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A presente edição segue a grafia do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. [email protected] www.marcador.pt facebook.com/marcadoreditora © 2015, Direitos reservados para Marcador Editora uma empresa Editorial Presença Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730-132 Barcarena © 2000 Dick Lehr e Gerard O’Neill Publicado originalmente nos Estados Unidos da América por PublicAffairs™, uma chancela de Perseus Books Group, 2000. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer forma sem permissão por escrito. Título original: Black Mass Título: Jogo Sujo Autores: Dick Lehr e Gerard O’Neill Tradução: Francisco Silva Pereira Revisão: Silvina de Sousa Paginação: Maria João Gomes Imagens no interior: Cedidas pela Perseus Books LCC. Direitos Reservados. Arranjo de capa: Marina Costa / Marcador Editora Impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. ISBN: 978-989-754-181-0 Depósito legal: 397 183/15 1.ª edição: setembro de 2015

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Page 1: Queluz de Baixo Perseus Books Group, 2000. Título: Jogo ... · na terra dos nossos antepassados.» Uma vez que estas histórias também fa-ziam parte do passado de Whitey, nós os

A presente edição segue a grafia do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

[email protected]/marcadoreditora

© 2015, Direitos reservados para Marcador Editorauma empresa Editorial PresençaEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730-132 Barcarena

© 2000 Dick Lehr e Gerard O’NeillPublicado originalmente nos Estados Unidos da América por PublicAffairs™, uma chancela de Perseus Books Group, 2000.Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer forma sem permissão por escrito.

Título original: Black MassTítulo: Jogo SujoAutores: Dick Lehr e Gerard O’NeillTradução: Francisco Silva PereiraRevisão: Silvina de SousaPaginação: Maria João GomesImagens no interior: Cedidas pela Perseus Books LCC. Direitos Reservados.Arranjo de capa: Marina Costa / Marcador EditoraImpressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.

ISBN: 978-989-754-181-0 Depósito legal: 397 183/15

1.ª edição: setembro de 2015

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ÍNDICE

Elenco ................................................................................................. 11Prólogo ................................................................................................ 15Introdução .......................................................................................... 17Introdução à edição de bolso .......................................................... 23Mapa: O mundo de Whitey ............................................................. 25

PRIMEIRA PARTE

1975 ..................................................................................................... 29 South Boston ................................................................................... 42 Jogo duro .......................................................................................... 57 Manobras de evasão ........................................................................ 65 Apostas no hipódromo .................................................................... 77

SEGUNDA PARTE

Gangue de dois? ............................................................................... 95Traição ............................................................................................. 114Assassino de Prince Street .......................................................... 124Boa comida, bom vinho, dinheiro sujo ....................................... 134homicídio, Lda. ............................................................................... 150Bulgertown, EUA .......................................................................... 165O mito Bulger ................................................................................ 186Missa negra ..................................................................................... 206Coisas de Whitey ........................................................................... 216O discurso de Connolly .............................................................. 226Segredos revelados ...................................................................... 239

umdoistrês

quatrocinco

seisseteoitonovedezonzedozetreze

catorzequinze

dezasseis

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TERCEIRA PARTE

Fred Wyshack ................................................................................. 255heller’s Café .................................................................................. 266Perdido por cem, perdido por mil ............................................... 279A festa acabou ................................................................................ 292

Epílogo .............................................................................................. 317Fontes ................................................................................................ 335Notas ................................................................................................. 341Agradecimentos ............................................................................... 376

dezassetedezoito

dezanovevinte

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ElENCo

O GANGUE DE BULGER

James J. «Whitey» BulgerStephen J. «The Rifleman» FlemmiNick Femia, capangaKevin Weeks, capanga e «filho adotivo» de BulgerKevin O’Neil, associadoPatrick Nee, associadoJoseph Yerardi, associadoGeorge Kaufman, associado

O GANGUE ORIGINAL DE WINTER HILL

inclui os membros do gangue de Bulger e:howard Winter, chefeJohn Martorano, assassino a soldoWilliam Barnoski, associadoJames Sims, associadoJoseph McDonald, associadoAnthony Ciulla, manipulador de corridas de cavalosBrian halloran, associado

MÁFIA EM BOSTON

Gennaro J. «Jerry» Angiulo, subchefeIlario «Larry» Zannino, capo de regime e consigliereDonato «Danny» Angiulo, capo de regime

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Francesco «Frankie» Angiulo, associadoMikey Angiulo, associadoJ. R. Russo, capo de regimeVincent «The Animal» Ferrara, capo de regimeBobby Carrozza, capo de regimeFrank «Cadillac Frank» Salemme, amigo de infância de Flemmi e chefe da Máfia na década de 1990

FEDERAL BUREAU OF INVESTIGATION, DELEGAÇÃO DE BOSTON

h. Paul Rico, brigada do crime organizadoDennis Condon, brigada do crime organizadoJohn J. Connolly Jr., agente de contacto de Bulger e de FlemmiJohn Morris, supervisor da brigada do crime organizadoLawrence Sarhatt, agente especial responsável (SAC) início da década de 1980James Greenleaf, agente especial responsável (SAC) meados da década de 1980James Ahearn, agente especial responsável (SAC) final da década de 1980Robert Fitzpatrick, agente especial responsável assistente (ASAC)James Ring, agente especial responsável assistente (ASAC)Nicholas Gianturco, brigada do crime organizadoTom Daly, brigada do crime organizadoMike Buckley, brigada do crime organizadoEdward Quinn, brigada do crime organizadoJack Cloherty, brigada do crime organizadoJohn Newton, agente especialRoderick Kennedy, agente especial

AUTORIDADES FEDERAIS, ESTADUAIS E LOCAIS

Robert Long, Polícia Estadual do MassachusettsRick Fraelick, Polícia Estadual do MassachusettsJack O’Malley, Polícia Estadual do MassachusettsCoronel John O’Donovan, comandante da Polícia Estadual do MassachusettsThomas Foley, Polícia Estadual do MassachusettsJoe Saccardo, Polícia Estadual do MassachusettsThomas Duffy, Polícia Estadual do MassachusettsRichard Bergeron, detetive da Polícia de QuincyAl Reilly, Drug Enforcement Administration (DEA)

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JOGO SUJO

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Stephen Boeri, Drug Enforcement Administration (DEA)Daniel Doherty, Drug Enforcement Administration (DEA)Jeremiah T. O’Sullivan, procurador federal, Departamento de JustiçaFred Wyshak, procurador federal, Departamento de JustiçaBrian Kelly, procurador federal, Departamento de JustiçaJames herbert, procurador federal, Departamento de Justiça

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Prólogo

Num dia de verão de 1948, um rapaz tímido de calções chamado John Connolly entrava com alguns amigos numa loja de esquina. Os rapazes

estavam interessados nos rebuçados daquele estabelecimento situado nos li-mites do bairro de habitação social de Old harbor, em South Boston, onde todos viviam.

– Aquele é o Whitey Bulger – sussurrou um deles.O lendário Whitey Bulger: magro, tenso, e com ar de poucos amigos,

com uma cabeleira loira pálida que levara os polícias a chamar-lhe Whitey, ainda que ele detestasse a alcunha e preferisse o seu nome verdadeiro, Jimmy. Era o adolescente durão que andava com o gangue dos Shamrocks.

Bulger apanhou os rapazes a olhar para ele e, num impulso, ofereceu gelados a todos. Ansiosos, dois deles escolheram os sabores que queriam. Mas o pequeno John Connolly hesitou, recordando as instruções da mãe – não aceitar nada de desconhecidos. Quando Bulger lhe perguntou porque não queria nada, os outros riram-se ao ouvir a regra da mãe do rapaz. Então, Bulger, assumiu o controlo:

– Ouve lá, rapaz, não sou nenhum estranho. – Bulger ofereceu-lhe uma breve mas crucial lição sobre história e descendência: os antepassados de ambos eram irlandeses. Dificilmente poderiam ser considerados estranhos. Whitey perguntou de novo: – Que queres?

Em voz baixa, Connolly respondeu: – Baunilha. – Satisfeito, Bulger levantou o rapaz até ao balcão para lhe

dar um cone.Foi a primeira vez que John encontrou Whitey. Muitos anos depois, diria

que a emoção de conhecer Bulger por acaso naquele dia tinha sido «como conhecer Ted Williams».

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INtroDução

Na primavera de 1988, propusemo-nos escrever para o Boston Globe a his-tória de dois irmãos, Jim «Whitey» Bulger e Billy, o mais novo. Numa

cidade com uma história tão longa e rica como Boston, cheia de todo o gé-nero de figuras históricas, os Bulger eram lendas vivas. Ambos dominavam a cena. Whitey, com cinquenta e oito anos, era o gângster mais poderoso da cidade e um assassino afamado. Billy Bulger, com cinquenta e quatro, era o político mais poderoso do Massachusetts, o presidente com a carreira mais longa nos duzentos e oito anos do Senado Estadual. Ambos eram famosos por serem astuciosos e implacáveis, traços partilhados que se faziam sentir nos respetivos mundos.

Na sua essência, tratava-se de uma saga bostoniana, a história de dois irmãos que tinham crescido num projeto social do mais isolado dos bairros irlandeses, South Boston – «Southie», como era mais conhecido. Whitey, o rebelde primogénito, era presença frequente no tribunal e rara no liceu. ha-via rixas de rua e perseguições de automóvel, tudo isto com uma espécie de aura hollywoodesca. Na década de 1940, conduzira um carro pelos carris do elétrico e atravessara a antiga estação de Broadway sob o olhar chocado dos passageiros que se encontravam nos cais apinhados. Com um boné na cabeça e uma loira sentada ao lado, acenara e buzinara à assistência. Depois, desaparecera. O irmão Billy seguira a direção oposta. Estudara: história, os clássicos e, por fim, a lei. Entrara na política.

Ambos tinham sido notícia, mas a história da sua vida nunca fora reunida. Como tal, naquela primavera, nós e mais dois jornalistas do Globe decidimos mudar a situação. Christine Chinlund, cujos interesses passavam pela política, concentrou-se em Billy Bulger. Kevin Cullen, o melhor jornalista policial da cidade naquela altura, investigou Whitey. Nós dois íamos alternando, Lehr

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trabalhou essencialmente com Cullen e O’Neill supervisionou o conjunto. Ainda que costumássemos fazer trabalho de investigação, este projeto era encarado como um estudo biográfico aprofundado sobre dois dos irmãos mais fascinantes e intrigantes da cidade.

Tínhamos todos decidido que um ponto central na vida de Whitey Bulger era a sua alegada vida afortunada. Certamente, ele cumprira nove anos de pena em prisões federais, incluindo alguns em Alcatraz, por uma série de assaltos a bancos durante a década de 1950. Mas nunca fora preso desde que regressara a Boston, em 1955, nem por uma contraordenação de trânsito. Entretanto, a sua ascensão no submundo de Boston fora implacável. Come-çando como um temível soldado raso no gangue de Winter hill, alcançara o estatuto de verdadeira estrela como o mais famoso dos patrões do sub-mundo daquela cidade. Pelo caminho, associara-se ao assassino Stevie «The Rifleman» Flemmi, e constava que a escalada de ambos rumo à fama e à fortuna se devia à sua capacidade para trocar as voltas aos investigadores que tentavam construir um caso contra eles.

No entanto, no final da década de 1980, os polícias, os agentes da polícia estadual e os investigadores federais da brigada de narcóticos tinham uma nova teoria a respeito da folha impecável de Bulger. Sem dúvida, diziam, o homem era astucioso e extremamente cuidadoso, mas a facilidade com que se escapava contrariava a natureza. Para eles, era claro que Bulger tinha liga-ções com o FBI, e este, por sua vez, tê-lo-ia protegido secretamente todos aqueles anos. Se não, como se poderia explicar o completo fracasso de todas as tentativas para o apanhar? Mas havia um problema nesta teoria: nenhum dos que a defendiam era capaz de nos apresentar provas irrefutáveis.

Para nós, a ideia parecia rebuscada, interesseira até.Para Cullen, que vivia em South Boston, ia contra tudo o que na altura se

sabia a respeito de um gângster com fama de ser um exemplo de lealdade e coragem, um patrão do crime que exigia fidelidade absoluta aos associados. Era uma ideia que desafiava a cultura do mundo de Bulger, South Boston e do seu legado: a Irlanda. há muito que os irlandeses nutrem um ódio especial por informadores. Tínhamos visto, alguns de nós mais do que uma vez, o famoso filme de 1934 de John Ford, O Denunciante, com o seu retrato intem-poral e inigualável do horror e do ódio que os irlandeses têm por um bufo. Uma escuta que se tornara um clássico nos anais da cidade era de natureza mais local. A gravação secreta registara um dos subordinados de Bulger a falar com a namorada.

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– Odeio os cabrões dos bufos – queixava-se John «Red» Shea. – São tão maus como violadores ou aqueles estupores que abusam de crianças. – E o que faria ele se descobrisse um informador? – Amarrava-o a uma cadeira, certo? Depois, agarrava num taco de basebol e assentava-lhe uma das boas na merda da cabeça. havia de lhe ver a cabeça a saltar dos ombros. Depois, agarrava numa serra elétrica e cortava-lhe os dedos dos pés. A gente fala-se depois, querida.

Era este o mundo de Whitey, onde os sentimentos a respeito dos infor-madores eram intensos, em todas as classes sociais. Até o irmão Billy apre-sentava uma versão mais refinada dos sentimentos de Red Shea. Nas suas memórias de 1996, recordava uma ocasião em que ele e alguns amigos de infância estavam a jogar basebol e tinham partido um candeeiro de rua. Os rapazes poderiam recuperar a bola se identificassem o transgressor. Nenhum deles cedera. «Detestávamos informadores», escreveu Billy Bulger. «havia histórias com os nomes de informadores que tinham vendido os irmãos na terra dos nossos antepassados.» Uma vez que estas histórias também fa-ziam parte do passado de Whitey, nós os quatro, em 1988, recusávamo-nos a acreditar na teoria do informador. Não podia ser mais do que pretensões infundadas de investigadores amargos que não tinham conseguido apanhar Whitey Bulger. A ideia de Bulger ser um informador parecia absurda.

Mas não desapareceu, era uma comichão irresistível que insistia em man-ter-se à superfície. E se fosse verdade?

A grande notícia em Boston no ano de 1988 era a candidatura presiden-cial do governador do Massachusetts, Michael Dukakis, mas durante todos aqueles meses de política presidencial demos por nós cada vez mais intriga-dos e empenhados na história de Whitey. Como tal, Cullen voltou para a rua. Lehr entrou. Seguiram-se mais entrevistas com os investigadores que tinham seguido Bulger e tentado construir casos contra ele. Os investigadores revi-ram laboriosamente todo o seu trabalho, o qual terminava sempre da mesma forma: Bulger safava-se, ileso e sem acusações, a rir por cima do ombro. Falava-se de um certo agente do FBI, John Connolly, que, como os Bulger, crescera em Southie. Connolly fora visto com Whitey.

Escrevemos ao FBI de Boston e solicitámos, ao abrigo da Lei para a Liberdade de Informação, ficheiros e outro material sobre Bulger. Era uma formalidade: o facto de o pedido ser ignorado não foi uma surpresa. Con-tudo, não podíamos escrever uma história na qual se declarava que Bulger era um informador do FBI. Apenas tínhamos as fortes suspeitas – mas sem provas – de outros agentes. Não recebemos qualquer confirmação do FBI. Decidimos que o melhor que poderíamos apresentar seria uma história sobre a forma como Bulger dividira as agências locais. Seria uma peça sobre cultura

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policial, com agentes que acabavam sempre de mãos a abanar e depois re-feriam as suas suspeitas em relação ao FBI. De certo modo, Bulger tinha dividido e conquistado, ou seja, vencera.

O submundo de Boston e as interações entre investigadores envolviam histórias de fantasmas, jogos de fumo e de espelhos: a ideia de Bulger como informador ainda nos parecia improvável. Não obstante, lançámos uma últi-ma série de reportagens para testar o que tínhamos ficado a saber junto das nossas fontes no FBI. O essencial encontra-se descrito no capítulo 16 deste livro. Conseguimos confirmar, com base no FBI, que o impensável era ver-dade: Bulger era um informador e fora-o durante anos.

A história foi publicada em setembro de 1988, com acesos desmentidos dos responsáveis do FBI local. Em Boston, os agentes estavam acostumados a usar a imprensa, fornecendo informação a jornalistas gratos por um furo que, obviamente, favorecesse o FBI. Neste contexto, não nos surpreendeu que o bureau se mostrasse ofendido, traído. E foram muitos os que aceitaram os desmentidos: afinal, quem era mais credível? O FBI, com os seus figurões que tinham sido objeto de notícias favoráveis por derrubarem a Máfia italia-na? Ou um grupo de jornalistas que o mesmo FBI apresentava como ranco-rosos? Com a improbabilidade de Bulger ser um informador e a veemência dos desmentidos do FBI, a história foi encarada como especulação, e não a negra verdade.

Passar-se-ia quase uma década até que o FBI se visse obrigado por uma ordem judicial a confirmar o que sempre negara durante tanto tempo: Bul-ger e Flemmi tinham sido, de facto, seus informadores. Bulger desde 1975 e Flemmi ainda antes. As revelações foram feitas em 1997 no início de uma in-vestigação federal sem precedentes a respeito das ligações corruptas entre o FBI e Bulger e Flemmi. Em 1988, dez meses de testemunhos sob juramento e pilhas de ficheiros do FBI anteriormente secretos revelaram uma modali-dade corrupta absolutamente impensável: dinheiro a passar de mãos entre informadores e agentes. Muitas das observações dos agentes apresentavam uma arrogância inegável – como se fossem donos da cidade. Era fácil imagi-nar o FBI e Bulger e Flemmi a festejar o seu segredo, com os copos ergui-dos num brinde ao seu sucesso contra agentes estaduais, federais, polícias e outros que tinham tentado construir casos contra eles, sem se aperceberem de que o jogo estava viciado.

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É claro que o caso Bulger não constitui a primeira ocorrência de um escândalo público em que o FBI se viu envolvido com os seus agentes e informadores. Em meados da década de 1980, um agente veterano de Miami admitiu ter aceitado oitocentos e cinquenta mil dólares em subornos do seu informador num processo de tráfico de droga. Mais conhecido é o exemplo de Jackie Presser, o anterior presidente da Teamsters Union, que foi infor-mador do FBI durante uma década antes da sua morte, em julho de 1988. Os contactos de Presser no FBI seriam acusados de mentir para o proteger de uma acusação formal em 1986, e um supervisor foi despedido.

Mas o escândalo Bulger é o mais chamativo, é um alerta que, fundamen-talmente, diz respeito ao abuso desregrado do poder. O acordo poderia fazer sentido no início, como parte de um grito de guerra do FBI contra La Cosa Nostra (LCN). Em parte graças à ajuda de Bulger e, em especial, de Flemmi, os grandes patrões da Máfia tinham desaparecido havia muito na década de 1990, substituídos por um alinhamento de suplentes anónimos com alcunhas memoráveis. Num forte contraste, Bulger era o patrão do crime que, todos aqueles anos, se mantivera uma figura constante no submundo. Whitey era o nome conhecido de todos, e ele e Flemmi os jogadores de topo.

Um «informador de nível superior» fornece ao FBI segredos em primeira mão sobre figuras de alto nível no crime organizado. As diretrizes do FBI exigem que os informadores sejam controlados de perto por contactos do mesmo FBI. Mas e se o informador começar a «controlar» os agentes do FBI? Se, em lugar do FBI, for o informador quem exerce o controlo, e o FBI lhe chamar o seu «bom mauzão»?

E se o FBI eliminar os inimigos do informador e este último ascender ao topo do submundo? E se o FBI proteger o informador, dando-lhe a conhecer as investigações conduzidas por outras agências policiais?

E se os homicídios ficarem por resolver? Se os cidadãos trabalhadores forem ameaçados e vítimas de extorsão, sem apelo nem agravo? Se uma grande rede de tráfico de cocaína escapar repetidamente aos investigadores? Se elaboradas operações de escuta, custando milhões de dólares dos contri-buintes, forem reveladas e comprometidas?

Isto nunca poderia acontecer, certo? Correr tão mal um acordo entre o FBI e um informador de primeira categoria. Mas correu.

Atualmente, sabemos que o acordo entre Bulger e o FBI era mais pro-fundo, mais sórdido e mais pessoal do que alguém imaginara, um acordo selado numa noite de luar em 1975 entre dois filhos de Southie, Bulger e um jovem agente do FBI chamado John Connolly.

dick kehr e gerard o’neill

Boston, abril de 2000

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INtroDução à PrESENtE EDIção1

Faz doze anos que publicámos a primeira edição de Jogo Sujo: A Máfia Irlandesa, o FBI e Um Pacto com o Diabo. É com prazer que vemos agora

o lançamento de uma edição nova e atualizada. Foi muito o que aconte-ceu desde a publicação inicial. Vários dos pretensos poderosos caíram, de agentes corruptos do FBI, passados e presentes, ao escalão superior do gangue de Bulger. Desde Jogo Sujo, foi publicada uma grande quantidade de outros livros sobre Bulger e o FBI, criando, com efeito, um «género Bulger» muito próprio: livros de outros jornalistas, livros reveladores de ex-membros do gangue de Bulger, e, mais recentemente, relatos de investi-gadores que foram atrás de Bulger, deparando-se-lhes um FBI corrupto a bloquear-lhes o caminho. O agente do FBI no centro do escândalo, John J. Connolly Jr., foi condenado, em 6 de novembro de 2008, por homicídio em segundo grau, por conspirar com Bulger no assassínio de um homem que pretendia colaborar com os investigadores. Connolly, agora com setenta e um anos, encontra-se detido numa prisão da Florida. O mais importante, todavia: a figura central deste escândalo histórico, James J. «Whitey» Bulger Jr., depois de andar fugido à justiça desde 1995 e integrar a Lista dos Dez Mais Procurados do FBI, foi capturado a 22 de junho de 2011, em Santa Monica, Califórnia, onde estava escondido à vista de todos e levava uma vida de aposentado com a companheira de longa data, Catherine Greig. Jogo Sujo é uma narrativa em que se descreve o sombrio acordo entre o FBI e Bulger, revelando as suas origens, o reinado de terror de Bulger durante a década de 1980 com a proteção do FBI, e, finalmente, a divulgação pública 1 A tradução portuguesa segue a edição mais recente do livro, atualizada pelos autores e pela PublicAffairs, a editora original deste livro.

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na década seguinte da corrupção tóxica e profunda no seio do FBI. Com novos desenvolvimentos, surgiu nova informação, e estamos gratos pela oportunidade de atualizar esta história do FBI e de Bulger que é Jogo Sujo.

dick lehr e gerard o’neill

Janeiro, 2012

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PRIMEIRA PARTE

O Príncipe das Trevas é um cavalheiro.

william shakespeare

(3.º ato, 4.ª cena),rei lear

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cAPíTulo uM

1975

Sob uma lua cheia, o agente do FBI John Connolly arrumou o seu velho Plymouth num lugar de estacionamento junto a Wollaston Beach. Atrás

dele, a água agitava-se, e, mais longe, a silhueta urbana de Boston cintilava. A cidade de estaleiros navais de Quincy, vizinha de Boston a sul, era o local perfeito para o tipo de encontro que o agente tinha em mente. A estrada ao longo da praia, Quincy Shore Drive, ia dar à Southeast Expressway. Seguindo para norte, qualquer uma das suas outras poucas saídas dava acesso a South Boston, a zona onde Connolly e o seu «contacto» tinham crescido. Usando aquelas estradas, entrar e sair de Southie era apenas uma questão de minutos. Mas a conveniência não era o principal motivo para a escolha daquele local. Acima de tudo, nem Connolly nem o homem com quem se ia encontrar que-riam ser vistos juntos no velho bairro.

Depois de estacionar o Plymouth junto à praia, Connolly tratou de se pôr confortável e deu início à sua espera. Durante os anos que se seguiriam, ele e o homem pelo qual aguardava nunca se afastariam muito. Tinham Southie em comum, vivendo e trabalhando sempre a pouco mais de um quilómetro um do outro, num submundo povoado por investigadores e gângsteres.

Mas isso seria depois. Por enquanto, Connolly esperava ansiosamente em Wollaston Beach; no interior do carro, o trabalhar do motor contribuía para o zumbido que mais se assemelhava a uma descarga elétrica. Tendo conse-guido uma transferência para a sua cidade natal um ano antes, estava prepa-rado para marcar a sua posição na dependência de Boston da agência de elite da nação. Tinha apenas trinta e cinco anos, e aquela era a sua oportunidade. O seu grande momento no FBI chegara.

O nervoso agente ganhava maturidade num FBI que se debatia com um raro revés de relações públicas. No Congresso, inquéritos a abusos do FBI

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DICK LEhR E GERALD O’NEILL

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tinham confirmado que o seu falecido diretor acumulara durante anos, em ficheiros secretos, informação sobre a vida privada de políticos e figuras pú-blicas. O principal alvo do FBI, a Máfia, também estava nas notícias. Surgiam revelações sensacionais que envolviam uma bizarra parceria entre a CIA e a Máfia, descoberta durante investigações do Congresso. Falava-se de um acordo entre a CIA e os mafiosi para assassinar Fidel Castro em Cuba, e de conspirações relacionadas com canetas e charutos envenenados.

De facto, parecia que a Máfia estava por todo o lado e que toda a gente queria o seu quinhão daquela organização misteriosa com o seu quê de gla-moroso, hollywood incluída. A obra-prima cinematográfica O Padrinho, Parte II, de Francis Ford Coppola, fora um êxito de bilheteira após a sua estreia no ano anterior. Meses antes, o filme ganhara vários Óscares. O FBI de Con-nolly encontrava-se empenhado num muito publicitado ataque a La Cosa Nostra. Era a prioridade nacional, uma guerra contra a imprensa negativa, e Connolly tinha um plano, algo que ajudaria a causa.

Connolly estava atento à praia, deserta àquela hora tardia. Ocasionalmen-te, passava um carro na Quincy Shore Drive. O bureau queria a Máfia, e, para construir casos sobre ela, os agentes necessitavam de informação. Para isso, precisavam de infiltrados. No FBI, um homem era avaliado pela sua capaci-dade em adquirir informadores. Connolly, agora com sete anos de serviço, sabia-o bem e estava decidido a tornar-se um dos melhores agentes do bureau – um agente com a abordagem certa. Qual era o seu plano? Concretizar o acordo que outros tinham tentado na dependência de Boston, mas sem êxito. John Connolly ia conseguir Whitey Bulger, esse gângster esquivo, astuto e extre-mamente inteligente que já era uma lenda em Southie. O arrivista do FBI não era homem para usar as escadas. Era, isso sim, um homem de elevadores, e Whitey Bulger era o último piso.

O FBI andava de olho em Bulger havia algum tempo. Antes, um agente veterano chamado Dennis Condon tentara apanhá-lo. Os dois encontravam--se e conversavam, mas Whitey mostrava-se cauteloso. Em maio de 1971, Condon conseguira que Whitey lhe fornecesse bastante informação sobre uma guerra de gangues irlandeses que então dominavam o submundo de Boston: quem era aliado de quem, quem queria abater quem. Fora uma des-crição exaustiva e pormenorizada, acompanhada do respetivo alinhamento de protagonistas. Condon abrira um processo com o nome de Whitey como informador. Mas, com a mesma rapidez, Whitey remetera-se ao silêncio. ha-viam-se encontrado várias vezes no verão, mas as conversas não tinham cor-rido bem. Em agosto, segundo Condon, Whitey «continuava relutante em fornecer informação». Em setembro, o agente desistia. «Os contactos com o indivíduo em questão não foram produtivos», escrevia nos ficheiros,

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a 10 de setembro de 1971. «Como tal, este assunto será encerrado.» O motivo pelo qual Whitey falara, para logo se calar, era um mistério. Talvez a natureza exclusivamente irlandesa da informação fornecida se tivesse revelado des-confortável. Talvez se levantasse uma questão de confiança: por que motivo devia Whitey Bulger confiar em Dennis Condon, do FBI? Independentemente da razão, o processo Whitey fora encerrado.

Ora, em 1975, Condon estava de saída, já de olho na reforma. Mas tinha Connolly com ele, e o agente mais novo mostrava-se desejoso de reabrir o processo Whitey. Afinal, ele tinha uma vantagem única: conhecia Whitey Bulger. Crescera num prédio de tijolo perto da casa dos Bulger, no bairro de habitação social de Old harbor, em South Boston. Whitey tinha mais onze anos do que Connolly, mas este sentia-se muito confiante. As velhas ligações do bairro davam-lhe algo que os outros na delegação de Boston não possuíam.

Então, de repente, a espera terminou. Sem aviso, a porta do lado do pas-sageiro abriu-se e Whitey Bulger entrou no Plymouth. Connolly deu um salto, surpreendido com aquela entrada repentina, por ter sido apanhado despreve-nido. Ele, um agente federal, deixara as portas destrancadas.

– Como fez isso: caiu de paraquedas? – perguntou enquanto o gângster se instalava no banco da frente. Connolly esperava que a visita estacionasse ao lado do seu carro. Bulger explicou-lhe que preferira parar numa das ruas secundárias e fazer o resto do caminho a pé, ao longo da praia. Ficara à espera até ter a certeza de que não havia ninguém por perto e aproximara-se por trás.

Connolly, um dos agentes mais jovens da prestigiada Brigada do Crime Organizado, tentou acalmar-se. Whitey, que acabara de fazer quarenta e seis anos, a 3 de setembro, ocupava o banco da frente, uma figura imponente, ainda que tivesse pouco mais do que um metro e setenta de altura e pesasse uns banais setenta e cinco quilos. Era um homem rijo e em forma, com olhos de um azul penetrante e o seu característico cabelo loiro penteado para trás. Ao abrigo da escuridão, os dois começaram a falar. Foi então que Connolly, devidamente respeitoso perante um figurão que era também um ícone do seu bairro, apresentou a sua proposta:

– Devia pensar em usar os amigos que tem nas agências da lei.

Era isto que Connolly tinha a propor a Whitey: – Precisa de um amigo. – Mas porquê?No outono de 1975, a vida na cidade era tumultuosa e dada a mudanças

imprevistas. No local onde se encontravam na praia deserta, os dois homens

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podiam ver a silhueta de Boston do outro lado da água. Na ocasião, os cida-dãos estavam eufóricos com a inesperada boa sorte dos seus Red Sox. Yaz, Luis Tiant, Bill Lee, Carlton Fisk, Jim Rice e Fred Lynn – que, terminada a temporada, seria distinguido como o estreante do ano e, também, como o jogador mais valioso da American League – encontravam-se em plena cor-rida gloriosa ao título da World Series contra os poderosos Cincinnati Reds.

Fora isso, o mundo mostrava-se sombrio e instável. O pesadelo do busing entrara no seu segundo ano. Em 1974, um tribunal federal ordenara o trans-porte de estudantes negros em autocarros entre Roxbury e o South Boston high School, com o intuito de promover um equilíbrio racial nas escolas públicas segregadas da cidade; como consequência, a área transformara-se numa zona de guerra. O resto do país estava atento, e as pessoas começavam a conhecer Southie através de imagens televisionadas e fotografias de pri-meira página nos jornais, com polícia de choque, polícia estadual a patrulhar corredores de escolas, atiradores policiais nos telhados e legiões de negros e de brancos a trocar gritos racistas. O Prémio Pulitzer de fotografia tinha sido atribuído a uma imagem impressionante de 1976, na qual se via um negro a ser agredido com uma bandeira americana durante distúrbios à porta da câmara municipal. Em todo o país, o bairro era visto através de um prisma de vidro partido – uma primeira impressão sangrenta e simultaneamente lan-cinante e assustadora.

O irmão mais novo de Whitey, Billy, encontrava-se no centro de tudo. Como todos os líderes políticos do bairro, Billy Bulger, um senador do estado, era um inimigo implacável do busing – os transportes de auto-carro ordenados por tribunal. Nunca contestara as conclusões do tribunal, segundo as quais as escolas da cidade eram bastante segregadas. Todavia, opunha-se terminantemente a qualquer solução que forçasse alunos a fre-quentar escolas fora da sua área de residência. Tinha ido a Washington, DC, para protestar e apresentar o seu caso à delegação estadual no Congresso, e, uma vez lá, fizera um discurso debaixo de chuva torrencial na presença de um grupo de pais antibusing. Não tolerava a imagem do seu bairro que o mundo exterior estava a receber, e denunciava o «retrato constante, calculado e pouco escrupuloso de cada um de nós, na imprensa local e nacional, na rádio e na televisão, como racistas impenitentes». Para ele, o que estava em causa era uma preocupação legítima dos seus conterrâneos quanto ao bem--estar e educação dos filhos. Em Boston, era frequente manifestar-se contra uma intervenção federal indesejada.

Mas o busing viera para ficar, e o verão que terminara não correra bem. Em julho, seis jovens negros tinham ido de carro até Carson Beach, em South Boston, onde se envolveram numa luta com um bando de rapazes brancos,

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o que deixara um dos negros no hospital. John Connolly fora nadador-sal-vador nas praias de South Boston quando era mais novo, assim como, antes dele, Billy Bulger, e agora as praias haviam-se transformado noutro campo de batalha. Num domingo de agosto, helicópteros da polícia sobrevoavam Carson Beach e barcos da Guarda Costeira patrulhavam a costa enquanto mais de um milhar de cidadãos negros seguiam para a praia num cortejo que ultrapassava cem carros. Esta «invasão» da praia era acompanhada por mais de oitocentos agentes fardados. As câmaras não paravam de filmar.

Na altura em que Connolly conseguira marcar um encontro com Whitey junto a Wollaston Beach, as escolas já tinham voltado a abrir. Boicotes estudantis e lutas entre brancos e negros eram acontecimentos regulares. Pensando talvez contribuir para reduzir a tensão racial, os políticos tinham pela primeira vez tentado integrar a equipa de futebol americano do South Boston high School. Mas os quatro jogadores negros que se apresentaram para o primeiro treino tiveram de o fazer sob proteção policial.

O bairro estava desfeito e Connolly sabia isso, sentia o mal-estar, porque aquele também era o seu bairro, o que o influenciara a conseguir um encon-tro com Bulger. Mas ainda que esta ligação lhe pudesse ter permitido uma audiência com Whitey, ele tinha de pensar numa proposta para apresentar ao herói da sua infância. Acima de tudo, queria tirar partido dos problemas que se adivinhavam entre a Máfia de Boston e um gangue da vizinha Somerville, ao qual Whitey se juntara. Bulger, agora à frente dos esquemas de extorsão em Southie, estabelecera uma parceria com howie Winter, o patrão do cri-me em Somerville. O gangue tinha como sede uma garagem no setor de Winter hill, na margem oposta do Charles River, a oeste. No ano anterior, Whitey juntara-se a outro membro do gangue, Stevie «The Rifleman» Flemmi. Tinham-se dado bem, descobrindo várias coisas em comum, e agora era fre-quente serem vistos juntos.

Quando Connolly e Bulger se encontraram, o jovem agente do FBI já fizera o trabalho de casa. Sabia que Bulger e o gangue de Winter hill tinham pela frente uma Máfia local, controlada havia décadas pelo poderoso sub-chefe Gennaro J. Angiulo e pelos seus quatro irmãos. Naquela ocasião, veri-ficava-se uma disputa entre as duas organizações a respeito da colocação de máquinas de venda automática em toda a região. havia quem argumentasse que a questão poderia ser resolvida com armas. Com toda essa instabilidade, Connolly defendia que um homem esperto poderia dar-se bem se tivesse um amigo.

Além disso, Angiulo era astuto e imprevisível. Tinha especial predileção por incriminar aqueles que já não lhe eram úteis. Por exemplo, anos antes, um dos seus homens escapara ao seu controlo. Segundo rezava a história,

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Angiulo recorrera aos seus contactos no seio da Polícia de Boston e o rene-gado em questão não tardara a ser apanhado sob falsas alegações, depois de agentes corruptos lhe colocarem armas no carro. Ninguém conseguia saber se Angiulo possuía, de facto, o poder para manipular uma detenção daquela forma. Mas era a história que circulava, e Whitey Bulger e o resto do gangue de howie Winter acreditavam nela. Como Connolly bem sabia, a perceção das coisas é que importava.

Bulger estava nitidamente preocupado com a hipótese de Angiulo o tra-mar.

– E se três polícias me mandam parar à noite e dizem que havia uma metralhadora no meu carro? – queixara-se. – O juiz vai acreditar em quem? Em mim ou nos três polícias?

Connolly encontrara forma de tirar partido destas contracorrentes de paranoia do submundo.

Os dois homens estavam sentados no Plymouth, as luzes da cidade refle-tidas na água.

– Você devia usar os amigos – frisou Connolly, uma frase que fez com que Bulger lhe prestasse atenção, pressentindo uma abertura.

– Quais? – perguntou Whitey. – Você?– Pois – respondeu Connolly àquele homem implacável que usava as

pessoas e depois se livrava delas. – Eu.

A proposta de Connolly era simples: fornecer informações sobre La Cosa Nostra e deixar que o FBI fizesse o resto. Bulger sabia que depois o agente diria: «Se nós estivéssemos a apertar com a Máfia, seria muito difícil para a Máfia apertar com eles.»

De facto, assim que Connolly deu a entender que pretendia um encon-tro, Bulger soube o que o FBI queria. havia semanas que pensava naquela proposta, que pesava os prós e os contras, avaliava os potenciais benefícios. Chegara ao ponto de consultar Stevie Flemmi. Bulger referira o assunto cer-to dia quando os dois estavam em Somerville, na Marshall Motors, a oficina de automóveis que era propriedade de howie Winter. A garagem de um piso era um edifício incaracterístico feito de blocos de cimento. Assemelhava-se a um bunker de betão e servia de fachada aos muitos negócios ilegais do gan-gue, os quais, desde 1973, incluíam a manipulação de corridas de cavalos ao longo da Costa Leste.

Bulger disse a Flemmi que o agente do FBI John Connolly lhe fizera uma proposta em troca dos seus serviços.

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– O que achas? – perguntou Bulger quando estavam os dois sozinhos. – Devo encontrar-me com ele?

A pergunta ficou no ar. Mais tarde, Flemmi decidiu que, se Whitey lhe falava de uma abordagem do FBI, então, estava a dar-lhe a entender que já sabia alguma coisa sobre o seu próprio «estatuto» secreto. Flemmi tinha um historial com o FBI de Boston, e que historial. Fora recrutado pela primeira vez como informador em meados da década de 1960, tendo adotado o có-digo «Jack de South Boston» para as transações com o seu contacto no FBI, um agente chamado h. Paul Rico (o parceiro de Dennis Condon).

Rico, um agente graduado que gostava de se vestir bem, escolhera Flem-mi devido ao seu acesso à Máfia da Nova Inglaterra. Flemmi não era mem-bro da Máfia, mas conhecia todos os figurões e era frequente ser visto na companhia dos mesmos. A Máfia gostava dele, um ex-paraquedista que aos dezassete anos trocara um reformatório por duas comissões na Coreia com a 187th Airborne Regimental Combat Team. Flemmi tinha reputação de assas-sino empedernido, ainda que fosse de altura mediana, um metro e setenta, e pesasse cerca de sessenta e cinco quilos. Trabalhava por conta própria, com sede no seu Marconi Club, em Roxbury, um misto de casa de apostas, mas-sagens e bordel, onde recebia mensagens, telefonemas e fazia reuniões. Um sujeito popular com o cabelo encaracolado e olhos castanhos, que gostava de carros e da companhia de mulheres novas a horas tardias; tinha uma vida preenchida.

Até o padrinho da Nova Inglaterra, Raymond L. S. Patriarca, nutria um afeto especial por ele. No inverno de 1967, Flemmi foi chamado a Providen-ce. Almoçou com Patriarca e com o irmão, Joe, almoço que se arrastou tarde dentro. Conversaram sobre a família. Patriarca perguntou a Flemmi de que local na Itália eram os seus pais. Debateram negócios. Patriarca prometeu encaminhar carros para a nova oficina de Flemmi. Falaram um pouco sobre o irmão de Flemmi, Jimmy the Bear, que cumpria pena por tentativa de homicídio. Num gesto de boa vontade, Patriarca deu cinco mil dólares em dinheiro a Flemmi para investir na oficina.

Em Boston, Flemmi andava sobretudo com um amigo de infância, Frank Salemme, cuja alcunha era «Cadillac Frank». Os dois tinham crescido em Roxbury, onde a família de Flemmi vivia, no bairro social de Orchard Park. O pai, Giovanni, um imigrante italiano, era assentador de tijolos. Flemmi e Salemme trabalhavam os dois na rua, como «gorilas», apostado-res e agiotas. Frequentavam o North End, o hermético bairro italiano onde o subchefe Gennaro Angiulo tinha a sua sede, e era frequente acabarem a noite em farras na companhia de Larry Zannino, que gostava muito de beber.