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Prof. Dr. Priscila F. M. Lopes Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Biociências Departamento de Ecologia - DECOL
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Belém e Natal, 3 de junho de 2020.
Parecer sobre o Estudo de Impacto Ambiental – Componente
Indígena (EIA-CI) de Belo Sun junto à comunidade Juruna, Terra Indígena Paquiçamba, sobre os recursos aquáticos e a
pesca Tanto a instalação quanto a operação da mineração
implicarão em impactos diretos sobre quelônios terrestres e
semiaquáticos. Considerando a área a ser afetada por Belo Sun,
incluem-se as espécies Chelonoidis denticulata, C. carbonaria,
Kinosternon scorpioides, Rhinoclemmys punctularia, Platemys
platicephala, Mesoclemmys gibba e Phrynops tuberosus. O impacto
esperado é proporcional à área desmatada, sobretudo em áreas
onde ocorrem nascentes, pequenos cursos d’água e poças de terra
f irme (Félix-Silva et al. 2019). Não há menção a estas espécies em
todo o estudo. Mencionam-se e se discutem os impactos sobre o
tracajá, cujo nome científ ico está errado no texto do ECI. Trata-se
de Podocnemis unif i l is, e não de P. expansa.
Como o empreendimento está a pouco mais de 1km da
margem do Rio Xingu, e que o restante da distância até a
localidade da mineração é por via f luvial, a distância em linha reta,
de mais de 10km, precisa ser relativizada. Um dos maiores
problemas da mineração de ouro, entre outros, é a contaminação.
Neste caso específico, a preocupação é com a contaminação do
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ecossistema aquático, que é a base da alimentação da população
ribeirinha. Se a contaminação atingir o Xingu, ou um de seus
igarapés, a contaminação atingirá de forma imediata a comunidade
aquática das quais ambas as TIs, todas as comunidades da região
e a jusante, t iram seu sustento. A contaminação, neste caso,
atingiria uma distância imensa e difíci l de calcular. A título de
exemplo, Pignati et al. (2018) encontrou altíssimos níveis de
contaminação por pesticidas organoclorados na região do médio
Xingu, centenas de quilômetros a jusante da fonte de
contaminação, no Mato Grosso. Esta contaminação foi encontrada
apesar da água contaminada por organoclorados percorrer uma
longa extensão l ivre de qualquer fonte de contaminação,
atravessando inclusive parte da TI Kayapo. Como o próprio rio se
encarrega de disseminar a contaminação, a distância a ser
considerada deveria ser a distância à sua margem. Portanto, um
empreendimento com as características de Belo Sun não poderia
ser implementado a menos de 10km das margens do Xingu, de
modo a minimizar possíveis efeitos negativos sobre a segurança
do empreendimento, sobretudo quanto aos seus efeitos sobre a
população indígena e ribeirinha. A Belo Sun sequer teria realizado
um ECI não fosse a condicionante 26 da LP, o que deixa evidente
a propensão em não acessar adequadamente os impactos do
empreendimento.
O transporte f luvial de todo o t ipo de insumos para o
empreendimento, a partir de Belém, constitui uma séria ameaça a
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uma das maiores populações de tartaruga-da-amazônia (P.
expansa), assim como à biodiversidade da região do Mosaico de
Unidades de Conservação do Baixo Xingu, que é formado pela
Reserva de Desenvolvimento Sustentável Vitória de Souzel e pelo
Refúgio de Vida Silvestre do Tabuleiro do Embaubal. Durante a
construção de Belo Monte, o intenso tráfego de embarcações
ocasionou um número indeterminado de colisões com quelônios
aquáticos, causando a mortalidade de dezenas de indivíduos, o
que foi inclusive alvo de investigação pelo ministério público
(Pezzuti e Carneiro 2016). Além disso, durante o mesmo período,
houve vários encalhes de embarcações nas principais praias
uti l izadas pelas tartarugas, inclusive em pleno período de desova.
Com isso, os animais se espantaram, retardando o processo de
desova. Isso tem sérias consequências para o sucesso
reprodutivo, pois quanto mais tarde as posturas acontecem, mais
tarde ocorrem as eclosões e os nascimentos. Se atrasam, a subida
do nível do rio entre novembro e dezembro, associada às marés de
lua nestes períodos, pode provocar a mortalidade da maior parte
dos embriões prestes a eclodir. O l icenciamento de Belo Sun,
portanto, precisa ser acompanhado de um estudo que evite ou
minimize estes impactos relacionados à colisão com a fauna
aquática e encalhes, sob o risco de cometer os mesmos graves
danos ambientais de Belo Monte. Recomenda-se que, desta vez,
sejam feitos os estudos para o estabelecimento da hidrovia do
baixo Xingu, para garantir a manutenção dos processos ecológicos
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naturais da região, e evitando impactos sobre as Unidades de
Conservação ou áreas ecológicas sensíveis ali existentes. A
tartaruga é uma espécie considerada Dependente de Conservação
pela União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN, em
inglês), com recomendação do grupo de especialistas desta
instituição para mudança de categoria, para Crit icamente
Ameaçada (Rhodin et al. 2018).
O ECI contém um conjunto interessante de informações
sobre a relação da mineração com o ambiente natural e com os
recursos naturais. Entretanto, não traz nada de novo com relação a
pesquisas já feitas, inclusive no âmbito do ECI relativo a Belo
Monte, que foi mais aprofundado e envolveu uma etapa de campo
mais longa, embora ainda assim bastante falho. De acordo com o
ECI, o trabalho de campo efetivo, nas aldeias, ocorreu entre 22 de
abri l a 09 de maio de 2019 e entre 01 de agosto a 20 de agosto de
2019, totalizando 37 dias. Considerando que este escasso número
de dias de trabalho junto às comunidades ainda foi dividido entre
as quatro aldeias, e entre os estudos propriamente ditos e
reuniões e palestras sobre o empreendimento, é evidente que o
levantamento de informações primárias não foi suficiente. A
pesquisa qualitativa bem feita requer longo tempo de permanência
e de interação com a comunidade, para estabelecimento de uma
relação de confiança, como especif icam os manuais de pesquisa
etnográfica mencionados no ECI, bem como a l i teratura mais
aprofundada sobre o tema (Fontana and Frey 2000; Bessarab and
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Ng’andu 2010). Oficinas de um ou dois dias não podem ser
consideradas como um estudo etnográfico válido. “Olhar, ouvir e
escrever” envolve um tempo de permanência que permita uma
compreensão mínima da realidade social, e da complexa interação
dos Juruna com a natureza, sobretudo com o rio. A título de
exemplo, a descrição da metodologia menciona a realização de
dinâmicas na forma de oficinas. A pesca, atividade básica de
subsistência e principal fonte de renda, de altíssima complexidade,
múltiplas espécies e sujeita a uma variação sazonal marcada, foi
tratada em uma oficina, com duração de alguns dias. Um estudo da
pesca praticada pelos Juruna (Yudjá, os “Donos do Rio”) deveria
levar minimamente dois anos de acompanhamento detalhado.
Embora ao longo de um ano seja possível caracterizar a
sazonalidade geral da pesca, este tende a ser um período
insuficiente. Isto se dá não apenas porque estoques pesqueiros
podem ter variações internas de mais longo prazo (algumas
décadas, por exemplo), mas também porque o ano amostrado pode
eventualmente coincidir com algum evento atípico, como um El
Niño (Zheng and Kruse 2000; Pellowe and Leslie 2017). Ambos os
processos e suas possíveis interações (variação temporal x evento
atípico) são muito pouco entendidos para ambientes de água doce,
e especif icamente para a Amazônia.
Este acompanhamento prévio deveria incluir o monitoramento
de desembarques (com detalhamento de espécies, tamanho e peso
dos indivíduos, esforço em minutos, tempo de deslocamento, t ipo,
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quantidade e medidas de apetrecho, identif icação qualitativa de
pesqueiros, tamanho de tripulação, t ipo de embarcação,
identif icação de embarcação, t ipo, quantidade e origem de isca,
uso e tamanho de motor), monitoramento do consumo de peixe
(com detalhamento de espécies, quantidades consumidas por
pessoa em cada refeição e por faixa etária e situação no momento,
como gravidez, período de lactação, doença, etc.),
acompanhamento de pescarias (observação participante),
identif icação georreferenciada de todas as áreas de pesca,
descrição e etnografia das técnicas de pesca, da sazonalidade do
seu emprego, destinação do pescado (subsistência direta, troca,
venda para o mercado local e externo de consumo, e mercado de
peixes ornamentais), movimentação sazonal de pessoas em função
da pesca (se mudam-se para determinados pontos ou vilas, se o
tamanho da família varia conforme a espécie alvo do momento), e
seu rendimento e seletividade, e de sua interação com outras
atividades econômicas (proporção da renda por atividade,
envolvimento proporcional da família por estação, gastos
destinados à atividade para compra de material permanente como
barcos e motores). Dada a importância da pesca, seria essencial
uma abordagem quantitativa, pois entre as dezenas de espécies
uti l izadas na dieta e no comércio local há uma susceptibi l idade
distinta à exposição por contaminantes, em função dos hábitos
alimentares e consequente posição na cadeia trófica (Oliveira et
al. 2010; de Oliveira Corvelo et al. 2014; Arrifano et al. 2018).
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Seria necessário um estudo que permitisse identif icar padrões,
com estimativas minimamente razoáveis das espécies mais
importantes na dieta, incluindo a variação sazonal e na
comercialização de pescado, com alto grau de detalhamento das
informações.
Além disso, os principais ambientes de pesca e de uso de
recursos aquáticos de forma geral deveriam estar bem mapeados e
separados em suas estações hidrológicas. Os mapas das páginas
92 e 93 apresentam os principais ambientes, mas não há um
mapeamento sequer das áreas de pesca, que seria o básico a ser
apresentado. Isso deveria ser feito em detalhe e por aldeia,
avaliando-se, inclusive, as sobreposições de territórios de pesca
entre aldeias e com outras comunidades, visto que a intensif icação
da pesca, um impacto direto esperado, tende a se agravar
dependendo do nível de sobreposição (Jimenez et al. 2020). A
área de pesca é uma definição geral normalmente fornecida pelas
comunidades e pode contemplar múltiplos pesqueiros. Estes
pesqueiros podem ser sazonais e podem estar associados a
características ambientais específicas (sazonais ou não) (Maina et
al. 2016), como a presença de matupás, capim flutuante, etc. (de
Freitas et al. 2015). É importante que todos estes aspectos
estejam muito bem identif icados e caracterizados, inclusive o
tempo e a via de acesso a estes pesqueiros (ou área de extração
de recursos aquáticos) em cada época do ano. Embora o ECI
apresente uma l istagem dos ambientes onde a pesca é praticada, e
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mencione a realização de um etnomapeamento, o produto
apresentado (p. 414) não contém nenhum detalhamento sobre os
ambientes uti l izados. Não há qualquer descrição, no texto, sobre o
que consta no mesmo. Esta é uma das falhas mais graves do
estudo. Cabe ressaltar ainda que etnomapeamentos são
ferramentas úteis para avaliações gerais e superficiais, mas não
devem ser tomadas como ferramentas completas em si mesmos
(Lauer and Aswani 2008). Além disso, métodos participativos
pontuais no tempo, quando voltados para a descrição da pesca de
forma geral, tendem a sobre-representar o momento, por exemplo,
destacando espécies e áreas de pesca em uti l ização quando da
realização da oficina (Lopes 2009). O mapeamento detalhado e
rigoroso do uso dos recursos naturais é considerado o principal
produto no âmbito dos processos de identif icação e delimitação de
terras indígenas, e é um elemento central em qualquer diagnóstico.
Partindo do pressuposto que o ECI tem como objetivo geral
fornecer subsídios para conhecer os impactos potenciais e
esperados do empreendimento, bem como subsidiar medidas de
mitigação e compensação dos mesmos, as informações disponíveis
sobre fauna, f lora, ambientes, interações ecológicas, caça e
pesca, representam um diagnóstico superficial e que dif ici lmente
serve de base para operacionalizar qualquer ação concreta. Na
caracterização da caça e da pesca, feita a partir destes
etnomapeamentos e oficinas, nos deparamos com um conjunto de
informações e depoimentos muito interessantes, mas que estão
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inseridas sem qualquer sistematização e interpretação. Boa parte
das informações coligidas durante estas oficinas precisariam vir
acompanhadas de um diagnóstico das espécies importantes para a
subsistência dos Juruna, o que não é o caso.
A importância da pesca na dieta, segurança e soberania
alimentar precisa estar claramente definida. Além dos pontos já
mencionados de quantif icação da ingestão por espécie, estado do
indivíduo (e.g., lactante) e período do ano, também seria altamente
recomendável análises de isótopos estáveis de unhas e cabelos
dos ribeirinhos e de diversas espécies previamente a qualquer
exposição a impactos ou mudanças. Isto permitir ia acompanhar de
modo sistemático impactos da mudança da dieta (Nash et al. 2012)
e uma eventual transição nutricional, inclusive com perda de
soberania alimentar (Ibarra et al. 2011). De fato, para avaliar
eventual alteração na soberania alimentar seria necessário já
mapear a origem, proporção e valor de todo o alimento consumido
pelas comunidades por estação do ano. Este alimento deve ser
identif icado criteriosamente. No caso dos recursos localmente
extraídos, isto signif ica adotar os protocolos de identif icação e
quantif icação de espécies l istados acima. No caso de recursos
adquiridos no mercado, isto implica em identif icar o produto, seu
grau de processamento e, se possível, até mesmo a marca, já que
marcas distintas do mesmo produto apresentarão composição
diferente dos mesmos, com implicação para a saúde dos
consumidores. Cabe também destacar que não há ainda a
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apresentação de cenários participativos (Wesche and Armitage
2014), para tentar prever de modo quantitativo futuros possíveis
(associando, por exemplo, modelos de distribuição de espécies a
cenários futuros elaborados pelo Painel Intergovernamental em
Mudança Climática - IPCC, e possíveis impactos diretos de cada
um destes cenários na pesca) (Cheung et al. 2009).
Há, no ECI, uma lacuna de informações que permitam
qualif icar e quantif icar possíveis impactos sobre a pesca e sobre
os peixes, em função das inúmeras falhas e insuficiências de
coleta de dados apresentadas acima. Não há minimamente nem
informações que quantif iquem a importância relativa das diferentes
espécies de peixes e quelônios na alimentação e na pesca
comercial, bem como sua dinâmica sazonal e variações intra-
anuais. Um exemplo que o estudo indica é a preocupação dos
Juruna com a prática de pesca da curimatá, que é praticada de
noite e com tarrafa. Como considerar a magnitude deste impacto
se o estudo sobre os peixes e as pescas foi qualitativo, e se não
se conhecem os padrões de uso e a importância da curimatá para
subsistência e comercialização, assim como da pesca com tarrafa,
que não se l imita à captura de curimatá? A própria obtenção de
isca com tarrafinha fica comprometida com o impacto do clarão do
canteiro de obras do empreendimento. É clara a necessidade de
maior permanência em campo, para uma melhor caracterização da
atividade pesqueira e das suas complexas características.
Existem também alguns erros grosseiros nos resultados das
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oficinas. Um exemplo disso é o fato de mencionarem quatro
espécies de veado para a região, fazendo uma confusão com os
nomes locais. Ocorrem apenas dois, Mazama americana e Mazama
nemorivaga (p. 122). O outro nome científ ico mencionado, Mazama
guazoubira, corresponde a uma espécie que não ocorre na região.
Esse conjunto extenso de informações dispersas sobre o meio
biótico, assim como das inúmeras pranchas fotográficas pouco
agrega, dando volume a escasso conteúdo. O mesmo vale para
diversos trechos de texto repetidos (exemplo: metodologia FOFA –
Forças, Oportunidades, Fraquezas e Ameaças, e que consta na
descrição da estrutura educacional das aldeias). Essa é uma
estratégia comum em processos de l icenciamento que prejudica
sobremaneira o trabalho do órgão l icenciador, cujos analistas são
obrigados a analisar milhares de páginas, procurando o pouco de
conteúdo úti l e verif icando o atendimento a termos de referência.
Descrição dos impactos Na classif icação dos impactos, os Juruna assinalaram que
esperam, durante todas as fases do empreendimento, um aumento
da pressão sobre os recursos naturais dos quais dependem, e o
consideraram como um efeito direto. Foram enfatizados os
impactos sobre os recursos pesqueiros, sobre os quais são
sentidos impactos desde o início das obras de Belo Monte. O fato
de este ter sido o primeiro impacto a ser mencionado é algo digno
de nota, não só pela importância destes recursos para a
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comunidade indígena, como também, certamente, da experiência
adquirida com a observação diária dos impactos de Belo Monte ao
longo de todas as fases de implementação e operação. Este é um
ponto relevante, pois a falta de clareza quanto à origem dos
impactos é elemento crít ico na interpretação dos resultados do
PBA da pesca de Belo Monte. No caso de Belo Monte, ao
interpretar os resultados que apontam para redução na quantidade
de pescado desembarcado, assim como no rendimento das
pescarias (captura por unidade de esforço – CPUE), os consultores
da Norte Energia informam que estas tendências de declínio não
podem ser, “ainda”, atribuídas ao empreendimento, não sendo
possível estabelecer relação causal da sobrepesca ao
empreendimento. Assim, concluem repetidamente, relatório após
relatório, que “Até o momento, ainda não foram detectados
impactos do empreendimento sobre a pesca”, mesmo com
resultados mostrando redução na produtividade pesqueira e, mais
grave ainda, no consumo de pescado (fonte primária de alimento
para a população ribeirinha). As comunidades de pescadores
indígenas e ribeirinhos discordam veementemente desta
interpretação, que vai contra a l i teratura sobre o impactos de
barragens sobre a pesca (Agostinho et al. 2005), e pleiteiam há
anos que seu ponto de vista também seja considerado.
Desta forma, para que não se incorra no mesmo problema, é
importante que o ECI e o EIA Belo Sun já pressuponham que o
provável aumento da pressão sobre os recursos aquáticos, base da
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alimentação da população regional, é uma decorrência direta do
início da instalação de Belo Sun e de um provável efeito sinérgico
(ver abaixo) com os impactos de Belo Monte.
Programa de monitoramento da pesca No tocante aos programas sugeridos, é imprescindível a
participação da comunidade indígena em todas as etapas das
ações de monitoramento. Se queremos aprender com os problemas
enfrentados com o PBA de Belo Monte, precisamos planejar forma
democrática de participação na interpretação dos resultados do
monitoramento, como já mencionado. A avaliação dos resultados e
das tendências apontadas pelas séries temporais de produção,
rendimento, composição de espécies e condição das principais
espécies uti l izadas devem ser realizadas em oficinas
participativas, com representantes dos diversos grupos
interessados. Futuros programas de monitoramento devem ser
conduzidos de forma participativa em todas as suas etapas,
incluindo a indicação dos coordenadores para os diferentes
programas. Total independência e transparência deve ser
garantida aos consultores. Do contrário, a prevalência das regras
de contrato do setor privado prevalecerão, e os PBAs serão
conduzidos invariavelmente de forma a atender sempre os
interesses do empreendedor, e não o interesse público e da
população afetada. Também deve-se aprender com os erros
cometidos pelo monitoramento feito atualmente em Belo Monte, em
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que falta detalhamento: 1) das espécies desembarcadas (nome
científ ico ou, ao menos, refinamento do nome popular), 2) tamanho
e peso dos indivíduos desembarcados (a falta desta informação
impede o acompanhamento, pela pesca, de diminuição do tamanho
do pescado, ainda que exista um acompanhamento mensal
incipiente sendo feito por amostragem), e 3) e mesmo
detalhamento do esforço (atualmente ele é calculado em dias de
pesca, ou seja, uma eventual mudança de esforço precisa ser
drástica para ser identif icada pelo monitoramento. Idealmente,
deveria ser em minutos).
Duas alternativas não excludentes podem contribuir para que
os resultados dos programas não sejam relativizados por equipes
de consultores que atuam de modo conveniente para a empresa.
Uma possibil idade é que estes resultados sejam interpretados de
forma participativa, incluindo a comunidade de pescadores (que
são especialistas locais), os consultores da empresa, e avaliadores
independentes selecionados de forma criteriosa, e que atuariam
também como auditores. Sugerimos que o monitoramento
pesqueiro “oficial” seja executado pela própria comunidade
indígena, através das suas associações, uti l izando métodos
consagrados na l i teratura acadêmica, e com a contratação de
consultores com experiência comprovada, pelas associações
indígenas, sem qualquer vínculo contratual com o empreendedor.
Atualmente, no PBA da pesca de Belo Monte, cabe aos indígenas
meramente o fornecimento de informações com base em
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entrevistas, e os dados com base nos quais a empresa “conta a
história oficial”. Em outras palavras, as comunidades fornecem o
que a empresa precisa para negar os impactos, contratando seus
consultores. Este é um erro estratégico nesta disputa desigual,
pois sem estas entrevistas o PBA não ocorre. É necessária uma
mudança estratégica por parte da comunidade, e a apropriação
destes dados. Da mesma maneira que a empresa faz com seus
consultores, a comunidade pode exigir, em troca de conceder
entrevistas: 1) os originais das mesmas; 2) o treinamento e
pagamento pelo serviço de digital ização e estruturação dos bancos
de dados nas aldeias, sendo este os bancos de dados válidos e
oficiais; 3) a contratação de consultores escolhidos pelos
indígenas, mas pagos pelo empreendedor; 4) que as comunidades
tenham total direito sobre os dados, podendo distribuí-los para
consultores e acadêmicos externos para análises independentes, e
4) que o empreendedor, ou seu contratado terceirizado, assine um
termo de concessão dos dados com cláusulas que condicionem a
publicação de qualquer análise ou conclusão ao prévio
consentimento da comunidade indígena. Esta últ ima cláusula é
exatamente da mesma forma que o empreendedor faz com seus
consultores, privando-lhes da independência necessária a estudos
isentos.
Os programas de monitoramento faunístico também podem e
devem ser conduzidos de forma participativa, ou mesmo através
das associações indígenas. Entre as vantagens de um
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monitoramento conduzido desta forma, destacam-se a
incorporação da experiência e conhecimento indígena sobre a
fauna (elementar em qualquer monitoramento ou levantamento,
mas nunca reconhecido, sendo considerado serviço de “mateiro”),
a geração de renda, a possibil idade de qualif icação profissional
(não somente para o monitoramento, mas para outras
possibil idades, como turismo de observação de aves, por exemplo)
e a possibil idade de contratação de consultores isentos. Se existe
interesse por ambas as partes em realizar capacitação e gerar
emprego, nada mais adequado do que concil iar estas agendas com
as do monitoramento ambiental, que é uma demanda permanente
de qualquer comunidade indígena ou tradicional que dependa da
integridade territorial e do uso sustentável dos seus recursos
naturais. Isto se torna ainda mais relevante no caso de
comunidades sujeitas a efeitos sinérgicos de empreendimentos
como Belos Monte e Sun.
Proteção Quanto às medidas propostas, consta o Apoio da Belo Sun
para melhoria da estrutura de fiscalização dos órgãos ambientais
com poder de polícia. É importante lembrar que o mesmo foi
apontado para mitigar os impactos de Belo Monte sobre a região
do Embaubal, que é fustigada pela ação de traficantes de
tartarugas. Até hoje não há um arranjo claro quanto a este apoio,
pois a empresa Norte Energia alega que esta é uma função do
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Estado e que os agentes que porventura contratasse não teriam
poder de polícia. Foi uma longa jornada até que ficasse claro que
o que é demandado é o apoio, o suporte f inanceiro e logístico para
ações de fiscalização. Está f inalmente claro que, como a
fiscalização é uma atribuição de fiscais com poder de polícia ou
mesmo policiais, não é eficiente contratar pessoal, mesmo que
treinado, que não tenha poder de polícia. Isto deve ser sanado de
maneira que o empreendedor possa custear a presença de
policiais, adquirindo passagens, pagando diárias e alimentação, e
provendo a estrutura adequada de fiscalização. Com a questão das
ações sugeridas para implementar a estrutura de segurança os
problemas são os mesmos, sendo a carência de profissionais o
principal problema.
Entre as medidas sugeridas no ECI páginas 508-608, as
relativas à proteção territorial e conservação deveriam conter algo
proposit ivo e uma articulação prévia sobre como isso poderia ser
arquitetado junto aos órgãos que são, por Lei, responsáveis por
estas atividades, como a FUNAI, a Polícia Ambiental, o IBAMA e o
ICMBIO. É de crucial importância que um plano já articulado de
apoio a estes órgãos, incluindo os mecanismos de transferências
de recurso, contratação de pessoal e serviços, seja apresentado
antes de emitida qualquer l icença. Do contrário, serão promessas
não cumpridas com o argumento que fiscalização e proteção são
atribuições dos órgãos públicos, para serem executadas por
agentes públicos. Por isso mesmo, a forma de apoio precisa ser
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cuidadosamente planejada, com sua viabil idade atestada pelos
órgãos públicos a serem apoiados em suas atividades. A título de
exemplo, não adianta apenas construir bases de proteção, adquirir
barcos, fornecer combustível, se os órgãos em questão não têm
como manter equipes em campo. Embora a melhoria de
infraestrutura seja também necessária, não basta. Também não
adianta contratar pessoal terceirizado sem poder de polícia, como
já constatado no âmbito do suporte que foi prometido pela Norte
Energia à SEMAT de Senador José Porfír io, e posteriormente ao
IDEFLOR-Bio. Viabil izar a manutenção de equipes de fiscais em
campo é mandatório, e por outro lado administrativamente um
desafio. É necessária uma articulação prévia, com viabil idade
previamente aprovada pelo l icenciador (FUNAI) e pelos demais
órgãos com atribuição de fiscalização proteção territorial e do meio
ambiente.
Monitoramento de segurança na operação do empreendimento Quanto às medidas de segurança apresentadas quanto à
estrutura da barragem, o tratamento dos resíduos e o de controle
das explosões, por mais que apresentadas de forma didática por
profissionais altamente qualif icados, não deixam claro como será
viabil izado um acompanhamento adequado, pela comunidade, da
execução do que foi projetado. Se analisarmos os estudos, os
projetos e as medidas de segurança da Vale em Brumadinho e em
Mariana, certamente veremos projeto, plantas e planos muito
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semelhantes, que deixariam os riscos insignif icantes. O risco
verdadeiro, para a sociedade, é que no presente caso não há como
avaliar os elementos técnicos da engenharia de segurança, e
também de verif icar se o que consta nos projetos é o que virá a
ser executado. Isto porque, a partir da emissão das l icenças, as
regras de confidencialidade e sigi lo empresarial passam a valer.
Nesse sentido, a única forma de dar segurança é que a comissão
indígena e ribeirinha possa ser acompanhada de auditores
independentes, que não são indicados pela empresa, embora
tenham seus serviços custeados por ela. Devem ser escolhidos
pela sociedade, e com total l iberdade e independência para t irarem
e divulgarem suas conclusões.
Programas – criação de peixes Os programas de monitoramento, capacitação, fortalecimento
institucional, de saúde e educação estão elencados sem qualquer
detalhamento sobre sua viabil idade e exequibil idade, a despeito
das importantes considerações dos indígenas quanto às falhas
ocorridas no PBA-CI de Belo Monte. Um exemplo é a iniciativa de
criação de peixes em tanque-rede. A iniciativa não se mostrou
viável do ponto de vista logístico e f inanceiro, mas mesmo assim o
programa voltou a ser discutido com menções vagas ao
atendimento das possíveis falhas. Uma delas, a de produção local
de alevinos, é absolutamente inviável. A produção de alevinos
envolve a implementação de uma estrutura completa de
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reprodução dos peixes, sendo necessário implementar, e manter,
uma estrutura de laboratórios e viveiros, demandando equipamento
e insumos caros, e de uma equipe muito bem qualif icada. Belo Sun
manteria esta estrutura permanentemente na TI Paquiçamba?
Estimou custos de implementação e manutenção? Aparentemente
não, pois do contrário, não teria proposto. Uma solução muito mais
fácil é de garantir o fornecimento dos alevinos, além de assistência
técnica. Além disso, esta proposta ignora o modo tradicional local,
não famil iarizado necessariamente com a aquicultura. A história
brasileira de propor criação de peixes a comunidades pesqueiras
está repleta de falhas, parcialmente por tentar transformar um
extrator de recursos aquáticos (pescador, por exemplo) em um
“agricultor” de ambientes aquáticos, sem prover os meios sociais
(capacitação, desenvolvimento de capital social, etc.) e
econômicos (atividade com mais custos que a pesca) para isto
(Lopes et al. 2018)
Efeitos sinérgicos com os de Belo Monte Outro problema da maior seriedade é a falta de uma
investigação sobre os efeitos sinérgicos do empreendimento em
questão com Belo Monte, o que nos parece imprescindível,
considerando que Belo Sun se encontra no trecho de redução de
vazão, o mais impactado pela hidrelétrica. Os diversos
depoimentos coligidos pela equipe atestam para efeitos profundos
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da alteração do ciclo hidrológico sobre os peixes (nas referências
aos hábitos alimentares dos mesmos). Um exemplo é a menção de
que a pescaria com arco e f lecha, praticada nos igapós, perdeu
importância devido ao “controle da vazão”.
Adicionalmente, quando é mencionado que o atravessador
tem dif iculdade de chegar nas aldeias para adquirir o pescado, não
é mencionada a interferência de Belo Monte na navegabil idade, e
nem o fato de que o acesso fluvial envolve o transporte por eclusa.
Além disso, também há uma explícita falta de conhecimento sobre
a operação de Belo Monte. Na página 537, afirma-se que o
Hidrograma de Consenso está implementado desde o f inal de
2015, o que é totalmente fora da realidade. Somente em 2019 foi
concluída a instalação do conjunto total de turbinas. Embora a
vazão já estivesse alterada e sem seguir seu ciclo natural desde o
período mencionado, com diversos impactos percebidos pelos
indígenas e detectados pelos programas de monitoramento e por
estudos independentes, a operação da usina entre 2016 e 2019
não operou nem próximo ao que estabelecem os Hidrogramas A ou
B.
Outro possível efeito sinérgico ocorreria na hipótese da
contaminação do Xingu quando este se encontra com sua descarga
reduzida, aumentando a susceptibi l idade da fauna aquática. Isso
também não é discutido.
Ruídos e claridade
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Um depoimento transcrito no texto demonstra como a intensa
i luminação dos canteiros de obra de Belo Monte causou
perturbações não esperadas. Um exemplo interessante é a baixa
produção de castanha, que para os Juruna ocorreu porque a luz
intensa espantava as abelhas polinizadoras da Castanheira. A
construção de Belo Monte ocorreu com o canteiro em pleno
funcionamento 24 horas por dia por anos a f io, e possíveis
impactos das obras de Belo Sun precisariam ser também
cuidadosamente considerados.
“Nível de conversa normal” e “ruído equivalente a tráfego
urbano” são definições inaceitavelmente subjetivas em um estudo
técnico. Ruídos deveriam ter sua magnitude criteriosamente
qualif icada no ECI e apoiados por l i teratura científ ica robusta.
Durante a construção de Belo Monte, o uso de explosivos foi muito
frequente, e causou incômodo considerável às comunidades
indígenas. Da mesma maneira, a intensa i luminação dos canteiros
de obras também foi perturbadora. Os impactos destes dois
aspectos precisam ser avaliados também se ocorrerem durante o
período de desova dos quelônios aquáticos.
Os ruídos e explosões, da mesma maneira, irão interferir na
comunidade íctica e nas estratégias de pesca. É necessário um
estudo integrado combinando ictiologia e etnobiologia, incluindo
um período mínimo de monitoramento, para dimensionar estes
impactos. Estes mesmos impactos também serão sentidos na fauna
cinegética e, consequentemente, nos padrões de caça, que
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permanecem não avaliados. Chama a atenção que os ruídos da
construção e atividade sejam tratados com pouca consideração em
relação aos seus efeitos no ambiente aquático, visto que há
informações científ icas relevantes se acumulando ao longo das
últ imas duas décadas, embora ainda haja lacunas importantes
(Hawkins et al. 2015).
Desta forma, propor como medida o “monitoramento da caça,
pesca e aves e da quantidade de luz e ruídos/barulho e
polinizadores das castanheiras, com participação da comissão
indígena, antes da implantação, durante a obra e operação”
implicaria em licenciar um empreendimento cujos impactos sobre a
biodiversidade e a subsistência das populações indígenas são
desconhecidos. Um diagnóstico baseado em um monitoramento
mínimo deveria ter sido executado no âmbito do ECI, e não ser
proposto para um futuro PBA.
O “Estudo de Ruptura Hipotética da Barragem de Rejeitos
(Dam Break)”, elaborado pela empresa Vogbr, deve ser encarado,
pelos Juruna, como os estudos realizados pelas empresas que
atestaram a segurança das barragens de Mariana e Brumadinho.
Estes devem ser levados a cabo por empresas com independência
garantida nos termos dos contratos. Recomendamos que a
comunidade não aceite estes estudos e solicite outro(s), com o
devido acompanhamento e com garantida isenção nas cláusulas do
contrato. É no contrato que se define se o monitoramento tem
isenção ou é um serviço prestado de acordo com regras do setor
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privado, inaceitáveis no âmbito de empreendimentos onde se
requerem estudos de impacto ambiental.
Sumário de medidas de caráter urgente para que se possa de fato aval iar
os possíveis impactos da mineradora
1) Avaliar os impactos em todas as espécies de quelônios ocorrentes na região (Chelonoidis denticulata, C. carbonaria, Kinosternon scorpioides, Rhinoclemmys punctularia, Platemys platicephala, Mesoclemmys gibba, Podocnemis unif i l is, P. expansa e Phrynops tuberosus) em função da área a ser desmatada e nos impactos sobre os pequenos cursos d’água;
2) Considerar cenário de implantação do empreendimento a menos de 10 km da margem de qualquer igarapé ou afluente do Rio Xingu, ou da margem do mesmo;
3) Avaliar os riscos e medidas mitigatórias para minimizar os acidentes pelo transporte f luvial e que possam vir a comprometer organismos aquáticos (e.g., tartarugas da Amazônia) e suas áreas de desova e reprodução;
4) Apresentar os estudos da hidrovia do Baixo Xingu que levem em consideração possíveis impactos ambientais em toda região, especialmente na região do Mosaico de Unidades de Conservação do Baixo Xingu;
5) Acompanhamento da pesca e da caça de quelônios na região por, no mínimo, 2 anos, para minimizar as chances de amostragem de um ano anormal (e.g., El Ninõ), detalhando:
a) Desembarques pesqueiros (com detalhamento de espécies, tamanho e peso dos indivíduos, esforço em minutos, tempo de deslocamento, t ipo, quantidade e medidas de apetrecho, identif icação qualitativa de pesqueiros, tamanho da tripulação, t ipo de embarcação, identif icação de embarcação, t ipo, quantidade e origem de isca, uso e tamanho de motor);
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b) Monitoramento do consumo de peixe (com detalhamento de espécies, quantidades consumidas por pessoa em cada refeição e por faixa etária e situação no momento, como gravidez, período de lactação, doença, etc.);
c) Acompanhamento de pescarias (observação participante);
d) Identif icação georreferenciada de todas as áreas de pesca;
e) Descrição e etnografia das técnicas de pesca e da sazonalidade do seu emprego
f) Destinação do pescado (subsistência direta, troca, venda para o mercado local e externo de consumo, e mercado de peixes ornamentais);
g) Movimentação sazonal de pessoas em função da pesca (se mudam-se para determinados pontos ou vi las, se o tamanho da família varia conforme a espécie alvo do momento);
h) Rendimento e seletividade da pesca; i) Interação da pesca outras atividades econômicas
(proporção da renda por atividade, envolvimento proporcional da família por estação, gastos destinados à atividade para compra de material permanente como barcos e motores;
j) Apresentação de todos os resultados mês a mês e por estação hidrológica;
k) Mapeamento das áreas de pesca e dos pesqueiros existentes nas mesmas, por estação hidrológica e correlação com características ambientais associadas (e.g.; pesqueiro formado por pausada ou por matupá); como estes pesqueiros são acessados em cada estação hidrológica (modo de transporte e tempo de deslocamento);
l) Descrição da importância de cada espécie, segundo a perspectiva dos Juruna, para a sua cosmologia, dieta e modo de vida;
m) Análise de isótopos estáveis (unhas e cabelos) dos indivíduos a serem afetados (moradores das aldeias
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e vilas) previamente à exposição a qualquer t ipo de impacto.
n) Mapear a origem, proporção e valor de todo o alimento consumido pelas comunidades por estação do ano, mesmo aqueles de origem externa;
o) Desenvolvimento de cenários participativos para prever quantitativamente futuros impactos decorrentes da mineração associada a impactos como mudanças cl imáticas.
6) Qualquer monitoramento, desde aqueles a serem implementados previamente, devem ser feitos de modo participativo, com dados de acesso l ivre ao Juruna, os quais devem ter ainda a l iberdade de cedê-los a quem quiser;
7) Dados devem ser avaliados de forma participativa e auditados por pesquisadores independentes, sem qualquer t ipo de vínculo com Belo Sun ou suas empresas sub-contratadas. Os custos devem ficar a cargo do empreendedor, inclusive o de se criar um banco de dados de acesso l ivre;
8) Avaliação de todos os possíveis efeitos sinérgicos com Belo Monte sobre a fauna aquática.
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03 de junho de 2020
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Priscila Fabiana Macedo Lopes