registro, memória e transmissão cultural: os textos culinários e o
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Registro, memória e transmissão cultural: os textos culinários e o caderno
de receitas1 2
Rogéria Campos de Almeida Dutra (UFJF/MG)
Resumo:
A transmissão das práticas culinárias podem encontrar espaços diversos de
realização. Frequentemente são acionadas através da transmissão oral, da educação “ao
vivo”, onde quem “aprende a fazer”, o faz assistindo (e lembrando-se de) “quem sabe
fazer” em ação. Esta dimensão faz parte, ou fez durante muito tempo, do processo de
socialização da maioria das mulheres em nossa sociedade. A sistematização deste saber
vem se materializando, nas sociedades letradas, através da elaboração de receitas como
forma de transmissão da cultura culinária de determinado grupo social. Este trabalho tem
como objetivo analisar a produção deste instrumento de transmissão dos saberes e em
particular dos “cadernos de receita”, tradicionalmente objeto de interesse e investimento
feminino que vem sofrendo alterações, quanto a sua elaboração e utilização frente a
modernização da sociedade e utilização de recursos outros de registro, como livros de
culinária e blogs virtuais.
Palavras-chave: textos culinários, transmissão cultural, escritura feminina
1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizado entre os dias 03 a 06 de agosto de 2014, Natal, RN 2 A autora agradece o apoio da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) à
sua participação neste evento.
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A transmissão de práticas culinárias e suas receitas ocorrem na atualidade de
modos variados e flexíveis, acompanhando a multiplicidade de formas comunicacionais
presentes em nossa sociedade. No contexto da ampliação dos contatos e intercâmbios,
as receitas são divulgadas independentemente de relações sociais estabelecidas
localmente, através de sua publicação em livros ou em sites e blogs na internet.
Ainda assim, apesar da diversidade de meios de multiplicação, a forma mais
imediata de transmissão deste saber, a partir da tradição oral, ainda persiste: campo da
“educação ao vivo” onde quem aprende a fazer o faz acompanhando, assistindo (ou
lembrando-se de) quem “sabe fazer”, em ação. Este processo faz parte, ou fez durante
muito tempo, do processo de socialização da maioria das mulheres em nossa sociedade.
É neste grupo que se situam aquelas que “sabem fazer”, mas não sabem com a precisão
matemática “dizer como fazer”, pois a apreensão é intuitiva: sentindo o ponto da massa,
ou a quantidade exata de tempero utilizado. Entre a transmissão oral e o registro
publico, através da publicação em livros ou na internet, encontramos a sistematização
deste saber presente nos Cadernos de Receitas, instrumento eminentemente feminino e,
na maioria das vezes, patrimônio familiar. O Caderno de Receitas se situa também na
forma intermediária no que toca à autoria. Se as publicações de receitas em livros, que
lidam com a transmissão culinária a partir de uma escrita formalizada, divulgada na
esfera pública, trazem a experiência da autoria, por outro lado, a transmissão oral versa
a culinária como saber coletivo, da memória coletiva de um grupo ou sociedade. Os
manuscritos culinários domésticos incorporam estes dois extremos, um saber coletivo,
familiar, local, regional e o saber vivido, exercício da expressão e experiência pessoal.
O conjunto de saberes e práticas envolvidos na cozinha de uma sociedade ou
grupo social faz parte de sua herança cultural. Como parte integrante da vida cotidiana,
ocupa lugar proeminente entre os marcadores da experiência do pertencimento, de
fronteiras identitárias. Seja nacional, regional ou étnica a cozinha situa-se no campo da
configuração histórica e cultural singular no processo de constituição de marcas
duráveis da tradição. Grossi (1983), ao analisar a Cozinha Bretã, na França
contemporânea, menciona a produção de cartões postais desta região, não com
paisagens ou monumentos, mas com a fotografia de bolos de sua cozinha regional,
acompanhados com as respectivas receitas. Receitas que, como monumentos,
constituem patrimônio cultural, que se transformam em pratos emblemáticos,
combinações singulares, contribuindo para uma definição legítima do mundo social.
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Este processo de registro, contudo, ocorre através de diferentes formas de
narrativa, razão pela qual se torna objeto de reflexão no campo das relações entre
cultura e práticas alimentares.
A cultura do manuscrito
Apesar de atravessarem décadas, ou séculos na forma de textos, poemas, orações
dentre outros, os usos da linguagem escrita estão localizados no tempo e no espaço. A
prática da escrita se insere no campo das práticas sociais mais amplas, governadas por
regras sociais que regulam a distribuição dos textos, os contextos de produção, assim
como as formas prescritivas de acesso. Todo registro, grafado em pedra, no couro, ou no
papel pode ser considerado arquivo de informações. Tal fato, porém, não implica
serem estas formas exclusivas, uma vez que a experiência social pode estar atrelada à
memória humana em sua forma mais autônoma, como no caso de muitas sociedades
tribais, com cultura predominantemente oral, confiada a alguns, como os anciãos. As
formas culturais de utilização da linguagem escrita não estão desvinculadas de eventos
sociais, sejam eles públicos, domésticos ou mesmo privados, identificando-se diferentes
comunidades discursivas. Algumas práticas de escrita possuem maior visibilidade, com
poder de influencia, que outras, porém todas se encontram vinculadas a fins que podem
extrapolar o próprio ato do registro. Podemos identificar eventos domésticos que
envolvam a prática da escrita, inseridos no leque de recursos comunicativos possíveis a
determinado contexto social, relacionados ao domínio da casa e da vida cotidiana. São
práticas de escrita (e leitura) aprendidas e reguladas pelas relações sociais estabelecidas
e pelo sentido a elas conferido, inseridas no campo do aprendizado informal. Neste
sentido, estes textos, sejam diários, cartas ou receitas culinárias devem ser
compreendidos como recurso deste grupo doméstico, realizado em relações sociais, ao
invés de mera propriedade individual.
A cultura dos manuscritos domésticos tem sido objeto de investigação e reflexão
de historiadores como fonte de conhecimento do contexto de produção da vida cotidiana
de grupos sociais nas sociedades ocidentais. (Chartier, 1991; Ezell, 2007; Gushurst-
Moore, 2012). A difusão da prática da escrita (e leitura) faz parte do processo de
transformação cultural observado nestas sociedades a partir do Renascimento,
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considerada como uma das transformações mais importantes da Idade Moderna.
Contudo, este processo gradual de aquisição da habilidade de escrever, que se segue à
habilidade de ler, não é homogêneo. Há diferenças entre ocupações, entre a cidade e o
campo, entre gêneros - a escrita entre as mulheres, de acordo com Chartier (1991),
observada através da taxa de assinaturas Europa do sec.XVII, é de cerca de 30% menor.
Apesar da heterogeneidade do acesso, o desenvolvimento da habilidade de ler e escrever
possibilitou neste contexto o envolvimento em práticas novas, onde a relação pessoal
com o texto lido ou escrito passa a dispensar mediações externas – da autoridade dos
especialistas e dos intérpretes – constituindo-se no espaço privado. No caso da pratica
da leitura e escrita femininas observa-se que estiveram condicionadas à posição social
destas mulheres, seja na estrutura social, seja na configuração do espaço doméstico. Se
a leitura feminina se torna facilmente associada ao prazer sensual e à intimidade, no
sentido da leitura como lazer (Chartier, op.cit.), há outros contextos em que o domínio
das letras envolve a participação das mulheres como gerenciadoras da manutenção das
redes sociais informais ou das demandas do cotidiano doméstico e familiar, como cartas
e receitas culinárias.
Os manuscritos domésticos apresentam narrativas de experiências pessoais, são
formas de “escritas da vida” não intencionadas à publicação, caracterizando-os assim
pela liberdade de construção do texto, sem compromisso com as convenções formais da
escrita. A cultura do manuscrito doméstico envolve cartas, diários, notas, reflexões
religiosas, poemas, receitas, que de acordo com Gushurst-Moore (2012) têm a
peculiaridade de sofrerem de forma mais lenta modificações em sua linguagem se
comparado à escrita pública. Alguns incluem a linguagem resumida, no estilo
taquigráfico, demonstrando a intimidade de seu trânsito. Tratam, sobretudo, dos
assuntos domésticos, uma escrita do ponto de vista feminino que tem como tema
central a experiência vivida. Neste sentido, se inscreve na historia pessoal, o que se
pode visualizar na prática da utilização destes registros como fonte para elaboração do
memorial no funeral na Inglaterra entre séculos XVII e XIX . (Ezell, 2007).
Os manuscritos culinários e o caderno de receitas
Dos eventos literários domésticos podemos destacar, em particular, as receitas
culinárias, registradas nos cadernos de receitas ou papéis avulsos perdidos em gavetas,
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afixados em locais estratégicos, que remetem ao evento cotidiano de cozinhar. A
primeira aproximação que se faz a respeito do que significaria uma receita reside na
análise de sua origem morfológica latina, cujo sentido associa-se à ideia de “conceito” e
“captura”, ou seja, indica uma tentativa de sistematização. Subentende uma ordem de
ações concatenadas para um fim, razão pela qual é prescritiva. Trazem o composto de
uma linguagem escrita e sistemas matemáticos, incorporadas que estão no campo amplo
das praticas sociais domésticas associadas ao provimento da comida, e ao cuidado.
Neste sentido, envolvem relações sociais e a construção dos papéis de gênero no
trabalho doméstico.
As receitas são construídas através da modelagem histórica e cultural, variando
em seu formato e conteúdo.. Antes que especializados no registro culinário, os
exemplares europeus, do que identificamos hoje como Caderno de Receitas, do início da
era moderna, particularmente na Inglaterra e Irlanda, trazem assuntos diversos do trato
doméstico: além de receitas culinárias,, registros de aluguéis, de nascimentos e óbitos
dos membros da família. Com múltiplos propósitos, estes manuscritos envolvem os
processos de criação e transmissão num complexo jogo entre experiência pessoal e
autoria coletiva. Por se situar no campo de ação feminino, lidando com um saber
doméstico fortemente ancorado na prática, alguns autores (op.cit.) destacam estes
textos culinários como janela alternativa para a expressão individual das mulheres. Ao
mesmo tempo são objetos que seguem a linhagem feminina daquele grupo: Leong
(2013) fala-nos de situações que envolvem a autoria múltipla, ou colaborativa de
descendência matrilinear.
Os manuscritos culinários femininos trazem consigo a natureza multimodal,
contendo uma variedade de meios comunicativos para expressão. Daí a flexibilidade na
forma da escrita, como na leitura: a escrita é passível de alterações, e sua leitura,
praticada sem uma ordem estabelecida. . Trata-se da construção de uma situação
retórica que envolve a habilidade prática e mundana através de uma representação
textual circulando entre a escritura propriamente dita, as receitas, e as conversas sobre
as receitas, e vice-versa. As conversas informais sobre as receitas, e o cozinhar se
definem como prática que permite efetivação de uma rede feminina de relações sociais
expressando a estreita vinculação entre práticas sociais, práticas textuais e práticas
corporais,. Tratam do mundo do trabalho e das atividades artesanais. Como papéis
intergeracionais acolhem a escrita por muitas mãos, as alterações e acréscimos, além de
comentários. Neste sentido as receitas culinárias têm muito a dizer sobre a história dos
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artefatos, além de fonte de pesquisa dos hábitos alimentares nativos, daquela região, ou
contexto histórico.
As transformações ocorridas ao longo dos últimos séculos em relação aos textos
culinários são representativas da mudança mais ampla das formas de vida e do cotidiano
domestico, na medida em que envolvem ingredientes, combinações, utensílios, medidas
e formas de uso historicamente determinados. A associação entre culinária e práticas
medicinais domésticas esteve presente nestes manuscritos durante longo período de
tempo, se modificando a partir do final do século XIX frente à especialização das
tecnologias médicas e o desenvolvimento da cultura farmacêutica. Os saberes populares
sobre as ervas medicinais envolviam chás, infusões de ervas compostas, xaropes,
unguentos, preparados na cozinha, indicando o domínio artesanal de uma ciência
empírica que vai inspirar a elaboração das primeiras fórmulas medicinais. Antes que
propriedade intelectual destes saberes, sua presença nos manuscritos domésticos deve
ser compreendida como um exemplo de participação pessoal no domínio consensual de
tratamentos eficazes, baseados na autoridade da experiência no repertorio “women
folk”. Como exemplo, “A note of my mother salve”, destacado por Gushurst-Moore
(2012) , indica a existência de várias versões da mesma fórmula, referindo-se neste caso
à versão materna, acompanhada por comentários. Estes registros incluem fórmulas para
o trato medicinal da “casa” em seu sentido amplo, envolvendo o cuidado com humanos
e animais: To make a paste of Geneva the true way, por exemplo, é um tratamento para
diarreia em bezerros. Através deste meio de registro e transmissão do saber medicinal
popular é que foi possível, posteriormente, a compilação de manuais de tratamentos
caseiros presentes nas boticas, apontando a exploração da ciência química informal e
empírica.
Os manuscritos culinários se sintonizam com os ritmos da vida social, do
cotidiano ordinário aos eventos festivos; o calendário católico religioso, por exemplo,
rigidamente seguido, muitas vezes está subentendido nas receitas dedicadas aos “dias
magros”, ou para o período de quaresma, apresentando formulas culinárias afinadas ao
jejum de carne vermelha. Rezam o saber das adequações, da classificação dos eventos e
sua compatibilidade alimentar. As receitas festivas se localizam no campo da opulência
dos ingredientes e do tempo despendido para sua elaboração. Por outro lado, os
constrangimentos financeiros de determinado grupo familiar pode ser apreendido pela
natureza de receitas e pelo tipo de ingredientes.
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Muitas receitas são registradas por diferentes estilos de letra, indicando a
capacidade orgânica de envolver várias autorias, se tornando personalizadas através de
correções e renovações. Trazem, contudo, como pressupostos, o compartilhamento de
um mesmo universo social na medida em que supõem concepções de momentos
ordinários e extraordinários, o uso de utensílios semelhantes, além do domínio de
habilidades. Ao se situarem entre a transmissão oral e o texto impresso implicam em
seus modos de transmissão diferentes níveis de percepção. Este conhecimento tácito
com domínio de habilidades corporais e sensoriais subentende o processo de
socialização através da observação e acompanhamento como, por exemplo, a atividade
de “mexer o molho” que inclui a forma de mexer, o utensílio necessário, além da
temperatura do fogo.
De forma geral podemos analisar uma receita culinária a partir de seus
componentes, tradutores de seu contexto de produção: título, ingredientes, medidas,
utensílios, formas de preparo. Apesar de na atualidade, com a intensa circulação de
receitas, os títulos terem conteúdo variado, versando sobre ingredientes, sua forma de
apresentação, origem étnica, eventos comemorativos, dentre outros, chama a atenção
dos estudiosos dos manuscritos culinários domésticos a presença de títulos que se
referenciam à pessoa que o transmitiu, evidenciando as redes sociais estabelecidas
naquele grupo familiar: Anne Miller Cream Sugar Cookies. Ou então, estão endereçadas
a alguém: “This recipe for the elixir of long life taken from the French recipe Mr. Pitt
brought from France in 1771” .O título, neste sentido, se torna referência para a
linhagem da receita. Christo (1986) faz referência - em sua compilação de receitas
oriundas de cadernos de receitas de senhoras mineiras do período entre 1850 e 1950 - a
uma receita intitulada “Doquê Sá Joaquina”, um título curioso, pois ao mesmo tempo
em que faz referência à cozinheira Sá Joaquina, incorpora a interlocução: “do que é
feito”? Os títulos também trazem o prestígio de nomes importantes, ou importados, para
eventos especiais, como Miss Guynt , doce usado nas festas natalinas entre as famílias
mineiras, ou Gelatina Rei Alberto, em homenagem ao soberano belga. Biscoiio
D.Pedro I, Bom-Bocado Legalista, Pudim Abolucionista, Bolo Republicano
demonstram que o panorama de acontecimentos políticos, da esfera pública, não estão
confinados às reuniões masculinas, mas infiltrados e sentidos na vida privada.(Ferreira;
Mello, s/d) Há ainda títulos que indicam o processo de elaboração, como Biscoitos
Ligeiros, Cem-duzentos-trezentos Pão de Minuto, Pudim um-dois-tres, Torta
Preguiçosa. Vale destacar ainda os nomes afrodisíacos de biscoitos e docinhos, de
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influência da doçaria conventual portuguesa, destacados por Freyre (1973, 1987) e
Cascudo (1983): Baba de Moça, Bolo dos Namorados, Amor aos Pedaços, Beijos de
Cabloca, Boquinha de Moça, Chuviscos de Amor, Engorda Padre, Espera Marido,
Sonhos de Freira, que de acordo com Freyre, demonstram nosso particular apreço aos
doces oleosos e açucarados.
Os ingredientes utilizados traduzem o repertório de produtos comestíveis
disponíveis àquela comunidade, além de instruir ao olhar presente às modificações das
preferências alimentares. As receitas indicam, muitas vezes, a fartura do uso de ovos em
doces e bolos, assim como a utilização de gordura animal, como banha de porco em
biscoitos, demonstrando uma gramática alimentar não afinada à sensibilidade moderna,
ou a modificação do leque de produtos comestíveis, como é o caso de Munheca de
Samambaia, ou Tatu Assado. (Christo, 1986). Rumsy (2009: 81) chama a atenção para
as receitas com instruções mínimas, com economia de palavras até mesmo na lista de
ingredientes. Hickory nut cake, por exemplo é uma receita de bolo, na qual na lista de
ingredientes citados não constam a própria noz: instruções mínimas, complementadas
pela conversa, além de proteger a receita de sua reprodução.
Há receitas sem medidas, somente com formas de preparo, ou então, com as
formas de preparo, mas sem medidas. Variam entre os extremos da experiência pessoal
(um punhado, tempero à gosto) ou em acordo aos padrões de medida utilizados na
época (1 arrátel, por exemplo). As composições que os entremeiam revelam, sobretudo
o padrão comunitário, como a utilização de utensílios (1 prato fundo, 1 pires), assim
como referenciais comparativos, butter and lard the size of a walnut , three
pennysworth of sugar. Os procedimentos, por sua vez, indicam a grande demanda de
tempo dedicado ao trabalho da cozinha, fundamentado na forma artesanal de
elaboração, numa temporalidade específica que subentende a sintonia com a lida
cotidiana, em processo. Novamente nos deparamos com a experiência sensível no
controle do calor, do ponto da mistura, que subentende uma prática relacional, em
diálogo com outras mulheres, razão pela qual não há menções à temperatura do fogo,
ao tempo do assamento, ou a sugestões de servir.
Os cadernos de receitas são testemunhos de uma época, tratam de uma forma de
vida centrada na vida familiar, na medida em que pretende sistematizar a vivência
alimentar deste grupo. Como patrimônio familiar guardam a configuração de uma
sensibilidade partilhada, da educação do gosto. Freyre (1987) dá destaque às receitas de
família, no Nordeste açucareiro, carregando nomes dos senhores e de seus engenhos,
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transmitidas entre gerações, guardadas em segredo, definindo uma linhagem de
distinção, como Bolo Cavalcanti ou Bolo Souza Leão. Christo ( 1986 ) por sua vez,
evidencia a importância do caderno de receitas na composição da identidade feminina,
de uma mulher “casada e mãe de família”, presente na vida social rural e no universo
das cidades mineiras no final do século XIX. Estes manuscritos apontam o domínio de
um saber e seu processo de sistematização que não devem ser desprezados, uma vez que
indicam construção do conhecimento e aplicação de uma ciência empírica da
composição de substâncias e elementos. Os utensílios registrados nas receitas apontam
para o universo material de sua contextualização, seguindo as condições tecnológicas
deste universo. Do fogão à lenha, passando pelas “urupemas” nordestinas às cuscuzeiras
de barro, os utensílios indicam o complexo ecológico e regional envolvido nas formas
de vida daquela grupo ou sociedade.
Considerações finais
Inscritas nos cadernos, em pedaços soltos de papel, rapidamente registrados a
partir do resgate de conversas, as receitas acumuladas ao longo da vida, possuem poder
de evocação. Kirshemblatt-Gimblett (1989) relembra as páginas dos diários das
prisioneiras do campo de concentração Terezin, na antiga Tchecoslováquia, dedicadas
ao registro de receitas de pratos luxuosos significantes da abundância de sua vida
anterior. A memória coletiva, de acordo com Halbawachs (1996), é sobretudo da vida
vivida, fruto de testemunho, diferentemente da memória histórica, que advém de
acontecimentos externos à experiência pessoal. Construída a partir de quadros sociais,
tem fundo coletivo, uma vez que a evocação se constitui recorrendo aos outros.
Extrapola a consciência individual, criando um sentimento de pertença ao grupo, não
existindo fora do tempo e do espaço coletivos.
A eleição de formas de vida emblemáticas da originalidade e autenticidade faz
parte do processo de patrimonialização que vem ocorrendo nas sociedades modernas
ocidentais ao longo do último século. O reconhecimento da cultura material teve grande
contribuição para a valorização dos objetos como forma de resgate da memória de uma
coletividade, expressando seu patrimônio e herança cultural. Kirshemblatt-Gimblett
(op.cit.), contudo, chama a atenção para a necessidade de procurar entender os objetos
com foco no seu uso, e não somente na originalidade de sua criação, valorizando,
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portanto, além de artesãos/artistas, pessoas comuns que ao longo da vida, envolvem-se
necessariamente com objetos. Estes repertórios possuem poder de evocação, sendo,
portanto guardados e colecionados, através dos quais a vida é reunida e significada.
Largamente descritas, representadas e imaginadas (pelo discurso masculino),
as mulheres o relato histórico oficial relegou, ao longo de séculos, ao silêncio e à
invisibilidade. De acordo com Perrot (2007) , este fato se deve sobretudo ao silêncio das
fontes, ou a própria legitimidade delas, razão pela qual se observa a ausência de
discursos autênticos que revelem percepção feminina do mundo. No contexto da
escassez de vestígios materiais de mulheres comuns, os Cadernos de Receitas trazem
como contribuição este resgate da memória coletiva feminina, um relato histórico que
destaca sua ação no mundo.
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