resultados e discussão - universidade de coimbra...na escavação realizada (2007/2008) no...

1
Na escavação realizada (2007/2008) no edifício da Inquisição de Évora (1536-1821) foi recuperado, do Quintal da limpeza dos cárceres”, um mínimo de 16 indivíduos adultos, 12 em articulação (3 homens, 9 mulheres). Estes indivíduos terão morrido durante o encarceramento e os seus corpos descartados na lixeira em uso entre 1569 e 1634 (ver Magalhães, 2013). A dentição foi observada com lupa e boa iluminação e registado o grau de desgaste oclusal dos dentes existentes (Smith, 1984), e a presença/ausência de potenciais modificações dentárias. A dentição, ao interagir diretamente com o ambiente, retém evidências tanto do seu uso mastigatório (atrito), como da abrasão causada por materiais exógenos ou da erosão, isto é, a perda de esmalte e dentina resultante da ação de ácidos (Cruwys e Duhig, 1993; Alt e Pichler, 1998; Ogden, 2008). O desgaste extramastigatório artificial pode fornecer pistas sobre condições patológicas e/ou atividades realizadas pelo indivíduo. Objetivos deste estudo: descrever as alterações dentárias observadas em três indivíduos e interpretá-las à luz da literatura clínica e paleopatológica. Referências Introdução Indivíduos e métodos Resultados e discussão Conclusões e perpetivas futuras Departamento de Ciências da Vida e CIAS (Centro de Investigação em Antropologia e Saúde), Universidade de Coimbra Condições de vida e/ou hipercloridria. As M1, M3 e M4 podem ter origem na dissolução química do esmalte e da dentina, devido à acidez de vómitos crónicos (Cruwys, 1989; Alt e Pichler, 1998; Moynihan, 2005; Vreven et al., 2008). Cruwys e Duhig (1993) referem ainda como causas a ingestão de comida estragada por débeis condições de higiene, doenças como a febre tifóide, disenteria, cólera entre outras inespecíficas do sistema gástrico ou intestinal (Cruwys e Duhig, 1993). As etiologias relacionadas com a erosão , ou seja, provocadas pela ação química extrabacteriana, são uma hipótese plausível atendendo às parcas condições higiénicas dos cárceres. Outras etiologias. A M4 poderá dever-se também à recessão da gengiva, mineralização defeituosa da coroa cervical, stresse oclusal ou oclusão deficiente (Alt e Pichler, 1998). Modificação 1 (M1). “Espiculado” ou “serrilha” nos incisivos e caninos presentes no Ind. 2 (mais vincada nos mandibulares); Modificação 2 (M2). Perda atípica e total do esmalte dentário, com exposição da dentina na face mesial dos incisivos centrais superiores (Ind. 2); Modificação 3 (M3). As superfícies oclusais dos dentes anteriores presentes nos Ind. 2, 5 e 8 possuem uma depressão bastante pronunciada; Modificação 4 (M4). Perda ‘em forma de cunha’ (Alt e Pichler, 1998) junto à linha de junção cimento/esmalte na dentição anterior e posterior dos Ind. 2 e 8. Identificada de forma mais ou menos evidente nas quatro faces de cada dente. No Ind. 5 apresenta-se de forma ténue nos incisivos de ambos os lados, pré-molares, caninos e molares direitos, apenas na dentição mandibular. (1992) refiram que em populações ocidentais podem ser observadas entre costureiras (devido a linhas e alfinetes), cabeleireiras (ganchos), sapateiros e carpinteiros (pregos), carniceiros (cordas) sopradores de vidro, músicos, entre outros (Cruwys et al., 1992; Alt e Pichler, 1998). Os processos da Inquisição de Évora revelam as profissões de 41,4% (36 em 87) dos indivíduos que morreram entre 1568 e 1634. Entre os prisioneiros encontravam-se um alfaiate e um sapateiro, falecidos respetivamente a 8 de dezembro de 1585 (ANTT, proc. 8509) e a 23 de novembro de 1626 (ANTT, proc. 7450). Alotriofagia. Ou 'pica’, é um transtorno alimentar definido como a mastigação persistente e/ou consumo de substâncias não nutritivas como barro ou pedras (Piazza et al., 1998; Swift et al., 1999; Barker, 2005). É mais frequente em grávidas, crianças na 1ª infância ou em pessoas com deficiências de desenvolvimento (Piazza et al., 1998; Swift et al., 1999). As alterações que advêm deste transtorno parecem enquadrar-se na M1, embora o sexo e a idade do I2 o tornem menos provável. As características das dentições dos três indivíduos apontam para a ação de atividades ocupacionais e/ou hipercloridria. Este estudo acrescenta, assim, conhecimento sobre modificações dentárias pouco conhecidas na literatura paleopatológica Portuguesa. Indivíduo Modificação Diagnóstico diferencial I2 1, 2, 3 e 4 . Abrasão . Atividade ocupacional . Condições de vida . Hipercloridria . Alotriofagia I5 3, 4 . Condições de vida . Hipercloridria I8 3, 4 . Condições de vida . Hipercloridria Tabela. Indivíduos e respetivas modificações dentárias. Ind. 2 - Maxilar M4 M1 Ind.2 - Mandíbula M1 e M3 Ind. 8 - Mandíbula M4 Ind. 8 Maxilar M3 Ind. 2 - Maxilar M2 M3 A Ângela Araújo, Hugo Magalhães (http://www.pretoebranco.net/), Crivarque, Lda., Teresa Matos Fernandes e CIAS (PEst-OE/SADG/UI0283/2013). Agradecimentos Preservaram-se 126 dentes: 58 maxilares 36 (62,1%) com graus 1 a 4 de desgaste e 22 (37,9%) com graus 5 a 8 e 68 mandibulares 41 (60,3%) com graus 1 a 4 e 27 (39,7%) com graus 5 a 8. Três indivíduos adultos maduros (2 femininos Ind. 5 e Ind. 8 e 1 masculino Ind. 2) apresentam modificações dentárias atípicas à função mastigatória (tabela). Diagnóstico diferencial: Abrasão. Poderá ter causado M1 por contaminantes arenosos de moléculas de colagénio e celulose na comida ou através do uso dos dentes como instrumento/3ª mão (Cruwys, 1989; Mair et al., 1996; Kieser et al., 2001), pode ocasionar a M2. Atividades ocupacionais. As M1 e M2 poderão estar associadas às exigências mecânicas durante tarefas diárias. Não se encontraram paralelos para as alterações visíveis no Ind. 2, embora Cruwys et al. Alt KW, Pichler SL. 1998. Artificial modifications of human teeth. In: Alt et al. (eds.) Dental […] Wien, Springer-Verlag:387-415. ANTT, Arq Nac Torre do Tombo. Proc nº 8509 e 7450. Barker D. 2005.Tooth wear as a result of pica. Brit Dental J, 199(5): 271-273. Cruwys E. 1989. Tooth wear and the archaeologist: […]. In: Roberts et al. (eds.) Burial archaeology […]. Oxford, Bar series, 211: 151-166. Cruwys E, Duhig C. 1993. A possible case of dental erosion in a skull from the French Congo […]. Journal of Paleopathology, 5(1): 47-52. Cruwys E, Robb ND, Smith BGN. 1992. Anterior tooth notches: an Anglo-Saxon case study. Journal of Paleopathology, 4(3): 211-220. Kieser JA, Dennison KJ, Kaidonis JA; Huang D. et al. 2001. Patterns of dental wear in the Early Maori dentition. Int J Osteoarc, 11: 206-217. Magalhães BMS. 2013. Os irreconciliados da fé da Inquisição de Évora […]. Tese Mestrado em Evolução e Biologia Humanas. DCV-FCTUC. Mair LH, Stolarski TA, Vowles RW, Lloyd CH. 1996. Wear: mechanisms, manifestations and measurement. […]. J Dentistry, 24(1-2): 141-148. Moynihan PJ. 2005. The role of diet and nutrition in the etiology and prevention of oral diseases. Bulletin of the WHO, 83: 694-699. Ogden A. 2008. Advances in the palaeopathology of teeth and jaws […]. In: Pinhasi R, Mays S. (eds.) Advances […]. San Franc, Wiley: 282-307. Piazza CC, et al. 1998. Treatment of pica through multiple analyses of its reinforcing functions. J Applied Behavior Analysis, 31: 165-189. Smith BH. 1984. Patterns of molar wear in hunter-gathers and agriculturalists. American Journal of Physical Anthrop, 63: 39-56. Swift I, et al. 1999. Pica and trace metal deficiencies in adults with developmental disabilities. The British JDevelop Disabilities, 45(89): 111-117. Vreven J, et al. 2008. Lésions dentaires associées aux acides d’origine exogène et endogène. Acta Endoscopica, 3: 263-281.

Upload: others

Post on 22-Jul-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Resultados e discussão - Universidade de Coimbra...Na escavação realizada (2007/2008) no edifício da Inquisição de Évora (1536-1821) foi recuperado, do “Quintal da limpeza

Na escavação realizada (2007/2008) no edifício da Inquisição de Évora (1536-1821) foi recuperado, do “Quintal da limpeza dos cárceres”, um mínimo de 16 indivíduos adultos, 12 em articulação (3 homens, 9 mulheres).

Estes indivíduos terão morrido durante o encarceramento e os seus corpos descartados na lixeira em uso entre 1569 e 1634 (ver Magalhães, 2013).

A dentição foi observada com lupa e boa iluminação e registado o grau de desgaste oclusal dos dentes existentes (Smith, 1984), e a presença/ausência de potenciais modificações dentárias.

A dentição, ao interagir diretamente com o ambiente, retém evidências tanto do seu uso mastigatório (atrito), como da abrasão causada por materiais exógenos ou da erosão, isto é, a perda de esmalte e dentina resultante da ação de ácidos (Cruwys e Duhig, 1993; Alt e Pichler, 1998; Ogden, 2008). O desgaste extramastigatório artificial pode fornecer pistas sobre condições patológicas e/ou atividades realizadas pelo indivíduo.

Objetivos deste estudo: descrever as alterações dentárias observadas em três indivíduos e interpretá-las à luz da literatura clínica e paleopatológica.

Referências

Introdução Indivíduos e métodos

Resultados e discussão

Conclusões e perpetivas futuras

Departamento de Ciências da Vida e CIAS (Centro de Investigação em Antropologia e Saúde), Universidade de Coimbra

Condições de vida e/ou hipercloridria. As M1, M3 e M4 podem ter origem na dissolução química do esmalte e da dentina, devido à acidez de vómitos crónicos (Cruwys, 1989; Alt e Pichler, 1998; Moynihan, 2005; Vreven et al., 2008). Cruwys e Duhig (1993) referem ainda como causas a ingestão de comida estragada por débeis condições de higiene, doenças como a febre tifóide, disenteria, cólera entre outras inespecíficas do sistema gástrico ou intestinal (Cruwys e Duhig, 1993). As etiologias relacionadas com a erosão, ou seja, provocadas pela ação química extrabacteriana, são uma hipótese plausível atendendo às parcas condições higiénicas dos cárceres.

Outras etiologias. A M4 poderá dever-se também à recessão da gengiva, mineralização defeituosa da coroa cervical, stresse oclusal ou oclusão deficiente (Alt e Pichler, 1998).

Modificação 1 (M1). “Espiculado” ou “serrilha” nos incisivos e caninos presentes no Ind. 2 (mais vincada nos mandibulares); Modificação 2 (M2). Perda atípica e total do esmalte dentário, com exposição da dentina na face mesial dos incisivos centrais superiores (Ind. 2);

Modificação 3 (M3). As superfícies oclusais dos dentes anteriores presentes nos Ind. 2, 5 e 8 possuem uma depressão bastante pronunciada; Modificação 4 (M4). Perda ‘em forma de cunha’ (Alt e Pichler, 1998) junto à linha de junção cimento/esmalte na dentição anterior e posterior dos Ind. 2 e 8. Identificada de forma mais ou menos evidente nas quatro faces de cada dente. No Ind. 5 apresenta-se de forma ténue nos incisivos de ambos os lados, pré-molares, caninos e molares direitos, apenas na dentição mandibular.

(1992) refiram que em populações ocidentais podem ser observadas entre costureiras (devido a linhas e alfinetes), cabeleireiras (ganchos), sapateiros e carpinteiros (pregos), carniceiros (cordas) sopradores de vidro, músicos, entre outros (Cruwys et al., 1992; Alt e Pichler, 1998).

Os processos da Inquisição de Évora revelam as profissões de 41,4% (36 em 87) dos indivíduos que morreram entre 1568 e 1634. Entre os prisioneiros encontravam-se um alfaiate e um sapateiro, falecidos respetivamente a 8 de dezembro de 1585 (ANTT, proc. 8509) e a 23 de novembro de 1626 (ANTT, proc. 7450).

Alotriofagia. Ou 'pica’, é um transtorno alimentar definido como a mastigação persistente e/ou consumo de substâncias não nutritivas como barro ou pedras (Piazza et al., 1998; Swift et al., 1999; Barker, 2005). É mais frequente em grávidas, crianças na 1ª infância ou em pessoas com deficiências de desenvolvimento (Piazza et al., 1998; Swift et al., 1999). As alterações que advêm deste transtorno parecem enquadrar-se na M1, embora o sexo e a idade do I2 o tornem menos provável.

As características das dentições dos três indivíduos apontam para a ação de atividades ocupacionais e/ou hipercloridria.

Este estudo acrescenta, assim, conhecimento sobre modificações dentárias pouco conhecidas na literatura paleopatológica Portuguesa.

Indivíduo Modificação Diagnóstico diferencial

I2 1, 2, 3 e 4

. Abrasão

. Atividade ocupacional

. Condições de vida

. Hipercloridria

. Alotriofagia

I5 3, 4 . Condições de vida

. Hipercloridria

I8 3, 4 . Condições de vida

. Hipercloridria

Tabela. Indivíduos e respetivas modificações dentárias.

Ind. 2 -

Maxilar

M4

M1

Ind.2 - Mandíbula

M1 e M3 Ind. 8 - Mandíbula

M4

Ind. 8 –

Maxilar

M3

Ind. 2 - Maxilar M2 M3

A Ângela Araújo, Hugo Magalhães (http://www.pretoebranco.net/), Crivarque, Lda., Teresa Matos Fernandes e CIAS (PEst-OE/SADG/UI0283/2013).

Agradecimentos

Preservaram-se 126 dentes: 58 maxilares – 36 (62,1%) com graus 1 a 4 de desgaste e 22 (37,9%) com graus 5 a 8 – e 68 mandibulares – 41 (60,3%) com graus 1 a 4 e 27 (39,7%) com graus 5 a 8. Três indivíduos adultos maduros (2 femininos – Ind. 5 e Ind. 8 – e 1 masculino – Ind. 2) apresentam modificações dentárias atípicas à função mastigatória (tabela).

Diagnóstico diferencial: Abrasão. Poderá ter causado M1 por contaminantes arenosos de moléculas de colagénio e celulose na comida ou através do uso dos dentes como instrumento/3ª mão (Cruwys, 1989; Mair et al., 1996; Kieser et al., 2001), pode ocasionar a M2.

Atividades ocupacionais. As M1 e M2 poderão estar associadas às exigências mecânicas durante tarefas diárias. Não se encontraram paralelos para as alterações visíveis no Ind. 2, embora Cruwys et al.

Alt KW, Pichler SL. 1998. Artificial modifications of human teeth. In: Alt et al. (eds.) Dental […] Wien, Springer-Verlag:387-415.

ANTT, Arq Nac Torre do Tombo. Proc nº 8509 e 7450.

Barker D. 2005.Tooth wear as a result of pica. Brit Dental J, 199(5): 271-273.

Cruwys E. 1989. Tooth wear and the archaeologist: […]. In: Roberts et al. (eds.) Burial archaeology […]. Oxford, Bar series, 211: 151-166.

Cruwys E, Duhig C. 1993. A possible case of dental erosion in a skull from the French Congo […]. Journal of Paleopathology, 5(1): 47-52.

Cruwys E, Robb ND, Smith BGN. 1992. Anterior tooth notches: an Anglo-Saxon case study. Journal of Paleopathology, 4(3): 211-220.

Kieser JA, Dennison KJ, Kaidonis JA; Huang D. et al. 2001. Patterns of dental wear in the Early Maori dentition. Int J Osteoarc, 11: 206-217.

Magalhães BMS. 2013. Os irreconciliados da fé da Inquisição de Évora […]. Tese Mestrado em Evolução e Biologia Humanas. DCV-FCTUC.

Mair LH, Stolarski TA, Vowles RW, Lloyd CH. 1996. Wear: mechanisms, manifestations and measurement. […]. J Dentistry, 24(1-2): 141-148.

Moynihan PJ. 2005. The role of diet and nutrition in the etiology and prevention of oral diseases. Bulletin of the WHO, 83: 694-699.

Ogden A. 2008. Advances in the palaeopathology of teeth and jaws […]. In: Pinhasi R, Mays S. (eds.) Advances […]. San Franc, Wiley: 282-307.

Piazza CC, et al. 1998. Treatment of pica through multiple analyses of its reinforcing functions. J Applied Behavior Analysis, 31: 165-189.

Smith BH. 1984. Patterns of molar wear in hunter-gathers and agriculturalists. American Journal of Physical Anthrop, 63: 39-56.

Swift I, et al. 1999. Pica and trace metal deficiencies in adults with developmental disabilities.The British JDevelop Disabilities, 45(89): 111-117.

Vreven J, et al. 2008. Lésions dentaires associées aux acides d’origine exogène et endogène. Acta Endoscopica, 3: 263-281.