada e mostrou sua tatuagem no braço: um dragão semelhante ao aerografado na lata do Chevette.

— E aí, saiu igualzinha minha tattoo, hein? — Pô, eu já conhecia isso! Não precisava desse teatro todo! Agora, isso tu não sabia! — disse

Rios descobrindo a sua carga: Um Chevette modelo antigo, semelhante ao do Draco, só que pra-ta. Levava aerografado na lata uma carpa azul nadando em ondas de rio. Nas laterais tem escri-to: Prince Rios.

Draco riu chocado: — Isso é plágio! Rios riu de volta: — Sou Walter Rios, brother! O grande chefão na área! Eu disse que tu vai comer poeira hoje!

Nenhum galo metido a príncipe canta no meu terreiro! Riram juntos. Walter Rios estava acompanhado de Beatriz e Roma, este um dos lobos da boca que era do

Boca. Roma cumprimentou Róbin, cheio de trejeitos de “mano”, enquanto Beatriz o abraçou sorridente. Beatriz, de chapéu branco de abas largas, óculos escuros, grande, de camisa esvoa-çante também branca, com um cordão amarrado na cintura e sandálias com salto plataforma. Short curto, sem deixar nádegas amostra como as demais garotas em sua volta.

— Olha só, está de tênis da hora! — ela disse rindo. Róbin sorriu orgulhoso de si. De repente o grito da sereia cortou o ar, Róbin estremeceu, e o pancadão foi desligado. Além

da muvuca viu fleches azul-vermelho. Rios sumiu entre a muvuca em direção ao grito da sereia. Burburinhos e vaias ressoavam nos boxes, e Róbin estremecia querendo fugir, e suava. Mais uma vez a sereia gritou cortando o ar, e distanciou-se até ecoar de fora do autódromo. Walter Rios voltou triunfante, ovacionado.

— O autódromo é nosso! — ele gritou. Draco e Rios emparelharam os Chevettes para o pega, num trecho em linha reta, com menos

de um quilômetro. Com os carros parados, aceleram provocando um ao outro. Róbin acompa-nha Draco no banco do passageiro, empolgado sorria grande. Beatriz não quis acompanhar ninguém, outra garota foi com Rios. Beatriz ficou entre os carros, será ela a dar o sinal de parti-

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da quando deixar seu lenço cair. Aceleram, e quando cai o lenço avançam fritando os pneus no asfalto. A muvuca orlava a pista em delírio.

Os Chevettes não ficam emparelhados por muito tempo, Draco ganha à dianteira afundando o pé. Contraído no banco, Róbin sente a adrenalina percorrer seu corpo, num instante gelado, nem sente batimento cardíaco. Draco chega primeiro na linha determinada, ganhou com folga. Acelerou, e deu um cavalo de pau. Róbin girou dentro de si rindo convulso, afogado na adrena-lina. Draco arrancou e voltou na reta arriscando um drift e quando aproximou da linha de lar-gada executou outras derrapadas. Rios aproximou com seu Chevette e também executou algu-mas derrapadas.

O mundo azul girava em torno de Róbin, e ele ria convulso. Os tormentos do coração davam lugar à claridade, a luz veio povoar a alma de Róbin, e ele ria convulso, porque o mundo azul girava. “Porque também as almas se povoam, não só os chãos, não só as terras dos homens”. — Ora! Isso, o Governo não oferece!

Saíram dos carros, Draco e Rios se cumprimentaram divertidos. Enquanto, Róbin tinha o co-ração na boca, satisfeito sorria se aproximando do geral. Os raios do sol batiam em sua face, enxergava através da luminosidade solar: Draco, Rios, Beatriz e Roma — lado a lado faziam pose para uma foto. Draco seguido por Beatriz chamavam por Róbin. Ele sorriu num minuto além se aproximando do geral. Em suas vistas os quatro já lhe formavam uma foto. Juntou-se aos quatro, feliz, fazendo parte de um quadro!

A noite caiu cobrindo o céu, mas as rodas da caminhonete do Draco tinham luzes azuis. A muvuca se move no ritmo do batidão do funk carioca. Pancadão automotivo. Movimentam-se através do ritmo, se expressando pelas nádegas arreganhadas, shorts curtos de estampa ver-melha, tigresa, turquesa simulam o coito no ritmo do batidão do funk carioca.

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Há quatro semanas antes...

Draco estacionava o carro importado emparelhado ao meio-fio, desceu e bateu com os nós dos dedos no portão em frente. Olhos asiáticos o reconheceram pela fresta, quando o portão foi aberto, disparou a voz de mulher:

— Ela sabe que não pode trazer homem pra cá, senhor Draco! — Acalme-se Senhora Sie! Senhora Sie, mulher asiática, aparentando 50 anos, atarracada estava nervosa. — Eu chamei o senhor... Sabe que ela é muito atrevida comigo... Tem que dar um jeito nela,

senhor Draco! — Acalme-se Senhora Sie! O portão dava para um pátio pequeno, que dividia dois pequenos pavilhões de kitchenette. O

de Beatriz é o de número 1. — Eu já bati na porta dela, mas ela só me xinga, senhor Draco! — Acalme-se Senhora Sie! — Então, liguei pro senhor, ainda ontem, não foi? O senhor tem que dar um jeito nela... Ela é

muito atrevida comigo, se acha a última Coca-cola do deserto..., última bolacha do pacote... Só não dou umas porradas na cara dela, porque se não... Ah! O senhor sabe...!

— Acalme-se Senhora Sie! Calaram-se diante a porta, não ouviram nenhum som vindo lá de dentro. Senhora Sie bufou: — Tem homem aí, senhor Draco, eu vi com esses olhos meus! Oh! — disse indicando seus

olhos com os dedos. — Acalme-se Senhora Sie!

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— Ah!... O senhor deixa essa quenga fazer o que quer! —Senhora Sie esbravejou e saiu a passos curtos e rápidos, resmungando em sua língua materna, batendo os braços.

Draco bateu na porta do número 1. Imediatamente Beatriz abriu a porta, e deixou Draco entrar. Já suspeitava, assim que Senho-

ra Sie disse pelo telefone: “Tem um homem no quarto de Beatriz, um magrelo esquisito”; Ro-binson estava afundado no sofá, sentado, estava limpo.

A kitche é composta por uma sala, cozinha americana, quarto e banheiro; tudo exprimido. Beatriz atravessou a sala e se escorou na bancada de granito que separa a cozinha da sala, as-cendeu um cigarro. Draco reparou as embalagens de comida na bancada, e no cigarro que queimava entre os dedos de Robinson, depois olhou nos olhos de Beatriz:

— O que está acontecendo aqui? Senhora Sie me ligou ontem, e hoje de novo logo cedo. Qual é?... Ou... O que houve aqui?

Beatriz riu. — A Senhora Sie tem razão...! Você é atrevida! — Não houve nada do que está pensando, tá louco? — O que houve então?... — Ele precisava comer..., Draco! Se alimentar, tomar banho... Ora, ele não é seu amigo? Foi o

que disse, não é...? — E o que você disse...? Beatriz! — Não importa, ajudei seu amigo! Draco olhou para Robinson. A TV estava ligada com o som baixinho. Robinson estava assus-

tado com Draco. — O que fez das pedras que te dei? Já queimou tudo? — Vendi! Draco arregalou os olhos surpreso. — Vendeu...?! Robinson levantou e tirou do bolso umas notas de dinheiro e entregou para Draco. Os dois

se sentaram, Beatriz soltava lufada de fumaça. Draco estava espantado. — Ah, é agora! — disse Beatriz aumentando o som da TV. — Estávamos esperando o notici-

ário, Draco. Preste atenção! Beatriz sentou-se no braço do sofá junto a Robinson, como se conhecessem há anos. Pareci-

am até irmãos, Draco reparava espantado. — Vimos as manchetes! Agora preste atenção, Draco! — Estou vendo, pô! O que tem?!... — Draco! Preste atenção! — Beatriz repetiu. Draco revirou os olhos. — Estou vendo..., Pô!... Na reportagem, aparecia dona Jandira, sentada, não consegue conter as abundantes lágrimas

que correm no seu rosto por causa da falta de informação sobre o paradeiro do filho Marco. “Recentemente, Aurélio, o marido de dona Jandira abandonou o lar depois de denuncias da própria filha, por abuso sexual,” informa a repórter. Jandira esfrega os olhos, desesperada la-menta: “... se eu soubesse, mas eu nun- ca suspeitei dessas coisas”.

— “A senhora acha que Marco foi parar nas ruas por causa disso, dona Jandira?” — “Não sei, não sei! [...] Mas, Marco não ficou sabendo... essas denúncias da irmã, só veio

bem depois que Marco sumiu... Não sei por quê! Era um garoto tão amado, na escola então...” — dona Jandira não consegue conter as lágrimas.

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— “O caso retrata uma das consequências de o município ter cortado, drasticamente, os re-cursos ao atendimento a crianças e adolescentes em situação de risco e violência, nos últimos anos. Não garantindo nenhuma atividade atrativa para ocupar o tempo do grupo em questão”.

— “Eu suspeito que ele esteja morto, por causa dessas pedras. É isso, vivia na rua se drogan-do, moça!” — Jandira chora mostrando a foto de Marco.

Robinson olha Draco de soslaio. — “Minha irmã, Edileusa sofre do mesmo problema, arruinada coitada, tá morando no ‘cor-

guin da cavera’...”. Robinson estremece. — “Fomos atrás de dona Edileusa, irmã de dona Jandira”, informa a repórter. “Mostraremos

a reportagem depois dos comerciais”... Beatriz abaixou o volume da TV olhando Draco de soslaio, com reprovação intenta. — O que foi? — Draco pergunta, voltou-se para Robinson. — Olha só que merda! Daqui a

pouco vão falar de você... — Hei, Draco! Não esqueça que ele é seu amigo, hein? —Beatriz contravém. — tsk! Eu não tenho nada haver com desaparecimento de Marco! Ora, o Governo não faz

nada por essa molecada na rua. Agora vai querer me culpar?... Você ouviu: não garantem ne-nhuma atividade atrativa pra molecada, e ainda cortam verba de assistências. Quer dizer: não tenho nada com isso! — disse entre risos: — Eu nem pago imposto pra isso! Estou muito satis-feito com meus lucros, não só eu hein... Não só eu!

Uma lágrima desceu cortando a face de Robinson. Draco olhou comovido. — E seu amigo aqui? — perguntou Beatriz traçando uma linha com os olhos ligando Draco e

Robinson, assim, como se traçasse um plano perfeito. — O que tem? — O lance da “solidariedade”, não tinha concordado com ele? Disse também que ele é seu

amigo, não é? —... . — E o tal Marco? — Já disse! Não tenho nada haver com desaparecimento de Marco! Eu não mato ninguém,

nem ando armado! —irrita-se Draco. — Entendam uma coisa: Eu sou um capitalista como qualquer outro, tenho meus negócios, meus clientes, e meus parceiros de negócios. Essa parada aí de realidade social, tipo: falta de esgoto em bairro, comunidade tal sem Esporte, sem Lazer... E tal, quem se preocupa é político; e pra ganhar voto! ...Eu tenho meus negócios, o que fazer! Primeira vez que cheirei pó foi com os amigos, que ficaram tão loucos e ligadões, conversando como velha matraqueira, que eu percebi na hora que era com isso que eu iria ganhar dinheiro. Sabe por quê? Isso satisfaz os desejos das pessoas!... É, pode achar estranho! Mas, o Róbin aqui sabe muito bem, e de alguma forma não é o que falávamos há duas noites, Beatriz? Então, ga-nho dinheiro preenchendo o vazio das pessoas, lembro bem das minhas palavras: “As pessoas se realizam de outra forma... tipo: quer expressar um sentimento, ou uma ideia que possa com-pletar a alma de outras”. Faço isso de forma real! Pô, nunca viu aquele filme: Matrix?! Escolha o comprimido azul, ou vermelho?! E outra: “Meu nome não é Johnny” o caralho!... Eu quis isso porque dá muito dinheiro, sem ilusão; porque tem viagem pra Paris porra nenhuma! Porra ne-nhuma! Minhas viagens são pra Colômbia! Pra Colômbia! Não sabem o que é ter que atravessar fronteira a pé! Negociar com lavrador metido a traficante ‒ libertário! ...; tu não sabe o que é ter que cruzar fronteira com o cu na mão vendo barreira da PRF e não saber se o Joe que agencia a passagem estará lá na frente; e se o tal: vai cumprir com o trato!...

Suspirou, sentou-se, voltou-se para Robinson: — Olha só... Tu és bacana, Róbin! Gostei muito de você... E não foi só por conta de Breakstyle

não... É porque tu és sussa... Bacana mesmo! É lance de amizade, sim... E pô! Fiquei muito de-

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cepcionado vendo você ali na boca... Se tu disseres que fica limpo, quero acreditar; mas, te dou quatro semanas. — entre olharam-se os três. — Se no mês que vem tu ainda estiver limpo... Pô! ficarei muito feliz, por você hein! E eu cuido bem dos meus, pode crer!

Sorriram os dois, Robinson envergonhado. “Amigo?” Nunca tinha ouvido esse adjetivo rela-cionado a si. Ver a foto de Marco no noticiário, sabendo que este pode estar morto, deu um nó na garganta. “E se estiver morto, não foi a mando de Draco?” — Quis apagar a questão da cabe-ça, pois o adjetivo “amigo” era bem diferente do substantivo “primo”.

O noticiário retornou do intervalo. Robinson estremeceu com a música que anuncia o retor-no do programa. Beatriz aumentou o volume, disfarçava um sorriso (assim, como se traçasse um plano perfeito), vendo na tela da TV um casebre nas margens de um córrego, e noutra to-mada: outros casebres vizinhos, no primeiro uma mulher humilde aparece à porta, Edileusa. Robinson estremece.

— “Uma invasão!” — diz a repórter. Continua: — “Edileusa saiu da casa da irmã Jandira há sete anos, por desentendimento com o cunhado

Aurélio. Não é isso, dona Edileusa?”. — “Sim... coisa boba, mas era difícil o convívio”. — “Suspeitava de alguma coisa?”. — “Não... eia! Era homem trabalhador como qualquer outro. Tinha lá seu defeito”. — “E o Robinson e o primo Marco?”. — “Ah, isso foi tempo depois. Os menino era pequeno! Robinson fugiu de casa... [...] não sei

se com primo... [...] o que sei? Nada! Mas, as notícias que ouvi? Droga! Os dois envolvidos com essas pedras, coisa do Cramulhão... ora, coisa errada num é do Canhoto? [...] Procurei sim, e chorei muito... [...] perdi tudo fia, marido com os fio mais velhos, depois o mais novo, o Robin-son. Perdi família, e emprego... [...] tudo aqui, ói! Como está vendo! Na miséria... [...] Vivi de a-cordo com as consequença da vida empunha ne mim, moça! Nunca soube se estava errada! Não sei... [...] sinto muita dor no peito, mas né doença não, viu, é da alma amargada mesmo”...

Robinson catatônico escutava repercutir em sua cabeça: “Procurei sim, e chorei muito... per-di tudo fia, marido com os fio mais velhos, depois o mais novo: Robinson!; Robinson!; Robin-son...! perdi família, e emprego... Robinson!, você está fazendo isso de propósito...! Não gosta de ver a minha felicidade, né...?! Robinson...!”

— “Uma invasão!” — diz a repórter. — “Robinson...!” — repercute em sua cabeça. — “Uma invasão!” — repete a repórter no ouvido de Robinson catatônico. Piscadelas... Beatriz e Draco olham-no. O som da TV estava desligado,

na tela aparecia a imagem do ancora do telejornal fazendo o sorteio de eletrodomésticos e mó-veis, num palco montado diante uma centena de pessoas, num bairro pobre da cidade.

— E então, Draco? — Beatriz perguntou. — Como assim? — tornou Draco. — O que quer que eu faça? — Amigo não é pra essas horas...? — O que quer que eu faça? — repetiu. — E aquela casa que você tem fechada? Ainda tem...? — Hã?!... Não estou te entendendo, Beatriz! — É simples! Preste atenção: eu trago a mãe do Róbin, e você providencia a casa, não pode?

Olha, são coisas de amizade, se não quer arrumar um amigo, então não saia de casa! — Ai, ai... Nada haver! E a TV?... A imprensa?... Tá louca?!... Beatriz riu. — Não suporto essas tuas risadinhas!

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— Deixa essa parte comigo! Também tenho clientes, não? Você é meu cafetão, sabe disso! Meus clientes são seus clientes. Sabe disso!

— A casa não está no meu nome. Mas, é minha sim. Está fechada ainda; mobiliada..., e tal. Mas, está no nome daquele tabelião ainda... Vou passar para o nome da minha esposa, só que,... é..., o tabelião está providenciando outra coisa, primeiro. — Sem graça, Draco olha para os o-lhos lacrimejados de Robinson.

— Ok! Ok!... Beatriz faça isso! Beatriz ria, abraçou Robinson, Draco continuou: — E... Róbin, nada de gírias! As pessoas tem que entender o que tu fala se não tu é estranho,

entende? Nosso negócio não é legalizado, então todo cuidado é pouco. Quem fala em gírias fica visado, torna-se suspeito de qualquer coisa. Na verdade a maior parte das pessoas não sabe lidar com quem sabe falar — se embananam. E se não tem provas contra você: calam-se! Agora, o sujeito que sai falando em gírias, e cheio de marra e manha no tom de voz: “tem que ter” cul-pa nalguma coisa, entenda! Tipo com adolescente sabe? Ninguém confia... — riu.

Robinson riu seu riso de cachorro de rua acolhido. Draco estendeu a mão para Robinson, fi-zeram o pacto. Beatriz comemorava. Draco devolveu o dinheiro que Robinson havia lhe entre-gado pela venda das pedras.

— É seu! E... Amanhã, passo aqui pra ver como estão as coisas, tem uma kitche vazia, vou fa-lar com a Senhora Sie que tu fica lá por enquanto.

— Senhora Sie é o cão de guarda, Róbin! — zombou Beatriz. — Nada disso! É minha gerente, deste estabelecimento! E uma boa senhora por sinal! Beatriz deu gargalhadas. — Tenho 10 garotas aqui, Róbin. E a Senhora Sie é que as mantém em ordem, entende? A

Beatriz é a número 1 da lista, por isso é assim: atrevida...! Estou fazendo o que posso para man-tê-las fora das ruas, agenciando encontros com cliente vip... Ainda fazem ponto na rua pra completar o orçamento delas, mas por pouco tempo! Agora tenho que ir!

Na saída Draco falou com Senhora Sie, que revirou os olhos descontente. No carro, Draco resmungou: — Putz...! O que tenho na cabeça? Compaixão não combina com o que faço! Mas, é um ami-

go... Pô! Agora é..., né? Pisou fundo, o pneu fritou no asfalto.

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Uma sensação de medo atravessou a alma de Robinson, temia uma situação dolorosa, como ocorrida no passado. Olhava em torno de si, estava em “sua” kitche, menor que o da Beatriz. Sentia que as lembranças dolorosas tornavam-se armadilhas e queria evitá-las, mas o que pen-sar então? Sempre esteve numa mata fechada, sem conseguir ver, ou saber se existia um hori-zonte. Sempre esteve oprimido por sensações e lembranças dolorosas, sem encontrar uma bre-cha para respirar. — O medo que as coisas se repetissem não o deixava enxergar um horizonte, e o fazia se tornar passivo diante as contingências da vida... “Vivi de acordo com as consequen-ça da vida empunha ne mim. Nunca soube se estava errado!” — fazia a voz da mãe Edileusa a sua, e não encontrava o sentido que deveria extrair de sua vida, como se muitas línguas fossem faladas ao mesmo tempo — e talvez seja tudo criado por si mesmo. “Pô, nunca viu aquele filme: Matrix?! Escolha o comprimido azul, ou vermelho?!” — não sabia se poderia escolher... “Por um lado, não se sabe nada, e por outro, não se compreende aquilo que se sabe...”.

Mas, no meio de tudo isso, também sentia sua alma ser atravessada por um raio de esperan-ça, de que tudo iria dar certo, ou pelo menos, que tudo viesse a ter sentido, de alguma forma,

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num futuro próximo. O começo de um novo caminho na vida, um novo padrão de vida, novas condições materiais — que lhe trará satisfação. Então, queria ganhos materiais, e deleite espiri-tual. Mover-se em direção a um estado real de sucesso. O encontro com a harmonia social, a apaziguação das tensões.

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As pancadas, chutes e beliscões levam a criança ao medo. O medo leva a criança a fugir da rea-lidade e a se fechar. Teme as pessoas, as coisas, e mais tarde as instituições! Por quanto tempo? — digo: Por quanto tempo temerá os LOBOS, até querer se tornar um LOBO?! — E se isso é ru-im, o que se deve fazer? Se o mundo é individual e consumista, por qual razão o Governo não garante atividade atrativa, que satisfaça essas individualidades? — Ora! Isso não é o que o Go-verno fornece às Indústrias & Comércio...?

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Enfim, o dia amanhece... Róbin! É assim que o chamam: Róbin! Afinal, Róbin teve sorte?! Draco havia ligado, estava passando, que Róbin o esperasse a porta. Beatriz seguiu com seu plano sa-indo ainda cedo. O sol raiava sobre as cabeças, quando Draco apareceu. Róbin pulou no carro, e partiu com Draco ruas à dentro da cidade... Acostumara com o ronco do carro, vestiu a pele de Draco, e o chama de amigo, e o acompanha para todos os lugares. Nas festas, Róbin é o centro das atenções com seu Breakstyle descontraído. Róbin! É assim que o chamam: Róbin! Afinal, Róbin teve sorte?!

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Muro alto, branco com letreiro discreto: Walter Rios Import. Portão de folhas de aço com em-blema de uma empresa de segurança. Draco e Róbin atravessam a rua, nem larga, nem muito estreita; o primeiro aperta o interfone.

— Sou eu... Draco! O portão destravou, entraram os dois. O portão dava para uma garagem, Róbin viu duas mo-

tos com bagageiros de entrega. Um homem grande já os esperava, com uniforme de segurança, azul com colete preto, arma na cintura. Passou os olhos no Draco, e foi revistar Róbin, bastante agressivo, foi interrompido por uma voz.

— Róbin?! — Roma estranhou a presença. — Calma aí véio, esse é o Róbin! — disse ao se-gurança.

O segurança não deu ouvido, carrancudo, terminou seu serviço, e vociferou: — Tá limpo! — Claro que está, é o Róbin, véio! Hei, faz aí a dancinha do Michel Jackson pra ele ver, Ró-

bin! — Qual é Roma! Se liga, pô! — Draco interveio. — Tá certo!... Tem razão! — concordou Roma esfregando as unhas no pescoço, seus anéis

de prata reluziram. — Por que o trouxe aqui, então? Draco riu. Enquanto, Róbin permaneceu calado evitando olhares diretos. — Chega aí... — Roma convidou Róbin para entrar. Passou por uma antissala, com recepcionista asiática ao telefone, prateleira cheia de tênis

importado da China. O segundo lobo estava sentado no sofá lendo revista. — Aí, Duende! — disse Roma ao companheiro apontando Róbin. Duende sorriu, levantou e

cumprimentou Róbin cheio de trejeitos:

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— E aí, maninho! Só de boa? Róbin sorria duro, numa mistura de medo e receio no peito. Seu coração rufou dentro da

caixa torácica quando percebeu que estava prestes a entrar na sala de Walter Rios, o “Grande Chefão” como diziam... A porta foi aberta, os olhos de Róbin atingiram a mesa: Walter calculava, batendo o dedo no teclado da máquina com bobina amarela, consultando agendas e notas fis-cais. Na mesa havia um notebook, celulares e bolos de dinheiro em pilhas... Walter levantou as vistas parecendo calcular uma linha imaginária ligando Draco e Róbin.

— Quem é esse, Draco? — Róbin, um grande amigo meu! — Ah, então esse é o tal Róbin, que tanto falam... — Rios passou os olhos em Róbin, e vol-

tou-se para Draco. — Pô! Achei que falando o nome dele ele faria uns passos maneiros! Draco olhou Róbin, que se sentiu intimado... Muito sem graça Róbin fez um Top rock, depois um meio Moonwalk para trás e para o lado,

e Roma bateu uma mão na outra. — Rusbéh!... — fez Roma, imitando a voz de Michael Jackson. Róbin enrubesceu. Walter Rios escorou as costas no espaldar da cadeira, sorria para Róbin. — Sentem aí, Draco e Róbin. — disse Rios mostrando as cadeiras de couro à frente de sua

mesa, ria. — Tu agora tinha que mudar seu apelido, Draco, para: Batman, daí fica Batman e Ró-bin.

— Rá...! Rá...! — fez Draco em tom de deboche, sentou-se. Roma saiu e fechou a porta. Róbin estremeceu na cadeira, evitando olhares diretos com Rios. — Saca só, tem um pessoal meu vindo de Cáceres com carga pesada... — diz Rios. — Daque-

le modelo: R$ 12 mil a R$ 15 mil o quilo, sem vacilo! Vamos continuar na parceria, Draco. Tu está com umas meninas top, só que essa parada aí de deixá-las ir pra esquina, sei não... Hei, te-mos que manter os gestores do Estado do nosso lado, entende?

— Não sou novato, Rios. Não estou te entendendo... Duvida do meu profissionalismo...? Você me indicou a Senhora Sie, ela me ajudou a organizar as kitchenettes... Estou fazendo o que pos-so para mantê-las fora das ruas, e a Senhora Sie controla alimentação, os horários de saída, a saúde dermatológica e vaginal, e capilar...

— Eu sei disso... Porra, não duvido de nada, tu é parceiro. — Rios separou bolos de dinhei-ro. — Roma e o Duende tão nessa das pedras, mas tu mexe é com a burguesia... Tá com uma freguesia boa pro “sal”. Tem as meninas, sempre toma cuidado com a Receita... É parceirão! — Rios põe o dinheiro separado num saco, entrega para Draco. — Vamos fazer a logística e te por na rota do “sal” na cidade, pra tu comercializar... Agora, e sobre os gestores...? O que me diz?

— Não se preocupe, vou alugar a mansão Le’ Perraulte, como da última vez... — Perfeito! — A Senhora Sie tem bons contatos de Buffet, e eu mesmo averiguei, são sussa para o negó-

cio... Estou selecionando com minha esposa mais garotas de confiança, de família... Nenhuma viciada, elas tem pedigree, algumas cursando faculdade particular e tudo!

— Perfeito! Mês que vem?! — Sim, no prazo certo... Tu já me viu correr nos pegas, rá! Walter riu: — Tu é que nunca tocou uns pega comigo, bora no autódromo depois da festa? O que fez

com aquela lata velha, que tu achaste no ferro? ...Vai comer poeira hein! — Rá! Vais ver. Bora toca uns pega, pô! Combinado! Levantaram. Róbin deu um pulo. — Ainda alugando carro importado toda semana...? Não te entendo, tu concorda comigo so-

bre o modo de falar... Sem gírias, chamar menos possível a atenção, sempre toma cuidado com a Receita... Até casou com moça granfa...

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— Por isso tu confias, não? Então, o gerente que me aluga tá na mão, não se preocupe. Sabe que amo carros, Pô!

— Ok! Ok...

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No carro; Draco e Róbin: — A ralé tem as pedras, Róbin! É uma droga que faz matar, roubar e destruir a vida do ser

humano. Mas, tem muita gente só pelo negócio, nunca foram usuários, como o Walter Rios e a família dele... Porque é lucrativo, um mercado valioso. Movimenta montanhas de dinheiro, e mantém um monte de instituições governamentais e não governamentais recebendo verbas, é que secretarias recebem o dinheiro oriundo do patrimônio apreendido de traficantes. As pe-dras valem dinheiro sim, muito dinheiro, mas o comércio delas é um campo de guerra, tu sabe bem disso...!

Róbin concorda com a cabeça. — Por isso temos que cuidar da nossa segurança. Tu se lembra do que a Beatriz disse sobre

o mundo...? — O que importa nesse mundo de hipócritas, mesmo, é o poder e o sucesso e a riqueza! — Putz... Então, tu lembra perfeitamente, quase ouvi a voz dela...! —riu. — Perfeito! Não se

esqueça disso, Róbin! Tudo o que ela falou naquele noite, está coberto de razão. Mas, nunca diga isso pra ela hein! — riu mais.

— É questão de Poder e não querer! — Róbin disse. Draco riu espantado, um carro passou por eles buzinando, Draco xingou. Acelerou, o carro

roncou. Ultrapassaram o “buzinante”. E logo a diante, parou em frente a um prédio, estavam em bairro nobre.

— Alex? — falava no celular. — E aí? É o Draco, ‘tou aqui em frente ao teu prédio!

— Draco? — respondeu do outro lado. — Sobe! Vou avisar o porteiro. Veio na hora certa! Draco desligou.

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Silêncio, apenas o motor do aquário fazia um zumbido discreto, no meio da sala. Os peixes pa-reciam de vidro, silenciosos e coloridos, não são bichos de estimação, são enfeites caros. No sofá de assento largo e espaldar pequeno, uma moça e um rapaz estudavam as imagens de Dra-co e Róbin. Alex, cabelos pretos e lisos, cílios longos e densos, cumprimenta Draco:

— Beleza? Esse é o Guilherme e minha namorada Renata. — Eu me lembro deles! — Ah, é...? Chega aí...! Róbin seguiu os dois até o quarto do rapaz, ultrabook ligado em cima da cama. Guarda-

roupa grande, prateleiras de madeira fixadas na parede com miniaturas de carros e motos. Um violão no canto, que fez Róbin lembrar-se de Geovane e as músicas que tocou naquele longín-quo domingo. Alex retirou dinheiro da gaveta da escrivaninha.

— Trouxe as dola? — perguntou para Draco. — Não...! — respondeu sentando na cama do rapaz. Róbin fincou-se ao seu lado. Alex sorriu

e entoou um riso desconfortável: — Como assim? — E olhou Róbin de soslaio. Draco colocou o ultrabook no colo, Alex ficou preocupado com o gesto. Róbin sentiu um cli-

ma tenso, mesmo Draco estando tranquilo. Alex o olhava desconfiado.

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— Quanto está me devendo, Alex? — Ah, é isso... — Alex sorriu envergonhado, preocupado com a presença de Róbin. — Sim, é isso. R$ 300, 400...? — Pô! — R$ 500...! Quantos anos você têm, Alex? — 23. — E você, Róbin? —... Hã? ... Eu? ... . 18! — 18 anos! E viveu uma pancada de coisa doida né, Róbin? E você Alex, terminou a faculda-

de? — Não! — Hum...! Você acha que eu tenho cara de aviãozinho Alex? — Não...! Que isso cara! Claro que não! Sabe que... — Por que tu acha então, que eu viria aqui te entregar umas dolinha de nada, e puft...! es-

quecer que tu me deve 500 pila? Alex suspirou. Sentou na cadeira da escrivaninha. — Tu achas que eu sou malandro, vagabundo Alex? Hein...?! Alex ficou aturdido entreolhando Róbin e Draco. — E teu pai, cobra R$ 80 mil pela franquia da empresa dele. E tu me dirias que cada peixe

do velho ali no aquário, o mais barato, não vale uns R$ 700...? Assim, tu me deixas com vergo-nha de lhe cobrar apenas 500 pila, sabia? Mas é o que tu me deve, já reguei muito suas festi-nhas, e as do seu pai com minhas putas e drogas.

— Hei! — Alex se zangou. — Hei o que Alex?! Diga! Hei o que?! Alex abriu de volta a gaveta, e tirou mais dinheiro, entregou a Draco. Olhava de soslaio o Ró-

bin. — Hum...! Mas, me diga, tu acha que eu vou te dar troco,

ou vou cobrar os juros? Alex tornou a abrir a gaveta, e tirou o restante do seu dinheiro, entregou. — Ok! Agora estamos quites, será a última vez que me vê... Se tu soubesse o que as pessoas

passam aí na rua pra conseguir R$ 789,71 pra pagar banco e conseguir sobreviver com um mí-nimo de paz e conforto... E se tu tivesse alma, sentirias vergonha...

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No carro; Draco e Róbin:

— Eu poderia até esquecer esse dinheiro, sabia? Mas, não! E tu passou um susto nele...! — Eu? — espantou-se Róbin. Draco riu. — Mas eu não fiz nada...! Draco riu mais: — Tu tens ainda a cara da rua, Róbin! Esses almofadinhas temem a rua, pra eles nós somos

lobos...! Róbin arrepiou-se. A palavra lobo soou em seu ouvido como um rosnado. — Sabe... Eu venho da classe média. Minha casa era tipo daquela novela Éramos Seis. Meu

pai era a maior instância, rígido e provedor da casa... Mas, estudei na mesma escola que tu, sa-bia?

Draco riu. — Mas..., lá é Escola Pública, Draco...!

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— Sim, mas, pense: se meu pai colocasse minhas irmãs e eu numa escola particular, gastan-do grana com mensalidade, deixaríamos de ser classe média. — riu. — Conheci Roma, e o Du-ende lá. O Roma era Romualdo, e o Duende: Diogo. Por isso entendo o Alex, claro guardando suas devidas proporções, o moleque é rico... Mas, meu pai como o dele, só se preocupava com o dinheiro, expandir os negócios, nunca teve tempo para nós..., nem pra bater! Minha mãe sem-pre cansada ajudava meu pai, cuidava da casa e só pensava em dinheiro e na expansão da loja também. Classe média, Róbin, é isso! Preocupar com o amanhã sempre, e temê-lo sempre... — riu sem graça, ficou sério. — Tudo é negócio, até o casamento e os filhos!

Pairou o silêncio, num instante apenas o motor do carro fazia ronco grave. Até que Draco quebrou o silêncio:

— Como eu te disse: ganho dinheiro preenchendo o vazio das pessoas... Draco parou o carro em frente ao portão das kitchenettes. Era fim de tarde. Enfiou a mão no

bolso, tirou o dinheiro que pegou do Alex. Contou, e dividiu com Róbin. — Tu me ajudaste hoje! — Ajudei? Draco abriu o porta-luvas e tirou um molho de chaves de lá, entregou a Róbin. — Beatriz sabe onde fica a casa! — Nossa... — Saiba de uma coisa, Róbin! Dinheiro e comida são o que não falta nesse mundo! O que a-

travanca tudo é a ganância e a ignorância! O que anda faltando nesse mundo de hipócritas e oportunistas é AMIZADE!

Senhora Sie abriu o portão para Róbin, e nem deu conversa para ele voltando para a sua kit-che com passos curtos e rápidos. Róbin atravessava o pátio se sentindo noutra dimensão, como se descortinasse o ar em sua volta. Disse em voz alta:

— Quem pode querer ser um gari, enquanto se pode ser o Draco?... Quem pode querer fer-ramentas emprestadas, enquanto o mundo pode ser seu...?

A voz de Beatriz soou atrás dele: — Cuidado, RÓBIN! Num mundo onde todos querem ser rei, o primeiro a conquistar o tro-

no, logo será derrubado...! Róbin voltou-se para Beatriz assustado. Ela estava à porta da kitche dela. Entrou dizendo: — Venha cá! Róbin enfiou a cabeça entre os ombros. Entrou na kitche de número 1. Beatriz estava esco-

rada na bancada de granito, acendia um cigarro. — Senta! — Beatriz ordenou. Róbin obedeceu. Beatriz jogou a carteira de cigarros no colo dele, e enquanto ele acendia o

cigarro: — O que deu em você, hein? Mantenha seus pensamentos dentro da sua cabeça! Você não é

de falar muito, isso é bom... As pessoas vão acreditar que você não é de pensar muito também! Beatriz sentou-se no braço do sofá. — Draco te deu as chaves da casa? — Sim! — Ótimo! Amanhã te deixo lá, e vou buscar sua mãe. Róbin engoliu seco a fumaça do cigarro, depois perguntou: — Beatriz, você tem carro? Beatriz riu. — De onde tirou essa, agora? Vamos de taxi...

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A noite fez um risco no céu azulado. Róbin caiu da cama, despertado pelos socos de Beatriz na porta de “sua” kitche. Levantava do chão enquanto ela ainda esmurrava a porta:

— Acorda bela adormecida! Pois, o dia já raiou flor do dia! Beatriz estava de óculos escuros grandes, e short curto, sandálias de salto plataforma. To-

maram o taxi depois de um rápido desjejum. Róbin olhava o caminho, como se decorasse um mapa farejando-o.

— Chegamos? — perguntou. — Sim... — ela respondeu. Saltou do taxi, pago pela Beatriz. A casa tinha o portão de placas de ferro cinza. — As chaves, Róbin! Garagem, sala dois ambientes com sofá, rack com TV LCD; mesa de tampo de vidro com seis

cadeiras. Beatriz tirava os lençóis que guardavam as coisas. Cozinha com armários, fogão, gela-deira enorme e mesa do café. Dois quartos, sendo uma Suíte. Róbin via tudo flutuando noutra dimensão. Virou em torno de si, e viu entrar pela porta a mãe Edileusa, magra como sempre foi, velha como nunca tinha visto. Vestia-se bem, puxava uma mala de rodinhas.

— Robinson?! — Mãe?! Os dois muito acanhados, não souberam como agir. Sentaram a mesa, e olharam-se desco-

brindo suas mudanças físicas. — Você tá diferente, cresceu! Edileusa olhou em redor. — A secretária da empresa onde está trabalhando, Robinson — falou deixando Róbin espan-

tado: “Secretária?” —, me disse que você ganha muito bem lá no emprego! Que o gerente gosta muito de você, que foi ele quem deu o dinheiro pra comprar roupa pra mim!

“Gerente?” — Róbin pensou espantado de novo. — É verdade? — O que a senhora acha? Olha só as minhas coisas... —gabou-se. — Eia...! Estou vendo, fio. Ela também disse que cê me procurou... Ora, eu nunca soube que

fugiu de casa pra fazer sua vida... Fiquei muito preocupada, sabia? — Ué, Mãe! Mas eu num te disse pra você: “Vou comprar coisas pra vender e vou ganhar o

suficiente pra dar pra senhora uma vida melhor...!”. Num acreditou, né?! É o que-que fiz! — Ró-bin sorriu um sorriso amarelo.

Edileusa também sorriu, mas, um sorriso quente, orgulhosa. — Sabe... Sempre me espantou de mais cê me dizer essa frase. Era pequetitinho quando Ju-

ca, seu pai, morreu. E decorou assim a frase dele, mas ele falava de troça com eu... —os olhos de Edileusa se perderam num vazio escuro. Sorriu medonho, disse: — Seus olhos era pretinho, fio! Igual jabuticaba ne bolinha de gude! — e Entristeceu-se: — Ah, quanto sofri nessa vida...

— A senhora tava no corguin da cavera, por quê? — Eia...! Quero falar disso não... Quero deitar na cama! Róbin saiu para garagem, pensativo, tirou carteira de cigarros do bolso da calça jeans. Sen-

tou-se ao chão, escorado na parede, acendeu um cigarro, soltou uma lufada de fumaça, e ficou olhando, como se seus pensamentos estivessem ali diante seus olhos, ou sua mente projetava na fumaça do cigarro tudo de tristeza, que no passado abalou a sua sensibilidade. Tentava des-cobrir se era certo, ou errado: não querer estar com sua mãe, mas em vão, pois tudo surgira ines- perado, como se tudo não passasse de um plano de alguém.

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Beatriz preparando lanche na pia da kitche de número 1, disse:

— “Pode ser tão difícil compreender seus sentimentos neste momento que, inclusive, você pode achar que não está sentindo nada. Mas, é impossível não sentir nada”. Você está com me-do, não teve tempo de descobrir o que realmente quer...

Róbin a interrompeu: — Medo? — Sim..., medo de não dar conta da nova vida... Olha Róbin, eu passei muito por isso, sabe?

Senti falta de uma mãe para dar um bom conselho, talvez um pai... Não tive tempo de refletir ou me conhecer. Porque a sociedade cobra, a família cobra. Senti-me oprimida diante de uma res-ponsabilidade, e cobranças por resultados. Por um lado, pela sociedade, e por outro, pela famí-lia. Entrei nesse mundo de cabeça...

Beatriz parou entre a cozinha e a sala, segurando lanche, arqueando os sobrolhos, disse: — Eu pensava: “Qual a diferença entre o prazer e a dor?” Então, descobri que não há dife-

rença, são a mesma coisa, são partes de você. Ora, “as palavras tem sentidos que mudam como eu mudo”. Entende? — Perguntou e se sentou, dividiu o lanche com Róbin. — Você está confu-so, agora — as palavras saiam entre a mastigação de Beatriz. — Logo, logo verá: as palavras têm sentidos que mudam como VOCÊ vai mudar!

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Noutro dia, Róbin contava quantas notas tinha num bolo de dinheiro. Estava em seu quarto, quando ouviu o interfone tocando. Enfiou o dinheiro numa caixa, com dezenas de pedras, e guardou a caixa na última gaveta no guarda-roupa.

Saiu para a sala, sua mãe já voltava da porta da rua, ele ouviu vozes se aproximando com a da sua mãe. Para seu espanto, viu entrar pela porta da sala a tia Jandira abraçada com sua mãe... De trás delas, viu surgir um rapaz muito magro, de calça jeans velha, e chinelos maiores que seus pés, flutuando numa camisa preta de manga comprida abotoada até o último botão no pescoço. Seu rosto vincado de marcas de rugas e cicatriz apresentava sorriso em boca tremula faltando dentes:

— E aí, priminho...? Quanto tempo, hein...? O sangue gelou-se nas veias de Róbin, e como se atravessado por uma faca fria no estômago,

recebeu o abraço do primo, e da tia. — Nossa...! Como você está bem, RobsÔ! — ela disse. —Meu Deus! Que casa linda a sua,...

Ah, quer dizer: de vocêis né? — e riu como uma gralha matraqueira. Edileusa riu acanhada. Marco sentou-se no sofá de dois assentos, enquanto Róbin no maior de quatro assentos fize-

ram chiado no couro. Dona Edileusa chamou a irmã para lhe mostrar a casa. — Parece que você teve sorte, hein priminho...? — Marco com olhar luxuriento riscava a i-

magem de Róbin. — Não quer saber o que aconteceu comigo? — O que aconteceu com você, Marco? — Ah, aprendeu a falar, priminho...? — riu convulso em seu riso de coiote maníaco. — O que aconteceu com você, Marco? — Tá certo...! Edileusa passou para cozinha com a irmã, sentaram por lá, à mesa do café. Tudo que falavam

repercutia na sala, mas houve silêncio entre as irmãs por um estante. — Fiquei internado tempão, priminho! Depois preso também, e fizero de mim gato e sapa-

to... Queriam enfiar na minha cabeça que eu vivia ne mundo de imaginação minha, que eu tinha que querer ser feliz... — riu mais do seu riso maníaco. — Mais eu perguntava que mundo real

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era esse o deles, e eles repreendia eu dizendo que eu tinha que deixar de ser revoltado que “trocar a droga pela vida significa conquistar amor próprio, elevar autoestima”... maix!, é por isso que nóix procura as pedra, dizia pra eles... mais eles num entende nóix, priminho...! Fica estimulando riso n’agente o tempo todo, fica ensinando serviço de profissão que nem tem re-torno nas finança...! Aí a gente fica revoltado, de saco cheio e volta pra rua, ou pra cadeia... Tem saco pr’essas encherção não, priminho...! Num guento mais ficar rezando...!

Marco puxou fôlego com um ruído angustiante no peito. Da cozinha vinha a voz de Jandira: — Aquela menina é uma vadia, Edileusa. Seduzia o próprio pai, e agora está grávida daquele

pastor que tirou ela de casa. Nunca perdoei ela por isso, por ter denunciado o próprio pai! O próprio pai! Isso não se faz!

Edileusa totalmente transtornada com a declaração da irmã, não sabia se acudia o choro de-la ou se segurava o próprio coração, não podia acreditar no que estava ouvindo, não sabia o que pensar a respeito, afinal, a família é uma associação de ordem natural e religiosa.

Jandira continua: — E ainda tem o Marco, viciado nessa coisa de pedra do canhoto! Entreguei tudo que tinha

pra fogueira santa, mas o pastor disse que não tem jeito. Que o demônio já tomou de conta da alma do Marco...

Róbin ouvia a conversa vinda da cozinha. Um sorriso serpenteava maliciosamente no rosto de Marco, seus olhos lacrimosos fincados na cara reluziam desejo.

— Minha mãe quer dinheiro — disse. — Toda essa conversa pra sensibilizar a tia Edileusa... — Ela está preocupada com você, Marco! — Nada! Ela quer o dinheiro pra ela, tá vendo que cê tá bem de vida, priminho! Maix...! —

riscou Róbin novamente com seu olhar luxuriante. — Só eu sei onde você consegue né? — Qual é? — Vamo deixa de papo, Róbin! —... Quê? — Isso mesmo que ouviu... RÓBIN! Róbin ficou quieto, surpreso ao ouvir seu apelido na boca tremula do primo, esperou Marco

se pronunciar. — Me dá umas pedra, eu caio fora agora! Minha mãe nem vai ver eu sair... Só que ela vai

querer o dela de qualquer jeito. Maix...! Pelo menos tia Edileusa não fica sabendo de onde vem tua grana, priminho! — riu baixinho para si —... Cê pode pensar em me trucidar agora! Mais e minha mãe? Mais e minha tia? Dá logo as pedra, priminho... E uns troco aí que eu caio fora, pri-minho! Nunca mais vai me ver...! Priminho!

— Eu não mato ninguém, nem ando armado! — disse Róbin. Na cozinha, Jandira dizia para Edileusa: — Quem já vive no extremo não pode dar os luxo de brincar com certas coisas, irmã... Tou

indo sempre na Igreja, lá conhecemos novas pessoas e tem gente que cuida, sabe? E tem canto-ria! É melhor do que ficar em casa fazendo besteira nas carnes pensando ne pinto. Mais tratar de drogado não é fácil, só na Igreja mesmo pra arrumar ajuda. Os povo de fora tem preconceito, sabe. Mais, eu sei que essa vida de vicio é imoral, o pastor falou, os drogado acha que é livre... Mais corajosos que qualquer um... — chora.

— Você tá precisando de ajuda de dinheiro, irmã? Enfim, Edileusa fez a pergunta que Jandira queria tanto ouvir. — Oh, minha irmã... Queria falar nisso não, mas tou precisada sim! Aurélio faz falta de mais!

Ah, como faz! O choro não é falso. É constrangedor, dói na alma. Edileusa sentiu e se compadeceu com a

irmã; — essa vida de miséria e sem homem? Como ela poderia ser indiferente à pobre irmã

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Jandira, desesperada ali na sua frente? Agora ela ocupava o outro lado dos papéis, agora era ela a provedora. E se de alguma forma, ficou sentida com o trato da irmã mais velha quando preci-sou dela e do marido Aurélio, ela não faria o mesmo, “seria melhor, boa mesmo!” — confessou consigo.

Róbin voltou do quarto, segurava meio terço do dinheiro que tinha mais as dezenas de pe-dras num saco plástico. Marco não estava na sala. Róbin ouvia a conversa da mãe e da tia lá na cozinha, Marco não estava lá, chegou até a garagem e encontrou o primo fumando cigarro fedi-do. Entregou o saco plástico ao primo, que sorriu grande prendendo gargalhada chiada na gar-ganta:

— Valeu priminho! Te amo...! — riu baixinho. — Abre o portão pra mim? — pediu enfiando o saco plástico na cintura da calça e tampando com a camisa.

Róbin tirou o molho de chaves do bolso, e abriu o portão. Marco pulou pra fora, igual a ca-chorro fugindo de casa. Róbin perguntou:

— O que eu digo pra tia Jandira? Marco riu. — Ora, que ela perdeu o meio de tirar dinheiro dos outros... — Marco riu sua risada de coio-

te maníaco. Marco foi-se, andando rápido, arrastando os chinelões. Róbin voltou pra casa encontrando com a mãe e a tia saindo da cozinha pra sala. — Ué... Cadê o Marco? — tia Jandira perguntou. — Fugiu... Quer dizer: foi embora. — O quê? Como assim? — Ele disse... É... Que a senhora perdeu o meio de tirar dinheiro dos outros! — ROBINSON! — Edileusa gritou. — E você o deixou ir...? — Jandira caiu em prantos nos pés de Edileusa. Edileusa lançou uns olhões esbugalhados para Róbin. Sem saber o que fazer, conseguiu sen-

tar Jandira no sofá com ajuda de Róbin. — Ela tá precisando de dinheiro, Robinson! Perdeu tudo pra salvar Marco das ruas. — Então? — Róbin fez de desentendido. — Eia, você não pode ajudar sua tia Jandira que fez tanto pra nós no passado? — Não...! Edileusa lançou mais olhões esbugalhados para Róbin. — Ué, a senhora tem dinheiro, não te dei?... Então, dê o seu dinheiro pra ela! Foi o que Edileusa fez. Depois de muito choro, Jandira enfiou o dinheiro no meio dos peitos,

respirou fundo e foi embora. Róbin saiu ao mesmo tempo, deixou Edileusa sozinha em casa, querendo evitar um conflito eminente com a mãe. Só voltou na calada da noite. Ao passar pela sala indo para seu quarto, viu sobre a mesa a Bíblia aberta nos Salmos, deteve-se um instante diante dela. Passou a ponta dos dedos nas folhas. “Palavras de sabedoria”, sempre ouviu dizer. —Sua mãe buscava a sabedoria? “Para quê? Agora tinham dinheiro!”

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Noutra noite, terminaram o jantar, Róbin raspou o prato:

— Uma delícia, mãe! Edileusa recolheu os pratos, levou-os a cozinha. Satisfeita, sorria. Depositou os pratos na pia,

abriu a geladeira. Foi como uma luz que se acendesse brilhando sobre os olhos de Edileusa. Ela havia atravessado uma região árida em sua jornada. Agora, chegou a paragens mais verdes, mais férteis. Escolheu uma fruta fresca e retornou para sala. Admirou o rosto do filho percor-rendo-o com a mão.

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Róbin alegrou-se enfim: — Lembro que a senhora sempre fez boa comida, mãe! Ela foi descansar sentada no sofá macio de couro, dando-se ao luxo de contemplar, atrás de

si, seu comprido e difícil trajeto: ah! Se não arranjasse um emprego, só ela saberia como ia fazer para pagar as contas...; ah! Aquele calor desconfortável que só as cozinhas pobres sabem ter...; ah! Sempre viveu num arrocho de vida, ó gente! Agora, pode repousar e dedicar-se a si mesma! — Graças ao filho!

— É fio?... Mesmo quando era apenas feijão?... — ela riu. Róbin riu de volta: — Mesmo!... — e foi se sentar com a mãe. Sorriram, acanharam-se. Robin alegrou-se sentindo que tinha cumprindo com a promessa

feita a mãe, de encontrar o meio de recompensá-la de todos os sacrifícios que por ele fizera. Via a linha que o ligava a Edileusa completamente restaurada. Róbin deitou a cabeça no seu colo, olhava as flores bordadas no seu vestido traçando com o dedo o contorno do desenho, olhou nos olhos dela.

Edileusa o encarou: — No dia que sumiu, eu voltei pra casa de sua tia ainda de manhã, acreditei que você estava

para a escola... Eia! Tinha uma dor de cabeça terrívio, seu tio sabia fazer massagem... Bem... Ele me disse... Quando veio seu primo Cláudio pro almoço, ele me disse antes de sair pro trabalho dele... Trabalhava no juizado, de aprendiz, lembra?

Róbin fez que não. Ela continuou: — Pois trabalhava sim... Naquela ocasião, na varanda sombreada da casa da tia Glorinha, Cláudio sentou-se numa das

cadeiras, junto a Geraldo e Edileusa, disse: — Olha tia, sabe que estou trabalhando de aprendiz lá no juizado de pequenas causas. Estou

estudando muito pro vestibular, ainda falta tempo pra tal, mas é difícil pra Direito, que tanto quero. Tem um advogado, que já me garante emprego no escritório que ele trabalha, gostou de mim, ele diz que sou bom, que sou esforçado, que ele também veio de família pobre. Só tenho que passar no vestibular... É... Falo disso pra senhora saber, porque vi coisa de psicologia, al-guns artigos, e coisas pro vestibular. Me detive sobre isso... coisas de direito da criança e do adolescente. Talvez, digo: acompanho todos os dias o que está acontecendo com a senhora e o Robinson, talvez ele esteja passando por problemas psicológicos... Quero dizer: ele entrou tarde pra escola... Perdeu o pai cedo, passando essas coisas com a senhora... Talvez, o que é difícil pela saúde pública..., mas, seria bom a senhora falar com a diretora da escola, pra conseguir psicólogo pra atender o Robinson...

— tsk!... Que conversa é essa, mãe? — Róbin indagou rindo. — Escuta, fio! Desculpa eu! Depois que o Cláudio foi embora fiquei mais encabulada ainda,

cabeça quase explodida de dor, eu não sabia que estava errada, é difícil entender destas coisas! Se soubesse que tava pra rua pra fazer a vida, e provar pra eu... Mais...

— O que houve depois disso, mãe? A senhora tava no corguin da cavera, por quê? — Olha fio. É difícil falar dessas coisas, mais foi por male’ntendido com sua tia Glorinha, oh-

Deus! Geraldo tava fazendo só massagem ne eu, mais sua tia Glória pensou besteira de nós... Me enxotou da casa dela, como se eu fosse um cão... — Edileusa abaixou as vistas, olhar distante na escuridão. — Mais o que importa fio, é que você venceu essas coisa toda e veio me buscar. Mi-nha vida melhorou tanto depois que você reapareceu. Tudo ficou mais fácil, mais bonito! Ah! Que nem conto de fada!

Róbin sentou-se no sofá e estufou o peito: — Cláudio é que é um idiota mesmo, que precisa dessas coisas aí de doido!

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— Fala assim não fio! Ele já tá quase formado pra doutor adevogado! É menino direito, de brio, inteligente. Doutor grande já respeitava as qualidades dele...

— Num tou vendo nada de especial nisso que tá falando dele! Que é que ele sabe da vida? Se achando o dono das razão, que é muito esperto! — Róbin riu.

Edileusa franziu o cenho. — Esses almofadinhas aí, Doutor grande né, temem a rua, para eles nós somos lobos... Roa-

arr...! Róbin imitou o rosnado de um lobo, depois riu alto e foi surpreendido por um sopapo na ca-

ra. De imediato, parou de rir, via as flores bordadas no vestido da mãe, embaçadas. Um calor intenso espalhou no rosto.

Edileusa levantou-se: — Isso é lá coisa de dizer, rapazinho...?! Não é coisa de Deus achar isso da família, e dizer

barábridades dessas! “somos lobos”, que conversa é essa? Tem nada na rua que presta! Róbin não olhava para mãe, cabeça baixa: — Não sou obrigado a respeitar Deus e família! — O quê?!... — esbravejou Edileusa e desceu o braço em Róbin, cobrindo-o de tapas. Róbin

escondeu o rosto, Edileusa socou seu ombro e costas e saiu para o quarto. Róbin grunhiu, e engoliu o choro. Levantou-se para seu quarto, retirou a caixa da última ga-

veta no guarda-roupa. Três pedras, e o antigo cachimbo. Apertou-os na mão, enfim chorou con-vulso. — Definitivamente não queria estar com sua mãe! De repente abriu os olhos, suspirou engolindo o catarro:

— Não há diferença entre o prazer e a dor, é a mesma coisa, são partes de mim! — dizia ba-tendo o pulso no peito. — Eu mudo como o sentido das palavras muda...!

Voltou a face para o alto, fechou os olhos e escancarou a boca como se uivasse em silêncio para a lua...

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O pretume da noite era apenas um risco no céu azul. Um mês havia passado. Róbin descobriu que as pedras não eram encantadas, são preciosas! — E que na verdade, o Dragão é seu espírito é seu próprio deus! — Sentia isto no peito com todas as suas forças. Com a cabeça em pé, ia para boca que era do Boca, acompanhando Duende, fazia seus trocos. Mesmo quando a noite cobria o céu, ainda era claro, sempre lua cheia que logo se empalidecia perdida no céu azul. Em casa enfrentava um conflito com a mãe, na rua as pedras sempre passavam por suas mãos, pre-ciosas, pois sempre tinha dinheiro no bolso, mesmo que Duende não fosse muito generoso — mas, riam juntos, e se sentia parte de um quadro. — Walter Rios se divertia com o Moonwalk executado por Róbin, e ele sorria por ter conquistado o “grande chefão”.

E nesses tempos de papéis invertidos, a mãe passou a ser o seu peso. Enquanto, Beatriz era seu refúgio com que se podia contar, e imaginava que isso nunca mudaria — sempre a encon-trava presente no outro dia. — Draco! É assim que se via refletido: Draco! Enquanto, o pretume da noite era apenas um risco no céu azul. Róbin “aprendeu” a falar, e questionou:

— Ainda tenho a cara da rua, Draco? Draco riu: — Não! Mas talvez ela seja nossas veias... Ou nossa morte! Draco estava sombrio. Walter Rios e família fizeram reunião com Roma, Duende e Draco às portas fechadas. Róbin

esperou do lado de fora, no carro, viu todos saírem. Draco despediu-se de Walter, dos pais e tios de Walter, fez sinal de “até logo” para Roma e Duende. Naquela noite seria firmado o negó-cio da vida deles, ou mesmo, a própria vida deles, o que deixou Draco ensimesmado.

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— O que aconteceu Draco? — Uma reunião de negócios... — Eu sei, pô! Draco riu: — Onde aprendeu a falar assim, Róbin? “Pô!”... Colocamos os pingos nos “is”, entende? —

Draco voltou-se para si. —Cada um tem sua função, como em qualquer outra associação num território em expansão. Está entrando muita grana pra gente. Por isso é importante esta noite...

— As pedras valem muito dinheiro, mas o comércio delas é um campo de guerra. Por isso temos que cuidar da nossa segurança. O que importa é o poder e o sucesso e a riqueza!

Draco arqueou uma sobrancelha, ficou espantado com Róbin repetindo o que haviam con-versado há um mês...

— Sim...! Mas pedra é o final disso, estou falando de algo maior, pedra é só um subproduto, entende? E o poder não está apenas no produto, ou na manutenção do território, está no tráfico de influências... Então, aqui entra o que eu tenho de mais valioso para Walter Rios — as minhas putas! As mansões de festa que alugo... Rios está abocanhando uma linha para Europa, muito boa! E quer impressionar a elite influente, mas esqueça daquela velha elite... Falo de gente que mexe com “carimbo grande”, que enlouquece com mulheres tipo a Beatriz...

Róbin espantou-se. Draco contornou a esquina, o motor roncou. — Rios vai levá-la para Europa, por um mês, pra fazer média por lá... Róbin apavorou-se, e rebateu de supetão: — Mas, você disse que tem viagem pra Paris porra nenhuma! Porra nenhuma! Que suas via-

gens são pra Colômbia...! Draco parou o carro. — Eu não vou para Paris... E sim Walter e Beatriz... —Draco espantou-se com Róbin: “Ele

grava tudo o que falamos!”, pensou temeroso. — Mas tenho uma notícia pra tu, Róbin. Róbin o encarou. — Walter Rios quer que tu dance na festa hoje! Róbin engoliu seco: — Por quê? — Ora, não és tu que decora o que falamos Róbin...? — Quer impressionar a elite influente com “carimbo grande”, que enlouquece com mulheres

tipo a Beatriz... E com danças como a que eu sei fazer...? Draco riu alto, acelerou, o motor roncou grave.

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A mansão Le’ Perraulte é um palacete, de arquitetura neoclássica, com colunas enormes na fa-chada, encimados por um enorme triângulo com um circulo no meio. Sua brancura é iluminada por luzes neon, que lhe dá o aspecto de vidro, ou que suas paredes são feitas de gelo.

— Putz...! Dá até frio na barriga. — diz Draco, vestindo terno branco e gravata roxa. — Qual é? — tornou Walter, vestindo terno escuro. Os dois estavam na entrada da mansão, recepcionando os convidados. — Sei lá, muita gente poderosa, Rios! Partidos contrários e Patente alta... Tudo isso junto? E

no mesmo lugar? — tsk! — fez Walter Rios. — Sussa...! Somos apenas o Buffet, meu amigo! Faremos negócios,

nada mais. Eu trago as drogas, você as putas! Já sabe qual é: Todos querem vida de príncipe de Mônaco. E nós de segurança para nossos negócios. — disse entre risos: — Depois, vamos curtir La plaia...!

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Draco engoliu seco e colocou um sorriso na cara. Os dois se separaram cumprimentando os convidados. São homens de terno escuro, conver-

sando, rindo, formam grupos aqui e ali pelo salão fartamente iluminado, enquanto os garçons esgueirando entre os convidados distribuem drinks e “torradinhas com patê de fígado”. Falam a respeito de petições, siglas aliadas e as contrárias que patentes aliadas e coniventes podem “dar um jeito”. Seguram copos de uísque, champanhe... etc. comem os fígados em patê, mast i-gam as torradas... Seguram canudos de prata, entre snifs estridentes contam vantagens de se pertencer a estatuto tal, patente de grau elevado tal, que a sigla tal e seus aliados de base tal “mandam” na cidade... “carimbo grande”...; “patente alta”...; “Putz... dá até frio na barriga.”... . Draco enfia o dedo indicador entre o pescoço e a gola da camisa, deixa um ar entrar, coloca um sorriso na cara, enquanto Walter Rios ria seu riso de empresário importante — é uma carpa nadando no salão.

— No fim todos nós trabalhamos pra ele — disse Draco a Roma, referindo-se a Rios, com certo tom de despeito na voz.

Roma sorriu ao lado de Duende e entre os três: Róbin. Todos de terno escuro, inclusive Ró-bin, com exceção do terno branco e gravata roxa de Draco.

As frontes de Róbin suavam, olhando aqueles homens públicos de terno escuro, ditos pode-rosos, o fazia lembrar-se da TV:

— “O caso retrata uma das consequências de o município ter cortado, drasticamente, os re-cursos ao atendimento a crianças e adolescentes em situação de risco e violência, nos últimos anos. Não garantindo nenhuma atividade atrativa para ocupar o tempo do grupo em questão”.

Homens públicos, ditos poderosos, o fazia lembrar-se da voz de repúdio de Draco: — “Você ouviu: não garantem nenhuma atividade atrativa pra molecada, e ainda cortam

verba de assistências... Eu nem pago imposto pra isso!... Estou muito satisfeito com meus lu-cros, não só eu hein... não só eu hein... não só eu hein...!”.

O relâmpago acinzentado fotografou Robinson encolhendo-se com medo, sentado no interi-or de uma manilha, com medo, vestindo moletom preto velho com capuz cobria a cabeça...; do alto o lugar parecia um esboço medonho do que seria um espaço destinado a programações culturais, esportivas e de lazer...

— “... não só eu hein...! Estou muito satisfeito com meus lucros, não só eu hein... não só eu he-in...!”.

Róbin! Róbin! Róbin! Agora, é assim que o chamam: Róbin! Afinal, Róbin teve sorte?!

>> <<

De repente, ouviu-se o tilintar de pratos metálicos. Walter Rios pediu que abrissem espaço no centro do salão. Quando através do som grave do contrabaixo ecoou Billie Jean, remixado, cheio de squashes. Róbin surgiu da tangente, deslizando em seu Moonwalk contagiante até o centro do salão, parou, fingiu retirar um chapéu imaginário da cabeça e atirá-lo para o lado, chacoalhou os pés, seus sapatos pretos cintilavam, luzes faiscavam em seu redor. Imitou robô enguiçado, freezes robóticos, Moonwalk robótico, convulsões robóticas...

Róbin sentiu-se respeitado, identificava-se entre iguais (com Roma, Duende, Draco e Rios), e que possuía algo a mais. O gingado lhe dava o carisma necessário para trilhar aquele caminho perigoso, entre lobos. Havia acordado uivando como um lobo numa manhã, mas no final queria tornar-se, mesmo, no... Príncipe dos Lobos!

Colocou a mão em seu sexo, mexeu os quadris em vai vem sexual, e de repente Billie Jean transformou-se em batidão carioca, simulou coito histérico, deu um grito agudo e saiu pela

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tangente deslizando em seu Moonwalk, sendo muito ovacionado. O batidão cheio de squashes que imitava Billie Jean foi abruptamente desligado.

No topo da escadaria, surgiram as “Garotas do Draco”, todas eram donzelas formosas e ele-gantes. Beatriz à frente, de vestido longo de seda, corte chinês e cores de mata atlântica, com duas caudas, que deixavam as coxas douradas desnudas. Com olhar verde altivo, brincos com detalhes longos, cabelos com penteado elaborado salpicado por botões de flores que se des-prendiam ondulando ao vento. Descia os degraus lentamente, corria os dedos pelo corrimão, cintilava aos olhos dos convidados.

— Mandou bem, Draco! Impressionante... — Rios elogiou o “show” para Draco. Draco gabou-se: — Eu disse: Não sou nenhum novato, Rios! Walter Rios caminhou até o pé da escada, segurou Beatriz pela mão esquerda, e desfilaram

no salão, enquanto as outras “Garotas do Draco” espalharam-se entre os convidados. Pouco a pouco, ao redor delas, foi-se aplacando o aroma das flores vermelhas. Rios apresentou Beatriz a um sujeito esguio, de bigode, que parecia ser o mais importante no salão. — “Patente alta?”

Beatriz sorria seu riso de ATRIZ. Róbin a admirava de longe, tomado de encantos por ela, enxergava-a valsando sobre nuvens. Roma e Duende retiravam-se saindo pela porta lateral, Róbin os acompanhava, antes de sair atirou um olhar oblíquo para dentro do salão, via Draco e o odiava. Para Róbin todo aquele “show”, não era nada mais do que a entrega de Beatriz a Wal-ter Rios.

Do lado de fora, Duende abraçou Róbin fazendo festa: — Aee...! Róbin! Mandou bem hein...! Róbin sorriu sentindo-se, mais uma vez, parte de um quadro. — Aquele lance de tu jogar o chapéu, pô! foi bacana hein... — disse Roma. — Eu vi isso uma vez... Num vídeo do Miquei Jequisou! — Duende comentou. — Maicou Djeksãn...! — corrigiu Roma. Riram os três, acendiam cigarros, segurando copos com uísque. Saíram para o jardim, senta-

ram-se a uma mesa. Em seguida, veio o garçom trazer uma garrafa de uísque para eles. — Whoa! Valeu “chefe”! — Duende agradeceu o garçom. — Vai com calma hein, Róbin! — Roma disse rindo. Fizeram silêncio, sorveram alguns goles do uísque, tragaram do cigarro. Roma atravessava a

fumaça com um olhar pensativo, depois quebrou o silêncio: — Ingenuidade... — O quê? — Duende o indaga. — Walter Rios... Duende o encarou desconfiado. — Walter Rios... Walter Rios está sendo ingênuo, em acreditar que está se blindando com

essa gente... Fazendo “showzinho” pra impressionar e tal. Mas é tudo gafanhoto ali, Duende! Podem nos devorar num segundo... — fez silêncio por um estante, tornou: — E também não sei se mulher faz muito a onda de todos ali não viu, a onda agora é o Kurt do Glee, tá ligado?

Duende esfregava o dedo na boca do copo, parecia pensar a sério no que Roma dizia, tragou do cigarro. Róbin os encarava. Roma concluiu:

— Pro diabo...! Posso até estar errado, e assim quero: que eu esteja errado...! Mas, pra mim é ingenuidade! É só isso qu’eu digo! Ingenuidade!

— Draco... — Róbin iniciou. — O que tem? — Roma o indaga. — Parece tá preocupado... Roma sorriu:

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— Claro! Você pegou o bonde andando, Róbin. Saca? Nesse ramo tu tem que ficar esperto. Pode dar bobeira nem um segundo. O Sandro, quer dizer, o Draco num é trouxa! Mas, tá despei-tado... Sei lá!

— Draco não quer dar bobeira, é isso? — É isso, Róbin! — Território... Influências... Negócios... — Duende jogou a esmo. — Ele que fique esperto! — Está sabendo de algo Duende? — Roma o inquiriu cismado. — Que isso, não sei de nada! O quê eu saberia, Roma? ...Só estou concordando com o que

disse, hein... Mas, eu deveria saber de algo..., hein Roma? — Duende escorou as costas, encom-pridou o olhar sobre Roma: — O que está sabendo Roma? Alguma coisa que eu deveria saber?

— Cara..., eu só desabafei uma coisa que pensei cá comigo... Ora! Tu também não pensa? — riu alto. — Tu pensa Duende? — Riram.

>> <<

Batidão do funk carioca! No outro dia, autódromo, como combinado por Draco e Walter Rios... E um azul profundo tingiu o céu, triunfante; sobre a cidade que cheira a gasolina. O sol rompeu no azul esbanjando seus raios cálidos sauditas... Sandálias plataforma, pés e tornozelos delica-dos, trançados por tira azul marinho, pele dourada, o músculo da barriga da perna retesa-afrouxa. Coxas torneadas, vasto medial, vasto lateral retesam, pele dourada. Todo ilíaco cober-to por short jeans curto, com um cordão creme com firulas amarrado na cintura prendendo camisa esvoaçante branca — Beatriz! Ela estava de chapéu branco de abas largas, óculos escu-ros grande, segura com a mão direita lenço xadrez preto e branco, na altura das espáduas, bra-ço estirado. Na redondeza, as demais garotas deixam nádegas amostra — “cada uma das duas partes carnudas e globosas que formam a parte superior e traseira das coxas”, arreganhadas em movimento retesa-afrouxa, abrir-fechar-abrir —; expressam-se através do ritmo do batidão do funk carioca. Beatriz afrouxa o polegar deixando escapar o lenço, Draco e rios aceleram com seus Chevettes aerografados, e quando cai o lenço, avançam fritando os pneus no asfalto.

O mundo azul girava. Róbin ria convulso à claridade, a luz veio povoar a alma de Róbin, e ele ria convulso... O mundo azul girava em torno dele, os tormentos do coração cediam lugar à cla-ridade. Ora! Isso, o Governo não oferece! “Porque também as almas se povoam, não só os chãos, não só as terras dos homens”! ........................................................................... Batidão do funk carioca!

Nádegas amostra em movimento retesa-afrouxa, abrir-fechar-abrir. As rodas da caminhone-te do Draco tinham luzes azuis. A muvuca se move no ritmo do batidão do funk carioca. Chevet-te modelo antigo amarelo levava aerografado na lata o desenho de um dragão chinês, de esca-mas verdes e douradas, do capô às laterais dianteiras; entre as portas e a roda traseira tem es-crito: Prince Draco! Róbin vestiu a pele de Draco, e o chama de amigo; Draco! É assim que se via refletido: Draco! Enquanto, o pretume da noite era apenas um risco no céu azul... Via o sorriso de Beatriz, que o encantava... Róbin a admirava de longe, enxergava-a valsando sobre nuvens. ............................................................................... Pancadão automotivo!

Róbin piscou seus olhos pardacentos, atirou olhar semicerrado contra Draco, o odiava, mas vestia sua pele, cobiçando o seu lugar, seu status, seu prestígio, sua fama. Queria que num futu-ro próximo, além de Roma e Duende, que Walter Rios também lhe prestasse homenagem, ven-do que todos o ofereciam favores.

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Walter Rios se autodenominava: “O grande chefão”, às vezes de “O padrinho” criticando a tradução de um filme famoso que Róbin nunca ouviu falar. Walter Rios estufava as bochechas, fazia trejeitos com as mãos imitando um astro famoso do cinema que Róbin nunca ouviu falar. Mas, Róbin sempre ria quando os demais assim procediam, e sabia que deveria, acima de tudo, respeitar Walter Rios prestando-lhe homenagens quando os demais assim procediam.

>> << Enfim, beatriz foi para a Europa com Walter Rios. Por conseguinte, os dias eram os mesmos para Róbin. As cenas eram repetidas, com acréscimo ou decréscimo de um ato. Róbin acompa-nhando Duende ia para a boca (que Duende chamava de “praça”). Numa dessas ocasiões, Du-ende estava com um bolo de dinheiro dobrado nas mãos, molhava a ponta do dedão com a lín-gua, passava as cédulas balbuciando a conta, levantou a vista, desconfiado, vendo Róbin obser-vando seu gesto. Enfiou as notas no bolso.

— Qual é? — ele indagou Róbin. — Ué! E minha parte, Duende? — Minha parte?! Que sua parte? Não é você que tá com a “massa” de qualidade atendendo a

clientela do Draco?! — Mas estou aqui te ajudando também. Né não Duende? Pô! isso já têm mês! — Runf! Tu está folgando, moleque! Duende retirou as notas do bolso, molhou o dedo, contou as notas, e retirou meio terço pra

Róbin. Róbin contou, e guardou sua parte. — O pequeno empresário conta o dinheiro ao tempo que chegam mais dos seus lânguidos fiéis consumidores. Entre a muvuca, Róbin não se confun-de com a poeira de piche das ruas e becos, na cidade que cheira a gasolina. Um carro de luxo parou rente ao meio fio...

— A-lá, Róbin! — Duende indicou o cliente de Draco. Róbin o atendeu e voltou contando o dinheiro, quando enfiou no bolso foi surpreendido pelo

grito de Duende: — Ué! E minha parte, Róbin! — e explodiu em gargalhadas. — Sacomé...! — Runf! — Róbin resmungou passando a parte de Duende. — Assim, tou é dando de volta o

que me passou gorinha, ué! Duende continuou rindo às golfadas. No final da tarde, ele chamou Róbin pra ir ao boteco,

perto da casa dele. Róbin ficou impressionado do quanto Duende era benquisto na redondeza, com o dono do boteco e o mulherio. Quando se sentaram a mesa de ferro, Duende foi falando pausadamente num tom moderado para os circunstantes não ouvirem:

— Você vai aprendendo! E olha só...! A primeira coisa, fiote! É aprender que tênis e roupas de marca se usa ne festa, tá ligado? Pra ir pra praça, fiote! compra roupa barata, sacomé! De feira de tecido fuleira! ...tá ligado, maninho! Essas pedras da “massa” que tu tem aí na mão, que nem conto de fada, é a trilha que vai te levar de volta pra casa, sacomé! Família num gosta de fracassado não! ...que nem conto de fada! E num esquece de passar, sempre, uns trocos genero-sos pra tua mãe! Porque quando tiver na cadeia, o mulherio e os amigos some! Sai queimando grana à toa também não! Deixa essa onda de ostentação subir a cabeça, que tu vai ver! O San-dro é cheio dessas onda, e ói que já caímos junto, eu e ele, só o Romualdo que se safou dessa!

— Sandro? — Sandro, Sandoval... O Draco tem mais nome que cachorro de pobre! — Duende explodiu

em gargalhadas. — Tá guardando dinheiro? — Tou sim, numa caixinha, coloco na ultima gaveta do guarda-roupa. — Vih! E tu vai contando? Ô vacilão!

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O embaraço percorreu quente o rosto de Róbin. Coçou a nuca, depois quis mudar de assunto, disse a esmo:

— Num sabia que o Draco chama Sandro, pra mim era Marcelo... — Num te disse que o cara tem mais nome que cachorro de pobre? Agora, tu larga de ser

besta, sai contando onde guarda dinheiro? — E cêis caíram faz tempo? quero dizer: já conhecem a muito tempo! O Marcelo disse que

era de classe média, mais estudava ne Escola Pública... Duende explodiu em gargalhadas. — Marcelo de classe média? Se brincar era mais pobre que eu e o Roma! O cara foi adotado

aos 12 anos. O velho que adotou ele só tinha menina, e queria um menino. Até que o velho tinha grana, um mercadinho, mas na perifa! A gente se conheceu na Escola; eu, ele e o Roma. Éramos a “Trindade do Mal”! — riu sozinho. — A gente roubava, traficava, fazia de tudo! Tempão de-pois caímos junto, mas o Roma conseguiu se safar, ele até queria mudar de vida, enquanto eu e o Sandro tava passando o diabo na cadeia, o Roma foi fazer curso de administração, onde co-nheceu o Walter Rios. Ah! E eu nem te conto...

— O quê? Fala aí! — O Sandro... Porra véio! Deu sorte de mais quando saímos! Conheceu uma garota granfa e

rapidinho já tava agenciando as amigas da mina pro sexo! Ele já fazia isso com outras garotas, mas não de pedigree como essas, sacomé...! Acho que deve ter sido aí que ele arrumou esse nome Marcelo, eu nunca tinha ouvido esse nome pelo menos!

Um pensamento cruzou a cabeça de Róbin como um raio, e o pronunciou em voz alta: — Ah! Então essa é a outra coisa que o tabolão tá providenciando! — Tabolão?! O que é isso? Uma garota surgiu de repente se debruçando sobre o Duende, ao tempo que outras garotas e

amigos dele foram se sentando fazendo farra. Róbin ficou desconcertado, coçou a nuca, depois murmurou:

— É!... Duende! Já tá na hora d’eu ir embora... — Ok! Pô galera, espera eu aí... Só vou levar o moleque na casa dele, e tou de volta! Quando Róbin se encaminhava para montar na garupa da

moto de Duende, um caminhão de lixo passou rente a eles, um gari passou correndo carregan-do sacolas de lixo que ele atirou na caçamba, e voltando-se de chofre para Róbin franziu a testa olhando-o como se o reconhecesse. Róbin encarou o homem de barba cerrada cheia de falhas e rosto envelhecido, mas antes que ele o reconhecesse, seus colegas do caminhão gritaram:

— Bora César! César virou-se, correu e subiu no caminhão. — Vih! — Duende riu. — Parece que o lixeiro apaixonou ne você, Róbin! Ultima vez que Róbin contou o bolo de dinheiro, havia R$ 80 mil, mais umas dezenas de pe-

dras que são preciosas! Sorria e gabava-se sempre. Mas, encontrou-se desapropriado de seu refúgio, e tornando-se triste imaginava que nunca mais veria Beatriz, isso o estremecia, estava acostumado a sempre encontrá-la no outro dia. “E agora, com quem iria contar?”

De tanto pensar nela, de tanto sentir sua falta, perdeu o apetite e o sono. Procurava Beatriz nas kitches, mas Senhora Sie fechava a porta na sua cara. Pendeu a cabeça sobre a mão, jogado a cama. Semblante opaco. Os olhos encovados e tristes perderam as faíscas cobiçosas. Esvaiam-se os segundos pelos minutos, becos, e ruas... As semanas terminavam sobre um mês enfado-nho, como era sem o sorriso de Beatriz, seu refúgio com que se podia contar, e imaginava que isso nunca mudaria... Mas, o havia perdido há um mês.

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Enfim, Beatriz voltou da Europa. Draco e Walter Rios trocaram “gentilezas” e “favores”. E Ró-bin, encantado, viu novamente o sorriso de Beatriz. Mas, por pouco tempo, pois Beatriz e Débo-ra (outra das “Garotas do Draco”) foram levadas para o Rio’s Tower, o maior dos hotéis da fa-mília Rios. Róbin suspirou — elas estavam sobre estrita vigilância da família Rios. Noutro dia, pela manhã, Duende foi à casa de Róbin, encontrando-o jogado a cama.

— Hei Róbin, qual é? Duende sentou se jogando ao seu lado, Róbin assustou-se, limpou babugem esfregando o

dorso da mão no canto da boca, e se sentou. — Diz aí Róbin, qual é...? Pô! Tá assim porque não vê mais a Beatriz, não é? — Eia...! Por que pensa isso? — Róbin disse estranhando os modos e interesse de Duende. — Ué, porque a Beatriz também está sentindo muito a sua falta — retrucou Duende a rir. —

Eu vi a Débora numa galeria próximo ao Rio’s Tower, e ela me disse isso. A essas palavras, Róbin pulou da cama, sem conter sua felicidade: — Pô! Duende... Tem como eu ver a Beatriz não?! — Talvez sim... — respondeu Duende, com um sorriso matreiro. — Por favor... — Róbin choramingou. Duende fitou-o, parecia repassar um texto na cabeça: — Não vai ser fácil hein... Talvez seja melhor levar sua caixinha, digo! vai que precisamos

pagar alguém, entende?! Pô! É que vai ser difícil, vamos ter que engabelar os seguranças do Rios que tão vigiando a Beatriz, e, no fim, vai que nem conseguimos encontrar ela... Por isso, leve tua caixinha!

— Ô gente!... Mas por que é que é tão difícil assim ver Beatriz?! — indagou Róbin. — Tudo por culpa do Draco, tá ligado? Beatriz sempre foi a mina de número 1 do cara! En-

tão..., sacomé...! Rios tem medo que Draco roube ela de volta... Raptar ela, sacomé...?! — Tem haver com a reunião antes da festa, num tem? Draco tava esquisito. Você e o Roma té

falaro quelas coisa depoise! — Roma! Runf!... O Roma não sai mais do escritório do Rios! O que rola é que a Beatriz e a

Débora são peças de escambo entre o Draco e o Rios, um sinal tipo de paz entre os caras. Quêle dia falei, ué... Território, influências, negócios... Draco não é besta!

— Hum...! — fez Róbin. — Porra véio, agora separa a grana em cada bolso, e deixa essa porra de caixa aí! Róbin obedeceu. Saíram de moto, Róbin na garupa entre Duende e o bagageiro. Atravessa-

ram a cidade percorrendo diversas ruas. Róbin viu o prédio do hotel Rio’s Tower, porém Duen-de passou direto virando na próxima esquina, contornou e entrou num beco por trás do hotel. Chegaram a um portão ladeado por dois homens robustos de terno preto, desceram da moto. Duende tirou uma mochila do bagageiro, jogou-a nas costas.

— O que quer aqui?! — vociferou um dos homens. — Eu sou o Duende! — Hum...! Pode ser, mas você quer passar assim de graça? Duende voltou-se para Róbin: — Não te disse! — e dando um tapa no ombro de Róbin: — Vamos, fiote! Paga o homem! Róbin obedeceu. O homem indicou seu colega, e Róbin pagou o colega dele também. — Agora podem passar! — disse e abriu o portão. Duende e Róbin passaram e depois de muitas viravoltas, passando pela cozinha e galerias,

encontraram outra porta ladeada por mais dois seguranças robustos. — Duende? — um deles perguntou. — Sim! O segurança se aproximou de Duende e disse baixinho: — É o seguinte: se alguém te pegar lá em cima, tu num vem dizendo que nos conhece, hein!

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O segurança abriu a porta para a passagem dos dois. Róbin viu com estupor, que se encon-travam num jardim de flores. Duende mandou Róbin sentar-se e esperá-lo, Róbin assim proce-deu, estranhando a frieza do banco de metal.

— Já volto! — Duende falou e desapareceu. Róbin ficou ansioso, com a sensação de que Duende se demorava eternamente. Mas, não de-

correu mais que alguns minutos, viu surgir de onde Duende desaparecera, Beatriz. Róbin foi ao seu encontro, dos mais felizes e a abraçou. Ela sorriu e seu olhar revelou-a surpresa, sacudida por dentro, como se demolisse dentro de si o “velho altar” — que explode lançando no ar nu-vens de poeira. Mas Beatriz não permite que a poeira obscureça a clareza de sua visão. Sentia que as energias liberadas neste processo, tornavam-se agora disponíveis para ela utilizá-las plenamente, como se visse o final da linha do plano que há meses planejou...

Duende acompanhou os dois até a suíte em que Beatriz estava hospedada. Uma suíte grande e luxuosa. Duende passou na frente e sentou-se numa cadeira ladeada por uma mesinha alta, de tampo redondo, colocou sua mochila entre os pés. Róbin viu com estupor a suíte, enquanto Be-atriz irritava-se com os modos grosseiros de Duende.

— Por que não veio me ver, Beatriz? — Róbin a indagou com um tom lamentoso. — Perdão, Róbin! — Beatriz se desculpou segurando suas mãos. — Se eu não fui antes é que

andava pensando numa maneira de não nos separarmos mais... E não perdi tempo, visto como agora sei o que devemos fazer...

— Puta-merda! Beatriz... — disse Duende entre risos. Beatriz enfezou-se com Duende fazendo-lhe sinais, decerto querendo que este colaborasse

com ela. Duende riu entre seus botões, enquanto Beatriz sentou-se num sofá com Róbin, de frente com Duende. Róbin apresentava tímidas lágrimas escorrendo em seu rosto.

— Diga lá o que é! — Róbin ordenou. Beatriz hesitou constrangida com Duende. — Olha só, Beatriz — disse Duende abrindo sua mochila —, eu sei que está de rolo com o

Patente... Beatriz arregalou os olhos entreolhando Róbin. Duende tirou um embrulho de papel da mo-

chila, colocou-o sobre a mesa ao lado. — Aqui tem R$ 300 mil pr’eu entrar na jogada, como prometido. Mas é o seguinte, já sabe, se

der a loka em querer me passar para trás, sabe o que vai te acontecer! — 300? — Beatriz espantou-se. — Mas você não pegou 500? — Se liga! Os R$ 200 mil foi pra te entregar o Róbin! E não se preocupe, ele só tem olhos e

ouvidos pra você, nem está sacando nada! Duende levantou-se, olhou para Róbin e depois saiu rindo, bateu a porta da suíte e a panca-

da assustou Róbin. — O que deu nele? — ele perguntou sobressaltado. Beatriz levantou e apanhou o embrulho. — O deixe pra lá, Róbin. Não quer saber como vamos fazer? — disse Beatriz guardando o

embrulho numa bolsa. — Sabe Róbin? — Beatriz voltou e sentou-se ao lado dele. — Sei que você gosta do Draco, é seu amigo, afinal ele ajudou muito você e sua mãe, tadinha... Mas...

— Nada disso, Beatriz. Você que ajudou eu mais minha mãe, você que arrumou a casa pra nós, que levou ela pra comprar roupa... Até inventou uma história pra aliviar minha barra com ela!

A estas palavras Beatriz sorriu.

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No hall, entre as portas das suítes, Duende caminhou até o elevador. Apertou o botão chaman-do a máquina ascensora, sorria meneando a cabeça, como se pensasse na sorte de Róbin e o reprovasse. E encontrando uma síntese para o pensamento, exclamou consigo mesmo:

— O moleque não aprendeu nada! O painel que mostra os números dos andares pelos quais a máquina percorre, apitou e a

porta se abriu. Uma moça se assustou ao ver Duende, quis sair do elevador num ímpeto, mas Duende barrou sua passagem com o braço.

— Não é uma boa ir pra suíte agora, Débora! Ela retornou para o interior da máquina, ele entrou e a porta se fechou. — Vocês vão ferrar mesmo com o garoto, não é? Débora tem os cabelos loiros, branca, mas com um bronzeado natural destacando os lábios

carnudos. Corpo torneado — seios bem definidos e palpitantes, e glúteos carnudos. Vestido de flanela com estampa carioca, uma sacola grande de couro creme pendurada no ombro. E o seu penteado deixava alguns fios se enroscarem nos cílios, lhe dando um charme ao piscar os olhos.

— Ferrar com o garoto? O Róbin está ferrando consigo mesmo! — Mesmo assim, Duende! — tsk! Há poucos dias eu disse pra ele: “Quando tiver na cadeia, o mulherio e os amigos so-

me!”. E ele entendeu? Não! Não aprendeu nada porque tá xonado na Bia.

— Hum...! E vocês acham que o Rios e o Roma são trouxas? — Vocês?! Eu falo por eu! Sacomé...! Já tive enjaulado, eles não. O Rios é um almofadinha, e o

Roma é safo, ele meio que já tá desconfiado... Só! que o Roma nunca teve enjaulado. Então, o bicho vai pegar mesmo é entre o Sandro e o Rios!

— E aí tu quer saltar fora! Está confiando na Bia? Duende riu. — Ah! Débora, você é um tesão! Débora sorriu. — Já disse, meu tesão! Já tive enjaulado, eles não. A Bia é a única que está com as costas

quente, lá, com o bigodudo! Boto fé que ela se livra do Sandro e do Rios numa cajadada só! Pelo menos enquanto os dois tiverem na jaula, eu posso saltar fora... Pô! Eu vou ser cafetão nas Eu-ropa! Sacomé...!

Débora riu. — Está confiante mesmo! Mas onde entra o garoto nisso? — Ah, essa vou ser sincero contigo, eu não sei o que a Bia quer com aquele paspalho! ...Sabe

o que eu sei? — O quê? — Que eu estou ficando doidin ne você! — Hum... Então porque não para esse elevador? Duende parou o elevador, então Débora se jogou sobre ele.

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— Quer saber? Sou muito melhor que o Draco! — dizia Róbin à Beatriz. — Se fosse eu... É eu vi tudo o que aconteceu, ele fez você de mercadoria...! Se fosse eu fazia de você minha princesa, digo, quer dizer: minha companheira de ne- gócio..., sacomé!

Róbin retirou o dinheiro dos bolsos e com certa dificuldade contou as notas, quis entregar a Beatriz.

— Parece que ainda tem uns R$ 75 mil aí...

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Mas ela não aceitou: — Quero que guarde isso para sua mãe! Entendeu? — Tá certo! Vou colocar na Bíblia dela, maise... e nosso negócio juntos? — Já tenho bastante dinheiro para montar nosso negócio juntos! Sabe. Lá em Paris eu tive

uns contatos muito bons, tipo Maison de rendez-vous...! — O quê? Beatriz riu, explicou: — É uma expressão francesa que quer dizer bordel particular, a proprietária apresenta ao

visitante as garotas para sua escolha, ou facilita o encontro entre seus clientes e determinadas mulheres de sua preferência. Então, nós levamos as garotas brasileiras para Europa, mas tem que ser brasileiríssimas, entende?

— Sim! Tipo você Beatriz! — E sabe? Eles adoram brasileiras... Quero agenciar essas coisas por lá... Mas... — calou-se se

fazendo de triste. — Mas...? — Ora! O que o Duende disse: que eu tenho “rolo” com o Patente... Na verdade esse Patente

é quem vai nos colocar em Paris, e seremos sócios dele, Róbin! Só que tem um problema! — Que problema, Beatriz? — ele perguntou franzindo a testa, querendo apressar a trama.

Então, percebendo a compenetração de Róbin no plano, cintilou um brilho argucioso nos olhos de Beatriz.

Ela continuou: — O problema é o Draco e Walter Rios. Bem..., por enquanto o Draco é o problema imediato,

ainda sou dele, porque o negócio entre os dois nunca esteve realmente firmado. Walter Rios não precisa do Draco, porque já tem um bom tempo que ele vem tomando posse do território e dos negócios do Draco. Mas, o Draco é muito forte, entende? — e deixou que Róbin por si con-cluísse...

— Hum...! — fez Róbin. — Eu entendo sim! Já me falaro muito disso mesmo Beatriz, tô sa-beno! Território... Influências... Negócios... Por isso que ele anda preocupado. Ele que fique es-perto! Bom..., mas se eu sou melhor que Draco, Beatriz, não precisamos mesmo dele! Sacomé...!

— Isso! — Beatriz aplaudiu, foi até uma escrivaninha no canto do quarto, e veio de lá com um embrulho de pano e entregou a Róbin dizendo: — Então guarde o seu dinheiro pra sua mãe, você só precisa se livrar do Draco pra mim!

Ele desenrolou o embrulho encontrando um revólver 22. Róbin arregalou os olhos. Beatriz continuava:

— Enquanto, o nosso Patente dá um jeito no Rios. Mas..., será que você vai conseguir fazer sua parte, Róbin?

Róbin engoliu seco: — É... É-e cla-claro... — pigarreou. — É claro que consigo... Matar o Draco...? — Nossa...! Róbin você é muito corajoso! Tem coragem mesmo...? Róbin estufou o peito e orgulhoso de si fez que sim. Beatriz abriu a camisa dele arrebentan-

do com os botões, grunhindo arranhou seu peito. Róbin sentiu o calor espalhar-se do rosto ao resto do seu corpo.

— Você é virgem, não é Róbin? — Sô-so... — Róbin tartamudeou num fio de vós. Ela abriu a braguilha da sua calça e colocando a mão para

dentro de sua cueca o olhou de soslaio fazendo cara de princesa... Róbin revirou os olhos.

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O POÇO HORRÍVEL

NOITE ENGOLIU a cidade. As luzes cintilavam traçando as ruas e os prédios altos que arra-nhavam o céu negro. Duende, em sua moto, cruzava as ruas de um bairro na periferia e

quando dobrou uma esquina, um carro o fechou. Duende gritou xingando o motorista do carro, mas fixando os olhos nele, o reconheceu surpreso:

— Roma?! Os dois pararam lado a lado. — O que está fazendo aqui? — Duende perguntou intrigado, sua voz saia abafada pelo capa-

cete. — Hei, tire o capacete não estou te ouvindo! Duende tirou o capacete, enquanto Roma ergueu a mão para fora do carro com um revólver

38 na mão. Duende arregalou os olhos, não esperava isso de Roma. Apavorado tentou se prote-ger jogando seu capacete contra o carro, mas Roma foi mais rápido, disparou acertando o rosto dele, o capacete bateu na porta do carro, mais um disparo e acertou a boca, depois outro acer-tando o peito. Os estalos dos tiros reboaram na madrugada, enquanto o capacete rolava na sar-jeta. Duende emborcou para trás e caiu morto, Roma arrancou fritando o pneu do carro no as-falto, e sumiu dobrando uma esquina.

>> <<

A luz do sol despontou no céu como uma espuma no mar. Róbin ia pela calçada flutuando quase em marcha militar em gravidade zero, suspendendo os pés. Abriu o portão de casa e deslizou até o quarto, deitou-se fitando o teto com um sorriso de ponta a ponta na cara. Via no teto as estrelas no universo, que viajam entre galáxias azuis. Sentia levitar-se sobre a cama, tonto de amor por Beatriz. Via Sua boca estampada entre as galáxias, seus olhos verdes, sua pele doura-da, seus cabelos entre os dedos dele.

Róbin suspirava e suspirando, depois de horas deitado, sentou-se na cama e por alguns mi-nutos segurando o revólver, sentiu o seu peso. Depois, impávido levantou-se e abriu a porta do guarda-roupa, viu-se refletido no espelho. Lembrou-se de Walter Rios dizendo que todo grande chefão tem sua marca. Então, desembrulhou um pirulito e o colocou na boca exibindo a haste branca, jogou-o para o lado estufando a bochecha e imitando aquele astro famoso do cinema, Róbin disse para seu reflexo no espelho:

— Hei Draco! Respeite o... O... — pensou um pouco, e completou: — Respeite Ô! príncipe dos lôbo... lôbos... Não!

Retificou: — Hei Draco! Respeite O Prince Lobo! — e sacou o 22. O celular tocou em cima da cama. — Ê Duende... Atrasado! — caminhou até o celular e espantou-se: — Draco?! — Hei, onde está...? — Draco o indagou do outro lado.

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— Em casa, ué...! Tou esperando o Duende... — Esquece! Tou passando aí em 10 minutos! Me espere na porta! — Draco desligou. Guardando o celular no bolso, Róbin resmungou: — Qual é? Escondeu o 22 na cintura da calça, foi até o espelho certificar-se se estava bem escondido

por baixo da camisa. — Hei Draco! Respeite O Prince Lobo...!

>> <<

O motor roncou dobrando a esquina, Draco chegou como um raio amarelo na Rua de Róbin. Parando diante o portão, o motor ronronou grave. Róbin todo espigado, exibindo a haste bran-ca do pirulito, entrou no carro sentando-se com dificuldade, por causa do revólver na cintura escondido de baixo da camisa.

— O que aconteceu com sua perna? — perguntou Draco cismado. Róbin jogou o pirulito para um lado da boca estufando a bochecha, respondeu: — Qual é Draco, tem nada com minha perna! Draco arqueou uma sobrancelha franzindo o cenho para Róbin. Acelerou, e saiu de arranca-

da fritando pneu no asfalto. Estava nervoso. Róbin observava-o atento e chupando saliva, com o pirulito estufando a bochecha, perguntou:

— O que está havendo? — Pô...! Róbin, onde estava, hein? O Duende foi morto a tiros hoje de madrugada, e a Beatriz

sumiu do mapa! Róbin estremeceu como se uma corrente elétrica passasse pelo pescoço de repentino. Olhou

as horas no visor do seu celular, tinha pouco mais de cinco horas que havia se despedido de “sua princesa”, durante esse tempo Beatriz sumiu do mapa? Cuspiu o pirulito pra fora do carro. Draco o olhou cismado. Róbin o interpelou:

— Como assim, Draco! Beatriz sumiu do mapa...? — E completou seu espanto: — O Duende foi morto a tiros hoje de madrugada...?

— Sim, porra! Estamos indo ver com o Walter Rios que porra é essa que ele tá’prontando! Róbin estremeceu, pego de surpresa, não tinha planejado nada. O motor roncou dobrando a

esquina, Draco chegou como um raio amarelo na Rua de Walter Rios, e parando diante o por-tão, o motor ronronou grave. Muro alto, branco com letreiro discreto, Walter Rios Import. Por-tão de folhas de aço com emblema de uma empresa de segurança, um aviso! Draco bateu no interfone:

— Sou eu, porra!!! DRACO!!! O portão destravou, entraram os dois. O segurança apenas passou os olhos nos dois que pas-

saram rápido direto para dentro. O segurança segurou o portão e o travou aberto e saiu para rua olhando para os lados, sumiu. Draco e Róbin com a mesma pressa passaram pela recepção, após a passagem deles, a secretária fez o mesmo que o segurança. O coração de Róbin rufava na caixa torácica, quando entraram para sala de Walter Rios — este estava atrás de sua mesa. Ro-ma levantou-se da cadeira de couro e se escorou numa prateleira atrás de Rios. Draco fitou Roma, e voltou-se para Rios:

— Que porra é essa que tá’prontando, hein Rios?! Onde está Beatriz? Nosso negócio ainda nem foi protocolado, e tu mandou ela pra onde?

Rios riu: — Aprontando...? Onde está Beatriz...? — e olhou para trás procurando Roma. Roma fez que “não sabia de nada” com os ombros.

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— Todos já sabem — Draco irritou-se —, e comentam que a Beatriz numa hora dessas deve estar em um avião bem longe daqui...! E eu quero saber que porra é essa, caralho!

— Hei, hei...! Sem estresse Draco! Qual é? — Sem estresse? E o Duende...? Queimaram o cara por quê? Há quantos anos nos conhece-

mos, hein Roma? Rios interviu: — Olha Draco! Duende me roubou R$ 500 mil, e na cara dura! Porra, Brother...! Isso aqui

não é brincadeira não... Agora esse lance aí da Beatriz fiquei sabendo a pouco, pô! Pedi para um pessoal meu averiguar, também quero saber onde ela está, pra onde foi, pô! Agora senta aí, e vamos tomar uns gole de run... Sei lá Brother...! Relaxa aí...!

— Me enrola não, Rios! Porque eu não sou trouxa! Estou vendo o seu braço feito torniquete ao redor dos meus negócios tem tempo! Você não me deu sinal algum ainda, e sumiu com a Beatriz! E vai dizer que não está fechando os tentáculos da família Rios sobre mim?

— Ah, Draco! Tu deixava as meninas ir pra rua! Roma descruzou os braços de repente, aturdido, mas depois riu olhando algo atrás de Dra-

co, disse: — Olha só...! Sandro, tu já era mano!... — O quê?!... Draco ouviu barulho de ferro tremelicando atrás de si, voltou-se para trás e viu Róbin apon-

tando-lhe o 22. Draco entortou a boca fazendo cara de asco, cuspiu no chão. — Hei, hei...! — exclamou Rios. — Aqui não, merda! Roma riu escarnecido: — Esquenta não, Rios...! O moleque deve estar de onda, tem coragem não... Quando Roma encerrou a última sílaba entre os lábios, Róbin disparou acertando Draco no

rosto, respingando sangue. — Merda! Merda! — gritou Rios se levantando. Draco ainda de pé, olhava atônito Róbin, que disparou mais uma vez acertando o peito dele,

respingando mais sangue. Draco caiu de joelhos buscando ar, apertava com uma mão o peito e com a outra tateou o rosto, Róbin disparou de novo acertando a mexa especial, que Marcelo falava balançando. Em choque olhou Róbin pela última vez, olhos arregalados, boca aberta, não encontrou mais ar, revirou os olhos e caiu morto sobre as pernas...

Róbin viu o tempo ao redor, lento, e percorrido por descarga elétrica, como se todo lugar ti-vesse sido invadido por tempestade, mas, era tempestade dentro de si. Ao fundo escutava as vozes abafadas de Rios e Roma:

— Merda! Merda! — Agora solta essa arma porra! — gritou Roma. — Merda! Merda! Aos poucos Róbin escutava sua própria respiração. — Solta essa arma porra! — Roma gritou de novo. Um raio frio cortou a alma de Róbin, e aos poucos o sentiu regelando o sangue nas veias.

Sentiu sua respiração forte, descompassada. De repente homens de preto, coletes aprova de balas, e encapuzados com emblemas da polícia entraram na sala gritando:

— Solta essa arma! — Jogue a arma no chão! Surpresos, Rios e Roma puseram as mãos na cabeça. Enquanto, Róbin fora de si, não obede-

cia às ordens. — Porra, moleque! Jogue a arma no chão, agora! Ou explodo seus miolos!

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Róbin não conseguia soltar a arma, um policial o desarmou, o derrubou e espremeu sua cara contra o chão com o joelho. Repentinamente Róbin começou a chorar chorando convulso. E por fim, estacou do peito entre soluços:

— Pelo amor de Deus, seu Policial, mata eu não...! Piscadelas... Piscadelas... De não existência... Róbin chora-

va convulso. Piscadelas... Piscadelas... De não existência... Róbin foi apresentado diante as câ-meras dos jornalistas.

Piscadelas... Piscadelas... De não existência... Roma e Rios emborcados tentam esconder as caras, olhavam Róbin de soslaio, uma vez ou outra com raiva nos olhos. Róbin chorava convul-so. As lágrimas desciam pingando pelo nariz, e pelo queixo.

Piscadelas... Piscadelas... De não existência... Os fleches das câmeras eram como relâmpagos que fotografavam Roma e Rios, atônitos, es-

condendo as caras. Ao redor, homens da polícia encapuzados e armados. Enquanto, Róbin cho-rava chorando convulso...

Piscadelas... Piscadelas... De não existência... E uma imagem evanescente saltou de sua me-mória:

— RÓBIN! Vou te chamar de Róbin!... Como o companheiro do Batman... E aí, como ele você quer vingar os pais com muito tripsrropssx...?? — uma mexa caía sobre a testa, e Marcelo falava balançando essa mexa especial, e sorria.

>> <<

Fleches... Relâmpagos! TV mudando de canal. Num relance a imagem de Róbin faiscou no moni-tor que se encontra atrás da bancada do telejornal. Os técnicos de iluminação regulam a lumi-nosidade sobre os suplentes do público invisível, enquanto os maquiladores aplicam a maqui-lagem. Tudo para obter o efeito desejado nas diversas cenas; integrar o público ao regime do “nós” fictício.

— Estou parecendo natural? — a jornalista, uma moçoila afável, pergunta ao maquilador. Ele responde com um sorriso: — Naturalmente linda...! — para a alegria da moça. Na sala de controle, ao lado do estúdio onde o programa se desenrolará, o diretor, um sujei-

to branco compenetrado, acompanha os monitores escolhendo as cenas que vão ao ar. O ope-rador posiciona a câmera de teledifusão em frente à bancada, e a imagem do jornalista ancora cintila no visor. Sujeito extrovertido, a personificação de um vizinho simpático. Brinca com o maquilador, dizendo que sua graça completa a beleza da colega, produzindo risinhos no estú-dio; — é a própria imagem de uma animada e solidária família.

Sob o comando do diretor, um técnico aperta botões para mudar a cena televisada. Os técni-cos de som prendem os microfones de lapela às roupas dos locutores. O ancora extrovertido ajeita o nó de sua gravata. O casal perfeito se alinha e se espigam nas cadeiras.

— A franjinha jogada pro lado está bem? — ela pergunta apressada. — Você está ótima! — O colega assente. O diretor faz a contagem regressiva, enquanto se reproduz a vinheta de abertura, um ins-

trumental eletrônico de uma marchinha de carnaval. Ele exclama:

“Pronto sorria! Tudo deve ser alegria!”

— Boa noite! — ela diz. — Boa noite! — ele diz. — No ar o telejornal que você confia! — ela exclama.

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Ela gira a cadeira, muda a câmera, mas ela permanece no foco, sozinha. Ela está compene-trada, com um tom sério na voz, profere:

— A polícia prendeu hoje à tarde um empresário que atuava como ponto de apoio de uma quadrilha internacional do tráfico de coca-base.

Muda a câmera, os dois em foco, ele pronuncia: — E o mais surpreendente, no momento da prisão, ouve um homicídio. O técnico, Sob o comando do diretor, aperta o botão para mudar a cena televisada. No moni-

tor principal são mostradas as imagens da delegacia, quando Roma, Rios e Róbin foram apre-sentados às câmeras dos jornalistas. O diretor aponta os monitores escolhendo as diversas i-magens feitas na delegacia, pretende dar mais ênfase no choro de Róbin que possui diversos anglos, ele não está curvado, mas com a cabeça caída. Enquanto a jornalista da externa narra:

A polícia prendeu o empresário Walter Rios que atuava como ponto de apoio de uma quadri-lha internacional do tráfico de coca-base. Walter Rios é quem fazia a logística da rota terrestre do tráfico. Uma menor parte ficava com ele, a qual distribuía entre pequenos empresários. Wal-ter Rios não possui antecedentes criminais, assim como Romualdo Florentino, vulgo Roma. Roma é um dos pequenos empresários donos de boca de fumo. Atuava no varejo apoiando Wal-ter Rios nas demandas do Crack. E no momento, também foi preso Robinson da Cruz de 19 a-nos (ênfase no choro de Róbin), autuado em flagrante pelos crimes de homicídio e associação para o tráfico. Ele também não possui antecedentes criminais. Segundo o chefe da Delegacia de Repressão a Narcóticos, os criminosos foram surpreendidos pela polícia no momento em que acontecia um desentendimento entre eles, resultando no assassinato de Sandoval dos Santos por Robinson da Cruz.

Corte para imagem da jornalista da externa com o chefe da Delegacia. — Sandoval dos Santos já era bem conhecido da polícia — ela diz —, com várias passagens

por diversos crimes. — Sim, o Sandoval Já era bem conhecido da polícia, com várias passagens por diversos cri-

mes ligados à prostituição e o tráfico de drogas, agiotagem e desmanche de carros. Era conhe-cido nas ruas pelo vulgo Draco. Seu nome verdadeiro é Sandoval dos Santos, e usava o nome falso Sandro Diaz, com o qual até se casou. Tudo indica que Walter Rios queria tomar o contro-le do território do Draco, transformando-o apenas num “mestre de cerimônias” — vamos dizer assim. Mas ouve um desentendimento entre as partes, ou Draco não aceitou estas condições, daí o seu assassinato. Mas ainda não se sabe qual é a participação, em tudo isso, do Robinson da Cruz e o que o motivou a executar Draco. Porque as investigações estavam concentradas na quadrilha internacional, a qual Walter Rios fazia parte. Já há alguns meses mantínhamos agen-tes infiltrados no escritório de fachada de Walter, monitorando suas ações... Até que consegui-mos interceptar, em uma de suas rotas, um carregamento vindo de Jataí, com cerca de 600 kg de coca-base.

— As investigações também indicam outro homicídio, na madrugada anterior envolvendo Romualdo?

— Sim! Pelo assassinato de Diogo Matias, conhecido como Duende. Roma e o Duende eram pequenos empresários donos de boca de fumo. Atuavam no varejo apoiando Walter Rios. Há uma grande disputa pelo domínio das ruas — é uma guerra que disputa a venda do Crack. Há outros nomes que ainda devem ser vinculados à quadrilha. Inclusive, a participação da família Rios... Porque o valioso mercado da coca-base tem envolvido cada vez mais famílias. A nossa estratégia sempre foi a descapitalização dos traficantes para enfraquecer o mercado da coca-base. Pegamos 100% do que tínhamos conhecimento. Mas obviamente passa muito mais do que se pega! No entanto, o importante é que conseguimos acabar com a quadrilha. Eles podem até voltar para o tráfico, mas voltam descapitalizados!

A jornalista da externa volta-se para câmera:

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— É com vocês aí do estúdio! — e lança um sorriso. Corte para o estúdio (com ênfase no choro de Róbin na transição de imagens). O jornalista

ancora toma a palavra: — O engraçado é que o rapaz apronta, depois chora diante as câmeras! A colega faz uma careta expressiva dizendo: — Coitada da mãe dele! — É!... — o ancora volta-se para câmera: — É importante ressaltar, que deste capital, o qual

está sendo apreendido dos traficantes, 60% serão investidos em políticas de combate ao narco-tráfico; e os outros 40% serão investidos em qualificação e equipamentos para a polícia tentar entender... — ele pareceu certificar-se do que lia: tentar entender? — tentar entender o cami-nho dos capitais de famílias que se capitalizam muito rápido.

— E depois dos comerciais, ainda falaremos dos cortes de investimentos que o município fez que seriam destinados ao atendimento à criança e adolescentes em situação de risco e violên-cia.

— Enquanto moradores de rua usuários de Crack se escondem dentro de manilhas, em uma de suas obras paralisadas, representantes dos órgãos municipais repassam... imaginem, relató-rios! Vá tentar entender isso!

— Isso mostra o abismo entre a realidade vivida por esses usuários e as ações do poder pú-blico! E você conhece o Cap. IV Art. 59 do Estatuto da criança e do adolescente?

Ele ri da pergunta que a colega fez ao telespectador, depois completa: — Ainda, depois dos comerciais, a mulher que casou com

o Sandoval, acreditando que ele era o Sandro Diaz, diz que não sabia de nada. Voltamos já! Enquanto o ancora ainda falava, o diretor determinava ao técnico dos botões as imagens de

outras fontes de vídeo para mudar a cena televisada. Quando o ancora encerrou sua fala, o dire-tor estalou seu dedo ao tempo que o técnico apertou o botão e a imagem de uma família alegre envolta de uma mesa de café cintilou no monitor. Um franguinho subiu na mesa carregando uma faca de pão, a família sorria, eram todos brancos, papai mamãe titia vovó vovô e os netos de faces rosadas; e o franguinho usou a faca para passar manteiga no pão. “O melhor da vida são os instantes felizes que passamos em família” — proferiu uma voz onipresente sobre a i-magem frisada de toda a família sorrindo. Em seguida, um homem branco de olhos azuis e ca-belo preto brilhante, estava dirigindo um carro do ano, deslizando na rua como se flutuasse no asfalto, enquanto tudo se passava como um filme de Hollywood pelas janelas do carro, todos incrivelmente magros, esbeltos, cabelos e peles tratadas. “Venha sentir o prazer do bem viver” — proferiu uma voz onipresente sobre a imagem sorridente do motorista. “Viva mais vida, e menos juros no Banco Golden-Dawn” — proferiu outra voz sobre a imagem da fachada do ban-co, enquanto pessoas, nos mesmos tons do comercial anterior, entram sorridentes pela porta. E de repente, uma mulher loira, esbelta, tampa seu rosto com a bolsa. Saía da delegacia acompa-nhada do pai, um senhor alto e forte, de terno e gravata. Sob o assédio dos jornalistas, ela se limita a resmungar, enquanto seu pai toma a palavra:

— Não sabíamos de nada. O Sandro era um homem sério, atencioso com a família e carinho-so com a esposa, nunca suspeitamos de nada!

Ainda sob o assédio, com dificuldades, entram num carro de luxo.

— Isso é um absurdo...! — exclama um senhor de sobrancelhas espessas e pretas, advogado da família Rios. — Isso é um despautério...! Como podem julgar toda uma família por um mem-bro? Mesmo assim, sabemos que o Tinho foi aliciado por esse tal Sandoval, Draco, sei lá o nome desse meliante! Isso é um despautério...! Mas isso não vai ficar assim não, tenham certeza que o nosso Tinho não vai mofar em cadeia...! Tenho dito, escreva aí: O Walter Rios não ficará mofan-do na cadeia...!

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Outra imagem faísca no monitor. Surge Edileusa amparada pela irmã Glorinha, ladeadas por Cláudio de terno e gravata — sob o assédio dos jornalistas. Cláudio toma a palavra:

— Infelizmente, a Dona Edileusa não tinha ideia do que estava ocorrendo com o filho. Mas, suspeitava que Robinson fosse usuário do Crack. Por isso acreditamos que os crimes tenham sido motivados pelo vício do entorpecente. Ele vai ajudar a polícia nas investigações, relatando tudo o que viu e ouviu enquanto esteve refém do Draco.

— Refém? — Sim, refém! O Robinson foi usado como marionete, por conta do vício do entorpecente!

Draco se aproveitou! O Robinson vai ajudar a polícia relatando tudo o que viu e ouviu enquanto esteve refém do Draco, de Duende e Roma.

Ainda sob o assédio, com dificuldades, entram num carro popular novo dirigido por Cláudio. A câmera ainda consegue registrar a imagem do rosto de Edileusa no interior do carro, entre os reflexos dos jornalistas no vidro. Corte para o estúdio, a jornalista suplente do público invisível, ainda olhando para o monitor que mostrava a imagem de Edileusa, comentou:

— Coitada! Como essa mulher deve estar sofrendo! Não é...?! — e voltando-se para o colega: — Por isso devemos estar sempre em alerta com o que os nossos filhos estão fazendo, com quem estão andando, ou conversando!

— É melhor seu filho chorar em casa, do que depois ir chorar na delegacia! A imagem de Róbin chorando volta ao monitor. E o ancora continua: — É interessante notar que o primo dele é um advogado bem vestido. Enquanto ele preferiu

as ruas ao invés de estar estudando, agora vai chorar achando que vai comover o delegado?... Sinceramente eu não consigo tentar entender isso!

Enquanto o ancora falava, mostraram a imagem do Cláudio de relance, mas rapidamente foi trocada pela imagem chorosa de Róbin. A jornalista completa:

— Mas com certeza, agora ele vai sentir falta do aconchego do lar! — Ah! Vai! Agora eu tenho certeza absoluta! Porque agora ele vai viver num mundo sórdido

e cruel! — A cadeia! — Sim! A cadeia! Fazem um rápido silêncio, passam a mão na tela do computador escondido na bancada, ajei-

tam alguns cartões. Ela pronuncia com ênfase: — Enquanto moradores de rua usuários de Crack se escondem dentro de manilhas, em uma

das obras paralisadas do Governo, representantes dos órgãos municipais repassam relatórios! — E você conhece o Cap. IV Art. 59 do Estatuto da criança e do adolescente? Os dois riem sonoramente, por ele ter se lembrado da pergunta que ela fez, no bloco anteri-

or, aos telespectadores. Porque não está em jogo a salvação pessoal, mas o sentir a ilusão mo-mentânea do bem viver, como se eles estivessem levando a vida que pediram a Deus, e o traba-lho, por conseguinte, é incessantemente transformado em brincadeira. Os dois querem de-monstrar como é bom perder a ingenuidade frente à aquisição da crítica, juízo e raciocínio que só eles podem ter e você consumir... E ao redor deles, no estúdio e na sala de controle, todos os operários e técnicos que auxiliam o trabalho do diretor, e este inclusive, sorriem com o casal e todos formam a própria imagem de uma animada e solidária família; — uma versão ideal do público invisível. — Ora! Alguém se lembrou de desligar a televisão?...

>> <<

Horas antes de todo o carnaval jornalístico... Na área reservada às visitas, Róbin diante a mãe mantinha-se cabisbaixo, nariz entupido e olhos vermelhos de tanto choro, voltados para mesa. Edileusa estava espantosamente calma, participava de algo que lhe parecia absurdamente

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normal. Para ela, era como ir ao CAS com o filho doente e esperar horas a fio, para ouvir res-postas evasivas e vazias de sentido para ela; — Edileusa estava absurdamente acostumada ao vazio evasivo das instituições... ........................................................ Michael, eles não ligam pra gente!

Edileusa querendo transmitir um pouco de sua tranquilidade ao filho choroso, disse-lhe: — Não se preocupa comigo, fio! Ela olhou ao redor, estavam sozinhos na sala, aproximou-se mais do filho e sussurrou: — Não tomaram dinheiro de mim, o que sempre me passava, fio... E o Cláudio me disse que

é uma pequena fortuna... E tem outra: o tabolão, dono da casa pareceu logo das prisão, pedindo pr’eu assinar contrato d’aluguel da casa... É como se a gente já morasse lá fio... Disse que foi dos alertado da Beatriz...

Ao ouvir o nome de Beatriz, as lágrimas empoçaram nos olhos, e cada gota pingada na mesa lhe revelava dias passados com ela. Nem ouvia mais a voz da mãe, querendo estar com a Bea-triz. Afinal, não estava no combinado a sua passagem pela delegacia. Róbin acreditava que nu-ma hora destas estaria em Paris, e seria o sócio dela no novo negócio. Quando chegou a hora de Edileusa ir embora, Róbin de súbito segurou-lhe as mãos apertando-as entre as suas, impedin-do Edileusa de se levantar. Ela aturdida, seca de palavra carinhosa, não soube o que fazer, ou dizer ao filho. Ele soluçou e roufenho entre arquejos, cantarolou mostrando arcadas salivantes:

Felicidade foi se embora E a saudade no meu peito ainda mora E é por isso que eu gosto lá de fora Porque sei que a falsidade não vigora...

Edileusa se emocionou deixando tímidas lágrimas salgar o rosto envelhecido e vincado de

lembranças amargas. Cantarolou o final da caetana música em uníssono com o filho:

Na minha casa tem um cavalo tordilho Que é irmão do que é filho daquele que o Juca tem E quando pego meu cavalo e encilho Sou pior que limpa trilho e corro na frente do trem...

E completou dizendo à Robinson: — Não se preocupa, num te disse quêle dia que Cláudio é de brio, e inteligente, e que doutor

grande já respeitava as qualidade dele...? Então! Ele tá estudando forma de reduzir pena, lá, com o doutor que aceitou ajudar... Você só tem que colaborar e continuar contando tudo que sabe pr’as investigação!

Pairou o silêncio e não falaram mais nada. Logo vieram encaminhá-lo para cela e Edileusa não precisou inventar mais palavras. Despediram-se de longe com pequenas lágrimas. Robin-son decerto, sentindo que sua mãe nunca mais voltaria, livrara-se do peso. Enquanto Edileusa...

Enfim, Edileusa se sentiu feliz, porque o filho havia lhe proporcionado uma vida melhor.

>> << A imagem de Roma surgiu entre as grades de aço ao lado de um agente penitenciário. Roma estava acabrunhado, de olhos cavos, mordendo o lábio inferior. O agente destravou o portão de grades de aço e o som cavo ressoou no corredor, mas antes de dar passagem a Roma, o avisou:

— Sejam rápidos!

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Rios já estava no corredor a espera de Roma. — E aí? — Roma o indagou contristo. — Calma! — Rios transmite-lhe confiança — Não é porque estou em ala diferente, que me

esqueci de você, brother! — olhou ao redor. — Rapidinho e tou fora daqui, daí resolvo tua pa-rada!

— Runf! — Roma resmungou meneando negativamente a cabeça. — Vai ter que confiar! Roma esfregou o rosto, não usava mais seus anéis de pra-

ta. Sussurrou irado: — Foi aquela vadia, Rios! Foi ela! — Pode ser Brother! Pode ser! — Caralho! Enquanto eu estava de olho no Duende, porra! Peguei ele roubando a gente, ca-

ra! Mas, o Duende não passava de um Zé ruela! Só pode ter sido tudo armação daquela vadia com o Patente, Rios! Eu te avisei avisando cara! Aquela vadia ia tombar a gente, não te disse...? — continuou em tom baixo mordiscando o lábio inferior: — Até falei pro Duende que você es-tava inocente, cara! Inocente achando que estava se blindando, mas eu já sabia que eram tudo gafanhoto, Rios...! — levantou a voz.

Rios olhou em volta, disse em um tom moderado olhando Roma nos olhos: — Calma! Calma, Brother! Por enquanto, o imediato, é o moleque, é a boca grande daquele

moleque que está nos complicando, Brother! Nunca fomos fichados... — Moleque filho da puta! Deu bandeira, deu bandeira... Agora está entregando todo mun-

do...! A lupenproletáriada está tudo caindo; — e com raiva da gente Rios...! O moleque andava pra cima e pra baixo com o Sandro...!

— Fala mais baixo, pô! — Não só com o Sandro, andava com o Diogo também! Mas que porra, moleque filho da pu-

ta! Está dando com a língua nos dentes, entregando a lupenproletáriada toda! Rios olha novamente ao redor. — Fala mais baixo, pô! Já disse! Roma o encara, tem o coração na goela: — Eu nunca estive numa situação dessa cara! — E eu já?! Só que eu num tou sozinho nessa não! Tu fica sussa, que minha família tá lá fora

pra mexer os pauzinhos pra gente! Não vão me deixar mofando aqui! — Runf! Eu estou sendo acusado de homicídio, Rios! Esqueceu? — Brother! — Rios disse num fio de voz: — Isso é o de menos, o mais fácil, é só te colocar

noutro lugar na hora em que o Duende foi morto, brother! — Sempre me livrei dessas paradas! Nunca estive numa situação dessa cara! Se tu saí e eu

ficá mofando aqui, Rios, eu vou ficar puto contigo. Pô! O Draco era o que era graças a gente de-le, tá ligado?

— Você não é mais “gente” do Draco há muito tempo! Eu já disse que vai ter que confiar Bro-ther! Eu já disse que é a boca grande daquele moleque que está nos complicando, Brother! Eles não vão conseguir ligar os nomes, entende? E o Draco está morto, quer dizer, ele não vai se de-fender das acusações que caírem sobre ele! Quantas vezes eu vou ter que te dizer que é a boca grande daquele moleque que está nos complicando?

— Hum...! — Roma coçou o queixo. — O que quer fazer com o moleque? — Vocês estão na mesma cela. Fiquei sabendo! — Rios olhou ressabiado ao redor, depois ti-

rou um objeto pontiagudo da cintura da calça, embrulhado em pano, entregou ao Roma, este desembrulhou e disfarçadamente olha o conteúdo, e o embrulha de volta. Rios diz:

— Temos que calar a boca do moleque!

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Roma enfiou o embrulho na cintura da calça, olhou ao redor, depois se voltando para Rios franziu a testa e com o sangue saltando-lhe aos olhos disse:

— O moleque filho da puta vai pro inferno! Mas, se tu saí e eu ficá mofando aqui, Rios... — Roma cuspiu injetando a saliva entre os dentes. Sua imagem sumiu entre as grades velhas do portão de aço.

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Por trás das pálpebras, os olhos de Róbin percorriam as orbitas, como se estivesse lendo suas memórias, a cata de uma significação para tudo aquilo de estranho que estava rasgando as pá-ginas de sua vida. Ele sentiu as garras que o puxaram para o fundo daquele poço horrível, mas não conseguia identificar o dono de garras tão fortes. Contorcia-se num vazio escuro, com uma intensa dor de cabeça, vomitava e chorava. Beatriz! — gritava dentro de si, com todas as suas forças. Repassava sem cessar, toda conversa de Beatriz, desde o dia em que a viu pela primeira vez e mesmo percebendo as mãos dela o empurrando para aquelas garras, ele ainda desejava Beatriz. Draco! — é meu amigo, afinal, ele ajudou muito eu mais minha mãe... Nada disso, Bea-triz! Você que ajudou eu mais minha mãe, você que arrumou a casa pra nós, que levou ela pra comprar roupa... Até inventou uma história pra aliviar minha barra com ela! — Levou ela pra comprar roupa...! — Róbin estalou os olhos. — O que conversavam enquanto compravam rou-pa? — questionava-se. — O tabolão! O tabolão dono da casa pareceu logo das prisão! Pedindo pra minha mãe assinar contrato d’aluguel da casa e disse que foi dos alertado da Beatriz...! Bea-triz...! eu já aprendi tudinho, agora eu sei! Vem me buscar...! — gritava dentro de si. Tonteava... Draco! — Draco é meu amigo! Desculpa eu! Desculpa eu! “Cê pode pensar em me trucidar ago-ra!” — lembrou-se de Marco lhe dizendo isso e na ocasião respondeu: “Eu não mato ninguém, nem ando armado!” — estava apenas repetindo o que Draco lhe disse, e era verdade, Draco não havia matado Marco! Draco! — Draco é meu amigo! “Vivi de acordo com as consequença da vida empunha ne mim, Draco! Nunca soube se estava errado!” — fazia a voz da mãe Edileusa a sua. — O que conversavam enquanto compravam roupa? Decerto, Beatriz a alertava... — Roma! Roma me espreita! “Você pegou o bonde andando, Róbin. Saca? Nesse ramo tu tem que ficar esperto. Pode dar bobeira nem um segundo”. — Róbin se lembrou do caso do Rafael, e, de ime-diato, percebeu que “bobeira” Draco tinha cometido, afinal, pensou: “ele ajudou muito eu mais minha mãe”... — Beatriz! Beatriz eu te amo! Não vou conseguir viver sem você! — exclamou dentro de si.

Róbin estava no fundo escuro daquela cela, encolhido no canto, abraçava a cabeça entre os joelhos. A sua volta 40 homens, uma muvuca barulhenta. Suas pálpebras recobriam os olhos o lançando em escuridão mais profunda ainda, onde entrevia os passos e trejeitos ensinados por aquele B. Boy. Parecia comunicar-se com a vida como portador da própria energia. Pensou em entrar lá na Escola, e procurar a diretora, e se ela negasse seu pedido? Despreparado para o exercício da cidadania, não se viu no direito de contestá-la... O que faria?... Ia se ver com seus punhos...! Draco! Poderoso, protegeria a si mesmo... Como um Dragão! Draco! Beatriz sorria seu riso de atriz. Róbin a admirava de longe, tomado de encantos por ela, enxergava-a valsando sobre nuvens. Nuvens cinzentas. Fumaça... Cheiro acre. As grades são velhas. Escutou a voz de Duende, com o mesmo tom e ênfase da primeira vez: “Você vai aprendendo! Quando tiver na cadeia, o mulherio e os amigos some!”. Então, sendo poderoso, protegeria a si mesmo...

A muvuca barulhenta de 40 homens rompeu a escuridão, enquanto Roma espreitava o cor-deiro. Aproximou-se aplicando um chute em Róbin, bateu na cabeça dele, puxou Róbin do chão pelos cabelos.

— Hei...! — Róbin reage. — Respeite o Prince Lobo! E furioso tenta agredir Roma, mas a muvuca se move entorno dele acompanhando Roma no

ato covarde. O empurram de um lado para outro, socam sua face, cotoveladas, tapas e ponta-

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pés. Risadas e xingamentos, a muvuca engole Róbin... O cordeiro vestido de lobo foi despido, ele vê o brilho da faca que Roma empunha... Roma o esfaqueia no estômago... ............................................................................... O aço brilha no escuro!

Róbin grita no meio da muvuca, outros participam do seu espancamento. Róbin gira em tor-no de si, grita de dor, Roma o esfaqueia nas costas... ............................................................................... O aço brilha no escuro!

Róbin de retorno tenta se defender, encontrando fúria nos olhos de Roma. Róbin gira em torno de si, vê o brilho da faca que Roma empunha... O esfaqueia no peito... ............................................................................... O aço brilha no escuro!

Róbin cambaleia, quer chegar até a grade e gritar, grunhia. Roma o xinga, outros o empurra. Róbin vê o brilho da faca que Roma empunha... Roma o esfaqueia no pescoço... Sua última dan-ça são volteios em queda livre sobre a poça de seu sangue, o sangue é quente — 40 suspeitos num cubículo. O cordeiro sangra entre piscadelas de não existência. O sangue esfria... — e ne-nhum culpado aparece. Entre noites de existência funesta, foi engolido!...

Eu andava só por esta estrada, Com o grito preso na garganta,

Com os olhos densos na navalha, Estive caçado como um bicho no fundo desta sala,

No fundo deste mundo!

Ouço os clarins da noite negra, Acho e capturo o mal da noite, Paro e me disperso do futuro,

Fico rodando nesta estrada, com o grito na garganta, Os olhos na navalha!

“Brilho da Noite” (A Barca do Sol)

― 2ª edição ― MARÇO DE 2015

No 293º ano da chegada da escrita ao território goiano.