quando a mae vira historia
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MARIA INES DIEUZEIDE SANTOS SOUZA
Quando a me vira histria...:
um estudo sobre os documentrios performticos
de Andrs Di Tella
Trabalho de Concluso de Curso apresentado ao
Departamento de Comunicao Social do Centro deArtes da Universidade Federal do Esprito Santo, comorequisito parcial para a obteno do ttulo de Bacharelem Comunicao Social, habilitao em Jornalismo.
Orientador: Prof. Dr. Alexandre Curtiss Alvarenga.
VITRIA
2009
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Agradecimentos
Ao professor Alexandre Curtiss, por ter desde o incio compartilhado reflexes, histrias e filmes.
Aos professores David Protti e Cleber Carminati, por terem aceitado participar da ltima etapa de um
percurso no qual eles sempre foram figuras fundamentais.
Ao GRAV e suas vrias geraes, pelos encontros, cinemas e ideais.
A Maurcio e Mercedes, Ana e Adriana, por serem a famlia sempre presente e divertida.
Ao Hugo, por ser companheiro de pensamentos, de caminhada, de projetos.
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Meu relato ser fiel realidade ou, em todo caso, minha
lembrana pessoal da realidade, o que a mesma coisa.
Jorge Luis Borges
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Resumo
Abordar o documentrio em uma pesquisa significa esbarrar com a dificuldade de delimitar essecampo, ou o seu conceito. Desde o incio, as concepes do que seria um filme documentrio sofreram
modificaes, e hoje nos deparamos com vrios modos de filmar que, apesar de diferentes, fazem
parte de uma mesma tradio, que j conquistou sua legitimidade. Assim, a proposta refletir sobre as
prticas do discurso documentrio, a partir da anlise de dois filmes do diretor argentino Andrs Di
Tella: La televisin y yo (2003) e Fotografias (2007). Segundo a tipologia de Bill Nichols, esses seriam
dois exemplos de documentrios performticos, filmes que tm como concepo criativa a afirmao
de uma perspectiva situada, concreta e pessoal de sujeitos especficos. O que nos interessa entender as estratgias usadas na construo desses filmes, onde a narrao da histria pessoal
busca tambm expor o processo de criao, para revelar histrias ou outras facetas das histrias
que s a apresentao dos resultados no revelaria. Eles colocam no limite as fronteiras do prprio
gnero, propondo outras formas de abordagem das questes desse mundo histrico compartilhado por
ns, questionando e propondo reflexes sobre o fazer documental.
Palavras-chave: Documentrio. Documentrio performtico. Subjetividade. Discurso.
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Sumrio
1 Introduo ........................................................................................................................................62 Sobre documentrios .......................................................................................................................9
2.1 Algumas caractersticas dos documentrios ................................................................................133 Sobre documentrios performticos...............................................................................................174 Sobre o documentarista e seus filmes ...........................................................................................25
4.1 Notas sobre La televisin y yo......................................................................................................294.2 Notas sobre Fotografias ...............................................................................................................43
5 Concluses .................................................................................................................................... 58Referncias ............................................................................................................................................. 62
Referncias audiovisuais .................................................................................................................... 64
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1 Introduo
Se sempre gostei do cinema, a no-fico em especial me chamava muito a ateno. A primeira vezque o documentrio se mostrou uma coisa intrigante, com possibilidades para alm do que comumente
associamos a ele contar uma histria real , foi ao assistirH2O, um filme de 1929 dirigido por Ralph
Steiner. H2O uma experimentao com colagem de imagens captadas na cidade que representam a
gua em suas mltiplas formas. Se aquilo era chamado de documentrio por algumas pessoas, ento o
que era o documentrio? Pouco tempo depois, comecei a conhecer os filmes em primeira pessoa, que
contavam histrias a partir de um ponto de vista muito especfico e marcadamente pessoal, e foi a que
comeou meu caminho nessa pesquisa.
Essa monografia teve incio em um projeto de Iniciao Cientfica, em 2007, e que foi retomado agora,
aps um estudo (tambm um projeto de Iniciao Cientfica) sobre o lugar da arte (e do cinema) na
sociedade contempornea. Esse estudo foi importante para pensar que esse outro modo de produo
documentria, mais recente, tem uma relao muito prxima com o mundo em que est inserido, os
sujeitos que habitam esse mundo e as formas de construo e apreenso das subjetividades.
O filme documentrio vem ganhando expresso e destaque nesses ltimos anos. Isso pode ser
constatado pelo espao que ele ocupa, em festivais especficos sobre o tema, como o Tudo Verdade,
que acontece simultaneamente em duas grandes capitais brasileiras (So Paulo e Rio de Janeiro),
alm de fazer uma itinerncia em outras capitais; em programas de televiso que estimulam a
produo, como o DocTV; na quantidade de produes inscritas em festivais de cinema e vdeo em
2008, por exemplo, participaram da competio do Vitria Cine Vdeo, um dos maiores festivais do
nosso estado, 28 produes documentais, ao lado de 37 fices; em 2007, foram 41 documentrios, e
35 fices.
Junto com o crescimento da produo, notamos tambm o desenvolvimento de outras prticas e
experimentaes nesse campo, e estudos que tentam acompanhar e refletir sobre o que feito. No
nosso caso, interessavam principalmente as obras que trabalhavam uma espcie de autobiografia, ou
uma auto-representao nas telas, usando o documentrio como espao de reflexo, mais que de
apresentao do mundo. Alm disso, eram obras que apareciam questionando o prprio meio em que
estavam inseridas, transgredindo alguns costumes j estabelecidos e apreendidos pelo pblico como
caractersticos da no-fico.
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A partir da comeamos a desenvolver o trabalho. Em primeiro lugar, pareceu-nos necessrio entender
melhor o terreno onde estvamos pisando, e nos aproximamos das tentativas de definio do conceito
de documentrio. No nos parece fcil, e nem desejvel, definir de maneira bem estruturada e fechada
as caractersticas do conceito, at porque as experimentaes do fazer esto sempre colocando no
limite as fronteiras do gnero. No entanto, no captulo Sobre documentrios tentamos estabelecer
algumas bases para a reflexo e anlise dos filmes, pensando no documentrio como um tipo de
discurso que foi conquistando sua legitimidade junto ao pblico, e que guarda suas especificidades.
Em seguida, comeamos a estudar os exemplos que nos interessavam, aqueles que faziam da auto-
representao sua concepo criativa e comunicativa. Para isso, nos baseamos na tipologia
desenvolvida por Bill Nichols (2007), que estabelece seis modos de documentrios. Dentro de sua
classificao, esses filmes que estvamos estudando seriam os documentrios performticos. No
captulo 03, Sobre documentrios performticos, nos aproximamos das caractersticas desse modo
de filmar, estabelecendo alguns dilogos com aspectos da sociedade contempornea e com os
espaos da subjetividade. A idia tentar perceber como esse outro modo documental se relaciona
com sua prpria tradio e com o mundo em que est inserido, propondo outras formas de produo
de conhecimento.
Paralelamente a essas leituras, comeamos a analisar os filmes La televisin y yo (2003) e Fotografias(2007), ambos do diretor argentino Andrs Di Tella. No captulo 4, Sobre o documentarista e seus
filmes, apresentamos o diretor, tentando tambm conhecer melhor o espao ao qual ele pertence, e
que se reflete em suas obras. Em seguida, partimos para as reflexes sobre os filmes. A escolha dos
mesmos se baseou em dois motivos: o primeiro foi que tivemos um acesso facilitado s obras desse
diretor, o que nos possibilitava perceber transformaes na sua linguagem, em seu modo de filmar;
alm disso, Di Tella se disponibilizou a conversas via internet, o que tambm ajudou nas reflexes. O
segundo foi um motivo mais pessoal, porque parte da histria da Argentina tambm faz parte da minhahistria, e me interessa tudo o que me ajude a conhecer melhor esse pas.
Foi nas anlises desses filmes que tentamos buscar as respostas para as questes que nos intrigavam.
Como transformar a histria pessoal em uma reflexo sobre o mundo ao qual pertencemos? Como,
com isso, questionar ou chamar a ateno para os limites da representao? Como estabelecer a
relao com o espectador, ainda baseada nas idias estabelecidas sobre o documentrio?
Numa poca em que o acesso aos produtos audiovisuais cada vez mais fcil, e os meios deproduo esto cada vez mais disponveis, parece importante conhecer e refletir sobre as
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possibilidades de fala que o cinema nos oferece, e as potencialidades da linguagem documental.
Pensamos no documentrio como um espao importante na constituio do imaginrio social, e que
permite diversas formas de expresso, que precisam ser pensadas e discutidas.
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2 Sobre documentrios
A histria da vida dos outros sempre me despertou curiosidade. Por um tempo, a leitura das biografias,autobiografias e dirios publicados era o que me despertava interesse. Depois comecei a gostar dos
documentrios, biografias filmadas, ilustradas e comentadas, e quando descobri os filmes em primeira
pessoa, que narravam a histria dos prprios diretores, resolvi que tinha mesmo que entender que tipo
de filme era esse, e como era possvel aquele modo de registrar alguma coisa um modo to ntimo e
pessoal, que passa longe de uma objetividade suposta por um espectador comum diante de um filme a
que chamam documentrio.
Em busca de conceitos que ajudassem a definir e esclarecer melhor o objeto investigado, nos
colocamos de acordo com Slvio Da-Rin (2004), que adverte que o nome documentrio recobre uma
enorme diversidade de filmes e modos de filmar, e as definies se do de acordo com a poca e os
interesses em jogo. Bill Nichols (1997), a partir de conceitos de Foucault, tambm diz que no h uma
essncia, ou definio esttica do documentrio, e que este objeto de estudo construdo e
reconstrudo por uma srie de participantes discursivos e comunidades interpretativas.
Assim, compartilhamos com os autores a impropriedade de estabelecer uma definio fechada sobre o
tema, mas tentaremos elencar algumas caractersticas do conceito. No nos interessa aqui concordar
com o pensamento de que todo filme um documentrio, como sugere Bill Nichols (2007, p. 26),
argumentando que at mesmo as fices, por mais extravagantes que sejam, evidenciam a cultura que
as produziu e reproduzem a aparncia das pessoas que fazem parte dela. Tambm no queremos cair
no argumento de que tudo fico, porque qualquer modalidade de cinema um discurso composto
de imagens e sons, e como discurso, sempre uma construo controlada por uma fonte produtora,
como diz Ismail Xavier (2005).
Se acreditamos que os filmes de no-fico guardam certas especificidades em relao a outros
gneros cinematogrficos, parece necessrio fazer um levantamento das mesmas, para tornar claro o
que chamamos aqui de documentrio. Na verdade, esse momento parece muito propcio para a
tentativa de explicitao do conceito, j que h quem diga que vivemos a era do ps-documentrio1.
Para que no nos percamos num ps-tudo, onde tudo pode, tentaremos demarcar esse territrio,
1 Essa uma das novas terminologias que vieram desdobrar a questo ontolgica de base - o que o documentrio? - elencadas porFrancisco Elinaldo Teixeira. As outras terminologias seriam antidocumentrio, contradocumentrio, paradocumentrio (TEIXEIRA, 2007,p. 40).
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ainda que com marcas bastante fluidas. Um territrio que se encontra em expanso, que tem suas
fronteiras ampliadas e que constantemente desbanca idias at ento estabelecidas sobre ele
(TEIXEIRA, 2007).
Com poucas palavras, poderamos dizer que os cineastas so freqentemente atrados pelos modos
de representao do documentrio quando querem nos envolver em questes diretamente
relacionadas com o mundo histrico que todos compartilhamos (NICHOLS, 2007, p. 20). Ou seja, os
documentrios querem dizer alguma coisa sobre um mundo que ns tambm conhecemos, e querem
nos envolver nessa questo. Os documentrios constroem narrativas estruturadas de modo a
estabelecer asseres sobre o mundo. De acordo com Ferno Ramos (2008, p. 116), a narrativa
documentria possui caractersticas particulares: a estrutura de signos que a sustenta como fato de
comunicao possui uma funo claramente assertiva (no sentido de que estabelece afirmaes ou
postulados sobre o mundo ou sobre o eu que enuncia).
Os modos de dizer as coisas que variam, e muito. Alguns documentaristas podem enfatizar a
originalidade ou a particularidade de sua prpria viso do mundo, e o que vemos na tela um mundo
que compartilhamos, mas que est marcadamente mediado pela percepo individual do diretor.
Outros enfatizam a suposta transparncia da imagem fotogrfica, valorizando a fidelidade ou a
autenticidade de seu modo de representao, e o que vemos o mundo que compartilhamos semquase nenhuma interferncia clara do diretor.
O que comumente acontece que confundimos esse modo transparente de fazer o documentrio
que o seu modo clssico com o prprio conceito, reduzindo assim suas possibilidades, tanto de
feitura quanto de recepo. Pensamos que importante evitar os termos verdade ou objetividade na
caracterizao dos filmes documentrios, e nos ater ao diferencial estilstico que os define enquanto
um tipo de discurso construdo. Por isso importante levar em considerao no o ps-documentrio,
mas o documentrio como um conceito em expanso, como nos fala Teixeira (2007).
Se estabelecemos que o campo do documentrio compartilha a necessidade, ou a vontade, de
estabelecer asseres sobre o mundo, ou construir argumentos sobre determinados assuntos, temos
que acrena bastante encorajada nesses filmes, j que eles freqentemente visam nos convencer de
que determinado ponto de vista aceitvel, ou mesmo prefervel a outros enfoques.
[...] A fico talvez se contente em suspender a incredulidade (aceitar o mundo do filme
como plausvel), mas a no-fico com freqncia quer instilar crena (aceitar o mundo dofilme como real). isso o que alinha o documentrio com a tradio retrica, na qual aeloqncia tem um propsito esttico e social (NICHOLS, 2007, p. 27).
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Para instilar essa crena, o uso das imagens captadas do real por meio de uma mquina, a cmera,
de grande importncia. As imagens fotogrficas e cinematogrficas, apesar de guardarem certas
diferenas, tm uma natureza comum: a marca, a impresso da luz que emana do ambiente gravada
automaticamente por processos fsico-qumicos no suporte. verdade que com o advento das
tecnologias digitais, a manipulao (ou mesmo a completa fabricao) dessas imagens tornou-se muito
mais fcil, mas partimos da hiptese de que esse vnculo entre as imagens fotogrficas, mesmo que
digitais ou de vdeo, e o objeto ou espao que elas captam e representam ainda pode ser
extremamente forte, mesmo que inteiramente fabricado, j que parte de um aprendizado cultural mais
antigo e enraizado.
Esse vnculo da imagem com o que ela representa, com o objeto a partir do qual ela surgiu, s
acontece, de acordo com Jean-Marie Schaeffer (1996), porque o espectador detm o conhecimento do
arch da fotografia. Segundo esse autor, a imagem fotogrfica um signo de recepo, ou melhor, ele
s funciona plenamente como um signo indicial um signo que est ligado ao objeto que denota por
ter sido realmente afetado por esse objeto na recepo. preciso que o espectador tenha um mnimo
conhecimento da gnese da fotografia para que ela adquira a funo de ndice. Esse conhecimento,
claro, no precisa ser um conhecimento cientfico, mas simplesmente uma associao da imagem
mquina, seu surgimento vinculado captao, pela cmera, dos objetos existentes naquele espao
dito real. esse conhecimento que faz com que a imagem fotogrfica demonstre um vnculo com o
mundo histrico compartilhado por ns, faz com que ela autentifique um discurso dizendo eu estava l,
eu vi.
Sabemos que essa crena depositada no documentrio principalmente um ato de confiana, uma
questo de f. A imagem fotogrfica contribui para essa sensao, porque ela de certa forma auto-
autentificadora. Mas essa auto-autentificao compatvel com identificaes e interpretaes diversas
e diferentes do impregnante original. Por isso a confiana do espectador no plenamente justificadaou sustentada pela imagem fotogrfica, apesar de ela trazer um peso maior ao argumento. Para o
cineasta, gerar confiana, levar-nos a afastar a dvida ou a incredulidade, pela transmisso de uma
impresso de realidade, e portanto de autenticidade, corresponde mais s prioridades da retrica(NICHOLS, 2007, p. 120).
A retrica tem a ver com o modo como o autor tenta transmitir seu ponto de vista ao espectador, de
maneira a convenc-lo de sua argumentao sobre o mundo. De acordo com Nichols (1997, p. 181-
182),
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La retrica aristotlica establece los modos en que cualquier argumento puede adquirir unabase persuasiva. Un modo de conseguirlo es a travs de las pruebas: material factualrecogido para apoyar la argumentacin (testigos, confesiones, documentos, objetos: aquellasrepresentaciones materiales extradas del mundo para que las oigamos y veamos). Otra esla prueba artstica, las estrategias persuasivas que el narrador o autor utiliza en beneficio
propio. Las pruebas en el documental suelen depender del nexo indicativo entre la imagenflmica y aquello que representa. Las pruebas artsticas, sin embargo, dependen de la calidadde construccin del texto, de la persuasin de sus representaciones o reivindicaciones deautenticidad.
Entre essas provas artsticas, entram as estratgias que se baseiam na tica, projetando o carter
moral e irrepreensvel de um narrador, por exemplo, que encarna a voz de uma razo objetiva e
imparcial, e pode apelar aos sentidos comuns de injustia ou barbrie. Encontramos tambm as
estratgias emocionais, que procuram jogar com a disposio emotiva dos espectadores, por meio da
relao entre imagens e temas, insero de msicas, por exemplo. Por fim, tambm se usam as
estratgias demonstrativas, os exemplos que nem sempre so mostrados por inteiro, mas usados de
maneira a dar peso argumentao.
Se, como afirmamos, a crena nos documentrios provm mais das habilidades retricas do
documentarista, reafirmamos a inadequao de uma idia de que os documentrios podem revelar
uma verdade universal sobre o mundo. Existe o pressuposto de que a imagem documental teria uma
autenticidade que a autorizaria a significar a prpria realidade, partindo daquela idia da objetividade
da cmera. Mas esse pressuposto foi construdo historicamente, e no estabelecido a partir daessncia da imagem-cmera (BALTAR, 2004, p.152). O filme tenta, com as imagens captadas pela
mquina, trazer um aspecto de realidade ao discurso, mas ele no a prpria realidade, uma
representao dela.
Quem me propuser uma imagem do real s poder propor-me um recorte seu, sua prpriasntese, em virtude do sentido com que investimos toda apreenso visual do real. Todavia, aevidncia da transparncia e da neutralidade do ver se mantm: tenho portanto aimpresso de estar vendo, como se estivesse l! [...] (ARONDEL-ROHAUT, 2005, p. 40).
Realmente vemos o que vemos, mas isso no significa que o que vemos a verdade. Pensando no
modo clssico de fazer documentrio, aquele que tenta fazer com que vejamos o mundo da forma mais
fiel ou transparente possvel, a crena na verdade da narrativa instilada porque associamos as
imagens que vemos com o nosso prprio conhecimento do mundo, e h uma correspondncia entre
nosso olhar e a interpretao da realidade que nos proposta. O carter de verdade, que pensamos
estar atribuindo realidade, atribudo afirmao sobre a realidade, afirmao que reflete um
determinado ponto de vista, uma face da histria. No h como revelar a verdade, mas se conta uma
das verdades possveis. Assim, a relao entre o documentrio e a realidade no se trata,necessariamente, de uma relao baseada na transparncia a imagem como um extrato verdadeiro
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do real. Essa relao se constri a partir da materialidade da narrativa, que gera um efeito de sentido,
ou seja, a sensao de que o filme um retrato da realidade construda atravs de um modo de
narrar que traz o efeito de transparncia.
Quer dizer, o filme documentrio mostra determinados aspectos do mundo, com interferncias mais ou
menos visveis e explcitas. Os fatos no falam por si, so levados a falar por mecanismos de
representao e argumentao, fazendo parte de uma prtica discursiva:
A funo discursiva o terreno em que a referncia, a designao, a significao, o uso emsituao, o falante em contexto, os atos de fala, cada um deles TOMA EFEITO. Foucaultanalisa uma espcie de lugar epistmico em que todos esses fatores atuam e se distribuem,que o lugar das prticas discursivas, lugar mais da histria das lutas e embates, do que daestrutura e das regras lingusticas (ARAJO, 2004, p. 244).
preciso ento, na reflexo sobre o documentrio, levar em considerao que importa menos
estabelecer as regras do fazer documental do que pensar as necessidades e os embates que se
travam dentro desse tipo de discurso sobre as coisas do mundo. A impresso de que as imagens,
assim como as palavras, tm um sentido nico e apreensvel para qualquer sujeito, mas esses sentidos
so construdos e negociados historicamente, a partir das relaes entre sujeitos e mundos, e ainda em
relao com outros discursos que so re-elaborados e re-significados (BALTAR, 2004). importante
localizar o sujeito do discurso, o lugar de onde esse sujeito fala, as relaes estabelecidas entre os
diversos elementos da prtica discursiva.
O discurso , pois, uma PRTICA que obedece a determinadas regras, relativas a essamesma prtica e no impostas de fora por alguma conscincia transcendental. [...] A anlisedo discurso no pretende saber o que so as coisas em si mesmas, ela no busca essnciasou verdades ltimas, e sim fazer uma (no a) histria dos objetos discursivos (ARAJO,2004, p. 222).
por isso que discutir se a afirmao feita pelo filme verdadeira ou no uma questo infrutfera nos
estudos sobre documentrio. O que interessa como essa afirmao foi feita, como as idias so
sugeridas, como o discurso foi construdo, como o diretor se relaciona com esse mundo histrico
compartilhado. O fato de a realidade ter sido manipulada, ou de no concordamos com o ponto de vista
mostrado, no faz com que o filme deixe de ser um documentrio.
2.1 Algumas caractersticas dos documentrios
E o que faz com que um filme seja caracterizado como documentrio? Alguns elementos so bastante
comuns nesse tipo de filme, embora no sejam exclusivos do mesmo. Em primeiro lugar, como j
dissemos, o uso das imagens captadas do real e abertas aos seus imprevistos, aos seus acasos. Ainda
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no campo das imagens, muitas vezes temos os arquivos, imagens que representificam ou
rememoram o acontecimento passado. Depois temos a importncia da palavra falada: usa-se muito a
entrevista, os depoimentos de pessoas que no so atores, e que esto diretamente envolvidas com o
assunto tratado. Alm dos depoimentos, comum principalmente nos documentrios clssicos uma
narrao que guia o espectador, que pode ser de algum que aparece na tela, ou pode ser feita em
voz over, uma voz de Deus, que no mostra o rosto. Mas nem sempre todas essas caractersticas
esto presentes no filme, e s vezes elas esto presentes em filmes de fico. A oposio entre fico
e documentrio problemtica para tentar definir o campo, j que existem trocas intensas entre eles.
Assim, Bill Nichols (1997, 2007) prope que se aborde o documentrio a partir de quatro ngulos, que
ajudam a defini-lo melhor: a estrutura institucional, a comunidade dos profissionais, o corpus dos textos
e o conjunto dos espectadores. O interessante que todos esses so fatores extra-flmicos.
J so conhecidas algumas instituies que produzem documentrios, como alguns canais de televiso
ou algumas escolas, por exemplo. O fato de a instituio produtora rotular o material como
documentrio j faz dele um documentrio. O contexto d o sinal, e no podemos ignor-lo; a estrutura
institucional determina, ou convenciona, modos de construir o filme, que o identificam. J esperamos
certas caractersticas de um documentrio feito pelo Discovery Channel, por exemplo.
Os documentaristas tambm estabelecem seus modos de pensar e de fazer filmes. Eles compartilham
o encargo de representar o mundo histrico, e no um mundo alternativo, inventado por eles. Com isso,
tambm nutrem expectativas e tm certas suposies acerca do que fazem, e so eles que, com
freqncia, trazem as mudanas s convenes institudas. De acordo com Ferno Ramos (2008, p.
27), a inteno do diretor que determina o filme como documentrio:
[...] A inteno documentria do autor/cineasta, ou da produo do filme, indexada atravsde mecanismos sociais diversos, direcionando a recepo. [...] Podemos dizer que a
definio de documentrio se sustenta sobre duas pernas, estilo e inteno, que esto emestreita interao ao serem lanadas para a fruio espectatorial, que as percebe comoprprias de um tipo narrativo que possui determinaes particulares: aquelas que socaractersticas, em todas as suas dimenses, do peso e da conseqncia que damos aosenunciados que chamamos asseres.
Os filmes que compem a tradio do documentrio so uma outra maneira de definir o gnero.
Pensamos que [...]o que mantm agregado um campo to plural o fato de que seus membros
compartilham determinadas referncias, ou seja, gravitam em torno de uma mesma tradio (DA-RIN,
2004, p. 19). Essa tradio no tem a ver com a preservao de uma essncia do documentrio, mas
o lugar onde se preservam, isso sim, os jogos de relaes que a produziram enquanto unidade
(BALTAR, 2004, p. 154). Ela est enraizada nas diferentes formas com que os diretores articularam as
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imagens tomadas do real e aprenderam a construir argumentos sobre o mundo, de maneira diversa da
fico, descobrindo a capacidade que esses filmes tm de nos transmitir uma impresso de
autenticidade.
As caractersticas como o uso das entrevistas, a narrao em voz over, os no-atores, fazem parte de
uma tradio que foi se estabelecendo e se transformando. Outra conveno a predominncia de
uma lgica informativa, que sustenta um argumento ou uma informao sobre o mundo histrico. Por
causa disso ele tem outra maneira de organizar o material flmico: sua montagem, por exemplo, no
precisa ser a montagem em continuidade, que preza para que o espectador receba os fatos
representados de tal modo que eles paream evoluir por si mesmos, consistentemente. Ela uma
montagem de evidncia, que est preocupada em demonstrar as ligaes entre os personagens, os
espaos, os acontecimentos da histria. A continuidade como usada na fico no to importante
porque as situaes retratadas no documentrio esto relacionadas entre si em virtude de suas
ligaes histricas, e isso que a montagem com freqncia procura demonstrar. mais importante
organizar os planos de maneira a dar a impresso de um argumento nico, convincente, sustentado
por uma lgica (NICHOLS, 2007). Os saltos no espao ou no tempo so tolerveis, desde que haja
continuidade no desenvolvimento do argumento.
Ainda sobre a montagem, nem sempre possvel ou desejvel estabelecer um roteiro prvio ao filmedocumentrio, que determine planos, ngulos ou movimentos de cmera, ou mesmo que determine
quantos e quem sero os personagens retratados, ou qual ser o final da histria. A cmera (e o
diretor) supostamente est vulnervel aos acasos do mundo, s novidades que podem acontecer no
decorrer da filmagem, e que do novos rumos ao tema tratado. s vezes o argumento pode ser
destrudo e reconstrudo durante o processo. na montagem que o documentarista pode ou no
demonstrar os percalos, as mudanas de rumo, os imprevistos. principalmente na montagem que o
diretor exerce o controle sobre o material flmico e articula os significados.
Esses textos que compem a tradio documentria compartilham certas nfases que nos permitem
identific-los como parte de um mesmo gnero, mas tambm formam um conjunto que agrega vrios
movimentos, perodos e modos diferentes de encarar o desafio de representar o mundo histrico. Suas
caractersticas podem, muitas vezes, ser compartilhadas por filmes de fico, mas o campo
permanece, de uma forma ou de outra, distinto para constituir um domnio prprio.
Por fim, e muito importante, temos que falar do conjunto dos espectadores. Toda narrativa feita paraalgum, e s se efetiva no momento da recepo. Na maioria das vezes, o espectador j sabe de
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antemo que est assistindo um documentrio, porque os filmes j chegam rotulados, ou j se conhece
a instituio produtora ou a trajetria do diretor, e isso altera ou determina a relao que se estabelece
entre espectador e filme.
De acordo com Nichols (2007, p. 64), a sensao de que um filme um documentrio est tanto na
mente do espectador quanto no contexto ou na estrutura do filme. O espectador j tem determinadas
expectativas em relao ao filme, ou est predisposto a aceitar aquela histria como originria do
nosso mundo histrico compartilhado, e no concebida e produzida exclusivamente para o filme. Ao
mesmo tempo, como os documentrios no so simplesmente reprodues da realidade, espera-se
tanto poder acreditar no vnculo indexador entre a imagem e o que ocorreu diante da cmera, quanto
perceber uma transformao desse vnculo em um comentrio ou um ponto de vista acerca do mundo.
A partir dessa idia de que os documentrios transformam as imagens do mundo em pontos de vista
especficos, Nichols (1997, p. 188) defende que esses filmes tm uma voz prpria:
La tcnica, el estilo y la retrica componen la voz del documental: son un medio a travs delque una argumentacin se representa a s misma ante nosotros [...]. La voz de undocumental expresa una representacin del mundo, una perspectiva y un comentario sobreel mundo. La argumentacin presentada a travs del estilo y la retrica, la perspectiva y elcomentario, a su vez, ocupa una posicin dentro del ruedo de la ideologa. Es unaproposicin acerca de cmo es el mundo qu existe dentro de l, cul es nuestra relacin
con estas cosas, qu alternativas puede haber que pide nuestro consentimiento.
A voz a forma como o diretor traduz seu ponto de vista sobre o mundo em termos visuais, e tambm
seu envolvimento com esse mundo. Reconhecer que essa voz fala de maneira distinta, prpria,
fundamental para reconhecer um filme como documentrio. O que importa nas anlises ou nos estudos
sobre documentrio perceber de onde vem essa voz, como se constri essa viso singular do mundo.
Com base nessas reflexes acerca do documentrio, parece ser possvel pens-lo como um modo de
narrativa audiovisual que j conquistou sua legitimidade, j estabeleceu as condies sociais de
aceitao e de reconhecimento de um domnio prprio. Prprio, mas no homogneo: os modos de
narrar so extremamente variveis. E nem isolado: importante ter em mente os cruzamentos, os
dilogos com outras formas audiovisuais, e sua constante transformao.
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3 Sobre documentrios performticos
Depois desses esclarecimentos acerca do documentrio como um todo, podemos nos aproximar maisdo que nos interessa: os documentrios em primeira pessoa.
Nos ltimos anos, tem aumentado o nmero de tericos que pensam a no-fico e propem
interpretaes ou sistematizaes para os diferentes procedimentos documentais. Bill Nichols (2007)
prope, a partir de algumas caractersticas predominantes, uma diviso de seis modos, ou tipos, de
documentrios: potico, expositivo, observativo, participativo, reflexivo e performtico. Esses modos
dizem respeito, principalmente, s formas de aproximao com o sujeito e com o mundo construdas
pelo filme, e relao que se estabelece entre o documentarista e as imagens. Essa diviso proposta
por ele foi a que escolhemos nessa pesquisa, tanto pela facilidade do acesso (j que existem poucas
publicaes sobre a teoria do documentrio no Brasil), quanto porque ela a que mais se aproxima do
objeto investigado. Mas importante ter em mente que esses modos no representam estruturas
fechadas: comum que caractersticas de mais de um tipo se misturem em uma mesma obra, mas
pensamos em uma organizao dominante, correspondente a um dado modo. Isso ajuda, como
recurso didtico, a estabelecer um lugar para os filmes analisados, e dar incio s reflexes.
No nos estenderemos aqui explicando o que caracterizaria, para Nichols, cada modo documental. O
que nos interessa entender so obras em que a forte tradio objetivista do documentrio clssico se
quebra no s no modo de fazer (como no documentrio reflexivo, que expe os problemas da
representao e da construo documental), mas no personagem documentado. O olhar no se volta
para o outro, mas para si mesmo. O diretor conta uma histria que pode ser universal, mas a partir de
um exemplo extremamente particular: sua prpria histria. Dentro da classificao de Nichols, eles
seriam os documentrios performticos2:
O que esses filmes compartilham um desvio da nfase que o documentrio d representao realista do mundo histrico para licenas poticas, estruturas narrativasmenos convencionais e formas de representao mais subjetivas. [...] A caractersticareferencial do documentrio, que atesta sua funo de janela aberta para o mundo, d lugara uma caracterstica expressiva, que afirma a perspectiva extremamente situada, concreta enitidamente pessoal de sujeitos especficos, incluindo o cineasta (NICHOLS, 2007, p. 170).
2 O uso do termo performtico criticado por alguns estudos, j que Nichols usa o conceito, mas no faz nenhuma referncia teoria daperformance, consolidada no campo dos Estudos da Performance. De acordo com Salis (2007), todos os tipos de documentrios seriamperformticos, considerando-se a dimenso da performatividade da linguagem.
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Esse modo de falar na primeira pessoa aproxima o documentrio dos dirios ou ensaios. A nfase
no mais tanto na tentativa de convencimento do pblico, mas nas possibilidades de expresso da
representao de opinies sobre problemas do mundo, a partir de uma viso bastante singular. E o que
faz com que esses filmes continuem sendo documentrios principalmente que essa expressividade
continua ligada s representaes sobre o mundo social e histrico, dirigidas ao espectador (NICHOLS,
2007). No entanto, esses documentrios no tentam representar um objeto para alm de si mesmos,
eles do prioridade dimenso afetiva existente entre o diretor e o discurso construdo.
O documentrio performtico surge num momento em que o lugar do conhecimento posto em
questo: [...] simplificando ao extremo, considera-se ps-moderna a incredulidade em relao aos
metarrelatos (LYOTARD, 1986, p. XVI). Ou seja, as explicaes totalizantes dificilmente so aceitas, e
o que se prope so outras formas de aproximao com os temas investigados.
Fredric Jameson (2004) estabelece o ps-modernismo como um novo estgio da cultura, seguindo o
esquema tripartite dos estgios do capitalismo definidos por Ernest Mandel: se o capitalismo passou
pela etapa do mercado, pelo estgio do monoplio ou do imperialismo, e atualmente chamado de
ps-industrial (e que poderia ser mais bem designado como o do capital multinacional), a cultura
passou pelo realismo, pelo modernismo e se depara agora com o ps-modernismo. Esse atual estgio
do capitalismo pode constituir a mais pura forma de capital que j existiu, j que atinge reas at entofora do mercado: tanto a natureza quanto o inconsciente foram colonizados, penetrados pelo capital
um exemplo disso a ascenso das mdias e da indstria da propaganda.
Esse capitalismo multinacional toma forma, em grande medida, nas redes de comunicao e
transmisso de informaes, e do consumo de imagens que disso deriva. Estamos fazendo parte de
um sistema que j no mais espacializvel, territorializado. Renato Ortiz chama a ateno para a
constituio de uma cultura internacional-popular, realizvel por meio de uma memria construda e
compartilhada mundialmente, reproduzida e reafirmada pelas imagens e produtos audiovisuais:
Eles denotam e conotam um movimento mais amplo no qual uma tica especfica, valores,conceitos de espao e de tempo so partilhados por um conjunto de pessoas imersas namodernidade-mundo. Nesse sentido a mdia e as corporaes (sobretudo transnacionais)tm um papel que supera a dimenso exclusivamente econmica. Elas se configuram eminstncias de socializao de uma determinada cultura, desempenhando as mesmas funespedaggicas que a escola possua no processo de construo nacional. [...] A solidariedadesolitria do consumo pode assim integrar o imaginrio coletivo mundial, ordenando osindivduos e os modos de vida de acordo com uma nova pertinncia social (ORTIZ, 1998, p.144-145).
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Um dos processos mais significativos da construo dessa sociedade de consumo o processo de
reificao dos objetos, o apagamento dos traos da produo. Com isso, perde-se de vista a
constituio da sociedade como sociedade de classes. Perde-se de vista inclusive nossa posio na
sociedade.
O que mais surpreendente, e talvez um perigo mais imediato do ponto de vista poltico, que esses novos modelos representacionais tambm encerram e excluem qualquerrepresentao do que costumava ser representado ainda que imperfeitamente como aclasse dominante. Faltam vrias das caractersticas que so necessrias para essarepresentao, como j vimos: a dissoluo de qualquer concepo de produo, ou deinfra-estrutura econmica, e sua substituio por uma noo j antropomrfica de umainstituio significam que nenhuma concepo funcional de um grupo dominante, muitomenos uma classe, pode ser pensada. No h alavancas para eles controlarem, nem muitacoisa parecida com produo para que gerenciem (JAMESON, 2004, p. 349).
ento a partir de experincias individuais que esse formato documental se constri. Mas
interessante notar que grande parte dos temas tratados por eles giram em torno da tentativa de
compreenso de seu lugar no mundo, e da busca por uma identidade menos esttica e cada vez mais
definida pelas relaes sociais. O documentrio performtico complexifica o conhecimento, enfatizando
sua dimenso histrica e afetiva. Esse tipo de filme tenta aproximar o pessoal do poltico, construindo
sentidos para suas experincias e gerando reflexes que ecoam no espectador, universalizando
histrias particulares. O documentarista ento se expe, construindo significados a partir das situaes
em que ele se envolve, refletindo sobre o mundo por meio de suas prprias questes singulares epessoais.
Para Nichols, o documentrio performtico seria justamente a forma de articulao entre o pblico e o
privado na produo de sentido. Seria uma alternativa s exposies espetaculares e uma maneira de
se contrapor s subjetividades formatadas dos reality shows, j que, de acordo com Kehl e Bucci
(2004, p. 52-53),
[...] o que o espetculo produz uma verso hipersubjetiva da vida social, na qual asrelaes de poder e dominao so todas atravessadas pelo afeto, pelas identificaes, porpreferncias pessoais e simpatias. E quanto mais o indivduo, convocado a responder comoconsumidor e espectador, perde o norte de suas produes subjetivas singulares, mais aindstria lhe devolve uma subjetividade reificada, produzida em srie, espetacularizada. Estasubjetividade industrializada ele consome avidamente, de modo a preencher o vazio da vidainterior da qual ele abriu mo por fora da paixo de segurana, que a paixo depertencer massa, identificar-se com ela nos termos propostos pelo espetculo. Por a seexplica o interesse do pblico que assiste aos reality shows dos anos 2000 na tentativa deflagrar alguma expresso espontnea da subjetividade alheia, sem se dar conta de que osparticipantes desse tipo de espetculo esto to formatados pela televiso, todesacostumados da subjetividade quanto o telespectador.
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Ainda de acordo com Jameson (2006, p. 122),
a retrica do ps-modernismo inclui um certo programa populista [...] e repudia muitoespecificamente o velho mito dos gnios ou demiurgos do modernismo clssico, com seus
papis elitistas visionrios ou profticos e seus gestos de Mestre em volta do qual se reneum pequeno grupo de vanguarda.
Poderamos falar na morte de um sujeito centrado, portador de uma identidade pessoal, e at do fim
da noo de um estilo pessoal do artista, especialmente dos que trabalham com artes mais abertas
reproduo tecnolgica. O que teramos seria, para Jameson, uma nova forma de anonimato,
entendido como o que o ps-estruturalismo concebe como o sujeito descentrado, [...] uma situao
que nos libera da autoridade do antigo tipo sujeito centrado/propriedade privada e institui um novo
espao coletivo entre sujeitos nomeados e seres humanos individuais (JAMESON, 2006, p. 121).
Como j falamos, o mercado contemporneo de bens simblicos prioriza as narrativas de experincias
pessoais, espetacularizando a vida privada. Mas possvel criar formas de expresso a partir de uma
viso crtica da auto-representao, e explorando suas potencialidades. Se pensarmos no conceito de
subjetividade que trabalhado por Deleuze (1992) e Guattari (2005) podemos ver a representao do
sujeito nesses filmes no como a representao de um indivduo nico, mas de um indivduo
atravessado por subjetividades sociais, fabricadas, que dizem respeito a todos ns. O sujeito no
nico, mas constitudo por uma multiplicidade de eus que se transformam, que se compemprovisoriamente de vrias possibilidades.
A noo de subjetividade, pensada a partir dessa perspectiva, questiona a oposio entre sujeito e
objeto. No faria sentido, nesse caso, pensar em uma interioridade prpria ao indivduo, uma espcie
de essncia, constituda independentemente do contexto social. A interioridade no est separada da
exterioridade. Guattari nos diz que
O sujeito, segundo toda uma tradio da filosofia e das cincias humanas, algo queencontramos como um tre-l, algo do domnio de uma suposta natureza humana.Proponho, ao contrrio, a idia de uma subjetividade de natureza industrial, maqunica, ouseja, essencialmente fabricada, modelada, recebida, consumida (GUATTARI; ROLNIK, 2005,p. 33).
Dessa forma, podemos pensar ento no indivduo enquanto um terminal, que consome as
subjetividades, os sistemas de representao, de sensibilidade. A subjetividade est em circulao nos
diversos agrupamentos sociais, e assumida e vivida por indivduos em suas existncias particulares
(GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 42).
Mas essa subjetividade pode ser consumida de maneiras distintas. possvel que o indivduo a
incorpore tal como a recebe, alienada e opressivamente incorporando, por exemplo, os sentimentos
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auto-sustentados de que fala Jameson (2004) ou que ele crie uma relao de expresso e de
criao a partir do recebido, se apropriando dos componentes da subjetividade.
Assim, a subjetivao como processo diz respeito a individuaes. Os processos de subjetivao soprodues de modos de existncia que permitem ultrapassar o saber e resistir ao poder. De acordo
com Deleuze (1992), foi Foucault quem comeou a pensar esses processos dessa maneira,
descolados do indivduo, como regras ticas e estticas que constituem modos de existncia, que
possibilitam estilos de vida como obras de arte. Os processos de subjetivao so extremamente
variados, de acordo com a poca, e so mais variveis porque [...] o poder no pra de recuper-los e
de submet-los s relaes de fora, a menos que renasam inventando novos modos,
indefinidamente (DELEUZE, 1992, p. 123).
Desse modo, podemos pensar nos universos artsticos como espaos privilegiados para o surgimento
de relaes de foras inditas, que ganham corpo e sentido materializadas nas obras. Essas obras
musicais, visuais, cinematogrficas, literrias, de todo tipo constituem novas formas de entendimento
do ambiente, re-moldado por novos processos de subjetivao. E ficam disposio do coletivo que
compe esse ambiente, atuando como guias que ajudam a desvendar as relaes de fora, que
ajudam a singularizar as subjetividades (ROLNIK, 2006). O artista aqui includo o cineasta, o
documentarista seria o terminal que capta e re-conforma subjetividades, produzindo obras que, porsua vez, criam ou orientam novos modos de existncia.
difcil, ento, excluir a subjetividade de qualquer tipo de criao ou de processo de conhecimento
incluindo aqui o filme documentrio, por mais objetivo que ele possa parecer, ou que a tradio
documentarista possa dar a entender. No fim, a objetividade a tentativa de objetivao da
subjetividade, e por isso os traos da subjetividade esto presentes em qualquer obra, artstica ou
cientfica. A subjetividade o que fala nas obras. No entanto, nos documentrios em primeira pessoa
ela pode aparecer com mais fora, ou com mais liberdade. Nesses filmes, o documentarista se permite
mostrar na sua multiplicidade, na sua tentativa de conhecimento do mundo, nas suas limitaes.
O documentrio em primeira pessoa tenta ser mais que a simples exposio do corpo, ou da sua
histria. a tentativa de criao de algo que escapa pessoalidade, ao individual, a documentao
de um processo de transformao, de questionamento de modelos dados, certos, naturalizados.
Por outro lado, essa transformao est materializada em algum que no conhecemos, mas que se
mostra a ns de maneira bastante intensa. Esses documentrios ganham, assim, uma fora afetiva e
um poder de comoo muito caractersticos. Em vez da aura de veracidade, como querem os
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documentrios clssicos, temos a exposio sincera de uma viso parcial e freqentemente
apaixonada. Os filmes autobiogrficos tm como fio condutor a memria e, como a memria, no so
lineares, mas tm um funcionamento e uma temporalidade prprios.
[...] o espao biogrfico constitudo por discursos complexos e paradoxais, no apenasdicotmicos, que tm como potencialidade a mobilizao sensvel e intelectual de seusreceptores, interpelados por um sujeito que expe seus prprios limites e a impossibilidadede alcanar uma definio absoluta e verdadeira de si mesmo e do mundo (ROITMAN, 2007,p. 18).
Por isso, no h nos documentrios performticos alguma palavra de ordem claramente delineada, e
sim uma tentativa de estimular a sensibilidade do espectador. Acabamos nos envolvendo em sua
representao do mundo histrico de maneira indireta, intermediados pela carga afetiva que o cineasta
coloca no filme. Consuelo Lins (2004) pensa inclusive que esse pode ser um novo tipo de cinemapoltico, que extrai dos sofrimentos particulares o que deve ser compartilhado para a formao de uma
memria comum, mas sem se ater a uma mensagem que precisa ser transmitida, ou de representar um
sujeito iluminado que vai guiar os espectadores alienados.
Esteticamente, o documentrio em primeira pessoa se aproxima das formas de um cinema
experimental, mas enfatiza menos essa independncia formal, ressaltando uma dimenso expressiva
ainda calcada nas representaes do mundo histrico, em busca de outros significados. Na construo
do discurso, esse documentrio segue a tradio das autobiografias e dos ensaios, num cruzamento de
experincias literrias e audiovisuais que valorizam os limites e as incertezas, os processos de
construo.
Se o ensaio , como afirma Adorno, uma forma literria que se revolta contra a obra maior eresiste idia de obra-prima que implica acabamento e totalidade, podemos pensar que contra a maneira clssica de se fazer documentrio que os filmes ensasticos se constituem.So filmes em que essa forma surge como mquina de pensamento, meio de uma reflexosobre a imagem e o cinema, que imprime rupturas, resgata continuidades, traduzexperincias (LINS, 2008, p. 140).
Nessa troca, criam-se estratgias para transpor a narrativa textual ao filme, como cartazes ou letreiros,
divises em captulos, mas principalmente o uso da narrao emoff, em primeira pessoa. Uma voz que
se ope voz overclssica dos documentrios expositivos, a tradicional voz de autoridade.
A liberdade para a divagao e reflexo que se nota na narrao tambm se v nas imagens. O grande
trunfo a montagem, que se permite articular imagens e sons de diferentes fontes, colocando lado a
lado registros de televiso e arquivo pessoal, filmes de famlia e cine-jornais, mesclando diferentes
suportes (digital e pelcula), animao e encenao. Muitas vezes, o ponto de partida das histriasdocumentadas nesses filmes uma inquietao marcadamente pessoal, que leva o cineasta a
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percorrer um caminho que no sabe onde vai dar, e que implica descobertas ntimas e reflexes
histricas.
Esse percurso que o cineasta desenvolve em frente cmera e para a cmera necessita de umcolocar-se em cena, e construir-se enquanto personagem. O diretor precisa encarnar um personagem
que seja catalisador da experincia registrada e que proporcione o material necessrio ao filme. Esse
colocar-se em cena tambm pressupe um risco: o risco do fracasso, de no alcanar o objetivo, de
perder o jogo criado por ele mesmo. Surge a uma relao um pouco ambgua, j que ao mesmo tempo
em que o diretor se mostra em cena, inclusive com suas fraquezas e seus problemas, ele tambm
deixa claro que tem conscincia de que aquilo tudo uma construo:
[...] como toda arte biogrfica, uma arte que expe a pessoa, mas que, na mesma medidaem que expe a pessoa, a mascara. Nada como a arte biogrfica para a pessoa no serevelar, enquanto os leitores (ou os espectadores) acreditam que ela se revela (BERNADET,2005, p. 149).
Nesse sentido, o documentrio em primeira pessoa aproxima-se dos filmes de fico:
Essas pessoas-personagens obedecem a uma construo dramtica. Os personagens tmobjetivos, os personagens enfrentam obstculos (que eles superam ou no superam),alcanam seus objetivos ou no, exatamente como nos filmes de fico, e tudo issoorganizado numa narrativa (BERNADET, 2005, p. 149).
A complexidade dessa relao diretor-personagem aparece de diferentes maneiras no documentrio
performtico. Em Um passaporte hngaro (Brasil, 2002), por exemplo, Sandra Kogut, a diretora e
protagonista, algum que no aparece com seu corpo em praticamente nenhuma cena. No
conhecemos seu rosto, e tampouco h uma narrao em primeira pessoa que conduza a histria.
Conhecemos a personagem por meio das situaes que ela cria com as pessoas que ela encontra,
sempre atrs da cmera. J em Los rubios (Argentina, 2003), a diretora, Albertina Carri, coloca em
cena uma atriz que representa a protagonista (a prpria diretora), uma filha de intelectuais
desaparecidos na ditadura militar argentina. Mas Albertina Carri tambm entra em cena,desempenhando seu papel de diretora, que orienta a equipe, opera a cmera, dirige a atriz que
representa Carri-personagem. Cria-se a um jogo de duplicidades em que o espectador j no sabe de
quem a histria, qual o limite entre o documentrio e a fico, de quem a voz que fala no filme.
Alm da atriz, h tambm animaes com bonecos de Playmobil, que reconstroem a infncia, e
inseres de textos de diversos autores, inclusive de seu pai. Ou seja, a inscrio de si se d por meio
de uma pluralidade de vozes.
O que se tem no documentrio performtico a tentativa de representar essas subjetividades sociais,
ancoradas em sujeitos especficos, mas que podem ser estendidas a uma comunidade. So filmes que
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muitas vezes tratam da reconstruo de um passado e dos problemas da memria, mas que trazem a
possibilidade da reflexo sobre o presente. Como em toda prtica cinematogrfica, no existe uma
receita pronta, e alguns filmes sempre podem cair na seduo do exibicionismo, mas o uso da primeira
pessoa possibilitou o surgimento de obras interessantes e inovadoras, e so algumas dessas tentativas
que pretendemos analisar aqui.
A anlise dos filmes escolhidos se baseou em metodologias de anlise flmica, principalmente naquelas
desenvolvidas por Francis Vanoye e Anne Goliot-Lte (1994). Esses mtodos no so especficos para
documentrios, mas ajudaram na compreenso das estratgias narrativas usadas pelo diretor. Da
mesma forma, tambm serviram de apoio os conceitos bsicos de Aumont, Bergala, Marie e Vernet
(2007). Para a anlise, tivemos em conta todas as reflexes feitas at agora sobre as especificidades
do documentrio, em particular as caractersticas do modo performtico. Prestamos especial ateno
montagem, e em como ela constri a histria e os personagens. Mais que isso, como se constri o
personagem principal o prprio diretor e seu discurso.
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4 Sobre o documentarista e seus filmes
Os filmes escolhidos para anlise nesse trabalho foram La televisin y yo (2003) e Fotografias (2007),ambos documentrios argentinos, do mesmo diretor. A escolha se deu por um interesse pessoal j
que h uma dimenso familiar que me liga a esse pas e de alguma maneira aumenta a curiosidade por
suas produes e pela possibilidade (pelo acesso facilitado) de estudar obras de um mesmo autor,
obras seqenciais que permitem ver o desenrolar dos modos de produo e das escolhas narrativas.
Andrs Di Tella um documentarista argentino, e nos parece importante falar um pouco de sua vida.
Ele nasceu em 1958, e aos 7 anos de idade foi morar nos Estados Unidos, depois na Inglaterra, onde
seu pai dava aulas. Assim, passou outros sete anos de vida fora do pas. Ele filho de Torcuato Di
Tella, um socilogo pertencente a uma importante famlia industrial argentina e que, com esse dinheiro
da indstria do pai, fundou o Instituto Di Tella, um rgo de apoio e estmulo s artes. A me, Kamala,
era indiana e conheceu o marido em Londres, onde estudava. Ela aproximou-se do partido socialista na
ndia e depois da anti-psiquiatria em Londres. Os pais se separaram nos anos 70.
Foi nessa poca tambm que ele voltou para a Inglaterra, para estudar, e se formou em Modern
Languages and Literature na Universidade de Oxford. Firbas e Monteiro (2006), na introduo do livro
de entrevistas com o diretor, dizem que h nos documentrios de Di Tella um dilogo forte com a
literatura.
Essa segunda sada do pas coincidiu com os piores anos da ltima ditadura militar na Argentina, que
foi bastante violenta. Quando voltou, trabalhou como jornalista e fez seu primeiro documentrio em
1988, Desaparicin forzada de personas, realizado para a Anistia Internacional. Como o ttulo sugere, o
tema era sobre a ditadura militar. Depois fez documentrios para a televiso pblica americana e
inglesa.
Aqui vale pena fazer uma rpida aproximao de Andrs Di Tella com o seu contexto, a produo
cinematogrfica argentina. A tradio documentria no pas ganha consistncia e evidncia na dcada
de 1960, com o nuevo cine latinoamericano. Assim como no Brasil, onde o Cinema Novo radicaliza as
propostas de luta poltica e social, na Argentina tambm surgem novas produes que viam no cinema
um instrumento de transformao. O documentrio poltico toma um grande impulso, levado
principalmente por cineastas como Fernando Birri e Fernando Solanas, que se organizavam em grupos
e escolas de cinema. Todos tinham muito clara a luta ideolgica e estavam inclusive vinculados a
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partidos polticos. Em 1976, com o golpe militar, esse documentrio poltico completamente
interrompido, e os grupos so desarticulados.
A partir de 1983, com a redemocratizao do pas, comeam a ser produzidos muitos filmes que tmcomo tema principal a ditadura, sejam documentrios ou fices. De acordo com Ral Beceyro (2007),
essa temtica foi constante nos anos 80 e 90, e teve como modelo ou precursor o filme Tiempo de
revancha (1981), de Adolfo Aristarain, que foi realizado no final do regime militar. Ainda de acordo com
esse autor, em 1984 lanado um dos filmes que obteve mais xito entre os que tratam do tema, La
historia oficial, de Luis Puenzo. Outros filmes importantes dessa poca tambm so o documentrio
Juan, como si nada hubiera sucedido (1987), de Carlos Echeverra, sobre o nico desaparecido de
Bariloche, e Un muro de silencio (1993), de Lita Stantic, que mistura documentrio e fico em um
longa sobre uma famlia que sofreu a violncia da ditadura.
Em 1984 funda-se a Cine Ojo, produtora e distribuidora de cinema documental de criao, vinculada s
temticas sociais e direitos humanos. Os filmes produzidos a tambm realizam uma releitura dos anos
da ditadura militar:A los compaeros, la libertad (1987), o primeiro documentrio da Cine Ojo, trata da
liberao dos presos polticos durante o governo de Alfonsn (BERNINI, 2007). Em 2002, Marcelo
Cspedes e Carmen Guarini, os fundadores da produtora, realizamH.I.J.O.S El alma en dos, sobre os
filhos de desaparecidos.
De acordo com Gustavo Aprea (2007, p. 92),
Basndose en el relato de historias individuales, los films que se refieren a la dictadurapresentan tanto a los personajes como a los espectadores una realidad monstruosa que, enprincipio, permanece oculta para el conjunto de la sociedad. La contraposicin entre elmundo cotidiano y un universo oculto al que se accede a travs de los avatares de un dramapersonal conforma un esquema detectable en una significativa cantidad de films.
Esses filmes se inscrevem em diferentes tipos e gneros, e esse modo de representao da ditadura e
seus efeitos se encontra inclusive em filmes que no se centram especificamente no assunto, como em
La deuda interna (Miguel Pereira, 1988) ou Roma (Adolfo Aristarain, 2004).
Participando dessa onda, Andrs Di Tella dirige Montoneros, una historia (1995). um documentrio
sobre o movimento de luta armada que se formou na Argentina alguns anos antes do incio da ditadura,
e foi duramente combatido durante o perodo militar. O filme se aproxima desse movimento a partir da
histria de uma das militantes, que tem seu depoimento intercalado com entrevistas de outros
dirigentes e companheiros do grupo. Esse cruzamento de entrevistas se d no s na montagem, mastambm em alguns encontros proporcionados pelas filmagens. Montoneros, una histria ento
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construdo com os depoimentos dos participantes e com imagens de arquivo da represso,
principalmente. Como o prprio nome j diz, ele no se pretende uma verdade definitiva sobre o tema,
mas uma histria possvel, que se conta por meio da histria particular de Ana. No h nenhuma
narrao emoff, nenhuma voz de autoridade. Tambm o diretor se faz muito pouco presente, apenas
escutamos alguma interveno em poucos momentos. Mas interessante notar que Ana, a
personagem principal, a nica que no apresentada por nome e sobrenome. Ela apenas Ana, o
que de certa maneira demonstra uma tentativa de despersonaliz-la um pouco, generalizando a
histria. A histria de Ana pode ser a histria das vrias militantes montoneras que participaram dessa
luta.
Seu filme seguinte Prohibido (1997), que apresenta o resultado de uma pesquisa sobre o que
aconteceu com a cultura argentina tambm na poca da ditadura. E o diretor teve uma enorme
dificuldade de conseguir depoimentos dos jornalistas, intelectuais ou artistas que de alguma maneira
colaboraram com o regime militar:
De qualquer modo, em Prohibido quase ningum quis mostrar a cara. [...] Enfim, asperipcias e tribulaes da investigao e das tentativas frustradas de conseguirdepoimentos que no obtive, tudo isso talvez tivesse sido mais interessante como relato doque simplesmente oferecer como fiz os magros resultados que consegui, por maisvaliosos que fossem. Todo documentrio sobre o passado nos fala, acima de tudo, do
presente. Contar meus problemas para fazer o filme o meu fracasso tambm teria sidorevelador do porqu, tantos anos depois, a sociedade argentina resiste a prestar contas doque realmente aconteceu nesses anos. Mas s pensei nessa possibilidade depois de terterminado o filme (DI TELLA, 2005, p. 72).
Assim, Prohibido tambm um documentrio que de certa maneira esconde o diretor, apesar de
nascer de suas inquietaes. E o ponto de partida para ele comear a lutar contra o que ele chama
de limites do gnero: cada dia me frustram mais as limitaes que ns documentaristas impomos a
ns mesmos na hora de expressar nossas preocupaes atravs da palavra e das histrias dos outros
(DI TELLA, 2005, p. 71). A partir da, ele opta por uma mudana esttica e narrativa nos seus
documentrios.
tambm na dcada de 1990 que a poltica neoliberal ganha maior fora, com o governo de Carlos
Menem. Em dezembro de 2001, estoura uma das maiores crises econmicas que o pas j enfrentou,
reflexo das decises e corrupes polticas. Essa crise, de certa maneira, fez ressurgir uma unio
popular e foi o estopim para a realizao de uma srie de documentrios produzidos no calor do
momento, por grupos operrios, estudantes e sindicatos. Por um lado essas produes do
continuidade quela tradio do documentrio poltico dos anos 60, mas por outro existem muitasdiferenas: o cine piquetero, como chamado, muito mais urgente e presente.
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La diferencia con la tradicin militante es que la justicia apuntaba siempre al futuro, a unfuturo de liberacin social y del fin de la opresin. Los documentales polticos actualesdemuestran haber perdido, porque nuestro presente ya no parece tenerla, esa dimensinque antes los fundamentaba (BERNINI, 2007, p. 34).
Tambm no h nesses filmes muita preocupao formal ou esttica, e a maior motivao talvez seja acontra-informao, a auto-representao contra a imagem promovida pelos meios de comunicao,
principalmente a televiso. Os meios de comunicao de massa acabaram transformando a poltica em
entretenimento, ocultando informaes importantes sobre a real situao econmica e social do pas.
Em seu documentrio seguinte, La televisin y yo (2003), Di Tella estabelece uma crtica velada
televiso nacional. Os documentrios, ento, seriam meios de informao alternativos.
A passagem dos anos 1990 para os 2000 tambm viu ganhar expresso os filhos e filhas de
desaparecidos e sobreviventes da represso militar. Hoje muitos deles so cineastas, videoastas ou
artistas, e em seus trabalhos reclamam a perda dos pais, e tentam reconstruir essa histria e sua
prpria relao com ela, principalmente por meio dos documentrios, un formato maleable para reunir
especificidad histrica y subjetividad en operaciones donde anan duelo, memoria y autobiografia
(AMADO, 2006, p.16).
Esses documentrios procuram colocar em questo aqueles mesmos limites do gnero, buscando na
matria audiovisual suportes para construir a prpria identidade e a memria de seus realizadores. E,no momento em que essas experincias individuais (e quase sempre traumticas) se tornam pblicas,
acabam se tornando parte da memria coletiva do pas. Esses filmes
[...] tratan de dar forma a un pasado que apenas se recuerda pero que resulta vital para darsentido al mundo , sin caer en esa verdad sin aristas del documento de archivo.Documentales posmodernos y algunos declaradamente performativos, muchos de ellosentroncan con el cine de militancia de decadas anteriores pero lo superan mediante lainclusin, en su estructura, de estrategias fictivas y homodiegticas que, por un lado, aportanal gnero cinematogrfico al que pertenecen un valor esttico que tradicionalmente le ha sidonegado y, por otro, socavan o, al menos, tratan de poner en entredicho los pilares en
apariencia impolutos del discurso oficial de la posdictadura (ESTEVE, 2007, p. 71-72).
Andrs Di Tella pertence a uma gerao intermediria, mais velha que essa dos filhos dos
desaparecidos, mas mais jovem que a dos militantes da ditadura. Ainda assim mantm um contato
muito prximo com essa nova onda de documentaristas. Ele mesmo diz, em uma entrevista3, que
[...] Los rubios de Albertina Carri fue producida por Cine Ojo, la misma productora con quienyo trabajo, aunque despus Albertina se separ de ellos. Por la misma poca en que yoestaba terminando La televisin y yo, Sergio Wolf y Lorena Muoz estaban trabajando en supelcula Yo no s qu me han hecho tus ojos, tambin en Cine Ojo. Tambin Alejandra
3 Conversa por e-mail com o documentarista, em fevereiro de 2009.
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Almirn, que fue la editora de todas estas pelculas, estaba haciendo su propio film, Eltiempo y la sangre. O sea que hubo bastante dilogo entre nosotros y, ciertamente,conciencia de lo que estaban haciendo los dems. Creo que todos van a coincidir que fui elprimero en recorrer el camino de la primera persona y lo autobiogrfico en el cine argentinoy que eso signific vencer ciertos prejuicios y romper con una tradicin argentina del pudor.
Partiremos agora para a anlise dos dois filmes de Andrs Di Tella, La televisin y yo (2003) e
Fotografias (2007). So dois documentrios que renem algumas das caractersticas que Bill Nichols
define para o modo performtico, e, a partir do estudado at aqui, queremos analisar a construo dos
filmes, tentando entender como uma experincia pessoal se torna documentao de um processo de
transformao e reflexo sobre o prprio fazer documentrio.
4.1 Notas sobre La televisin y yo
Quera hacer una pelcula sobre la televisin, todo lo que significa la televisin en la vida deuna persona. Pero me sali otra cosa. Lo que qued son como notas en una libreta, apuntessobre la televisin. Mejor dicho: la televisin y yo (DI TELLA, no filme La televisin y yo,2003)
Na primeira cena de La televisin y yo (2003), duas pessoas reviram uma caixa cheia de coisas velhas,
recortes de jornais, fotos. J temos a pista do que vai ser o filme: o registro de uma busca da memria,
do passado. Em seguida, comea a narrao, em primeira pessoa, e ela j revela um fracasso: o filme
no o que deveria ter sido. Isso corroborado pelos crditos, que apresentam um projeto, e no um
filme, ou um documentrio de Andrs Di Tella definies muito mais carregadas de certeza,
finalizadas. Este um documentrio que comea com um fracasso, e vai se transformando em uma
reflexo ou um ensaio sobre a histria de um pas, de imprios, de desmoronamentos, sobre a
histria do prprio diretor, que se confunde com a histria da Argentina.
Ainda na abertura, os elementos principais da construo flmica j so mostrados: a inscrio do
diretor nos planos, o material de arquivo que no s inserido na montagem, mas tambmremexido, descoberto, visto pelos personagens , o uso constante de filmes e programas de TV
antigos, os planos construdos, dramatizados planos em que o diretor aparece em meio a antigos
aparelhos, entre coisas velhas; so planos sem fala, s vezes acompanhados de alguma msica,
outras em silncio, que so como respiros ou pontuaes, mas que tambm refletem essa tentativa de
aproximao com o passado (figura 1). A voz que narra traz a sensao da confisso, pelo que conta,
mas tem sempre um tom muito uniforme, contido, que no deixa transparecer sentimentos, mantendo
uma espcie de neutralidade. As sensaes so criadas pela ligao da narrao com os outroselementos, visuais e sonoros. O uso de msica bem presente, mas tambm se usa muito o prprio
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som das imagens antigas, aproveitando-as na criao de sentido do documentrio. A primeira cena j
vem acompanhada dessa msica (original, que se repete com diferentes arranjos no curso da histria)
e ela d o tom do filme: bem melanclica, nostlgica, mas tem um toque de ironia que d uma leveza
tambm, tira a sisudez do filme.
Figura 1 Fotograma da seqncia de abertura do filme La televisin y yo. Destaque para a insero do diretor no quadro,
descobrindo fotos antigas.
A narrao, num formato de ensaio, faz uma ligao entre o documentrio e a literatura. Essa
aproximao tambm se d um pouco na forma: o filme todo estruturado em captulos, que vo
tomando rumos inesperados, costurando histrias que aparentemente no teriam ligao, e que talvez
merecessem cada uma um filme prprio. E a narrao que vai guiando, trazendo as descobertas, os
caminhos tortos, a imprevisibilidade, os acasos que aparecem ou que parecem aparecer para
mudar a direo do filme, e servem como ganchos para que o diretor trace reflexes sobre o prprio
fazer documentrio.
Depois dessa seqncia de abertura, comea o primeiro captulo, Mi primer recuerdo, que o mais
curto, com exceo da abertura e do eplogo. O objetivo de falar sobre a televiso se revela um
pretexto para reconstituir ou conhecer os sete anos de produo televisiva argentina que Di Tella
perdeu quando era criana e foi morar no exterior com a famlia. A sua histria j est ligada histriapoltica do pas: o golpe militar dado pelo General Ongana impede a ida escola naquele dia, mas vai
muito alm. O pai do diretor, que era professor universitrio, decide deixar o pas. Grande parte da
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memria coletiva de sua gerao ele no tem, porque no assistiu aos programas que todo mundo na
Argentina viu. Alis, essa importncia da televiso na infncia aparece j na abertura, na primeira
imagem de arquivo inserida: uma cena de um garoto vendo TV e lanchando, e um problema na
transmisso corta o que visto bem na melhor parte.
Nesse primeiro captulo, o diretor usa dois tipos de imagens de arquivo: ele insere um arquivo pessoal
filmes caseiros, fotos da infncia no exterior alm das imagens de antigos programas que ele
perdeu. Mas alguma coisa ele pde compartilhar: a chegada do homem lua uma lembrana que o
aproxima de sua gerao, mas serve tambm para mostrar como cada um estabelece suas prprias
relaes com as imagens, que adquirem diferentes interpretaes de acordo com quem as v. Alis,
aqui ele insere tomadas de um encontro com os amigos, onde a televiso sempre est ligada, e as
falas distanciam e aproximam os personagens. O depoimento de um deles serve quase como uma
justificativa para se falar da televiso, enfatizando o espao que ela ocupa na vida cotidiana.
As imagens de arquivo entram, quase sempre, acompanhadas de algum elemento que as revele como
coisa viva, que adquire sentido quando manipulada, representificada. Assim, as imagens da televiso
que ele viu quando era pequeno aparecem enquadradas pelo aparelho, como se estivessem sendo
revistas naquele momento. As fotos de famlia so mostradas entre as mos de algum que as v, e o
filme caseiro acompanhado pelo rudo do projetor, o que tambm atualiza as imagens.
Tambm aqui j se revela a dimenso de construo do documentrio: se o depoimento do amigo
gravado de acordo com um padro clssico e tradicional do gnero cmera fixa, enquadramento que
mostra um primeiro plano de quem fala e esconde o entrevistador , as imagens da reunio deles so
quase que completamente tomadas por meio de uma cmera na mo, que se movimenta entre os
presentes e ainda mostra, s vezes, que existe outra cmera no local, num trip. No se tenta
esconder os dispositivos de filmagem, ao contrrio, eles so muitas vezes ressaltados, assim como os
dispositivos de projeo.
Falando sobre o espao que a televiso ocupa na vida de uma pessoa, passamos ao segundo captulo,
Hijos de la televisin. Todos os captulos so inseridos com um plano preto, onde entra o ttulo. Mas
as quebras no so secas, porque a trilha de udio garante a continuidade ou com a narrao ou
com msica, s vezes com rudos que se antecipam imagem seguinte.
Esse captulo comea com a apresentao de Mex Urtizberea, um personagem que faz programas
infantis e tem tudo aquilo que Di Tella no tem: muitas lembranas do incio da televiso, matria prima
para sua prpria produo. Ele filho da televiso no s porque pertence a essa primeira gerao que
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nasceu com a televiso ligada, mas porque seu pai participou da construo dessa histria. E ele
aparece principalmente para fazer a ligao com a relao do prprio Andrs e seu pai, relao que foi
apenas insinuada no captulo anterior. Na rpida passagem de Mex, o diretor reafirma esse seu
problema com a falta de lembranas, mais ainda quando, na montagem, ele insere a continuao do
depoimento do seu amigo, dizendo que tudo aquilo que se v na TV fica de alguma forma incrustado
na sua cabea, faz parte de voc. Na narrao, Andrs diz que es como si me faltara parte de mi
identidad. Como si no fuera de todo argentino, como si no perteneciera a mi generacin. S a entra
uma conversa sobre lembranas da televiso com o pai indiretamente, o culpado por essa perda de
identidade , e ele se mostra indiferente ao assunto, diz que nunca deu muita importncia televiso.
Est estabelecido o contraponto narrativo, o vilo da histria. Mas tambm as imagens de antigos
filmes revelam essa dupla percepo da TV: em uma cena, inserida logo depois do depoimento doamigo do diretor, vemos um senhor completamente hipnotizado por um canal; em outra cena, que entra
depois da conversa com o pai, o personagem diz que olha para a televiso, mas no a v, aproveita
para viajar em seus prprios pensamentos.
Comea aqui a investigao sobre o passado da televiso, que contado de maneira tradicional: os
depoimentos so aqueles clssicos, que entrevistam pessoas que fizeram parte daquele momento.
Usam-se imagens de arquivo das primeiras apresentaes. Mas no meio disso, insere-se de novo a
histria pessoal, e a narrao que est longe de pretender uma objetividade, mas que vai revelando os
obstculos do projeto. O primeiro fracasso: o arquivo das primeiras transmisses se perdeu, no h
nenhum registro material a no ser o que ficou na cabea dos primeiros espectadores.
Mas o que de fato interessa justamente isso: essa outra vida da televiso, o que aconteceu por trs.
Se no existem gravaes dos primeiros programas, existem arquivos que revelam o imaginrio que
rondava a televiso antes mesmo de que ela fosse vista na Argentina. Os primeiros registros disso
aparecem em revistas de divulgao cientfica, ao lado de reportagens sobre, por exemplo, a vidaextraterrestre. Interessante notar que vrios dos filmes que foram inseridos at aqui pareciam de fico
cientfica as linhas psicodlicas que hipnotizam, o rob em forma de mulher, a trilha sonora
caracterstica desses filmes o que ressalta esse seu carter meio mgico, criador de outros mundos.
O terceiro captulo, Una herencia, insere a histria de Jaime Yankelevich e termina de estabelecer
esse paralelo entre a televiso e a vida privada. Esses dois (o segundo e o terceiro) so captulos mais
longos, que vo definindo o rumo do documentrio.
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Para introduzir a histria de Yankelevich, Andrs Di Tella faz uso de um acaso: a fotgrafa do seu
casamento apresentou-lhe um namorado, Sebastian, que vem a ser bisneto de Yankelevich, esse que
foi o Chateaubriand argentino, o homem que construiu o imprio das comunicaes no pas. O diretor
faz questo de ressaltar os acasos e coincidncias que surgiram no processo de realizao do
documentrio, talvez justamente para ressaltar essa caracterstica do filme como um material aberto
para o mundo, sujeito s interferncias. Alm disso, pode ser que as inseres da histria pessoal
sejam elementos narrativos mesmo, um modo de contar a histria que garanta continuidades e que
acrescente elementos dramticos, despertando interesse no espectador, que continua acompanhando
a narrao.
Assim, a histria de Yankelevich vai aparecendo em uma conversa entre Di Tella e Sebastian, no
antigo escritrio do bisav, hoje um apartamento enorme e vazio. E nela vai-se insinuando algum
mistrio, que o diretor acentua na narrao como a existncia de uma histria oculta que ningum quer
contar mais uma estratgia para manter a ateno, criar um clima de suspense e intrigas no filme. Ao
mesmo tempo, eles contam que o imprio construdo por Yankelevich se perdeu, j no sobra nada.
o incio de um segundo fracasso na histria, e ao mesmo tempo a caracterizao de Sebastian como o
excludo, o que ficou de fora da histria da famlia.
contando o desenrolar do processo documental que o diretor vai deixando explcitas suas estratgiasnarrativas: na narrao, ele fala que las historias siempre se arman con cosas que no se pueden
contar y con coincidencias". Isso dito sobre um plano preto as coisas que no se podem mostrar
tambm, as imagens que no do conta de tudo, a criao de suspenses.
A coincidncia foi achar, junto com o primeiro manual de televiso da Argentina, numa feira de
antiguidades, velhas pranchas de aes da empresa do seu av, SIAM Di Tella e agora que se
comea a revelar que a histria do diretor tem muito mais relao com o que ele est investigando. Ele
mesmo traa esse paralelo entre Yankelevich e Torcuato Di Tella, seu av, entre Sebastian e ele
mesmo. Sebastian de certa forma o espelho do prprio diretor: ambos so herdeiros de um castelo
que desmoronou antes que eles pudessem conhec-lo, ambos esto por descobrir a histria de suas
famlias. E essas histrias pessoais acabam dizendo muito sobre um sonho que no deu certo, sobre
um pas que se esforou para se tornar uma potncia industrializada.
Mas essa ida feira de San Telmo foi realmente como se mostra? A cmera acompanhava o diretor o
tempo todo? A impresso que o diretor foi construindo planos que parecem documentais, e ao
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mesmo tempo essa construo meio explcita, ressaltando artifcios do cinema, que no diminuem a
crena nesse relato.
Enquanto o diretor conta a histria da sua famlia, as imagens de arquivo so usadas de maneira bemilustrativa mesmo, mas em contraponto com as imagens atuais, ele e seu pai nos galpes
abandonados. Outro imprio que desmoronou. Os aparelhos antigos so como o espelho dessas
runas, mas essas metforas so explicitadas na narrao. Ela como uma reflexo que vai explicando
os rumos e decises da montagem, a prpria construo do documentrio.
Mais uma vez, o pai aparece como o personagem do contra, e sua fala de certa maneira ridiculariza o
diretor, ao ironizar sua juventude e sua pretenso. Talvez essa fosse a inteno de Andrs, colocar
em dvida sua prpria produo. Ao mesmo tempo, ele se defende sutilmente, questionando a
objetividade do trabalho do pai enquanto bigrafo, por exemplo. Isso no feito diretamente, como
uma resposta rpida, mas no curso do filme, no discurso que vai sendo construdo sobre as lendas de
famlia, a reconstruo da histria.
Aqui, mais uma vez, h a insero de um filme familiar, tambm com o rudo do projetor, como
presentificando o ato de ver. O arquivo pessoal aparece principalmente como o disparador de reflexes
que aparecem na narrao, e acrescentam pausas na histria: como transmitir significados com
imagens que s tem sentido para ele? Depois disso, um plano preto d incio fala sobre todos os
fracassos desse projeto e acentua o carter de ensaio e experimentao. Os planos de Andrs com
seu filho o fazem aparecer meio bobo, como o ridculo da histria ele aparece tentando convencer o
filho a pedir para ver televiso, mas Rocco permanece indiferente a ele. Isso para transmitir essa
sensao de autor de um projeto fracassado, mais uma vez questionar seu trabalho.
Para terminar esse captulo dos fracassos, Andrs entrevista a filha de Jaime Yankelevich, na tentativa
de descobrir o tal segredo que Sebastian mencionou, e o depoimento cortado no momento em queela fala que pode contar muitas histrias, mas no vai contar nada, porque so coisas muito pessoais.
De novo, o problema de tornar pblico aquilo que ntimo, o que de certa forma coloca em questo a
alternativa escolhida pelo diretor de falar sobre sua prpria histria.
O quarto captulo, Imperio del ter, aparece ento como a apresentao de uma histria oficial de
Yankelevich, na tentativa do diretor de ter alguma coisa para contar. Essa histria aparece por meio
dos depoimentos tradicionais. Alis, durante todo o filme, os depoimentos se alternam entre essas duas
formas: as pessoas mais distantes so entrevistadas nesse modelo clssico, onde a cmera e o diretor
tentam desaparecer. Mas so entrecortados por intervenes pessoais, por outros depoimentos que se
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do em forma de conversa, onde a presena do diretor bem marcada e a cmera tambm faz parte
do momento, se faz visvel. Alm disso, as pessoas entrevistadas nunca so apresentadas
diretamente, no h crditos ou legendas, vamos desconfiando aos poucos de quem so e que papel
ocupam na histria (do documentrio e do pas).
Aqui, mais uma vez, as imagens de arquivo so bem ilustrativas, tentando relacionar a narrao com
outros elementos da poca. Mas no incio do captulo as imagens so apresentadas como uma
projeo de slides (impresso causada principalmente por causa do rudo do projetor), como se o
prprio diretor estivesse olhando-as naquele momento, na tentativa de reconstruir ou se aproximar
daquele personagem.
nesse momento que aparece tambm a primeira citao a Evita. No h nenhuma explicao de
quem ela foi, o que ressalta essa caracterstica do documentrio como um ensaio, e no como algo
educativo, explicativo. Parece que, mais importante que contar a grande histria do pas, a inteno
contar essas pequenas histrias, ou conexes entre histrias.
Para continuar caracterizando Yankelevich, apresenta-se brevemente Susini, o diretor artstico da
televiso, que aparece como seu contraponto. Susini era o clssico, erudito, que queria educar o
telespectador. Yankelevich aparece como o homem de negcios, que quer popularizar sua
programao. Esse contraponto aparece inclusive na trilha sonora: Yankelevich acompanhado de um
tango, enquanto Susini tem como trilha uma msica clssica. a velha polmica entre entretenimento
e educao, que define a histria da televiso Susini rapidamente despedido de seu cargo.
A se insere um filme antigo, que Andrs apresenta como uma stira ao prprio Yankelevich. O trecho
escolhido mostra um diretor de rdio meio louco, megalomanaco. Mas no incio dessa narrao ele
fala de Yankelevich como o verdadeiro artista incompreendido. Ironia?
Depois de contada essa histria de Yankelevich, o diretor novamente se volta para sua vida. Aqui
inserida a continuao daquela gravao em que Andrs tenta convencer seu filho a ver televiso, e
nessa cena Rocco pede, tranqilamente, para ver TV. Com o plano mais aberto, vemos que o pai dele
tambm est presente, e dorme, indiferente ao aparelho, enquanto Rocco tenta acompanhar o
programa. O momento seria bem ntimo, mas a cmera bem perceptvel, h algum filmando. De
alguma forma ela faz parte daquele momento, mas tambm uma presena incmoda. O pai, quando
acorda, fica constrangido em estar sendo filmado. A insero dessa cena poderia ser apenas o registro
de um momento cotidiano, mas a relao dela com aquele primeiro plano a tentativa frustrada de
Andrs dirigir o filho denuncia a construo do filme.
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Depois, vemos um programa atual, ou a imagem de um programa atual, gravada via aparelho de
televiso. Na tela, uma piada meio machista. Depois da piada, a narrao diz que, apesar de
Yankelevich j no estar, foi com ele que a televiso descobriu seu caminho. O tom de crtica, e entra
como encerramento daquela polmica da popularizao da programao.
Depois de uma tentativa de conversa telefnica os bastidores da produo documental, aqui
mostrados como mais um fracasso comea o quinto captulo, Dos personajes de una historia. A
narrao fala um pouco sobre o av, um personagem que Andrs no conheceu. Ao mesmo tempo em
que construiu seu imprio industrial, e ficou muito rico, tinha idias socialistas, e tentou transmitir isso
aos filhos. A idia mostrar como os personagens so complexos, e nada s o que parece. Cobrindo
a narrao, uma viagem de carro de Andrs com o pai, no se sabe para onde, no se diz nada. Mas a
cmera continua fazendo parte desses momentos, mesmo quando os dois no conversam. Talvez se
tente retratar uma relao, ou tentativas de aproximao.
Como j diz o nome do captulo, aqui se comea a costurar melhor a histria desses industriais com a
histria poltica do pas. Ou se conta outra histria possvel para os personagens, outro olhar sobre os
fatos. O incio da decadncia desses imprios da indstria coincide com a chegada de Pern ao poder,
uma etapa importante da poltica argentina. E quando comea a falar