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Revista Acadêmica da Graduação em Letras
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANAISSN 2179-4278
v. 8 n. 11 2017
J
Revis
ta
Universidade Estadual de Feira de Santana
v. 8 n. 11 2017
Graduando ENTRE O SER E O SABER
Revista Acadêmica da Graduação em Letras
Graduando Feira de Santana v. 8 n. 11 p. 1-214 2017
ISSN 2236-3335
R e i t o r
E v a n d r o d o N a s c i m e n t o S i l v a
V i c e - R e i t o r a
N o rma L ú c i a F e r n a n d e s d e A l m e i d a
P r ó - R e i t o r d e E n s i n o d e G r a d u a ç ã o
Ama l i d e A ng e l i s Mu s s i
P r ó - R e i t o r d e P e s q u i s a e P ó s - G r a d u a ç ã o
E u r e l i n o T e i x e i r a C o e l h o N e t o
P r ó - R e i t o r d e E x t e n s ã o
M á r c i o C amp o s O l i v e i r a
P r ó - R e i t o r d e Adm i n i s t r a ç ã o e F i n a n ç a s
C a r l o s E d u a r d o C a r d o s o d e O l i v e i r a
P r ó - R e i t o r a d e P o l í t i c a s A f i r m a t i v a s e As s u n t o s E s t u d a n t i s
An a M a r i a C a r v a l h o d o s S a n t o s
D i r e t o r a d o D e p a r t a me n t o d e L e t r a s e A r t e s
F l á v i a An i n g e r d e B a r r o s R o c h a
C o o r d e n a d o r a d o C o l e g i a d o d e L e t r a s V e r n á c u l a s
P r o f a . N e lm i r a M o r e i r a d a S i l v a
C o o r d e n a d o r d o Co l e g i a d o d e L e t r a s : P o r t u g u ê s e E s p a n h o l
P a t r í c i o N u n e s B a r r e i r o s
C o o r d e n a d o r a d o C o l e g i a d o d e L e t r a s : P o r t u g u ê s e F r a n c ê s
L i v i a n e G ome s A t a í d e S a n t a n a
C o o r d e n a d o r a d o C o l e g i a d o d e L e t r a s : P o r t u g u ê s e I n g l ê s
M a r l a S i l v a d o V a l e S a t o r n o
C o o r d e n a d o r a d e A s s u n t o s E s t u d a n t i s
C a s s i a A r a ú j o d a s N e v e s S a n t o s
S i s t e ma I n t e g r a d o d e B i b l i o t e c a s
M a r i a d o C a rm o S á B a r r e t o F e r r e i r a
D i r e t ó r i o Ac a d êm i c o d e L e t r a s e J o s é J e r ô n im o d e M o r a i s
G e s t ã o T r a n s f o rma r t e ( 2 0 1 7 - 2 0 1 8 )
I n s t i t u c i o n a l
G r a d u a n d o ENTRE O SER E O SABER
Revista Acadêmica da Graduação em Letras
v..8 n..11 2017
UEFS / R ev i s t a G r a d u a n do
Av e n i d a T r a n s n o r d e s t i n a , S / N , B a i r r o N o v o H o r i z o n t e . Mó d u l o 2 , MT 2 5 b .
C E P 44 0 3 6 - 9 00 – F e i r a d e S a n t a n a – B a h i a – B r a s i l . T e l . : 3 1 6 1 - 8 0 00
H ome : h t t p : / /www2 . u e f s . b r / d l a / g r a d u a n d o E -m a i l : r e v i s t a g r a d u a n d o @ gma i l . c om
F a c e b o o k : h t t p : / /www . f a c e b o o k . c om/ r e v i s t a g r a d u a n d o B l o g : www . r e v i s t a g r a d u a n d o . b l o g s p o t . c om
E xped i e n t e Com i s são Ed i t o r i a l
D r . A d i e l s o n R am o s d e C r i s t o
D r a . A l a n a d e O l i v e i r a F r e i t a s E l F a h l
D r a . A l e s s a n d r a L e i l a B . G om e s Á l l e x L e i l l a
D r a . C a r l a L u z i a C a r n e i r o B o r g e s
D r a . C e l i n a M á r c i a d e S o u z a A b b a d e
D r . C i d S e i x a s F r a g a F i l h o
D r . C l a u d i o C l e d s o n N o v a e s
M e . C l e d s o n J o s é P o n c e M o r a i s
M e . D a n i l o C e r q u e i r a A l m e i d a
D r . E d s o n D i a s F e r r e i r a
M a . E l i z a b e t e B a s t o s d a S i l v a
D r a . E l v y a S h i r l e y R i b e i r o P e r e i r a
D r a . F l á v i a A n i n g e r B a r r o s R o c h a
D r . F r a n c i s c o F e r r e i r a d e L i m a
D r . G i l b e r t o N a z a r e n o T e l l e s S o b r a l
D r . H um b e r t o L u i z L i m a d e O l i v e i r a
D r a . J a q u e l i n e B a r r e t o L é
D r a . J o l a n t a R e k aw e k
D r a . J o s a n e M o r e i r a d e O l i v e i r a
Ma . J o s e n i l c e R o d r i g u e s d e O l i v e i r a B a r r e t o
M e . J u r a c i D ó r e a F a l c ã o
M a . L i z S a n d r a S o u z a e S o u z a
M e . N i g e l A l a n H u n t e r
M a . N e l m i r a M o r e i r a d a S i l v a
M e . M a r c e l o B r i t o d a S i l v a
D r a . M a r i a d a C o n c e i ç ã o R e i s T e i x e i r a
M a . M a r i a n a B a r b o s a B a t i s t a
D r a . M a r i a n a F a g u n d e s d e O l i v e i r a
D r a . N o rm a L ú c i a F e r n a n d e s d e A l m e i d a
D r a . P a l m i r a V i r g i n i a B a h i a H e i n e A l v a r e z
D r a . R i t a d e C á s s i a R i b e i r o d e Q u e i r o z
M a . V a l é r i a M a r t a R i b e i r o S o a r e s
D r a . Z e n a i d e d e O l i v e i r a N o v a i s C a r n e i r o
P r o j e t o G r á f i c o C o n s e l h o E d i t o r i a l
I mp r e s s ão I m p r e n s a U n i v e r s i t á r i a — U E F S
E d i t o r a ç ão Me . D a n i l o C e r q u e i r a A l m e i d a
Cap a Me . D a n i l o C e r q u e i r a A l m e i d a
F o t o g r a f i a d e Ca p a L u c a s S o u z a B r a s i l
T i r a gem ( e d i ç ã o imp r e s s a ) 3 0 0 e x em p l a r e s
Web De s i g n ( s i t e ) Me . D a n i l o C e r q u e i r a A l m e i d a
Web De s i g n ( b l o g ) Me . D a n i l o C e r q u e i r a A l m e i d a
Conse l h o Ed i t o r i a l
Me . D a n i l o C e r q u e i r a A l m e i d a
Ma . J o s e n i l c e R o d r i g u e s d e O l i v e i r a B a r r e t o
Rev i s ã o
Ma . A l i n e d a S i l v a S a n t o s
M a . D a i a n n a Q u e l l e d a S . S a n t o s d a S i l v a
D a n i e l a R o c h a d e F r a n ç a
M a . D a y a n e M o r e i r a L em o s
M a . D i n am e i r e O l i v e i r a C a r n e i r o R i o s
M a . E d n a R i b e i r o M a r q u e s Amo r i m
E n a C a r o l i n e L é l i s X a v i e r
E s p . É r i k a R am o s d e L i m a A u r e l i a n o
M a . E l i s A n g e l a F r a n c o F e r r e i r a S a n t o s
M a . F e r n a n d a d o s S a n t o s A l m e i d a
M a . J a c i e n e d e A n d r a d e S a n t o s
M e . J a n C a r l o s D i a s d e S a n t a n a
J é s s i c a C a r n e i r o d a S i l v a
M e . J o e l s o n S a n t i a g o S a n t o s
E s p . L a y a n n a M a r t h a P i r e s d e A r a ú j o
E s p . L i d i a n e F e r r e i r a S i l v a
M a . L i v i a n e G om e s A t a í d e S a n t a n a
E s p . O d a r a P e r a z z o R o d r i g u e s
M e . S h i r l e y C r i s t i n a G u e d e s d o s S a n t o s
M a . S i l v a n i a C á p u a C a r v a l h o
S u z a n a d a S i l v a S o u z a
M a T á r c i a P r i s c i l a L i m a D ó r i a
M a . V a l e r i a R i o s O l i v e i r a A l v e s
Wa d i s l l a n e B o r g e s S a n t o s
R e v i s ã o F i n a l
Ma . A n d r e i a F e r r e i r a A l v e s C a r n e i r o
E s p . C l a r i s s e B e z e r r a d e S a n t a n a
M e . D a n i l o C e r q u e i r a A l m e i d a
M a . E d i n a g e M a r i a C a r n e i r o d a S i l v a
M e . Em e r s o n S a n t o s d e S o u z a
Ma . J o s e n i l c e R o d r i g u e s d e O l i v e i r a B a r r e t o
M a . M a r i a n a B a r b o s a B a t i s t a
No rm a t i z a ç ã o B i b l i o g r á f i c a
Me . D a n i l o C e r q u e i r a A l m e i d a
Ma . J o s e n i l c e R o d r i g u e s d e O l i v e i r a B a r r e t o
M a . M a r i a n a B a r b o s a B a t i s t a
Co l a bo r a ç ão
A l f r e d o V i c t o r S o u z a d e A l m e i d a
J e s s i c a M i n a d e S o u s a
L a i l l a B a t i s t a S o a r e s
L a r a d a S i l v a C a r d o s o
M a . M a r i a n a B a r b o s a B a t i s t a
R h i l l a r y L o p e s V i e i r a
V a n e s s a d o s S a n t o s P e r e i r a
R e v i s t a G r a d u a n d o 2 0 1 7 . É p e rm i t i d a a r e p r o d u ç ã o , d e s d e q u e c i t a d a a f o n t e .
Sumário
ED I TOR IAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p á g i n a 7
E D UC AÇÃ O ENS I NO D E PORTUGUÊS : E NTÃO ME CONTE S EUS “ P ROBLEMAS ” J e s s i c a M i n a d e S o u s a , R e g i a n e d e S o u z a C o s t a . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p á g i n a 1 3
L I N GU Í S T I C A ED IÇÃO FAC -S IM I LAR , D I P LOMÁT ICA E MODERN I ZADA D E UMA
QUE IXA -CR IM E DE FURTO DO S ÉCULO XX S t e p h a n n e d a C r u z S a n t i a g o , B r u n a S o u z a R o c h a O l i v e i r a , N a t h a l i a d o s S a n t o s
D a n t a s . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p á g i n a 2 9
A L I NGU Í ST ICA MODERNA E F ERD I NAND DE SAUSSURE : D I SCUT I NDO
CONCE I TOS M a x S i l v a d a R o c h a . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p á g i n a 4 3
ABORDAGEM TRAD IC IO NAL E ABORDAGEM L I NGU Í ST ICA : UMA
REFLEXÃO CR Í T I CA SOBRE A CONCEPÇÃO D E ANÁL I SE S I NTÁT ICA We l b e r N o b r e d o s S a n t o s , V e r a L ú c i a V i a n a d e P a e s . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p á g i n a 5 9
AS R EGÊNC IAS DOS VER BOS ASS I ST I R E NAMORAR NO PORTUGUÊS
BRAS I L E I RO E O DESAF I O DO P ROF ESSOR D E L Í NGUA PORTUGUESA
DA EDUCAÇÃO BÁS ICA M a n o e l C r i s p i n i a n o A l v e s d a S i l v a , I s a ú S i l v a L i m a . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p á g i n a 7 5
L I T E RAT UR A O CAMPO AOS OLHAR ES D E EÇA D E QUE I ROZ E CESÁR IO V ERD E A l i n e d e F r e i t a s S a n t o s . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p á g i n a 8 9
OS ASP ECTOS DO NARRADOR D E WALTER BENJAM IN : D IÁLOGOS E
A F I N I DAD ES ENTR E JOSÉ LUAND I NO V I E I RA E JOÃO GU IMARÃES
ROSA R a f a e l M a r t i n s N o g u e i r a . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p á g i n a 1 0 3
A I N F I D EL I DADE NO T EATRO V IC ENT I NO : UM ESTUDO DO AUTO DA Í ND IA C r i s t i n a S u l i v â n i a O l i v e i r a N u n e s . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p á g i n a 1 1 3
D E MACHADO DE ASS I S A MOACYR SCL IAR : ESTUDO COMPARAT IVO
ENTRE OS P ERSONAGENS P R I NC I PA I S D E C IUMENTO D E CARTE I R I N HA
E DOM CASMURRO SOB A P ERSP ECT IVA PS ICOLÓG ICA B i a n c a G r e l a , C a m i l a H e l o i s e P a e s . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p á g i n a 1 2 7
AS R EPRES ENTAÇÕES F EM I N I NAS E SUAS RASURAS NOS
ESTER EÓT I POS SOC IA I S EM PONC IÁ V IC ÊNC IO D o u g l a s S a n t a n a A r i s t o n S a c r am e n t o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p á g i n a 1 3 9
O CORPO F EM I N I NO NA POES IA GAL EGO -PORTUGUESA :
COMPARAÇÕES E NTRE AS CANT IGAS D E AMOR E AM IGO L a r a d a S i l v a C a r d o s o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p á g i n a 1 5 1
A P ERS I STÊNC IA DO I D EÁR IO CAVALE I R ESCO MED I EVAL EM
AB I SMO , D E CARLOS R I B E I RO D a n i e l e d a C r u z A l m e i d a . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p á g i n a 1 6 5
REFLEXÕES SOBR E A HOMOAFET IV I DADE NO CONTO “AQUELES
DO I S ” D E CA IO F ERNANDO ABR EU A n d r é a S a n t o s C o s t a A l e x a n d r e P e d r o s a . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p á g i n a 1 8 1
L I T ERATURA E SOC I EDADE : R E FL EXÕES À LUZ D E UM HOMEM : KLAUS KLUMP , D E GONÇALO M . TAVARES F i l i p e A r a u j o d o s S a n t o s , M a n u e l a S o l a n g e S a n t o s d e J e s u s , R o s a n a d o s S a n t o s
S o a r e s . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p á g i n a 1 9 7
V IOLETA : ENTRE EL D EB ER Y EL D ES EO A l i n e d e F r e i t a s S a n t o s . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p á g i n a 2 0 3
NORMAS PARA ENV IO D E ART IGOS E R ESENHAS C o n s e l h o E d i t o r i a l . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p á g i n a 2 1 1
G
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ED I TOR IAL
Chegamos a ma i s uma ed i ção da Graduando : en t re o se r e o sabe r . É o momen to de sen t i r a sa t i s fação po r ma i s um
t r aba l ho cumpr i do , na passagem de um ano de a t i v i dades
p l ane j adas , v i venc i adas e comemoradas a i nda ma i s ago ra ,
quando podemos pe rcebe r que o p rocesso de l e i t u ras e
re l e i t u ras p ropo rc ionou um ma te r i a l que car rega , en t re t an t as
i de i as e mot i vações , a memór i a , a d i spos ição , a so l i d a r i edade , a
rep resen t a t i v i dade e o reconhec imento a t odas e a t odos os
responsáve i s po r es t a pub l i c ação pe r i ód i ca do cu rso de Le t r as
da UEFS .
A h i s t ó r i a da rev i s t a pode se r con t ada pe l as pessoas que
f azem ou f i ze ram par t e dos conse l hos , com i ssão , equ i pes e
co l abo rado res das a t i v i dades re l ac i onadas ao pe r i ód i co . O
co t i d i ano de a t i v i dades , os re l ac i onamentos com cada ( f u t u ro )
au to r ( a ) de t ex to , cada ava l i ado r ( a ) , cada rev i so r ( a ) , cada
i n t e ressado (a ) em sabe r a respe i t o das a t i v i dades da rev i s t a
em espaços de comun i cação e de d i vu l gação como o e -ma i l , o
Facebook , o b l ogue e p resenc i a lmen te , ca ra a ca ra . . . são
momen tos em que se o f e rece ao ou t ro em nosso d i á l ogo a
mensagem que ca r rega o con jun to de expe r i ênc i as , de v i são
mora l e de é t i c a sob re as a t i v i dades desenvo lv i das pe l a
rev i s t a . Essas pessoas , em seu (s ) momento ( s ) de con t a to com
a l guém que f az ou f ez pa r te de nosso pe r i ód i co , podem sabe r
i n f o rmações de seu i n t e resse , v i sando a l gum ob j e t i vo : um
t r aba l ho pub l i c ado , um t ex to d i vu l gado , um apo i o em assun tos
nos qua i s o pe r i ód i co pode a j uda r . Também que rem encont ra r ,
mesmo que não exp l i c i t em em seu d i scu rso , c red i b i l i d ade , uma
pos tu ra m in imamen te ace i t áve l em re l ação ao que se dese j a
com o ped i do , i n f o rmação ou re l ac i onamento . Des t acamos a
I S S N 2 2 3 6 - 3 3 3 5
G
c red i b i l i d ade , a con f i ab i l i d ade em nosso pe r i ód i co . Mu i t os e
mu i t as con f i am e mu i tos c red i t am nosso per i ód i co d i scen t e de
Le t r as da UEFS .
O p r ime i r o i dea l i z ador da rev i s t a , c red i t ado po r sua
p ro fesso ra de L i t e ra t u ra em sa l a de au l a , t eve a i de i a de c r i a r
o pe r i ód i co e t eve o c réd i t o de ou t r as 4 pessoas . Es tes 4
g raduandos em Le t ras , ma i s o i dea l i z ado r , o rgan i za ram o
pe r i ód i co e comun i ca ram p ro fesso res e se to res da UEFS sob re
a i de i a . Os 5 g raduandos t i ve ram a con f i ança de t odos os
se to res v i s i t ados pa ra o apo i o ao en tão novo p ro j e t o : uma
rev i s t a acadêm ica da g raduação em Le t ras da UEFS . Ao l ongo
desses se te anos , a v i da a f as t ou a l guns de nossos
i d ea l i z ado res , c red i t ado res e “con f i ado res ” . Aos que nos f o ram
a f as t ados pe l a v i da , r es t a -nos a memór i a , r es t a - l hes a
memór i a , p rovave lmen te uma das mot i vações soc i a i s ma i s
devas t adas da ( e não pe l a ) cu l t u ra b ras i l e i r a . Sempre es t amos
em p rocesso t endenc ioso de rea l i z a r ações sem pe rcebe r o
quan to a memór i a sob re o con tex to da s i t uação em que
es t amos pode mudar a dec i são a t omar . Toda vez que a
Graduando l a nça um número , sua memór i a va i sendo marcada
em um número exponenc i a l de pessoas , sempre à med i da em
que f azem da l e i t u ra , da rev i s t a , uma a t i v i dade con f i áve l .
Toda pessoa que o rgan i za , esc reve , l ê , ava l i a , r ev i sa ,
co l abo ra e i ncen t iva a rev i s t a , con f i a no t raba l ho que é fe i t o .
O t amanho de nossa conf i ança no ( a ) g raduando (a ) em Le t ras ,
e em todas as pessoas envo lv i das com o pe r i ód i co , só
aumen tou nesse t empo de ex i s t ênc i a : dos es tudan tes de 20 10
pa ra os de 20 17 , do cu rso de Le t r as de nossa un i ve rs i dade
pa ra os dema i s cu rsos de Le t r as do B ras i l . A conf i ança de
mu i t as pessoas na rev i s ta t em aumen tado o nosso c réd i t o
pe ran t e a comun idade acadêm ica , no reconhec imen to ao
t r aba l ho rea l i z ado , com a c i t ação em , pe l o menos , ma i s de 50
t r aba l hos acadêm icos , en t re a r t i gos , monogra f i as , d i sse r t ações
e t eses , como t ambém em mate r i a i s pedagóg i cos e pos t agens
de b l ogue . En t re t an to , o pe rcu rso da l e i t u ra e das l e t r as pode
G
G
G
G G
G G
se r i den t i f i c ado , descobe r to , mas sempre pa rc i a lmen te
mapeáve l . De nossa pa r t e , encon t ra r o poss í ve l sob re a
recep t i v i dade à rev i s t a Graduando : en t re o se r e o sabe r s i gn i f i c a exemp l i f i c a r uma t roca de conf i ança : con f i amos em
vocês , l e i t o res do mundo t ocado pe l o pe r i ód i co , e vocês
conf i am em nós : con f i a -se a quem se pede e se conf i a ao que
pede .
T roca r conf i ança , den t re as a t i v i dades humanas , é um
dos compor tamen tos mo t i vado res das re l ações soc i a i s , e dos
ma i s ex i t osos nas re l ações acadêm icas . Exp l i c i t ando que as
re l ações acadêm icas são soc i a i s , de t r aba l ho , mu i t as vezes
i n t ens i f i c adas ao l ongo da v i da , nosso p ro j e t o acadêm ico de
pe r i ód i co t em anga r i ado mu i t os “conf i ado res ” . Nós con f i amos
na capac i dade de l e i t u ra de les ; e l e s passam a con f i a r em nós
pe l o conhec imento de nosso t r aba l ho e de suas necess i dades ,
se j am es t as de cunho acadêm ico ou não , do que podem
pe rcebe r de nossa pos tu ra a pa r t i r da pe rspec t i va em que
es t ão . Nosso ag radec imento deve se r sempre pe r i ód i co , como
cada l e t r a que pode – e deve – se r re i n t eg rada a cada nova
pa l av ra , a qua l , ass im , sup re a necess i dade de f a l a r de nossa
p róp r i a h i s t ó r i a , emerg i r -nos da p róp r i a memór i a com a
a t ua l i d ade e a rep resen t a t i v i dade que o t empo , do qua l t ambém
f azemos pa r te , p rec i sa , mas que em mu i t as ocas i ões nos
ap resen t a na cond i ção de m ino r i a , marcada po r i númeras
f o rmas de v i o l ênc i a . Todos os que esc revem ou f a l am , f azem -
no em ú l t ima aná l i se pa ra de i xa r um pouco de s i pa ra o que
pode have r de seme lhan t e no ou t ro , no p róx imo l e i t o r/ouv in t e ,
num d i á l ogo que os une enquan to povo que l ê , que ouve , que
compar t i l h a , a exemp l o do t ema que marcou a XV Semana de
Le t r as da UEFS , no ano de 20 17 , r ea l i z ada pe l o nosso D i r e t ó r i o
Acadêm ico de Le t r as : “Po r l e t r as que con tem nossas h i s t ó r i as :
o mov imen to da l í ngua enquan to i den t i dade de um povo ” .
Conse l ho Ed i t o r i a l
EDUCAÇÃO
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 1 3 - 2 6 , 2 0 1 7
I S S N 2 2 3 6 - 3 3 3 5
E N S I NO D E PO R TUG U Ê S : E N TÃ O M E CO NT E
S EU S “ P R O BL EM AS ”
J e s s i c a M i n a d e S o u s a
U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e F e i r a d e S a n t a n a ( U E F S )
L i c e n c i a t u r a em L e t r a s c om I n g l ê s
j em i n a _ b o@ h o tm a i l . c om
R e g i a n e d e S o u z a C o s t a
U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e F e i r a d e S a n t a n a ( U E F S )
L i c e n c i a t u r a em L e t r a s c om E s p a n h o l
r e g i a n e . v e i g a @ h o tm a i l . c om
P r o f a . M e . H e l o í s a B a r r e t o B o r g e s ( O r i e n t a d o r a )
U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e F e i r a d e S a n t a n a ( U E F S )
D e p a r t am e n t o d e E d u c a ç ã o
i s a b b o r g e s @ h o tm a i l . c om
Resumo : O ob j e t i v o des t e t r aba l h o é exp l a na r a l g uns aspec t os
d o e n s i n o - a p r e n d i z a g em d a L í n g u a P o r t u g u e s a n a E duc a ç ã o
B á s i c a , a p a r t i r d o q u e A n t u n e s ( 2 0 0 3 ) , B e c h a r a ( 2 0 0 9 ) ,
M a r cu sc h i ( 2 008 ) , M a t e n c i o ( 2 0 1 2 ) e Mene ze s ( 2 0 1 5 ) d i s c u t em
s o b r e e s s a t em á t i c a . E n t r e a s q u e s t õ e s e x p o s t a s a o l o n g o
de s t e a r t i g o e s t á a “ g r amá t i c a e l i t i s t a ” , c om f oco n a co r r e ç ão
d a o r a l i d a de , bem como a p r edom i n ânc i a do gêne ro mascu l i n o
n a s f l e x õ e s n om i n a i s . E s s e s f a t o s r e p r e s e n t am a l g u n s d o s
“ p r o b l emas ” ex i s t e n t e s n o e n s i n o da l í n g u a q ue a f e t am a su a
qua l i d ade , sob re t udo na r ede púb l i c a , c u j o s a l u nos , n a ma i o r i a
d as vezes , t êm d i f i c u l d ades s oc i o e conôm i c as pa r a t e r acesso
a o a m b i e n t e e s c o l a r . A s s i m , p e r c e b e - s e , a o l o n g o d e s t e
e s t udo , que a l g umas p r á t i c a s do ens i n o de L í n gua Po r t uguesa
exc l u em , de ce r t a f o rma , a l g un s f a l a n t e s , uma vez que ex i s t e
u m m o d e l o d e f a l a e e s c r i t a p a d r ã o q u e m a r g i n a l i z a e
des leg i t ima aque l es que não o ado t am .
Pa l av r as -chave : Ens i no de Po r t uguês . O ra l i d ade . P redom in ânc i a
do gêne ro mascu l i no .
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 1 3 - 2 6 , 2 0 1 7
1 I N T R O D U Ç Ã O
“M i nha pá t r i a é m i nha l í ngua . ” Começando com a cé l eb re
f r ase do can to r b ras i l e i r o Cae t ano Ve l oso , i nsp i r ada pe l o poe t a
po r t uguês , Fe rnando Pessoa , o qua l se i den t i f i c a com o pa t r i -
môn i o cu l t u ra l da l í ngua f a l ada po r e l e , des t aca -se , nes t e
t r aba l ho , a impo r t ânc i a de va l o r i za r os d i ve rsos d i a l e tos
ex i s ten t es na L í ngua Po r t uguesa , po i s , como d i z Becha ra
( 2009 , p . 23 ) , “o po r tuguês é um mosa ico d i a l e t a l ” . Es te , po r
sua vez , t em s i do impos to em mu i t as esco l as como sendo uma
no rma pad rão exc l us iva e abso l u t a , es t i gma t i zando os f a l an t es
que não se ap rop r i am do mode l o t r ad i c i ona l .
Como c r í t i c a ao an t i go mode l o de ens i no , a i nda usado em
d i ve rsas esco l as , Bagno ( 20 1 2 ) , no d i scu rso p ro fe r i do em au l a
magna pa ra es tudan tes de Le t r as da UFSCar , d i z que o que
t emos ho j e são cu rsos de Le t r as comp le tamen te de f asados ,
nos qua i s “mes t res e dou to res que p ro fessam nas Le t r as se
compor t am como se es t i vessem a l i pa ra f o rmar g randes esc r i -
t o res e c r í t i c os l i t e r á r i os , ou f i l ó l ogos e gramát i cos do pe r f i l
ma i s t r ad i c i ona l poss í ve l ” . Logo , pe rcebe -se que a f o rmação
dos es tudan tes de Le t r as a i nda não es t á comp l e t amen te vo l t a -
da pa ra a rea l i d ade dos f a l an t es de po r tuguês , como deve r i a
se r .
Pensando numa c rono l og i a pa ra as f o rmas da l í ngua
po r t uguesa , Becha ra ( 2009 , p . 25 ) a d i v i de em qua t ro f ases :
Po r t uguês Arca ico ( sécu l o X I I I -X IV ) , Po r tuguês Arca i co Méd i o
( sécu l o XV -XVI ) , Po r t uguês Mode rno ( segunda me tade do
sécu l o XV I a té o i n í c i o do sécu l o XV I I I ) e Po r t uguês Contem -
po râneo ( sécu l o XVI I I aos d i as a t ua i s ) . I sso comprova , j un t o a
ou t ros es tudos , a p r imo rd i a l i d ade das mod i f i c ações pe l as qua i s
a l í ngua po r t uguesa passou .
Logo , pa r t i ndo da i de i a de que a l í ngua é um s i s t ema v i vo
que es t á subme t i do a mudanças cons t an temente , passa a se r
óbv i a a necess i dade de t o rna r mu táve l a p rá t i c a de ens i no , a
qua l j á f o i e con t i nua sendo d i scu t i da pe l os Pa râme t ros
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Cur r i cu l a res Nac i ona i s ( PCNs ) (BRAS IL , 1 998 ) e pe l o S i s t ema
Nac i ona l de Ava l i ação da Educação Bás ica (SAEB ) (BRAS IL ,
20 17? ) . Po rém , essas d i scussões a i nda não chega ram a t odos
os cu rsos de f o rmação de p ro fesso res , espec i a lmen te no que
se re fe re aos cu rsos de Le t r as , uma vez que a i nda há mu i t os
docen tes i ns i s t i ndo nos mé todos ma i s t r ad i c i ona i s , que a f as t am
os a l unos não só da esco l a , como t ambém do i n t e resse de
es tuda r a l í ngua que fa l am .
Um e x ame m a i s c u i d a d o s o d e c omo o e s t u d o d a l í n g u a p o r t u g u e s a a c o n t e c e , d e s d e o E n s i n o F u n d a -m en t a l , r e v e l a a p e r s i s t ê n c i a d e c omo um a p r á t i c a p e d ag ó g i c a q u e , em m u i t o s a s p e c t o s , a i n d a m a n t ém a p e r s p e c t i v a r e d u c i o n i s t a d o e s t u d o d a p a l a v r a e d a f r a s e d e s c o n t e x t u a l i z a d a s . ( A N TUN ES , 2 0 0 3 , p . 1 9 ) .
Dessa f o rma , o ens i no de Po r t uguês é v i s t o como des i n -
t e ressan te e/ou d i f í c i l pa ra os a l unos , po i s e l e s cons i de ram o
ap rend i zado de l í ngua po r t uguesa i na l c ançáve l , j á que “a norma
con tém tudo o que na l í ngua não é f unc i ona l [ . . . ] ” ( BECHARA ,
2009 , p . 42 , g r i f o do au to r ) . Por i sso , “um dos p r i nc i pa i s
ob j e t i vos ge ra i s do ens i no do Po r t uguês é desenvo l ve r a
compe tênc i a da comun i cação ” (LOPES , 1 984 , p . 245 apud
MARCUSCH I , 2008 , p . 54 ) . Todav i a , as c r i anças adqu i rem t a l
compe tênc i a em suas v i vênc i as d i á r i as , j us t i f i c ando a não
necess i dade de focar o ens i no de Po r tuguês sob re essa
ques t ão .
No t a -se , ass im , que não es t á c l a ro nem para os a l unos ,
nem pa ra a esco l a que sua f unção não é a de ens i na r a c r i an -
ça , j ovem ou adu l t o a f a l a r , mas s im a usa r as compe tênc i as
comun ica t i vas ( como a esc r i t a , mas não apenas e l a ) nos ma i s
d i ve rsos espaços . A l ém do ma i s , se pensa rmos no ens i no de
po r t uguês po r sua ve r ten te e l i t i s t a , que p r i v i l e g i a os f a l an t es
da no rma cu l t a e que impõe uma g ramá t i c a na qua l p redom ina
o gêne ro mascu l i no nas f l exões nom ina i s , começaremos a
de tec t a r os p r i nc i pa i s p rob l emas ex i s ten tes ava l i ados po r es te
es tudo nas au l as de Po r t uguês .
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2 E N S I N O D E P O R T U G U Ê S : E N T Ã O , M E C O N T E S E U S
“ P R O B L E M A S ”
2 . 1 O F O C O N O E N S I N O D A E S C R I T A
“ Em p r ime i r o l uga r , há aqu i um des l ocamen to da f unção
da esco l a como vo l t ada exc lus i vamen te pa ra o ens i no da
esc r i t a ” (MARCUSCH I , 2008 , p . 55 ) . A pa r t i r d i sso , pe rcebe -se
que o f oco dado pe l a esco l a pa ra o ens i no da esc r i t a desva l o -
r i za , na ma i o r i a das vezes , ou t r as compe tênc i as t ambém
impor t an t es pa ra os educandos , como , po r exemp l o , as a t i v i da -
des com a o ra l i d ade . Pa ra Ma tenc i o ( 20 12 , p . 35 ) , “ segundo a
pe rspec t i va vygo t sk i ana ( 1 989 e 1 99 1 ) , a ap rend i zagem da
esc r i t a pe l a c r i ança não é l i nea r , como se p ressupõe f requen -
t emente na p rá t i c a esco l a r ” e a esco l a a i nda es t abe lece um
d i s t anc i amen to en t re f a l a e esc r i t a como “moda l i d ades l i ngu í s t i -
cas d i s t i n t as ” .
Em deco r rênc i a d i sso , Ma tenc i o ( 20 12 , p . 35 ) “vê que a
i n s t i t u i ç ão esco l a r t o rna -se o espaço pa ra que se j am rep rodu -
z i dos os usos l i ngu í s t i c os au to r i zados pe l a pa l av ra esc r i t a [ . . . ] ,
au to r i t á r i os ” , i n i b i ndo a c r i a t i v i dade dos a l unos , t o rnando -os
me ros rep rodu to res em vez de au to res de seus p róp r i os
t ex tos . Essa d i scussão é pau t ada po r pesqu i sado ras como
An tunes ( 2003 ) no que d i z respe i t o ao ens i no de Po r t uguês
a t r avés de tex tos dos a l unos .
No que se re fe re ao i n í c i o da p rá t i c a esc r i t a , Lu r i a ( 1 988
apud Matenc i o , 20 12 , p . 36 ) de fende que a c r i ança não t em o
p r ime i r o con t a to com a esc r i t a somen te na esco l a ; pe l o con t r á -
r i o , e l e a f i rma que esse “p rocesso ” de ap rend i zagem da esc r i t a
é i n i c i ado an tes mesmo de a c r i ança t e r percepção da aqu i s i -
ção de conhec imen tos , pos to que : [ . . . ] o c o n t a t o d a c r i a n ç a c om a e s c r i t a a c o n t e c e
a n t e s m e smo d o i n í c i o d e s u a a p r e n d i z a g em s i s t ema t i -
z a d a , p o i s e l a j á t e r á a d q u i r i d o “ um p a t r i m ô n i o d e
h a b i l i d a d e s e d e s t r e z a s ” , b em c omo d e t é c n i c a s
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 1 3 - 2 6 , 2 0 1 7
p r i m i t i v a s c om f u n ç õ e s s em e l h an t e s à s d a e s c r i t a q u e ,
n a v e r d a d e , i r ã o s e p e r d e r n a e s c o l a , o n d e a c r i a n ç a
t e r á a c e s s o a um “ s i s t em a d e s i g n o s p a d r o n i z a d o s e
e c o n ôm i c o s ” , c u l t u r a l m e n t e e l a b o r a d o s (MAT ENC I O ,
2 0 1 2 , p . 3 6 ) .
Es t á exp l í c i t o en t ão que o f oco dado à escr i t a na esco l a
e à abo rdagem pad rão pe l a qua l oco r re não ap rove i t am os
conhec imentos p rév i os do a l uno , o que t ambém é f e i t o com a
ora l i d ade . Segundo An tunes ( 2003 , p . 26 , ) , “ [ . . . ] pa ra mu i t a
gen te , não sabe r esc reve r a i nda equ iva l e a esc reve r com
e r ros de o r t og ra f i a [ . . . ] ” , po i s há uma cob rança acen tuada pa ra
uma esc r i t a sem e r ros o r t og rá f i cos e pouco espaço pa ra uma
p rodução l i v re que a l imen te a c r i a t i v i dade dos a l unos . O t r aba -
l ho com o ens i no da esc r i t a deve con t i nua r sendo f e i t o , po rém
o que não pode acon tece r é que e l e se j a o ún i co ob j e t i vo da
esco l a no t r aba l ho com a l í ngua , po rque , em se t r a t ando dos
ob j e t i vos da esco l a , Marcusch i ( 2008 , p . 55 ) a f i rma que :
S e u p a p e l e x o r b i t a e s s a f r o n t e i r a e s e e s t e n d e p a r a o
d om í n i o d a c om un i c a ç ão em g e r a l . E n v o l v e t am b ém o
t r a b a l h o c om a o r a l i d a d e . E v i d e n t e q u e n ã o s e t r a t a
d e e u e n s i n a r a f a l a r , m a s d e u s a r a s f o rm a s o r a i s
em s i t u a ç õ e s q u e o d i a a d i a n em s emp r e o f e r e c e , [ . . . ]
e s t ã o a i n d a e n vo l v i d a s , n o t r a t o d e l í n g u a m a t e r n a ,
q u e s t õ e s r e l a t i v a s a p r o c e s s o s a r g ume n t a t i v o s e
r a c i o c í n i o c r í t i c o .
Pa r t i ndo desse p ressupos to , o t r aba l ho com a o ra l i d ade
deve r i a se r ma i s bem ava l i ado , dada a impo r t ânc i a d i scu t i da
po r Marcusch i ( 2008 ) e po r ou t ros t eó r i cos , como An tunes
( 20 12 ) . Po rém , no p róx imo t óp i co , ve r -se-á que a l i nguagem
ora l não é t ão bem recepc i onada na esco l a quan to deve r i a .
2 . 2 A C O R R E Ç Ã O D A L I N G U A G E M O R A L
“Não se d i z ‘ nó i s mudemo ’ , men i no ! A gen te deve d i ze r :
nós mudamos , t á? ” O t recho do tex to , esc r i t o po r F i dênc i o
18
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 1 3 - 2 6 , 2 0 1 7
Bogo , pub l i cado no j o rna l GGN em 20 14 , r e t ra t a bem a rea l i d ade
de mu i t os usuá r i os da l í ngua em sa l a de au l a . O p reconce i t o
l i ngu í s t i c o marcado pe l a re j e i ç ão da l i nguagem o ra l es t á em
toda pa r t e . A esco l a é v i s t a como o l uga r em que se deve
“ f a l a r d i r e i t o ” , “ f a l a r co r re t o ” , “ f a l a r bem o Po r t uguês ” como se
j á não f i zéssemos i sso d i a r i amen te . T ra t a -se de “om i t i r a f a l a
como ob j e t o de exp l o ração no t r aba l ho esco l a r ; om i ssão que
pode t e r como exp l i cação a c rença i ngênua de que os usos
o ra i s es t ão l i g ados à v i da de t odos nós que nem p rec i sam se r
maté r i a de sa l a de au l a ” (MARCUSCH I , 200 1 , p . 1 9 apud ANTUNES , 2003 , p . 24 ) . Os p l ane j amen tos es t ão t ão p reocupa -
dos em ob te r t ex tos com uma esc r i t a impecáve l que pouco se
ab rem espaços pa ra as v i vênc i as dos a l unos na sua f o rma
r ea l , pa ra a con t ação de “causos ” , p i adas e dema i s gêne ros
como i n t eg ran tes ( e a t r a t i vos ) das au l as de Po r t uguês . O
t recho do t ex to a segu i r exemp l i f i c a j us t amen te a ação nega t i -
va causada pe l a i n tensa co r reção da o ra l i d ade no amb ien te
esco l a r :
N ó i s i g n o r an t e a s v e i s f a i s c o i s a s em q u e r ê f a z ê . A
e s c o l a f a i s um a f a r t a d a n a d a . E u n ã o d e v i a t ê s a í d o
d a q u e l e j e i t o , f e s s o r a , m a i s n ã o a g u e n t e i a s g o z a ç ã o
d a t u rm a . E u v i l o g o q u e n u n c a i a c o n s e g u i f a l á d i r e i -
t o . A i n d a h o j e n ã o s e i ( s i c . ) . ( B OGO , 2 0 1 4 )
Dessa f o rma , no t a -se que , ao passo que a esco l a supe r -
va l o r i za a esc r i t a , e l a des leg i t ima a o ra l i d ade . Mesmo que a t ua l -
mente não acon teça como an tes , há , a i nda , mu i t os reco r t es
po r a j us t a r . T ra t a r da l i nguagem o ra l com ma i s a t enção na
esco l a , espec i a lmen te nas au l as de Po r t uguês , é o p r ime i r o
passo pa ra f aze r os a l unos se reconhece rem como pa r t i c i pan -
t es e cons t ru t o res de sua p róp r i a l í ngua . I sso pode se r f e i t o
a t r avés de concu rsos de rap c r i ados pe l os a l unos . A p romo -
ção de even tos como esse na esco l a poss i b i l i t a a exp ressão
o ra l sem rece i os ou cons t r ang imen tos , ques t i onando suas
cond i ções de v i da , p romovendo i ndagações soc i a i s e
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mos t rando t odo o dom ín i o que possuem sob re a l í ngua
po r t uguesa . Essa , porém , é apenas uma das mane i r as de
t en t a r man te r os a l unos na esco l a .
Há a i nda ou t ros mo t ivos que j us t i f i c am a grande evasão
esco l a r , como a ques tão do apo i o f am i l i a r e a necess i dade de
i n i c i a r -se cedo no mercado de t r aba l ho . F requen t a r a esco l a
o f e rec i da po r uma soc i edade d i v i d i da em c l asses reque r ma i s
do que i n t e resse e f o rça de von tade ; ex i ge dos a l unos e das
a l unas uma pos i ção c idadã .
2 . 3 A E X C L U S Ã O D O S A L U N O S D E B A I X A R E N D A
V is t o que os f a l an tes da no rma cu l t a de l í ngua po r t ugue -
sa são p r i v i l e g i ados po r t a l “ compe tênc i a ” em todos os amb i en -
t es , é ev i den te a exc l usão que , de a l gum modo , o ens i no de
g ramá t i ca es t abe l ece en t re as c l asses . A lém de se rem v i s tos
soc i oeconom icamen te como uma c l asse de pessoas i n fe r i o res ,
que possuem menos ap t i dões , os a l unos de ba i xa renda
so f rem sé r i os danos re l ac i onados à au toes t ima e à au tocon f i -
ança , dev i do à f o rma como a g ramá t i c a é t r aba l hada nas esco -
l as , i nv i ab i l i z ando a ace i t ação da d i ve rs i dade l i ngu í s t i c a . Um
exemp l o rea l desse p rob l ema é o a l t o í nd i ce de evasão , re t r a -
t ado no t ex to “nó i s mudemo” de Bogo ( 20 14 ) ap resen t ado no
t óp i co aba ixo :
― P a i , n ã o vô m a i s p r a e s c o l a ! ― O x e n t e ! Mó d i q u ê ? O u v i d a a h i s t ó r i a , o p a i c o ç o u a c a b e ç a e d i s s e : ― M e u f i o , n um d e i x a a e s c o l a p o r um a b o b ag em d e s s a ! N ã o l i g a p r a s g o z a ç õ e s d a m i n i n a d a ! L o g o e l e s e s q u e c e . N ã o e s q u e c e r am . N a q u a r t a - f e i r a , d e i p e l a f a l t a d o m en i n o . E l e n ã o a p a r e c e u n o r e s t o d a s em an a , n em n a s e g u n d a - f e i r a s e g u i n t e ( s i c . ) .
Esse exce r t o desc reve a mane i r a como os i n t eg ran tes da
c l asse t r aba l hado ra são t r a t ados na esco l a , d i sc r im i nados po r
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ou t ros i n t eg ran tes da mesma c l asse soc i a l . Não há , a l ém de
t udo , uma p ropos t a e fe t i va da esco l a pa ra comba te r o p recon -
ce i t o l i ngu í s t i co ( po i s a i nda f a l a -se pouco sob re o assun to ) e
i ncen t i va r os a l unos a l u t a r con t r a a d i v i são de c l asses , pa ra
que se l i be r tem das “co r ren tes ” impos tas pe l os p rog ramas de
“ repa ração/ recupe ração esco l a r ” . Não res t a aos es tudan tes
mu i t as opções a l ém de deco ra r e repe t i r as reg ras , ou repe t i r
de sé r i e no ano segu i n t e .
H á h o j e um g r a n d e c o n t i n g e n t e d e a l u n o s p r o c e d e n t e s d a s c am ad a s p o p u l a r e s q u e v i v em o s e u o c a s o n o i n t e r i o r d a s e s c o l a s , d e s a c r e d i t a d o s n a s s a l a s d e a u l a o u r e l e g a d o s a p r o g r ama s d e r e c u p e r a ç ã o , a c e l e r a -ç ã o , p r o g r e s s ã o c o n t i n u ad a e / o u a u t om á t i c a , e d u c a -ç ã o d e j o v e n s e a d u l t o s , p s e u d o - e s c o l a s d e t em p o i n t e g r a l , c u j a e l i m i n a ç ão d a e s c o l a f o i s u s p e n sa o u a d i a d a e a g u a r d am s u a e l i m i n a ç ã o d e f i n i t i v a n a p a s s a -g em e n t r e c i c l o s o u c o n j u n t o d e s é r i e s , q u an d o e n t ã o s a em d a s e s t a t í s t i c a s d e r e p r o v a ç ã o , o u em a l g um m omen t o d e s u a v i d a e s c o l a r o n d e a e s t a t í s t i c a s e j a m a i s c o n f o r t á v e l ( F R E I T AS , 2 0 0 7 , p . 9 6 8 ) .
F re i t as ( 2007 ) ap resen t a os p rog ramas c r i ados pe l a esco -
l a pa ra conso l i d a r a i de i a de acesso a t odos , não se impo r t an -
do com a qua l i d ade desse acesso e mu i to menos se de le
ob têm-se resu l t ados pos i t i vos . Tudo i sso a l imen t a uma massa
de es tudan tes f rus t r ados e desespe rançosos .
Os a l unos de ba i xa renda ap resen t ados po r Sav i an i em
Esco l a e democ rac i a ( 20 12 ) são d i v i d i dos em c l asses en t re s i , e
mu i t os de les co l ocados como marg i na i s , es t ando às margens
do que a t eo r i a da época ob j e t i v a . Na pedagog i a t r ad i c i ona l ,
e l e s são os i gno ran tes ; a pedagog i a nova , a qua l ag ravou o
p rob l ema da marg i na l i d ade ap r imo rando a qua l i d ade do ens i no
vo l t ado pa ra as e l i t e s , t em os a l unos como os re j e i t ados ; na
pedagog i a t ecn i c i s t a , os marg i na i s são nomeados como os
imp rodu t i vos , i ne f i c i en tes e i ncompe ten tes . Ta i s f a t os denunc i -
am um t i po de esco l a que não recebe bem os a l unos de ba i xa
renda .
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Dessa f o rma , essas pessoas passam a t e r ba i xo rend i -
mento e ba i xa rep resen t a t i v i dade . É necessár i o que se repense
ma i s e ma i s o mode l o de ens i no vo l t ado para essa popu l ação ,
ass im como t ambém j á não f az ma i s sen t i do usa r o gêne ro
mascu l i no como neu t ro nas f l exões ve rba i s e nom ina i s . É
p rec i so f aze r uma educação pa ra t odas as c l asses , ca t ego r i as
e gêne ros , a f im de rep resen t a r me l ho r e da r ma i s espaço
pa ra as m ino r i as soc i a i s den t ro da sa l a de au l a .
2 . 4 A P R E D O M I N Â N C I A D O G Ê N E R O M A S C U L I N O N A S
F L E X Õ E S N O M I N A I S
Na l í ngua po r t uguesa , como sabemos , f l e x i onamos a ma i o r
pa r t e dos subs t an t i vos , ad j e t i vos e a r t i gos em gêne ro mascu l i -
no e f em in i no . Po r con t a d i sso , pa ra que se f aça a conco rdân -
c i a nom ina l adequada de aco rdo com a reg ra ge ra l , um subs -
t an t i vo mascu l i no deve se r an t eced i do po r um a r t i go mascu l i no ,
bem como um subs t an t i vo f em in i no deve se r segu i do po r um
ad j e t i vo t ambém fem in i no , e ass im po r d i an te . No en tan to , ex i s -
t em exceções à reg ra ge ra l de f l exão nom ina l , o que nos
p rovoca i nqu ie t ações .
Segundo Becha ra ( 2009 , p . 1 3 1 ) , a g ramá t i c a no rmat i va
nos ens i na que pe r tencem ao “g rupo do mascu l i no os nomes a
que se pode an t epo r o a r t i go o ( o l i nho , o so l , o c l ima . . . ) e são
f em in i nos os nomes a que se pode an t epo r o a r t i go a ( a l i nha ,
a l ua , a g rama . . . ) ” . Po rém , se compara rmos a n í ve l h i s t ó r i co , a
l í n gua po r t uguesa possu i pa l av ras que ho j e são mascu l i n as ,
mas que , em a l gum momen to , pe r tence ram ao g rupo das pa l a -
vras f em in i nas , a exemp l o da pa l av ra “mar ” que e ra “a mar ” ou
“ l a mar ” em Espanho l . Ho j e , “mar ” é subs t an t i vo mascu l i no ,
podendo se r p reced i do do a r t i go “o ” . Ta l como o exemp l o ,
ou t ras pa l av ras so f re ram esse mesmo p rocesso , e o que se
pe rcebe ho j e é a p redom inânc i a do gêne ro mascu l i no na
g ramá t i ca da l í ngua po r t uguesa , pa r t i cu l a rmente nas f l exões
nom ina i s . Po r exemp l o : quando “os núc leos do su j e i t o são de
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gêne ros d i ve rsos – o ad j e t i vo va i pa ra o mascu l i no p l u ra l . Ex .
1 : En t re i po rque o po r t ão e a po r t a es t avam abe r tos Ex . 2 : “O
mar i do e a mu l he r do rm i r am p reocupados com os
f i l h os ” (MENEZES , 20 15 , p . 262 , g r i f o nosso ) . Essa reg ra de
conco rdânc i a nom ina l pode passa r desperceb i da po r mu i t as
pessoas , mas ca rac t e r i za a t ese a f i rmada nes t e tóp ico .
Cu r i osamen te , Becha ra ( 2009 , p . 1 33 ) nos ap resen t a uma
de f i n i ç ão que re fo rça a i nda ma i s a ques tão : “A d i s t i nção de
gêne ro nos subs t an t i vos não t em fundamento rac i ona l , exce to
a t r ad i ç ão f i xada pe l o uso e pe l a no rma ; nada j us t i f i c a se rem ,
em Po r t uguês , mascu l i nos l áp i s , pape l , t i n t e i r o e f em in i nos
cane t a , f o l ha e t i n t a . ” Logo , se não há f undamen to rac i ona l e
c i en t í f i co pa ra essas esco l has , po r que a sobe ran i a do gêne ro
mascu l i no den t ro das f l exões nom ina i s de L í ngua Po r t uguesa?
A i nda em Menezes ( 20 15 , p . 26 1 ) , uma reg ra espec í f i ca de
conco rdânc i a nom ina l d i z : “quando os subs tan t i vos são nomes
próp r i os ou nomes de pa ren tesco , o ad j e t i vo i r á ob r i ga t o r i a -
mente pa ra o p l u ra l do gêne ro que p reva l ece ” . Em segu i da é
dado o exemp l o em que Cae tano “p reva l ece ” : “Os f amosos Cae tano e Be t ân i a can t a rão j un t os no TCA” (MENEZES , 20 15 , p .
26 1 , g r i f o nosso ) .
Fe l i zmen te , a l í ngua va i mudando con fo rme seus f a l an tes
e , dev i do a a l guns mov imen tos soc i a i s p romov i dos pe l as
mu l he res , e l a so f reu ac résc imos re l ac i onados ao gêne ro . A
pa r t i r do momen to h i s t ó r i co em que a mu l he r aden t rou o
me rcado de t r aba l ho , Becha ra ( 2009 , p . 1 34 ) des t aca que f ez -
se necessá r i a a adequação de de t e rm inados subs t an t i vos
re l ac i onados às p ro f i ssões , como p ro fesso ra , méd i ca e
advogada , que e ram exe rc i das , an t e r i o rmente , apenas po r
homens , consequen temente f l ex i onadas somen te pa ra o gêne ro
mascu l i no .
A imp l i c ação d i sso pa ra o ens i no de L í ngua Po r t uguesa é
j us t amen te a rep resen t a t i v i dade f em in i na em todos os segmen -
tos , espec i a lmen te na esco l a , j á que es t e é um l uga r de
conqu i s t a de conhec imen tos que se rão usados pa ra a
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ascensão soc i a l . É necessá r i o pensa r sob re a impo r t ânc i a do
reconhec imen to do espaço pa ra a mu l he r na soc i edade , se j a
no campo p ro f i ss i ona l ou em qua l que r ou t ro . A l í ngua t ambém
rep resen t a pode r e é a t r avés de l a que mu i t os ob j e t i vos são
a l c ançados . Po r i sso , nada ma i s j us t o que se f aça uma
adequação em que ha j a p reocupação com a necess i dade dos
f a l an tes , i gua l ando as poss i b i l i d ades de rep resen t ação pa ra
t odos os su j e i t os .
3 C O N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S
Espe ra -se , ass im , que os cu rsos de L i cenc i a t u ra em
Le t ras i novem o ens i no de L í ngua Po r t uguesa . Um ens i no que
se j a ma i s i nc l us ivo e que respe i t e as va r i ações dos e das
f a l an tes , j á que a Cons t i t u i ç ão Fede ra l de 1 988 d i z ga ran t i r a
t odos o d i r e i t o à educação e , obv i amen te , ao ens i no de L í ngua
Po r t uguesa .
Ass im , deve -se adm i t i r que mesmo que o acesso à esco -
l a se j a ga ran t i do pa ra t odos , po r d i ve rsas ques tões soc i a i s e
econôm icas nem todos pe rmanecem , a f as t ando -se , dessa
f o rma , da p ropos t a do ens i no de L í ngua Po r t uguesa que é da r
aos f a l an t es uma opor t un i dade de ascensão soc i a l , uma vez
que a no rma cu l t a é cob rada em ves t i bu l a res , concu rsos púb l i -
cos , documentos e even tos f o rma i s , a l ém de poss i b i l i t a r aos
mesmos f a l an t es es t a rem em d i s t i n t os amb ien t es e es t abe l ece r
em comun icação “adequada ” em cada um de les .
Po r ou t ro l ado , apesa r da l e i , vê -se que na p rá t i c a o
ens i no de L í ngua Po r tuguesa não é pa ra t odos , mas s im pa ra
os ma i s res i s ten tes , como na se l eção na tu ra l de Da rw in ,
pe rs i s t i ndo du ramen te em f requen t a r um espaço no qua l não
se reconhecem , nem reconhecem os a t r i bu tos dados à impo r -
t ânc i a do es tudo g ramat i c a l . Dessa f o rma , aque l es que não
des i s tem , mesmo sendo r i d i cu l a r i zados , con t i nuam buscando
uma fo rma de compreende r a d i f e rença en t re ‘ ad j un to
adnom ina l ’ e ‘ comp lemen to nom ina l ’ ( BAGNO , 20 1 2 ) e/ou de se
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adap t a r , enca i xando -se no pad rão que l he é impos to como
l í ngua co r re ta e boa .
Logo , quando não encon t ramos o ens i no da l í ngua sendo
usado como um f a t o r po l í t i c o de seg regação soc i a l , c l ass i f i c an -
do os f a l an tes en t re bons , boas e ru i ns , o encon t ramos d i r e -
c i onado , s i ngu l a rmen te , pa ra aque l es a t é en t ão ma i s capazes
de ap rende r e co l oca r em p rá t i c a o “ t ão bem f a l ado ” e ex i g i do
Por t uguês Pad rão .
“ F l o r e s ç a , f a l e , c a n t e , o u ç a - s e e v i v a A p o r t u g u e s a l í n g u a , e
j á o n d e f o r , S e n h o r a v á d e s i , s o b e r b a e a l t i v a ” ( A n t ô n i o
F e r r e i r a , s é c . XV I ) .
R e s u m e n : A l p r e s e n t a r e s t e t r a b a j o , n u e s t r o o b j e t i v o e s
e x p l i c a r a l g u n o s a s p e c t o s d e l a e n s e ñ a n z a - a p r e n d i z a j e d e
L e n g u a P o r t u g u e s a e n l a e d u c a c i ó n b á s i c a , t o m a n d o c om o
a p o r t e t e ó r i c o A n t u n e s ( 2 0 0 3 ) , B e c h a r a ( 2 0 0 9 ) , M a r c u s c h i
( 2 008 ) Ma t enc i o ( 2 0 1 2 ) Y Menezes ( 2 0 1 5 ) . E n t r e l a s cues t i o nes
e xpues t a s a l o l a r g o d e e s t e a r t í c u l o , e s t á l o q ue l l am a remos
d e “ g r am á t i c a e l i t i s t a ” c o n e n f o q u e e n l a c o r r e c c i ó n d e l a
o r a l i d a d , a s í c omo l a p r e d om i n a n c i a d e l g é n e r o ma sc u l i n o e n
l as f l ex i ones nom ina l e s . As í t amb i én p resen t aremos hechos que
r e p r e s e n t a n a l g u n a s d e l a s p r o b l e m á t i c a s e x i s t e n t e s e n e l
p r o c e so d e e n se ñ an z a d e l a l e n g u a y q u e a f e c t a n l a c a l i d a d
d e l a p r e n d i z a j e d e l p o r t u g u é s , e n e sp e c i a l , d e l a r e d p úb l i c a ,
d o nde l a s p e r s o n a s t i e n e n d i f i c u l t a d e s s o c i o e c onóm i c a s p a r a
t ene r acceso a l amb i en t e esco l a r . As í , se pe rc i be a l o l a rgo de
e s t e es tud i o que l a enseñanza de Lengua Po r t uguesa exc l u ye ,
d e c i e r t a f o r m a , a l g u n o s h a b l a n t e s , u n a v e z q u e e x i s t e u n
m o d e l o d e h a b l a y e s c r i t u r a e s t á n d a r q u e m a r g i n a l i z a y
des leg i t ima a aque l l o s que no l o adop t an .
P a l a b r a s c l ave : E n señanz a de p o r t u gués . O r a l i d a d . P r edom i n i o
de l géne ro mascu l i no .
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E D I ÇÃO F A C - S I M I LA R , D I P LOMÁ T I CA E
M O DER N I Z A DA D E U MA QU E I X A -C R I M E D E
F U R TO DO S ÉCU LO XX
S t e p h a n n e d a C r u z S a n t i a g o
U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e F e i r a d e S a n t a n a ( U E F S )
L i c e n c i a t u r a em L e t r a s c om I n g l ê s
s t e p h a n n e s a n t i a g o @ gma i l . c om
B r u n a S o u z a R o c h a O l i v e i r a
U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e F e i r a d e S a n t a n a ( U E F S )
L i c e n c i a t u r a em L e t r a s c om I n g l ê s
b r u n a b r u u n a@ h o tm a i l . c om
N a t h a l i a d o s S a n t o s D a n t a s
U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e F e i r a d e S a n t a n a ( U E F S )
L i c e n c i a t u r a em L e t r a s c om I n g l ê s
n a t h i . n d a n t a s @ gma i l . c om
P r o f a . M a . J o s e n i l c e R o d r i g u e s d e O l i v e i r a B a r r e t o ( O r i e n t a d o r a )
U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e F e i r a d e S a n t a n a ( U E F S )
D e p a r t am e n t o d e L e t r a s e A r t e s
n i l c e 1 1 . b a r r e t o @ gma i l . c om
Re sumo : O p r e s e n t e a r t i g o i n t e n t a r e s s a l t a r a i m po r t â n c i a d o t e x t o e sc r i t o , o b j e t o d e e s t u d o d a F i l o l o g i a , p a r a o r e s g a t e e p r e s e r v a ç ã o c u l t u r a l e s o c i a l d o p a s s a d o . A b r i n d o um l e q u e p a r a e s t u d o s d e v á r i a s á r e a s d o c o n h e c i m e n t o , a C r í t i c a Tex t ua l ( f i l o l og i a s t r i c t o sensu ) busca p repa r a r o t ex to e sc r i t o , es t abe l ecê - l o e f i x á - l o pa r a pub l i c aç ão , com o r i go r necessá r i o p a r a m a n t e r a t r a n s c r i ç ã o d o t e x t o a m a i s f i e l p o s s í v e l a o o r i g i n a l , p a r a q u e o p e s q u i s a d o r t e n h a em m ã o s um t e x t o c o n f i á v e l . A p o i a n d o - s e n o s p r e s s u p o s t o s m e t o d o l ó g i c o s d e C am b r a i a ( 2 0 0 5 ) , S a n t o s e S o u z a ( 2 0 1 2 ) , S i l v a ( 2 0 1 2 ) e n o s c r i t é r i o s d e e d i ç ã o e s t a b e l e c i d o s p o r B a r r e i r o s ( 2 0 1 2 ) , a d a p t a d o s à n e c e s s i d a d e d o d o c um e n t o , r e a l i z o u - s e n e s t e t r a b a l h o , p o r t a n t o , t r ê s t i p o s d e e d i ç õ e s : e d i ç ã o f a c - s i m i l a r , e d i ç ã o d i p l om á t i c a e e d i ç ã o m o d e r n i z a d a d e um d o c ume n t o monotes temunha l , uma que ixa -c r ime de fur to de compra e venda de bo is , p restado no d is t r i to de Tanqu inho -BA, no ano de 1933 . Pa l av ras -chave : C r í t i c a Tex tua l . T i pos de ed i ção . Que i xa -C r ime .
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1 T E X T O E S C R I T O E C R Í T I C A T E X T U A L
O t ex to esc r i t o é um dos p r i nc i pa i s me i os de p rese rvação
da h i s t ó r i a , cu l t u ra e p rá t i c as soc i a i s de um povo . É po r me i o
de l e que podemos t e r acesso a g randes quan t i dades de i n f o r -
mações sob re povos e épocas , g ravadas nos ma i s d i ve rsos
supo r tes ma te r i a i s , t a i s como pe rgam inhos , pe l e s de an ima i s ,
l i v ros , pa redes . O t ex to v i ab i l i z a , po r t an t o , o resga t e de um
passado po r vezes esquec i do , poss i b i l i t ando que pesqu i sado -
res ve rsem sob re e l e pa ra rea l i z a r es tudos d i ve rsos . Sua re l e -
vânc i a é t amanha que mú l t i p l as á reas do conhec imen to o t êm
como ob j e to de es tudo , não se res t r i ng i ndo apenas ao h i s t ó r i -
co , mas t ambém ao l i t e r á r i o , l i ngu í s t i c o , soc i a l , f i l o só f i co .
Cons i de rando a impo r t ânc i a do t ex to esc r i t o , é p rec i so
sa l i e n t a r que o mesmo so f re mod i f i c ações no p rocesso de
d i f usão que podem a l t e ra r ou d i f i c u l t a r sua l e i t u ra . Essas mod i -
f i c ações são c l ass i f i cadas em : exógenas e endógenas . As
exógenas co r respondem à co r rupção do ma te r i a l u t i l i z ado pa ra
reg i s t r a r o t ex to , como pape l , pap i r o , t i n t a , g ra f i t e . Essas
co r rupções podem se r ocas i onadas po r desgas te t empora l ,
manuse i o excess i vo ou i nco r re to do supo r te e ação de i nse -
t os , causando ox i dação , f u ros , r asgões ou apagamen tos na
mancha esc r i t a do documen to . As mod i f i cações endógenas são
as co r rupções o r i undas do a t o da rep rodução do t ex to em s i ,
e podem se r au to ra i s ( f e i t as pe l o au to r do documento ) ou não
au to ra i s ( f e i t as po r ed i t o res ou cop i s t as ) .
So l uc i ona r essas p rob l emá t i c as é responsab i l i d ade da
Cr í t i c a Tex tua l , que se t r a t a da a t i v i dade f i l o l óg i c a s t r i c t o sensu de es t abe lece r e f i x a r o t ex to po r me i o da rea l i z ação de ed i -
ções , buscando a sua p repa ração pa ra pub l i c ação . A p rá t i c a
de es t abe lece r o t ex to de f o rma con f i áve l pa ra t o rná - l o o ma i s
f i e l poss í ve l ao t ex to o r i g i na l vem desde a An t i gu i dade , com a
f i l o l og i a a l exand r i na , em que os f i l ó l ogos da B i b l i o t eca de
A l exand r i a se p reocupa ram com a d i ssem inação de cóp i as de
t ex tos co r romp i dos das ob ras de Homero e e l abo ra ram
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es t r a tég i as de h i g i en i zação t ex tua l . Po rém , é no sécu l o X IX que
a C r í t i c a Tex tua l se i ns t i t u i como c iênc i a , a pa r t i r dos es tudos
de Ka r l Lachmann , que p ropôs um método pa ra es t abe l ece r um
a rqué t i po do t ex to po r me i o do es tudo da t r ad i ç ão . Desde
en t ão , a C r í t i c a Tex tua l vem amp l i ando o seu campo de a t ua -
ção , passando a se p reocupa r não apenas com o t ex to f i na l e
os cód i gos a l f anumér i cos , mas t ambém com seu p rocesso de
c r i ação e t oda a rea l i d ade t ex tua l , como cód i gos b i b l i og rá f i cos
e con tex tua i s .
2 T I P O S D E E D I Ç Ã O
Cambra i a ( 2005 ) d i v i de as ed i ções em mono tes t emunha i s
e po l i t e s temunha i s , sendo que nes t as há subd iv i sões ( f ac -
s im i l a r , c r í t i c a , d i p l omát i c a , sem id i p l omát i c a ) . As ed i ções mono -
t es temunha i s são rea l i z adas com tex tos que con têm apenas
um t es temunho , como , po r exemp l o , a ed ição d i p l omát i c a , sem i -
d i p l omá t i c a , f ac -s im i l a r , i n te rp re t a t i v a e mode rn i zada . As
ed i ções po l i t e s temunha i s são aque l as f e i t as com ma i s de um
t es temunho , como a ed i ção c r í t i c a e a ed ição gené t i c a . Cada
ed i ção é f e i t a pa ra f i ns e púb l i c os espec í f i cos . Nes t e t r aba l ho ,
en t re t an to , se rão ap resen tadas as ed ições fac -s im i l a r , d i p l omá -
t i c a e mode rn i zada de uma que i xa -c r ime de f u r t o , u t i l i z ando a
me todo l og i a da C r í t i c a Tex tua l ( SP INA , 1 994 ; CAMBRA IA , 2005 ) ,
e os c r i t é r i os e p r i nc í p i os es t abe l ec i dos por Ba r re i r os ( 20 12 ) ,
adap t ados às necess i dades do documen to .
2 . 1 E D I Ç Ã O F A C - S I M I L A R
A ed ição f ac -s im i l a r ( t ambém conhec i da como mecân i ca ) ,
segundo Cambra i a ( 2005 ) , se base i a em med i ação de ze ro g rau
do ed i t o r , po i s se t r a t a da rep rodução da imagem do t es temu -
nho po r me i o de f o t og ra f i a , xe rox ou escane r i zação . Po r t an t o ,
é de se imag i na r que essa se j a a rep resen tação ma i s f i e l
poss í ve l do t ex to o r i g i na l ; con tudo , i sso não e l im i na a
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poss i b i l i d ade de co r rupção dessa ed i ção po r pa r t e do ed i t o r ,
como é ap resen t ado po r Cambra i a ( 2005 ) o exemp l o do
l evan t amento de Recke r t ( 1 983 ) , que , ao rea l i z a r a comparação
da ed i ção f ac -s im i l a r de 1 928 e da ed i ção p r i nceps de 1562 da
Comp i l açam de G i l V i cen te , de tec tou a oco r rênc i a de
ap rox imadamen te 200 d i ve rgênc i as po r ob ra de re t oque e
co r reções de e r ra t as do o r i g i na l nos fac -s ím i l e s .
As van t agens dessa ed i ção cons i s tem no f a t o de se r a
que se ma i s asseme l ha ao t ex to o r i g i na l e se r u t i l i z ada como
base pa ra ou t r as ed i ções , sem que se j a necessá r i o reco r re r
sempre ao o r i g i na l pa ra consu l t as , e , ass im , p rese rvá - l o . Toda-
v i a , a consu l t a se l im i t a a espec i a l i s t as , po i s a sua l e i t u ra é
d i f i c u l t osa , se j a pe l a ca l i g r a f i a do au to r , quando se t r a t a r de
manusc r i t os , ou pe l a esc r i t a u t i l i z ada ( quan to ma i s an t i go é o
t ex to , ma i s d i f í c i l é a l e i t u ra ) , o que demanda ce r t as hab i l i d a -
des . A l ém d i sso , a impressão necess i t a se r de boa qua l i d ade e
co l o r i da , e o seu cus to é bas t an te a l t o quando f e i t a em l a rga
esca l a .
2 . 2 E D I Ç Ã O D I P L O M Á T I C A
Segundo Cambra i a ( 2005 ) , a p r ime i r a med i ação do ed i t o r
de f o rma e fe t i va se dá po r me i o da ed ição d i p l omá t i c a , po rém ,
es t a é fe i t a de mane i ra b randa , con f i gu rando um g rau ba i xo de
med i ação . Nes t a ed i ção é f e i t a a t r ansc r i ç ão i ps i s l i t t e r i s do
o r i g i na l , conse rvando os e l emen tos p resen tes no t ex to , t a i s
como ab rev i ações , pon tuações , sepa ração vocabu l a r , pa rag ra -
f ação e t r ans l i neação . A van tagem dessa ed ição é que p rop ic i a
uma l e i t u ra ma i s d i nâm i ca do t ex to comparada com a l e i t u ra da
ed i ção f ac -s im i l a r ; con tudo , o púb l i co dessa ed ição con t i nua
sendo res t r i t o a espec i a l i s t as , po i s , ao man te r as
ca rac te r í s t i c as como no t ex to o r i g i na l , um púb l i c o ma i s ge ra l
en f ren t a r i a d i f i cu l dades pa ra rea l i z a r a l e i t u ra .
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2 . 3 E D I Ç Ã O M O D E R N I Z A D A
A ed ição mode rn i zada cons i s te na a t ua l i z ação o r t og rá f i c a
v i sando poss i b i l i t a r uma l e i t u ra f l u í da do tex to po r um púb l i c o
não espec i a l i z ado , como es tudan tes do ens i no méd i o , po r
exemp l o . Con tudo , a “ [ . . . ] ed i ç ão mode rn i zada não t em va l o r
c i en t í f i co , mas é impor t an te pa ra d i vu l ga r documentos impo r -
t an tes sem a r i go rosa p reocupação com a f i de l i d ade f o rma l ao
t ex t o , mas a seu con teúdo semân t i co ” ( S ILVA , 20 1 1 ) .
3 D O C U M E N T O
Es te t r aba l ho cons i s te em ap resen t a r as ed i ções f ac -
s im i l a r , d i p l omá t i c a e mode rn i zada de uma que i xa -c r ime de
f u r t o do sécu l o XX , reg i s t r ada no en t ão d i s t r i t o de Tanqu i nho ,
no es t ado da Bah i a , no ano de 1 933 . É compos t a po r c i nco
f ó l i o s esc r i t os no rec to e ve rso , sendo que , pa ra es t a ed i ção ,
se rão u t i l i z ados apenas os f ó l i o s 2v e 3 r , po i s são os f ó l i o s
manusc r i t os que con têm a que i xa p res t ada em s i . O documen to
encon t ra -se em bom es t ado de conse rvação e há uma f i cha
ca t a l og rá f i c a na capa da que i xa -c r ime , espec i f i c ando de t a l hes
do documen to , o que f ac i l i t ou bas t an t e para a rea l i z ação da
desc r i ç ão . Os t ex tos do documen to se d i v i dem em manusc r i t os
e da t i l o sc r i t os , sendo a ma i o r pa r te manusc r i t a . A que i xa f o i
r eg i s t r ada con t ra Juvenc i o Gomes de Jesus (que ixado ) , dada
po r pa r t e de Manoe l Se rg i o da Mot t a (v í t ima ) . O c r ime se deu
po r me i o da compra e venda de bo i s ; con tudo , o que i xado não
repassou a quan t i a da venda pa ra a v í t ima , que p res tou que i xa
com i n tenção de reave r seu d i nhe i r o .
4 E D I Ç Õ E S
Os cr i té r ios adotados nas ed ições d ip lomát ica e modern i -
zada foram, com base nos cr i té r ios desenvo lv idos por Barre i ros
( 20 12 ) , adaptados à necess idade do documento e das ed ições :
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1 . I nd i c a -se o fó l i o , à margem d i r e i t a ( f . 1 r ou f . 1 v ) ;
2 . As l i nhas são numeradas de 5 em 5 à margem
esque rda ;
3 . Os t ex tos são t r ansc r i t os em fon t e T imes New Roman
pad rão Word ; de t amanho 1 1 , j us t i f i c ados à margem
esque rda ;
4 . T ransc reve -se o t í t u l o como se encon t ra no o r i g i na l .
5 . A rub r i c a do au to r i nd i c a -se en t re co l che t es ;
6 . Na ed ição mode rn i zada f o i ac rescen t ada a a t ua l i z ação
e co r reção o r tog rá f i c a , exce to em nomes p róp r i os ;
7 . Na ed ição mode rn i zada se rá f e i t a a sepa ração de pa l a -
v ras que f o ram esc r i t as j un t as no o r i g i na l .
Os ope rado res gené t i cos u t i l i z ados nas ed i ções , desen -
vo l v i dos po r Ba r re i r os ( 20 12 ) , fo ram :
1 . { † } segu imen to i l e g íve l ;
2 . { } / \ subs t i t u i ç ão po r sob repos i ção , na re l ação
{ subs t i t u í do } /subs t i t u to\ ;
3 . / * / l e i t u ra con jec t u rada ;
4 . ( ) i n te rvenção do ed i t o r ( ac résc imos e i n f o rmações ) ;
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E d i ç ã o f a c - s i m i l a r d e um a q u e i x a - c r im e d e f u r t o , f ó l i o 2 v .
F i g u r a e l a b o r a d a p e l a s p e s q u i s a d o r a s .
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Ed i ção d i p l omá t i c a de uma que ixa -c r ime de fu r t o , f ó l i o 2v .
f . 2v .
Pr ime i r o T ras l ado
Procu ração bas t an t e que f az Manoe l Se rg i o
da Mot t a ao seu advogado aba i xo dec l a -
rado . Sa i bam quan tos es te pub l i c o i ns -
5 t r umen to de p rocu ração bas tan te v i r em
que no anno do Nasc imento de Nosso Senho r
Jesus Chr i s t o de m i l novecen tos e t r i n t a e do i s ,
aos t r i n t a d i as do mez de Jane i r o , nes te a r -
ra i a l da f regues i a de San to Anton i o do Tan -
1 0 qu i nho da Comarca da Fe i r a de San t ’Anna
do Es t ado Fede rado da Bah i a , Repub l i c ados
Es t ados Un i dos do B raz i l , pe ran t em im Esc r ivão
de Paz , compar i ceu como ou te rgan t e Manoe l
Se rg i o da Mot t a , b ras i l e i r o , c l asado , de ma i o r
1 5 i d ade , Fazende i r o , dom ic i l i a do e res i den te
nes te des t r i c to , reconhec i do com p rop r i o pe -
l as duas tes t imunhas aba i xo ass i gnadas , de -
que dou fé , pe ran te as qua i s que reconheço >
po r e l l e f o i d i t o que po r es te pub l i co i ns t rumen -
20 t o nomeava e cons t i t u i a seu bas t an t e procu -
r ado r na C i dade da Fe i r a de San t Anna ou
onde com es t a se ap resen t a r o Bacha re l E l p i -
d i o Raymundo da Nova , b ras i l e i r o , casado ,
ma i o r de v i n t e e um annos de i dade , ad -
25 vogado , res i den te na C i dade da Fe i r a de San t ’
Anna . Pa ra o f im espec i a l de ap resen t a r
que ixa c r ime con t ra Juvenc i o Gomes de -
Jesus po r ap rop r i ação endeb i t a da empor -
t anc i a da venda das rezes que o ou to rgan te
30 so l t a r a de soc iedade com João Pau l o da -
S i l v a Carne i r o , de que f o i o mesmo Juvenc i o
enca r regado , e , pa ra i sso l he dá p l enos pode res ,
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 2 9 - 4 2 , 2 0 1 7
( Há uma ass i na t u ra por nome “Ma l a f a i a ” na margem l a te ra l
supe r i o r d i r e i t a do f ó l i o . Na l i nha 11 , na pa l avra “ Fede rado ” ,
há um co r t e na pa r t e supe r i o r da l e t r a d . )
Ed i ção mode rn i zada de uma que i xa -c r ime de f u r t o , f ó l i o 2v .
f . 2v .
Pr ime i r o T ras l ado
Procu ração bas t an t e que f az Manoe l Se rg i o
da Mot t a ao seu advogado aba i xo dec l a -
rado . Sa i bam quan tos es te púb l i c o i ns -
5 t rumen to de p rocu ração bas t an te v i rem
que no ano do Nasc imen to de Nosso Senho r
Jesus Cr i s to de m i l novecen tos e t r i n t a e do i s ,
aos t r i n t a d i as do mês de j ane i r o , nes te a r -
ra i a l da f regues i a de San to Antôn i o do Tan -
1 0 qu inho da Comarca de Fe i r a de San t ana
do Es t ado Fede rado da Bah i a , Repúb l i c a dos
Es t ados Un i dos do B ras i l , pe ran te m im esc r ivão
de paz , compareceu como ou to rgan te Manoe l
Se rg i o da Mot t a , b ras i l e i r o , casado , de ma i o r
1 5 i d ade , f azende i r o , dom ic i l i a do e res i den te
nes te d i s t r i t o , reconhec i do como p róp r i o pe -
l as duas tes temunhas aba i xo ass i nadas , de -
que dou fé , pe ran te as qua i s que reconheço { † }
po r e l e fo i d i t o que por es te púb l i c o i ns t rumen -
20 t o nomeava e cons t i t u í a seu bas t an t e procu -
r ado r na C i dade da Fe i r a de San t ana ou
onde com es t a se ap resen t a r o Bacha re l E l p i -
d i o Raymundo da Nova , b ras i l e i r o , casado ,
ma i o r de v i n t e e um anos de i dade , ad -
25 vogado , res i den te na C i dade da Fe i r a de San t
ana . Pa ra o f im espec i a l de ap resen t a r
que ixa -c r ime con t ra Juvenc i o Gomes de -
Jesus po r ap rop r i ação i ndéb i t a da impo r - t ânc i a da venda das rezes que o ou to rgan te
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30 so l t a r a de soc iedade com João Pau l o da - S i l v a Carne i r o , de que f o i o mesmo Juvenc i o enca r regado , e , pa ra i sso l he dá p l enos pode res ,
( Há uma ass i na tu ra por nome “Ma l a f a i a ” na margem l a te ra l supe r i o r d i r e i t a do f ó l i o . Na l i nha 1 1 , na pa l avra “ Fede rado ” , há um co r t e na pa r t e supe r i o r da l e t r a d . )
E d i ç ã o f a c - s i m i l a r d e um a q u e i x a - c r im e d e f u r t o , f ó l i o 3 r .
F i g u r a e l a b o r a d a p e l a s p e s q u i s a d o r a s .
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Ed i ção d i p l omá t i c a de uma que ixa -c r ime de fu r t o , f ó l i o 3 r .
f . 3 r .
enc l us i ve segu i r a t é f i na l a que i xa , cob ra r a - m i gave l ou j ud i c i a lmen te , essa empor t anc i a do re fe r i do Juvenc i o p ropondo qua l que r acção e segu i ndo -a em todos os seus te rmos , uzando
5 de t odos os recur { ç } /s\os e segu i ndo -os , e subs t abe l e : ce r com ou sem rese rva de pode res , podendo en ten t a r o p roced imento pena l e o c iv i l com - com i t an temen te ou como j u l ga r a ce r t ado , en t r a r em acco rdo , dar rec i bo , recebe r e dar -
1 0 qu i t ação , oque t udo da rá po r f i rme e va l i ozo - quan to f i ze r seu p rocu rado r e subs/ * t/ab lec i do . De como ass im o d i sse , dou f é , e f o ramtes t imu nhas p resen tes os aba i xo ass i gnados com o ou to r - gan te depo i s de l i do es t a pe ran te todos e acha r
1 5 confo rme po r m im No rbe r t o Gonca lves Ma l a - f a i a , esc r i vão queesc revy ass i gno em pub l i co e razo , Co l l ada duas es t amp i l has Fede ra i s , no va l o r de do i s m i l r e i s dev i damente enu t i l i s ados . Tan - qu i nho 30 de j ane i r o de 1 932 (Ass i gnado . ) Mano -
20 e l Se rg i o da Mo t ta , como t es t imunhas José Car - ne i r o More i r a , Romar i o Mendes dos San tos No r - be r to Gonça l ves Ma l a fa i a . Es t a con fo rme o or i g i na l . Eu , No rbe r t o Gonça l ves Ma l a f a i a , esc r i vão que esc rev i e ass i gno , em pub l i c o e razo
25 Em tes temunho de ve rdade [ N .G . ]
Norbe r to Gonça l ves Ma l a f a i a
Tanqu i nho 30 de Junho de 1 932
[ No rbe r t o Gonça lves Ma l a f a i a . ]
(Aba i xo da rub r i c a do esc r i vão , na l i nha 27 , há um s ímbo -
l o com qua t ro pon tos em fo rma de l osango e qua t ro
t r aços c ruzados po r c ima de les . )
40
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 2 9 - 4 2 , 2 0 1 7
Ed i ção mode rn i zada de uma que i xa -c r ime de f u r t o , f ó l i o 3 r .
f . 3 r .
i n c l us i ve segu i r a t é f i na l a que i xa , cob ra r a - m i gáve l ou j ud i c i a lmen te , essa impo r t ânc i a do re fe r i do Juvenc i o p ropondo qua l que r ação e segu i ndo -a em todos os seus te rmos , usando
5 de t odos os recursos e segu i ndo -os , e subs t abe le - ce r com ou sem rese rva de pode res , podendo i n t en t a r o p roced imen to pena l e o c i v i l co - com i t an temen te ou como j u l ga r ace r t ado , en t r a r em aco rdo , da r rec ibo , recebe r e da r
1 0 qu i t ação , o que tudo da rá po r f i rme e va l i o so quan to f i ze r seu p rocu rado r e subs t ab l ec i do . De como ass im o d i sse , dou f é , e f o ram tes t emu nhas p resen tes os aba i xo ass i nados com o ou to r - gan te depo i s de l i do es t a pe ran te todos e acha r
1 5 confo rme po r m im No rbe r t o Gonca lves Ma l a - f a i a , esc r i vão que escrev i e ass i no em púb l i c o e raso , Co l ada duas es t amp i l has Fede ra i s no va l o r de do i s m i l r e i s dev i damente i nu t i l i z adas . Tan - qu i nho 30 de j ane i r o de 1 932 (Ass i nado . ) Mano -
20 e l Se rg i o da Mot ta , como t es t emunhas José Car - ne i r o More i r a , Romar i o Mendes dos San tos No r - be r to Gonça l ves Ma l a fa i a . Es t á con fo rme o or i - g i na l . Eu , No rbe r t o Gonça l ves Ma l a f a i a , esc r i - vão que esc rev i e ass i no , em púb l i co e raso
25 Em tes temunho de ve rdade [ N .G . ]
Norbe r to Gonça l ves Ma l a f a i a
Tanqu i nho 30 de Junho de 1 932
[ No rbe r t o Gonça lves Ma l a f a i a . ]
(Aba i xo da rub r i c a do esc r i vão , na l i nha 27 , há um
s ímbo l o com qua t ro pon tos em fo rma de l osango e qua t ro
t r aços c ruzados po r c ima de les ) .
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 2 9 - 4 2 , 2 0 1 7
5 C O N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S
Cons i de rando t odos os t i pos de ed i ção , f o ram esco l h i das
t r ês : f ac -s im i l a r , po i s f az com que o l e i t o r t enha con t a to com
uma ed i ção de n í ve l ze ro de i n te rvenção do ed i t o r , pa ra que
es te possa ve r i f i c a r a t opog ra f i a do t ex to e as cond ições em
que e l e se encon t ra ; a ed i ção d i p l omát i c a , para f ac i l i t a r a l e i t u -
ra do documento , que pode se r d i f i c u l t ada pe l a ca l i g r a f i a do
au to r ; e a mode rn i zada , que f ac i l i t a a l e i t u ra do documen to po r
pessoas não espec i a l i z adas , um púb l i c o gera l . Nas duas ú l t i -
mas , é poss í ve l obse rva r um con t ras te de va r i ação da o r t o -
g ra f i a , obse rvação que i n te ressa bas t an t e aos es tudos h i s t ó r i -
cos da l í ngua . Po r t an to , a ed ição de um tex to é de ex t rema
impo r t ânc i a , po i s é a pa r t i r de l a que se v i ab i l i z am a pub l i c ação
e d i vu l gação do documento pa ra a rea l i z ação de es tudos po r
d i ve rsas á reas .
Ab s t r ac t : T he p r e sen t a r t i c l e a ims t o h i g h l i g h t t h e impo r t ance
o f t h e w r i t t e n t e x t , t h e P h i l o l o g y ’ s s t u d y o b j e c t , f o r c u l t u r a l
a n d s o c i a l r e s c u e a n d p r e s e r v a t i o n o f t h e p a s t . O p e n i n g
p o s s i b i l i t i e s f o r s t u d i e s i n s e v e r a l a r e a s o f k n ow l e d g e , t h e
Tex t ua l C r i t i c i sm ( Ph i l o l o gy i n s t r i c t o sensu ) i n t e n t s t o p r epa r e
t h e w r i t t e n t e x t , e s t a b l i s h a n d f i x i t f o r p u b l i c a t i o n , w i t h t h e
r equ i r e d accu r acy t o ma i n t a i n t he t r ansc r i p t i o n o f t he t e x t t h e
mos t s im i l a r t o t he o r i g i n a l a s poss i b l e , so t he r e sea r che r has
a r e l i a b l e t e x t i n h i s /he r hands . B ased on t he me t hodo l ogy o f
C amb r a i a ( 2 0 0 5 ) , S a n t o s e S ou z a ( 2 0 1 2 ) , S i l v a ( 2 0 1 2 ) , a n d o n
t he ed i t i o n c r i t e r i a e s t a b l i s hed by Ba r r e i r o s ( 2 0 1 2 ) , adap t e d t o
t h e n e c e s s i t y o f t h e d o c um e n t , i t w a s d o n e , i n t h i s a r t i c l e ,
t h r e e t ypes o f ed i t i o n s : f a c - s im i l a r , d i p l oma t i c and mode rn i z ed
o f a s i n g l e t e s t i m o n y d o c um e n t , o n e c r i m i n a l c om p l a i n t o f
t h i e ve ry o f c a t t l e ’ s buy and se l l i n t h e d i s t r i c t o f T anqu i nho –
BA , i n 1 933 .
K e y w o r d s : T e x t u a l C r i t c i s m . T y p e s o f e d i t i o n . C r i m i n a l
Comp l a i n t .
42
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 2 9 - 4 2 , 2 0 1 7
R E F E R Ê N C I A S
BARRE IROS , Pa t r í c i o Nunes . Sone tos de Eu l á l i o Mo t t a . Fe i r a de
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CAMBRA IA , Césa r Na rde l l i . I n t rodução à c r í t i c a tex tua l . São
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SANTOS , Rosa Bo rges dos ; SOUZA , Ar i va l do Sac ramen to de .
F i l o l og i a e ed ição de t ex to . I n : SANTOS , Rosa Bo rges dos ;
SOUZA, Ar i va l do Sac ramen to de ; MATOS , Edua rdo S i l v a Dan t as
de ; ALME IDA , I sabe l a San tos de . Ed i ção de tex to e c r í t i c a f i l o l óg i c a . Sa lvado r : Qua r t e to , 20 12 . p . 1 5 -59 .
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Env i ado em : 1 9/02/20 17 .
Ap rovado em : 09/ 10/20 17 .
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 4 3 - 5 7 , 2 0 1 7
I S S N 2 2 3 6 - 3 3 3 5
A L I NGU Í S T I CA MO DE R NA E F E R D I NA ND D E
SA U SSUR E : D I S CU T I N DO CO NCE I TO S
Max S i l v a d a R o c h a 1
U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e A l a g o a s ( U N EAL )
L i c e n c i a t u r a em L e t r a s - P o r t u g u ê s
m s r l e t r a s @ gma i l . c om
Resumo : O p r esen te a r t i g o busca , em l i n h as ge r a i s , f aze r uma
b reve re f l exão ace rca de a l guns conce i t os saussu r i anos como
l í n g u a/ l i n g u agem , s i g n i f i c a d o/s i g n i f i c an t e , d i a c r o n i a / s i n c r on i a ,
s i gno l i ngu í s t i c o , como t ambém ev i denc i a r as con t r i bu i ções que
o l i n g u i s t a g e n e b r i n o d e u p a r a a e f e t i v a ç ã o d a L i n g u í s t i c a
c o m o c i ê n c i a d a l i n g u a g em . S a b e - s e q u e a p u b l i c a ç ã o d o
Cu r s o d e L i n g u í s t i c a Ge r a l – CLG , d e u o pon t a p é i n i c i a l p a r a
q u e a L i n g u í s t i c a f o s s e c o n s i d e r a d a c i ê n c i a . N e s s e s e n t i d o ,
p r o c u r a m o s c o m p r e e n d e r c o m o i s s o a c o n t e c e u e q u a l a
re l evânc i a pa ra os es tudos l i ngu í s t i c os . Pa ra t an t o , r eco r remos
a d i v e r s o s au t o r e s como C r y s t a l ( 2 0 08 ) , F i o r i n ( 2 0 07 ) , L y ons
( 1 9 8 1 ) , S a u s s u r e ( 2 0 0 6 ) , S a n t o s e t a l . ( 2 0 1 4 ) a l ém d e o u t r o s
t e ó r i c o s . P o r t a n t o , c o n s t a t o u - s e q u e a L i n g u í s t i c a , c o m o
c i ê n c i a , p a s s o u s e r e s t u d a d a c om m a i o r ê n f a s e a p a r t i r d e
S a u s s u r e e q u e o s e s t u d o s a t u a i s p r o c u r a m d e s v e l a r o s
f a t o r e s que ocas i o na ram uma ascensão t ão impo r t an t e pa r a a
c i ênc i a como um todo .
Pa l av ras -chave : L i ngu í s t i c a . Saussu re . C i ênc i a .
1 C O N S I D E R A Ç Õ E S I N I C I A I S
É po r me i o da pesqu i sa que adqu i r imos conhec imen tos
das ma i s d i ve rsas á reas . A pa r t i r dessa p rem i ssa , o p resen te
a r t i go busca , em l i nhas ge ra i s , f aze r uma b reve re f l exão
ace rca dos es tudos saussu r i anos , bem como des t aca r
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 4 3 - 5 7 , 2 0 1 7
r e l evan tes con t r i bu i ções que Saussu re deu pa ra os es tudos da
l í ngua/ l i nguagem .
Fe rd i nand de Saussu re de f i n i u a L i ngu í s t i ca como uma
c i ênc i a , e l egendo a l í ngua como ob j e t o de es tudo . Desse modo ,
a L i ngu í s t i c a v i sa ana l i s a r como es t a capac i dade humana se
f az p resen te nos i nd iv í duos e como e l a se es t ru tu ra , sendo
pass í ve l de aná l i se po r se r homogênea , abs t r a t a , s i s t emá t i ca ,
soc i a l . No d i ze r de A lme i da e O l i ve i r a ( 20 14 , p . 43 ) “ a l í ngua se
cons t i t u i enquan to a pa r t e da l i nguagem que es t á subme t i da ao
f a t o soc i a l p resen te , e a ação do t empo cond i c i onada ao háb i t o
e ao uso , cumpr i ndo a u t i l i t á r i a f unção de comun i ca r [ . . . ] ” . É
nesse aspec to que buscamos en tende r os es tudos saussu r i a -
nos .
Sabendo que Saussu re de f i n i u como ob j e t o de es tudo a
l í ngua , nos p ropomos d i scu t i r como o pa i da l i ngu í s t i c a mode r -
na de f i ne a l guns conce i t os bás i cos ap resen tados no Curso de
L i ngu í s t i c a Ge ra l (CLG ) , como t ambém as p r i nc i pa i s ca rac te r í s -
t i c as da l í ngua , f azendo , ass im , uma b reve aná l i se sob re o
conce i t o de l í ngua/ l i nguagem e a sua p r i nc i pa l f unção , que
como j á d i t o , é a de comun ica r .
Nesse sen t i do , d i scu t imos , nes t e b reve es tudo , a l guns
conce i t os saussu r i anos , como l í ngua/ f a l a , l í ngua/ l i nguagem ,
d i ac ron i a/s i nc ron i a , s i gn i f i c ado/s i gn i f i c an te/s i gno , a l ém de
ou t ros aspec tos re l evan tes pa ra o es tudo da l i ngu í s t i c a
mode rna , o qua l t em Saussu re po r f undado r .
2 A L Í N G U A / L I N G U A G E M E M S A U S S U R E
A l i nguagem é f asc i nan t e , po i s com e l a o homem man tém
a l gum t i po de d i á l ogo ou i n t e ração . Não ex i s t e comun i cação
sem l i nguagem , po i s e l a , sendo ve rba l ou não , consegue t r ans -
m i t i r qua l que r t i po de mensagem . Os es tudos sob re a l i ngua -
gem remon tam a t empos l ong í nquos . Podemos i den t i f i c a r t r ês
f ases e , espec i f i c amen te , a t r ês f ases p r imo rd i a i s , a sabe r : a )
a g ramát i c a dos g regos , que f o i con t i nuada pe l os f r anceses ,
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 4 3 - 5 7 , 2 0 1 7
cu jos es tudos não se i n t e ressavam pe l a l í ngua e se f undavam
p r i nc i pa lmen te pe l a l óg i c a ; b ) os es tudos f i l o l óg i cos , que apa re -
ce ram em A lexand r i a , e cu j o t e rmo f i l o l og i a es t á l i g ado sob re -
t udo ao mov imen to c i en t í f i c o da época ; c ) a g ramá t i c a compa -
rada , que es tuda as re l ações en t re as l í nguas e i nves t i ga
como e l as se o r i g i na ram , qua i s as f i l i a ções en t re as l í nguas ,
r am i f i c ações l i ngu í s t i cas , e tc . ( BASSETO , 2005 , p . 34 -35 ;
SAUSSURE , 2006 , p . 1 3 - 1 5 ) .
Não se pode f a l a r em l i nguagem sem menc i ona r a l í ngua ,
apesa r de se rem d i s t i n t as , e l as são i n t e rdependen tes , ou se j a ,
é na l i nguagem que a l í ngua se mate r i a l i z a .
O e s t u d o d a l i n g u ag em c omp o r t a , p o r t a n t o , d u a s
p a r t e s : um a e s s e n c i a l , t em p o r o b j e t o a l í n g u a , q u e é
s o c i a l em s u a e s s ê n c i a e i n d e p e n d e n t e d o i n d i v í d u o ;
e s s e e s t u d o é u n i c ame n t e p s í q u i c o ; o u t r a , s e c u n d á r i a ,
t e m p o r o b j e t i v o a p a r t e i n d i v i d u a l d a l i n g u a g em , v a l e
d i z e r , a f a l a , i n c l u s i v e a f o n a ç ã o e é p s i c o f í s i c a
( S AUSSUR E , 2 0 0 6 , p . 2 7 a p u d OL I V E I R A ; P AULA , 2 0 1 4 ,
p . 3 5 ) .
Es t as pa l av ras são de um dos p r i nc i pa i s es t ud i osos da
l í ngua , Fe rd inand de Saussu re , que no seu Curso de L i ngu í s t i c a
Ge ra l , do ravan te CLG , a de f i n i u como um s i s t ema de s i gnos .
Es te mesmo au to r f o i quem deu o pon t apé i n i c i a l aos es tudos
l i ngu í s t i c os mode rnos , ou se j a , f o i com e l e que a l i ngu í s t i c a
a l c ançou o s t a t us de c i ênc i a , no i n í c i o do sécu l o XX .
Tomando como base os es tudos e as pesqu i sas rea l i z a -
das po r Saussu re , vemos que o au to r geneb r i no de f i n i u a
l í ngua como ob je t o cen t r a l dos es tudos l i ngu í s t i c os .
[ . . . ] a l í n g u a é um o b j e t o h e t e r ó c l i t o d o s f a t o s d a l i n g u a g em ; p a r t e s o c i a l e e x t e r i o r a o i n d i v í d u o , q u e n ã o p o d e r e c r i á - l a e n em m o d i f i c á - l a , e q u e n ã o e x i s -t e s e n ã o em v i r t u d e d e um a f o rm a d e c o n t r a t o p r é -e s t a b e l e c i d o ; s e n d o a l í n g u a d i s t i n t a d a f a l a , c a b e e s t u d á - l a s e p a r a d ame n t e : um a h omo gê n e a e a o u t r a h e t e r o g ê n e a ; a l í n g u a s o c i a l , e s s e n c i a l , r e g i s t r a d a
46
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 4 3 - 5 7 , 2 0 1 7
p a s s i v am en t e , p s í q u i c a , é a s om a d e m a r c a s d o c é r e -b r o e m od e l o c o l e t i v o , c o n t r a p o n d o - se à f a l a , q u e é i n d i v i d u a l , a c e s s ó r i o , m a i s o u m e no s a c i d e n t a l , a t o d e v o n t a d e e i n t e l i g ê n c i a , p s i c o f í s i c a , s om a d a q u i l o q u e a s p e s s o a s d i z em , e n ã o c o l e t i v a ( GONÇALVES ; AMARAL , 2 0 1 4 , p . 1 7 ) .
Vê-se , po i s , que Saussu re enf a t i za a l í ngua como o
p r i nc i pa l ob j e t o de es tudo da L i ngu í s t i c a . Impo r t an te obse rva r
que a l í ngua mesmo sendo soc i a l não pode se r mod i f i c ada po r
um ún i co i nd i v í duo ; j á a f a l a é i nd i v i dua l , i s t o é , r esu l t ado de
a t os de von t ade e i n t e l i g ênc i a que são i nd i v i dua i s . A l í ngua é
soc i a l po r se r comum a t odo se r humano e po r se r o p r i nc i pa l
ve í cu l o de comun icação ve rba l es t abe l ec i do en t re os i nd i v í -
duos , o que nos d i f e renc i a dos ou t ros an ima i s . A l í ngua “ [ . . . ]
não se con funde com a l i nguagem ; é somen te uma pa r te
de te rm i nada , essenc i a l de l a , i ndub i t ave lmen te ” ( SAUSSURE ,
2006 , apud MORA IS ; SANTOS , 20 14 , p . 75 ) . Po r i sso é cons i de -
r ada homogênea e un ive rsa l .
De aco rdo com Labov ( 2008 ) , a l í ngua é um con jun to
es t ru t u rado po r me i o de no rmas soc i a i s . Os e l emen tos que
compõem a es t ru tu ra l i ngu í s t i c a es t ão embasados na va r i ação
s i s t emát i c a que se re f l e tem t an to na mudança es t abe l ec i da
pe l o tempo , quan to nos aspec tos ex t r a l i ngu í s t i c os .
A l i nguagem , po r seu l ado , é t udo aqu i l o que passa uma
mensagem que pode se r l i d a a t r avés de cód i gos l i ngu í s t i cos ou
po r desenhos em ca r t azes , confo rme pon tuam A lme i da e
O l i ve i r a ( 20 14 , p . 49 ) : “Saussu re de f i ne a l i nguagem como uma
capac i dade humana cu j a man i f es t ação i nd i v i dua l é a f a l a , e o
p rodu to soc i a l é a l í ngua , sendo , po r t an to , imposs íve l concebe r
uma sem a ou t r a . ”
Dessa mane i r a , a f a l a é um p rocesso de i n te ração ve rba l
que se cons t i t u i a t r avés da comun i cação en t re os i nd i v í duos , o
que poss i b i l i t a o en tend imen to en t re os f a l an t es . Dessa f o rma ,
e l a é he te rogênea e i nd i v i dua l . A l i nguagem e a soc i edade
possuem fo r te re l ação , uma depende da ou t r a , uma vez que a
f a l a só é rea l i z ada po r me i o do homem em suas re l ações
47
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 4 3 - 5 7 , 2 0 1 7
soc i a i s , po i s , consoan te A lme i da e O l i ve i r a ( 20 14 , p . 54 ) , “ é
a t r avés da l i nguagem que se des t ró i a s i mesmo e o mundo
que é ex te r i o r , abandona -se ou dom ina -se o que es t á den t ro
e fo ra da rea l i d ade . ”
No en tend imen to de F i o r i n ( 2007 ) , a l i nguagem é au tônoma
e se re l ac i ona nas exp ressões que nós desenvo lvemos , como
po r exemp l o : pa ra t r a ta r de emoções , i de i as , p ropós i t os . En t re -
t an to , e l a t em uma or i en t ação de mundo , da rea l i d ade soc i a l
dos f a l an t es . É pe r t i nen te ac rescen t a r o que a f i rma Crys t a l
( 2008 , p . 1 60 ) sob re a l i nguagem :
[ . . . ] T e rm o d e s e n t i d o a b s t r a t o q u e s e r e f e r e à f a c u l -
d a d e b i o l ó g i c a q u e p o s s i b i l i t a a o s i n d i v í d u o s a p r e n d e r
e u s a r a s u a l í n g u a [ . . . ] . Um a c a p a c i d a d e i m p l í c i t a n a
n o ç ão d e ‘ d i s p o s i t i v o d e a q u i s i ç ã o d a l i n g u a g em ’ d a
p s i c o l i n g u í s t i c a . A i n d a em n í v e l a b s t r a t o a l i n g u a g em é
um a c a r a c t e r í s t i c a d o c om p o r t am en t o h um an o .
Nesse en tend imen to , compreende -se que a l i nguagem
exe rce um impor t an t e pape l no p rocesso de i n te ração soc i a l
en t re os i nd i v í duos . Segundo T ravag l i a ( 2008 ) , é po r me i o da
l i nguagem que acon tece a i n t e ração en t re os se res humanos ,
pe l a qua l e l e s se comun i cam , se en t endem , p roduzem e fe i t os
de sen t i dos nas s i t uações de comun i cação en t re os f a l an tes
de uma es fe ra soc i a l . Co r robo rando com essa i de i a , é vá l i do
reg i s t r a r que a l i nguagem é a exp ressão do pensamen to
deco r ren te da comun i cação en t re os se res humanos e do
en tend imen to no p rocesso comun ica t i vo dos i nd iv í duos . Ass im ,
é po r me i o da l i nguagem que i n t e rag imos e rea l i z amos a comu -
n i cação ve rba l .
3 A L I N G U Í S T I C A M O D E R N A C O M O C I Ê N C I A
De f i n i da a L i ngu í s t i ca como c iênc i a e a l í ngua como ob j e to
de es tudo , t emos no i n í c i o do sécu l o XX uma t r ans fo rmação
nos es tudos a t é en t ão desenvo lv i dos , e es t e
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 4 3 - 5 7 , 2 0 1 7
t r a b a l h o r e a l i z a d o p o r S a u s s u r e d e d e l i m i t a r um o b j e t o
e e s c o l h e r um a m e t o d o l o g i a a d e q u a d a a o s e s t u d o s
l i n g u í s t i c o s r e p r e s e n t o u um p r o c e s s o d e c i e n t i f i c i z a -
ç ã o d a q u i l o q u e h á m u i t o t em po v i n h a s e n d o r e a l i z a -
d o , m a s d e f o rm a d e s o r d e n ad a , o u s e j a , o s e s t u d o s
l i n g u í s t i c o s e r am r e a l i z a d o s m e smo s em o c a r á t e r
c i e n t í f i c o a t r i b u í d o p o r S au s s u r e ( COSTA , 2 0 1 4 , p . 6 1 ) .
“Po r ou t ro l ado , abandonam -se as especu l ações i n f unda -
das que t i nham como base as obse rvações emp í r i c as , sem
amparo c i en t í f i c o , sendo r i c as em p reconce i t os e dogmas p ré -
es t abe lec i dos . Pe l a p r ime i r a vez , a l í ngua é v i s t a como ob j e t o
conc re t o da c i ênc i a [ . . . ] ” (OL IVE IRA ; PAULA, 20 14 , p . 4 1 ) .
Houve , po r t an t o , um ape r fe i çoamen to dos es tudos a t é en t ão
desenvo lv i dos .
Dando um ob j e to de es tudo à L i ngu í s t i c a , Fe rd i nand de
Saussu re es tava consegu i ndo so l uc i ona r uma necess i dade que
j á v i nha há anos se pro l ongando .
As r e l e i t u r a s f e i t a s n o C LG d e S a u s s u r e d e t e rm i n a r am
a c o n s t r u ç ão d e um a t e o r i a q u e p o d e r i a f i c a r a p e n a s
n a memó r i a d e p o u c o s a l u n o s q u e t e s t em un h a r am a s
a u l a s p e l o m e s t r e g e n e b r i n o . E n t r e t a n t o , a g e n i a l i d a d e
d e s s e l i n g u i s t a , i n e v i t a v e lm e n t e , i n f l u e n c i o u o s e s t u d o s
d e um c am po d o s a b e r p o r e l e t r a n s f o rm a do em c i ê n -
c i a ( COSTA , 2 0 1 4 , p . 7 0 ) .
Sem dúv i das , o CLG mudou o conce i t o de l i ngu í s t i c a .
Saussu re ap resen tou d i co tom i as ; como o de s i nc ron i a e d i ac ro -
n i a . A p r ime i r a es t á re l ac i onada aos avanços da l í ngua e es tu -
da as va r i ações e a l t e rações po r uma comun i dade de f a l an t es
a t r avés dos t empos ; o p róp r i o Saussu re a f i rma que n i nguém
po r s i só pode mod i f i c á - l a . A s i nc ron i a é pa r t e essenc i a l nos
es tudos l i ngu í s t i cos , po i s es t á l i g ada ao momento da i nves t i ga -
ção . A d i ac ron i a , po r sua vez , re l ac i ona -se a h i s t o r i c i dade da
l í ngua , o que não va i se r t ão impo r t an t e nes t a f ase l i ngu í s t i c a ,
v is to que a d iacron i a remete aos estudos h is tór icos e f i l o lóg i cos .
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 4 3 - 5 7 , 2 0 1 7
A lém da s i nc ron i a/d i ac ron i a , t emos o s i gno l i ngu í s t i co ,
ca rac te r i zado po r do i s e i xos , a sabe r : o s i gn i f i c ado e o s i gn i f i -
can te . O p r ime i r o represen t a o conce i t o de uma de te rm i nada
pa l av ra . Já o segundo , es t á re l ac i onado à imagem acús t i c a .
Sendo ass im , não se t em uma pa l av ra conc re t a , mas uma
p rodução sono ra . Um bom exemp l o desses do i s segmentos é a
pronúnc i a da pa l av ra “cacho r ro ” . O som e o pensamen to que
t emos da pa l av ra se con f i gu ram no s i gn i f i c an te . O conce i t o
que conhecemos : um an ima l , pe l udo , domés t i co , den t re ou t r as
ca rac te r í s t i c as , r ep resen t a o s i gn i f i c ado (SAUSSURE , 2006 , p .
80 ) . São nesses do i s segmentos que o s i gno l i ngu í s t i c o es t á
presen te , po i s e l e co r responde a um s i gn i f i c ado e um s i gn i f i -
can te .
O s i g n o l i n g u í s t i c o n ã o u n e um a c o i s a e um a p a l a v r a ,
m a s um c o n c e i t o e um a i m a g em a c ú s t i c a . E s t e n ã o é
um s om m a t e r i a l , c o i s a p u r am en t e f í s i c a , m a s a
i m p r e s s ã o ( emp r e i n t e ) p s í q u i c a d o s om , a r e p r e s e n t a -
ç ã o q u e d e l e n o s d á o t e s t emu n ho d e n o s s o s s e n t i -
d o s ; t a l i m a g em é s e n s o r i a l e , s e c h e g a rm o s a c h am á -
l a ‘ m a t e r i a l ’ , é s ome n t e n e s t e s e n t i d o , e p o r o p o s i ç ã o
a o o u t r o t e r mo d a a s s o c i a ç ã o . O c o n c e i t o , g e r a lm e n t e
m a i s a b s t r a t o ( SAUSSUR E , 2 0 0 6 , p . 8 0 a p u d OL I V E I R A ;
P AULA , 2 0 1 4 , p . 3 6 ) .
Vê-se , po i s , que o s i gno é ca rac t e r i zado por uma imagem
acús t i c a e um conce i t o , a l ém da f unção de opos ição que é
uma ca rac te r í s t i c a p róp r i a do s i gno e das d i co tom i as saussu r i -
anas . Um s i gno é aqu i l o que ou t ro não é , ou se j a , um s i gno só
t e rá sen t i do se f o r d i f e renc i ado dos ou t ros s i gnos , da í su rge o
exemp l o que Saussu re nos dá comparando com o j ogo de
xad rez : se co l oca rmos ou t r a peça no l uga r do cava l o , aque l a
peça va i r ep resen t á - l o no rma lmente sem a l t e ra r a es t ru t u ra do
j ogo , po rque de acordo com Saussu re ( 2006 , p . 1 34 apud
MEN ICON I ; S ILVE IRA , 20 14 , p . 87 ) “uma pa l avra pode se r t roca -
da po r a l go desseme lhan te : uma i de i a ; a l ém d i sso , pode se r
comparada com a l go da mesma na tu reza : uma ou t r a pa l av ra
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 4 3 - 5 7 , 2 0 1 7
[ . . . ] ” . Da mesma fo rma é o s i gno , j á que pode so f re r a l t e rações ,
mas não pode pe rde r a sua essênc i a .
4 O E S T R U T U R A L I S M O S A U S S U R I A N O
No i n í c i o do sécu l o XX , su rge o es t ru t u ra l i smo saussu r i a -
no embasado no Curso de L i ngu í s t i c a Ge ra l (CLG ) , o qua l
avança sob re os pa rad i gmas que v i nham sendo es tudados a té
aque l a época , ha j a v i s t a que “a l i nguagem no pe r í odo p ré -
saussu r i ano e ra es tudada de mane i r a ass i s t emá t i c a , i r r egu l a r ,
t endo um ca rá te r pu ramente no rma t ivo e desc r i t i vo . Nesse
sen t i do , os es tudos e ram mesc l ados às pesqu i sas f i l o l óg i -
cas ” (MORA IS ; SANTOS , 20 14 , p . 72 ) . As t eo r i as mudam com a
pub l i c ação do CLG . A ob ra é l ançada po r Cha r l e s Ba l l y e
A l be r t Sechehaye , os qua i s f o ram a l unos de Saussu re du ran t e
os t r ês cu rsos que o mes t re genebr i no m i n i s t r ou na
Un ive rs i dade de Geneb ra . O CLG fo i pub l i c ado no ano de 1 9 16
e a t é os d i as a t ua i s segue como a p r i nc i pa l ob ra da l i ngu í s t i c a
mode rna .
A p r i nc i pa l ob ra de Saussu re p ropo rc i onou um ape r fe i ço -
amen to nos es tudos l i ngu í s t i cos que se t i nham no sécu l o X IX .
Nes t e sécu l o a L i ngu í s t i c a e ra t i da como h i s tó r i co -compara t i va .
Como v imos an te r i o rmente , Saussu re não se p reocupava em
es tuda r a l í ngua em sua d i ac ron i a , ou se j a , na sua h i s t o r i c i da -
de . O au to r demonst ra , no CLG , que a l í ngua p rec i sa se r es tu -
dada em sua s i nc ron i a , po r i sso os mo t i vos de emba te com os
es tudos da época . Pa ra O l i ve i r a e Pau l a ( 20 14 , p . 4 1 ) :
F o r am e s s a s a s i d e i a s e s t r u t u r a i s s o b r e a l í n g u a q u e t r a n s f o rm a r am F e r d i n a n d d e S a u s s u r e n o p a i d a l i n g u í s t i c a m o d e r n a , e p o s s i b i l i t a r am um a v e r d a d e i r a r u p t u r a e p i s t emo l ó g i c a n o s e s t u d o s l i n g u í s t i c o s , p o i s é , a p a r t i r d e s s e m ome n t o , q u e t emo s um o b j e t o r e a l d e i n v e s t i g a ç ã o , a L í n g u a .
Saussu re t r az novas pe rspec t i vas pa ra os es tudos da
l í ngua . É imp resc i nd í ve l menc i ona rmos as d i s t i nções que o
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 4 3 - 5 7 , 2 0 1 7
l i n gu i s t a geneb r i no fez com re l ação à l í ngua e f a l a no CLG .
C l ass i f i cou a p r ime i r a como fo rma e a segunda como subs -
t ânc i a . Fo rma , po rque é a es t ru tu ra o rgan i zada , abs t r a t a e
não pa l páve l . A subs tânc i a , po r sua vez , co r responde àqu i l o
que é pa l páve l , pass í ve l de a l t e rações . Um bom exemp lo
dessas duas c l ass i f i c ações é a segu i n t e f r ase : “Nó i s pagamo
as con t a ” . Mesmo con tendo i nc i den tes/ re f l exos de f a l a , pode -
mos pe rcebe r que a es t ru t u ra P ronome + Ve rbo + Ob je t o se
man tém , po i s , as a l t e rações se encon t ram na f a l a que é i nd i -
v i dua l po r na tu reza . Desse modo , são pecu l i a r i dades i nd i v i du -
a i s e não ge ra i s como as reg ras da l í ngua , ou se j a , esses
f a t os acon tecem na f a l a de a l guns i nd i v í duos , mas i sso não
mod i f i c a a es t ru t u ra ge ra l da l í ngua . Mesmo com os desv i os ,
a es t ru t u ra con t i nua sendo a de uma sen tença de nossa
l í ngua ma te rna .
Pos t as es t as ques tões impo r tan tes pa ra nosso es tudo ,
ap resen t amos as p r i nc i pa i s d i s t i nções en t re l í ngua e f a l a .
Ve j amos o quad ro a segu i r :
Quad r o 1 - D i s t i n ções en t r e l í n gua e f a l a
L ÍNGUA FALA
Soc i a l I nd i v i d ua l
Homogênea He t e r ogênea
S i s t emá t i c a Ass i s t emá t i ca
Cons t a n t e Va r i á ve l
E s senc i a l Ac i den t a l
S i s t ema Rea l i z a ção
Fo rma Subs t â nc i a
Es sênc i a Apa r ênc i a
Cons t a n t e C i r c uns t a nc i a l
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 4 3 - 5 7 , 2 0 1 7
Pe rcebemos as opos i ções en t re l í ngua ( soc i a l ) e f a l a
( i nd i v i dua l ) ; no en t an to , e l as são i n t e rdependen tes e imp resc i n -
d íve i s pa ra a e fe t i vação da comun i cação , uma vez que p rec i -
samos de ambas . Não há l í ngua sem a rea l i z ação no me i o
soc i a l ; do mesmo modo não há f a l a sem a l í ngua . Es t a conven -
ção soc i a l se ap resen t a de vá r i as f o rmas na soc i edade e é
es te f a t o r que i r emos abo rda r no p róx imo t óp i co des t e es tudo .
5 A S L Í N G U A S V A R I A M
A va r i ação l i ngu í s t i c a é um fenômeno que oco r re en t re os
i nd i v í duos de uma de te rm i nada comun i dade de f a l a . Sabendo -se
que a l í ngua va r i a e so f re mod i f i c ações , f az -se necessá r i o que
en tendamos seu p rocesso de f o rmação e de va r i ações . No que
tange às var iações , convém fr isa r que e l as ocorrem na mater i -
a l i dade da l í ngua e nesse ponto devemos d issoc ia r da l i ngua gem.
P o r t a n t o , a l í n g u a e l i n g u a g em s ã o d i s t i n t a s , um a s e n d o a e s t r u t u r a f o rma q u e s e r v e d e v e í c u l o d e c om u n i c a ç ã o n o âm b i t o d e um a c u l t u r a e s p e c í f i c a , e n q u a n t o a l i n g u a g em a b a r c a t o d a a f a c u l d a d e u n i v e r s a l d e c omu n i c a ç ão a t r a v é s d a a s s o c i a ç ã o d e um c o n t e ú d o d e p e n s am en t o a um a m an i f e s t a ç ã o s o n o r a . L o g o , a l i n g u a g em à q u a l S a u s s u r e s e r e f e r e é i n d i s c u t i v e l m e n t e h um an a e f a l a d a ( A LME I DA ; O L I V E I R A , 2 0 1 4 , p . 4 3 ) .
Em nosso caso espec í f i c o f a l amos o po r t uguês , po rém o
po r t uguês b ras i l e i r o ( PB ) . A l guns pa í ses f a l am es te i d i oma , mas
nessa l í ngua , como em todas , há va r i ações . Es t as va r i ações
são d i f e renças que cons t i t uem uma va r i ação d i a t óp i c a , ou se j a ,
de l uga r . É impo r t an te sa l i e n t a rmos que essas mudanças no
po r t uguês não impedem a comun i cação en t re os f a l an tes des t a
l í ngua , apenas u t i l i z a -se ou t ros t e rmos na comun icação , a i nda
que f a l ando o mesmo i d i oma . Essas d i f e renças são pe rceb i das
em d i ve rsos aspec tos , a sabe r : o reg iona l , o cu l t u ra l , o econô -
m ico , a i dade , a l ém de ou t ros .
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 4 3 - 5 7 , 2 0 1 7
Nessa pe rspec t i va , podemos i den t i f i c a r a l gumas d i f e ren -
ças en t re o PB e o chamado Po r t uguês Eu ropeu (PE ) , de
Po r t uga l . Confo rme pon tua Bagno ( 2008 , p . 1 9 ) :
i ) D i f e r e n ç a s f o n é t i c a s ( n o mo do d e p r o n u n c i a r o s s o n s d a
l í n g u a ) : o b r a s i l e i r o d i z e u s e i , o p o r t u g u ê s d i z e u s â i ; i i ) D i f e r e n ç a s s i n t á t i c a s ( n o m o do d e o r g a n i z a r a s f r a s e s , a s
o r a ç õ e s e a s p a r t e s q u e a c om põ em ) : n ó s n o B r a s i l d i z em o s e s t o u f a l a n d o c om v o c ê ; em P o r t u g a l e l e s d i z em e s t o u a f a l a r c o n s i g o ;
i i i ) D i f e r e n ç a s l e x i c a i s ( p a l a v r a s q u e e x i s t em l á , e n ã o e x i s t em c á e v i c e - v e r s a ) o p o r t u g u ê s c h am a d e s a l o i o a q u e l e h a b i t a n t e d a z o n a r u r a l , q u e n o B r a s i l a g e n t e c h am a d e c a i p i r a , c a p i a u e m a t u t o ;
i v ) D i f e r e n ç a s s em ân t i c a s n o s e n t i d o d a s p a l a v r a s ( n o s i g n i f i c a d o d a s p a l a v r a s ) : c u e c a s em P o r t u g a l s ã o a s c a l c i n h a s d a s b r a s i -l e i r a s ;
v) D i f e r e n ç a s n o u s o d a l í n g u a . P o r e x em p l o , v o c ê s e c h am a S i l v i a e um p o r t u g u ê s m u i t o am i g o s e u q u e r t e c h am a r p a r a j a n t a r : “ A S i l v i a j a n t a c o n o sc o ” ? S e v o c ê n ã o e s t i v e r a c o s t um ad a c om e s s e u so d i f e r e n t e , p o d e r á p e n s a r q u e e l e e s t á f a l a n d o d e um a o u t r a S i l v i a , e n ã o d e vo c ê . P o r q u e , n o B r a s i l , um am i g o f a r i a o me smo c o nv i t e , m a i s o u m en o s a s s i m : “ S i l v i a , v o c ê q u e r j a n t a r c om a g e n t e ? ” N ó s n ã o t emo s , c omo o s p o r t u g u e s e s , o h áb i t o d e f a l a r d i r e t am e n t e c om a l g u ém c omo s e e s s e a l g u ém f o s s e um a t e r c e i r a p e s s o a .
Embora sa i bamos que a l í ngua f a l ada no B ras i l é o po r tu -
guês , a f o rma de f a l a r va r i a de reg i ão pa ra reg i ão , o que f az
com que cada l uga r t enha sua pa r t i cu l a r i dade , bem como cada
i nd i v í duo possua ca rac te r í s t i c as pa r t i c u l a res na f a l a ; são es t as
ca rac te r í s t i c as que perme i am a va r i ação de um f a l an te pa ra o
ou t ro e se nome i a de he te rogene idade .
Não ex i s te uma l í ngua ún i ca que se j a f a l ada na mesma
ho ra e do mesmo j e i t o em d i f e ren tes l uga res , ass im como a
l í ngua que f a l amos ho j e não é a mesma que se f a l ava tempos
a t r ás , nem se rá a mesma que se f a l a r á no f u t u ro . A i nda sob re
homogene i dade e he te rogene i dade , é pe r t i nen t e des t aca r o que
sa l i e n t a T ravag l i a ( 2000 , p . 43 ) :
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 4 3 - 5 7 , 2 0 1 7
As d i f e r e n ç a s e n t r e a l í n g u a u s a d a em um a r e g i ã o e
o u t r a n o rm a lm e n t e s ã o em s u a g r a n d e m a i o r i a d i f e r e n -
ç a s n o p l a n o f o n é t i c o ( p r o n ú n c i a , e n t o n aç õ e s , t i m b r e
e t c . ) e n o p l a n o l é x i c o ( p a l a v r a s d i f e r e n t e s p a r a d i z e r
a m e sm a c o i s a , a s me sm as p a l a v r a s c om s e n t i d o d i f e -
r e n t e em um a e o u t r a r e g i ã o . O u s o m a i s f r e q u e n t e
d e um e o u t r o m o r f em a d e r i v a c i o n a l , e t c . ) . A s d i f e r e n -
ç a s s i n t á t i c a s q u a n d o e x i s t em , n o rm a l m e n t e n ã o s ã o
g r a n d e s .
D i an te do expos to , é vá l i do ressa l t a r que essas d i f e ren -
ças obse rvadas oco r rem de uma reg i ão pa ra ou t r a , mas que
t ambém se mos t ram no p rocesso de f o rmação das pa l av ras ,
no modo de p ronunc i á - l as , po rém a f o rma s i n t á t i c a e seu
sen t i do não são a l t e rados . Esses f a t o res não i n te r fe rem na
comun icação de pessoas de reg i ões d i f e ren tes que usam
te rmos d i s t i n t os ; i sso acon tece em v i r t ude de uma capac i dade
i na t a que t odo se r humano possu i de se adap t a r às d i f e ren tes
f o rmas de f a l a r .
Logo , f i c a c l a ro que a l í ngua é soc i a l e homogênea ,
enquan to a f a l a é i nd i v i dua l e he te rogênea , a l ém do que é
imposs í ve l concebe r uma sem a ou t r a , do mesmo modo que
não é poss í ve l que ha j a comun i cação en t re os f a l an t es sem a
con t r i bu i ç ão de ambas . Es te p rocesso de mod i f i c ação pe l o qua l
a l í ngua passa não é somen te na l í ngua po r t uguesa , mas é um
f a t o r comum a t odas as l í nguas .
6 C O N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S
Du ran t e es te b reve es tudo , pudemos no t a r que a l í ngua é
v i va e es t á em evo l ução . Também compreendemos que os
es tudos l i ngu í s t i c os tomaram ou t ro rumo quando o CLG de
Saussu re f o i pub l i c ado . V imos a i nda que se t i nham apenas
es tudos h i s t ó r i cos e compara t i s t as , mas o l i ngu i s t a geneb r i no
mudou es t e pano rama p ropondo uma abo rdagem c i en t í f i c a da
l i nguagem e de f i n i ndo o seu respec t i vo ob j e t o de es tudo , qua l
se j a , a l í ngua , com ên fase em sua s i nc ron i a .
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O es t ru t u ra l i smo de Saussu re p rovocou um marco na
c i ênc i a da l i nguagem e ab r i u as po r t as pa ra a e f e t i vação da
L i ngu í s t i c a como c i ênc i a e de suas subá reas , como a L i ngu í s t i -
ca Tex tua l , Aná l i se da Conve rsação , Aná l i se do D i scu rso ,
Soc i o l i ngu í s t i c a , den t re ou t r as á reas de i nves t i gação c i en t í f i c a .
Sem dúv i da , houve uma t r ans fo rmação nos es tudos
l i ngu í s t i c os a té en tão rea l i z ados e , a pa r t i r dessa v i são , pode -
mos ve r a l í ngua sob d i f e ren tes ângu l os e campos do sabe r
c i en t í f i co . O nosso t r aba l ho p rocu rou mos t ra r r ap i damen te um
pouco da impo r t ânc i a dos conce i t os saussu r i anos no campo
l i ngu í s t i c o . A nosso ve r , o t ex to pode se rv i r de i ncen t i vo e
i nqu i e t ações pa ra f u t u ras pesqu i sas nesse i nesgo t áve l campo
de i nves t i gação c i en t í f i c a chamado de l i ngu í s t i c a mode rna .
Quan to à pesqu i sa rea l i z ada , va l e sa l i e n t a r t e r s i do f asc i -
nan te , sem a p re tensão de que re r esgo ta r o assun to aqu i
t r a t ado . Nesse sen t i do , cons t i t u i - se num pon t apé i n i c i a l pa ra a
rea l i z ação de ou t ros f u t u ros es tudos nessa á rea . Po r f im , é
vá l i do r essa l t a rmos que a pesqu i sa é a essênc ia do n íve l supe r i o r .
Abs t r ac t : T h i s a r t i c l e see k s t o g i v e a b r i e f r e f l e c t i o n on some
S a u s s u r i a n c o n c e p t s s u c h a s l a n g u a g e / l a n g u a g e , m e a n i n g /
s i g n i f i e r , d i a c h r o n y / s y n c h r o n y , l i n g u i s t i c s i g n , a s w e l l a s t o
h i g h l i g h t t h e co n t r i b u t i o n s t h a t t h e Geneb r i a n l i n g u i s t g ave t o
t h e l i n g u i s t i c a s S c i e n c e o f l a n g u a g e . I t i s k n ow n t h a t t h e
p u b l i c a t i o n o f t h e C ou r s e o f Ge n e r a l L i n g u i s t i c s - CLG g av e
t he i n i t i a l k i c k - o f f f o r L i n g u i s t i c s t o be con s i d e r ed sc i e nce . I n
t h i s sense , we t r y t o unde rs t and how t h i s happened and wha t
t h e r e l e v a n c e f o r l i n g u i s t i c s t u d i e s . F o r t h i s , w e h a v e u s e d
s e v e r a l a u t h o r s s u c h a s C r y s t a l ( 2 0 0 8 ) , F i o r i n ( 2 0 07 ) , L y on s
( 1 9 8 1 ) , S a u s s u r e ( 2 0 0 6 ) S a n t o s e t a l . ( 2 0 1 4 ) b e s i d e s o t h e r
t h e o r i s t s . T h e r e f o r e , i t w a s f o u n d t h a t L i n g u i s t i c s , a s a
s c i e n c e , h a s b e e n s t u d i e d w i t h g r e a t e r e m p h a s i s f r o m
Saussure and tha t the cur ren t s tud ies seek to unve i l t he fac tors
that led to such an impor tant r ise for sc ience as a who le .
Keywords : L i ngu i s t i c s . Saussu re . Sc i ence .
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N O T A S 1 G r a d u a n d o d o 8 º p e r í o d o d o c u r so d e L e t r a s – P o r t u g u ê s p e l a
U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e A l a g o a s – U N EAL – C am pu s I I I , e m P a l m e i r a
d o s Í n d i o s . É B o l s i s t a d o P r o g r am a I n s t i t u c i o n a l d e B o l s a d e I n i c i a ç ão
à D o c ê n c i a – P I B I D / CAP ES /UN EAL .
Env i ado em : 14/02/20 17 .
Ap rovado em : 17/07/20 17 .
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 5 9 - 7 4 , 2 0 1 7
I S S N 2 2 3 6 - 3 3 3 5
A BOR DA G EM T RAD I C I O NA L E A BO RDA G EM
L I N GU Í S T I CA : U MA R E F L EXÃ O C R Í T I CA
SO B R E A CO NCEPÇÃO D E A NÁ L I S E
S I N TÁ T I CA
We l b e r N o b r e d o s S a n t o s
U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e Mon t e s C l a r o s ( U n i m o n t e s )
L i c e n c i a t u r a em L e t r a s P o r t u g u ê s
w e l b e r n o b r e @ h o tm a i l . c om
V e r a L ú c i a V i a n a d e P a e s
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L i c e n c i a t u r a em L e t r a s P o r t u g u ê s
v e r a p a e s 2@ gma i l . c om
R e s u m o : E s t e a r t i g o t e m c o m o p r i n c i p a l o b j e t i v o d i s c u t i r
c r i t i c am e n t e a c o n c e p ç ã o d e a n á l i s e s i n t á t i c a a d o t a d a p e l a
G r a m á t i c a T r a d i c i o n a l e m c o m p a r a ç ã o a d u a s v e r t e n t e s
t eó r i c as que emerg i r am no pano rama de es tudos l i ngu í s t i c os do
sécu l o XX : o Func i ona l i smo e a Soc i o l i ngu í s t i c a . Nes t e t r aba l ho ,
p a r t i m o s d a h i p ó t e s e d e q u e a G r am á t i c a T r a d i c i o n a l d e i x a
l a c unas no t r a t amen t o des se conce i t o e que os p r e ssupo s t os
t e ó r i c o s d o F u n c i o n a l i s m o e d a S o c i o l i n g u í s t i c a p o d em , e m
ce r t a med i d a , p r eenche r e ssas l a cunas , v i s t o que l i d am com a
l í ngua em uso e , po r i s so , ap resen t am pos tu ras ma i s e f i c i en t es
no que d i z respe i t o ao es tudo dos f enômenos l i ngu í s t i c os . Com
e s t e t r a b a l h o , q u e é d e c u n h o b i b l i o g r á f i c o , c o n s i d e r amo s a
impo r t ânc i a de semp re se ques t i o na r e r e f l e t i r sob r e t e o r i a s e
p o s t u r a s , m u i t a s v e z e s t i d a s c omo i n q u e s t i o n á v e i s , n o q u e
c o nc e r n e a o e s t u d o d a l í n g u a . A u t o r e s c omo Ce ga l l a ( 2 0 0 5 ) ,
B e c h a r a ( 2 0 0 9 ) , K u r y ( 2 0 00 ) , N e v e s ( 1 9 9 7 ) , H a l l i d a y ( 2 0 0 4 ) e
Labov ( 2008 ) nos aux i l i a r ão em nossas d i scussões .
P a l a v r a s - c h a v e : C o n c e i t o d e a n á l i s e s i n t á t i c a . G r a m á t i c a
T rad ic i ona l . Func i ona l i smo . Soc i o l i ngu í s t i c a .
60
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 5 9 - 7 4 , 2 0 1 7
1 I N T R O D U Ç Ã O
D i scu t i r sob re a concepção de aná l i se s i n tá t i c a s i gn i f i c a
re f l e t i r sob re a f o rma como nós , f a l an t es de uma de te rm inada
l í ngua na tu ra l , o rdenamos os e l emen tos l i ngu í s t i c os que es t ão à
nossa d i spos ição pa ra p roduz i rmos l i nguagem . Confo rme Garc i a
e Re i s ( 2003 , p . 2 1 6 ) , “ a s i n t axe é a pa r t e da g ramá t i ca que
es tuda as re l ações es t abe lec i das en t re as pa l av ras quando
e l as es t ão i nse r i das em o rações , pa rág ra fos e t ex tos i n t e i r os . ”
Essa é uma v i são t r ad i c i ona l da l í ngua , v i s t o que res t r i nge os
es tudos s i n t á t i c os ao p l ano f o rma l dos enunc i ados , d i ssoc i ados
de seus con tex tos rea i s de p rodução .
Po r ou t ro l ado , pa ra a co r ren t e f unc i ona l i s t a da
l i nguagem , a g ramá t i ca emerge do d i scu rso , e não deve se r
v i s t a e ana l i s ada sem l eva r em con t a esse f a t o r . Neves ( 1 997 ,
p . 24 ) cons i de ra a s i n t axe como “ [ . . . ] a cod i f i c ação de do i s
dom ín i os f unc i ona i s d i s t i n t os : a semânt i c a ( p ropos ic i ona l ) e a
pragmá t i c a ( d i scu rs i va ) . ” Nesse v i és , não se pode r i a pensa r em
uma s i n t axe au tônoma , mas que cons i de ra os f a t o res ex t r a l i n -
gu í s t i c os como fundamenta i s no que d i z respe i t o à de f i n i ç ão
dos papé i s semân t i cos que as pa l av ras desempenham quando
ana l i s adas em um dado con tex to enunc i a t i vo .
Pa ra a Soc i o l i ngu í s t i c a , a l ém de f a t o res l i ngu í s t i c os , a l guns
f a t o res soc i a i s podem aux i l i a r no es tudo e no en tend i men to do
f unc i onamen to e f e t i vo da l í ngua em soc i edade , ha j a v i s t a que o
usuá r i o da l í ngua es t á i nse r i do em um con tex to rea l de
comun icação , no qua l podemos obse rva r o uso dos e l emen tos
l i ngu í s t i c os em sua d i nam i c i dade , o que nos l eva a pensa r em
um conce i t o impo r t an t e pa ra es te t r aba l ho , o de va r i ação
l i ngu í s t i c a .
Consoan te aos es tudos de Ho ra ( 2004 ) , a Teo r i a da
Var i ação va i de encon t ro aos es tudos da l í ngua que não
cons i de ram o f a to r soc i a l como re l evan te pa ra o en tend imen to
dessa l í ngua . Pa ra o au to r , t a l t eo r i a cons i de ra uma re l ação
ex i s ten t e en t re l í ngua e soc iedade , o que nos pe rm i t e ac red i t a r
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 5 9 - 7 4 , 2 0 1 7
que o pe r f i l soc i a l do f a l an te i n t e r f e re , d i r e ta ou i nd i r e t amen te ,
na f o rma de ma te r i a l i zação dos recu rsos l i ngu í s t i c os .
A pa r t i r dessa re f l ex ão , p rocu ra r -se -á , ao l ongo des te
t r aba l ho , d i sco r re r sob re a comp lex i dade e a amp l i t ude que são
i ne ren tes à noção de aná l i se s i n t á t i c a . Pa ra i sso , es t abe lece re -
mos uma i n t e r f ace en t re o Func i ona l i smo e a Soc i o l i ngu í s t i c a ,
com o i n t u i t o de ques t i ona r e d i scu t i r a va l i d ade da abo rdagem
t r ad i c i ona l no que t ange ao t r a t amen to desse conce i t o . Como
c r i t é r i os de rev i são b i b l i og rá f i c a , va l emo -nos de uma d i scussão
compara t i va en t re g ramát i cos e l i ngu i s t as . Po r essa v i a , es t a
pesqu i sa j us t i f i c a -se po rque busca equac i ona r f o rma e f unção ,
ou se j a , sen tença ( o ração , f r ase ) e enunc i ação , amp l i ando os
dom ín i os do t e rmo aná l i se s i n t á t i c a . Na p róx ima seção , t r a t a re -
mos do pos i c i onamen to da Gramá t i ca T rad i c i ona l sob re o
conce i t o de aná l i se s in t á t i c a .
2 A B O R D A G E M T R A D I C I O N A L
A Gramá t i c a T rad i c i ona l (GT ) tem s i do mu i t o ques t i onada ,
re f l e t i d a e i nves t i gada com re l ação às pos tu ras que ado t a
f ren t e aos fenômenos l i ngu í s t i cos . A GT , pe l o seu ca rá te r
pedagóg i co e me ta l i ngu í s t i c o , p ropõe aná l i ses l i ngu í s t i c as me ra -
mente f o rma i s , com exemp l os que f ogem ao ve rdade i r o uso
que os f a l an t es f azem da l í ngua . No que d i z respe i t o ao es tudo
da s i n t axe , a GT l ança mão de enunc i ados l i ngu í s t i c os que , na
ma i o r i a das vezes , se d i s t anc i am da ve rdade i r a f unc i ona l i d ade
soc i a l da l í ngua . A segu i r , ap resen t amos o pos i c i onamen to de
a l guns g ramá t i cos que d i scu t em sob re essa noção , en t re os
qua i s c i t amos Cega l l a ( 2005 , p . 3 1 9 ) :
A a n á l i s e s i n t á t i c a e x am i n a a e s t r u t u r a d o p e r í o d o , d i v i d e e c l a s s i f i c a a s o r a ç õ e s q u e o c o n s t i t u em e r e c o n h e c e a f u n ç ã o s i n t á t i c a d o s t e rmo s d e c a d a o r a ç ã o . A s p a l a v r a s , t a n t o n a e x p r e s s ã o e s c r i t a c om o n a o r a l , s ã o r e u n i d a s e o r d e n a d a s em f r a s e s . P e l a f r a s e é q u e s e a l c a n ç a o o b j e t i v o d o d i s c u r s o , o u
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 5 9 - 7 4 , 2 0 1 7
s e j a , d a a t i v i d a d e l i n g u í s t i c a : a c om un i c a ç ão c om o o u v i n t e o u o l e i t o r .
Nesse sen t i do , o conce i t o de aná l i se s i n t á t i ca res t r i nge -se
a uma mera decompos i ção de f r ases que não cons ide ra o
con tex to de enunc i ação i ne ren te ao mate r i a l l i ngu í s t i c o em
exame . O au to r p ropõe a cons t rução f r asa l como sendo uma
mate r i a l i d ade d i scu rs i va , mas não c i t a os fa t o res d i scu rs ivos
como re l evan tes pa ra ana l i s a r -se , s i n t a t i c amen te , um enunc i ado
da l í ngua . Po r t an t o , t a l pos i c i onamento es tá a t re l ado a uma
concepção es t ru t u ra l i s t a da l í ngua , ou se j a , que es t abe l ece as
f unções s i n t á t i cas somente a pa r t i r da supe r f í c i e dos enunc i a -
dos . A i nda em uma v i são t r ad i c i ona l da s i n t axe , ve j amos o
pos i c i onamen to de Becha ra ( 2009 , p . 407 ) , quando e l e d i sco r re
a respe i t o das o rações , um t i po de enunc i ado l i ngu í s t i c o com o
qua l nos depa ramos a t odo o momento no uso da l í ngua :
E n t r e o s t i p o s d e e n u n c i a d o s h á um c o n h e c i d o p e l o n ome d e o r a ç ã o q u e , p e l a s u a e s t r u t u r a , r e p r e s e n t a o o b j e t o m a i s p r o p í c i o à a n á l i s e g r am a t i c a l , p o r m e l h o r r e v e l a r a s r e l a ç õ e s q u e s e u s c om po n e n t e s m a n t êm e n t r e s i , s em a p e l a r f u n d am e n t a l m e n t e p a r a o e n t o r n o ( s i t u a ç ã o e o u t r o s e l em en t o s e x t r a l i n g u í s t i c o s ) em q u e s e a c h a i n s e r i d o . É n e s t e t i p o d e e n u n c i a d o c h amad o o r a ç ã o q u e s e a l i c e r ç a , p o r t a n t o , a g r am á t i c a .
Exemp l os : ( 1 ) O bom f i l ho compreende o es fo rço dos pa i s . ( 2 ) Os homens dese j am a paz . 1
Na v i são do au to r , o n í ve l da o ração , que é uma moda l i -
dade de enunc i ado l i ngu í s t i c o , possu i ma i o r comp l e tude no que
d i z respe i t o a qua l quer aná l i se g rama t i c a l . O au to r ac red i t a em
uma au tonom i a o rac i ona l , numa au tossu f i c i ênc i a que é i ne ren t e
às o rações e que , por t an t o , d i spensa qua l que r apo i o ex t r a l i n -
gu í s t i c o que possa aux i l i a r na compreensão da s i n t axe p resen -
t e em t a i s enunc i ados . Va l e ressa l t a r que as o rações são
es t ru t u radas em to rno dos ve rbos . En t ão , qua l que r es t ru tu ra
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 5 9 - 7 4 , 2 0 1 7
l i n gu í s t i c a que f u j a a essa cond ição não es tá sendo l evada em
con t a po r esse au to r , como as f r ases nom ina i s , po r exemp l o .
A i nda con fo rme Bechara ( 2009 , p . 54 ) :
A p a r t e c e n t r a l d a g r am á t i c a p u r a é a m o r f o s s i n t a x e , t am bém c om m en o s r i g o r e s t u d a d a c omo d o i s d om í -n i o s r e l a t i v am e n t e a u t ô n om o s : a m o r f o l o g i a ( e s t u d o d a p a l a v r a e s u a s f o rm a s ) e a s i n t a x e ( e s t u d o d a s c om b i n a ç õ e s m a t e r i a i s o u f u n ç õ e s s i n t á t i c a s ) . O c o r r e q u e , a r i g o r t u d o n a l í n g u a s e r e f e r e s em p r e a c om b i -n a ç õ e s d e “ f o rm a s ” , a i n d a q u e s e j a c omb i n a ç ã o c om z e r o o u a u s ê n c i a d e “ f o rm a ” ; a s s i m , t o d a e s s a p u r a g r am á t i c a é n a r e a l i d a d e s i n t a x e , j á q u e a p r ó p r i a o r a ç ã o n ã o d e i x a d e s e r um a “ f o rm a ” ( n a l i ç ã o t r a d i -c i o n a l , e l a n ã o p e r t e n c e ao d om í n i o d a m o r f o l o g i a ) .
Aqu i , o au to r nos ap resen ta uma re f l exão sob re a assoc i -
ação en t re f o rma e f unção . Pa ra e l e , os es tudos s i n t á t i cos
ocupam l uga r de des taque na g ramát i c a , v i s t o que as o rações
se cons t i t uem em fo rmas , e são j us t amente e l as que devem
se r l evadas em con ta em t e rmos de aná l i se g ramat i c a l . Po r
ma i s que ha j a uma d i v i são f e i t a pe l a GT en t re mor fo l og i a e
s i n t axe , não há como d i ssoc i a r esses do i s dom ín i os em se
t r a t ando de aná l i se s i n t á t i c a , po i s a ex i s t ênc i a de comb i nações
e a r t i cu l ações l i ngu í s t i c as p ressupõe a ex i s tênc i a de e l emen tos
f o rma i s pa ra que ha j a t a i s assoc i ações .
Na es te i r a de Ku ry ( 2000 , p . 1 2 ) , o t e rmo an á l i se , que é
p roven ien te do g rego ana l ys i s , s i gn i f i c a desa t a r , desp rende r ,
so l t a r , ou se j a , “ [ . . . ] é a decompos ição de um todo em seus
e l emen tos componen tes . ” De aco rdo com o au to r , f aze r aná l i se
s i n t á t i c a se r i a decompor as cons t ruções f rasa i s no i n t u i t o de
t o rna r c l a r as as re l ações s i n t agmá t i cas ex i s t en tes en t re os
e l emen tos de um dado enunc i ado l i ngu í s t i co . Já pa ra N i co l a e
I n f an t e ( 1 997 ) , “ [ . . . ] a S i n t axe p rocu ra de tec ta r a mane i r a de as
pa r t es da l i nguagem se es t ru tu ra rem pa ra fo rmar os enunc i a -
dos comun ica t i vos . ”
Consoante as ref lexões tec idas até agora , podemos conc lu i r
que a concepção de aná l i se s in tá t ica adotada pe la GT é
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i nsuf ic iente , po is cons idera as re l ações s in tá t icas ao exame de
comb inações l i ngu ís t icas que , mu i tas vezes , não estão de acordo
com a rea l idade da l í ngua . A GT , em suas aná l i ses , l ança mão de
mode los f rasa is que , por vezes , se d is t anc iam do uso efe t ivo da
l í ngua , o que faz com que e la não se ja suf ic iente para abarcar a
amp l i tude da aná l i se l i ngu ís t ica , o que imp l i ca cons iderar as
cond ições de produção das mesmas, a lgo que é neg l igenc iado
pe la abordagem t rad ic iona l .
A segu i r , d iscut i remos sobre as cont r ibu i ções da corrente
func iona l i s t a e , em que med ida , os seus pressupostos teór icos
podem nos a judar a re f le t i r sobre a concepção da aná l i se
s in tá t ica .
3 A B O R D A G E M F U N C I O N A L I S T A
A cor ren te f unc i ona l i s t a da l i nguagem es t abe lece uma
re l ação en t re g ramá t i ca e d i scu rso , de modo que as cons t ru -
ções g ramat i c a i s emergem e devem se r ana l i s adas a pa r t i r das
d i ve rsas f o rmações d i scu rs ivas o r i undas dos vá r i os con tex tos
de comun i cação nos qua i s o f a l an t e se encon t ra i nse r i do . A
t í t u l o de exemp l o , um f a l an t e pode esco l he r d i f e ren tes comb i -
nações s i n t á t i c as pa ra compor o mesmo d i scu rso
( i n t enc i ona l i d ade ) : Tenho necess i dade de que você venha
( o r ação subo rd . subs tan t i va comp l e t i v a nom ina l ) ; Necess i t o de que você venha ( o r ação sub . subs t . ob j e t i v a i nd i r e t a ) ; eu que ro que você venha ( o r ação sub . subs t . ob j e t i v a d i r e t a ) 2 . Esses
exemp l os ev i denc i am a impo r t ânc i a ma i o r do d i scu rso em re l a -
ção à s i n t axe . D i ssonan te da GT , que l i d a com um f a l an te i dea l
e p ropõe , ou impõe reg ras a se rem segu i das t an to na f a l a
como na esc r i t a , o Func i ona l i smo ob j e t i v a ana l i s a r as
es t ru t u ras da l í ngua a pa r t i r da compe tênc i a comun ica t i va de
um f a l an t e rea l , i n se r i do em um dado con tex to de enunc i ação .
Pa ra o Func i ona l i smo , f aze r aná l i se s i n t á t i ca é , an t es de
qua l que r co i sa , cons i de ra r a f o rma d i nâm i ca e i ns t áve l que é
i ne ren te ao uso que o f a l an te f az dos recu rsos f o rma i s da
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l í n gua , apos t ando , ass im , nas vá r i as cade i as f a l adas que podem
su rg i r das rea i s necess i dades l i ngu í s t i cas do i nd i v í duo . A l í ngua
em uso é o f oco de a t enção da g ramá t i c a f unc i ona l , v i s t o que
e l a ex t r a i do p róp r i o f a l an t e as e l abo rações l i ngu í s t i cas pa ra
se rem ana l i s adas , d i f e ren temen te da GT , que c r i a exemp l os
i dea l i z ados pa ra exp l i ca r a l í ngua , mas que não vão ao encon -
t ro da ve rdade i r a rea l i d ade da mesma .
Os mode l os de an á l i se s i n t á t i c a que encon t ramos na GT
mu i t as vezes não cond i zem com a mane i r a que os d i scu rsos
soc i a i s são e l abo rados l i ngu i s t i c amen te , t an t o na f a l a como na
esc r i t a . I sso deco r re do f a t o de que as comb i nações e re l a -
ções l i ngu í s t i c as ex i s ten tes en t re os t e rmos de um dado enun -
c i ado são p roven i en tes das necess i dades de comun icação do
i nd i v í duo em um momen to rea l de uso da l í ngua . Nesse sen t i do ,
pa ra o Func i ona l i smo , as es t ru t u ras s i n t á t i c as são o r i undas de
um con tex to rea l de enunc i ação , em que as re l ações s i n t á t i c o -
semân t i c as são resu l t ado de f a t o res l i ngu í s t i c o -p ragmá t i cos
que se i n te r - re l ac i onam no p rocesso de i n t e ração ve rba l .
Beaug rande ( 1 993 ) , c i t ado po r Neves ( 1 997 ) , acen tua que a
g ramá t i ca f unc i ona l t em como foco de a t enção es t abe l ece r
re l ações en t re f o rma e s i gn i f i c ado den t ro do con tex to d i scu rs i -
vo . N i cho l s ( 1 984 ) , i nvocado pe l a mesma au to ra , r essa l t a que
“ embora a g ramá t i c a f unc i ona l ana l i se a es t ru t u ra g ramat i c a l ,
i n c l u i na aná l i se t oda a s i t uação comun ica t i va : o p ropós i t o do
evento de f a l a , seus pa r t i c i pan t es e seu con tex to d i scu rs i vo ” .
Ass im , o es tabe l ec imen to de funções s i n t á t i c as pe rpassa po r
um con jun to de f a t o res l i ngu í s t i cos e ex t r a l i ngu í s t i cos que são
responsáve i s pe l a p rodução de l i nguagem . O a to de i n te r l ocu -
ção envo lve uma amp l i t ude d i scu rs i va que não deve se r neg l i -
genc i ada no que d i z respe i t o a uma aná l i se l i ngu í s t i c a e f i c i en te .
Os su j e i t os envo lv i dos na comun icação , as i n t enções que
pe rme i am o f aze r d i scu rs i vo , o momen to em que se deu a
i n t e ração l i ngu í s t i c a são a l guns dos aspec tos que devem se r
l evados em con t a no momento de se ana l i s a r , s i n t a t i c amen te ,
um enunc i ado l i ngu í s t i c o , po i s an tes da ex i s t ênc i a de uma
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f unção s i n t á t i c a , ex i s t em funções d i scu rs i vas o r i undas do
con tex to de enunc iação . Comp l emen tando t a i s re f l exões ,
Peza t t i ( 2004 ) d i sco r re ass im :
C omo a G r am á t i c a F u n c i o n a l s e i n c l u i , p o r d e f i n i ç ã o , n um a t e o r i a p r a gm á t i c a d e l i n g u a g em , t e n d o a i n t e r a -ç ã o v e r b a l c om o o b j e t o d e a n á l i s e , c o n s t i t u i um a d e s u a s t a r e f a s r e v e l a r a s p r o p r i e d a d e s d a s e x p r e s s õ e s l i n g u í s t i c a s em r e l a ç ã o à d e s c r i ç ã o d a s r e g r a s q u e r e g em a i n t e r a ç ã o v e r b a l . S e n d o a s s i m , o p a d r ã o d e a d e q u a ç ã o p r a gm á t i c a é o q u e a p r e s e n t a m a i o r p e s o n a t e o r i a , um a v e z q u e um a g r am á t i c a f u n c i o n a l d e v e s e r c o n c e b i d a c om o um a t e o r i a i n t e g r a d a a um m od e l o d e u s u á r i o d e l í n g u a n a t u r a l . ( P EZATT I , 2 0 0 4 , p . 1 7 1 ) .
Pa ra a l ém da es t ru tu ra f o rma l , uma pe rspec t i va f unc i ona l
da l i nguagem l eva em cons i de ração as cons t ruções g rama t i ca i s
assoc i adas ao seu con tex to de p rodução , não se podendo
pensa r , ass im , em es t ru t u ras i so l adas , e s im em enunc i ados
que f o ram e l abo rados po r um f a l an t e rea l , que t i nha cons i go
um p ropós i t o de f a l a , e l ançou mão dos recu rsos l i ngu í s t i c os
que l h e conv i nham naque l a s i t uação espec í f i ca de comun i cação .
Na v i são de Ha l l i d ay ( 2004 ) , a o ração é a un i dade cen t r a l
de p rocessamen to da l ex i cog ramát i c a , po i s é na o ração que
s i gn i f i c ações de d i f e ren tes va r i edades são mapeadas em uma
es t ru t u ra g rama t i c a l i n t eg rada . Dessa f o rma , a o ração é , s imu l -
t aneamen te , uma rep resen t ação de expe r i ênc i as do i nd i v í duo ,
uma re l ação i n t e rpessoa l e uma mensagem tex tua l , compondo
as t r ês f unções da l i nguagem . Pa ra o l i ngu i s t a :
[ . . . ] a p e r s p e c t i v a s e a f a s t a d a e s t r u t u r a p a r a c o n s i d e r a r a g r am á t i c a c om o um s i s t em a , p e rm i t i n d o -n o s a p r e s e n t a r a g r amá t i c a c om o um r e c u r so d e c r i a ç ã o d e s i g n i f i c a d o s e d e sc r e v e r a s c a t e g o r i a s g r am a t i c a i s c om r e f e r ê n c i a a o q u e e l a s s i g n i f i c am . ( H A L L I DAY , 2 00 4 , p . 1 0 ) . 3
Com base nesse s i s t ema , a o ração cod i f i ca nossas v i vên -
c i as e expe r i ênc i as no mundo , a t r avés de p rocessos (ve rbos ) ,
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pa r t i c i pan t es ( subs t an t i vos ) e c i r cuns t ânc i as ( s i n t agmas adve r -
b i a i s e nom ina i s ) . A lém d i sso , mos t ra um p rocesso de i n t e ração
e nossas pos i ções soc i a i s . Essas duas f unções são o rgan i za -
das em fo rma tex tua l e/ou re tó r i c a ( o ra l ou esc r i t a ) . Ac ima
dessas funções que compõem uma o ração , o au to r cons i de ra
os f a t o res ex t r a l i ngu í s t i c os , como o con tex to de cu l t u ra 4 , em
que os f a l an t es e l abo ram p ropos i ções ou p ropos tas , de aco rdo
com suas necess i dades ou i n tenc i ona l i d ades .
É impo r t an t e ressa l t a r que a co r ren te f unc i ona l i s t a da
l i nguagem não re j e i t a as noções de es t ru tu ra e s i s t ema o r i un -
das dos es tudos t r ad i c i ona i s , mas ac rescen t a a i de i a de
f unção . O homem , ao p roduz i r l i nguagem , f az esco l has no
s i s t ema l i ngu í s t i c o que es t ão a se rv i ço do d i scu rso p re tend i do
po r e l e . I sso nos au to r i za ac red i t a r que a noção de f unção
s i n t á t i c a deve eng l obar uma sé r i e de f a t o res que se re l ac i onam
ao p rocesso de f o rmação dos d i scu rsos soc i a i s , e l abo rados a
pa r t i r de e l emen tos f o rma i s que desempenham , an t es de
qua l que r co i sa , papé i s semânt i cos quando i nse r i dos em um
de te rm i nado con tex to de i n t e ração ve rba l . Du Bo i s ( 1 993a , p . 8 ) ,
quando i nvocado po r Neves ( 1 997 , p . 29 ) , apon t a que :
[ . . . ] a s r e l a ç õ e s e n t r e d i s c u r s o , o u u s o , e g r am á t i c a a s s i m s e e q u a c i o n am : a ) a g r am á t i c a m o l d a o d i s c u r -s o ; b ) o d i s c u r s o m o l d a a g r am á t i c a . O u : ‘ a g r amá t i c a é f e i t a à i m a g em d o d i s c u r s o ’ ; m a s : ‘ o d i s c u r s o n u n c a é o b s e r v ad o sem a r o u p ag em d a g r am á t i c a ’ .
Nessa pe rspec t iva , não podemos pensa r em uma aná l i se
s i n t á t i c a que não cons i de re a p rodução do d i scu rso em sua
t o t a l i d ade . O Func i ona l i smo não re j e i t a , em abso l u t o , os p ressu -
pos tos da GT , po i s t ambém rea l i z a aná l i ses g ramat i c a i s ;
t odav i a , empreende aná l i ses ma i s amp l as do pon to de v i s t a
l i ngu í s t i c o -d i scu rs ivo , v i s t o que não cons i de ra a es t ru t u ra
ence r rada em s i mesma , mas t odo o seu p rocesso de
f o rmação . A GT , em suas aná l i ses , apresen t a es t ru t u ras
f echadas , l im i t adas a e l as mesmas , como se não houvesse
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ou t ras poss i b i l i d ades de cons t rução s i n t á t i ca t endo em v i s t a a
s i t uação comun i ca t i va . Nos exemp l os aba i xo , r e t i r ados de
Cega l l a ( 2005 , p . 336 ) , a s i n t axe cons i de ra a p red icação g rama -
t i c a l como i n t r ans i t i v a . Po r ou t ro l ado , num v i és l i ngu í s t i co ,
essa p red icação se r i a c l ass i f i c ada como t r ans i t i v a adve rb i a l ,
t endo em v i s t a a necess i dade de comp l emento de sen t i do .
Ve j amos :
A pobreza e a p regu i ça andam sempre em companh i a . (Ma rquês de Mar i c á ) Fu i e pa re i d i an te de l e . (Machado de Ass i s )
Nesses casos , os ve rbos ‘ andam ’ , ‘ f u i ’ e ‘ pa re i ’ são t i dos
pe l a g ramá t i c a como i n t r ans i t i vos ( não necess i t am de comp le -
mento ) . Con tudo , pe rcebe -se a i ncomp l e t ude do sen t i do desses
ve rbos nos con tex tos l i ngu í s t i c os ap resen t ados .
Po r t an t o , podemos conc l u i r que os p ressupos tos teó r i cos
do Func i ona l i smo nos a j udam a pensa r de um modo ma i s
ab rangen te na concepção de aná l i se s i n t á t i ca , v i s t o que es t a -
be l ecem uma re l ação pe r t i nen t e en t re os t e rmos g rama t i c a i s e
o d i scu rso p roduz i do . A t eo r i a f unc i ona l i s t a re l ac i ona a s i n t axe
à semân t i c a , i sso den t ro de uma t eo r i a p ragmát i c a ma i s amp l a ,
f a t o que nos pe rm i t e uma v i são amp l i ada dos papé i s s i n t á t i c o -
semân t i cos que as pa l av ras desempenham nos t ex tos o ra i s e
esc r i t os que emergem , d i a r i amen te , nas es fe ras soc i a i s . Em
segu i da , abo rda remos as con t r i bu i ções da Soc i o l i ngu í s t i c a pa ra ,
ass im , con t i nua rmos a re f l exão p re tend i da nes te t r aba l ho .
4 A B O R D A G E M S O C I O L I N G U Í S T I C A
Em se t r a t ando de ve r ten tes t eó r i c as que cons i de ram a
l í ngua em uso , não podemos de i xa r de i r ao encon t ro das
con t r i bu i ções da Soc i o l i ngu í s t i c a , uma co r ren te de es tudos
l i ngu í s t i c os que , em meados do sécu l o XX , ac rescen t a às
i nves t i gações rea l i z adas a t é en t ão um d i f e renc i a l que a i nda
não hav i a s i do cons i de rado pe l os es tud i osos da l í ngua em suas
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pesqu i sas , o componen te soc i a l . Pa ra a Soc i o l i ngu í s t i c a , os
enunc i ados l i ngu í s t i cos são p roduz i dos em soc i edade e não
podem se r desv i ncu l ados do su j e i t o f a l an te que o p roduz i u ,
po i s o pe r f i l soc i a l do usuá r i o da l í ngua pode i n t e r fe r i r , cons i -
de rave lmen te , na f o rma com a qua l e l e usa as pa l av ras que
es t ão à sua d i spos ição . Re fo rçando essa re f l exão , Mussa l im e
Ben tes ( 200 1 , p . 2 1 ) a f i rmam que :
L i n g u ag em e s o c i e d a d e e s t ã o l i g a d a s e n t r e s i d e m o do i n q u e s t i o n á v e l . M a i s d o q u e i s s o , p o d em o s a f i r m a r q u e e s s a r e l a ç ã o é a b a s e d a c o n s t i t u i ç ã o d o s e r h um ano . A h i s t ó r i a d a h um an i d a d e é a h i s t ó r i a d e s e r e s o r g a n i z a d o s em s o c i e d ad e e d e t e n t o r e s d e um s i s t em a d e c om un i c a ç ão o r a l , o u s e j a , d e um a l í n g u a . E f e t i v am en t e , a r e l a ç ã o e n t r e l i n g u a g em e s o c i e d a d e n ã o é p o s t a em d ú v i d a p o r n i n g u ém , e n ã o d e ve r i a e s t a r a u s e n t e , p o r t a n t o , d a s r e f l e x õ e s s o b r e o f e n ô -m en o l i n g u í s t i c o .
A Soc i o l i ngu í s t i c a su rg i u com um i n t e resse pa r t i c u l a r :
desenvo lve r es tudos da l í ngua a pa r t i r de uma assoc i ação en t re f a t o res l i ngu í s t i cos e soc i a i s , ou se j a , que cons i de rassem as ca rac t e r í s t i c as soc i a i s do f a l an te como a l go impo r t an te pa ra se compreende r a f o rma com que e l e se compor t a l i ngu i s t i c a -mente nas es fe ras soc i a i s , em s i t uação e f e t i va de uso da l í ngua . I sso , a t é en t ão , hav i a s i do de i xado de l ado pe l os es t ru -t u ra l i s t as e ge ra t i v i s t as , que vo l t avam a a t enção pa ra o ca rá te r me ramente f o rma l do s i s tema l i ngu í s t i c o .
Quan to aos es tudos s i n t á t i c os , a soc i o l i ngu í s t i c a ac red i t a no ca rá t e r d i nâm i co da l í ngua , na i ns t ab i l i d ade que res i de no uso que o f a l an te f az dos recu rsos f o rma i s do s i s t ema l i ngu í s -t i c o . Ex i s t e uma gama de va r i ações l i ngu í s t i c as , poss i b i l i d ades de uso que são de te rm i nadas po r vá r i os f a t o res i n te rnos e ex te rnos ao s i s t ema l i ngu í s t i co que es t ão envo lv i dos na p rodu -ção das cade i as f a l adas pe l o i nd i v í duo . Ass im , a s i n t axe deve cons i de ra r as va r i ações s i n t á t i c as o r i undas da comun i dade de f a l a , em con tex tos espec í f i cos de comun i cação . Comp lemen tan -do t a l re f l exão , Cega l l a ( 2005 ) pon tua que :
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 5 9 - 7 4 , 2 0 1 7
A l í n g u a n ã o é um s i s t em a i n t a n g í v e l , i m u t á v e l ; c om o t o d a c r i a ç ã o h um an a , e s t á s u j e i t a à a ç ã o d o t em po e d o e s p a ç o g e o g r á f i c o , s o f r e c o n s t a n t e s a l t e r a ç õ e s e r e f l e t e f o r ç o s am en t e a s d i f e r e n ç a s i n d i v i d u a i s d o s f a l a n t e s . D a í a e x i s t ê n c i a d o s f a l a r e s r e g i o n a i s e d e v á r i o s n í v e i s d e f a l a : c u l t a , p o p u l a r , c o l o q u i a l , e t c . ( C EGALLA , 2 0 05 , p . 1 6 ) .
Nesses te rmos , ao se ana l i s a r a cons t rução s i n t á t i c a de
qua l que r enunc i ado l i ngu í s t i co , t ambém devemos l eva r em
con t a as va r i ações que são deco r ren tes das ca rac te r í s t i c as
soc i a i s dos usuá r i os da l í ngua , v i s to que e l as são de te rm i nan -
t es no que d i z respe i t o ao p l ano de aná l i se l i ngu í s t i c a . Pa r t i ndo
do p r i nc íp i o de que a s i n t axe es tuda as re l ações l óg i co -
semân t i c as que são es t abe lec i das en t re as pa l av ras de um
de te rm i nado p l ano de exp ressão , a t eo r i a var i ac i on i s t a ac red i t a
que as esco l has das pa l av ras e a f o rma com que o f a l an te as
d i spõe nos enunc i ados que e l e p roduz reve l a a sua i den t i dade
soc i a l e v ice -ve rsa .
A t eo r i a soc i o l i ngu í s t i c a de fende que , a l ém de f a t o res
l i n gu í s t i c os , f a t o res como gêne ro , f a i xa e tá r i a , c l asse soc i a l ,
e t n i a , g rau de esco l a r i dade , en t re ou t ros , i n t e r fe rem no uso da
l í ngua em uma de te rm inada comun i dade de f a l a . Ass im , o pe r f i l
soc i a l do f a l an t e pode aux i l i a r na aná l i se e no en tend imento do
f unc i onamen to do s i s t ema l i nguage i r o . Quan to aos es tudos
s i n t á t i c os , a Soc i o l i ngu í s t i c a ac red i t a que ex i s t em vá r i as f o rmas
de o rgan ização l i ngu í s t i c a com o mesmo va l o r de ve rdade , o
que nos l eva r a pensar sob re a ex i s tênc i a de va r i an tes l i ngu í s -
t i c as , que reve l am o ca rá te r d i nâm ico da l í ngua na soc i edade .
Obse rvemos os exemp l os i l u s t r a t i vos : Const ruções re la t ivas : “O f i lme a que me refer i é mu i to bom”/“O f i lme que me refer i é mu i to é mu i to bom”/O f i lme que me refer i a e le é mu i to bom” . Pos ição do c l í t i co : “Eu v i -o no c inema”/“Eu o v i no c inema” .
Ace rca d i sso , Labov ( 2008 , p . 22 1 ) d i sco r re ass im :
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 5 9 - 7 4 , 2 0 1 7
É c om um q u e um a l í n g u a t e n h a d i v e r s a s m a n e i r a s a l t e r n a t i v a s d e d i z e r a “m e sm a ” c o i s a . A l g um a s p a l a -v r a s c omo c a r r o e a u t omó v e l p a r e c em t e r o s m e smo s r e f e r e n t e s ; o u t r a s t êm d u a s p r o n ú n c i a s , c omo c a n t a n -d o e c a n t a n o . E x i s t em o p ç õ e s s i n t á t i c a s c om o Uma p e s s o a q u e e u c o n f i o m u i t o v s . Um a p e s s o a em q u em e u c o n f i o m u i t o o u É f á c i l p a r a e l e f a l a r v s . P a r a e l e f a l a r é f á c i l . Em c a d a um d e s t e s c a s o s , t em o s o p r o b l em a d e d e c i d i r o l u g a r d e s s a v a r i a ç ã o n a e s t r u t u -r a l i n g u í s t i c a .
Dessa mane i r a , pa ra a Soc i o l i ngu í s t i c a , o conce i t o de
aná l i se s i n t á t i c a es t á assoc i ado ao conce i t o de va r i ação l i ngu í s -
t i c a , v i s t o que os papé i s s i n t á t i co -semân t i cos desempenhados
pe l as pa l av ras em um dado enunc i ado da l í ngua pe rpassam po r
uma d i nam ic i dade que é i ne ren te ao f unc i onamen to do s i s tema
l i ngu í s t i c o . A c r i a t i v i dade do f a l an t e , a sua cu l t u ra , o seu pe r f i l
soc i a l e o con tex to em que e l e se encon t ra são a l guns f a t o res
que devem se r l evados em con t a no que t ange a uma aná l i se
l i ngu í s t i c a e f i c i en te , v i s t o que as cons t ruções l i ngu í s t i c as são
o r i undas de um f a l an te rea l que d i spõe dos recu rsos da l í ngua
em s i t uações e fe t i vas de uso .
Quad r o c ompa r a t i v o - r e s um i t i v o s ob r e a c once pçã o de a ná l i s e
s i n t á t i c a
G r amá t i c a T r a d i c i o n a l F unc i o n a l i smo S o c i o l i n g u í s t i c a
A pa r t e d a g r amá t i c a
q ue e s t u da a e s t r u t u -
r a f o rma l d a f r a s e ,
i s t o é , a s c omb i n a -
ç õe s e r e l a ç õe s e n t r e
a s p a l a v r a s . ( FA RACO
E MOURA , 2000 , p .
4 2 8 ) .
A s i n t a x e é v i s t a
c omo a c o d i f i c a ç ã o
d e do i s d om í n i o s
f u nc i o n a i s d i s t i n t o s :
a s emân t i c a
( p r o pos i c i o n a l ) e a
p r a gmá t i c a
( d i s c u r s i v a ) . ( N EV ES ,
1 9 9 7 , p . 2 4 ) .
A s i n t a x e é c ons i -
d e r a da a p a r t i r d a
n oç ã o de v a r i a ç ã o
l i n g u í s t i c a , d e ma -
n e i r a que p od em
e x i s t i r d i f e r e n t e s
c ons t r u ç õe s s i n t á t i -
c a s q ue a p r e s e n -
t am o mesmo v a l o r
d e v e r d a de .
( LABOV , 200 8 , p .
2 2 1 . [ A da p t a do ] ) .
72
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 5 9 - 7 4 , 2 0 1 7
5 C O N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S
Podemos dep reende r des tas re f l exões a sempre p resen te
d i co tom i a en t re f o rma e f unção nos es tudos l i ngu í s t i cos . O
pape l da a rb i t r a r i edade da GT advém i n i c i a lmen te da p ropos t a
f o rma l i s t a saussu r i ana , que de fende a au tonom i a da s i n t axe ,
ap resen t ando uma concepção que rep resen t a as es t ru tu ras
l i ngu í s t i c as i ndependen te dos con tex tos de p rodução que as
imp lemen tam , enquan to o Func i ona l i smo e a Soc i o l i ngu í s t i c a
cons i de ram f a t o res ex t r a l i ngu í s t i c os e soc i a i s em con tex tos
i n t e rac i ona i s de uso e fe t i vo da l í ngua . De f o rma aná l oga ao
Func i ona l i smo , a Soc io l i ngu í s t i c a pe rcebe a s i s t ema t i c i dade da
l í ngua ao a f i rma r que e l a possu i d i f e ren t es f o rmas pa ra
exp ressa r os mesmos s i gn i f i c ados , sem pe rde r o pode r de
comun icação . Nessa ó t i c a , o Func i ona l i smo ap resen t a va r i adas
cons t ruções s i n t á t i c as que podem exp ressar os mesmos s i gn i -
f i c ados , con fo rme a l guns exemp l os sup rac i t ados . A esco l ha de
uma das f o rmas é cond i c i onada às i n t enc i ona l i d ades dos
f a l an tes na cons t rução de e f e i t os de sen t i do que cada
cons t rução s i n t á t i c a pode rá assum i r . A pa r t i r d i sso , conc l u ímos
que não se pode cons i de ra r apenas a pos i ção c l áss i c a da GT
na re f l exão t eó r i c a ou ap l i c ada , no que t ange à aná l i se s i n t á t i -
ca da o ração , mas t ambém p rocu ra r supo r te em ou t ras t eo r i as
que amp l i am ou comp lemen tam as cond i ções de aná l i se l i ngu í s -
t i c a . Com a l guns poucos exemp l os , j á pe rcebemos as l acunas
de i xadas pe l a GT . Adema i s , conco rdamos com Ha l l i d ay ( 2004 ) ,
que não ado t a uma pos i ção ex t rem i s t a en t re f o rma ( es t ru t u ra )
e f unção ( con tex to ex t r a l i ngu í s t i c o ) , t endo em v i s t a a comp le -
menta r i dade de ambas , como s i s t ema l i ngu í s t i c o e ex t r a l i ngu í s t i -
co .
A b s t r a c t : I n t h i s a r t i c l e w e i n t e n d t o a n a l y z e a n d d i s c u s s
c r i t i c a l l y t h e c o n c e p t o f s y n t a c t i c a n a l i s y s a d o p t e d b y
T r a d i t i o n a l G r a m m a r i n c o m p a r i s i o n t o o t h e r s t w o t e o r i c
ve r s i o ns t h a t eme rged f r om t he pano r ama o f l i n gu i s t i c s t ud i e s
73
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 5 9 - 7 4 , 2 0 1 7
i n t h e 20 t h cen t u r y : t h e Func t i o na l i sm and t he Soc i o l i n gu i s t i c s .
I n t h i s p a p e r , w e s t a r t f r om t h e h y p o t h e s i s t h a t T r a d i t i o n a l
G r amma r g ap s i n t h e t r e a tmen t o f t h i s c o n c e p t a n d t h a t t h e
t h e o r e t i c a l a s s ump t i o n s o f F u n c t i o n a l i sm an d S o c i o l i n g u i s t i c s
c an , t o s ome ex t en t , f i l l t h e s e g ap s , s i n c e t h e y de a l w i t h t h e
l anguage i n use and , the re fo re , p resen t more e f f i c i en t pos tu res
w i t h r e g a r d t o t h e s t u d y o f L i n g u i s t i c p h e n ome n a . W i t h t h i s
w o r k , t h a t i s b i b l i o g r a p h i c a l , w e c o n s i d e r t h e i m p o r t a n c e o f
a lways ques t i o n i n g and r e f l e c t i n g abou t t heo r i e s and pos t u r e s
o f t e n r e g a r d e d a s u n q u e s t i o n a b l e i n t h e l a n g u a g e s t u d y .
Au t ho r s as Cega l l a ( 2005 ) , B echa r a ( 2009 ) , Ku ry ( 2000 ) , Neves
( 1 9 9 7 ) L a b o v ( 2 0 0 8 ) a n d H a l l i d a y ( 2 0 0 4 ) w i l l h e l p u s i n o u r
d i scuss i ons .
K e yw o r d s : S y n t a c t i c a n a l y s i s c o n c e p t . T r a d i t i o n a l G r amm a r .
Func t i ona l i sm . Soc i o l i ngu i s t i c s .
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N O T A S
1 E x emp l o s e x t r a í d o s d e B e c h a r a ( 2 0 0 9 , p . 4 07 ) .
2 E x emp l o s r e t i r a d o s d a a u l a d e S i n t a x e I I n a U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e
M o n t e s C l a r o s , m i n i s t r a d a p e l a P r o f e s s o r a D o u t o r a A r l e t e R i b e i r o
N e p omu c e no .
3 N o o r i g i n a l : T h e p e r s p e c t i v e m ov e s aw ay f r om s t r u c t u r e t o
c o n s i d e r a t i o n o f g r amma r a s s y s t em , e n a b l i n g u s t o s h ow t h e
g r amma r a s a m e an i n g -ma k i n g r e s o u r c e a n d t o d e s c r i b e g r amma t i c a l
c a t e g o r i e s b y r e f e r e n c e t o wh a t t h e y me a n . ( HA L L I DAY , 2 0 0 4 , p . 1 0 )
4 O c o n t e x t o d e c u l t u r a é o q u e o s memb r o s d e um a c omu n i d ad e
p o d em s i g n i f i c a r em t e rm o s c u l t u r a i s , i s t o é , n ó s i n t e r p r e t amo s
c u l t u r a c om o um s i s t em a d e s i g n i f i c a d o s d e n í v e l s u p e r i o r . N o
o r i g i n a l : T h e c o n t e x t o f c u l t u r e i s wh a t t h e m embe r s o f a c ommun i t y
c a n me a n i n c u l t u r a l t e r m s ; t h a t i s , w e i n t e r p r e t c u l t u r e a s a s y s t em
o f h i g h e r - l e v e l m e a n i n g s ( v e r H a l l i d a y , 1 9 7 8 ) .
Env i ado em : 1 9/02/20 17 .
Ap rovado em : 25/05/20 17 .
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 7 5 - 8 6 , 2 0 1 7
I S S N 2 2 3 6 - 3 3 3 5
A S R EG Ê NC IA S DO S V ER BO S A S S I S T I R E
NA MOR AR NO PO R TUG U Ê S B RA S I L E I R O E O
D E SA F I O DO P RO F E S SOR D E L Í NG UA
P OR TUG U E SA DA E DU CA ÇÃO BÁ S I CA
Mano e l C r i s p i n i a n o A l v e s d a S i l v a ( U E F S ) 1
L i c e n c i a t u r a em L e t r a s V e r n á c u l a s
S i l v am a n o e l 4 0 3 @ y a h o o . c om . b r
I s a ú S i l v a L i m a (U E F S ) 2
L i c e n c i a t u r a em L e t r a s V e r n á c u l a s
S i l v am a n o e l 4 0 3 @ y a h o o . c om . b r
P r o f a . D r a . S i l v a n a S i l v a d e F a r i a s A r a ú j o ( O r i e n t a d o r a ) 3
De p a r t am e n t o d e L e t r a s e A r t e s ( D LA /UE F S )
s i l v a n a . u e f s . 2 0 1 4 @ gma i l . c om
R e s u m o : C o m o a p a r a t o t e ó r i c o - m e t o d o l ó g i c o d a
Soc i o l i n gu í s t i c a Va r i a c i o n i s t a ( LABOV , 1 97 2 ) , e s t e t r aba l h o t em
c o m o o b j e t i v o s u s c i t a r u m a d i s c u s s ã o s o b r e f e n ô m e n o s
v a r i á v e i s d o P o r t u g u ê s B r a s i l e i r o ( P B ) q u e o d i s t i n g u e d o
P o r t u g u ê s E u r o p e u ( P E ) e d i s c u t i r p r á t i c a s p e d a g ó g i c a s ,
v i s a n d o à c o n s t r u ç ã o d e u m a p e d a g o g i a d a v a r i a ç ã o
l i n g u í s t i c a . A G r a m á t i c a T r a d i c i o n a l ( G T ) p r e s c r e v e q u e a
r e g ê n c i a d o v e r b o a s s i s t i r , n o s e n t i d o d e v e r , e x i g e a
p repos i ç ã o a : “Manoe l as s i s t i u ao f i l m e ” . Em r e l a ç ã o ao ve rbo
n am o r a r , é p r e s c r i t o q u e e s t e s e j a u s a d o c om o t r a n s i t i v o
d i r e t o : “ João namora Mar i a ” . Mas , segundo os l i ngu i s t as , o que
é p r e s c r i t o n ã o f a z p a r t e d a r e a l i d a d e s o c i o l i n g u í s t i c a
b r a s i l e i r a . A s s i m , s u r g e u m d e s a f i o m u i t o g r a n d e p a r a o
p r o f e s so r de L í n g ua P o r t u g ue sa , q ue , mu i t a s vez es , t em que
e n s i n a r r e g r a s g r am a t i c a i s q u e n ã o f a z em p a r t e d a l í n g u a
ma t e r na do s seus d i s c en t e s . Como embasamen t o t e ó r i c o , s ão
u t i l i z ados os pos t u l ados de Bagno ( 200 1 , 2 006 , 2007 ) , Bo r t on i -
R i c a rdo ( 2004 ) , Ta ra l l o ( 1 985 ) , den t re ou t ros .
P a l a v r a s -Chave : V a r i a ç ã o l i n g u í s t i c a . R e gênc i a v e r b a l . E n s i n o
de l í ngua mate rna .
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 7 5 - 8 6 , 2 0 1 7
1 I N T R O D U Ç Ã O
Es te t r aba l ho tem como f i na l i d ade d i scu t i r ques tões re l a -
c i onadas à p rá t i c a pedagóg i ca , p rob l emat i zando os casos de
va r i ação das regênc i as dos ve rbos ass i s t i r (ass i s t i o , ass i s t i a )
e namora r (namora r com , namora r a l guém ) v i sando à cons t ru -
ção de um ens i no de L í ngua Po r tuguesa (LP ) que respe i t e os
f enômenos de va r i ação e mudança l i ngu í s t i c a . Pa ra rea l i z ação
des te a r t i go , u t i l i z ou -se o a rcabouço t eó r i co da Soc i o l i ngu í s t i c a
Var i ac i on i s t a . An tes de aden t ra rmos ao ob j e t o des t a d i scussão ,
f a l a remos sob re como se cons t i t u i u es t a co r ren te .
Pa ra uma compreensão da Soc i o l i ngu í s t i ca enquan to d i sc i -
p l i n a c i en t í f i c a , necess i t amos f aze r um b reve pe rcu rso h i s t ó r i co
ace rca da h i s t ó r i a da L i ngu í s t i c a . Desde a Gréc i a an t i ga , f i l ó so -
f os como P l a t ão e Ar i s t ó te l e s j á rea l i z avam re f l exões sob re a
l i nguagem , po rém a L i ngu í s t i c a enquan to c i ênc i a au tônoma
su rg i u no sécu l o X IX , com os es tudos de Fe rd i nand de
Saussu re ( 1 969 ) .
Saussu re , cons i de rado o pa i da L i ngu í s t i c a mode rna , pa ra
es tuda r a l í ngua , a d i v i d i u em d i co tom i as , sendo l angue ( l í n gua )
e pa ro l e ( f a l a ) . A ‘ l í ngua ’ é ps í qu i c a , abs t r a t a e de uso co le t i vo ,
enquan to a ‘ f a l a ’ é de uso i nd i v i dua l ( SAUSSURE , 1 969 ) . Con tu -
do a l i ngu í s t i c a dever i a ocupa r -se de es tuda r a l í ngua em
de t r imen to da f a l a , desse modo , Saussure ( 1 969 ) e l egeu a
l í ngua como ob j e t o de es tudo da l i ngu í s t i ca , ab r i ndo mão da
s i s t emat i zação da f a l a e sendo , po r essa razão , bas t an te c r i t i -
cado .
A cor ren t e f unc i ona l i s t a , que l eva em con ta a l í ngua e o
seu con tex to de uso , t eceu c r í t i c as pe l a fo rma es t ru tu ra l i s t a
com que Saussu re ( 1 969 , p . 23 ) concebeu a l í ngua : “enquan to a
l i n guagem é he te rogênea , a l í ngua ass im de l im i t ada é de na tu -
r eza homogênea [ . . . ] ” nesse sen t i do , exc l u i ndo a he te rogene i -
dade soc i a l dos es tudos l i ngu í s t i c os . Um dos ramos da
l i ngu í s t i c a f unc i ona l i s t a a p ropo r uma nova fo rma de es tudá - l a
chama-se Soc i o l i ngu í s t i c a .
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“A Soc i o l i ngu í s t i c a , com es te nome , com sua con f i gu ração
t eó r i c a e me todo l óg i ca a t ua l , su rg i u na década de 1 960 nos
Es t ados Un i dos g raças , sob re tudo , aos t r aba l hos de W i l l i a n
Labov ” (BAGNO , 200 1 , p . 43 ) . Es t a co r ren te es tuda a l í ngua
d i f e ren te do pon to de v i s t a es t ru t u ra l i s t a , j á que cons i de ra os
d i f e ren tes g rupos de f a t o res ( s t a t us soc i oeconôm ico , g rau de
esco l a r i dade , rede soc i a l , sexo ) . Nesse sen t i do , como ressa l t a
Bagno ( 2007 , p . 38 ) : “pa ra o soc i o l i ngu i s t a , é imposs í ve l es t u -
da r a l í ngua , sem es tuda r , ao mesmo t empo , a soc i edade em
que essa l í ngua é f a l ada [ . . . ] ” dessa f o rma , havendo um en t re -
l açamen to en t re soc i a l e l i ngu í s t i c o .
Ass im , Ga rc i a , S i l v a e Araú j o ( 20 17 , p . 5 ) r e l embram que :
[ . . . ] a h e t e r o g e n e i d a d e l i n g u í s t i c a t a l c omo c o n h e c e -
mo s h o j e , s om en t e a d q u i r i u s t a t u s c i e n t í f i c o , a p a r t i r
d e p e s q u i s a s d e se n vo l v i d a s p o r L a b o v , m a i s e s p e c i f i -
c am en t e em 1 9 6 3 , n a I l h a d e M a r t h a ’ s V i n e y a r d . C om
e s s e s e s t u d o s , L a b o v s i s t em a t i z o u a v a r i a ç ã o d e
u s o s d a l í n g u a em f u n ç ã o d a v a r i a ç ã o s o c i a l e ,
s o b r e t u d o , d e f i n e a l í n g u a f a l a d a c omo e s c o p o d a
S o c i o l i n g u í s t i c a .
Ass im como a he te rogene i dade l i ngu í s t i c a , p rec i samos
compreende r que a l í ngua muda com o t empo , po r t an t o , a
mudança é um fenômeno i ne ren t e à l í ngua . Pa ra rea l i z ação de
um es tudo s i nc rôn ico , é impo r t an te que o pesqu i sado r não
descons i de re o pe rcurso d i ac rôn i co do seu ob j e to de es tudo ,
como pode se r confe r i do nas pa l av ras de Tara l l o ( 1 985 , p . 64 ) :
E s s e i n t e r e s s e n o s f a t o s h i s t ó r i c o s s o b r e a s v a r i -
a n t e s p r e n d e - s e , em e s p e c i a l , a um p r i n c í p i o d a t r a d i -
c i o n a l l i n g u í s t i c a h i s t ó r i c a : a e s t r u t u r a d e um a l í n g u a
s om en t e s e r á t o t a l m e n t e e n t e n d i d a à m e d i d a q u e s e
c om p r e e n d am e f e t i v am en t e o s p r o c e s s o s h i s t ó r i c o s
d e s u a c o n f i g u r a ç ã o .
Por ap resen t a rem em seu repe r tó r i o l i ngu í s t i co uma
no rma que é es t i gma t i zada na soc iedade b ras i l e i r a , es t udan tes
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or i undos das camadas menos f avo rec i das soc i a lmen te são
v í t imas de um pe rve rso p reconce i t o l i ngu í s t i c o , e a esco l a , que
deve r i a se r o espaço de consc ien t i zação e comba te a t oda
f o rma de d i sc r im i nação , acaba rep roduz i ndo -o , pau t ada em
m i tos como “Es t a f o rma é e r rada ” , “Apenas essa deve se r
f a l ada pe l os a l unos ” , “A esco l a deve ens i na r ao a l uno f a l a r
co r re t amente ” .
O campo t eó r i co da Soc i o l i ngu í s t i c a f o i ao l ongo dos anos
t endo como ob j e t i vo cons t ru i r uma esco l a democ rá t i c a , onde a
va r i edade do a l uno se j a respe i t ada e que a no rma pad rão
possa se r ens i nada , mas de f o rma c r í t i c a , mos t rando “ [ . . . ] que
não há va r i edades l i ngu í s t i cas i n f e r i o res e supe r i o res , po i s
t oda va r i edade l i ngu í s t i c a possu i o rgan i zação es t ru tu ra l e goza
de p l en i t ude f unc i ona l [ . . . ] ” ( LUCCHES I , 20 15 , p . 26 ) , é sob re
es t a t emá t i c a que i r emos d i scu t i r nes te a r t i go .
O t ex to es t á es t ru t u rado da segu i n te f o rma : na seção 2 ,
ap resen t a -se o que p resc revem os compênd i os g rama t i ca i s
sob re os casos das regênc i as em deba te e a v i são dos
l i ngu i s tas sob re o f enômeno em es tudo ; na 3 , uma d i scussão
sob re como ens i na r a no rma pad rão e cons t ru i r uma pedagog i a
que respe i t e a va r i ação l i ngu í s t i c a do seu d i scen te , e , na
seção 4 , são ap resen tadas as cons i de rações f i na i s .
2 O Q U E P R E S C R E V E M A S G R A M Á T I C A S N O R M A T I V A S
S O B R E A R E G Ê N C I A D O S V E R B O S A S S I S T I R E
N A M O R A R ?
Como s í n t ese do que é p resc r i t o pe l a GT a respe i t o da
regênc i a dos ve rbos es tudados , ap resen t am -se os resu l t ados
na segu i n te t abe l a :
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P r e sc r i ç ã o g r am a t i c a l s o b r e a r e g ê n c i a d o s v e r b o s a s s i s t i r e n am o r a r
Pe l o expos to , no t a -se que há uma conve rgênc i a en t re os
g ramá t i cos em p resc reve rem que o ve rbo ass i s t i r ( com sen t i do
de ve r ) , deve se r reg ido pe l a p repos i ção a , e o ve rbo namora r não pode se r usado com a p repos ição com , uma vez que es te
é t r ans i t i vo d i r e to .
Sabe-se que a GT não é uma d i sc i p l i n a com f i na l i d ade
c i en t í f i c a , po i s não l eva em con t a a he te rogene i dade que é
i ne ren te à l í ngua , mas p resc reve como e l a deve se r , como
apon ta Possen t i ( 20 12 , p . 53 ) : “ E l as são exc l uden tes em a l t o
G r am á t i c o P r e sc r i ç ã o E x emp l o f o r n e c i d o
ROC HA L IMA
( 2 0 1 2 , p .
5 1 2 ) .
O v e r b o a s s i s t i r d e v e
s e r r e g i d o p e l a
p r e p o s i ç ã o a n o
“ S e n t i d o d e e s t a r p r e se n t e a , s e r e s p e c t a d o r d e , p r e se n c i a r ” .
“ E u d e s e j a v a a s s i s t i r à e x t i n ç ã o d a q u e l a s a v e s
am a l d i ç o a d a s ”
( G RAC I L IA NO RAMOS ) .
CUNHA E
C I N T RA
( 2 0 0 7 , p .
5 3 4 ) .
Uma l o n g a t r a d i ç ã o
g r am a t i c a l e n s i n a q u e
e s t e v e r b o é t r a n s i t i v o
i n d i r e t o n o s e n t i d o d e
“ e s t a r p r e se n t e ” ,
“ p r e s e n c i a r ” . C om t a l
s i g n i f i c a d o , d e ve o
o b j e t o i n d i r e t o s e r
e n c a b e ç a d o p e l a
p r e p o s i ç ã o a , e , s e f o r
e x p r e s s o p o r p r o n om e
d e 3 ª p e s s o a , e x i g i r á a
f o rm a a e l e ( s ) o u a e l a
( s ) , e n ã o l h e s .
“ A s s i s t i r a a l g um a s
t o u r a d a s ” ( A . F . S c hm i d t , AP ,
1 7 5 ) .
C EGALLA
( 2 0 0 8 , p .
5 0 2 )
“ A r e g ê n c i a c o r r e t a é
n am o r a r a l g u ém e n ã o
n am o r a r c om a l g u ém ” .
“ J o a q u i m n am o r a v a a f i l h a
d o p a t r ã o ” .
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 7 5 - 8 6 , 2 0 1 7
grau . Em p r ime i r o l uga r , exc l uem a f a l a , cons i de rando p rop r i a -
mente co r re t as apenas as man i f es t ações esc r i t a [ . . . ] ” . Nesse
sen t i do , o que é p resc r i t o pe l a t r ad i ç ão g ramat i c a l sob re as
regênc i as em d i scussão não f az pa r t e da rea l i d ade l i ngu í s t i c a
do b ras i l e i r o , como a f i rma Bagno ( 2006 , p . 36 ) :
S e t a n t a g e n t e c o n t i n u a a r e p e t i r q u e ‘ P o r t u g u ê s é d i f í c i l ’ é p o r q u e o e n s i n o t r a d i c i o n a l i s t a d a l í n g u a n o B r a s i l n ã o l e v a em c o n t a o u s o b r a s i l e i r o d o p o r t u -g u ê s . Um c a s o t í p i c o é o d a r e g ê n c i a v e r b a l . O p r o -f e s s o r p o d e m a n d a r o a l u n o c o p i a r q u i n h e n t a s m i l v e z e s a f r a s e : “ a s s i s t i r a o f i l m e ” . Q u a n d o e s s e m e smo a l u n o p u s e r o p é f o r a d a s a l a d e a u l a , e l e v a i d i z e r a o c o l e g a : ‘ a i n d a n ã o a s s i s t i o f i l m e d o Z o r r o ! ’ . P o r q u e a n e c e s s i d a d e d a q u e l a p r e p o s i ç ã o a , q u e e r a e x i g i d a n a f o rm a C l á s s i c a L i t e r á r i a , c em a n o s a t r á s e q u e a i n d a e s t á em v i g o r n o p o r t u g u ê s f a l a d o em P o r t u g a l , a d e z m i l q u i l ôm e t r o s d a q u i [ . . . ] .
E , sob re a regênc i a do ve rbo namora r , l evando em con t a
o PB , Fa raco ( 2008 , p . 98 ) a f i rma que “as duas regênc i as são , po r t an t o , l eg í t imas e p róp r i as da no rma cu l t a/comum/s tanda rd ” . Ass im , não apenas a regênc i a recomendada pe l a t r ad i ç ão g rama t i ca l é f a l ada pe los f a l an tes cu l t os b ras i l e i r os .
3 D EVE - S E OU NÃO E N S I NAR G RAMÁT I CA NA E SCOLA? Com os avanços da Soc i o l i ngu í s t i c a ap l i c ada à educação ,
comen tá r i os como “os l i ngu i s t as são a f avo r do va l e t udo ” passa ram a se r f requen tes . Ques t i onamen tos como : “ ( i ) deve ou não ens i na r g ramát i c a na esco l a? ” , “ ( i i ) se não ens i na rmos gramá t i ca como os a l unos vão passa r nos concu rsos e ves t i bu l a res? ” , “ ( i i i ) o que vamos t r aba l ha r nas nossas au l as? ” passa ram a pe rmear o co t i d i ano esco l a r dos p ro fes so res de L í ngua Po r t uguesa (LP ) .
Como pode se r v i s t o , as g ramát i c as no rma t i vas ao
p resc revem a regênc ia dos ve rbos ass i s t i r e namora r mos t ram
-se bas t an te anac rôn i cas . O p ro fesso r encon t ra um g rande
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 7 5 - 8 6 , 2 0 1 7
desaf i o , po rque os a l unos chegam à un i dade esco l a r f a l ando :
“on t em ass i s t imos o f i lme ” e “João es t á namorando com
Mar i a ” . O docen te encon t ra -se ime rso a um pa radoxo : “deve
d i ze r que seus d i scen tes es t ão f a l ando e r rado ”? “Deve
co r r i g i - l o s ”? “Ou deve ens i na r - l hes reg ras que não cond i zem
com a sua l í ngua ma te rna ”?
Em p r i nc í p i o , o p ro f esso r p rec i sa compreende r que a
no rma pad rão ( e não no rma cu l t a ) não pode se r confund i da
com l í ngua , po i s es t a é essenc i a lmen te he te rogênea , enquan -
t o aque l a é um mode l o de l í ngua . Pa r t i ndo desse p ressupos to ,
o educado r p rec i sa descons t ru i r uma concepção equ ivocada
de que o uso l i ngu í s t i c o que não es t i ve r de aco rdo com a
p resc r i ç ão g rama t i c a l é e r ro e deve ser comba t i do pe l a
esco l a . T ra t a -se apenas de um caso de va r i ação , a l go
i ne ren te à l í ngua , como a f i rma Bo r t on i -R i c a rdo ( 2004 , p . 37 ) :
“ [ . . . ] Es t amos co l ocando a exp ressão ‘ e r ro de po r t uguês ’
en t re aspas po rque a cons i de ramos i nadequada e p reconce i -
t uosa . E r ros de po r t uguês são s imp l esmen te d i f e renças en t re
var i edades da l í ngua ” .
Ass im , quando o a l uno f a l a : ass i s t i r o e namora r com , o
docen te não pode cons i de ra r essas cons t ruções como
“ e r ros ” apenas po rque não a t endem aos p rece i t os g rama t i -
ca i s . Cons tan temente , um ques t i onamen to tem fe i t o pa r t e do
co t i d i ano do docen te de LP , “ se t oda var i edade deve se r
r espe i t ada , en t ão não devemos ens i na r a no rma pad rão aos
a l unos? ” Possen t i ( 20 12 , p . 33 ) d i z que “o ob j e t i vo da esco l a
é ens i na r o po r t uguês pad rão , ou , t a l vez ma i s exa t amen te , o
de c r i a r cond ições pa ra que e l e se j a ap rend i do . Qua lque r
ou t ra h i pó t ese é um equ í voco , po l í t i co e pedagóg ico ” . Po i s , o
educando quando chega à esco l a , j á é f a l an t e compe ten t e da
sua l í ngua ma te rna , po r t an to cabe à esco l a ap resen t a r - l he a
no rma a qua l e l e u t i l i z a rá em s i t uações de ma i o r mon i t o ra -
mento (BORTON I -R ICARDO , 2004 , p . 75 ) .
Os l i ngu i s t as não de fendem a abom inação da GT do
amb i en te educac i ona l , v i s t o que o a l uno necess i t a das reg ras
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 7 5 - 8 6 , 2 0 1 7
grama t i ca i s em d i ve rsas s i t uações de sua v i da ( exames como
concu rso , ves t i bu l a r ) , mas a esco l a não deve acha r que a
ún i ca no rma que deve se r ace i t a é a padrão , em de t r imen to
das va r i an t es ap resen t adas pe l os a l unos . En t ão , como deve
se r rea l i z ado esse t r aba l ho , v i sando à cons t rução de uma
pedagog i a que respe i t e as va r i ações l i ngu í s t i c as e t r aba l he os
con teúdos p rog ramá t i cos?
O docen te deve i den t i f i c a r as va r i an tes es t i gma t i zadas na
esc r i t a e na f a l a dos seus d i scen tes e l hes ap resen t a r as
r eg ras que ap regoam o p res t í g i o , pa ra que se j a “ [ . . . ] um dos
modos do ap rend i z se i nse r i r na cu l t u ra l e t r ada e goza r ,
sob re t udo , dos p r i v i l ég i os que as camadas ma i s abas t adas da
soc iedade usu f ruem” (S ILVA; GARC IA , 20 17 ) . A l ém da i den t i f i -
cação , deve consc ien t i zá - l os de que t r a t ando de l í ngua não há
e r ro , mas adequação . Quando e l es es t i ve rem em casa , com os
f am i l i a r es , am i gos , na rua e em ou t ras s i t uações i n fo rma i s ,
podem usa r “ass i s t i r o , namora r com ” , mas quando es t i ve rem
i me rsos em s i t uações que ex i j am um g rau de f o rma l i d ade ,
como um sem iná r i o , uma pa l es t r a , na p rodução de t ex tos
f o rma i s , devem usa r a no rma pad rão “ ass i s t i r a ” e “namora r a l guém” , sem a p repos i ção com .
4 C O N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S
Este t raba lho , ao fundamentar -se no aparato teór ico e
metodo lóg ico da Soc io l i ngu ís t ica , buscou d iscut i r o conce i to de
l í ngua na concepção desse campo do conhec imento , asp i rando à
desconst rução do preconce i to l i ngu ís t ico , sobre tudo no amb i ente
esco lar , ao ana l i sar o que é prescr i to pe las gramát icas normat ivas
e como se dá a var iação da regênc ia dos verbos ass is t i r e
namorar , cons iderando a rea l i dade soc io l i ngu ís t ica do PB.
Buscamos f aze r um es tudo con t ras t i vo en t re o que a
t r ad i ç ão g rama t i c a l r ecomenda sob re as regênc i as em d i scus -
são , e o que os l i ngu i s t as desc revem sob re t a i s ve rbos l evan -
do em con t a a l í ngua f a l ada no B ras i l . Os compênd i os
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grama t i ca i s most ram -se anac rôn i cos ao recomendarem , como
a f i rmam Bagno ( 20 1 6 ) e Fa raco ( 2008 ) , r egênc i as que não
a t endem à rea l i d ade l i ngu í s t i c a b ras i l e i r a .
Nesse sen t i do , d i scu t imos a va r i ação das regênc i as em
deba te , suge r i ndo uma rev i são nas p rá t i c as pedagóg i cas do
ens i no de LP , t endo como ob j e t i vo cons t ru i r um ens i no de LP
em que a p l u ra l i d ade l i ngu í s t i c a e cu l t u ra l se j a respe i t ada , sem
de i xa r de c r i a r poss i b i l i d ades pa ra que os d i scen tes da rede
púb l i c a de ens i no cons i gam t e r as mesmas cond ições dos
f a l an tes pe r t encen tes às camadas p r i v i l e g i adas da soc i edade
b ras i l e i r a .
R e s u m e n : C o n e l a p a r a t o t e ó r i c o - m e t o d o l ó g i c o d e l a
soc i o l i n g ü í s t i c a v a r i a c i o n i s t a ( LABOV , 1 97 2 ) , e s t e t r a ba j o t i e ne
c omo ob j e t i v o p l a n t e a r u n d e b a t e s o b r e f e n ómenos v a r i a b l e s
d e l P o r t u g u é s B r a s i l e ñ o ( P B ) q u e s e d i s t i n g u e d e l P o r t u g u é s
E u r o pe o ( E P ) y d i s cu t i r l a s p r á c t i c a s d e e nse ñ anz a con f i n e s
d e c o n s t r u i r u n a p e d a g o g í a d e l a v a r i a c i ó n l i n g ü í s t i c a . L a
G ramá t i c a T r ad i c i ona l ( GT ) p r e sc r i be que l a r e genc i a de l ve rbo
a s i s t i r , c on s i g n i f i c ado de ve r , ex i g e l a p r epo s i c i ó n a : “Manoe l
ass i s t i u ao f i lme ” . En con t rapun to con e l ve rbo namora r , donde
se p r e s c r i b e q u e s e a u t i l i z a d o c omo t r a n s i t i v o d i r e c t o : “ J o ão
n amo r a Ma r i a ” . S e gún a l g u n o s l i n g ü i s t a s , l o q u e s e p r e s c r i b e
no h ac e p a r t e d e l a r e a l i d a d s o c i o l i n g ü í s t i c a b r a s i l e ñ a , p o r l o
t a n t o , h a y u n r e t o m u y g r a n d e p a r a e l p r o f e s o r d e l e n g u a
p o r t u g ue s a q ue , much as v ec e s , t i e ne q ue e n señ a r l a s r e g l a s
g rama t i c a l e s que no f o rman pa r t e de l a l engua ma te rna de sus
a l umnos . Como apo r t e t eó r i co , son u t i l i z ados l o s pos tu l ados de
Bagno ( 200 1 , 2006 , 2007 ) , Bo r t on i -R i c a rdo ( 2004 ) , Ta ra l l o ( 1 985 ) ,
en t re o t ros .
P a l a b r a s - c l a v e : V a r i a c i ó n l i n g ü í s t i c a . R e g e n c i a v e r b a l .
Enseñanza de l engua mate rna .
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N O T A S 1 E s t u d a n t e d o c u r s o d e L e t r a s V e r n á c u l a s d a U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l
d e F e i r a d e S an t a n a ( U E F S ) . A t u a l m e n t e , b o l s i s t a d e I n i c i a ç ã o
C i e n t í f i c a F A P ES B , i n t e g r a n d o o g r u p o d e p e s q u i s a “ C o n s t i t u i ç ã o ,
V a r i a ç ã o e M ud a n ç a d o / n o P o r t u g u ê s B r a s i l e i r o ” .
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 7 5 - 8 6 , 2 0 1 7
2 E s t u d a n t e d e L e t r a s V e r n á c u l a s d a U n i v e r s i d a d e Es t a d u a l d e F e i r a d e
S a n t a n a ( U E F S ) .
3 P r o f e s s o r a A d j u n t a d e L í n g u a P o r t u g u e s a d a Un i v e r s i d a d e E s t a d u a l
d e F e i r a d e S a n t a n a ( U E FS ) . A t u a l m e n t e , c o o r d e n a o p r o g r am a d e P ó s
- g r ad u a ç ã o em E s t u d o s L i n g u í s t i c o s d a U E F S .
Env i ado em : 07/02/20 17 .
Ap rovado em : 25/05/20 17 .
LITERATURA
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 8 9 - 1 0 2 , 2 0 1 7
I S S N 2 2 3 6 - 3 3 3 5
O CA MPO A O S OL HA R E S D E E ÇA D E QU E I R OZ
E C E SÁR I O V E R D E
A l i n e d e F r e i t a s S a n t o s 1 U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e F e i r a d e S a n t a n a ( U E F S )
L i c e n c i a t u r a em L e t r a s c om E s p a n h o l L y n e l a u t n e r 1 2 @ gma i l . c om
P r o f a . M a . A n d r é a S i l v a S a n t o s ( O r i e n t a d o r a ) U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e F e i r a d e S a n t a n a ( U E F S )
D e p a r t am e n t o d e L e t r a s e A r t e s ( D LA ) d e a a n i t a @ h o tm a i l . c om
R e sumo : N ã o s omen t e d e sd e o p on t o d e v i s t a l i t e r á r i o c omo t a m b ém a p a r t i r d e o u t r a s p e r s p e c t i v a s , o c e n á r i o c am p o comparado à c i dade é ca rac t e r i zado , ma jo r i t a r i amen te , pe l a sua c ond i ç ã o s im p l e s , b ucó l i c a . E n t r e t a n t o , n a l i t e r a t u r a r e a l i s t a o am b i e n t e t am b ém é q u a l i f i c a d o p e l a c o n t u r b a ç ã o e t r a b a l h o á r d u o , a s s i m c o m o o e s p a ç o c i t a d i n o . P e r c e b e n d o i s t o , o p r e s e n t e t r a b a l h o t em c omo o b j e t i v o , a p a r t i r d o m é t o d o d a l i t e r a t u r a c om p a r a d a , c o n f r o n t a r o c o n t o “ C i v i l i z a ç ã o ” e o p oema “N ós ” , r e spec t i v amen t e , d os au t o r e s Eça de Que i r o z e Cesá r i o Ve rde , ap re sen t ando as d i s t i n t a s v i s ões dos re f e r i d os a u t o r e s n o q u e d i z r e s p e i t o à i d e a l i z a ç ã o d o e s p a ç o c amp e s t r e , r e v e l a n d o , d e s t a f o rm a , o u t r a “ f a c e ” d o c e n á r i o e n f oc ado ( o c ampo ) qu e , n a ma i o r i a d a s veze s , é oc u l t a d a , e a o m e smo t em p o p r o p o n d o um a n o v a p e r c e p ç ã o a r e s p e i t o d e s s e a m b i e n t e . O t r a b a l h o é d e c a r á t e r q u a l i t a t i v o , b i b l i o g r á f i c o e o s p r e s supo s t o s t e ó r i c o s q u e o n o r t e i am s ão : W i l l i am s ( 1 9 8 9 ) , C a r va l h a l ( 1 9 9 8 ) , C and i d o ( 1 9 6 4 ) , Mo i s e s ( 1 9 94 ) en t re ou t ros au to res . Pa lavras-chave : Campo. V isões . Eça de Que i roz . Cesár io Verde .
1 I N T R O D U Ç Ã O
Se compara rmos as l i t e r a tu ras que abo rdam o e l emento
campo com aque l as que t r a t am da c i dade e se busca rmos
90
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 8 9 - 1 0 2 , 2 0 1 7
des taca r aque l a que ap resen ta ca rac te r í s t i c as como a s imp l i c i -
dade dos e l emen tos , o eu l í r i c o i nocen te e on í r i c o , é obv i o que
a esco l h i da se rá as que ap resen t am o cenár i o campes t re . E o
mesmo oco r re ao i nve rso , se p rocu ra rmos i den t i f i c a r ob ras
ca rac te r i zadas pe l o t r aba l ho , pe l a con tu rbação , pe l a amb ição ,
l og i c amente c i t a remos as l i t e r a tu ras c i t ad inas , u rbanas . Mas
se rá mesmo que es tes e l emen tos c i dade e campo devem se r
ca rac te r i zados somente des t a mane i r a? Se rá que apenas o
e l emen to c i dade ap resen ta essas qua l i d ades? Ou o campo
t ambém e v i ce -ve rsa?
Pensando em con tes t a r es tes ques t i onamentos , o p resen -
t e t r aba l ho busca ap resen t a r os e l ementos que ca rac te r i zam o
cená r i o campo em au to res do mov imen to rea l i s t a , a t r avés da
conf ron t ação en t re os ob j e tos ana l i s ados , com o i n t u i t o de
expo r as v i sões ap resen tadas sob re o re fe r i do cená r i o nas
obras “C i v i l i z ação ” de Eça de Que i r oz e “Nós ” de Cesá r i o
Verde , v i sões essas que , como se rá ap resen tado , va r i am ,
embora os re fe r i dos au to res pe r tençam a um mesmo mov imen -
to l i t e r á r i o , o Rea l i smo .
O t r aba l ho se embasa nas t eo r i as da l i t e r a tu ra comparada ,
que se re fe rem ao mé todo da aná l i se c r í t i co -compara t i va en t re
ob ras pe r t encen tes ao dom ín i o em ques t ão ( l i t e r á r i o ) e que ,
segundo Carva l ha l ( 1 998 , p . 39 ) , “ [ . . . ] f o rnece à c r í t i c a l i t e r á r i a , à
h i s t o r i og ra f i a l i t e r á r i a e à t eo r i a l i t e r á r i a uma base f undamenta l ” .
No p r ime i r o momen to des te t r aba l ho , se rá ap resen tada a
i de i a d i co t ôm ica en t re os e l emen tos campo e c i dade , des t acan -
do a l guns f a tos h i s t ó r i cos que co r robo ra ram pa ra a d i s t i nção
en t re esses do i s cenár i os e , a l ém d i sso , pe r í odos da l i t e r a t u ra
que f i ze ram uso desse an t agon i smo , en f a t i zando o conf ron to
de ca rac te r í s t i cas en t re os re fe r i dos amb i en t es . Em segundo
l uga r , ap resen t a r -se -á b revemente o que f o i o mov imen to
rea l i s t a e a re l evan te p resença dos e l emen tos campo e c i dade
nas ob ras de au to res desse pe r í odo , apon tan do o cená r i o que
ma i s se des t acou no mov imen to . Em t e rce i r o e ú l t imo l uga r ,
se rá ex i b i da a aná l i se compara t i va en t re as ob ras de Eça de
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Que i roz e de Cesá r i o Ve rde , mos t rando as d i s t i n t as v i sões
sob re o e l emen to campo nas ob ras dos re fe r i dos au to res .
2 C A M P O V E R S U S C I D A D E
An tes de d i scu t i rmos a respe i t o desses do i s e l emen tos
cons i de rados an t agôn i cos , campo e c i dade , é conven ien te
re t omar f a t os h i s t ó r i cos que de te rm i na ram essa i de i a de d i s t i n -
ção en t re os do i s espaços .
A v i da do homem eu ropeu no pe r í odo da I dade Méd i a f o i
ca rac te r i zada , ma jo r i t a r i amen te , pe l a a t i v i dade campes t re .
Naque l a época , os med ieva i s t i nham suas p rop r i edades de
t e r r as d i v i d i das nos chamados f eudos , que f o ram cons t ru í dos
a pa r t i r do sécu l o IV , p r ime i r amen te , com o p ropós i t o de re f u -
g i a r as f am í l i a s c i t ad inas que t i ve ram seu l uga r i nvad i do po r
d i ve rsos povos como os os t rogodos , os suevos , os f r ancos
e tc . É j us t amen te a pa r t i r desse pe r í odo de i nvasões e f ugas
que se i n i c i a o p rocesso de ru ra l i z ação na Eu ropa Oc i den t a l , e
j un t amen te com es te f a t o h i s t ó r i co a i de i a de campo como
espaço t r anqu i l o e segu ro .
Pos te r i o rmen te , a c i dade começa a f o r t a l e ce r suas p rá t i -
cas comerc i a i s e consequen temen te su rge a Revo l ução I ndus -
t r i a l , com o ob j e t i vo de mecan i za r e ace le ra r o s i s t ema de
p rodução . Com i sso , ao con t rá r i o do t r aba l ho campes t re , o
desenvo lv imen to das a t i v i dades u rbanas ganha f o rça , l ogo
re f o rçando o an t agon i smo en t re campo e c i dade . E ass im ,
como a f i rma W i l l i ams ( 1 989 , p . 1 1 ) , esses do i s espaços passam
a se r v i s t os da segu i n t e f o rma : “ [ . . . ] a c i dade como l uga r de
ba ru l ho , mundan i dade e amb i ção ; o campo como l uga r de
a t r aso , i gno rânc i a e l im i t ação ” .
Na l i t e r a t u ra , essa d i co t om i a campo ve rsus c i dade ganha
ma i o r des t aque com o su rg imen to do Arcad i smo ou Neoc l ass i -
c i smo , mov imento em que os poe t as exp ressavam , a t r avés de
suas ob ras , o re t r a t o da s imp l i c i dade do campo , da v i da pas to -
r i l , desf ru t ando sua ex i s t ênc i a no se i o da na tu reza e dando
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opor tun i dade pa ra o desenvo lv imen to de uma poes i a i d í l i c a ,
bucó l i c a e sad i a , i dea l i z ando o cená r i o campo como a rep re -
sen tação do que é be l o e pe r fe i t o . Va l e ressa l t a r t ambém que ,
no re fe r i do mov imen to , e ra comum o uso de exp ressões l a t i -
nas assoc i adas ao es t i l o bucó l i co , como a sen tença Fuge re Urbem ( Ho rác i o ) que s ign i f i c a “ Fug i r da c i dade ” .
Es t a i dea l i z ação d i co tôm i ca en t re amb ien te campest re e
c i t ad i no pe rdu rou po r vá r i os pe r í odos da h i s t ó r i a da l i t e r a t u ra e
vêm sendo abo rdada dessa mesma mane i r a a t é os d i as a tua i s .
3 O C A M P O E A C I D A D E N A L I T E R A T U R A R E A L I S T A
Pos te r i o r ao mov imen to Na tu ra l i s t a su rge a L i t e ra t u ra
Rea l i s t a que ( t em ) t i nha como ca rac t e r í s t i ca p r i nc i pa l , a pa r t i r
da t en t a t i va de re t r a t a r f i e lmen te a rea l i dade da soc iedade
eu rope i a do sécu l o X IX , mos t ra r as de fo rm idades , as
“ imund i ces ” da soc iedade bu rguesa , apon t ando as de f i c i ênc i as
da re l i g i ão , do casamen to , da po l í t i c a e tc . , com o ob j e t i vo de
consc ien t i za r o púb l i co , mob i l i z ando -o à t r ans fo rmação dessa
soc iedade .
Com re l ação à p resença dos e l emen tos campo e c i dade
na L i t e ra t u ra Rea l i s t a , d i f e ren t emen te do pe r í odo Arcad i s ta ,
pe rcebe -se o p redom ín i o do amb i en te u rbano , c i t ad i no , j us t a -
mente pe l o f a t o de es t e se r o cená r i o onde es t ão man i f es t as ,
ma jo r i t a r i amente , as f a l has c r i t i c adas pe l o rea l i smo . En t re t an to ,
é poss íve l encon t ra r au to res pe r t encen tes ao re fe r i do mov i -
mento , como os po r t ugueses Cesá r i o Ve rde e Eça de Que i r oz ,
que no poema “Nós ” e no con to “C i v i l i z ação ” , r espec t i vamen te ,
t r a t am desses do i s espaços , f undamentados em uma mesma
t emát i c a , de mane i r as d i f e ren tes , p r i nc i pa lmen te no que d i z
respe i t o à v i são do e l emen to campo .
É conven ien te ressa l t a r que apesa r do mov imento p r i v i l e -
g i a r o cená r i o c i t ad i no , f az -se ev i den te a p resença do
conf ron to en t re as ca rac te r í s t i c as a t r i bu ídas aos re fe r i dos
espaços , ass im como a f i rma Cand i do ( 1 964 , p . 3 1 ) :
93
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 8 9 - 1 0 2 , 2 0 1 7
N um a s o c i e d a d e e u r o p e i a d o s é c u l o X I X , c omo a p o r t u g u e s a , c i d a d e d e ve r i a s i g n i f i c a r v i d a m od e r n a , i n t e r c âm b i o s o c i a i s i n t e n s o s , p a r t i c i p a ç ã o n a c i v i l i z a -ç ã o c a p i t a l i s t a d o O c i d e n t e . C am p o s i g n i f i c a r i a t r a d i -c i o n a l i sm o , e c o n om i a a g r á r i a , s e n t i d o p a t e r n a l n a s r e l a ç õ e s e n t r e a s c l a s s e s .
Ou se j a , no pe r í odo em que se man i f es t ou o rea l i smo ,
mesmo o campo possu i ndo uma econom i a baseada no t r aba l ho
i ndus t r i a l , comparado ao cená r i o u rbano , a i nda e ra cons i de rado
amb i en te t r ad i c i ona l , composto pe l a s imp l i c i dade e pe l a v i da
paca t a , r esu l t ando , dessa mane i r a , na sonegação da ve rdade i r a
rea l i d ade soc i a l do espaço campes t re , ass im como se rá
mos t rado no t óp i co a segu i r .
4 A V I S Ã O D O E L E M E N T O C A M P O E M E Ç A E C E S Á R I O
Em con t ras te com o e l emen to c i dade , o campo apa rece
nas ob ras de Eça de Que i r oz e Cesá r i o Ve rde a pa r t i r de
pe rspec t i vas d i s t i n t as . Apesa r de os re f e r i dos au to res pe r t en -
ce rem ao mesmo mov imen to l i t e r á r i o , o Rea l i smo , em seus
respec t i vos t r aba l hos ap resen t am e l emen tos em comum com
o l ha res d i f e ren t es . Essa va r i ação do o l ha r sob re de te rm i nados
e l emen tos oco r re dev ido à rea l i d ade da qua l esses esc r i t o res
f i ze ram ou f azem pa r t e , po i s d i gamos que o t r a t amen to dado
ao an ima l vaca no B ras i l , po r exemp l o , não é o mesmo dado a
es te an ima l na Í nd i a . A v i são que o i nd i v í duo te rá sob re a
co i sa em ques tão i r á va r i a r de aco rdo com o seu con t a to , se j a
es te soc i a l , cu l t u ra l , po l í t i c o e tc .
No que d i z respe i t o à v i são do e l emen to campo nas
ob ras dos re f e r i dos au to res , podemos a f i rma r que , de um
modo ge ra l , no con to de Eça de Que i r oz i n t i t u l ado “C i v i l i z ação ”
o espaço campest re é v i s t o como um amb i en t e de re f úg i o , de
ca lma , de be l eza , de l i be rdade .
Con t ada po r um na r rado r -pe rsonagem , que po r s i na l é
am igo do p ro t agon i s t a , o con to “C iv i l i z ação” t r a t a da h i s t ó r i a
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con tu rbada de Jac i n t o ( pe rsonagem p r i nc i pa l ) que v ive em uma
c i v i l i z ação , mun i do de t odos os bens o fe rec i dos pe l a mode rna
soc iedade da época . Homem de l uxo , possu i do r de r i quezas
mate r i a i s e i n t e l ec tua i s , Jac i n to em um de te rm i nado momen to
se cansa da rea l i d ade da qua l f az pa r t e e , consequen temen te ,
f oge pa ra o campo com o p ropós i t o de encon t ra r sossego e
l i be rdade . A respe i t o dessa concepção do campo como espaço
de qu i e t ude , a f i rma Bag l i ( 2007 , p . 2 ) que :
O r u r a l e n q u a n t o l ó c u s d e l a z e r e d e sc a n s o [ . . . ] é
c r i a d o p o r n e c e s s i d a d e s q u e s e o r i g i n am n o s e s p aç o s
u r b a n o s . O c o t i d i a n o t e n s o d a s c i d a d e s m o t i v a a
b u s c a p e l o s e s p a ç o s r u r a i s . E s t e s s ã o p r o c u r ad o s
p e l a s q u a l i d a d e s q u e s e e n c o n t r am a u s e n t e s n a r e a l i -
d a d e d a q u e l e s q u e o s b u s c am . [ . . . ] b u s c a - se o c am p o
c om o r e f ú g i o m ome n t â n e o p a r a o s p r o b l em a s d a c i d a -
d e , o q u e i m p l i c a a c o n s t r u ç ã o d e t e r r i t ó r i o s , q u e
s u p r am e s s a n e c e s s i d a d e d e f u g a .
Na ob ra é poss íve l obse rva r es te o l ha r sob re o campo
como cená r i o de re fúg i o e l i b e rdade no momen to em que
Jac i n to pe rcebe que , em me i o a t an tos ob j e tos e posses ,
necess i t a de a l go que o amb ien te da c i v i l i zação não pode l he
o f e r t a r , a f e l i c i dade .
[ . . . ] Q u e f a l t a v a a e s t e h omem e x c e l e n t e ? E l e t i n h a a
s u a i n a b a l á v e l s a ú d e d e p i n h e i r o b r a v o , c r e sc i d o n a s
d u n a s ; um a l u z d e i n t e l i g ê n c i a p r ó p r i a t u d o o q u e
a l um i a r , f i r m e e c l a r a , s em t r emo r o u mo r r ã o ; q u a r e n t a
m a g n í f i c o s c o n t o s d e r e n d a ; t o d a s a s s i m p a t i a s d e
um a c i d a d e c h a s q u e a d o r a e c é p t i c a ; um a v a r r i d a d e
s om b r a s , m a i s l i b e r t a e l i s a d o q u e o c é u d e V e r ã o . . .
E t o d a v i a b o c e j a v a c o n s t a n t eme n t e , p a l p a v a n a f a c e ,
c om o s d e d o s f i n o s , a p a l i d e z e a s r u g a s . [ . . . ] C l a r a -
m en t e a v i d a e r a p a r a J a c i n t o um c a n s a ç o . O r a j u s t a -
m en t e d e p o i s d e s s e I n v e r n o [ . . . ] s u c e d e u q u e J a c i n t o
t e v e a n e c e s s i d a d e m o r a l i n i l u d í v e l d e p a r t i r p a r a o
N o r t e , p a r a o s e u v e l h o s o l a r d e T o r g e s . ( QUE I ROZ ,
2 0 0 6 , p . 8 - 9 ) .
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É poss í ve l no t a r t ambém o campo ca rac te r i zado como
e l emen to be l o no momento em que Jac i n to , na companh i a de
seu am igo José , após uma l onga cam inhada rumo ao “So l a r de
To rges ” (mon te onde p re tende se re fug i a r ) , se põem su rp resos
com a pa i sagem campes t re do l uga r . Obse rve :
[ . . . ] p a s s a d a um a t r êm u l a p o n t e d e p a u q u e g a l g a um
r i b e i r o t o d o q u e b r a d o p o r f r a g a s ( e o n d e a b u n d a a
t r u t a a d o r á v e l ) o s n o s s o s m a l e s e s q u e c e r am , a n t e a
i n e s p e r a d a , i n c om p a r á v e l b e l e z a d a q u e l a t e r r a b e n d i t a .
O d i v i n o a r t i s t a q u e e s t á n o s c é u s c om pu s e r a c e r t a -
m en t e e s s e m o n t e , n uma d a s s u a s m a n h ã s e m a i s
s o l e n e e b u c ó l i c a i n s p i r a ç ã o . A g r a n d e z a e r a t a n t a
c om o a g r a ç a . . . D i z e r o s v a l e s f o f o s d e v e r d u r a , o s
b o s q u e s q u a s e s a c r o s , o s p om a r e s c h e i r o so s e em
f l o r , a f r e s c u r a d a s á g u a s c a n t a n t e s , a s e rm i d i n h a s
b r a n q u e a n d o n o s a l t o s , a s r o c h a s m u s g o s a s , o a r d e
um a d o ç u r a d e p a r a í s o , t o d a a m a j e s t a d e e t o d a a
l i n d e z a - n ã o é p a r a m im , h omem d e p e q u e n a a r t e .
N em c r e i o m e smo q u e f o s s e p a r a o m e s t r e H o r á c i o .
Q u em p o d e d i z e r a b e l e z a d a s c o i s a s , t ã o s i m p l e s e
i n e x p r im í v e l ? J a c i n t o a d i a n t e , n a á g u a t a r d a , m u rmu r a -
v a : “ A h ! q u e b e l e z a ! ” E u a t r á s n o b u r r o , c om a s
p e r n a s b am b a s , m u rmu r a v a : “ A h ! q u e b e l e z a ! ” O s
e s p e r t o s r e g a t o s r i am , s a l t a n d o d e r o c h a em r o c h a .
F i n o s r am o s d e a r b u s t o s f l o r i d o s r o ç a v am a s n o ss a s
f a c e s , c om f am i l i a r i d a d e e c a r i n h o . ( QUE I ROZ , 2 0 0 6 , p .
1 1 - 1 2 ) .
Aqu i o campo é con temp l ado po r sua s imp l i c i dade , pe l a
be l eza de sua na tu reza e , a l ém d i sso , o au to r desc reve o
amb i en te a t r i bu i ndo - l he a i de i a de um l uga r t r anqu i l o , sossega -
do , con t r apondo essas ca rac te r í s t i cas d i r e ta ou i nd i r e t amente
com os aspec tos do cená r i o con tu rbado e op resso r da c i v i l i z a -
ção .
No f i na l do con to , o e l emento campo é denom inado
t ambém como pa ra í so , e , a l ém d i sso , como um l uga r de f uga
do i nd i v í duo c iv i l i z ado , en f a t i zando a i nda ma i s essa pe rcepção
do au to r sob re o espaço como amb ien te bucó l i c o , s imp l es e
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se reno : “ [ . . . ] pa ra reave r a f e l i c i dade , é necessá r i o reg ressa r ao Pa ra í so – e f i c a r l á , qu i e t o , na sua f o l ha de v i nha , i n t e i r a -
mente desgua rnec i do de c i v i l i z ação , con t emp l ando o anho aos
sa l t os en t re o t om i l ho , e sem p rocu ra r , nem com o dese j o , a
á rvo re f unes t a da C i ênc i a ! ” (QUE IROZ , 2006 , p . 22 , g r i f o
nosso ) . Mas o que s i gn i f i c a Pa ra í so? Buscando a acepção da
pa l av ra no D i c i oná r i o Auré l i o On l i ne encon t ramos : “Luga r de
de l í c i as , l uga r onde a gen te se sen te bem , em paz e sossego ” .
Ou se j a , um l oca l onde não há enfe rm i dades , imund ices ,
con tu rbação , ba ru l ho , ou qua l que r co i sa que possa causa r
desa rmon i a , i nqu i e t ude . Essa é a v i são que Eça de Que i r oz
a t r i bu i ao Campo , um cená r i o v i s t o pe l o homem c i v i l i z ado como
espaço de re f úg i o , da busca pe l a Fe l i c i dade , da be l eza e de
uma v i da se rena e t r anqu i l a , um l uga r onde es te homem pode -
rá busca r aqu i l o que l he f az f a l t a na C iv i l i z ação .
Já em Cesá r i o Ve rde , com o seu poema “Nós ” , d i f e ren te -
mente do aspec to receb i do em Eça , o cenár i o campo é ca rac -
t e r i zado como um l oca l de t r aba l ho du ro , uma rea l i d ade soc i a l
t ão d i f í c i l quan to a da c i dade .
D i v i d i do em t rês pa r tes , o poema es t á compos to po r um
to t a l de 1 1 7 es t ro fes e 468 ve rsos . Ne le o au to r t r az essa
re f l exão sob re a v i são de um povo c i t ad i no que , f ug i ndo das
ma l i gnas ep i dem i as , va i pa ra o campo com a i n t enção de l i v r a r -
se desses ma l es . En t re t an to , l ogo em segu i da , Cesá r i o mos t ra
a ve rdade i r a rea l i d ade do campo , descons t ru i ndo a v i são
a t r i bu í da a es t e cená r i o , no rma lmen te ca rac te r i zado como
amb i en te sossegado , l i v re de enfe rm idades , compos to po r um
modo de v ida paca to .
Nas segu i n tes es t ro f es , é poss íve l pe rcebe r a re f l exão
que o au to r t r az mos t rando que no campo co i sas ru i ns
t ambém acon tecem , que nes te espaço ex i s te a dua l i d ade en t re
o bem e o ma l . Observe : “ [ . . . ] Nós não v i vemos é de co i sas
be l as , / Nem tudo co r re como num romance ! ” (VERDE , 1 987 , p .
39 ) . E a i nda :
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E f o i n um an o p r ó d i g o , e x c e l e n t e ,
C u j a am a r g u r a n a d a s e i q u e a d o c e ,
Q u e n ó s p e r d emo s e s s a f l o r p r e c o c e ,
Q u e c r e s c e u e m o r r e u r a p i d ame n t e !
A i d a q u e l e s q u e n a s c em n e s t e c a o s ,
E , s e n d o f r a c o s , s e j am g e n e r o s o s !
A s d o e n ç a s a s s a l t am o s b o n d o s o s
E – c u s t a a c r e r – d e i x am v i v e r o s m a u s !
( V E R D E , 1 9 8 7 , p . 3 4 )
O au to r t ambém apon t a a d i f i c u l dade que o homem do
campo passa com re l ação à comerc i a l i z ação de sua f on te de
t r aba l ho . Es te i nd i v í duo que so f re pa ra p l an t a r , cu l t i v a r , co l he r ,
a i nda necess i t a depende r da so r te pa ra vende r seus p rodu tos ,
como é mos t rado nes t es ve rsos : “A expo r tação de f ru tas e ra
um j ogo : / Depend i am da so r t e do mercado [ . . . ] ” (VERDE , 1 987 ,
p . 34 ) ; e t ambém “ [ . . . ] F aço um t r aba l ho t écn i co , v i o l en to , /
Can tando , p rague j ando , ba t a l hando ! ” (VERDE , 1 987 , p . 38 ) .
E o au to r a i nda ac rescen t a , t r azendo :
[ . . . ] a r ú s t i c a l a v o u r a , q u e r
S e j a o p a t r ã o , q u e r s e j a o j o r n a l e i r o ,
Q u e i n f e r n o ! Em v ão o l a v r a d o r r a s t e i r o
E a f i l h a r a d a l i d am , e a mu l h e r !
D e s d e o p r i n c í p i o a o f i m é um a m aç a d a
D e m i l d emô n i o s ! T o r n a - s e p r e c i s o
T e r - s e mu i t o v i g o r , mu i t o j u í z o
P a r a t r a z e r a v i d a e q u i l i b r a d a !
H o j e e u s e i q u an t o c u s t am a c r i a r
A s c e p a s , d e s d e q u e e u a s p o d o e em p o .
A h ! O c am po n ã o é um p a s s a t em p o
C om b u c o l i sm o s , r o u x i n ó i s , l u a r .
( V E R D E , 1 9 8 7 , p . 3 9 , g r i f o n o s s o )
D i an te da cond ição das a t i v i dades campes t res marcadas
pe l a emanc i pação e l i be r t ação , pa rece que comparado à c i dade
o campo não possu i t a re f as l abo r i osas no que d i z respe i t o ao
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t r aba l ho manua l , po i s como se sabe o t r aba l ho pa ra o homem
do campo é cond i ção de i ndependênc i a , d i f e ren temen te do
homem c i t ad i no que t r aba l ha sob a exp l o ração do cap i t a l . A l ém
d i sso , ass im como a f i rma Mar t i ns ( 2003 , p . 60 ) , o que homem
campest re “vende não é sua f o rça de t r aba l ho e s im o f ru t o
de seu t r aba l ho , que nasce como sua p rop r i edade ” . En t re t an to ,
essa i de i a de t r aba l ho l i v re no campo l eva à concepção de
t r aba l ho s imp les e f ác i l , o que na ve rdade não o é . O campo
não é apenas um amb i en te be l o e s imp l es , e l e t ambém possu i
es te l ado l abo r i oso da v i da . As pessoas que a í v i vem possuem
um es t i l o de v i da t ão á rduo e d i f i cu l t oso quan to ao do homem
da c i dade , embora não pa reça , po i s esse l ado não conhec i do
da v i da campes t re se encon t ra ocu l t o po r de t r ás da e r rônea
concepção aqu i j á menc i onada e , como most rado no poema , da
be l eza que impe ra na na tu reza campes t re , como podemos
pe rcebe r nas segu i n tes es t ro fes :
Qu e d e f r u t a ! E q u e f r e s c a e t em p o r ã ,
N a s d u a s b o a s q u i n t a s b em mu r a d a s ,
Em q u e o S o l , n o s t a l h õ e s e n a s l a t a d a s ,
B a t e d e c h a p a , l o g o d e ma n h ã !
O l a r a n j a l d e f o l h a s n e g r e j a n t e s ,
( P o r q u e o s t e r r e n o s s ã o r e s v a l a d i ç o s )
d e s c e em so c a l c o s t o d o s o s m a c i ç o s ,
c om o um a e s c a d a r i a d e g i g a n t e s .
[ . . . ]
E a s s i m p o s t a s , n o s b a r r o s e a r e a i s ,
A s m a c i e i r a s v e r g a d a s f o r t eme n t e ,
P a r e c em , d um a f a u n a s u r p r e e n d e n t e
O s p ó l i p o s e n o rm e s , d i l u v i a i s .
[ . . . ]
F e c h o o s o l h o s c an s a d o s , e d e s c r e vo
D a s t e l a s d a m emó r i a r e t o c a d a s ,
B i s c a t e s , h o r t a s , b a t a t a i s , l a t a d a s ,
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N o p a í s mo n t a n h o s o , c om r e l e v o !
[ . . . ]
S i m ! E u r o p a d o No r t e , o q u e s u p õ e s
D o s v e r g é i s q u e a b a s t e c em t e u s b a n q u e t e s ,
Q u a n d o à s d o c a s c om f r u t a s , o s p aq u e t e s
C h e g am a n t e s d a s t u a s e s t a ç õ e s ? !
( V E R D E , 1 9 8 7 , p . 3 2 - 3 5 )
Pa rece t udo mu i t o pe r f e i t o . En t re t an to , pa ra que as f ru t as
f ru t i f i c assem como f ru t i f i c a ram e pa ra que os l a r an j a i s es t i ves -
sem t ão f o rmosos como desc r i t os , f o i necessá r i o o t r aba l ho
á rduo , a l abu t a de so l a so l des te homem campes t re , cu j o qua l
se ocupa d i a r i amen te nessa t a re f a de cu l t i vo e p l an t ação pa ra
man te r essa pa i sagem cap r i chada e ap raz í ve l da na tu reza ,
como é no t ada aos o l hos do homem c i t ad i no , quem t a l vez
pense que t e r doces f ru t as f o ra de suas es t ações se j a a l go
l og rado a t r avés de métodos s imp l es e f áce i s .
É conven ien te re f o rçar t ambém que apesa r de a c i dade
possu i r sua es t ru tu ra baseada em recu rsos cap i t a l i s t as , “ [ . . . ] nunca de i xou de depende r do mundo rura l , po i s a c i dade
p rec i sa se a l imen t a r do que é cu l t i v ado e p roduz i do no campo .
Em ou t ras pa l av ras , o u rbano desde sempre man tém
dependênc i a com ru ra l ” ( LUCENA , 20 1 5 , p . 1 ) . Po r i sso a
necess i dade de l eva r em cons i de ração o t r aba l ho campes t re ,
que , sendo “base ” da f on te de t r aba l ho c i t ad i na , compõe -se de
t a re f as t ão á rduas quan to às da c i dade , apesa r de
ca rac te r i zado pe l a cond i ção de i nde pendênc ia .
5 C O N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S
Em suma , pode -se pe rcebe r que os cenár i os Campo e
C i dade se de te rm i nam opoen tes no pe r í odo da I dade Méd i a e
pos te r i o rmen te com a Revo l ução I ndus t r i a l que ca rac te r i zou a
evo l ução soc i a l , po l í t i ca e econôm ica da c i dade , qua l i f i c ando -a
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 8 9 - 1 0 2 , 2 0 1 7
como um amb ien te comp l exo comparado ao campo , que e ra
buscado pe l o povo c i t ad i no como espaço de re fúg i o . A l ém
d i sso , ex i s t i r am mov imen tos l i t e r á r i os que p res t i g i a r am ma i s um
espaço do que o ou t ro , como fo i o caso do Arcad i smo , que se
man i f es t a com ca rac te r í s t i c a campes t re , e o Rea l i smo , com o
u rbano e c i t ad i no .
A pa r t i r da con f ron t ação en t re as ob ras dos au to res Eça
de Que i r oz e Cesá r i o Ve rde pe rcebemos a dua l i d ade do
e l emen to campo . Com o p r ime i r o v imos es te cená r i o ca rac te r i -
zado po r uma concepção ma i s convenc i onada de l uga r t r anqu i -
l o e se reno , en t re t an to , com Cesá r i o , o i nve rso oco r re e o
amb i en te campes t re é qua l i f i c ado como um espaço de t r aba l ho
á rduo e l abo r i oso , ass im como a c i dade . Podendo -se aca t a r
que campo e c i dade são do i s espaços cons ide rados an t agôn i -
cos dev i do à opos i ção en t re as ca rac te r í s t i c as a e l e s a t r i bu í -
das , é poss í ve l pe rcebe r que apesa r das pr ime i r as qua l i d ades
que l hes f o ram convenc i onadas , es t es t ambém são ad j e t i v ados
po r ca rac t e r í s t i c as que não cond i zem com as concepções
p r ime i r as , como , po r exemp l o , do campo denom inado como
l uga r t r anqu i l o , se reno e a c i dade como amb i en te de con tu rba -
ção , agon i a . Pe l o con t r á r i o , t an t o um como o ou t ro pode rão
c l ass i f i c a r -se i nve rsamente e i sso depende rá da v i são de
quem o vê e o de f i ne .
A lém d i sso , como expos to no t r aba l ho , o e l emen to
pres t i g i ado na l i t e r a t u ra rea l i s t a é o cená r i o da c i dade , t odav i a
i sso não exc l u i a poss i b i l i d ade de have r uma p redom inânc i a do
e l emen to campo quando comparado com o amb i en te u rbano
ass im como o f az Cesá r i o . Adema i s , apesa r de pe r tence rem a
um mesmo mov imen to l i t e r á r i o , v imos que os au to res es tuda -
dos podem ap resen t a r v i sões d i f e ren tes , embora t r a t em de um
mesmo e l emen to .
Resumen : N o so l amen te desde e l pun t o de v i s t a l i t e r a r i o como
t am b i é n a p a r t i r d e o t r a s p e r s p e c t i v a s , e l e s c e n a r i o c am p o
c omp a r a d o a l u r b a n o s e c a r a c t e r i z a , m u c h a s v e c e s , p o r s u
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cond i c i ón senc i l l a , bucó l i c a . S i n embargo , en l a l i t e r a tu ra rea l i s t a
e l amb i en te t amb i én es ca rac t e r i zado po r l a con tu rbac i ón y po r
e l t r a b a j o l a b o r i o s o , a s í c omo e l e s p ac i o c i t a d i n o . A p a r t i r d e
e s o e l p r e s e n t e a r t í c u l o t i e n e c om o o b j e t i v o , a t r a v é s d e l
m é t o d o d e l a l i t e r a t u r a c o m p a r a d a , c o n f r o n t a r l a s o b r a s
“ C i v i l i z a ç ão ” y “ Nó s ” , r e s pec t i v amen t e , d e l o s a u t o r e s Eç a d e
Que i roz y Cesá r i o Ve rde , p r esen t ando l as d i s t i n t a s m i r adas de
l o s r e f e r i d os au t o re s con re l a c i ó n a l a i de a l i z ac i ó n de l e spac i o
campes i no , r eve l ando de es t a mane ra o t r a “ca ra ” de l escena r i o
e n c omen t o q u e c a s i s i emp r e e s o c u l t a d a y a l m i smo t i emp o
p ropon i e ndo una nueva pe rcepc i ó n a re spec t o de l amb i en t e . E l
t r a b a j o p o se e c a r ác t e r c u a l i t a t i v o , b i b l i o g r á f i c o y l o s t e ó r i c o s
que l o sos t i e nen son : W i l l i ams ( 1 9 89 ) , Ca rva l h a l ( 1 9 98 ) , Cand i do
( 1 964 ) , Mo i ses ( 1 994 ) en t re o t ros .
P a l a b r a s c l a v e : C am p o . L i t e r a t u r a R e a l i s t a . M i r a d a s . E ç a d e
Que i roz . Cesá r i o Ve rde .
R E F E R Ê N C I A S
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N O T A S 1 G r a d u a d a em L e t r a s V e r n á c u l a s p e l a Un i a s s e l v i e e s t u d an t e d e 4 º
s em e s t r e n o c u r so d e L e t r a s c om E s p a n h o l d a U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l
d e F e i r a d e S a n t a n a ( U E F S ) .
Env i ado em : 1 9/02/20 17 . Ap rovado em : 1 0/ 10/20 17 .
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 1 0 3 - 1 1 2 , 2 0 1 7
I S S N 2 2 3 6 - 3 3 3 5
O S A SP ECTOS DO NAR RA DO R D E WA LT ER
B E N JAM I N : D I Á LOG OS E A F I N I DA D E S E N T R E
JO S É LUA ND I NO V I E I RA E JOÃO GU IM ARÃ E S
R O SA
R a f a e l M a r t i n s N o g u e i r a 1
Un i ve r s i d a de da I n t eg r a ç ão I n t e r n a c i o n a l da Luso f on i a A f r o - B r as i l e i r a (UN I LAB )
L e t r a s – L í n g u a P o r t u g u e s a ( I n s t i t u t o d e H uma n i d a d e s e L e t r a s )
r a f a e l m a r t i n s n o g u e i r a @ o u t l o o k . c om . b r
Resumo : O ob j e t i v o de s t e t r a b a l h o é c ompr ee nde r e de s t ac a r
o s a s p e c t o s e a f i n i d a d e s e n t r e a o b r a d e J o ã o G u i m a r ã e s
Rosa , G r ande se r t ão : ve redas e o con to “Vavó X í x i e seu ne to
Z e c a S a n t o s ” , d o a u t o r d e L u u a n d a , J o s é L u a n d i n o V i e i r a .
Con s i d e r a n d o o s a s p e c t o s p r e s e n t e s d o n a r r a d o r n a s d u a s
ob r as , d i a l o ga -se com a pe r spec t i v a e os conce i t o s de Wa l t e r
Ben j am i n ( 1 9 9 6 ) , c o n f o rme p r o põem , “A s e s t ó r i a s d e L uu and a
c o m o ‘ f á b u l a s a n g o l a n a s ’ : d i s j u n ç õ e s e c o n f l u ê n c i a s ” , d e
I n o c ê n c i a M a t a ( 2 0 1 4 ) , e “ W a l t e r B e n j a m i n r e l a m p e j a e m
Gu imarães Rosa ” , de L í v i a de Sá Ba i ão ( 20 1 5 ) .
P a l a v r a s - c h a v e : G u i m a r ã e s R o s a . L u a n d i n o V i e i r a . W a l t e r
Ben j am i n . A f i n i dades . L i t e ra t u ra .
1 I N T R O D U Ç Ã O
Duran t e a década de 60 , no B ras i l , o c r í t i co l i t e r á r i o , f i l ó -
so fo e esc r i t o r , Wa l t e r Ben j am i n é o áp i ce de es tudos , aná l i ses
e rev i s i t ações . É nesse pe r í odo que começam a se rem pub l i ca -
das as t r aduções dos seus esc r i t os pa ra o po r t uguês . Con tu -
do , a pa r t i r da década de 90 , ensa i os com abo rdagens h i s t ó r i -
cas , po l í t i c as e soc i a i s se t o rnam i n t ensos e p resen tes , em
espec i a l , o pensamen to de Ben j am i n quan tos aos conce i t os de
na r rado r , romance e epope i a (BA IÃO , 20 15 ) .
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Nasc i do em Be r l im , em 1892 , no be rço de uma f am í l i a
j uda i c a ( s i on i s t a ) , cons i de rado um impor tan t e pensado r do
sécu l o XX , se j a pe l a c r í t i c a l i t e r á r i a ou po r suas con t r i bu i ções
na f i l o so f i a , Wa l t e r Ben j am i n é um dos g randes pensado res
a f e i çoados na f i l o so f i a c l áss i c a .
O pensado r con t r i bu i u d i r e t amen te com a l i t e r a t u ra , i nse -
r i u em seu o f í c i o a t r i bu i ções de t r adu to r e c r í t i c o l i t e r á r i o . V i t i -
mado pe l o Naz i smo , es t eve boa pa r t e de sua v i da no ex í l i o ,
nômade , f ug i ndo de l uga r em l uga r . Po r vo l t a de 1 940 , com 48
anos de i dade , o c r í t i co , ao sabe r da imposs i b i l i d ade de
a t r avessa r a f ron te i r a f r anco -espanho l a , i nge re uma dose l e t a l
de mor f i na , t i r ando sua p róp r i a v i da (ME INERS , 2008 ) .
É d i a l ogando com a pe rspec t i va de Wa l t e r Ben j am i n
( 1 996 ) , seus aspec tos sob re o na r rado r , tomando como base
Grande se r t ão : ve redas e o con to “Vavó X í x i e seu ne to Zeca
Santos ” , é que se da rá a aná l i se da rep resen t ação dos na r ra -
do res das respec t i vas ob ras .
2 O S N A R R A D O R E S B E N J A M I N I A N O S
A f i g u r a d o n a r r a d o r s ó s e t o r n a p l e n am en t e t a n g í v e l
s e t em o s p r e se n t e s e s s e s d o s g r u p o s , “ Q u em v i a j a
t em m u i t o q u e c o n t a r ” , d i z o p ov o , e c om i s s o i m ag i n a
o n a r r a d o r c om o a l g u ém q u e v em d e l o n g e . M a s
t am bém e s c u t am o s c om p r a z e r o h om em q u e g a n h o u
h o n e s t am en t e s u a v i d a s em s a i r d o s e u p a í s e q u e
c o n h e c e s u a s h i s t ó r i a s e t r a d i ç õ e s . S e q u i s e rm o s
c o n c r e t i z a r e s s e s d o i s g r u p o s a t r a v é s d o s s e u s
r e p r e se n t a n t e s a r c a i c o s , p o d em o s d i z e r q u e um é
e x emp l i f i c a d o p e l o c amp on ê s s e d e n t á r i o , e o u t r o p e l o
m a r i n h e i r o c ome r c i a n t e . N a r e a l i d a d e , e s s e s d o i s e s t i -
l o s d e v i d a p r o d u z i r am d e c e r t o mo do s u a s r e s p e c t i -
v a s f am í l i a s d e n a r r a d o r e s ( B E N JAM I N , 1 9 9 6 , p . 1 9 8 -
1 9 9 ) .
Confo rme as cons i de rações f e i t as a pa r t i r da aná l i se do
na r rado r sob re a ob ra de N i ko l a i Leskov que Wa l t e r Ben j am i n
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conce i t ua i de i as sob re a t a re f a do na r ra r e dos aspec tos do
na r rado r . O au to r de fende que “ [ . . . ] a a r t e de na r ra r es t á em
v i as de ex t i nção ” (BENJAM IN , 1 996 , p . 1 97 ) e o que resu l t a a
“ [ . . . ] mo r te da na r ra t i v a é o su rg imen to do roman -
ce ” (BENJAMIN , 1 996 , p . 20 1 ) .
Sob re os na r rado res desc r i t os pe l o au to r , o Mar i nhe i r o
ve rsus o Seden tá r i o , o p r ime i r o é o v i a j an t e , passando po r
vár i os l uga res , co l hendo e p l an t ando h i s t ó r i as . O segundo ,
f i x ado em l uga r espec í f i c o , é um con t ado r de h i s t ó r i as , p ropa -
gando sua cu l t u ra , va l o res e cos tumes . En t re tan to , segundo
Ben j am i n ( 1 996 , p . 1 99 ) , os do i s t i pos de es t i l o s de v i da “ [ . . . ]
produz i r am de ce r to modo suas respec t i vas f am í l i a s de
na r rado r es ” . É des t a fo rma que se conso l i dam as i de i as sob re
os na r rado res , ambos com ca rac te r í s t i c as que são su i gene r i s .
No deco r re r do t ex to , ou t ro pon to c ruc i a l é a opos i ção
Na r ração ve rsus Romance , em que a na r ra t i v a se qua l i f i ca po r
possu i r o ca rá t e r aconse l hado r , se r sáb i a , l i g ada às memór i as ,
de i xando espaço pa ra o l e i t o r , t r az a mora l da h i s t ó r i a e es t á
sempre acompanhada pe l as expe r i ênc i as co le t i v as . O romance ,
no en t an to , ca rac te r i za -se po r não de i xa r l acunas pa ra o l e i t o r
p reenche r , t r a t a do sen t i do da v i da , l i g ado às rememorações ,
so l i t ár io e abordando sua exper iênc ia ind iv idua l (BENJAMIN , 1996 ) .
Pa ra Ben j am i n , o na r rado r ap resen t a -se en t re os sáb i os e
os mes t res , sabendo como da r conse l hos . Consegue reco r re r
a uma v i da i n t e i r a de expe r i ênc i as , uma v i da que não i nc l u i
apenas a sua , po rém as expe r i ênc i as de d i ve rsas v i das a l he i -
as . E l e se conso l i d a po r aqu i l o que sabe po r ouv i r d i ze r , seu
dom é con t a r sua v i da , sendo o na r rado r a pon te em que o
j us t o se encon t ra com e l e mesmo (BENJAMIN , 1 996 , p . 22 1 ) .
3 J O S É E J O Ã O : A F I N I D A D E S
João Gu imarães Rosa e José Luand i no V i e i ra possuem um
amp l o re l evo na h i s t ó r i a l i t e r á r i a den t ro de seus respec t i vos
pa í ses e cu l t u ras . Os do i s au to res são reconhec i dos como
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ex ím i os con t i s t as , po r i sso , sempre l embrados , a l ém de se rem
c r i ado res de l i nguagens e suas comun icações na r ra t i v as
( SANT ILL I , 1 998 ) . De aco rdo com Mar i a San t i l l i ( 1 998 ) , em pos i -
ção de amb iva l ênc i a , José e João , G rande se r t ão : ve redas e
“Vavó X í x i e seu ne to Zeca San tos ” , compar t i l h am de
ca rac te r í s t i c as s im i l a r es , esc r i t os t ec i dos po r marcas de
o ra l i d ade e l i nguagem p róp r i a , marcas de i den t i dades reg i ona i s
( l o ca i s ) , i nvenção e l ud i c i dade com a l i nguagem , s im i l a r i dades
de espaços f í s i cos e d i scussões de espaços soc i a i s . A au to ra
de fende que o na r rado r do con to de Luand i no advoga sob re
as ca rênc i as soc i a i s , em pa r t i cu l a r , a ques t ão da fome :
D e po i s , n a d a m a i s q u e e l e p o d i a f a z e r j á , e n c o s t o u a
c a b e ç a n o om b r o b a i x o d e V o v ó X í x i H e n g e l e e d e s a -
t o u a c h o r a r um c h o r o d e g r a n d e s s o l u ç o s p a r e c i a
e r a m o n a n d e n g u e , a c h o r a r l á g r i m a s c omp r i d a s e
q u e n t e s q u e c ome ç a r am c o r r e r n o s r i s c o s t e i m o s o s
a s f ome s j á t i n h am p o s t o n a c a b e ç a d e l e , d e c r i a n ç a
a i n d a ( V I E I R A , 1 9 7 2 , p . 5 5 ) .
Com o mesmo t r aço , o con to de Luand i no se f am i l i a r i za
com Grande se r t ão : ve redas :
D e r am m u i t o s t i r o s . A p e r t e i m i n h a c o r r e i a n a c i n t u r a .
A p e r t e i m i n h a c o r r e i a n a c i n t u r a , o s e g u i n t e eme nd a n -
d o : q u e n em s e i c om o f o i . A n t e s d e s a b e r o q u e f o i ,
m e f i z n a s m i n h a s a rm a s . O q u e e u t i n h a e r a f ome . O
q u e e u t i n h a e r a f om e , e j á e s t a v a emb a l a d o , a p r o n t a -
d o ( R O SA , 1 9 9 4 , p . 4 5 7 ) .
Pa ra San t i l l i ( 1 998 ) , ou t r a co i nc i dênc i a en t re José e João é
o f avo r i t i smo do b ras i l e i r o , pa ra com o seu se r t ão , “de conhe -
c i da p l en i t ude ” e a do ango l ano , pe l o “musseque ” , os ba i r r os
ve rme l hos da c i dade de Luanda . Ou t ro denom inado r comum é
o con tex to soc i a l e cu l t u ra l r ep resen t ados nas ob ras dos
respec t i vos au to res , que t r a t am de hab i t an t es popu l a res , de
á reas ru ra i s e i n t e r i o ranas , pe r tencen tes a c l asses econôm icas
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não p res t i g i adas . Gu imarães Rosa e Luand i no V i e i r a rep resen -
t am o se r t ão b ras i l e i r o e o musseque ango l ano , na r rando uma
human i dade f o r te e comp l exa de pa l av ras que rep resen t am um
l i ngua j a r soc i a l em sua na tu ra l i d ade . A l go que Ro l and Ba r t hes
( 1 97 1 ) r econhece como a " ap reensão de l i nguagens rea i s " ,
f azendo da esc r i t a um " a t o l i t e r á r i o ma i s humano " , ou se j a ,
“uma l i nguagem l i t e r á r i a que a l c ançasse a na tu ra l i d ade das
l i n guagens soc i a i s " ( 1 97 1 , p . 99 ) .
4 O N A R R A D O R : C O N S I D E R A Ç Õ E S S O B R E A O B R A D E
G U I M A R Ã E S R O S A G rande se r t ão : ve redas ( 1 994 ) , é uma das ob ras ma i s
r ev i s i t adas da l i t e r a tu ra b ras i l e i r a , t r a t a -se da h i s t ó r i a do
j agunço ( cangace i r o , homem c r im i noso ou v i o l en t o , f ug i t i vo e
con t r a t ado como gua rda -cos t as po r a l gum i nd i v í duo i n f l uen te )
R i oba l do e de seu g rupo . Amb i en t ada no se r t ão : um espaço
que rep resen t a o mundo . Na r ra t i v a com momentos ép icos .
Gu imarães Rosa ( 1 994 ) começa seu t ex to com uma marca
t i pog rá f i c a comum na desc r i ç ão da o ra l i d ade , o uso do t r aves -
são . A pa r t i r des t a marca , Ba i ão ( 20 15 ) pon tua que a t r ad i ç ão
da o ra l i d ade ocupa um l uga r na esc r i t a de Ben j am i n , a exa l t a -
ção do g rande con t ado r de h i s t ó r i as . Em Gu imarães Rosa , a
exa l t ação da o ra l i d ade e de uma i den t i dade l i ngu í s t i ca de um
povo , reme tendo as i de i as de Ba r t hes ( 1 97 1 ) , enquan to a na tu -
r a l i d ade da l i nguagem soc i a l , “ [ . . . ] um j agunço l e t r ado que
pensa o B ras i l a pa r t i r do se r t ão ” ( 20 15 , p . 104 ) .
Ba i ão ( 20 15 ) a i nda des t aca em Rosa/R i oba l do ca rac te r í s t i -
cas mode l a res do na r rado r c l áss i co de Wa l t e r Ben j am i n , de f i n i -
do po r Luc i é l e Be rna rd i de Souza ( 20 1 6 , p . 27 ) , como o na r ra -
do r possu í do da d imensão u t i l i t á r i a , que cons t i t u i ens i namen tos
mora i s , suges tões p rá t i c as , “ se j a num p rové rb i o ou numa
no rma de v i da ” (BENJAM IN , 1 985 , p . 1 98 ) . Po r t an to , pa ra Souza
( 20 1 6 , p . 27 ) , “O na r rado r ap resen t ado po r Ben j am i n é um
na r rado r ‘ c l áss i co ’ , po i s , pa ra o c r í t i c o , esse na r rado r ap rop r i a -
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se da t r ad i ç ão e da sua p róp r i a expe r i ênc i a pa ra ap resen ta r
( na r r a r ) um ‘ ens i namen to ’ que t r ansm i te ao l e i t o r uma ‘mora l ’
ou um ‘conse l ho ’ ” .
Pa ra Afonso L i gó r i o Ca rdoso ( 1 998 ) , o na r rado r c l áss i co é
c l ass i f i c ado po r Ben jam i n sendo um na r rado r a r t esão e de
v i agens ( 1 998 , p . 1 34 ) , possu i do r de ca rac te r í s t i c as encon t radas
na ob ra de Gu imarães Rosa na f o rma a r t esana l de comun i ca -
ção . Rosa ap resen t a pe rsonagens human i zadas em se rv iço da
t r ans fo rmação da rea l i d ade , não desc reve pedagog icamen te um
des t i no a l he i o , se l i g a ao passado , p resen te e com p ro j eções
pa ra o f u t u ro sem ve r i f i c ações . Possu i como ob j e t o de
cons t rução a expe r i ênc i a , p roced i da da t r ad i ç ão o ra l , po r t an t o ,
de aco rdo com L i gó r i o Ca rdoso ( 1 998 , p . 1 34 ) , “ [ . . . ] uma das
grandes v i r t udes em Gu imarães Rosa é o dese j o pe l a rev i t a l i -
zação da na r ra t i v a ” .
Ca rdoso ( 1 998 ) j us t i f i ca que a p rá t i c a de Gu imarães Rosa
pe l a esco l ha do na r rado r ben j am i n i ano c l áss i co , o a r t esão , é a
poss i b i l i d ade de suas na r ra t i v as me rgu l ha rem na v i da de quem
ouve e de quem as na r ra , sem t i r an i a , sem impos ição , apenas
como suges t ão . Quem ouve Rosa cons t ró i sua v i são de mundo
re l ac i onando as l e i t u ras com as p róp r i as expe r i ênc i as e
v i vênc i as , sendo a nar ra t i v a t a l que é i nsubs t i t u í ve l na f o rma -
ção do se r (CARDOSO , 1 998 , p . 1 36 ) .
5 O N A R R A D O R : C O N S I D E R A Ç Õ E S S O B R E A O B R A D E
L U A N D I N O V I E I R A
No con to “Vavó x i x i e seu Ne to Zeca San tos ” , obse rva -se a h i s t ó r i a de uma senho ra i dosa e de uma c r i ança que en f ren -t am fome , pob reza , chuvas e i nundações , que ocas i onavam d i ve rsas des t ru i ções e con t am inações po r doenças na cap i t a l ango l ana (SANTOS , 20 1 2 ) . Com e fe i t o , é poss í ve l obse rva r , seme l han t emen te ao t ex to de Gu imarães Rosa , o na r rado r c l áss i co de Ben j am i n , na r rado r camponês , que con t a sua h i s t ó -r i a , compar t i l h a suas t r ad i ções , cu l t u ra e va lo res .
É cab íve l f r i s a r a impo r t ânc i a da t r ad i ç ão o ra l na cu l t u ra
109
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de ango l a , a l ém de compreende r que , como de fende A lm i r dos
San tos ( 20 12 ) , os pe rsonagens rep resen t am res i s t ênc i a e
i den t i dade den t ro da cu l t u ra a f r i c ana , o i doso é responsáve l
po r repassa r conhec imen tos ances t r a i s às ge rações ma i s
novas , un i ndo os v i vos aos an t epassados . Consoan te a San tos
( 20 12 ) , I nocênc i a Ma ta ( 20 14 ) conco rda que Luand i no p rese rva
uma sabedo r i a ances t r a l , passada en t re gerações . Que suas
h i s t ó r i as “ [ . . . ] cons t i t uem um repos i t ó r i o de e l emen tos da cu l t u -
ra ango l ana o ra l (m i soso e maka ) , uma memór i a do quo t i d i ano
de Luanda e da cu l t u ra dos musseques enquan to a f i rmam es te
m ic rocosmos como metá fo ra i den t i t á r i a da nação ” (MATA , 20 14 ,
p . 3 1 ) . Ta l desc r i ç ão t r az à memór i a cé le re o conce i t o
ben j am i n i ano do na r rado r seden t á r i o , “ [ . . . ] o homem que ganhou
hones t amen te sua v i da sem sa i r do seu pa í s e que conhece
suas h i s t ó r i as e t r ad i ções ” (BENJAMIN , 1 996 , p . 1 98 - 1 99 ) . Ma t a
( 20 14 , p . 36 ) aduz que o na r rado r do re i no na r ra t i vo de
Luand i no , “ [ . . . ] p rese rva a f i de l i d ade da t ransm i ssão o ra l , se
a l imen t a de h i s t ó r i as que l he são con tadas . ”
A despe i t o de na r ra r suas h i s t ó r i as , r e t i r ando de suas
expe r i ênc i as , o na r rado r de Luand i no en t rec ruza com vozes
sub j e t i v as . Essa au tonom i a é re f o rçada em se t r a t ando do
un ive rso que e l e na r ra , g raças ao “seu compor t amen to como
‘ s imp l es ’ r e l a t o r de f ac t os passados , p reocupando -se não com
a ve ross im i l h ança ou com a confo rm idade en t re o mundo
na r rado e o ‘mundo rea l ’ ” (MATA , 20 14 , p . 36 ) , mas po r
preocupa r -se com a ve rdade dos f a t os . Po r t an to , t r a t a -se de
um na r rado r seden tá r i o , com h i s tó r i as de v i vênc i as e
expe r i ênc i as , l u t ando pe l a res i s tênc i a e p rese rvação i den t i t á r i a
( SANTOS , 20 1 2 ) “ [ . . . ] na pe rspec t i va de uma epope i a de
r es i s t ênc i a f ace à i nsupo r t ab i l i d ade do quo t i d i ano f e i t o de
r ep reensão , f ome , p r i são , ana l f abe t i smo ” (MATA , 20 14 , p . 4 1 ) .
Cons i de ra r que o a t o de na r ra r es t á de f i nhando po rque “ [ . . . ] a
sabedo r i a – o l ado ép i co da ve rdade – es t á em ex t i nção , como
l amen ta ra Wa l t e r ” (MATA , 20 14 , p . 4 1 ) , não se ap l i c a no re i no
na r ra t i vo da f i cção l uand i na .
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Ab s t r a c t : T h e o b j e c t i v e o f t h i s w o r k i s t o u n d e r s t a n d a n d
emphas i z e t he a spe c t s a n d a f f i n i t i e s be twee n G r a nd e se r t ã o : v e r e d a s , b y J o ão Gu im a r ã e s R o s a , a n d t h e t a l e “ Vavó X í x i e s e u n e t o Z e c a S a n t o s ” , f r o m L u u a n d a , b y J o s é L u a n d i n o
V i e i r a , c on s i d e r i n g t he p r e sen t a sp ec t s o f t h e n a r r a t o r i n t h e
t wo w o r k s , d i a l o g u i n g w i t h t h e p e r s p e c t i v e a n d c on c e p t s o f
Wa l t e r Ben j am i n ( 1 9 96 ) , a s p roposed , “As es t ó r i a s de Luuanda c om o ‘ f á b u l a s a n g o l a n a s ’ : d i s j u n ç õ e s e c o n f l u ê n c i a s ” , b y
I n o c ê n c i a M a t a ( 2 0 1 4 ) , a n d “ Wa l t e r B e n j am i n r e l a m p e j a e m Gu imarães Rosa ” , by L í v i a de Sá Ba i ão ( 20 1 5 ) .
K eywo rd s : G u im a r ãe s R o s a . Lu and i n o V i e i r a . Wa l t e r B en j am i n .
Af f i n i t i e s . L i t e ra tu re .
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N O T A S
1 G r a d u a n d o em L e t r a s n a U n i v e r s i d a d e d a I n t e g r a ç ã o I n t e r n ac i o n a l d a
L u s o f o n i a A f r o - B r a s i l e i r a /UN I LAB . I n t e g r a n t e d o O r i t á – E s p a ç o s ,
I d e n t i d a d e s e M emó r i a s – G r u p o d e P e s q u i s a d a UN I LAB /CN PQ .
B o l s i s t a d o P r o g r am a d e B o l s a s d e E x t e n s ã o d e L í n g u a s E s t r a n g e i r a s
e P o r t u g u e s a d a U n i l a b ( P i b e l p e ) .
Env i ado em : 25/0 1/20 17 .
Ap rovado em : 0 1/08/20 17 .
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 1 1 3 - 1 2 5 , 2 0 1 7
I S S N 2 2 3 6 - 3 3 3 5
A I N F I D E L I DA D E NO T EA TRO V I C E NT I NO : U M E S TU DO DO AU TO DA Í N D I A
C r i s t i n a S u l i v â n i a O l i v e i r a N u n e s
U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e F e i r a d e S a n t a n a ( U E F S ) L i c e n c i a t u r a em L e t r a s c om E s p a n h o l
s u l i v a n i a @ h o tm a i l . c om P r o f a . M a . A n d r é i a S i l v a d e A r a ú j o ( O r i e n t a d o r a )
U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e F e i r a d e S a n t a n a ( U E F S ) D e p a r t am e n t o d e L e t r a s ( D LA ) a n d r e i a . c om . a c e n t o @ gma i l . c om
P r o f . M e . We l l i n g t o n J o s é Gome s F r e i r e ( C o o r i e n t a d o r ) D o u t o r a n d o d a U n i v e r s i d a d e F e d e r a l d a B a h i a ( U F BA )
t e z c a t l i p o c a 4 5@ gma i l . c om
Resumo : O ob j e t i vo des t e e s tudo é con t r i b u i r p a r a uma me l ho r compreensão das concepções da rep resen tação da i n f i de l i d ade n o t e a t r o v i c e n t i n o , a p a r t i r d e uma l e i t u r a d a p e ç a A u t o d a Í nd i a . A aná l i s e se desenvo l v e a t r avés da pe r spec t i v a de que a o b r a v i c e n t i n a s e a p o i a s o b r e o r i s o c o m o f o r m a d e de scons t r uç ão de p ad rões s oc i a i s t e nden t e s a r e f e r end a r um d i scu rso i deo l óg i co opresso r . O au to em ques t ão re t r a t a r i a uma v i s ã o an t i é p i c a do p roce s so de e xp an são impe r i a l p o r t u gue sa d os sécu l o s XV e XV I , po r v i a d a r ep r e se n t aç ão f a r se sca de t i p os soc i a i s i n t e g r an t e s d a soc i e dade po r t uguesa do pe r í o do . P a r a c o n s t r u ç ã o d o a r t i g o , f o i e l a b o r a d a uma p e sq u i s a e um l e van t amen to b i b l i o g r á f i c o sob re o adu l t é r i o f em i n i n o no t e a t r o v i c e n t i n o . R e f e r e n d am a a n á l i s e a s c o n s i d e r a ç õ e s d e A l v e s ( 2 0 0 2 ) , C o s t a e C e n c i ( 2 0 1 4 ) , B a k h t i n ( 2 0 1 3 ) , B r i t o ( 2 0 1 0 ) , Gu smão e N a z a r e t h ( 2 0 1 4 ) , M a g a l h ã e s ( 2 00 9 ) , M o r e i r a ( 2 0 1 3 ) , Pa lme l a ( 20 10 ) , Zacha r i as ( 20 1 1 ) e C l a ro (20 1 6 ) . Pa l av ras -chave : G i l V i cen te . Auto da Í nd i a . I n f i de l i d ade .
1 I N T R O D U Ç Ã O
A i n f i d e l i d a d e é um t em a c a r o a o i m a g i n á r i o l i t e r á r i o e s o c i a l . E l e é u n i v e r s a l m e n t e e n c o n t r a d o n a s m a i s d i f e r e n t e s
114
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t r ad i ções o ra i s e nos esc r i t os dos ma i s d i ve rsos g rupos huma -
nos . Ta l vez não se j a oc i oso reco rda r que em um dos t ex tos
f undado res da t r ad i ç ão oc i den t a l , a I l í a da , uma das ques tões
que desencade i am a f ábu l a ép i ca é um caso c l áss i co de t r i ân -
gu l o amoroso que resu l t ou no rap to de He l ena e no desenca -
dea r de uma gue r ra que se es tendeu po r dez anos . Uma
esposa i n f i e l e seu aman te p rovoca ram um i nc i den t e i n te rna -
c i ona l . No un ive rso das l e t r as de l í ngua po r tuguesa a t emá t i ca
t ambém ocupa cons i de ráve l espaço , es t ando p resen te desde o
a l vo rece r das p r ime i ras man i f es t ações f i cc i ona i s e a t é em
ob ras de g i gan tes da cu l t u ra human i s t a como G i l V i cen t e e seu
Au to da Í nd i a . O que se p ropõe a f aze r aqu i é con t r i bu i r pa ra
pesqu i sa sob re o que pode r i a se r cons i de rada a rep resen t ação
da i n f i de l i d ade no t ea t ro v i cen t i no e qua i s imp l i c ações pode r i am
se r c i t adas , den t ro da pe rspec t i va do re l ac ionamento ex t r acon -
j uga l com re l ação à ob ra j á an t e r i o rmen te menc i onada . Ass im ,
es te t r aba l ho ob j e t i v a um es tudo da f i gu ra fem in i na e a i n f i de l i -
dade con juga l po r pa r t e da pe rsonagem p r i nc i pa l , que t r a i seu
mar i do como uma fo rma s imbó l i c a de rea l i z ação pessoa l , de
au tonom i a , l evando uma v i da de p raze res com seus aman tes ,
co i sas que não são pe rm i t i d as a e l a na v i da t r ad i c i ona l , po rque
o impo r t an te e ra man te r uma f am í l i a pa t r i a rca l pe ran te à soc i e -
dade .
O pe rcu rso ana l í t i c o aqu i r ea l i z ado se deu a pa r t i r de um
es tudo sob re a rep resen t ação da i n f i de l i d ade p resen te na peça
t ea t r a l do esc r i t o r po r t uguês , es t abe l ecendo uma re l ação com
a impo r t ânc i a do t ea t ro med i eva l e o t ea t ro v i cen t i no , pon tuan -
do o t ema da rep resen t ação da i n f i de l i d ade f em in i na na l i t e r a -
t u ra de mane i r a ge ra l e p r i nc i pa lmen te na l i t e r a t u ra po r tuguesa ,
que se des t acam G i l V i cen t e com sua l i nguagem co l oqu i a l e o
esc r i t o r rea l i s t a Eça de Que i r ós , que c r i t i c a os casos de adu l -
t é r i os f r equen tes e presen tes na época , e menc i ona que os
romp imen tos dos l aços f am i l i a r es e ram po r causa da amb i ção
f i nance i r a e pe l a f a l t a de respe i t o e de empa t i a po r pa r te da
esposa .
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2 A I M P O R T Â N C I A D O T E A T R O M E D I E V A L E M G I L
V I C E N T E
De aco rdo com Pa lme l a ( 20 10 ) , o t e rmo tea t ro pa ra os
Gregos , como pa ra os Romanos , des i gnava o espaço cên i co e
o espaço da ass i s t ênc i a , o con j un to a rqu i t e tôn i co onde se
desen ro l a r i am gêne ros como o d rama ou t ragéd i a , a coméd i a ,
os en redos e ou t ros . O t ea t ro é uma das ma i s an t i gas exp res -
sões a r t í s t i c as do homem . Na cu l t u ra oc i den t a l , as rep resen t a -
ções t ea t r a i s ocupa ram l uga r de re l evo desde a Gréc i a An t i ga ,
que va l o r i zava eno rmemen te t a i s f o rmas de rep resen t ação .
Pa ra e l e s , essa f o rma de exp ressão a r t í s t i ca u l t r apassava os
l im i t e s da me ra es te t i zação do rea l , e possu í a t ambém toda
uma r i c a d imensão s imbó l i c a que aba rcava uma amp l a gama de
poss i b i l i d ades , den t re as qua i s a i de i a de ca t a rse . O conce i t o
se encon t ra o r i g i na lmen te ass i na l ado na Poé t i c a de Ar i s t ó te l e s .
A p l a t e i a es t abe l ec i a uma espéc i e de re l ação re l i g i osa com o
t ex to encenado , d i sso resu l t ava uma pu r i f i c ação s imbó l i c o -
r i t ua l í s t i c a . E ra uma concepção de a r t e cen t r ada na g rand i os i -
dade cên i ca e na p róp r i a g randeza do homem , ob j e to ú l t imo
das re f l exões a l i pos tas . O t ea t ro de G i l V i cen te , embora de r i -
ve desses conce i t os p ropos tos pe l a Ant i gu i dade C l áss i c a ,
de l es se a f as t a na med i da em que p ropõe f o rmas e t emas
ma i s l i g ados ao con tex to do f aze r co t i d i ano . É uma poé t i c a das
f o rmas s imp l es , na qua l ganham no to r i edade f i gu ras que se
encon t ravam obscu rec i das nos pa l cos g reco - l a t i nos , como os
pequenos p rop r i e t á r i os , os so l dados , os de ba i xa ex t r ação
soc i a l e t oda uma imensa mu l t i d ão anôn ima de dese rdados que
ganham espaço e são rep resen t ados nos seus au tos e comé -
d i as .
O t ea t ro de G i l V i cen t e possu i uma ev iden te f i l i a ção a
mat r i zes de cu l t u ra popu l a r . O r i so f a rsesco se f az p resen te
em mu i t os momen tos da ob ra v i cen t i na , ne l a ocupando pos i ção
de re l evo . F requen tes são as passagens que co l ocam em cena
pe rsonagens de ba i xa cond ição soc i a l , envo lv i dos em s i t uações
116
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de e l evado g rau de com ic i dade . O r i so se ap resen t a como
componen te subve rs ivo , po tenc i a lmen te capaz de desnuda r
p rá t i c as e pad rões de compor t amen to soc i a l con t r á r i as ao
homem . Bakh t i n ( 20 1 3 ) mos t ra que quem r i r eba i xa o a l vo do
r i so , da í po rque o ach i nca l he sempre f unc iona como a rma de
descons t rução de dou t r i nações i deo l óg i c as ou na r ra t i v as que
v i sam da r sus ten tação a uma de te rm i nada o rdem . A ob ra
v i cen t i na pa rece ve r nas camadas popu l a res uma poss i b i l i d ade
de mod i f i c ação cons i s t en t e da rea l i d ade . Obv i amen te há n i sso
t udo ecos de um p l a t on i smo t a rd i o . Duas rea l i d ades se
mos t ram i r r econc i l i áve i s : de um l ado um n í ve l p l eno de rea l i d a -
de – o das f o rmas popu l a res – , e spéc ie de quase mode l o i dea l
que se co r rompeu ao deca i r pa ra a cond i ção “ rea l " de cu l t u ra
l e t r ada , s imbo l i c amen te assoc i ada às l im i t ações e pe rve rsões
var i adas ; de ou t ro t e r í amos o un i ve rso da cu l t u ra “o f i c i a l ” ou
l e t r ada , cons t i t u í do de imagens sé r i as , quase san t i f i c adas ,
resu l t an t es de uma t en t a t i v a de monumen ta l i z ação da H i s t ó r i a .
É con t r a i sso que se i nsu rge o r i so f a rsesco das t r amas de G i l
V i cen t e .
O t ea t ro v icen t i no gua rda g rande impo r t ânc i a e não
apenas h i s t ó r i c a , sua a t ua l i d ade se p rese rva . Os t emas t r a t a -
dos possuem ce r t a a t empora l i d ade , ca rá t e r que é re f o rçado
pe l o t r a t amen to que é dado a e l e s . Pa r t e das peças e au tos
de G i l V i cen te o f e rece aos l e i t o res mode rnos poss i b i l i d ades de
re f l exão ex i s tenc i a l e t ambém soc i a l . As maze l as v i venc i adas
pe l os pe rsonagens encon t ram eco - a i nda que pa rc i a l - na
cond i ção do homem con temporâneo .
3 A I N F I D E L I D A D E N A L I T E R A T U R A
Segundo B r i t o ( 20 10 ) , as soc i edades pa t r i a rca i s su rg i r am
fundadas no pode r do homem , que se ap resen tava e assum iu
o pode r de mando . Ass im , a sexua l i d ade da mu l he r f o i sendo
cada vez ma i s submet i da aos i n t e resses do homem , t an t o no
repasse dos bens ma te r i a i s , a t r avés de he rança , como na
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r ep rodução da sua l i nhagem . Nes te pe r í odo , a mu l he r e ra
c r i ada no se i o de sua f am í l i a pa ra o casamento , que , na ma i o r i -
a das vezes , e ra a r ran j ado , e os no ivos só se conhec i am no
d i a do casamen to .
O a d u l t é r i o o c o r r e d e s d e o s t em p o s a n t i g o s , d e sd e a G r é c i a , g e r a l m e n t e o h omem t r a i s u a c om p a nh e i r a p o r a t r a ç ã o , p o r d e sc o n t e n t am en t o n o c a s am e n t o , o u p o r s i m p l e s p r a z e r , j á a mu l h e r c ome t e a t r a i ç ã o p o r v i n g a n ç a d o p a r c e i r o , p o r s e s e n t i r s o l i t á r i a e p o r n ã o s e r d e s e j a d a , p r o c u r a d a p o r s e u c omp a n h e i r o , o u a t é m e smo p o r s i m p l e s a t r a ç ã o . E s t e é um a s s u n t o q u e s em p r e l e v a n t a p o l êm i c a e a s s u s t a q u em am a , p o r t e r o p o d e r d e t r a n s f o rm a r a v i d a d o c a s a l em um v e r d a -d e i r o p e s a d e l o ( B R I T O , 2 0 1 0 ) .
Br i t o ( 20 10 ) menc i ona que ou t ro ra o homem não pode r i a
se p r i va r de re l ações amorosas f o ra do casamen to , po i s e ra
a l go que f e r i a e cons t r ang i a a sua mascu l i n i dade e dev i do a
i sso e ra ace i t áve l a po l i g am i a do esposo . Mas i sso e ra res t r i t o
ao esposo , v i s t o que a esposa deve r i a se man te r f i e l e , se
come tesse adu l t é r i o , e ra expu l sa de casa e pe rd i a t odos os
seus d i r e i t os , a t é mesmo a gua rda dos f i l hos . Na l i t e r a tu ra , a
rep resen t ação da mu l he r t r a i do ra e ra v i s t a como o de uma
f i gu ra men t i r osa e sem va l o r , be l a e sedu to ra , que f az i a
qua l que r homem apa i xona r -se po r seus encan tos . De aco rdo
com Gusmão e Nazare t h ( 20 14 ) , a rep resen t ação da t r a i ç ão
f em in i na é um bom e l emen to pa ra se pensa r a ques t ão da
c i r cu l ação de de te rm i nadas f o rmas de cons t rução do romance ,
dos pe rsonagens e de d i ve rsas s i t uações f i c t í c i as po r en t re
d i f e ren tes campos cu l t u ra i s dos sécu l os X IX e XX . Uma ráp i da
re f l exão e um o l ha r nas p r i nc i pa i s ob ras , cu j as pe rsonagens
são mu l he res que t r a í r am seus mar i dos ou seus pa rce i r os só
nos l eva a comprova r que as mu l he res t r a i do ras , são
“ e l im i nadas da f i cção ” .
A p a r t i r d e m e a d o s d o s é c u l o X I X , d i f e r e n t e s e s c r i t o -r e s d e d i c a r am - s e à e s c r i t a d e r om an c e s v o l t a d o s
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p a r a a s i t u a ç ã o d o a d u l t é r i o . C u r i o s am en t e , m u i t a s d e s t a s o b r a s s e n o t a b i l i z am a t é o s d i a s d e h o j e : M a d ame B o v a r y , O P r i m o B a s í l i o , An n a K a r e n i n a , D om C a smu r r o . N o s é c u l o XX , e s t a s o b r a s i n s p i r a r am d i v e r s o s a r t i s t a s , c om o N e l s o n R o d r i g u e s , q u e s e a p r o p r i a d e um a s é r i e d e d i s p o s i t i v o s d e s t e s r om an -c e s p a r a c o n s t r u i r s u a s p e ç a s t r á g i c a s . E s t a s o b r a s , d e c e r t a m a n e i r a , p o d em s e r p e n s a d a s a p a r t i r d a l ó g i c a t a n t o d e s t e “m und o d a s l e t r a s ” n o q u a l e l a s f o r am p r o d u z i d a s c omo d a s m a n e i r a s c om o d e t e rm i n a -d a s q u e s t õ e s e m od e l o s c i r c u l a r am e f o r am u s a d o s p e l o s a r t i s t a s ( GUSMÃO ; NAZAR ET H , 2 0 1 4 ) .
A l i t e r a tu ra po r tuguesa p rocu rou re t r a t a r a i n f i de l i d ade
f em in i na e des t acou um g rande mest re na t emá t i c a adu l t é r i o
f em in i no , que f o i Eça de Que i r ós , pe r tencen te ao rea l i smo
por t uguês . “O Pr imo Bas í l i o de Eça de Que i rós é um romance
r ea l i s t a que re t r a t a a soc i edade bu rguesa L i sboe t a do sécu l o
X IX , se exp ressa a t r avés de um ep i sód i o domést i co , um
adu l t é r i o p ra t i c ado pe l a pe rsonagem p r i nc ipa l , Lu í sa ” (BR ITO ,
20 10 ) . A t emát i c a da i n f i de l i d ade fem in i na p resen te na ob ra O Pr imo Bas í l i o pe rmanece f i e l à na r ra t i v a rea l i s t a e desc r i t i v i s t a .
De aco rdo com B r i t o ( 20 10 ) , Eça de Que i r ós t r a t a em sua t r ama
romanesca as consequênc i as desas t rosas que podem adv i r do
adu l t é r i o e chama a t enção dos seus l e i t o res pa ra aque l es que
se ap rove i t am dos desv i os e das f r aquezas humanas , Lu í sa , a
p ro t agon i s t a , paga ca ro pe l o seu envo lv imen to com Bas í l i o .
A p a l a v r a a d u l t é r i o n o s t r a d u z um s e n t i d o d e p r o i b i -ç ã o l e mb r a d o p o r i n úme r o s s í m b o l o s c omo : p e c a d o , a p e d r e j am en t o , c i n t o s d e c a s t i d a d e , i n f âm i a , h o n r a l a v a d a c om s a n g u e . N o l i v r o “ A l e t r a E s c a r l a t e ” , a a d ú l t e r a c a r r e g a um s í m bo l o , a l e t r a A , p e n d u r a d a n o p e s c o ç o , p o r o n d e e l a f o r , j am a i s p o d e r á t i r a r e s t e s í m b o l o , e s t e é o p r e ç o q u e e l a t e r á d e p a g a r p e l o s e u a t o c om e t i d o , o a d u l t é r i o ( B R I T O , 2 0 1 0 ) .
Segundo B r i t o ( 20 10 ) , a l guns esc r i t o res rea l i s t as c r i t i c a -
vam a bu rgues i a e buscavam mudar o compor t amen to dessa
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c l asse que e ra responsáve l pe l os des t i nos soc i a l , econôm ico ,
po l í t i c o e mora l do pa í s . O Rea l i smo p rocu rava f oca r suas c r í t i -
cas em s i t uações c r i adas após o casamen to , aque l a em que a
c l asse méd i a p rocu rava om i t i r , f i ng i r um pape l de f am í l i a pe r fe i -
t a e mode l o a se r segu i do po r t odos . Ass im , com um o l ha r
vo l t ado pa ra a rea l i d ade , os esc r i t o res rea l i s t as se p ropõem a
exp l o ra r a f undo a t emát i c a i n f i de l i d ade con juga l , r eve l ando -a
mu i t o ma i s f r equen te e comum do que se f az i a imag i na r na
bu rgues i a , f azendo - l he ca i r a másca ra da h i poc r i s i a .
5 A I N F I D E L I DAD E ABOR DADA NA OBRA AUTO DA Í N D I A
O con tex to ge ra l do Au to da Í nd i a é a expansão impe r i a l
por t uguesa do sécu l o XV I . O subcon t i nen t e i nd i ano e ra en t ão a
g rande m i r agem do Or i en t e , r eg i ão de opu l ênc i a pa ra onde
t odos os o l ha res cob içosos se vo l t avam em busca de en r i que -
c imen to f ác i l e ráp i do . Embora a rea l i d ade f osse d i s t an t e do
sonho gananc i oso de t an tos aven tu re i r os , a i l u são do ganho
sem d i f i cu l dades impu ls i onou um e levado número de homens a
embarca r na ca r re i r a das Í nd i as , como e ra en t ão denom inada a
t r avess i a t r ansoceân i ca . Segundo A lves ( 2002 ) , a peça t ea t r a l
v i cen t i na é uma c r í t i ca à d i sso l ução da f am í l i a , deco r ren te , na
ma i o r i a das vezes , do abandono em que f i c avam as mu l he res ,
enquan to os mar i dos se aven tu ravam pe lo mar . Dev i do às
v i agens dos companhe i r os , as mu l he res se sen t i am so l i t á r i as e
come t i am os adu l t é r i os , pa ra sac i a r seus dese j os e von t ades
ma i s í n t imos .
A expansão impe r i a l po r t uguesa ap resen tou uma v i s í ve l
f ace de g rand i os i dade ép i ca . A g randeza do empreend imento
mar í t imo se f ez no ta r pe l os p róp r i os con temporâneos dos
acon tec imen tos . Camões com os Lus í adas ou João de Ba r ros
com sua p rosa h i s t o r i og rá f i c a g l o r i f i c a ram os f e i t os daque l es
que se aven tu ram a desb rava r i nósp i t as e remotas reg i ões de
um con t i nen t e desconhec i do . A cons t rução d i scu rs iva v i cen t i na
é t enden te à descons t rução dessa v i são m i t i f i c ada dos f a t os .
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O Au to da Í nd i a ap resen ta uma v i são an t i ép i ca ao p r i v i l e g i a r
uma pe rcepção do desen ro l a r dos i nc i den tes po r v i és daqu i l o
que mode rnamen te denom ina r í amos de m i c ro -h i s t ó r i a . D i t o em
ou t ros t e rmos , o l e i t o r se vê d i an t e de um re l a t o que t r aduz
pa ra o o l ha r mode rno a l gumas das i nqu i e t ações das pessoas
comuns - que nada t i nham de he ro i c as - d i an t e de um p roces -
so h i s t ó r i co de g rande enve rgadu ra .
O tema do Au to da Í nd i a re t r a t a um p rob l ema soc i a l
ev i den t e , que é o adu l t é r i o f em in i no . Es t e oco r re em v i r t ude da
ausênc i a mascu l i n a no l a r , c i r cuns t ânc i a mu i t o usua l naque l a
con j un tu ra h i s t ó r i c a . A p ro t agon i s t a f em in i na da t r ama se
a f i rma pe ran t e a uma con jun tu ra soc i a lmen te des f avo ráve l ao
sexo e se recusa a ace i t a r no rmas e pad rões compor t amen ta i s
po r e l a t i dos como cas t r ado res do dese j o . O abandono deco r -
ren te da p ro l ongada ausênc i a do seu conso r t e a f az t eme r
pe l a imposs i b i l i d ade de f i n i t i va de rea l i z ação de asp i r ações e
dese j os sexua i s rep r im i dos . As j us t i f i ca t i v as po r e l a p ropos t as
pa ra o adu l t é r i o que vem a se r consumado passam pe l a
cons t rução de um d i scu rso que desmora l i z a o p rocesso
expans i on i s t a , ao desnuda r sua f ace pe rve rsa de maze l as sem
con t a p ropo rc i onadas às mu l he res dos mar i nhe i r os . É necessá -
r i o sub l i nha r que a g rande ma io r i a des tes nau t as que pa r t i am
em busca de t esou ros e en r i quec imen to não reg ressavam ao
l a r ; os mot i vos e ram va r i ados , en t re os p r i nc i pa i s devem -se
ass i na l a r as mor tes ao l ongo da t r avess i a , em comba tes com
na t i vos , ou s imp l esmen te po rque reso lv i am f i xa r res i dênc i a no
con t i nen te e l á pe rmanece r em de f i n i t i vo .
“A Ama anse i a po r um amor l i v re de p reconce i t os e de
amar ras ” (ALVES , 2002 , p . 65 ) . Nessa aguda obse rvação c r í t i c a
t emos um dos componentes f undamen ta i s pa ra compreende r o
compor t amen to adú l t e ro da p ro t agon i s t a . E l a sen te g rande
t éd i o da sua re l ação con juga l , sempre des respe i t ou seu mar i do
a t é quando e l e f az i a v i agens de cu r t a du ração ou quando e l e
sa í a pa ra pesca r i a . Cons t ança v i v i a de apa rênc i as e sempre se
p reocupava com a op i n i ão do mar i do , dos aman tes e dos
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v iz inhos , po is quer ia manter sua in tegr idade e de seu casamento
a sa l vo de comen tá r i os des respe i t osos . Ass im , e l a c r i ou um
mundo de i l u sões e passou a men t i r pa ra t odos , mas não
consegu i a engana r a Moça , que e ra sua c r i ada f i e l (CLARO ,
20 1 6 ) . En t re as duas pe rsonagens se es t abe l ece uma re l ação
de t ensão que nos mos t ra as p re fe rênc i as es té t i co - i deo l óg i c as
do au to r . A se rva most ra -se pa r t i dá r i a de uma v i são de mundo
ma i s coe ren te e sensa t a , há ne l a uma ponde ração que se
encon t ra po r i n t e i r o ausen te na he ro í na . Com i sso , G i l V icen te
pa rece i nc l i n a r -se pa ra uma rep resen t ação ma i s pos i t i v a das
camadas popu l a res , t enc i onando de i xa r ev iden t es suas v i r t u -
des e pad rões e l evados de compor t amen to .
Nes t a f a rsa , a f a l s i dade e h i poc r i s i a são ev i den tes , apesa r
do compor t amen to da pe rsonagem p r i nc ipa l se r c l a r amente
i mo ra l . “G i l V i cen te exp l o rou , com i n t u i t os côm icos , um t r aço
ca rac te r í s t i c o da pe rsona l i d ade da Ama : sua adap t ab i l i d ade às
s i t uações ma i s embaraçosas , de modo a sa i r -se bem de t odas
e l as ” (ALVES , 2002 , p . 66 ) . Ama p rocu rava t r ansm i t i r uma
i magem nega t iva do mar i do , mas podemos obse rva r a t r avés
das f a l as da Moça que houve um i n tenc i ona l p rocesso de
demon i zação do Ou t ro . O mar i do de Cons t ança é ap resen t ado
em cena como um crédu l o , que conf i a i n t e i r amen te em sua
esposa . E l e não se mos t ra capaz de pe rcebe r o embus te no
qua l f o i en redado . A capac i dade da p ro t agon i s t a f em in i na de
l ud i b r i a r se f az ma i s ev i den te - com ma i o r g rau de com ic i dade
- nas cenas f i na i s do au to . Reg ressando o desa fo r t unado
mar i do de sua i ncu rsão ma l suced i da ao Or i en te , da qua l nada
de g l o r i oso redundou , nem mesmo r i quezas ma te r i a i s , apenas
desg raças e i n f o r tún i os , a esposa so l i d á r i a , mas apenas f a l sa -
mente so l i d á r i a , debu l ha -se em l ág r imas , mas que e ram
ve rdade i r amen te de i nsa t i s f ação pe l o re to rno daque l e que se
cons t i t u i em empec i l ho ao desab rocha r dos dese j os rep r im i dos .
A c r e d u l i d a d e p a r v a d o M a r i d o s e p a t e n t e i a , p r i n c i p a l -
m e n t e , n o f i n a l d a f a r s a , q u a n d o c h e g o u d e v i a g em
s em a r i q u e z a q u e j u l g a v a p o d e r ame a l h a r n a Í n d i a , e
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a m u l h e r l h e p e d e o r e l a t o d a s a v e n t u r a s . E n q u a n t o o
M a r i d o l h e c o n t a s u a s d e s g r a ç a s , a Am a d i z q u e
t am bém mu i t o s o f r e r a d u r a n t e a a u s ê n c i a d o m a r i d o
( A LVES , 2 0 0 2 , p . 6 6 ) .
Há nes t a peça , sob re t udo , uma fo r te i n tenção c r í t i c a às
cenas de adu l t é r i os , ao compor t amen to dúp l i c e da pe rsonagem
p r i nc i pa l , a p rese rvação da imagem púb l i ca de uma mu l he r
hones t a e um conv i t e à re f l exão . O au tor da peça t ea t r a l
de fende e va l o r i za a é t i c a e c r i t i c a a mu l he r i n te resse i r a , a
c r i ada cúmp l i ce , a f a l t a de amor e empa t i a po r pa r t e da esposa
i n f i e l , que não possu i ca rá t e r e não tem respe i t o pe l os sen t i -
mentos do seu mar i do e de seus aman tes . E l a f i nge se r uma
mu l he r de boa í ndo le e í n teg ra pe ran te à soc i edade da época ,
mas na ve rdade é c rue l , amb i c i osa , ego í s ta e an t ropocen t r i s t a .
Só pensa no seu bem es t a r e f i nge pa ra seu esposo que se
p reocupa com e l e , sendo que na ve rdade e l a es t á i n te ressada
no t esou ro que seu mar i do t rouxe da v i agem . G i l V i cen t e
i l u s t rou mu i t o bem o re t r a to da soc i edade da época , com suas
c r í t i c as soc i a i s e com um ca rá te r mora l i z an te e sa t í r i c o ace rca
de sua peça tea t r a l .
6 C O N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S
A p resen te aná l i se nasceu do ap ro fundamento ma i s espe -
c í f i co e re f l ex i vo das concepções da i n f i de l i d ade no t ea t ro
v i cen t i no , com base em um es tudo sob re o Au to da Í nd i a de
G i l V i cen te , que f az pa r t e da l i t e r a tu ra po r tuguesa . É i n t e res -
san te no t a r que a represen t ação do adu l t é r i o se mod i f i c ou no
deco r re r do t empo , desde um pe r í odo h i s t ó r i co da peça t ea t r a l
a t é os d i as a t ua i s , p r i nc i pa lmen te , dev i do ao pape l em que a
mu l he r vem desempenhando quando se t r a t a de i gua l dade e
p r i nc í p i os democ rá t i cos em suas re l ações pessoa i s . Con tudo , é
impo r t an t e ve r i f i ca r que o a t o de t r a i r envo l ve uma ques t ão de
va l o res mora i s e cu l t u ra i s , e l ementos que f azem pa r t e do me i o
em que o i nd i v í duo es t á i nse r i do . En t re t an to , i sso f az pensa r
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que as i nsa t i s f ações no re l ac i onamen to ap resen t am sa í das
poss í ve i s , med i an te o descon ten tamen to de um ou de ambos
os pa rce i r os . Em con t rapa r t i da , uma re l ação con juga l pode se r
rec í p roca e a t ende r às necess i dades dos envo lv i dos . Po rém ,
se oco r re uma s i t uação de i n f i de l i d ade , no t a -se que há uma
queb ra de con f i ança na qua l é p rec i so es tabe lece r ress i gn i f i -
cados pa ra pode r p rese rva r o re l ac i onamento . Conc l u i - se ,
ass im , po r me i o dessa pesqu i sa , que o au tor c r i t i c ava e sa t i r i -
zava a imo ra l i d ade e ou t ros cos tumes soc i a lmen te condenáve i s
da época , a t r avés de suas peças tea t r a i s .
Resumen : E l ob je t ivo de es te estud io es cont r ibu i r para una me jo r
comprens i ón de l as concepc i ones de l a rep resen t ac i ón sob re l a
i n f i de l i d ad en e l t ea t ro v icen t i no , a par t i r de l a l ec tu ra de l a ob ra
A u t o d e l a I n d i a . E l a n á l i s i s s e d e s a r r o l l a a p a r t i r d e l a
pe rspec t i va de que l a ob ra v i cen t i na se apoya en l a r i sa como
f o rma d e de sc on s t r uc c i ó n d e p ad r o n e s s oc i a l e s t e n d i e n t e s a
h ace r r e f e r e nc i a a un d i s cu r s o i d eo l ó g i c o op re so r . E l a u t o en
cues t i ó n re t r a t a una v i s i ó n an t i é p i c a de l p roceso de expans i ó n
i m pe r i a l p o r t u g u e s a d e l o s s i g l o s XV y XV I , p o r med i o d e l a
r e p r e s e n t a c i ó n f a r s e s c a d e t i p o s s o c i a l e s i n t e g r a n t e s d e l a
soc i edad po r t uguesa de aque l pe r í odo . P a r a l a cons t rucc i ón de
e s t e a r t í c u l o , f u e r e a l i z a d a u n a i n v e s t i g a c i ó n b a s ad a e n u n a
r e v i s i ó n b i b l i o g r á f i c a s o b r e a d u l t e r i o f e m e n i n o e n e l t e a t r o
v i c e n t i n o . R e f e r e n t e a l a n á l i s i s , s e t u v i e r o n e n c u e n t a l a s
cons i de r ac i o nes de A lve s ( 2002 ) , Cos t a e Cenc i ( 20 14 ) , Bakh t i n
( 20 13 ) , B r i t o ( 20 10 ) , Gusmão e Naza re th (20 14 ) , Maga lhães (2009 ) ,
More i ra (2013 ) , Pa lme la (2010 ) , Zachar ias (201 1 ) y C la ro (2016 ) .
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I S S N 2 2 3 6 - 3 3 3 5
D E M A CHA DO D E A S S I S A MOA CYR SCL I A R :
E S TU DO COMP ARA T IVO E N T R E O S
P E R SO NAG E N S P R I N C I PA I S D E C I UM ENTO D E CA RT E I R I N HA E DO M CA SM URRO SO B A
P E R S P ECT I V A P S I CO LÓG I CA
B i a n c a G r e l a
U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e Ma r i n g á ( U EM )
L e t r a s P o r t u g u ê s / I n g l ê s
b i a n c a g r e l l a @ y a h o o . c om . b r
C am i l a H e l o i s e P a e s
U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e Ma r i n g á ( U EM )
L e t r a s P o r t u g u ê s / I n g l ê s
c am i l a - p a e s @ h o tm a i l . c om
Re sumo : E s t e a r t i g o t em c omo ob j e t i v o ap r e sen t a r um es t u do
c o m p a r a t i v o e n t r e o s p r o t a g o n i s t a s d o r o m a n c e j u v e n i l
C i umen t o de C a r t e i r i n h a , d e Moacy r Sc l i a r , e d o c l á s s i c o Dom Casmu r r o , d e Mach ado de Ass i s , s egu i n do o v i é s ps i c o l ó g i c o .
É fundamen t ado na t eo r i a de l i t e r a t u r a j uven i l a p re sen t ada po r
M a r t h a ( 2 0 1 1 ) , b em c om o n a s c o n s i d e r a ç õ e s a r e s p e i t o d e
pe r sonagens p ropos t as po r F r anco Jun i o r ( 2 009 ) . Jus t i f i c a - se ,
p r i n c i p a l m e n t e , p o r c o n t r i b u i r c o m a á r e a d e p e s q u i s a em
l i t e r a t u r a j u v e n i l . C o m o r e s u l t a d o , p o s t u l a - s e q u e a
i n t e r t ex t ua l i d ade f e i t a po r Sc l i a r pode se r enxe rgada como uma
m a n e i r a d e i n c e n t i v a r s e u p ú b l i c o - a l v o a s e i n t e r e s s a r p e l a
l e i t u r a dos c l á ss i cos , t r azendo uma re l e i t u r a dos pe r sonagens ,
en t re t an to , em um con tex to ma i s mode rno .
P a l av r a s -ch ave : L i t e r a t u r a J uven i l . P e r s onagen s . C i umen t o de Car te i r i nha . Dom Casmur ro .
1 I N T R O D U Ç Ã O
Após a conso l i d ação da l i t e r a tu ra i n f an t i l no s i s t ema
l i t e r á r i o b ras i l e i r o , a l i t e r a tu ra j uven i l buscava , t ambém , esse
128
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es t a tu t o . No i n í c i o do sécu l o XX , não hav i a a p reocupação com
a espec i f i c i dade do l e i t o r “ j uven i l ” . Con tudo , a pa r t i r do f i na l da
década de 70 , su rge um co rpo de au to res de ob ras des t i na -
das aos ado l escen tes , com temas a t r aen tes a es te púb l i co .
(MARTHA , 20 1 1 ) .
Nes te t r aba l ho , ob je t i v amos ana l i s a r , sob a pe rspec t i va
ps i co l óg i c a , o p r i nc i pa l pe rsonagem da ob ra j uven i l C i umento de Car te i r i nha , e sc r i t a po r Moacy r Sc l i a r em 2006 , ( FRANCO
JUN IOR , 2009 ) e compará - l o ao p ro t agon i s ta do c l áss i co Dom Casmur ro , de Machado de Ass i s , pub l i c ado em 1899 . Op tamos
por ana l i s a r esse e l emento , po i s é no t áve l a i n t e r tex t ua l i d ade
do t ex to de Ass i s nessa p rodução de Sc l i a r . A lém d i sso ,
p re tendemos ap resen ta r um es tudo do p ro j e t o g rá f i co -ed i t o r i a l
de C i umen to de Car t e i r i nha . Nossa pesqu i sa pode se r j us t i f i c a -
da po r i nves t i ga r a na r ra t i v a j uven i l con temporânea , v i s t o que
a l i t e r a tu ra i n f an t i l b ras i l e i r a j á f o i bas t an t e exp l o rada , enquan to
a j uven i l a i nda não possu i mu i t os es tudos na á rea . Ass im , es t e
es tudo j us t i f i c a -se pe l a con t r i bu i ç ão à á rea de pesqu i sa sob re
l i t e r a t u ra j uven i l .
A ob ra C i umen to de Car t e i r i nha f o i esc r i t a po r Moacy r
Sc l i a r e pub l i c ada em 2006 pe l a ed i t o ra Á t i ca . Con t a a h i s t ó r i a
de F rancesco , que j un t o com seus am igos Ju l i a , Fe rnanda e
V i t ó r i o , en t r a em uma compe t i ç ão em to rno do romance Dom Casmur ro pa ra , com o p rêm io , a j uda r a recons t ru i r sua esco l a ,
que f o i des t ru í da po r uma t empes t ade . Con fo rme a s i nopse
d i spon íve l na qua r t a capa do l i v ro ,
Os c omp e t i d o r e s d e vem j u l g a r a e n i gm á t i c a C a p i t u ,
p e r s o n a g em d o l i v r o , c om a r g um en t o s q u e c om p r o v em
o u d e sm i n t am a s s u s p e i t a s d e t r a i ç ã o n u t r i d a s p o r
B e n t i n h o , s e u m a r i d o . A h i s t ó r i a c a l a f u n d o em
F r a n c e s c o , p o i s p a r e c e q u e J ú l i a , s u a n am o r a d a e
p a r c e i r a d e e q u i p e , r e s o l v e u d a r um a d e C a p i t u , d e -
m o n s t r a n d o i n t e r e s s e p o r o u t r o c o l e g a . I d e n t i f i c a d o
c om B e n t i n h o , F r a n c e s c o d e c i d e i n c r im i n a r C a p i t u , n em
q u e s e j a f o r j a n d o um a p r o v a f a l s a . ( S C L I A R , 2 0 0 6 ,
q u a r t a c a p a )
129
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 1 2 7 - 1 3 8 , 2 0 1 7
Dom Casmur ro , e sc r i t o po r Machado de Ass i s , con t a a
h i s t ó r i a de Ben t i nho e Cap i t u . Segundo a s i nopse (DOM
CASMURRO , [ 200 -? ] ) d i spon íve l no webs i t e “L i v ra r i a Cu l t u ra ” ,
B e n t i n h o e C a p i t u s ã o c r i a d o s j u n t o s e s e a p a i x o n am
n a a d o l e s c ê n c i a . M a s a m ã e d e l e , p o r f o r ç a d e um a
p r om e s s a , d e c i d e e n v i á - l o a o s em i n á r i o p a r a q u e s e
t o r n e p a d r e . L á o g a r o t o c o n h e c e E s c o b a r , d e q u em
f i c a am i g o í n t i m o . A l g um t emp o d e p o i s , t a n t o um c omo
o u t r o d e i x am a v i d a e c l e s i á s t i c a e s e c a s am . E s c o b a r
c om S a n c h a , e B e n t i n h o c om C a p i t u . O s d o i s c a s a i s
v i v em t r a n q u i l ame n t e a t é a m o r t e d e E s c o b a r , q u a n d o
B e n t i n h o c om eç a a d e s c o n f i a r d a f i d e l i d a d e d e s u a
e s p o s a e p e r c e b e a a s s om b r o s a s em e l h an ç a d o f i l h o
E z e q u i e l c om o e x - c om p an h e i r o d e s em i n á r i o .
Em conc l usão , re i t e r amos que nosso ob j e t i vo p r i nc i pa l é
p ropo r uma comparação en t re os p ro t agon i s t as dos do i s
romances , a sabe r , F rancesco , de C i umen to de Car te i r i nha
( 2006 ) , e Ben t i nho , de Dom Casmur ro ( 1 899 ) .
2 F U N D A M E N T A Ç Ã O T E Ó R I C A
P r ime i r amen te , ap resen t a remos um apanhado t eó r i co
sob re l i t e r a t u ra j uven i l e , em segu i da , a l gumas cons i de rações
sob re pe rsonagens e a t endênc i a temá t i c a ps i co l óg i c a .
2 . 1 N A R R A T I V A J U V E N I L
Segundo Mar tha ( 20 1 1 ) , desde que , no sécu l o X I I I , o
ado l escen te e ra reconhec i do po r sua apa rênc i a f í s i c a e ca rá te r
de rebe l d i a , es te , pos te r i o rmen te , t r ans fo rmou -se em t ema l i t e -
rá r i o . A au to ra pos tu l a que só recen temen te a l i t e r a tu ra j uven i l
começa a se r reconhec i da como subgêne ro no mercado l i t e r á -
r i o , e que seu reconhec imen to “deve se r buscado no d i á l ogo
en t re os e l emen tos que a cons t i t uem” . (MARTHA , 20 1 1 , p . 1 7 ) .
130
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 1 2 7 - 1 3 8 , 2 0 1 7
A au to ra menc iona , a i nda , que a imagem p ropos ta ho j e da
j uven tude poss i b i l i t a o su rg imen to de uma chamada cu l t u ra
j uven i l , que possu i t rês pecu l i a r i dades :
P o s s i b i l i t a a v i s ã o d a j u v e n t u d e c omo e s t á g i o f i n a l d o
d e s e n v o l v im e n t o , e n ã o c om o um p e r í o d o p r e p a r a t ó r i o
p a r a a v i d a a d u l t a ; t o r n a - s e d om i n a n t e n a s s o c i e d a -
d e s e c o n om i c ame n t e d e s e n vo l v i d a s , r e p r e s e n t a n d o
um a g r a n d e m a s s a d e p o d e r d e c omp r a ; e m o s t r a a
c a p a c i d a d e e s p a n t o s a d e i n t e r n a c i o n a l i sm o . ( MARTHA ,
2 0 1 1 , p . 1 8 ) .
A pesqu i sado ra a i nda exp l i c i t a que , após a conso l i d ação
da l i t e r a tu ra i n f an t i l , es t ud i osos , c r í t i c os e a t é mesmo i ns t i t u i -
ções no t a ram ce r to vaz i o na l i t e r a t u ra en t re a i n f ânc i a e a
f ase adu l t a e , po r i sso , passou a se r p roduz i da a chamada
l i t e r a t u ra “ i n f an t o - j uven i l “ , que t r ans i t ava en t re c r i anças e
j ovens , a i nda com ca rá t e r pedagóg ico . Após a me tade da
década de 70 , su rgem ob ras com a t emát i c a que a t r a i r i a os
ado l escen tes , com l i nguagem p róx ima ao púb l i c o -a lvo . A i nda no
sécu l o XX , nos anos 90 , ma i s au to res f o ram pa ra essa d i r eção
e l ança ram suas ob ras pa ra o púb i co j ovem . Ass im como a
l i t e r a t u ra i n f an t i l , a l i t e r a tu ra ago ra cons i de rada “ j uven i l ”
ap resen t a e l emen tos f o rma i s e t emá t i cos , a l ém de t r a t a r de
assun tos re l ac i onados ao un i ve rso j uven i l , como c r i se de i den -
t i dade , v i o l ênc i a , sexua l i d ade , mor te , sepa ração , esco l has , en t re
out ros temas a serem d iscut idos no cot id iano dos ado lescen tes .
2 . 2 O P E R S O N A G E M E A L I N H A P S I C O L Ó G I C A
F ranco Jun i o r ( 2009 ) exp l i c a que a pe rsonagem é um dos
e l emen tos ma i s impo r tan t es de uma na r ra t i v a , e que é sob re
e l a que , comumen te , o l e i t o r d i spensa ma i o r a t enção , “dada a
seme l hança que t a l e l emen to c r i a com a noção de
pessoa ” ( FRANCO JUN IOR , 2009 , p . 38 ) . O au to r ap resen t a do i s
c r i t é r i os pa ra a c l ass i f i c ação da pe rsonagem : seu g rau de
131
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 1 2 7 - 1 3 8 , 2 0 1 7
i mpo r t ânc i a pa ra que o con f l i t o d ramát i co da h i s t ó r i a na r rada
se desenvo lva e seu g rau de dens i dade ps ico l óg i c a .
Quan to à c l ass i f i c ação pe l a sua impo r t ânc i a na na r ra t i v a ,
podem se r cons i de radas como “p r i nc i pa l ” ou “secundá r i a ” .
F ranco Jun i o r demons t ra que
A p e r s o n a g em é c l a s s i f i c a d a c om o p r i n c i p a l q u a n d o
s u a s a ç õ e s s ã o f u n d am en t a d a s p a r a a c o n s t i t u i ç ã o e
o d e s e nv o l v im e n t o d o c o n f l i t o d r am á t i c o . [ . . . ] A p e r s o -
n a g em é c l a s s i f i c a d a c om o s e c u n d á r i a q u a n d o su a s
a ç õ e s n ã o s ã o f u n d am en t a i s p a r a a c o n s t i t u i ç ã o e o
d e s e n v o l v im e n t o d o c o n f l i t o d r am á t i c o . ( F R ANCO
JUN I O R , 2 0 0 9 , p . 3 9 ) .
Já no t ocan te ao g rau de dens i dade ps i co lóg i c a e suas
ações , segundo o mesmo au to r , d i v i dem -se em pe rsonagem
p l ana ( t i po e es te reó t i po ) ; p l ana com tendênc i a a redonda e
r edonda . A pe rsonagem p l ana “é aque l a que ap resen t a ba i xo
g rau de dens i dade ps i co l óg i c a ” ( FRANCO JUN IOR , 2009 , p . 39 ) .
Essa c l ass i f i c ação ab range do i s sub t i pos : a pe rsonagem t i po ,
que t em sua i den t i f i c ação po r me i o de ca t ego r i as soc i a i s
( p ro f i ssão , po r exemp l o ) ; e a pe rsonagem es t e reó t i po é aque l a
“ cu j a i den t i f i cação se dá po r me i o da acumu l ação excess i va de
s i gnos que ca rac te r i zam de te rm i nada ca tego r i a soc i a l ” ( FRANCO
JUN IOR , 2009 , p . 39 ) . A pe rsonagem p l ana com tendênc i a a
redonda ap resen t a um g rau med i ano de dens i dade ps i co l óg i c a ,
ou se j a , não é t o t a lmen te p rev i s í ve l , podendo su rp reende r o
l e i t o r . Po r ú l t imo , a pe rsonagem redonda , que demons t ra a l t o
g rau de dens i dade ps i co l óg i c a e , consequen temen te , ma i o r
comp l ex i dade em suas t ensões e con t rad i ções :
T a l p e r s o n a g em é i m p r e v i s í v e l , s u r p r e e n d e n d o o l e i t o r
a o l o n g o d a n a r r a t i v a , p o i s r e p r e se n t a d e m od o d e n s o
a c om p l e x i d a d e , o s c o n f l i t o s e a s c o n t r a d i ç õ e s q u e
c a r a c t e r i z am a c o n d i ç ã o h um an a e , n e s s e s e n t i d o ,
n ã o é r e d u t í v e l a o s l i m i t e s d e um a c a t e g o r i a s o c i a l
( F O R S T E R , 1 9 7 4 a p u d F RANCO JUN I OR , 2 0 0 9 , p . 3 9 ) .
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Na l i nha ps i co l óg i c a , o encam inhamen to da ação é i n t e rna -
l i z ado : cada ação do su j e i t o é i n te r i o r i zada e a na r ra t i v a cen t r a
-se nas p reocupações , emoções e sen t imen tos do pe rsonagem
p r i nc i pa l .
3 A N Á L I S E
3 . 1 P R O J E T O G R Á F I C O - E D I T O R I A L D E C I U M E N T O D E C A R T E I R I N H A O p ro j e to g rá f i co da capa do l i v ro C i umen to de
Car te i r i nha f o i p roduz ido po r V ic t o r Bu r ton e , po r t odo o l i v ro ,
há i l u s t r ações f e i t as po r Mar i a Eugên i a . A ob ra possu i segunda
e t e rce i r a capas em co r a l a r an j ada e , em sua qua r ta capa , é
ap resen t ada a s i nopse do l i v ro , bem como um b reve pa rág ra fo
com i n f o rmações sob re o au to r Moacy r Sc l i a r . As imagens são
co l o r i das de aqua re l a , com a p redom inânc i a de co res quen tes ,
como ve rme l ho e l a r an j a , po r quase t odas as i l u s t r ações .
Também , a l gumas pág inas são co l o r i das , de ixando o l i v ro ma i s
a t r aen t e pa ra o púb l i c o j ovem , como podemos no t a r nas
segu i n tes imagens :
F i g u r a 1 – C a p a e i l u s t r a ç õ e s d o l i v r o C i ume n t o d e C a r t e i r i n h a .
F o n t e : N ã o i d e n t i f i c a d a .
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Ao obse rvamos a i l u s t r ação da capa , no tamos o men i no
com a b l usa de co r ve rme l ha – quen te – e a ga ro t a com a
b l usa de co r azu l – f r i a . Pe l a exp ressão f ac i a l dos do i s
pe rsonagens p resen tes na i l u s t r ação , o l e i t o r j á pode , an tes
mesmo de começar a l e i t u ra , i n fe r i r que ex i s te um conf l i t o .
Esse equ i l í b r i o de co res pode i n f l uenc i a r , mesmo que
i nconsc ien temente , essa i n t e rp re t ação . O con t ras te de co r das
roupas dos pe rsonagens pode se r uma fo rma de rep re sen t a r
suas pe rsona l i d ades , j á que ve rme l ho rep resen t a a l go f o r t e ,
como pa i xão , r a i va , en t re ou t ros , enquan to o azu l r ep resen t a
t r anqu i l i d ade , compreensão , se ren i dade . A p redom inânc i a de
co res quen tes nas i l u s t r ações pode se r re l ac i onada com o
en redo da h i s t ó r i a , po i s o pe rsonagem p r i nc i pa l es t á t omado
pe l o c i úme e con fuso sob re a s i t uação que se encon t ra . Ta i s
sen t imen tos são rep resen t ados a l ém das pa l av ras . Po r t an t o ,
podemos obse rva r a impo r t ânc i a de um p ro j e t o g rá f i co bem
e l abo rado e a i n f l uênc i a que podem te r as i l u s t r ações em
a l gumas das poss í ve i s i n t e rp re t ações da ob ra .
3 . 2 C O M P A R A Ç Ã O , P E L O V I É S P S I C O L Ó G I C O , E N T R E
O S P E R S O N A G E N S D E C I U M E N T O D E C A R T E I R I N H A
E D O M C A S M U R R O
Como menc i onado an te r i o rmen te , a h i s t ó r i a f az re fe rênc i a
ao c l áss i co b ras i l e i r o Dom Casmur ro , en t re tan to , ap rox imando a
obra canôn ica do l e i t o r ma i s j ovem , t r a t ando do assun to
“ c i úme ” , o qua l t ambém é t ema da ob ra de Machado . O na r ra -
do r da h i s t ó r i a é au tod i egé t i co e re l a t a uma de suas memór i as
de i n f ânc i a , ass im como o na r rado r de Dom Casmur ro , que
na r ra suas memór i as . No t amos ass im , que , do mesmo modo
que Ben t i nho , F rancesco , como um na r rado r au tod iegé t i co ,
co l oca suas imp ressões na na r ração , t o rnando -se um na r rado r
não conf i áve l , po i s t odos os acon tec imen tos , sen t imen tos e
imp ressões são do pon to de v i s t a do na r rado r -pe rsonagem .
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A fo rma de na r ra r t ambém é pa rec i da , j á que o na r rado r
f az o na r ra t á r i o p resen te na sua h i s t ó r i a , como no t recho a
segu i r :
N a m i n h a t u rm a d e c o l é g i o t í n h am o s g r a n d e s l e i t o r e s .
T í n h amo s n ã o , t emo s : m u i t o d e n ó s c o n t i n u am o s
am i g o s e , q u a n d o n o s r e u n i m o s , a g o r a c om m u l h e r e s
e n o s s o s f i l h o s , s em p r e f a l am o s d e l i v r o s q u e e s t a -
m o s l e n d o , d o s l i v r o s q u e j á l e mo s um d i a - l i v r o s
q u e , g a r a n t o a v o c ê s , f i z e r am n o s s a c a b e ç a [ . . . ]
( S C L I A R , 2 0 0 6 , p . 9 , g r i f o n o s s o ) .
No en tan to , a l i nguagem da na r ra t i v a de Moacy r Sc l i a r é
ma i s con temporânea , d i r ec i onada aos j ovens . O au to r usa a
l i n guagem co t i d i ana : “ [ . . . ] vá r i as es t r adas e ruas t i nham f i c ado
b l oqueadas , causando um p rob l emão pa ra o t r âns i t o . A i nda po r
c ima eu es tava res f r i ado [ . . . ] ” ( SCL IAR , 2006 , p . 1 0 , g r i f o
nosso ) . Os do i s na r rado res -pe rsonagens são cons i de rados
pe rsonagens redondos , po i s ap resen tam a l t o g rau de dens i da -
de ps i co l óg i c a .
Os pe rsonagens da na r ra t i v a j uven i l de Sc l i a r são
F rancesco , na r rado r -pe rsonagem ; Ju l i a , seu amor de i n f ânc i a ;
V i t ó r i o e Nanda , que compõem o chamado Quar te to , o g rupo
de am igos . Os pe rsonagens de Dom Casmur ro são , t ambém ,
do i s casa i s , Ben t i nho e Cap i t u , Escoba r e Sancha . Con tudo ,
re i t e r amos que , nes te es tudo , compara remos apenas os pe rso -
nagens p r i nc i pa i s das t r amas : F rancesco e Ben t i nho .
F rancesco , ao ap resen t a r Jú l i a como personagem da
h i s t ó r i a , de i xa exp l í c i t o seu sen t imen to em re l ação a e l a : “Cada
vez que e l a f a l ava , meu co ração ba t i a ma i s f o r t e . A gen te se
conhec i a desde a i n fânc i a . T í nhamos a t é morado em casas
v i z i nhas [ . . . ] ” ( SCL IAR , 2006 , p . 22 ) . Em Dom Casmur ro , o
na r rado r Ben t i nho t ambém ap resen t a sua amada Cap i t u como
am iga de i n f ânc i a , d i z que moravam p róx imos . A cons t rução
dos pe rsonagens t em essa ap rox imação en t re os do i s roman -
ces . Em C i umen to de Car t e i r i nha , é most rada a j uven tude de
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um sécu l o d i f e ren t e do de F rancesco , e há o reconhec imen to
do mesmo como l e i t o r de Dom Casmur ro . Mos t r a que , t a l vez ,
esse t enha s i do um dos mot i vos pe l o qua l o p ro t agon i s t a
F rancesco t enha se i den t i f i c ado t an to com o romance que
es t ava l endo pa ra o concu rso que sa lva r i a seu co lég i o ,
des t ru í do po r um desabamen to :
N a ma i o r p a r t e d a n a r r a t i v a o s p e r s o n a g e n s s ã o j o v e n s . J o v e n s d o s é c u l o X I X , c e r t o , j o v e n s q u e e u i m a g i n a v a f a l a n d o d i f e r e n t e d a g e n t e , u s a n d o r o u p a s d i f e r e n t e s d a s n o s s a s r o u p a s , m a s j o v e n s , d e q u a l q u e r m a n e i r a . M a i s : j o v e n s c om s e n t i m e n t o s p a r e c i d o s a o s n o s s o s , c om emoçõe s p a r ec i d a s às no ssas ( SCL IAR , 2006 , p . 44 ) .
Os na r rado res -pe rsonagens dos do i s romances most ram -
se pessoas i nsegu ras , necess i t ando de ace i t ação po r pa r t e
dos ou t ros , o que é poss í ve l obse rva r nos segu i n tes exce r tos :
“ Jú l i a gos t ava dos meus poemas , gos t ava de m im , repe t i a a
t odo i ns t an te que me amava , mas d i sso eu não t i nha mu i t a
ce r t eza ” ( SCL IAR , 2006 , p . 22 ) e “Com que en t ão amava
Cap i t u , e Cap i t u a m im? ” (ASS IS , 1 899 , p . 26 ) . Em Dom Casmur ro , e ssa ca rac te r í s t i c a l eva o l e i t o r à g rande dúv ida
sob re o c l áss i co de Machado de Ass i s , se Cap i t u t r a i u ou não
Ben t i nho . Já em C i umen to de Car te i r i nha , e ssa ca rac te r í s t i c a de
F rancesco é t r a t ada como a l go que pode se r um sen t imen to
f o r te , mas pass íve l de con t ro l e , a l go na tu ra l da j uven tude .
A re l ação en t re Ju l i a e Cap i t u , e F rancesco e Ben t i nho é
poss í ve l , po i s , a l ém das mu i t as ca rac t e r í s t i c as seme l han t es ,
esses pe rsonagens aprox imam os l e i t o res j ovens da h i s t ó r i a do
c l áss i co de Ass i s , queb rando o pa rad i gma de que “o canôn i co
é cha to ” , ou h i s t ó r i as d i s t an tes , nas qua i s o l e i t o r não se
r econhece .
Ass im como Ben t i nho , F rancesco é l evado à desconf i ança
po r a l gumas a t i t udes de seu me l ho r am igo , V i t ó r i o ( em Dom Casmur ro , Escoba r ) , quando es t ão no shopp i ng conve rsando
sob re o l i v ro Dom Casmur ro e V i t ó r i o gos ta da i de i a da am iga
Jú l i a :
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– P e r f e i t o – c o n c o r d o u V i t ó r i o , e n c a n t a d o . – V o c ê s a b e d a s c o i s a s , J ú l i a . A c h o a t é q u e v o u i n d i c a r v o c ê c om o m i n h a c a n d i d a t a n a s p r ó x im a s e l e i ç õ e s p a r a o g r êm i o e s t u d a n t i l . R i r am , o s d o i s . E l e a a b r a ç o u c a r i n h o s am en t e , b e i j a n d o- a n o r o s t o . N ã o g o s t e i n a d a d a q u e l a c e n a . P a r e c e u -me q u e Jú l i a c o r r e s p o n d i a a o a b r a ç o d e l e c om o m a i s e n t u s i a sm o d o q u e d e v i a . ( S C L I A R , 2 0 0 6 , p . 4 8 ) .
F rancesco re fe re -se ao modo como a ação é rea l i z ada
( e ncan t ado , ca r i nhosamente ) pa ra de i xa r c l a ro ao l e i t o r que
não fo ram compor t amen tos “comuns ” , dessa f o rma , i n f l uenc i an -
do-o e to rnando -o seu cúmp l i ce .
Como nas memór i as de Ben t i nho , F rancesco t ambém na r ra
depo i s de ma i s ve lho , j á casado , com f i l hos , po r t an t o , a f oca l i -
zação é de um F rancesco ma i s maduro , co l ocando j u l gamen tos
e imp ressões de suas a t i t udes do passado :
E me ach ava pe r f e i t amen te c apaz de f azê - l o : ago r a que começ a r a a men t i r , ago r a que d om i n ava a a r t e d a t r ap aç a , n ão p a r a r i a ma i s , p a r a o bem ou p a r a o ma l – ma i s p a r a o ma l , n a ve rdade , m as no momen to , p r eo -cup ado em eng an a r o g r upo ( e eng an a r a m im p r óp r i o ) , e u não me d av a con t a d i ss o . ( SCL IAR , 2006 , p . 9 1 ) .
Es te , t omado pe l o c i úme , tem reações d rás t i c as , t a l qua l o
pe rsonagem de Machado . E l e b r i ga com o g rupo , reso l ve
acusa r Cap i t u , con t ra r i ando V i t ó r i o e Jú l i a , e mente pa ra
sus ten t a r suas j us t i f i ca t i v as de acusações : “Eu es t ava magoa -
do . Es tava magoado po r causa da d i scussão e es t ava magoa -
do po rque v i a V i t ó r i o e Jú l i a cada vez ma i s p róx imos
[ . . . ] ” ( SCL IAR , 2006 , p . 57 ) .
À med ida que as ações do quar te to de C iumento de Car te i r inha vão sendo nar radas , são in terca ladas a lgumas par tes
da h is tór ia de Dom Casmurro , para s i tuar o le i tor e entender o
envo lv imento que o narrador tem com aque la h i s tó r ia . A obra
C iumento de Car te i r inha é ma is do que uma in ter tex tua l i dade com
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a obra machad iana , é um conv i te ao le i tor ado lescente para
mergu lhar em out ra aventura com a mesma temát ica .
4 C O N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S
Nosso ob j e t i vo f o i cumpr i do ao compara rmos os p ro t ago -
n i s t as das duas ob ras em ques t ão . Após o es tudo , podemos
en tende r a i n t e r tex t ua l i d ade rea l i z ada po r Sc l i a r como uma
mane i r a de t en t a r ap rox imar o púb l i c o j uven i l , i s t o é , os
ado l escen tes , dos c l áss i cos da l i t e r a tu ra b ras i l e i r a . Ao l e r o
romance de Sc l i a r , que se passa em uma esco l a , o ado l escen te
pode se i den t i f i c a r com os pe rsonagens . Pode a t é se r menc i o -
nado , aqu i , o p r ime i r o amor , i nsegu rança , pa i xão , c i úmes , sen t i -
mentos e s i t uações t í p i cos dessa f ase da v i da . Da í , ao enxe r -
ga r no t ex to as mu i t as re fe rênc i as e c i t ações que apa recem
de Dom Casmur ro , pensamos que ex i s te g rande chance de o
i n t e resse do j ovem pa ra a l e i t u ra do c l áss i co se r despe r t ado .
Sendo ass im , conc l u ímos que a i n t e r tex t ua l i d ade ap resen tada ,
p r i nc i pa lmen te no que se re fe re aos pe rsonagens , pode se r
en tend i da como um i ncen t i vo à l e i t u ra do c l áss i co .
A b s t r a c t : T h i s a r t i c l e h a s a s t h e m a i n g o a l p r e s e n t i n g a compara t i ve s t udy be tween t he ma i n cha r ac t e r s o f t he j uven i l e n o v e l C i u m e n t o d e C a r t e i r i n h a , b y M o a c y r S c l i a r , a n d t h e c l a s s i c D o m C a sm u r r o , b y M a c h a d o d e A s s i s , f o l l o w i n g a psycho l og i c a l b i a s . I t i s b ased on t he j uven i l e l i t e r a t u re t heo ry p resen ted by Mar t ha ( 20 1 1 ) , as we l l as on t he cons i de ra t i ons o f F r a n c o J u n i o r ( 2 0 0 9 ) a b o u t c h a r a c t e r s . I n a d d i t i o n , i t i s j u s t i f i e d , ma i n l y , b y con t r i b u t e s c on t r i b u t i n g t o r e se a r ch es on t h e j u v e n i l e l i t e r a t u r e r e s e a r c h a r e a . A s a r e s u l t , t h i s p a p e r pos t u l a t es t h a t Sc l i a r ’ s i n t e r t ex t ua l i t y can be cons i de red a way t o e n c ou r a g e h i s t a r g e t - r e a d e r s t o g e t i n t e r e s t e d i n r e a d i n g c l ass i c s t o r i e s , and p ropos i ng a re - read i ng o f t he cha rac t e rs i n a more mode rn con tex t . K e y w o r d s : J u v e n i l e L i t e r a t u r e . C h a r a c t e r s . C i u m e n t o d e Car te i r i nha . Dom Casmur ro .
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R E F E R Ê N C I A S
ASS IS , Machado de . Dom Casmur ro . R i o de Jane i r o : H . Ga rn i e r ,
1 899 .
FRANCO JUN IOR , A rna ldo . Ope rado res de l e i t u ra da na r ra t i v a . I n : BONN IC I , Thomas ; ZOL IN , Lúc i a Osana . Teo r i a l i t e r á r i a :
abo rdagens h i s tó r i c as e tendênc i as con temporâneas . 3 . ed .
Mar i ngá : Eduem , 2009 . p . 33 -58 .
MARTHA , A l i ce Áurea Pen teado (O rg . ) . Tóp icos de l i t e r a tu ra i n f an t i l e j uven i l . Ma r i ngá : Eduem , 20 1 1 .
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DOM CASMURRO . S i nopse . L iv ra r i a Cu l t u ra , [ 200 -? ] . D i spon í ve l
em : < h t t p : //www. l i v r a r i acu l t u ra . com .b r/p/dom -casmur ro -58469 > .
Acesso em : 1 1 ago . 20 1 6 .
Env i ado em : 02/02/20 17 .
Ap rovado em : 1 0/05/20 17 .
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 1 3 9 - 1 5 0 , 2 0 1 7
I S S N 2 2 3 6 - 3 3 3 5
A S R E P R E S E N TA ÇÕ E S F EM I N I NA S E SUA S
RA SURA S NO S E ST E R EÓ T I PO S SO C IA I S EM
P O NC I Á V I C Ê NC I O
Do u g l a s S a n t a n a A r i s t o n S a c r amen t o
U n i v e r s i d a d e F e d e r a l d a B a h i a ( U F BA )
L i c e n c i a t u r a em L í n g u a E s t r a n g e i r a M o d e r n a
d o u g l a s _ s a c r amen t o _ 1 8 @ h o tm a i l . c om
R e s um o : O p r e s e n t e a r t i g o t e m c om o b a s e o r o m a n c e d a
esc r i t o r a neg r a e con temporânea Conce i ção Eva r i s t o , c hamado
P o n c i á V i c ê n c i o ( 2 0 0 3 ) . H a v e n d o f u n d a m e n t o s n o e s t i l o
n a r r a t i v o d e n o m i n a d o E s c r e v i v ê n c i a ( E V A R I S T O , 2 0 0 7 ) ,
e l a b o r a d o p e l a p r ó p r i a e s c r i t o r a , C o n c e i ç ã o E v a r i s t o
exemp l i f i c a , po r me i o de sua v i vênc i a como esc r i t o r a , mu l he r e
n e g r a , a e v o c a ç ã o p o r m e i o d a l i t e r a t u r a p a r a um c o l e t i v o
n a r r a t i v o e s o c i a l v i v i d o p e l a c om u n i d a d e n e g r a b r a s i l e i r a .
D e s s e m o d o , n o t am - s e r a s u r a s e s t e r e o t i p a d a s o r i u n d a s d a
c o l o n i z a ç ã o - p r e s e n t e s a t é a a t u a l i d a d e a t r a v é s d a s
p e r s o n a g e n s d e P o n c i á V i c ê n c i o e s u a m ã e , o u s e j a ,
e s t e r e ó t i p o s q u e , c om b a se em m i t o s d e f u n d aç ão c o l o n i a i s ,
e s t ã o p r e s e n t e s n o i m a g i n á r i o d o o p r e s so r e d o o p r i m i d o . O
a r t i g o t em o i n t u i t o de a na l i s a r e embasa r t e o r i c amen t e e ss as
r a s u r a s n a s r e p r e s e n t a ç õ e s d e s s a s d u a s m u l h e r e s n o
deco r re r da ob r a e mos t r a r como é impo r t an t e o l u ga r de f a l a
d e um a m u l h e r n e g r a n a l i t e r a t u r a a t u a l e s c r e v e n d o s o b r e
mu l he res neg ras numa soc iedade pa t r i a rca l e f a l ocên t r i c a .
P a l a v r a s -c h ave : E sc r e v i v ê nc i a . E s t e r eó t i p os . Ponc i á V i c ênc i o .
Rasu ras .
1 I N T R O D U Ç Ã O
[ . . . ] E , s e t r a t a n d o d e um a t o emp r e e n d i d o p o r
mu l h e r e s n e g r a s , q u e h i s t o r i c ame n t e t r a n s i t am p o r
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 1 3 9 - 1 5 0 , 2 0 1 7
e s p a ç o s c u l t u r a i s d i f e r e n c i a d o s d a s e l i t e s , e s c r e v e r
a d q u i r e um s e n t i d o d e i n s u b o r d i n a ç ã o . [ . . . ] A n o s s a
E s c r e v i v ê n c i a n ã o p o d e s e r l i d a c om o h i s t ó r i a s p a r a
‘ n i n a r o s d a c a s a g r a n d e ’ e s i m p a r a i n c omo d á - l o s em
s e u s s o n o s i n j u s t o s . ( EVAR I S TO , 2 0 0 7 , p . 2 1 ) .
Conce i ção Eva r i s t o nasceu em Be l o Ho r i zon t e , v i veu sua
i n f ânc i a com d i f i c u l dades f i nance i r as , e se f o rmou no ens i no
méd i o numa i dade avançada ; a t ua lmen te é dou to ra em L i t e ra t u -
ra Comparada ; sua v i da sempre f o i rodeada de mu l he res
neg ras que a i n f l uenc i a ram e a f i ze ram se r uma das p r i nc ipa i s
rep resen t an t es da l i t e r a t u ra a f ro -b ras i l e i r a (DUARTE , 2008 ) .
Conce i ção Eva r i s t o t r az t emát i c as que envo lvem esse con tex to
de ress i gn i f i c a r a h i s tó r i a con t ada po r um g rupo ma jo r i t á r i o na
soc iedade nac i ona l e que f o i passada de geração pa ra ge ração
f o r t a l ecendo a cons t rução de es te reó t i pos , i nc l us i ve em sua
i n f ânc i a . Os d i scu rsos o r i undos das memór i as i n f an t i s , con ta -
dos pe l as mu l he res que a rodeavam , se f azem ca rac te r í s t i c os
em seus t r aba l hos , po i s há uma i n f l uênc i a dessa f ase de sua
v i da com a i de i a de esc r i t a . Ass im , Conce ição Eva r i s to é uma
au to ra pe rpassada , t r anspassada pe l os d i scursos que es t ão ao
redo r , sendo essa uma das p r i nc i pa i s ca rac te r í s t i c as da f unção
au to ra l ( FOUCAULT , 2006 ) .
Conce i ção Eva r i s t o f i nda a i de i a de Esc rev i vênc i a , o modo
organ i zac i ona l com que sua esc r i t a es t á s i t uada e p roduz i da
na l i t e r a t u ra nac iona l ; uma esc r i t a v i ncu l ada a pa r t i r de uma
memór i a que é i nd i v i dua l , mas que t ambém evoca uma memór i a
co l e t i v a , dando pode r ao l uga r de f a l a onde se p roduz esse
d i scu rso ( EVAR ISTO , 2007 ) , e resga t ando essa co l e t i v i dade na
memór i a i nd i v i dua l (UMBACH , 2008 ) da comun i dade neg ra .
Conce i ção Eva r i s t o esc reve sus ten t ada pe lo l uga r de f a l a de
uma mu l he r , neg ra e v i ven te de uma soc i edade hegemôn i ca e
pa t r i a rca l ; l ogo se pode sa l i e n t a r e exemp l i f i c a r a i de i a de leuz i -
ana de L i t e ra tu ra Menor , que t em como p r i nc i pa i s ca rac t e r í s t i -
cas o f a t o de t odas as p roduções se rem um a to po l í t i co , u t i l i -
zando os mecan i smos do co l on i zado r pa ra f e i t u ra dessa
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l i t e r a t u ra menor , e t ambém o f a t o de have r uma enunc i ação
co l e t i v a , da v i vênc i a i nd i v i dua l p resen te na ob ra , evoca r um
co l e t i vo pa ra o l e i t o r (DELEUZE ; GUATTAR I , 20 14 ) .
Po r t an t o , nes te a r t i go são abo rdadas ca rac te r í s t i c as de
v i da e ob ra da esc r i t o ra neg ra Conce i ção Eva r i s to , as rasu ras
p ropo rc i onadas pe l a mesma no âmb i t o l i t e r á r i o . A l ém d i sso ,
ana l i s a -se as rep resen tações das pe rsonagens fem in i nas
neg ras p resen tes no l i v ro Ponc i á V icênc i o – ma i s p rec i samen te
a pe rsonagem que dá nome ao l i v ro e sua mãe . O i n t u i t o des te
a r t i go é o de queb ra r os es te reó t i pos v incu l ados à mu l he r
neg ra no imag i ná r i o soc i a l , esses mo l des que engessam e
t r azem como consequênc i a o “pe r i go da h i s t ó r i a ún i ca ” (AD ICH IE ,
2009 ) pa ra o povo neg ro , onde a nesga o r i un da de uma
h i s t ó r i a con t ada e p ro l i f e r ada pe l os povos hegemô n i cos , os
eu ropeus , na época da co l on i zação , a i nda con t i nua p resen te no
co t i d i ano , en r i j ecendo os es t e reó t i pos .
2 S O B R E A O B R A : P O N C I Á V I C Ê N C I O
A ob ra Ponc i á V i cênc i o re t r a t a a v i da da personagem que
dá nome ao t í t u l o , ass im sendo um romance de f o rmação 1 ;
na r ra a h i s t ó r i a de Ponc i á , desde sua i n f ânc i a pob re e l úd i c a ,
b r i ncando de p roduz i r bonecos de ba r ro no r i o pe r t o de casa ,
a t é a f ase de t r ans i ção , onde a pe rsonagem dec i de i r pa ra a
c i dade g rande t en t a r a v i da , com o i n t u i t o de vo l t a r e a j uda r a
f am í l i a (mãe e i rmão , uma vez que o pa i mor re ra ) ; mas ao
chega r à c i dade g rande , é su rp reend i da po r ou t r a rea l i d ade ,
que a t o rna empregada domés t i c a . V i vendo na c i dade , Ponc i á
se casa , en t re t an to so f re se te abo r t os e passa a se r ag red i da
pe l o mar i do , havendo , ass im , uma rup tu ra no modo canôn i co e
hegemôn ico de rep resen t ação do fem in i no (DALCASTAGNÈ ,
2007 ) . Ponc i á é uma mu l he r , neg ra e da pe r i f e r i a .
Por ou t ro l ado , a h i s tó r i a é na r rada pe l o i rmão de Ponc i á ,
que v iveu com e l a e va i pa ra a c i dade poucos anos após a
i rmã – e l e a lme j a se r so l dado e vo l t a r pa ra sua t e r r a com essa
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pa ten te . A v i da na c i dade é á rdua e ao chega r l á e l e não
encon t ra a i rmã , po rém rea l i z a o sonho de se r so l dado e se
apa i xona po r uma p ros t i t u t a , mas es t a é assass i nada pe l o
ca fe t ão . Os do i s f azem ten t a t i v as de encon t ra r os pa ren t es , e
re t o rnam pa ra sua t e r r a na t a l , mas não encon t ram n i nguém .
Ponc i á acaba f i c ando doen te e ap resen t a um dese j o avassa l a -
do r de vo l t a r pa ra a casa de sua i n f ânc i a . Nesse me i o t empo ,
a mãe dos do i s i rmãos apa rece na c i dade , en t re t an to encon t ra
apenas o f i l ho . É nesse momen to que Ponc i á t en t a embarca r
no t r em pa ra vo l t a r pa ra a casa de suas ten ras memór i as , e ,
num su r to ps i co l óg i co – po r causa da v i o l ênc i a so f r i da pe l o
mar i do e dos abo r t os oco r r i dos du ran t e a v i da de casada – , o
acúmu l o de i ns t i n tos , o r i undos de seus t r aumas não expu rga -
dos p rovocam uma i n t e rna l i z ação no i nconsc i en te ( FREUD , 1 9 -
1 5/ 1 975 ) . Ass im , o i rmão a encon t ra no t r em e ambos t e rm inam
ao l ado de sua mãe .
3 P O N C I Á V I C Ê N C I O E S U A M Ã E : O S E S T E R E Ó T I P O S
R A S U R A D O S
A pe rsonagem que dá nome à ob ra é uma das p r i nc i pa i s
na r rado ras . A esc r i t a , a t r avés de um o l ha r na r ra t i vo , é fe i t a
po r me i o de memór i as que de l im i t am o p resen te e o passado
f i cc i ona l , evocando a v i da da na r rado ra desde sua i n f ânc i a a t é
o momen to f i na l da na r ra t i v a – com a p resença de su r t os e
reencon t ros . A na r ra t i v a , a p r i nc í p i o , t r az a na r rado ra com um
fo r te apego ao avô , e i sso f i c a c l a ro com o uso de ca rac t e r i -
zação s im i l a r , como , po r exemp l o , o f a t o de que , após a mor te
do avô , Ponc i á c r i a uma escu l t u ra de ba r ro com ca rac te r í s t i cas
seme l han t es a e l e – pedaço reme ten te do b raço pa ra as
cos tas . O romance t r az a t emá t i c a da ances t r a l i d ade po r me i o
da re l ação en t re Ponc i á e seu avô , mos t rando a p rá t i c a de
ap rende r com os ma i s ve l hos , o que é mu i to comum em reg i -
ões qu i l ombo l as e na cu l t u ra neg ra .
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O p r im e i r o h om em q u e P o n c i á V i c ê n c i o c o n h e c e r a f o r a
o a v ô . [ . . . ] V ô V i c ê n c i o e r a m u i t o v e l h o . [ . . . ] em v ô
V i c ê n c i o f a l t a v a um a d a s m ã o s e v i v i a e s c o n d e n d o o
b r a ç o m u t i l a d o p a r a t r á s . E l e c h o r a v a e r i a m u i t o . [ . . . ]
E l a r e t e v e n a m emó r i a o s c h o r o s m i s t u r a d o s a o s
r i s o s , o b r a c i n h o c o t o c o e a s p a l a v r a s i n t e l i g í v e i s d e
V ô V i c ê n c i o . ( EVAR I S TO , 2 0 0 3 , p . 1 5 ) .
A i n f ânc i a de Ponc i á é rep l e t a do e l emento l úd i co , haven -
do i nc l us i ve o v í ncu l o dessas i de i as l úd i c as com ques tões da
na tu reza , como po r exemp l o , a passagem que c i t a o a rco - í r i s e
o medo de passa r sob um ; o medo p rovém da c rença que ao
passa r , a pessoa se t r ans fo rma em men i no . Esse f a t o r queb ra
o p r ime i r o es te reó t i po envo lvendo as mu l he res : Ponc i á t i nha
o rgu l ho de se r mu lhe r , a f i na l e l a possu í a a mãe que e ra um
exemp l o de mu l he r , o que re fu t a a i de i a F reud -Lacan i ana de
que t oda mu l he r que r se r um homem , p roven i en te do Comp l exo
de Éd i po envo lvendo men i nas , uma vez que , pa ra F reud , a
mu l he r só ganha comp l e t ude ( j á que não pode se r um homem )
com a p resença de um f a l o -pên i s , ou se ja , a t r avés de um
pa rce i r o homem ou com a ge ração de f i l hos ( FREUD ,
1 924/ 1 972 ) . Sendo ass im , a mu l he r es t á f adada a suba l t e rn i za -
ção mascu l i n a , po i s não possu i um f a l o -pên i s ( SAL IH , 20 1 2 ) , e ,
des ta f o rma , o f a t o de a soc i edade ser f a l ocên t r i c a es t á
pau t ada nes t e p r i nc í p i o , o que se queb ra a t r avés de Conce i ção
Eva r i s to .
[ . . . ] O p a i e r a f o r t e , o i rm ã o q u a s e um h omem , a m ã e
man d av a e e l e s o b e d e c i am . E r a t ã o b om s e r m u l h e r !
Um d i a t am b ém e l a t e r i a um h om em q u e , m e sm o
b r i g a n d o , h a v e r i a d e f a z e r t u d o q u e e l a q u i s e s s e e
t e r i a f i l h o s t amb ém . ( EVAR I S TO , 2 0 0 3 , p . 2 7 ) .
O v í ncu l o com o passado é exp l anado a t r avés de Ponc i á
e o avô , o avô e a t e r r a onde a f am í l i a mora e dos resqu íc i os
com a co l on i a l i d ade ex i s t en tes naque l a comun i dade , v i s t o que
a t é o nome e o sob renome p rovêm da re l ação senho r -esc ravo .
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É no t áve l t ambém o aca to de o rdens dadas pe l os donos da
t e r r a e do senho r de engenho . Ponc i á rompe essa ba r re i r a ao
ques t i ona r o nome que possu i e não en tende r o mo t ivo de l he
t e rem dado aque l e nome .
[ . . . ] O p a i , a m ã e , t o d o s c o n t i n u a v am V i c ê n c i o . N a
a s s i n a t u r a d e l á , a r em i n i s c ê n c i a d o p o d e r i o d o
s e n h o r , d e um t a l c o r o n e l V i c ê n c i o . O t emp o p a s s o u
d e i x a n d o a m a r c a d a q u e l e s q u e s e f i z e r am d o n o s d a s
t e r r a s e d o s h om en s . ( EVAR I S TO , 2 0 0 3 , p . 2 9 ) .
Conce i ção Eva r i s t o t r az rea l i d ade pa ra sua ob ra e uma
nova t emá t i c a pa ra d i a l oga r com o povo negro : o cunho soc i o -
econôm ico (BAL IBAR , 2007 ) , e i sso f i c a exp l í c i t o quando a
au to ra re t r a ta sob re a mudança de Ponc i á pa ra a c i dade , onde
há uma rasu ra de pe rmanênc i a em sua l oca l i d ade de o r i gem e
a t en t a t i v a de uma nova v i da na c i dade , t omando o cam inho
de uma re t i r an t e – o re t i r an te é um pe rsonagem comum no
cená r i o b ras i l e i r o con temporâneo .
[ . . . ] C a n s a d a d a l u t a i n s a n a , s em g l ó r i a , a q u e t o d o s
s e e n t r e g a v am p a r a am an h e c e r c a d a d i a m a i s p o b r e ,
e n q u a n t o a l g u n s c o n s e g u i am e n r i q u e c e r - s e a t o d o o
d i a . E l a a c r e d i t a v a q u e p o d e r i a t r a ç a r o u t r o s c am i -
n h o s , i n v e n t a r um a v i d a n o v a . E a v a n ç an d o s o b r e o
f u t u r o , P o n c i á p a r t i u d o o u t r o d i a , p o i s t ã o c e d o a
m á q u i n a n ã o v o l t a r i a a o p o v o a d o . ( EVAR I S TO , 2 0 0 3 , p .
3 3 ) .
Ao chega r à c i dade , Ponc i á começa a nova rea l i d ade
t r aba l hando como empregada domést i c a – des t i no de i númeras
mu l he res no B ras i l – , e há o ques t i onamen to ace rca do pape l
do neg ro nessas p ro f i ssões ca rac t e r i zadas como ranços da
esc rav i dão e dadas como es te reó t i po de se rv i dão , ou
Comp l exo de P róspe ro ( FANON , 2008 ) , em que o neg ro es t a r i a
p red i spos to a se rv i r o hegemôn i co , d i scu rso bas t an te p resen te
na soc iedade con temporânea . Essa t emá t i ca , v i ncu l ada à v i da
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do neg ro na d i áspo ra , é comum na l i t e r a t u ra a f ro -b ras i l e i r a
como e l emen to reco r ren te no p resen te da v i da do neg ro
( DUARTE , 2008 ) .
[ . . . ] F o i a p r e n d e n d o a l i n g u a g em d o s a f a z e r e s d e um a
c a s a d a c i d a d e . N u n c a e s q u e c e u o d i a em q u e a
p a t r o a l h e p e d i u p a r a q u e e l a p e g a s s e o p e i g n o i r e
a t e n d e n d o p r o n t ame n t e o p e d i d o , e l a l e v o u - l h e a
s a b o n e t e i r a . E r r a v a m u i t o , m a s a p r e n d i a m u i t o t am bém .
( E VAR I STO , 2 00 3 , p . 4 3 ) .
Depo i s de t r aba l ha r como empregada domés t i ca , Ponc i á
re t o rna à sua an t i ga c i dade p rocu rando po r sua mãe , mas não
ob tém resu l t ado , e ass im e l a vo l t a pa ra a c i dade e se casa
pouco depo i s . En t r am en t ão em pau t a os t r aumas da pe rsona -
gem , o p r ime i r o é re l ac i onado à f e r t i l i d ade , que , apesa r de se r
mu i t o usado pa ra desc reve r a mu l he r neg ra na l i t e r a t u ra e nas
m íd i as , aqu i é ques t i onado po r Conce ição Eva r i s t o . Ponc i á não
t em f i l hos e so f reu se te abo r t os , o es te reó t i po da neg ra mãe
ca i po r t e r r a ; es t e reó t i po , esse , que re t ra t a a mu l he r neg ra
como ap t a pa ra t e r f i l hos e é o r i undo da época da esc rav i dão ,
em que as mu l he res neg ras rep roduz i am pa ra a l imen t a r econo -
m icamente a f azenda , po i s esses bebês e ram tomados de suas
mães e vend i dos ( HOOKS , 20 14 ) .
[ . . . ] L em b r o u - s e d o s s e t e f i l h o s q u e t i v e r a , t o d o s
mo r t o s . A l g u n s v i v e r am p o r um d i a . E l a n ã o s a b i a b em
p o r q u e e l e s h a v i am m o r r i d o . [ . . . ] A m u l h e r c h o r a v a
c om e l a a p e r d a d o s b e b ê s , t ã o s a c u d i d i n h o s , m a s
q u e n ã o v i n g a v am n u n c a . [ . . . ] O s m éd i c o s d i s s e r am
q u e e l e s m o r r i am p o r c au s a d e um a c omp l i c a ç ã o d e
s a n g u e . [ . . . ] e l a n u n c a m a i s e n g r a v i d o u . ( EVAR I S TO ,
2 0 0 3 , p . 5 3 ) .
Jun t amen te aos abo r tos , o casamen to de Ponc i á va i se
desgas t ando e e l a começa a so f re r ag ressões do mar i do ,
de i xando t ambém de sen t i r p raze r . O mar i do da p ro t agon i s t a é
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co r romp i do pe l o mach i smo e co l oca a mu l he r cons t an temen te
no l uga r de suba l t e rna . E l e , como f i gu ra de mar i do e che fe da
casa ; e l a , a dona de casa . Ponc i á so f re cons t an temen te dev i do
ao l u t o das pe rdas dos f i l hos e t ambém dev i do à p ressão
soc i a l que envo lve a mu l he r e o pape l de t e r f i l hos ; uma
quan t i dade de l u t o demas i ada se t r ans fo rma em me l anco l i a
( F REUD , 1 9 1 7/ 1 975 ) , sendo que a me l anco l i a é um es t ado p i o r
que a dep ressão : Ponc i á é uma pe rsonagem me l ancó l i c a .
O es t ado me l ancó l i c o segue Ponc i á a t é o f i na l do l i v ro ,
onde o passado é de ex t rema impo r t ânc i a , o que é comum no
es t ado me l ancó l i c o , po i s há uma i n t rospecção pa ra o ego
( F REUD , 1 9 17/ 1 975 ) , exp l i c ando o uso cons tan t e de f l a shbacks
na na r ra t i v a . Esse quad ro ps i co l óg i co ap resen tado no l i v ro é
de ex t rema impo r t ânc i a pa ra queb ra r ou t ro es t e reó t i po : o de
que o neg ro não ap resen ta p rob lemas ps i co lóg i cos – es t e reó t i -
po t ambém o r i undo da co l on i zação , que mos t ra o neg ro como
fo r te , f í s i c a e ps i co l og i c amen te (SANTOS , 1 983 ) , e como a l guém
que não so f re , ou não cho ra , não t em l u t o ou dep ressão .
Conce i ção Eva r i s t o p rob l ema t i za esse conce i t o e mos t ra que
os neg ros t êm sen t imen tos , p rob l emas ps i co l óg i cos e que
p rec i sam de a j uda ( FANON , 2008 ) , po i s es t á na cons t i t u i ç ão da
ps i que do neg ro essa exc l usão mora l e soc i a l que o r i g i na um
s i l enc i amento (BENTO , 2002 ) e as p r ime i r as f e r i das na rc í s i c as ,
i sso t udo po r causa dos d i scu rsos rac i s t as e t axado res
p resen tes na soc i edade (SANTOS , 1 983 ) . Logo , f i c a c l a ro que o
neg ro tem uma cons t i t u i ç ão ps i co l óg i c a d i f e renc i ada .
[ . . . ] E n t r e t a n t o , f o i c r e s c e n d o e a p r e n d e n d o a d i s f a r -ç a r o q u e l á d e d e n t r o v i n h a . N ã o c h o r a v a e t amb ém g u a r d a v a r i s o . E o m á x i mo q u e f a z i a , d e d e s c o n t e n t e e s t a v a , e r a r e sm un g a r , m a s t ã o b a i x i n h o e c om o s l á b i o s t ã o c e r r a d o s , q u e o s r e sm un go s c a i am p a r a s i p r ó p r i o , n um a d e s c e n d ê n c i a f i n d a e a n u l a r . ( E VAR I STO , 2 00 3 , p . 3 0 ) .
A f i gu ra fem in i na do mate rno é impo r t an te pa ra en t ende r
as rep resen t ações soc i a i s da mu l he r neg ra na soc iedade , e
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i s so f i c a exp l í c i t o no l i v ro . A mãe de Ponc i á é o espe l ho
cons t ru to r da i den t i dade da p ro t agon i s t a ( SAL IH , 20 1 2 ) , ou se j a ,
a p ro j eção da mãe t em v í ncu l o do hegemôn i co (BENTO , 2002 ) ,
j á que a mãe é uma mu l he r neg ra e c i en t e das mod i f i c ações
que f az pe ran te aque l e g rupo pa t r i a rca l em que v ive .
A descons t rução acon tece com a mãe t omando con t a da
casa , mandando no mar i do , sendo uma l í de r ; o pode r do ma t r i -
a rcado é p resen te no l i v ro a t r avés do f em in i no que não
p rec i sa da f i gu ra do homem . A mãe de Ponc i á t ambém e ra
i ndependen te . I nsubm issa das amar ras soc i a i s do mach i smo .
A m ãe n u n c a r e c l am av a d a a u s ê n c i a d o h om em . V i v i a e n t r e t i d a c a n t a n d o c om a s s u a s v a s i l h a s d e b a r r o . Q u a n d o e l e c h e g a v a , e r a e l a q u em d e t e rm i n a v a o q u e o h omem f a r i a em c a s a n a q u e l e s d i a s . O q u e d e ve r i a f a z e r q u a n d o r e g r e s s a s s e l á p a r a a s t e r r a s d o s b r a n c o s . O q u e d e ve r i a d i z e r p a r a e l e s . ( EVAR I STO , 2 0 0 3 , p . 2 7 ) .
4 C O N C L U S Ã O
Conc l u i - se que o l i v ro a r t i c u l a espaço e memór i a a pa r t i r
da t r a j e t ó r i a do povo neg ro . A memór i a co le t i v a es tá marcada
na memór i a i nd i v i dua l de cada pessoa que se i den t i f i c a
(UMBACH , 2008 ) , e esse p rocesso m imé t i co é comum na esc r i -
t a de Conce i ção Eva r i s t o ( 2007 ) , po i s a mesma a l cunha a i de i a
de Esc rev i vênc i a , em que a v i vênc i a se r i a f o rmadora de uma
memór i a co le t i v a . Ou t ro pon to pe r t i nen te é sob re as re l ações
do neg ro , com temá t i c as v i ncu l adas a ou t ros assun tos como
re l i g i ão , c l asse e gênero (BAL IBAR , 2007 ) , pa ra me l ho r compre -
ensão do t ema e da amp l i t ude que possuem t a i s assun tos , os
qua i s são pe rcep t í ve i s nas pe rsonagens de Ponc i á V i cênc i o e
sua mãe , em seus l uga res como mu l he res neg ras e pe r i f é r i c as
na soc i edade . Po r t an t o , o l uga r de f a l a é de ex t rema
impo r t ânc i a , t r az as v i vênc i as e as t emá t i c as de um povo
suba l t e rno pa ra a supe r f í c i e e f az com que ouçam uma voz
que l u t a há mu i t o tempo pa ra se r ouv ida (SP IVAK , 20 10 ) ,
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dev i do ao pode r hegemôn i co e dom inado r que não as
pe rm i t i am se rem escu t adas . E , po r f im , co l ocando em p rá t i c a
os mo l des de manuseamen to das rep resen tações soc i a i s e a
mane i r a como i sso oco r re na co l e t i v i dade e as suas rasu ras
nas es t ru t u ras do canôn i co (DALCASTGNÈ , 2007 ) ,
exemp l i f i c adas nas pe rsonagens fem in i nas p r i nc i pa i s .
A b s t r a c t : T h i s a r t i c l e i s b a s e d o n t h e n ov e l P o nc i á V i c ê n c i o ( 2 0 0 3 ) , w r i t t e n b y t h e b l a c k a n d c o n t e m p o r a r y w r i t e r C o n c e i ç ã o E v a r i s t o . B a s e d i n t h e n a r r a t i v e s t y l e c a l l e d " E s c r e v i v ê n c i a " ( EVAR I S TO , 2 007 ) , e l a b o r a t e d c r e a t e d b y t h e w r i t e r h e r s e l f , C o n c e i ç ã o E v a r i s t o e x em p l i f i e s t h r o u g h h e r expe r i e nce as a woman and a b l a c k w r i t e r , mak i n g t he use o f l i t e r a t u r e t o c r e a t e a n a r r a t i v e a n d s o c i a l c o l l e c t i v e l i v e d b y t h e B r az i l i a n b l a c k commun i t y , a s we l l a s s t e r e o t y pe d s h ad e s f r om t h e c o l o n i z a t i o n , a n d s t i l l p r e s e n t , i n t h e c h a r a c t e r s o f P o n c i á V i c e n c i o a n d h i s m o t h e r , b a s e d o n c o l o n i a l m y t h s p r e s e n t i n t h e i m a g i n a r y o f b o t h o p p r e s s o r a n d o p p r e s s e d . The a r t i c l e a ims a t ana l yze ana l yz i ng and suppo r t , t heo re t i c a l l y , t h e e r a s u r e s o n t h e r e p r e s e n t a t i o n s o f t w o w om e n i n t h e wo rk , and t o show how impo r t an t i t i s g i v i n g space t o a b l a ck woman ' s s p e e c h i n t h e c u r r e n t l i t e r a t u r e , w r i t i n g a b ou t b l a c k women i n a pa t r i a rcha l and fa l ocen t r i c soc ie ty . K e y w o r d s : E s c r e v i v ê n c i a . P o n c i á V i c ê n c i o . R a s u r a s . S te reo types .
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NOTAS
1 R om an c e d e f o rm a ç ão p r o vém d a p a l a v r a a l em ã B i l d u n g s r om an e
c a r a c t e r i z a u m r o m a n c e q u e a b o r d a o c r e s c i m e n t o e
d e s e n v o l v i m e n t o d e d e t e rm i n a d a p e r s o n a g em , d a i n f â n c i a à
m a i o r i d a d e .
Env i ado em : 23/0 1/20 17 . Ap rovado em : 02/ 10/20 17 .
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I S S N 2 2 3 6 - 3 3 3 5
O CO R PO F EM I N I NO NA P O E S I A G AL EG O -
P OR TUG U E SA : COM PARA ÇÕ ES E N T R E A S
CA NT I GA S D E A MO R E A M I G O
L a r a d a S i l v a C a r d o s o
U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e F e i r a d e S a n t a n a ( U E F S )
L i c e n c i a t u r a em L e t r a s V e r n á c u l a s
l a r a c a r d o o s o@ h o tm a i l . c om
P r o f a . M a . A n d r é i a S i l v a d e A r a ú j o ( O r i e n t a d o r a )
U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e F e i r a d e S a n t a n a ( U E F S )
D e p a r t am e n t o d e L e t r a s e A r t e s
a n d r e i a . c om . a c e n t o @ gma i l . c om
R e s um o : O a r t i g o a b o r d a a s c a n t i g a s d e a m i g o e d e am o r
g a l e g o - p o r t u g u e s a s e a p r e s e n ç a d o c o r p o f em i n i n o em t a i s
compos i ções . Essas can t i g as demons t r am a p re sença do Amor
C o r t ê s e s u a r e l a ç ã o c om a f r e q u ê nc i a d o a p a r e c i m e n t o d o
co rpo f em in i no nas l e t r a s das canções . A me t odo l og i a u t i l i z ada
f o i a pesqu i s a b i b l i o g r á f i c a com base nos t r ab a l h o s de Ba r r os
( 2 0 1 1 ) , C a m i l l i s ( 2 0 1 4 ) e C o v a l ( 2 0 1 4 ) . A a s s i d u i d a d e d e
d e s c r i ç õ e s c o r p o r a i s , e r o t i z a d a s e / o u s e n s u a l i z a d a s ,
ve r i f i c adas p r i nc i p a lmen te nas can t i gas de am igo , e a p resença
de ca r ac t e r í s t i c as f í s i c a s , de f o rma su t i l , nas can t i g as de amo r
s ã o l e v a d a s a q u e s t i o n am e n t o s s o b r e o d i s t a n c i a m e n t o d o
homem e da mu l he r p romov i do pe l o Amor Cor t ês e a desc r i ç ão
d o c o r p o f e m i n i n o a p a r t i r d o s v a l o r e s m o r a i s d o p e r í o d o
med ieva l .
P a l a v r a s - c h av e : C an t i g a s d e amo r . C an t i g as d e am i g o . C o r po
f em in i no .
1 I N T R O D U Ç Ã O
A I dade Méd i a , pe r í odo da h i s t ó r i a eu rope i a demarcada
en t re os sécu l os X e XV , f o i po r mu i t o t empo es te reo t i pada
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como um pe r í odo de escu r i dão e pouco avanço no que d i z
respe i t o às re l ações soc i a i s . A l i t e r a t u ra , nesse imenso pe r í odo
da h i s t ó r i a , baseava -se na i n f l uênc i a re l i g i osa ; os t ex tos esc r i -
t os res t r i ng i am -se aos t ex tos da I g re j a Ca tó l i c a . Em Po r t uga l ,
espec i f i c amen te a pa r t i r do sécu l o X I I , i n i c i a -se um pe r í odo
sóc i o -h i s t ó r i co que a l t e ra as re l ações i n te rpessoa i s da época ,
e emerge a necess i dade de uma ma i o r exp ressão l i t e r á r i a .
O su rg imen to das Cruzadas , segundo Ba r ros ( 20 1 1 ) , dá
d i nam i c i dade à soc i edade eu rope i a , e a mudança da d i v i são da
he rança pa ra uma sucessão un icamen te p r imogên i t a c r i a um
amon toado de nob res f a l i dos . Impu l s i onados à cas t i dade , a f im
de ev i t a r o aumen to dos gas tos f am i l i a r es , a e l e s res t avam as
opções de t o rna rem -se cava l e i r os andan tes , c ruzados , e/ou
t rovado res .
Envo l v i dos em um Amor Cor t ês , os nob res t rovado res
e ram l evados a demons t ra r uma sens i b i l i d ade pe ran te a mu l he r ,
i dea l i z ando -a . Essa i dea l i z ação va r i ava confo rme a c l asse a
que e l a pe r tenc i a . Sendo ass im , as p róp r i as can t i gas ressa l t a -
vam essa d i co tom i a : há a can t i ga da mu l he r nob re , as chama -
das “can t i gas de amor ” , em que e l a e ra i dea l i z ada e pos t a
numa pos i ção ma i s a l t a do que o homem , e há a can t i ga da
campes i na , a “can t i ga de am igo ” , em que a mu l he r e ra co l oca -
da como o eu l í r i c o e a l e t r a da canção e ra rep l e t a de me tá f o -
ras que o fe recem uma ma i o r p rox im i dade f í s i c a do t rovado r em
re l ação à mu l he r co r t e j ada .
O co rpo t em suas p r ime i r as apa r i ções na l i t e r a t u ra
a t r avés da poes i a med ieva l . P r ime i r o porque , como a f i rma
Lopes ( 2006 , p . 1 ) , as pa l av ras can t adas , resqu í c i os da t r ad i ç ão
o ra l , poss i b i l i t am ao t rovado r a i n t e rp re t ação co rpo ra l do que
se can t a , ou se j a , uma i n f l uênc i a do co rpo e da voz do t rova -
do r na can t i ga ; e , segundo , po rque a p resença da voz f em in i na
nas can t i gas de am igo e da voz mascu l i na nas can t i gas de
amor reme tem a v i sões d i s t i n t as sob re o o l ha r pa ra o co rpo
da mu l he r .
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Ambas as can t i gas aqu i espec i f i c adas a ten t am pa ra o
co rpo f em in i no em sua l e t r a . A d i f e rença se dá na a t enção a
esse a t r i bu t o e na f o rma de sua i nc l usão nas compos ições .
Busca-se , po r t an to , nes te t r aba l ho , compara r a p resença e
impo r t ânc i a das ca rac te r í s t i c as f í s i c as f em in i nas nas can t i gas e
desenvo lve r poss í ve i s exp l i c ações pa ra a d i f e renc i ação da
expos ição corpora l da mu lher nas cant igas de amor e de am igo .
2 O A M O R C O R T Ê S , A S C A N T I G A S D E A M O R E O
C O R P O F E M I N I N O
Tan to as can t i gas de amor quan to as can t i gas de am igo
e ram esc r i t as pe l os mesmos t rovado res , que d i r ec i onavam os
sen t imen tos exp ressos nas re l ações amorosas desc r i t as nas
canções . Segundo Pe i r uque ( 2007 , p . 4 ) , “ [ . . . ] o poe t a , po i s ,
r ep resen t a com suas can t i gas o que gos t a r i a de v ive r na sua
co l e t i v i dade . ” A co l e t i v i dade e o me i o soc i a l daque l a época ,
i n f l uenc i ados pe l a v i são de amor co r tês , davam às mu l he res da
a r i s t oc rac i a a pos i ção de d i s t anc i amen to e devoção , seme l han -
t es ao cu l t o mar i ano , su rg i do no sécu l o X I I .
O Amor Cor tês , i dea l i z ado t ambém no sécu l o X I I pa ra
con te r os es tup ros e man te r os casamen tos das nob rezas ,
envo l veu os cava le i r os e os t rovado res de t a l f o rma que
mu i t os , como a f i rma Ba r ros ( 20 1 1 ) , f i ze ram de sua v i da a expe -
r i ênc i a p rá t i c a dessa i dea l i z ação do amor , t r ans fo rmando seus
re l a t os b i og rá f i cos em can t i gas . Nas can t i gas de amor , o r i un -
das da poes i a p rovença l , a mu l he r e ra i dea l i z ada , co l ocada
numa pos ição de dama i na t i ng í ve l . A v i são f em in i na nessas
canções e ra a rep resen ta t i v i dade co l e t i v a da mu l he r nob re ,
r i c a e pode rosa , que merec i a o l ouvo r dos t rovado res e que
e ra responsáve l pe l o so f r imen to de amor de l es , j á que e ra
sempre pos t a em um d i s t anc i amen to necessá r i o . Em v i r t ude do
cumpr imen to da re l ação de vassa l agem amorosa , ocas i onada
pe l o Amor Cor tês desenvo lv i do naque l a época , ev i t ava -se , ao
máx imo , a menção a ca rac te r í s t i c as f í s i c as da mu l he r .
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A can t i ga de Nuno Fe rnandes To rneo l exemp l i f i c a a i dea l i -
zação a que o t rovado r é l evado ao f a l a r da mu l he r nob re na
can t i ga de amor :
A i e u ! e d e m im q u e s e r á?
Q u e f u i t a l d o n a q u e r e r b em
a q u e n om o u s o d i z e r r em
d e q u a n t o m a l m e f a z h av e r !
E f e z e - a D e u s p a r e c e r
m e l h o r d e q u a n t a s n o m un d ' h á !
M a i s em g r a v e d i a n a c i ,
s e D e u s c o n s e l h o n om m i d e r ;
c a d e s t a s c o i t a s q u a l x e q u e r
m ' é -m i m u i g r a v e d ' e n d u r a r :
c om o n om l h ' o u s a r a f a l a r
e e l a p a r e c e r a s s i .
( T O R N EOL , [ 1 2 - - ] )
A expressão “dona ” reme te a uma senho ra de g randes
dom ín i os , de boa f o r t una , sendo , po r t an t o , uma mu l he r da a r i s -
t oc rac i a . Ao apa i xona r -se po r e l a , o t rovador sen te -se pe rd i do ,
po i s j ama i s confessa rá o seu amor . Assoc i a -se , po r t an t o , ao
i dea l do amor co r tês , que impu l s i ona o homem a man te r -se
d i s t an te da mu l he r amada .
O so f r imen to do t rovado r é i nev i t áve l ; o mot i vo , en t re t an -
t o , é pos to em ques t i onamento : “ca des tas co i t as qua l xe
que r/ m ' é -m i g rave d ' endu ra r/como nom l h ' ousa a f a l a r e e l a
pa rece r ass i ” . O t rovado r ques t i ona -se qua l o mo t ivo de ma i o r
do r : se t en t a r f a l a r à dama os seus sen t imen tos , ou se o f a t o
de a senho ra se r t ão bon i t a quan to l he pa receu .
Apesa r de a d i s t ânc i a en t re o t rovado r e a mu l he r amada
se r f ac i lmen te no t ada , t ambém é poss í ve l a pe rcepção do
co rpo f em in i no na can t i ga , a i nda que de f o rma d i sc re t a ,
a t r avés do ve rso : “e e l a pa rece r ass i ” . O t rovado r , es t ando
envo lv i do no Amor Cor t ês , não pod i a f a l a r abe r t amente sob re
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seus dese j os sexua i s pe l a senho ra . Mas , na can t i ga , há a
menção à be l eza f em in i na , ou se j a , ao co rpo da mu l he r , o que
ap rox ima , de f o rma b reve , os pe rsonagens : o t rovado r e l og i a a
be l eza da dama , ena l t ecendo o co rpo f em in i no . Va l e l embra r
que , na I dade Méd i a , as re l ações en t re o homem e a mu l he r
e ram pouco ou quase nada comentadas , p r i nc i pa lmen te den t ro
da l i t e r a tu ra . A p resença de um e l og i o ao corpo f em in i no , a i nda
que de f o rma b reve , den t ro de uma can t i ga de amor , apon t a
pa ra um i n í c i o de mudança nas re l ações soc i a i s da época .
A can t i ga de amor de João A i r as de San t i ago t ambém
exemp l i f i c a a p resença do co rpo f em in i no nesse t i po de
canção . E l a é na r rada pe l o eu l í r i c o mascu l i no , que con t a as
suas pa i xões po r uma mu l he r , apa ren t emen te nob re , po r usa r
um man to em vo l t a do cava l o :
A p o r q u e p e r ç o o d o rm i r
e a n d o m u i e n amo r a d o
v e j o - a d a q u i p a r t i r
e f i c ' e u d e s emp a r a d o ;
a m u i g r am p r a z e r s e v a i
a C r e x e n t ' , em s u a m u a b a i a ;
v e s t i d a d ' um p r é s d e C amb r a i ,
D e u s ! q u e b em l h ' e s t á m an t o e s a i a
A m o r r e r h o u v i p o r e n
t a n t o a v i b em t a l h a d a ,
q u e p a r e c i a m u i b em
em su a s e l a d o u r a d a ;
a s s u e i r a s s om d ' e n s a i
e o s a r ç õ e s [ s om ] d e f a i a ,
v e s t i d a d ' um p r é s d e C amb r a i
D e u s ! q u e b em l h ' e s t á m an t o e s a i a
( S A N T I GAGO , [ 1 2 9 - ? ] )
A a t r ação f í s i c a pe l a mu l he r apa rece na can t i ga em do i s
momen tos : “Deus ! que bem l h ' e s t á manto e sa i a ” e “ t an t o a v i
bem t a l hada ” . O p r ime i r o ve rso em des t aque apon t a exp l i c i t a -
mente pa ra a be l eza da mu l he r . Segundo o t rovado r , a t r avés
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das suas ves tes , cen t r a l i z a sua a t enção sob re o co rpo f em in i -
no . O segundo ve rso des tacado apon t a t ambém pa ra o co rpo ,
no sen t i do de ve r a dama e l egan te , a pon to de o t rovado r
ap rox imar -se da mor t e , em v i r t ude da be leza da dama .
As can t i gas de amor , em sua t o t a l i d ade , não apon t am
pa ra uma exc l usão co rpo ra l e um abso l u t o d i s t anc i amen to
en t re os pe rsonagens da canção . Segundo Ba r ros ( 20 1 1 , p . 2 1 3 ,
g r i f o do au to r ) , as d i f e renças de pensamen to sob re a p resença
de uma ou ou t r a ca rac te r í s t i c a p r i nc i pa l das can t i gas
[ . . . ] r e s i d e t a l v e z n a q u i l o q u e o h i s t o r i a d o r p r i o r i z a n a
s u a a n á l i s e , n a q u i l o q u e e l e t r a z p a r a o p r i m e i r o p l a n o
e n a q u i l o q u e e l e emp u r r a p a r a um p l a n o s e c u n d á r i o –
c om o p o r e x emp l o n o q u e s e r e f e r e à e s t r a t é g i a
i n t e r p r e t a t i v a d e s e p r i o r i z a r o e r o t i sm o o u o i d e a l i s -m o , am b o s n a v e r d a d e m u i t o p r e s e n t e s n a p o e s i a
c o r t ê s , d e m a n e i r a g e r a l d e m a n e i r a i n t r i n c a d a , d i a l é t i -
c a o u c omp l em en t a r .
O t rovado r , segundo as reg ras mora i s es t abe l ec i das pe l o
Amor Cor tês , t e r i a a ob r i gação mora l de i dea l i z a r a senho ra ,
co l ocá - l a em um d i s t anc i amento pass í ve l de devoção . Mas , ao
ena l t ece r as ca rac te r í s t i c as f í s i c as da sua amada , e l e ap rox ima
-se do co rpo f em in i no ma i s do que dever i a , ab r i ndo novas
poss i b i l i d ades de i nves t i gação sob re a p resença co rpo ra l da
mu l he r nas can t i gas de amor .
3 A S C A N T I G A S D E A M I G O E O C O R P O F E M I N I N O :
P O T E N C I A L I Z A Ç Ã O D O E R O T I S M O
Nas can t i gas de am igo , a voz l í r i c a é da mu l he r do
campo , chamada mu i t as vezes de “pas to ra ” , que con t a suas
dores do homem amado – o qua l se encon t ra d i s t an te – à sua
am iga ou à sua mãe . Apesa r de man te r o l i r i smo amoroso nas
compos ições , a mu l he r , nesse t i po de canção , po r se r o r i unda
de c l asses popu l a res , é v i s t a pe l o t rovado r como uma mu l he r
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ma i s ca rna lmen te acess í ve l . Sem a ob r i gação de co r t e j a r
moças de c l asse ma is ba i xa , há a ap resen t ação conc re t a de
sen t i dos e do co rpo f em in i no . O co rpo da mu l he r é , a pa r t i r
dos l im i t e s convenc i ona i s da época , ma i s abe r t amen te f a l ado ,
cabendo , i nc l us ive , cons t an t es me tá fo ras e ró t i c as en t re a
na tu reza , o co rpo e os ges tos da pas to ra .
A can t i ga de am igo de João A i r as de San t i ago ap resen t a
um ca rá t e r e ró t i co , sem a necess i dade de um uso cons t an te
de me tá f o ras :
O me u am i g o , f o r ç ad o d ' am o r ,
p o i s a g o r a c om i g o q u e r v i v e r
ũ a s a z om , s e o p u d e r f a z e r ,
n om d ó rm i a j á me n t r e c om i g o f o r ,
c a d a q u e l t em po q u e m i g o g u a r i r
a t a n t o p e r d e r á q u a n t o d o rm i r .
E q u em b em q u e r [ o ] s e u t em po p a s s a r
u é c om s a s e n h o r , n om d o rm e r em ;
e me u am i g o , p o i s p e r a m i v em ,
n om d ó rm i a j á me n t r e m i g o mo r a r ,
c a d a q u e l t em po q u e m i g o g u a r i r
a t a n t o p e r d e r á q u a n t o d o rm i r .
E , s e l h ' a p r o u g u e r d e d o rm i r a l á
u e l é , p r a z e r -m i - á , p e r b õ a f é ,
p e r o d o rm i r t emp o p e r d u d [ o ] é ,
m a i s p e r me u g r a d ' a q u i n om d o rm i r á ,
c a d a q u e l t em po q u e m i g o g u a r i r
a t a n t o p e r d e r á q u a n t o d o rm i r .
E , d e p o i s q u e s [ e ] e l d e m im p a r t i r ,
t a n t o d ó rm i a q u a n t o q u i s e r d o rm i r . ( S A NT I AGO , [ 1 2 9 - ? ] )
A pas to ra impõe uma cond ição ao am igo , que passa rá
com e l a um t empo : enquan to es t i ve rem j un tos , e l e não do rm i r á ,
a f im de não despe rd i ç a r nenhum momen to . As cono t ações
sexua i s f azem-se p resen tes de f o rma exp l í c i t a . As i n tenções
do dese j o sexua l são t r ans fe r i das do homem , “o am igo ” , pa ra o
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dese j o f em in i no . Sabendo -se que as camponesas es t avam
menos envo lv i das numa cas t i dade em re l ação às senho ras da
co r te , pe rcebe -se o i n t e resse pe l o co rpo t r ans fe r i do do
homem pa ra a mu l he r .
Confo rme Araú j o e Fonseca ( 20 1 2 , p . 39 -40 ) , “ [ . . . ] é o
t r ovado r que o fe rece um pe r f i l das re l ações amorosas e soc i -
a i s , envo l vendo a mu lhe r do campo e a da c i dade . ” A a t r ação
f í s i c a , comumente ace i t a apenas ao sexo mascu l i no , t r ans fe re -
se pa ra a pas to ra , como um aspec to v i r i l . A a t r ação sexua l e
a sensua l i d ade apa recem nas can t i gas de eu l í r i c o f em in i no , a
f im de esconde r esses sen t imen tos do t rovado r , passando -os
pa ra a pas to ra em ques t ão .
A canção D i z meu am igo que l h i f aça bem , de Johan
Se rvando , apon t a pa ra o co rpo fem in i no sob a ó t ima mascu l i n a
de f o rma um pouco ma i s c l a r a que nas dema i s canções :
D i z me u am i g o q u e l h i f a ç a b em , m a i s n om m i d i z o b em q u e q u e r d e m i [ m ] ; e u p o r b em t e n h o d e q u e l h ' a q u i v im p o l o v e e r , m a i s e l a s s i n om t em ; m a i s , s e s o u b e s s ' e u q u a l b em e l q u e r i a h a v e r d e m i , a s s i l h o g u i s a r i a . P e d e -m ' e l b em , q u a n t ' h á q u e o e u v i , e n om m i d i z o b em q u e q u e r h a ve r d e m im , e t e n h ' e u q u e d [ e ] o v e e r l h ' é m u i g r am b em , e e l n om t em a s s i ; m a i s , s e s o u b e s s ' e u q u a l b em e l q u e r r i a h a v e r d e m i , a s s i l h o g u i s a r i a . P e d e -m ' e l b em , n om s e i em q u a l r a z om , p e r o n om m i d i z o b em q u e q u e r r á d e m im ; e t e n h ' e u , d e q u e o v i j á , q u e l h e g r am b em [ é ] , e e l t e m q u e n om ; m a i s , s e s o u b e s s ' e u q u a l b em e l q u e r r i a h a v e r d e m i , a s s i l h o g u i s a r i a . P a r S e r v a n d ' , e a s s a n h a r -m ' - e i um d i a , s e m ' e l n om d i z q u a l b em d e m im q u e r r i a . ( S E RVANDO , [ 1 2 - - ? ] ) .
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A inda esc r i t a pe l a voz f em in i na , a pas to ra con t a os dese -
j o s do am igo : so l i c i t a que e l a “ f aça -o bem” . Fazendo -se de
desen tend i da , ac red i t a que vê - l o é o dese j áve l , mas e l e não
assume o que que r e e l a , ao f im da canção , d i z que enfu rece -
rá , qua l que r d i a , caso não ob tenha a respos t a . A can t i ga t r az
o ape l o sexua l do am igo e mos t ra que as i n t enções de l e e ram
ma i o res que apenas encon t rá - l a , de i xando imp l í c i t o o dese j o do
t oque no co rpo da mu l he r . Pe rcebe -se , po r t an to , uma ma i o r
f a l a sob re os dese j os sexua i s , que são pos tos como o r i undos
do am igo , mas a t enuados pe l a mu l he r , que se f az de desen -
t end i da . O co rpo f em in i no t o rna -se dese j ado ma i s d i r e t amen te
nessa can t i ga , ass im como em t an t as ou t r as de am igo .
Não há apenas o ena l t ec imen to da be l eza f í s i c a da
mu l he r ; há a e ro t i zação a t r avés de pa l av ras e f r ases que
cono t am o dese j o sexua l da campes i na po r seu am igo . A
p resença de ca rac te r í s t i c as f í s i c as f em in i nas apa rece nas
canções a l i ada a um e ro t i smo ma i s t r ansparen te , mesmo que
t enha s i do co l ocado a t r avés de menções i nd i r e t as ou me tá fo -
ras . Como a f i rma Fe r re i r a ( 2002 , p . 39 ) , na can t i ga de am igo ,
a t r avés da voz fem in i na , é can tado “ [ . . . ] o amor p ro i b i do e
' i n f e r i o r ' , a começar pe l a l i nguagem ma l i c i osa e ousada , pe l a
qua l a mu l he r se mos t ra em f raquezas d i an t e do amado a
quem dese j a en t rega r -se como aman te ” . A pos i ção soc i a l da
campes i na e a ausênc i a de boa pa r t e das res t r i ções do Amor
Cor tês sob re e l a pe rm i t em a p resença i n tensa e re f o rçada do
e ro t i smo ao f a l a r do co rpo f em in i no , se comparada às can t i gas
de amor .
4 C O N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S
D i f e ren t e do que se cos tumava pensa r sob re as can t i gas
de amor , há a p resença do co rpo fem in i no nas compos i ções .
A i nda que de f o rma ve l ada e b reve , os a t r i bu t os f í s i cos das
damas reve l am uma re l a t i v a desobed i ênc i a às reg ras e condu -
t as mora i s do Amor Cor tês pe l os nob res t rovado res . O co rpo
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t ambém apa rece nas can t i gas de am igo de f o rma i n t ens i f i c ada ,
a t r avés de me tá f o ras e exp ressões sen t imen t a i s que apon t am
pa ra um dese j o sexua l imp l í c i t o na voz da campes i na .
A i n t rodução da imagem co rpo ra l nas can t i gas de am igo
rep resen t a ma i s a l i b e rdade do homem que da mu l he r , j á que
e ra o t rovado r – do sexo mascu l i no – o esc r i t o r dos l amen tos
da mu lhe r apa i xonada . En t re tan to , é poss í ve l no t a r um avanço
na exp ressão l i t e r á r i a no que d i z respe i t o à sexua l i d ade ,
mesmo que apenas pa ra os homens . Naque le pe r í odo , en t re os
sécu l os X I e X IV , a l i t e r a tu ra se res t r i ng i a apenas a esc r i t os
ca tó l i cos , os qua i s abom inavam qua l que r exp ressão co rpo ra l
que reme tesse aos dese j os ca rna i s . A l ém d i sso , a p resença do
co rpo f em in i no nessas canções rep resen tou , en t re vá r i as
f unções , a poss i b i l i d ade de rompe r com a cen t r a l i z ação da l i t e -
ra t u ra pa ra f i ns re l i g i osos . A i dea l i z ação do Amor Cor tês , impu l s i onado pe l o i n í c i o da
sucessão exc l us i vamen te p r imogên i t a da herança , pe l a neces -s i dade de se con te r os abusos sexua i s comet i dos con t ra as mu l he res nob res e pe l o i n í c i o de uma t r ans ição do casamento a r ran j ado pa ra o casamen to amoroso , p rese rvou a hon ra dos nob res cava le i r os e das senho ras da co r te po r a l gum t empo . A p resença do co rpo nas can t i gas – t an t o nas de amor quan to nas de am igo – rep resen ta , de ce r to modo , uma b reve res i s -t ênc i a aos mo ldes mora i s que deve r i am se r p rese rvados segundo os va l o res do pe r í odo med i eva l . A i nse rção do co rpo na l i t e r a tu ra t rovado resca a j udou a soc i edade po r tuguesa no seu pe r í odo de t r ans i ção en t re concen t ração do pode r nas mãos da mora l i d ade c r i s t ã e a l i b e rdade i nd i v i dua l de sen t imen -t os e dese j os .
O co rpo , re l a t ado nas can t i gas de am igo , não s i gn i f i cou
ma i o r l i b e rdade da mu l he r pa ra f a l a r de s i , mas rep resen tou o
dese j o sexua l dos homens , o qua l f o i r ep r im i do pe l o i dea l do
Amor Cor tês , mas que nem po r i sso de i xou de ex i s t i r . As
can t i gas de amor e de am igo aqu i ana l i s adas des t i nam -se e
re fe rem-se a mu l he res de d i f e ren t es pos ições soc i a i s , envo l -
vendo o modo de rep resen t ação de l as . Nos do i s t i pos de
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can t i gas , en t re tan to , há a p resença do co rpo f em in i no . Mesmo
em n í ve i s d i s t i n t os , a i nc l usão desses aspec tos co rpo ra i s da
mu l he r na l i t e r a t u ra t rovado resca a t en t a pa ra o f im da cen t r a l i -
zação da esc r i t a aos ob j e t i vos re l i g i osos e de uma a l t e ração
no modo de v i ve r e pensa r na I dade Méd i a , sob re t udo no que
d i z respe i t o aos sen t imen tos e aos dese j os sexua i s , p r i nc i pa l -
mente dos homens .
A b s t r a c t : T h e a r t i c l e a d d r e s s e s t h e i s s u e o f G a l i c i a n -
P o r t u g u e se “ c a n t i g a s d e am i g o ” a n d “ c a n t i g a s d e amo r ” a n d
t he p resence o f the fem in i ne body i n such compos i t i ons . These
songs r evea l t h e p r e sence o f t h e cou r t l y l o ve and i t s r e l a t i o n
w i t h t he f re quen t f em in i ne body appea r i n g i n t he songs ’ l y r i c s .
The me t hodo l ogy used was t he b i b l i o g r aph i c a l r e sea r ch based
o n t he wo r k o f B a r r os ( 2 0 1 1 ) , C am i l i s ( 2 0 1 4 ) , C ova l ( 2 0 1 4 ) . T he
f r e q u e n c y o f e r o t i c i z e d a n d / o r s e n s u a l i z e d c o r p o r a l
d e s c r i p t i o n s v e r i f i e d ma i n l y i n t h e c an t i g a s d e am i g o a n d t h e
s ub t l e p r e sence o f phy s i c a l c h a r ac t e r i s t i c s i n t h e c an t i g as de
amo r a r e t a k en i n t o ques t i o n i n g abou t t h e de t achmen t o f man
and woman p romo t ed by t he Cou r t l y Love and t he desc r i p t i o n
o f t h e f e m i n i n e b o d y b a s e d o n t h e m o r a l v a l u e s o f t h e
med ieva l pe r i od .
K e yw o r d s : C a n t i g a s d e am o r . C a n t i g a s d e am i g o . F e m i n i n e
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I S S N 2 2 3 6 - 3 3 3 5
A P E R S I S T Ê NC I A DO I D EÁ R I O CA VA LE I R E SCO
M E D I EV A L EM A B I SMO , D E CAR LO S R I B E I RO
D a n i e l e d a C r u z A l m e i d a
U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e F e i r a d e S a n t a n a ( U E F S )
L i c e n c i a t u r a em L e t r a s V e r n á c u l a s
d a n i e l e a l m e i d a 2 0 1 2 @ y a h o o . c om . b r
P r o f a . M e . A n d r é i a S i l v a d e A r a ú j o ( O r i e n t a d o r a )
U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e F e i r a d e S a n t a n a ( U E F S )
D e p a r t am e n t o d e L e t r a s e A r t e s
a n d r é i a . c om . a c e n t o @ gma i l . c om
R e s umo : Em Ab i sm o ( 2 0 0 4 ) , o e s c r i t o r b a i a n o C a r l o s R i b e i r o
r e sga t a pa r a a a t u a l i d ade um He ró i pós -mode rno em busca do
San to Graa l que , apesa r de i nse r i do em um con tex to t o t a lmen te
d i s t i n t o d o c e n á r i o d e u m a n o v e l a d e c a v a l a r i a m e d i e v a l ,
c a r a c t e r i z a - s e p o r s e a s s eme l h a r a o s b r a v o s c a v a l e i r o s d a
I d ade Méd i a , em t e rmos de condu t a é t i c a , va l o res e da re l ação
d e s t e c om o am o r . O o b j e t i v o d e s t e t r a b a l h o é i d e n t i f i c a r a
p e r p e t u a ç ã o d e s s e i d e á r i o c a v a l e i r e s c o m e d i e v a l n a o b r a
a n a l i s a d a , c o n f r o n t a n d o a s d e f i n i ç õ e s e l a b o r a d a s p o r F l o r i
( 2 0 0 5 ) c om a s d e o u t r o s a u t o r e s c o n t emp o r â n e o s , a f i m d e
d i scu t i r como o homem mode rno conc i l i a seus con f l i t o s com os
d e s a f i o s c o t i d i a n o s e m b u s c a d e s u a s m e t a s p e s s o a i s ,
man tendo em s i o esp í r i t o obs t i nado de um cava l e i r o med i eva l .
Pa l av ras -chave : Cava l a r i a Med ieva l . Ab i smo . San to Graa l .
S e um h omem r e s o l v e l a n ç a r - s e n o a b i sm o , o q u e
i m p o r t a v e r d a d e i r ame n t e é a s u a d e c i s ã o e n ã o o
t am a nh o d o a b i sm o . ( C a r l o s R i b e i r o , 2 0 0 4 , p . 4 1 ) .
1 I N T R O D U Ç Ã O
Ab i smo ( 2004 ) é um romance b ras i l e i r o esc r i t o pe l o au to r
ba i ano Car l os R i be i r o ( 1 958 - ) . No l i v ro , na r ra -se a h i s t ó r i a de
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um pe rsonagem sem nome – um j o rna l i s t a que a t r avessa uma
f ase de con f l i t os pessoa i s , uma c r i se de i den t i dade – que , ao
passa r f é r i as na casa de seus t i os em Aparados da Se r ra
( l o ca l conhec i do como “ ro t a dos canyons ” , l oca l i z ado em
Cambará do Su l , en t re o R i o Grande do Su l e San t a Ca t a r i na ) , é
conv i dado m i s t e r i osamen te po r um p ro f esso r , que a té en t ão só
o conhec i a a t r avés de seus t ex tos j o rna l í s t i c os , a desce r o
cân i on do I t a imbez i nho e empreende r uma su rp reenden te
busca ao San to Graa l , cá l i c e sag rado no qua l , segundo a l enda
un i ve rsa l que m i s tu ra e l emen tos pagãos e c r i s t ãos con t i da em
A Demanda do San to Graa l ( 2005 ) , Jesus Cr i s t o t e r i a se rv i do a
ú l t ima ce i a aos seus após to l os . Há a i nda re l a t os de que f o i
es te “vaso sag rado ” que , “pos te r i o rmen te , José de Ar ima té i a
usou pa ra reco l he r o sangue do seu co rpo c ruc i f i c a -
do ” ( R IBE IRO , 2004 , p . 66 ) .
O l i v ro con tém 222 pág i nas e é subd i v i d i do em t rês
grandes pa r tes , denom inadas : I ) “O Chamado ” – que desc reve
o p rocesso de convocação pa ra a busca pe l o qua l o he ró i
anôn imo passa ; I I ) “A V i agem ” – co r responde de f a t o à busca
ao San to Graa l no cân i on da reg i ão , o que o au to r de f i ne como
uma “ j o rnada de encan t amen to ” , j á que a busca envo lve d i ve r -
sos e l emen tos m í s t i c os ; e I I I ) “O Encon t ro ” – que co r responde
às descobe r t as rea i s e/ou imag i ná r i as do he ró i , que podem
es t a r t an t o no p l ano f í s i co quan to no ps ico l óg i co .
Na r rado em p r ime i r a pessoa , Ab i smo ( 2004 ) é uma ob ra
de ca rá te r i n t im i s t a , po i s nos reve l a t r aços da pe rsona l i d ade
do p ro t agon i s t a , j á que es te compar t i l h a conosco suas imp res -
sões , emoções , i nqu i e tações e pensamentos . O cená r i o na tu ra l
desc r i t o no l i v ro é para o pe rsonagem um pon to de f uga , j á
que o p ropós i t o de sua i da a t é l á é j us t i f i cado po r e l e mesmo
quando es te d i z : “ [ . . . ] [ p re f i r o ] r eco l he r -me à so l i d ão de um
l uga r quase v i r gem e en t rega r -me po r a l gum tempo ao p raze r
de sen t i r , com a máx ima i n t ens i dade poss íve l , os encan tos e
as be lezas que a i nda possu i . ” ( R IBE I RO , 2004 , p . 1 9 ) .
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2 O I D E Á R I O C A V A L E I R E S C O M E D I E V A L N O H E R Ó I D E
A B I S M O ( 2 0 0 4 )
Em d i ve rsos t r echos do en redo f i cc i ona l e l abo rado po r
Ca r l os R i be i r o , podemos i den t i f i c a r passagens que re t omam o
i deá r i o cava l he i r esco cu l t i v ado nos nob res gue r re i r os da I dade
Méd i a , i deá r i o es te que a lme j ava um homem do t ado de a t r i bu -
t os f í s i cos e mora i s e que f osse capaz de hon ra r com co ra -
gem , f i de l i d ade e c i v i l i d ade a i nves t i du ra que l he f o i conced i da
na o rdem de cava l a r i a . Ag i ndo sempre sob uma condu t a reg i da
por um cód i go de é t i ca , o t í p i co cava le i r o med i eva l deve r i a “ [ . . . ]
se r em toda pa r t e o de fenso r dos f r acos e op r im i dos , o p ro te -
t o r da mu l he r e do ó r f ão , o sus ten t ácu l o das causas
j u s t as . ” ( FLOR I , 2005 , p . 30 ) .
O pe rsonagem sem nome de Ab i smo ( 2004 ) – do ravan te
“He ró i ” ( i n i c i ado com le t r a ma i úscu l a , pa ra ra t i f i c a r o seu g rau
de nob reza enquan to “cava l e i r o dos t empos mode rnos ” ) – ,
apesa r de con f i gu ra r -se como um homem contemporâneo ,
p reenche os requ i s i t os ex i g i dos pe l a o rdem de cava l a r i a , po i s ,
ao se r convocado pe l o p ro fesso r R i c a rdo de Cas te l a pa ra a
j o rnada rumo ao ob j e t o m i t o l óg i co , ouve , do que a pa r t i r de
en t ão t o rna -se seu mes t re , as segu i n t es pa l av ras : “ [ . . . ] É
prec i so t e r d i spon i b i l i d ade de esp í r i t o e co ragem de o l ha r o
mundo po r ângu l os i nsó l i t os , novos e su rp reenden -
t e s ” ( R I BE I RO , 2004 , p . 42 ) , i nd i c ando - l he que e l e se r i a convo -
cado pa ra ta l pe reg r i nação .
É poss í ve l con f i rma r a convocação do He ró i de Ab i smo
( 2004 ) pa ra a f an t ás t i c a busca do San to Graa l quando He lena ,
f i l h a do p ro f esso r R i ca rdo ( que t ambém e ra an t ropó l ogo , h i s t o -
r i ado r e co l ec i onado r de a r t e f a t os an t i gos ) e pa r t e i n te ressada
no ob j e t o sag rado , d i z : “ [ . . . ] Há mu i t o tempo espe rávamos que
se un i sse a nós na busca que p re tendemos . [ . . . ] F l ex i b i l i d ade ,
de l i c adeza , imag i nação e s i nce r i dade não são v i r t udes mu i t o
comuns , a t ua lmen te . ” ( R I BE IRO , 2004 , p . 46 ) . O He ró i , d i spondo
des tes a t r i bu tos , se r i a o cava l e i r o pe r fe i t o pa ra a j o rnada do
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Graa l que e l e s que r i am rea l i z a r , mesmo que es t a não f osse a
sua i n t enção i n i c i a l ao chega r a Apara t os da Se r ra . Há , aqu i ,
um “chamado mode rno ” , uma espéc i e de “p redes t i nação ” na
convocação do He ró i , i de i a seme l han te à p ropagada po r re l i g i -
ões f undamentadas no Cr i s t i an i smo pa ra “chamar ” novos
membros .
O h e r ó i ( p ó s )mo d e r n o n ã o m a i s p o s s u i a a u t o n om i a d e g e r i r o p r ó p r i o d e s t i n o ( a s r e l i g i õ e s m on o t e í s t a s c o n t emp l am um d e s t i n o , n o p l a n o d i v i n o , p a r a t o d o s o s s e r e s h um an o s ) , t am po u c o e x i s t e c o n se n s o s o b r e o q u e é n o b r e , o c e r t o , o e r r a d o , o b em , o b e l o , e t c . ( L I MA , 2 0 04 , p . 1 ) .
An tes de ace i t a r , de f a t o , a sua i da ao f undo do cân i on
pa ra t r aze r à supe r f í c i e o Vaso Sag rado , o He ró i , confuso com
a sequênc i a súb i t a de acon tec imen tos , apresen tou s i na i s de
i nsegu rança em re l ação à j o rnada que es t ava p res tes a
empreende r . Em me i o a d i ve rsas ques tões sob re ace i t a r ou
não a convocação pa ra se r um “cava le i r o dos t empos mode r -
nos ” e resga t a r o ob j e t o sag rado , e l e t i t ubeou : “ [ . . . ] Te r i a eu a
ousad i a de enca ra r os demôn i os do ab i smo e desa f i á - l os ,
conf i an te no pode r do meu escudo , da m inha espada e do meu
va l o r? [ . . . ] ” . ( R I BE I RO , 2004 , p . 58 . ) . Cog i t ando acomodar -se e
não se a t reve r a l ança r -se soz i nho no ab i smo , em uma passa -
gem subsequen te , e l e d i z : “Oh ! Eu pode r i a s imp lesmente não i r
l á . Pode r i a vo l t a r pa ra a m i nha c i dade e a te r -me es t r i t amen te
aos muros da m inha casa , anda r sempre acompanhado e a t en -
t o pa ra qua l que r mov imen to ou ru í dos i ncomuns . ” ( R IBE IRO ,
2004 , p . 58 . ) . Po rém , d i an t e das c i r cuns t ânc i as , não l he res t ava
a l t e rna t i va a não se r desb rava r a f i ssu ra rochosa e desvenda r
o m i s t é r i o que o reservava no f undo do cân i on , a f i na l , se e l e
hav i a s i do convocado pa ra a j o rnada , e ra po rque e l a e ra rea l -
mente necessá r i a e e l e , po r sua vez , o cand i da to i dea l pa ra
rea l i z á - l a . A lém d i sso , ago ra , ou t r as pessoas depend i am de le :
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E u t i n h a i d o l o n g e d em a i s e n ã o e r a p o s s í v e l v o l t a r p a r a c a s a c om o s e n a d a t i v e s s e o c o r r i d o . N ã o m a i s p o d i a c omp a r t i l h a r a i n t i m i d a d e d o q u e e s t a v a m e a c o n t e c e n d o c om a s p e s s o a s d i t a s “ n o rm a i s ” s em o
r i s c o d e t o r n a r -m e , e u t am bém , um a v í t i m a . ( R I BE IRO , 2004 , p . 59 . ) .
Tan to pa ra He l ena quan to pa ra seu pa i ( o p ro fesso r
R i c a rdo ) e ra f undamenta l que o He ró i ace i t asse f aze r a m í s t i c a
v i agem , uma vez que o p ro fesso r , j á t endo t en t ado rea l i z a r a
busca ou t ro ra , f a l hou po r mo t ivos de saúde , e e l a , enquan to
sua ún ica f i l h a , cu i dado ra e companhe i r a , não pod i a de i xá - l o
desamparado . Esses f a t o res con t r i bu í r am pa ra que o He ró i
compreendesse a busca como uma “demanda j us t i f i c áve l ” e
empreendesse a p rocu ra pe l o San to Graa l , j á que o cód i go de
hon ra da cava l a r i a p rev i a que o cava l e i r o deve r i a , r e t omando
as pa l av ras de F l o r i ( 2005 , p . 30 ) , “p ro t ege r as mu l he res ” ,
“de fende r f r acos e opr im i dos ” , t e r p i edade pa ra com os enfe r -
mos e enga j a r -se em p ro l de causas j us tas .
A necess i dade da busca do Graa l es t a r i a l i g ada aos seus
supos tos pode res mág i cos ( de cu ra , p rospe r i dade e paz de
esp í r i t o ) e à sua p resum ida o r i gem ce l es t i a l , como na r ra o
p ro fesso r R i c a rdo enquan to ap resen t a os a rgumen tos pa ra
convence r o He ró i a rea l i z a r a busca . A recupe ração desse
ob j e to po r pa r t e de l es s imbo l i z a r i a um g rande f e i t o , não só
pa ra os que i dea l i z a ram e conc re t i za ram a busca , como pa ra
t oda a human i dade , segundo a f a l a do p ro fesso r :
As t r a d i ç õ e s m a i s a n t i g a s r e f e r em - s e a um v a s o o u t a ç a q u e t e r i a s i d o t a l h a d o p e l o s a n j o s n um a p e d r a c a í d a d o c é u , em um t em p o i m emo r i a l . [ . . . ] O u t r o s a i d e n t i f i c am , a i n d a , c om o o d e s c o n h e c im e n t o t r a z i d o à T e r r a p o r s e r e s d i v i n o s , d e s c e n d e n t e s d o s a n j o s , q u e h a b i t a r am um a t e r r a s a n t a [ . . . ] . D e a l g um a f o rm a , e p o r c am i n h o s o b s c u r o s , o s í m b o l o d e s s a c i v i l i z a ç ã o t e r i a c h e g a d o a t é n ó s m a t e r i a l i z a d o n um o b j e t o s a g r a d o : o r e c i p i e n t e – o m e smo q u e a c o l h e u o v i n h o d a S a n t a C e i a e o s a n g u e d e C r i s t o . A p o s s e d o G r a a l
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 1 6 5 - 1 7 9 , 2 0 1 7
r e p r e se n t a , p o r t a n t o , o r e s g a t e d e s s e c o n h e c i m e n t o s a g r a d o e d e s s a t r a d i ç ã o p r i m o r d i a l q u e p e rm a n e c e o c u l t a . ( R I B E I R O , 2 0 0 4 , p . 6 6 - 6 7 ) .
2 . 1 A C O N D U T A D O C A V A L E I R O S E G U N D O A I G R E J A –
A S P E C T O S R E L I G I O S O S
Ou t ra ca rac te r í s t i c a que re i t e ra a vocação cava l e i r esca
do He ró i é a sua l i g ação com a re l i g i os i dade , não necessa r i a -
mente com a I g re j a , mas com a esp i r i t ua l i d ade , com a l go que
t r anscendesse seu corpo e sua a lma e o l evasse a um es t ado
de esp í r i t o que pe rm i t i s se o au toconhec imento , uma espéc i e de
evo l ução . Ab i smo ( 2004 ) possu i um fo r te t eo r re l i g i oso , j á que
abo rda ques tões esp i r i t ua i s pa r t i cu l a res dos t r ês pe rsonagens
cen t r a i s : o He ró i anôn imo , o p ro fesso r R i ca rdo e a sua f i l h a
He l ena .
A cava l a r i a med i eva l t ambém possu i uma l i g ação com a
I g re j a , j á que , segundo F l o r i ( 2005 , p . 1 7 ) , a pa r t i r do sécu l o X ,
oco r reu a chamada “c r i s t i an i zação do impé r i o ” , quando o c l e ro
passou a i n t e rv i r d i r e tamen te em dec i sões que d i zem respe i t o
à p rá t i c a m i l i t a r , a l ém de es t abe lece r re l ações en t re a fé e o
se rv iço m i l i t a r . A i nda de aco rdo com F l o r i ( 2005 ) , São Ben to ,
mento r da o rdem dos monges bened i t i nos , chega a compara r :
[ . . . ] a v i d a d o c r i s t ã o à v i d a d o s o l d a d o r om an o , f e i t a d e o b e d i ê n c i a , d i s c i p l i n a , c o r a g em , a b n e g aç ã o . E l e p e d e t am b ém a o f i e l , e m um a m e t á f o r a g u e r r e i r a , q u e v i s t a a a rm ad u r a d e D e u s p a r a r e a l i z a r o b om c omb a -t e d a f é , i s t o é , o c i n t u r ã o d a v e r d a d e , a c o u r a ç a d a j u s t i ç a , o s s a p a t o s d o z e l o , o e s c u d o d a f é , o c a p a -c e t e d a s a l v a ç ã o e a e s p a d a d o e s p í r i t o , q u e é a p a l a v r a d e D e u s ( E f é s i o s , 6 : 1 3 - 1 7 ) . ( F LOR I , 2 0 0 5 , p . 1 7 , g r i f o d o a u t o r ) .
A i n t rodução da I g re j a na cava l a r i a med i eva l ab re cam i -
nho pa ra que e l a passe a rea l i z a r , a pa r t i r do sécu lo X I , o
“ r i t ua l de sag ração rea l ” , bem como a en t rega das a rmas aos
171
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 1 6 5 - 1 7 9 , 2 0 1 7
cava l e i r os , “ped i ndo a Deus que a j ude o re i nos d i ve rsos
aspec tos de sua m i ssão : boa j us t i ç a , f i de l i dade à f é , p ro teção
das i g re j as , de fesa de seus i n te resses , ass i s t ênc i a aos pob res
e aos f r acos ” ( FLOR I , 2005 , p . 36 ) . A lém d i sso , após a
“ impo r t ânc i a que assume a cava l a r i a na soc i edade do sécu l o
X I I ” , a I g re j a se i n te ressa pe l a i nves t i dura dos cava l e i r os
( FLOR I , 2005 , p . 43 ) , passando a f aze r pa r t e e fe t i vamen te do
que F l o r i chama de “ l i t u rg i a da i nves t i du ra ” .
Ou t ro f a t o que ocor reu nes te pe r í odo , que t ambém
marcou a f ase de ap rox imação en t re a I g re j a e a cava l a r i a , f o i
o que Cost a ( 200 1 ) chamou de “p rocesso c i v i l i z ado r da I g re j a ” ,
a qua l r ea l i z ava uma ce leb ração re l i g i osa na “ t en t a t i v a de
con te r a pu l são ag ress i va dos cava le i r os ” , que t i nham suas
repu t ações regadas a sangue , “po r me i o de um j u ramento ,
quando o gue r re i r o co l ocava suas mãos sobre re l í qu i as sag ra -
das , mág icas , e f az i a uma sé r i e de p romessas de paz ” . Ta l
l i t u rg i a , a l ém de un i r o c l e ro à o rdem cava le i r esca , apaz i guava
o ód i o en t re os re i nos e t o rnava a condu t a dos cava l e i r os
ma i s nob re , j us t a e pura .
O processo de “ i nves t i du ra à cava l a r i a ” do He ró i de
Ab i smo ( 2004 ) acon tece de mane i r a d i f e renc i ada , j á que , ao
r ecebe r o conv i t e pa ra desce r o cân i on e encon t ra r o cá l i ce
sag rado , o He ró i i n i c i a lmen te f i c a confuso e i nsegu ro , r es i s t e à
convocação , nega a sua “p redes t i nação ” e u t i l i z a uma re fe rên -
c i a à Lenda dos Cava l e i r os da Távo l a Redonda , que t ambém
empreende ram a Demanda do San to Graa l , quando d i z : “ [ . . . ] E
não t enho nenhuma p re t ensão de enca rna r um novo
Pa rs i f a l ! ” ( R I BE I RO , 2004 , p . 47 ) . En t re t an to , depo i s de mu i t o
t i t ubea r , de não se sen t i r me recedo r ou capaz de rea l i z a r
t amanho empreend imen to , de t en t a r r ac i ona l i z a r as i de i as do
p ro fesso r e de recebe r conf i rmações e s i na i s em fo rma de
sonhos e de l í r i o s , o He ró i concebe “o chamado ” e , como “a
busca do San to Graa l é uma busca so l i t á r i a ” ( R I BE I RO , 2004 , p .
88 ) , embarca em sua jo rnada ép ica como um cava l e i r o so l i t á r i o .
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O Pars i f a l c i t ado pe l o He ró i – encon t rado na l i t e r a tu ra
denom inado com var i ações como “Pe rs iva l ” ou “Pe rceva l ” –
se r i a , dos cava le i r os e l e i t os pa ra desempenhar a busca ao
sac ro vaso , o segundo na o rdem de cava l a r i a , l ogo após
Ga l aaz , “o e l e i t o p r i nc ipa l da Demanda ” (Z I ERER , 20 13 , p . 3 -5 ) , j á
que o p r ime i r o t e r i a ced i do à t en t ação t e r rena de enamora r -se
po r uma donze l a g rega e quase t e r comet i do o pecado mor t a l ,
sendo imped i do/sa l vo po r uma “ f o rça d i v i na ” , e o segundo , ao
se r t en t ado veementemente pe l a f i l h a do Re i B ru tus , man tém -
se re l u t an te d i an t e de t a l i nc i t ação . Mesmo que ambos desem -
penhem papé i s f undamenta i s na busca , sua d i s t i nção se dá
a t r avés da ava l i ação de seus respec t ivos g raus de pu reza ,
san t i dade e re t i dão de pensamentos e ações . Ass im se dá a
i den t i f i c ação do He ró i com Pa rs i f a l , um cava l e i r o que , apesa r
de f a l ho , cumpre com as de t e rm inações p resc r i t as no cód i go
de hon ra cava l e i resca .
Mesmo adequando -se ao pe r f i l de um t í p i co cava l e i r o
med ieva l , o He ró i de Ab i smo ( 2004 ) é pe rsonagem de uma epo -
pe i a mode rna que comb i na e l emen tos rea i s e imag i ná r i os , an t i -
gos e con temporâneos . Sua “ i nves t i du ra ” é f e i t a pe l o p róp r i o
pro fesso r R i c a rdo com o aux í l i o sempre p resen te de sua f i l h a
He l ena , que l he f o rnecem , a l ém de d i ve rsas i ns t ruções , “ [ . . . ]
es t a bússo l a , es te mapa e es te manusc r i t o que não deve se r
abe r to a té eu acha r a p l an t a sag rada que deve re i u t i l i z a r pa ra
t e r acesso ao Cas te l o do Graa l . ” ( R I BE IRO , 2004 , p . 1 37 ) .
Depo i s de recebe r t odos os apa ra t os necessá r i os à
j o rnada , e l e , po r f im , sag ra a sua m i ssão e , ago ra conv i c to do
seu des t i no , d i z : “Não se p reocupe , He l ena . [ . . . ] Eu t r a re i o
Graa l . Cus te o que cus t a r , eu o f a re i [ . . . ] . ” ( R I BE I RO , 2004 , p .
88 ) . Ass im , o He ró i se l a o seu i ng resso na “o rdem de cava l a r i a
mode rna ” , que p revê que o cava le i r o deve cumpr i r com o
prome t i do e man te r , ac ima da sua pa l av ra , a sua hon ra .
O h e r ó i é p i c o n a s c e d e d e n t r o p a r a f o r a , r e v e l a - s e e
r e c e b e a c o nv a l i d a ç ã o d o s e u p o vo . S e u s a t o s s ã o
a u t ô n om o s m a s f a z em s e n t i d o p a r a a s u a g e n t e , p o i s
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r e p r e se n t am a n s e i o s c o l e t i v o s d e l i b e r d ad e , p r o s p e r i -
d a d e , j u s t i ç a , e t c . [ . . . ] o h e r ó i é p i c o p ó s -mo de r n o n ã o
t em v a l o r e s p r o n t o s e i n q u e s t i o n á v e i s p a r a v e i c u l a r :
s u a f o r ç a v em d a d i s p o s i ç ã o p e l a b u s c a , a q u i l o q u e o
S an to G r a a l r e p r e sen t a n a ob r a . ( L IMA , 2 004 , p . 2 ) .
2 . 2 A R E L A Ç Ã O D O H E R Ó I C O M A M U L H E R : O A M O R
E M A B I S M O ( 2 0 0 4 ) Ou t ro pon to l evan t ado em Ab i smo ( 2004 ) que con f i rma o
seu d i á l ogo com o mode l o cava le i r esco med i eva l é a re t omada
de aspec tos , mesmo que de modo su t i l , da f o rma como o amor
e ra v i s t o na cava l a r i a a t r avés da re l ação que se es t abe lece
en t re o He ró i e He lena , a f i l h a do p ro fessor R i c a rdo . O nome
“He l ena ” po r s i só é imb r i c ado a ou t ros s i gn i f i c ados j á conso l i -
dados na cu l t u ra un ive rsa l . Na ob ra de Car l os R i be i r o aqu i
ana l i s ada , o nome p róp r i o f az re fe rênc i a d i r e t a t an t o à He lena
de T ro i a , deusa da be l eza e causado ra de gue r ras , quan to à
He l ena , mu l he r do re i Ban da Pequena Bre t anha . A ú l t ima
He l ena c i t ada é espec i a lmen te evocada na ob ra pe l o f a t o de
e l a o r i g i na r um dos ma i s f amosos cava le i r os da co r te do Re i
A r t u r , l e ndá r i o re i da Grã B re t anha , conhec i do pe l os seus
f e i t os ex t r ao rd i ná r i os . De aco rdo com i n f o rmações ob t i das em
T royes ( 2003 , p . 38 ) , a ra i nha He l ena e o Re i Ban , ambos da
Pequena B re t anha , e ram os pa i s de Lance lo t , b ravo cava le i r o
que , f u t u ramen te , i n t eg ra rá o g rupo dos Cava l e i r os da Távo l a Redonda , o rgan i zação cava le i r esca f undada pe l o mesmo Re i
Ar tu r .
A He lena de Ab i smo ( 2004 ) é quem impu l s i ona o He ró i a
r ea l i z a r a busca ao San to Graa l , po r consegu i r envo l vê - l o com
sua be l eza excepc i ona l , seu a r m i s te r i oso , sua vas t a sabedo r i a
e seu encan t amen to . E l a é denom inada pe lo He ró i como “uma
deusa nó rd i c a ” e é desc r i t a po r e l e segundo uma v i são ex t re -
mamen te roman t i zada :
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Ob s e r v e i a s f o rm a s p e r f e i t a s d o s e u c o r p o , mo d e l a d o p o r um t e c i d o b r a n c o e l e v e ; o s o l h o s g r a n d e s , a z u l -c l a r o s ; o s l á b i o s s u g e s t i v o s n a b o c a b em d e s e n h ad a ; o s c a b e l o s l o i r o s e d e s p e n t e a d o s q u e l h e d a v am um t o q u e d e r e b e l d i a , c o n t r a s t a n d o c om a d o c i l i d a d e d a e x p r e s s ã o ; a s c u r v a s p e r f e i t a s d o s q u a d r i s . . . [ . . . ] O s b r a ç o s e r am b em f e i t o s , a s p e r n a s l o n g a s e e s g u i a s , a s m ã o s e o s p é s f i n o s e d e l i c a d o s . O s p e i t o s , a o m e smo t emp o f i r m e s e m a c i o s , s o b r e s s a í am - se s o b o t e c i d o l e v e . P a r e c i a t e r s u r g i d o d o c r u z ame n t o e n t r e t r i b o s b á r b a r a s d o n o r t e e a c i v i l i z a ç ã o g r e c o - r oman a , m a s h a v i a n o s s e u s g e s t o s um l e v e t o q u e o r i e n t a l , um a c a l c u l a d a s u bm i s s ã o d e f ême a , c e r t ame n t e e n g a -n a d o r a . ( R I B E I R O , 2 0 0 4 , p . 3 2 - 3 3 , g r i f o n o s s o ) .
A de l i c adeza imp ressa na mane i r a român t i c a que o He ró i
desc reve He lena f i c a a i nda ma i s n í t i d a quando , após a p r ime i r a
v i s i t a à mansão do a rqueop té r i x ( como e l e de f i ne a casa do
p ro fesso r ) , es t e é a to rment ado po r uma sé r i e de pensamentos
i nqu i e t an tes e pe r t u rbado res , sendo acome t i do po r um sonho/
de l í r i o no qua l e l e i dea l i z a He l ena enquan to mu l he r , f azendo j us
ao i deá r i o do amor co r t ês , que es t ava apenas no p l ano das
i de i as , mas p ro j e tava -se no p l ano da rea l i d ade , a t r avés do
sac r i f í c i o e se rv i dão i nd i r e t a à amada . Em uma espéc ie de
a l uc i nação , o He ró i depa ra -se com He l ena to t a lmen te em seus
b raços , como se f osse em ped i do de a j uda ou em ag radec i -
mento po r a l gum f avo r ou se rv i ço p res tado . Na passagem a
segu i r , ass im como na an t e r i o r , a desc r i ç ão es tá pe rmeada
pe l a pe rmanênc i a de i de i as o r i undas do Roman t i smo , p r i nc i pa l -
mente na i ns i s t ênc i a da co r b ranca dos e l emen tos , bem como
na obsessão e i dea l i z ação ex t rema da mu l he r amada :
E l a c h e g a v a i n e s p e r a d ame n t e , n o m e i o d a n o i t e , c om
um v e s t i d o b r a n c o , l e v e e e s v o a ç an t e , c omo a s c o r t i -
n a s b r a n c a s a g i t a d a s p e l o v e n t o f r i o d a n o i t e q u e
p e n e t r a v a p e l a s j a n e l a s a b e r t a s d a m a n s ã o . A p r o x im a -
v a - s e d e v ag a r e n vo l t a em n u ve n s [ b r a n c a s ] e s o r t i l é -
g i o s , v i n d a d e um m u nd o m í t i c o p e r d i d o em e r a s
d i s t a n t e s . E l a p a r a v a em f r e n t e a m im e , c om um
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t o q u e q u a s e i m p e r c e p t í v e l d o s d e d o s , d e s am a r r a v a
um l a ç o d o v e s t i d o , q u e c a í a i n ú t i l a o s s e u s p é s .
( R I B E I R O , 2 0 04 , p . 5 1 - 5 2 , g r i f o n o s s o ) .
A i nda em seu de l í r i o , o He ró i ca rac te r i za He l ena como
“ i n f i n i t as mu l he res – í n d i as , neg ras , b rancas , o r i en t a i s ” , como
se ne l a es t i vessem a l i r ep resen t adas todas as mu l he res do
mundo , ass im como a f i rma ma i s uma vez , assegu rando a
un ive rsa l i d ade de sua be l eza : “E l a e ra , s imu l t aneamen te , uma
só e t odas as mu l he res do mundo [ . . . ] . ” ( R I BE I RO , 2004 , p . 52 ) .
A be l eza de He lena é , pa ra o He ró i , t ão exp ress iva que , em
dado momento , e l e chega a compará - l a com Ne fe r t i t i , “ r a i nha
do Eg i t o An t i go , p r i nc ipa l esposa do f a raó Akhena ton e f amosa
por sua exube ran te be l eza ” ( S ILVA , 20 1 1 ) . Todav i a , a l go o
imped i a de man te r He l ena j un t o a s i , po i s “ [ . . . ] hav i a uma neb l i -
na [ névoa b ranca ] que se adensava , e eu j á não pod i a vê - l a
com c l a reza . ” ( R I BE IRO , 2004 , p . 53 , g r i f o nosso ) . Essa neb l i n a
se r i a a imposs i b i l i d ade de o cava l e i r o t e r uma mu l he r , j á que
es te :
[ . . . ] s e a u s e n t a f r e q u e n t em en t e p a r a a g u e r r a o u t o r n e i o ; e l e r e t o r n a [ q u an d o r e t o r n a ] e n l am e a d o , f e r i -d o , c o b e r t o d e s a n g u e e d e s u o r , i n c a p az d e c um p r i r o s e u o f í c i o : é p r e c i s o e n t ã o c u i d a r d e l e , v e l á - l o , e s p e r a r um h i p o t é t i c o r e e s t a b e l e c i m e n t o d e s u a s q u a l i d a d e s f í s i c a s . ( F LO R I , 2 0 0 5 , p . 1 5 0 ) .
A l ém do no tó r i o endeusamen to f em in i no , é dada em
Ab i smo ( 2004 ) uma va l o r i zação à mu l he r , po i s es ta de i xa de
se r c i t ada apenas como uma f i gu ra que p rovoca os sen t imen -
t os nega t i vos ( sob re t udo a l uxú r i a , p r i nc i pa l t en t ação dos
cava l e i r os ) e passa a t e r uma imagem pos i t i v a , sendo uma
pa r t i c i pan t e a t i va na esco l ha do nob re gue r re i r o , a j udando a
des i gna r o n í ve l de pureza dos cand i da t os e l e i t os .
Um a s p e c t o f u n d ame n t a l a s e r e n f a t i z a d o é q u e s ã o a s d o n z e l a s / d am a s o e l e me n t o f u n d am en t a l a
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d e t e rm i n a r o g r a u d e p u r e z a d o s e l e i t o s . T am bém a j u d am a i d e n t i f i c a r a q u e l e s q u e n ã o s ã o d e s t i n a d o s a o s u c e s s o n a d em an d a d o G r a a l em v i r t u d e d e m o s t r a r c a v a l e i r o s p o s s u i d o r e s d e v á r i o s p e c ad o s , c om o a l u x ú r i a e o u t r a s f a l t a s r e l a c i o n a d a s à f a l h a d e c a r á t e r [ . . . ] . ( Z I E R E R , 2 0 1 3 , p . 3 ) .
A re l ação amor x cava l a r i a , apesa r de bas t an te p rob l e -
mat i zada , a i nda es t á ce rcada po r i nce r tezas , t an t o que F l o r i
( 2005 , p . 1 53 ) l evan t a a segu i n te ques t ão : “Amor e cava l a r i a
são a l i ados ou i n im i gos? ” Todav i a , apesa r de t odos os f a t o res
que i n te r fe rem na v ida sen t imen ta l de um cava l e i r o , não há
dúv i das de um t i po de cava l e i r o que sab i a es t abe lece r um
equ i l í b r i o en t re a se rv i dão na o rdem de cava l a r i a e a v i da
amorosa , que é denom inado po r F l o r i como “o cava l e i r o
co r tês ” . O mesmo F l o r i ( 2005 , p . 1 63 ) d i z ma i s ad i an te : “O
cava l e i r o não deve ser apenas um audac i oso so l dado e um f i e l
vassa l o , e l e t ambém deve aumenta r seu va l o r humano pe l o
amor de sua dama , po r suas v i r t udes de homem da co r te . ”
I sso de i xa c l a ro que a mu l he r , pa ra o cava l e i r o , não é bené f i c a
nem ma l é f i c a , po i s o que de f i ne a sua condu ta pe ran te a
o rdem de cava l a r i a e l he assegu ra o a l c ance de suas me tas
enquan to homem gue r re i r o se rão os seus va l o res , seus pensa -
mentos re tos e a benevo l ênc i a do seu co ração .
3 C O N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S
Se o He ró i de Ab i smo ( 2004 ) v i vesse en t re os sécu l os X
e X I I , se r i a um fo r te cand i da t o a se r um cava l e i r o med i eva l ,
com l ouvo r e d i s t i nção . En t re t an to , seu esp í r i t o desb ravado r e
sua pe rseve ran t e von t ade de cumpr i r sua m i ssão não o
impedem de t o rna r -se um “he ró i pós -moderno ” , como de f i ne
L ima ( 2004 , p . 1 ) . Toda a sua j o rnada , que cu lm i na ( ou não ) no
encon t ro com o San to Graa l , un i f i c a em um só se r o homem
mode rno – i ncansáve l quando o assun to são os seus i n t e res -
ses e o a l c ance de seus ob j e t i vos – e o cava l e i r o med ieva l –
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que abd i ca da sua p róp r i a v i da pa ra segu i r a vocação cava l e i -
r esca e se rv i r a um senho r do qua l , mu i t o ce r t amente , ob t e rá
apenas o reconhec imen to , a hon ra e o ga l a rdão .
Con tudo , é poss í ve l i n f e r i r , po r me i o da l e i t u ra e aná l i se
da ob ra , que o que move o He ró i – a l ém da busca pe l o San to
Graa l – é a busca po r s i mesmo . Apesa r do seu cons t an te
conf l i t o i n t e rno e de suas i númeras i nqu i e t ações ace rca da
v i da t e r rena , ao l ongo de t oda a aven tu ra ( ou desven tu ra ) o
He ró i p rese rva seus va l o res e compor t amen tos , apesa r das
adve rs i dades da sua saga . A t odo o momento e l e se ques t i ona
sob re d i ve rsos aspec tos de sua v i da , po rém , sempre se pe rm i -
t i ndo conhece r novas co i sas , ade r i r a novas i de i as , desb rava r
novos l uga res , na t en t a t i v a de da r novo (s ) s i gn i f i c ado ( s ) à sua
ex i s tênc i a .
Ta l como se ap resen t a , o He ró i do romance de Car l os
R i be i r o ( 2004 ) é o homem con temporâneo : che i o de ques tões ,
i nsa t i s f ações e medos . No en t an to , esse mesmo homem procu -
ra a t odo i ns t an te – como um f i da l go e vassa l o cava l e i r o med i -
eva l – reun i r as suas a rmas , p repa ra r o seu a rsena l de
comba te , en f ren t a r as adve rs i dades e pa r t i r , empenhando -se a
encon t ra r ao f im da j o rnada o seu “G raa l par t i c u l a r ” .
A b s t r a c t : I n A b i sm o ( 2 0 0 4 ) , C a r l o s R i b e i r o r e s c u e s t o t h e p r e s e n t t i m e a p o s tmo d e r n H e r o i n s e a r c h o f t h e H o l y G r a i l t h a t , a l t h o u g h i n s e r t e d i n a t o t a l l y d i f f e r e n t c o n t e x t o f t h e s c e ne o f a n ov e l o f med i e v a l c av a l r y , c h a r a c t e r i z e s i t s e l f b y resemb l i ng t o t he B rave kn i gh t s o f t he M idd l e Ages i n t e rms o f e t h i c a l c o nduc t , v a l u e s a n d t h e r e l a t i o n s h i p o f t h i s w i t h l o ve . T h e o b j e c t i v e o f t h i s w o r k i s t o i d e n t i f y t h e p e r p e t u a t i o n o f t h i s m e d i e v a l c h i v a l r i c i d e o l o g y i n t h e w o r k a n a l y z e d , con f ron t i ng t he de f i n i t i ons e l abo r a t ed by F l o r i ( 2005 ) w i t h t hose o f o t h e r c o n t empo r a r y a u t h o r s , i n o r d e r t o d i s c u s s h ow t h e mode rn man conc i l i a t es h i s con f l i c t s w i t h the da i l y cha l l enges i n s e a r c h o f h i s P e r s o n a l g o a l s , m a i n t a i n i n g i n h i m s e l f t h e obs t i na te sp i r i t o f a med i eva l kn i gh t . Keywords : Med i eva l Cava l r y . Ab i smo . Ho l y Gra i l .
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I S S N 2 2 3 6 - 3 3 3 5
R E F L EXÕ E S SO B R E A HO MOA F ET I V I DA D E NO
CO NTO “ AQ U ELE S DO I S ” D E CA I O F E R NA NDO
A BR EU
And r é a S a n t o s C o s t a A l e x a n d r e P e d r o s a
U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e F e i r a d e S a n t a n a ( U E F S )
L i c e n c i a t u r a em L e t r a s V e r n á c u l a s
a n n d r e a . p e d r o z a@ gma i l . c om
P r o f . M a . A n d r é a S i l v a S a n t o s ( O r i e n t a d o r a )
U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e F e i r a d e S a n t a n a ( U E F S )
D e p a r t am e n t o d e L e t r a s e A r t e s
d e a a n i t a @ h o tm a i l . c om
R e sumo : E s t e t r a b a l h o t em c omo ob j e t i v o p r o p o r uma an á l i s e
sob re a d i sc r im i n ação homossexua l no amb i e n t e de t r aba l ho , a
p a r t i r d e “A que l e s d o i s ” , c o n t o i n t e g r a n t e d o l i v r o Mo r a ng o s m o f a d o s d e C a i o F e r n a n d o A b r e u ( 1 9 8 3 ) . O t e x t o c o n t em p l a
uma abo rdagem de cunho b i b l i og rá f i co e qua l i t a t i vo , pa r t i ndo de
uma l e i t u r a c r í t i c a d a n a r r a t i v a s u p r a c i t a d a , a l i a d a a o d i á l o g o
c om a u t o r e s q u e d i s c u t e m a h om o a f e t i v i d a d e . A n a r r a t i v a
con tex tua l i z a as med i das pun i t i v a s , so f r i das pe l o s pe rsonagens
R a u l e S a u l , o s q u a i s c o m e ç a m a s o f r e r p r e c o n c e i t o n o
amb i en t e de t r aba l ho , uma vez que as pessoas supõem que os
d o i s m a n t êm um a r e l a ç ã o í n t i m a . O r e l a c i o n am e n t o s e i n i c i a
como uma am izade marcada po r e l emen tos a f e t i vos e e ró t i c os ,
o s q u a i s s ã o p e r c e b i d o s d e m a n e i r a n e g a t i v a . A b r e u ( 1 9 8 3 )
t r a z e m s e u c o n t o u m “ r e a l i s m o ” d e t a l h a d o e t e r m o s d e
d e n ú n c i a q u e p r o p i c i am um a p r o f u n d a d i s c u s s ã o a c e r c a d a
h o m o a f e t i v i d a d e e s u a s i m p l i c a ç õ e s . E n t r e o s a u t o r e s
c on su l t a d o s , c i t amo s F o u c au l t ( 2 0 04 ) , L o p e s ( 2 0 0 2 ) , P r a d o e
Machado ( 2008 ) e P r i o re ( 20 1 2 ) .
P a l a v r a s - c h a v e : H omo a f e t i v i d a d e . P r e c o n c e i t o . Amb i e n t e d e
T raba l ho . Ca i o Fe rnando Abreu .
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1 I N T R O D U Ç Ã O
De aco rdo com Rod r i go Gomes ( 20 15 ) , em seu a r t i go
“Me rcado de t r aba l ho b ras i l e i r o a i nda é hos t i l à popu l ação
LGBT ” , pub l i c ado na rev i s ta e l e t rôn ica RBA (Rede B ras i l A tua l ) , a ma i o r i a das empresas b ras i l e i r as es t ão l onge de p romove r a
d i ve rs i dade e o respe i t o à popu l ação LGBT (Lésb icas , Gays , B i ssexua i s e T ransexua i s ) . A i nda de aco rdo com Gomes ( 20 15 ) ,
em pesqu i sa rea l i z ada pe l a consu l t o r i a San to Caos em São
Pau l o , 43% dos i nves t i gados reve l a ram t e r so f r i do p reconce i t o
dev i do à sua o r i en t ação sexua l ou i den t i dade de gêne ro . Ao
t odo f o ram en t rev i s tados 230 i nd iv í duos en t re ps i có l ogos ,
ps i qu i a t r as , advogados e p ro f i ss i ona i s LGBT de 14 es t ados
b ras i l e i r os . Des te t o t a l , 5 1% do sexo mascu l i no e 49% do sexo
f em in i no , sendo que 35% são ou f o ram t r aba l hado res de
empresas de pequeno po r t e , 1 2% de po r t e méd i o , 27% de
empresas g randes e 25% de empresas mu l t i n ac i ona i s . A
re fe r i da pesqu i sa a i nda reve l a que , pa ra 52% dos
en t rev i s t ados , a pos i ção da empresa quan to à d i ve rs i dade
sexua l é f avo ráve l , 35% apon t am as i ns t i t u i ções como neu t ras ,
e 1 3% as i nd i c am como con t rá r i as à i nc l usão e/ou pe rmanênc i a
de LGBT em seus quad ros de f unc i oná r i os . Ou t ros 1 3%
responde ram t e r en f ren t ado d i f i c u l da des pa ra consegu i rem
emprego dev i do à sua o r i en t ação sexua l .
D i an te do expos to , no t a -se que , apesa r de a l guns avan -
ços , uma pa rce l a da soc i edade a i nda vê a ques tão da homos -
sexua l i d ade com p reconce i t o e d i sc r im i nação , man i f es t ando -se
de mane i r a ra i vosa , po r en t ende r a homossexua l i d ade como
condu ta marcadamen te imo ra l , a t r avés do exe rc í c i o f unes to de
domes t i c a r a f o rça na tu ra l do sexo , c r i ando um mo l de imag i ná -
r i o de f o rma de amar , como um mode l o que de i xa de f o ra as
mane i r as j u l gadas “anorma i s ” .
Essa espéc i e de pa t ru l hamen to se f az de f orma exp l í c i t a ,
avançando sob re as pessoas , a t rope l ando seus d i r e i t os num
m i s to de pe rp l ex i dades e de pu ra con t r ad i ç ão , j á que as ações
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são respa l dadas com base no p reconce i t o e sem amparo l ega l ,
p r i nc i pa lmen te em um momen to em que a o r i en t ação sexua l e
as re l ações homoafe t i vas são cons t i t u t i v as de l u t as em um
espaço amp l o , t enso e p l u ra l . Ad i an t amos um pouco do t ema a
se r t r a t ado no b reve es tudo sob re a homoa fe t i v i dade e suas
i mp l i cações , pa r t i ndo da na r ra t i v a de “Aque l es do i s ” , do esc r i -
t o r Ca i o Fe rnando Abreu .
2 D E S E N V O L V I M E N T O
De aco rdo com Arna l do Nogue i r a J r . ( 20 1 6 ) , Ca i o Fe rnando
Abreu , au to r do l i v ro Morangos mofados ( 1 983 ) no qua l se
encon t ra o con to “Aque l es do i s ” , nasceu em 1 2 de se t embro
de 1 948 , em San t i ago ( RS ) , e f a l eceu em feve re i r o de 1 996 .
Ten tou cu rsa r Le t r as e depo i s Ar tes Cên i cas , mas não
consegu i u conc l u i r nenhum dos cu rsos . Abandonou ambos
pa ra se ded i ca r ao t r aba l ho j o rna l í s t i c o , a tuando em rev i s t as
como Ve ja e Manchete , a lém de co laborar em grandes jorna is .
Sabendo-se que e l e e ra gay assum ido , podemos cons i de -
ra r que a sua l i t e r a tu ra exp ressa uma l u t a con t r a o p reconce i -
t o e a d i sc r im i nação aos homossexua i s . O re fe r i do con to
ap resen t a um na r rado r que expõe ao l e i t o r aspec tos da
sub j e t i v i dade das pe rsonagens , reve l ando expe r i ênc i as de v i da ,
pe rmeadas po r angús t i a , f r ag i l i d ades , so l i d ão e dese j os não
compreend i dos e p rá t i c as que exc l uem os que não se
enquad ram nos mode los soc i a lmen te es t abe l ec i dos , dese j ados
como pe rmanen t e s , co r re t os e “no rma i s ” , demonst rando o
grande desconfo r t o de pessoas no t ocan te à re l ação
homoa fe t i va em uma soc iedade , cu j as reg ras são p ré -
de te rm i nadas e t i das como i r r evogá ve i s . Sob re esse aspec to ,
P rado e Machado ( 2008 , p . 33 ) d i zem :
N a m e d i d a em q u e a s r e g r a s n o rm a t i v a s d a s o c i e d a d e
s e v o l t am p a r a o c o n t r o l e d o c o r p o , a s e x u a l i d a d e s e
t o r n a um e l eme n t o i m p o r t a n t e n a p r o d u ç ã o d e ss a s
d i f e r e n c i a ç õ e s i d e n t i t á r i a s , o q u e n o s l e v a a b u sc a r
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um a c h a ve d e c om p r e e n sã o d a s e x u a l i d a d e q u e i n c o r -
p o r e um a n o ç ão d e p o d e r . A s e x u a l i d a d e e a s p r á t i -
c a s s e x u a i s s ã o c o n s t r u ç õ e s s o c i a i s i n t r i n s e c amen t e
r e l a c i o n a d a s c om a s m ú l t i p l a s d i m e n s õ e s s i m b ó l i c a s e
e s t r u t u r a i s d e d e t e rm i n a d a s o c i e d ad e .
Pa ra a ma i o r i a das soc i edades oc i den t a i s , o t ema homos -
sexua l i d ade f o i e t em s i do conceb i do como um t abu em mu i t os
momen tos da h i s t ó r i a . No B ras i l , po r exemp l o , du ran te o pe r í o -
do da d i t adu ra m i l i t a r , o homoe ro t i smo fo i r ep r im i do pe l o reg ime
po l í t i c o de uma soc i edade au to r i t á r i a .
De aco rdo com Cyro Robe r t o de Me l o Nasc imen to ( 20 14 ) ,
em sua d i sse r t ação de mes t rado Homoafe t i v i dade e abe r tu ra po l í t i c a em con tos de Ca i o Fe rnando Abreu , a ob ra do esc r i t o r
gaúcho t em s i do ap rec i ada po r d i ve rsas gerações , envo l vendo
abo rdagens sob um espec t ro de rep ressão soc i a l .
Pub l i c ado em 1 982 , no l i v ro Morangos mo fados , o con to
em ques tão t r az uma na r ra t i v a sob re a p rob l emá t i c a de uma
re l ação homoa fe t i va en t re do i s homens , o que esba r ra em uma
soc iedade de pensamen to conse rvado r e ime rsa no cu l t o de
va l o res t r ad i c i ona i s , que não compreende a d i ve rs i dade ,
negando às pessoas o d i r e i t o de assum i rem , po r exemp l o , a
sua sexua l i d ade .
A h i s t o r i ado ra Mary De l P r i o re ( 20 1 1 ) , em seu l i v ro
H i s t ó r i as í n t imas : sexua l i d ade e e ro t i smo na h i s t ó r i a do B ras i l , abo rda conce i t os sobre sexua l i d ade e e ro t i smo , bem como o
modo como ques tões sob re es tes assun tos de i xou de se r
ev i t ado , t o rnando -se um dos t emas ma i s comen tados pe l a
soc iedade a t ua l . Souza ( 20 12 ) i n fo rma -nos que , ao l ongo das
ú l t imas décadas do sécu l o XX , houve mu i t as mudanças na
v i vênc i a da sexua l i d ade b ras i l e i r a .
En t re os sécu los XV I e XV I I , a v i da co t i d i ana e ra regu l a -
ment ada po r l e i s he t e rono rmat i vas que l im i t avam a i n t im i dade
dos i nd i v í duos . A esse respe i t o , d i z Mary De l P r i o re ( 20 1 1 , p .
1 3 ) : “ [ . . . ] a noção de i n t im i dade no mundo dos homens en t re os
sécu l os XV I e XVI I I se d i f e renc i a p ro fundamente daque l a que
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é a nossa no i n í c i o do sécu l o XX I . ” As p rá t i c as sexua i s en t re
casa i s e ram r i go rosamente con t ro l adas pe l a I g re j a . Todav i a ,
apesa r de t odo con t ro l e , os chamados desv i os sexua i s como a
homossexua l i d ade con t i nuavam p resen tes .
No sécu l o X IX , a soc iedade assoc i ava a homoa fe t i v i dade
a um t i po de d i s f unção pa to l óg i c a , em que os i nd i v í duos e ram
t i dos como doen tes ps i copa to l óg i cos e e ram v i s t os como
pe rve r t i dos e ano rma is . Foucau l t ( 1 988 ) apon t a que a sexua l i -
dade do i nd i v í duo é regu l amen t ada po r um d i spos i t i vo denom i -
nado “d i spos i t i vo da sexua l i d ade ” . Es te d i spos i t i vo é uma p rá t i -
ca d i scu rs i va que pode se o r i g i na r em um dado momen to da
h i s t ó r i a e ab range d i scu rsos e dec i sões regu l amen t ados po r
l e i s . Ace rca da homossexua l i d ade , Foucau l t ( 2007 , p . 233 -234 ,
g r i f o do au to r ) pon tua :
F o i p o r v o l t a d e 1 8 7 0 q u e o s p s i q u i a t r a s c omeç a r am a
c o n s t i t u i - l a c om o o b j e t o d e a n á l i s e m éd i c a : p o n t o d e
p a r t i d a , c e r t am en t e , d e t o d a um a s é r i e d e i n t e r v e n -
ç õ e s e d e c o n t r o l e s n o v o s [ … ] . A n t e s e l e s e r am
p e r c e b i d o s c omo l i b e r t i n o s e à s v e z e s c omo d e l i n -
q u e n t e s ( d a í a s c o n d e n a ç õ e s q u e p o d i am s e r b a s t a n t e
s e v e r a s [ … ] . A p a r t i r d e e n t ã o , t o d o s s e r ã o p e r c e b i d o s
n o i n t e r i o r d e um p a r e n t e s c o g l o b a l c om o s l o u c o s ,
c om o d o e n t e s d o i n s t i n t o s e x u a l . M a s , t om a n do a o p é
d a l e t r a t a i s d i s c u r s o s e c o n t o r n a n d o - o s , v em o s
a p a r e c e r r e s p o s t a s em f o rm a d e d e s a f i o : e s t á c e r t o ,
n ó s s omo s o q u e v o c ê s d i z em , p o r n a t u r e z a , p e r v e r -
s ã o o u d o e n ç a , c om o q u i s e r em . E s e s om o s a s s i m ,
s e j am o s a s s i m e s e v o c ê s q u i s e r em s a b e r o q u e n ó s
s om o s , n ó s m e smo s d i r em o s , m e l h o r q u e v o c ê s .
O sécu lo XX , marcado po r g randes t r ans fo rmações ,
adv i ndas , po r exemp l o , da i ns t au ração da Repúb l i c a , bem como
os i dea i s de mode rn i dade , é pe rmeado po r mu i t os avanços e
recuos no que d i z respe i t o à sexua l i d ade . Sendo ass im , os
homossexua i s que an t es es t avam f adados a v i venc i a r seus
a f e tos às escond i das , l onge dos o l hos da soc i edade ,
186
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 1 8 1 - 1 9 5 , 2 0 1 7
r ep r im i dos , j u l gados , t i dos como po r t ado res de de f i c i ênc i a
ps i copa to l óg i c a , doen tes de compor t amento esqu i zo f rên i co ,
ganham espaço po l í t i c o po r f o rça de mu i t a l u t a , r eve r tendo
s i t uações c r í t i c as , buscando d i scu t i r sob novas pe rspec t i vas a
ques t ão do g rande ma l -es t a r dos g rupos d i sc r im i nados . Do ra -
van te , “ [ . . . ] compor t amentos homossexua i s se ap rop r i a r am de
espaços u rbanos e m id i á t i c os de f o rma revo l uc i oná r i a , exp l i c i -
t ando a rec i p roc i dade en t re o Es t ado , o me rcado e a cu l t u -
r a ” ( PRADO; MACHADO, 2008 , p . 30 ) .
Ao pensa rmos a homoa fe t i v i dade , ou t r a pa l av ra en t r a em
cena : a homofob i a . Com es t a , apa rece uma gama de compor t a -
mentos que desconhecem a a l t e r i dade , que tem a t i t udes ,
mu i t as vezes , assass i nas . Segundo Caro l Pa t roc ín i o ( 20 15 ) ,
homofob i a é a ave rsão a pessoas homossexua i s , que pode se
man i f es t a r t an to em fo rma de ag ressões f í s i c as , como t ambém
a t r avés de uma v i o l ênc i a que , se não é co rpo ra l , se não f e re
na ca rne ou não t i r a sangue , a t r avessa pos tu ras que t ambém
pe rme i am o nosso co t i d i ano e que acompanhamos no con to
“Aque l es do i s ” , de Ca io Fe rnando Abreu . Acha r que um su j e i t o
homossexua l não pode t r aba l ha r em uma repa r t i ç ão púb l i c a ,
po i s es t a r i a co l ocando a mora l e os bons cos tumes em r i sco , é
um exemp l o de homofob i a . É j us t amen te essa conf i gu ração que
o re f e r i do con to ap resen ta : o p reconce i t o con t r a do i s co l egas
de t r aba l ho : Rau l e Sau l .
A amb ien t ação do con to g i r a em to rno da cons t rução de
uma am izade , o i n í c i o de um supos to re l ac i onamen to homoa fe t i -
vo d i sc re t o en t re do i s co legas de t r aba l ho , r eve l ando -se de
mane i r a bas t an te de l i cada pa ra e l e s p róp r i os e pa ra os dema i s
f unc i oná r i os da repa r t i ç ão , a pa r t i r do momento em que as
pe rsonagens descob rem a f i n i dades em suas p re fe rênc i as re l a -
c i onadas a f i lmes e mús i cas .
P a s s a r am n o m e smo c o n c u r s o p a r a a m e sm a f i r m a ,
m a s n ã o s e e n c o n t r a r am d u r a n t e o s t e s t e s . F o r am
a p r e s e n t a d o s n o p r i m e i r o d i a d e t r a b a l h o d e c a d a um .
D i s s e r am p r a z e r , R a u l , p r a z e r , S a u l , d e p o i s c omo é
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me smo s e u n om e? S o r r i n d o d i v e r t i d o s d a c o i n c i d ê n c i a .
M a s d i s c r e t o s , p o r q u e e r am n o v o s n a f i r m a e a g e n t e ,
a f i n a l , n u n c a s a b e o n d e e s t á p i s a n d o ( A B R EU , 1 9 8 3 , p .
1 3 3 ) .
O na r rado r t en t a exp l i c a r como a re l ação dos homens se
i n i c i a pe l a descobe r ta de co i sas que pa recem s imp l es , um
gos to em comum , po r exemp l o , e va i c rescendo em cons i s tên -
c i a a fe t i v a . Os l aços de am izade c rescem , a re l ação se t o rna
ma i s p róx ima . Os do i s começam a sa i r j un tos pa ra ba rz i nhos ,
conve rsam sob re vá r i os assun tos , d i scu tem sob re a f u t i l i d ade
das pessoas e de como i s t o é o opos to dos do i s j ovens , f a l am
como se sa í r am ma l em re l ac i onamen tos an te r i o res , en t re
ou t r as co i sas , po rém tudo de mane i r a bem d i sc re t a . Ve j amos :
C r u z a v am - se s i l e n c i o s o s , m a s c o r d i a i s , j u n t o à g a r r a f a
t é r m i c a d o c a f e z i n h o , c om en t a n d o o t em po o u a c h a t i -
c e d o s e u t r a b a l h o , d e p o i s v o l t a v am à s s u a s m e s a s .
[ … ] d u r o u t em po , a q u i l o . E t e r i a d u r a d o m u i t o m a i s ,
p o r q u e s e r em a s s i m f e c h a d o s , q u a s e r em o t o s , e r a um
j e i t o q u e t r a z i am d e l o n g e . ( A B R EU , 1 9 8 3 , p . 1 3 4 ) .
A pa r t i r do t r echo expos to , podemos pe rcebe r o rece i o
de Rau l e Sau l em da rem a l gum “passo e r rado ” no l oca l de
t r aba l ho . Os do i s pe rmanec i am sempre a t en tos , ev i t avam
qua l que r a t i t ude comprometedo ra , po i s sab i am que e ram v i g i a -
dos o t empo t odo . A pos tu ra de les reve l a que t i nham consc i -
ênc i a de que seus dese j os , uma vez desve l ados , não se r i am ,
na v i são c r í t i c a dos co l egas de t r aba l ho , cons i de rados os ma i s
ap rop r i ados . Na repa r t i ç ão , Rau l e Sau l escond i am seus sen t i -
mentos , o que e ra uma fo rma de p ro t eção .
Segundo Den í l son Lopes ( 2007 ) , em seu t ex to “Po r uma
nova i nv i s i b i l i d ade ” , a i nv i s i b i l i d ade den t ro da po l í t i c a de i den t i -
dade t i nha um sen t i do nega t ivo , t a l vez ho j e possa s i gn i f i c a r
a l go d i f e ren te . O t o rnar -se i nv i s í ve l em uma soc iedade m id i á t i c a
na qua l t odos que rem se r v i s t os/pe rceb i dos pode se r uma
es t r a tég i a pe ran t e o pode r op resso r das c l asses dom inan tes .
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Contudo , e l e de i xa c l a ro que essa i nv i s i b i l i d ade não s i gn i f i c a
um assu j e i t amen to ao s i l e nc i amen to e , necessa r i amen te , vo l t a r
ao “a rmár i o ” , d i gamos ass im . Mas ao con t rá r i o , a i nv i s i b i l i d ade e
o s i l ê nc i o podem se r cons i de rados como uma pausa pa ra a
re f l exão de um cam inho pa ra o ou t ro , podendo l eva r à empat i a
e ao respe i t o , e ass im l i d a r com as reg ras no r teado ras do
amb i en te de t r aba l ho . E comp l ementa ressa l t ando :
E u a r g um en t a r i a em f a vo r d a i n v i s i b i l i d a d e . A g o r a o
s i l ê n c i o p o d e v o l t a r a n ã o s i g n i f i c a r n e c e s s a r i am en t e
m o r t e . D e f e n d e r a i n v i s i b i l i d a d e n ã o s i g n i f i c a v o l t a r
p a r a o c l o s e t mas c o n t i n u a r a c o n c l am aç ã o [ … ] p o r
ma i s s u t i l e z a e m e no s c o n f r o n t o n a s n o s s a s e s t r a t é -
g i a s d i a n t e d o c r e sc e n t e c o n se r v a d o r i smo d o s d i s c u r -
s o s d e v i s i b i l i d a d e , a o me smo t em po , d i a n t e d a n e c e s -
s i d a d e d e d i á l o g o c om o u t r o s s u j e i t o s n a e s f e r a p ú b l i -
c a . ( L O P ES , 2 0 0 7 , p . 1 9 ) .
A re l ação en t re os do i s começa a se es t re i t a r . As pe rso -
nagens começaram a pe rcebe r que t i nham vár i os ou t ros
pon tos em comum , a l ém de c i nema , passando a se encon t ra r
com ma i s f r equênc i a den t ro e f o ra da repar t i ç ão . I s to começa
a chamar a a t enção dos co l egas , que p resumem que en t re os
do i s hav i a uma “es t r anha ” e sec re t a ha rmon i a . “As moças em
vo l t a esp i avam , às vezes coch i chando sem que e les pe rcebes -
sem” (ABREU , 1 983 , p . 1 34 ) .
O a f e to en t re os do i s chega a um pon to em que Rau l e
Sau l não conseguem ma i s f i c a r sepa rados . Começam a t roca r
p resen tes e a cons i de ra r os f i na i s de semana i nsupo r t áve i s
dev i do à ausênc i a do ou t ro . Aos poucos , a pa i xão começa a
f l o resce r , como podemos ve r i f i c a r a pa r t i r do exce r t o :
Os f i n s d e s em an a t o r n a r am - s e t ã o l o n g o s q u e um
d i a , n o m e i o d e um p a p o q u a l q u e r , R a u l d e u a S a u l o
n úme r o d e s e u t e l e f o n e , a l g um a c o i s a q u e v o c ê p r e c i -
s a r , s e f i c a r d o e n t e , a g e n t e n u n c a s a b e . D om i n g o
d e p o i s d o a l m o ç o , S a u l t e l e f o n o u s ó p a r a s a b e r o q u e
o o u t r o e s t a v a f a z e n d o , e v i s i t o u - o , e j a n t a r am j u n t o s
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a c om i d i n h a m i n e i r a q u e a em p r e g a d a d e i x a r a p r o n t a
n o s á b a d o . F o i d e s s a v e z q u e , á c i d o s e u n i d o s , f a l a -
r am n o t a l d e se r t o , n a s t a i s a l m a s ( A B R EU , 1 9 8 3 , p .
1 3 4 ) .
Podemos pe rcebe r o áp i ce de tensão da na r ra t i v a ,
quando o na r rado r a f i rma que em uma manhã os do i s rapazes
chega ram j un tos à repa r t i ç ão e es t avam com os cabe l os
mo l hados , ev i denc i ando a i nda ma i s a p resum ida re l ação homoa -
f e t i va . Es te f a t o f az a descon f i ança dos dema i s co legas de
t r aba l ho aumen ta r :
[ … ] À s v e z e s o l h a v am - s e . E s em p r e s o r r i am . Um a
n o i t e p o r q u e c h ov i a , S a u l a c a b o u d o rm i n d o n o s o f á .
D i a s e g u i n t e , c h e g a r am j u n t o s à r e p a r t i ç ã o , c a b e l o s
m o l h a d o s d o c h uv e i r o . A s m o ç a s n ã o f a l a r am c om
e l e s . O s f u n c i o n á r i o s b a r r i g u d o s e d e s a l e n t a d o s
t r o c a r am a l g u n s o l h a r e s q u e o s d o i s n ã o s a b e r i am
c om p r e e n d e r , s e p e r c e b e s s em . M a s n a d a p e r c e b e r am ,
n em o s o l h a r e s n em d u a s o u t r ê s p i a d a s . Q u a n d o
f a l t a v am d e z m i n u t o s p a r a a s s e i s , s a í r am j u n t o s ,
a l t o s e a l t i v o s , p a r a a s s i s t i r a o ú l t i m o f i l m e d e J a n e
F o n d a ( A BR EU , 1 9 8 3 , p . 1 3 4 ) .
A a f e t i v i dade exp l ode na ação das pe rsonagens , marcada
na a t r ação mú tua , t odav i a o medo das rep resá l i a s re f l e te se
aque l e se r i a o momento ce r t o pa ra i n i c i a r um re l ac i onamen to .
E l e s p l ane j a ram a v i agem de fé r i as j un t os , po rém fo ram
su rp reend i dos com as ca r t as de dem i ssão .
Foucau l t ( 2007 ) , em seu l i v ro M ic ro f í s i c a do pode r , pon tua
que a pa r t i r dos anos 1 870 os ps i qu i a t r as da época passa ram
a concebe r a homossexua l i d ade como ob j e t o de aná l i se
méd ica . Ma i s de um sécu l o depo i s es t a t emá t i c a é p rob l ema t i -
zada em “Aque les do i s ” , de Ca i o Fe rnando Abreu , d i a l ogando
com as cons i de rações ap resen t adas por Foucau l t ( 2007 )
quan to à v i são que f o i cons t ru í da ace rca do su j e i t o homosse -
xua l , ou se j a , não se r o que conhecemos ho j e como he te ros -
sexua l imp l i c ava t e r a l gum t i po de doença , se r um i nd i v í duo
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de fo rmado . Es t es aspec tos são ressa l t ados no con to de
mane i r a c r í t i c a e nos pe rm i t em re f l e t i r acerca de como o se r
humano t em d i f i cu l dade em compreende r o ou t ro , r espe i t á - l o
em sua a l t e r i dade , apegando -se a p rá t i c as re t róg radas :
– f i c a r am s u r p r e s o s n a q u e l a m a n h ã em q u e o c h e f e
d e s e ç ã o o s c h amo u , p e r t o d o m e i o - d i a . F a z i a mu i t o
c a l o r . S u a r e n t o , o c h e f e f o i d i r e t o a o a s s u n t o . T i n h a
r e c e b i d o a l g um a s c a r t a s a n ô n im a s . R e c u s o u - se a
m o s t r á - l a s . P á l i d o s , o u v i r am e x p r e s s õ e s c omo “ r e l a ç ã o
a n o rm a l e o s t e n s i v a ” , “ d e s a v e r g o n h a d a a b e r r a ç ã o ” ,
c om p o r t am en t o d o e n t i o ” , “ p s i c o l o g i a d e f o rm ad a ” ,
s em p r e a s s i n a d a s p o r Um A t e n t o G u a r d i ã o d a M o r a l .
S a u l b a i x o u o s o l h o s d e sm a i a d o s , m a s R a u l o s c o l o c o u
em p é ( A B R EU , 1 9 8 3 , p . 1 3 5 ) .
Em j ane i r o , p róx imo à da t a em que t i r a r i am f é r i as , Rau l e
Sau l f o ram chamados pe l o che fe . E l e a l egou t e r receb i do
a l gumas ca r t as anôn imas que denunc i avam o envo lv imen to
“ ano rma l ” , nas qua i s os homens e ram t i dos como su j e i t os de
prá t i c as doen t i as , de fo rmados ps i co l og i c amen te , t udo pa r t i ndo
de a l guém que ag i a pe l a p rese rvação da mora l , como nos
reve l a o na r rado r .
Compreendemos , a par t i r do t r echo sup rac i t ado , que as
pessoas pe rde ram a consc iênc i a co t i d i ana da re f l exão , avan -
çando pa ra um cam inho i ncompa t í ve l com a c i v i l i d ade , o que as
t o rnam capazes de p rá t i c as pe rmeadas pe l a ag ress i v i dade ,
bem como a v i o l ênc i a do pensamen to avesso à responsab i l i d a -
de da conv ivênc i a e respe i t o no t ocan te às s i ngu l a r i dades dos
su j e i t os .
A a t i t ude do che fe e o p reconce i t o d i ss imu lado dos co l e -
gas de t r aba l ho em “Aque les do i s ” d i a l ogam t ambém com as
cons i de rações de Cyro Robe r to de Me l o Nasc imen to ( 20 14 ) ,
po i s o au to r apon ta a rep ressão impost a po r uma soc i edade
p ro fessan te de uma i deo l og i a mach i s t a , pa t r i a rca l e he te rono r -
mat i va , r eve l ando que i sso pe rme i a a ob ra de Ca i o Fe rnando
de Abreu a t r avés de vá r i as pe rsonagens .
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De aco rdo com Ver i d i ana Mazon Ba rbosa da S i l v a ( 20 12 ) ,
em seu a r t i go i n t i t u l ado “Ca i o Fe rnando Abreu e as i den t i dades
pós-mode rnas em Te rça - f e i r a go rda ” , o homoe ro t i smo p resen te
na ob ra de Abreu expõe o p reconce i t o de uma c l asse dom i -
nan te , que rep resen ta como “a mora l i z ação do sexo ” de te r -
m i nada pe l a f am í l i a e pe l o t r aba l ho , es fe ras soc i a i s regu l adas
pe l o Es t ado , a t r avés de uma l i g ação en t re o con t ro l e es t a t a l e
o con t ro l e sexua l , enquad rando -se como um con jun to de
res t r i ções e impos ições que ob j e t i v am te r e conse rva r a dom i -
nação . Sob re esse aspec to , Foucau l t ( 20 14 , p . 1 35 ) obse rva :
O momen t o h i s t ó r i c o d a s d i s c i p l i n a s é o m ome n t o em
q u e n a s c e um a a r t e d o c o r p o h um an o , q u e v i s a n ã o
u n i c am en t e o a ume n t o d e s u a s h a b i l i d a d e s , n em
t am po u c o a p r o f u n d a r s u a s u j e i ç ã o , m a s a f o rm aç ã o
d e um a r e l a ç ão q u e n o m e smo m e c a n i sm o o t o r n a
t a n t o m a i s o b e d i e n t e q u a n t o é m a i s ú t i l , e i n v e r s am en -
t e . F o rm a - s e e n t ã o um a p o l í t i c a d a s c o e r ç õ e s q u e s ã o
um t r a b a l h o s o b r e o c o r p o , um a m an i p u l a ç ã o c a l c u l a d a
d e s e u s e l e me n t o s , d e s e u s g e s t o s , d e s e u s c om po r -
t ame n t o s .
Na na r ra t i v a de Ca i o Fe rnando Abreu , o che fe busca o
cam inho ma i s cu r t o pa ra man te r uma apa ren te mora l , o que
não esconde a sua so rd i dez , ao dem i t i r os do i s f unc i oná r i os ,
sob os o l ha res om i ssos e cúmp l i ces dos dema i s , expu rgando
os do i s homens do se to r de t r aba l ho . Ta l a t i t ude nos pe rm i t e
cons t a t a r que os c r imes ma i s v i o l en t os , descon t ro l ados e
i nus i t ados são , mu i t as vezes , comet i dos po r pessoas apa ren te -
mente equ i l i b r adas , sem qua l que r t r aço de ag ress iv i dade , v i s t o
que gu i am suas ações po r uma fo rma educada , mas imp l i c i t a -
mente p reconce i t uosa como acompanhamos no con to em
ques t ão . O desen ro l a r da na r ra t i v a de ixa na repa r t i ç ão um
sen t imen to de cu l pa que ecoa , l eva e encam inha o l e i t o r a um
processo de re f l exão “Pe l as t a rdes poe i r en t as daque le res to
de j ane i r o , quando o so l pa rec i a gema de ovo f r i t o no azu l
sem nuvens no céu , n i nguém ma i s consegue t r aba l ha r em paz
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na repa r t i ç ão . Quase t odos a l i den t ro t i nham a n í t i d a sensação
de que se r i am i n fe l i zes pa ra sempre . E f o ram” . (ABREU , 1 983 , p .
1 3 6 ) .
3 C O N C L U S Ã O
Como podemos obse rva r , o con t i s t a , a t r avés da l i t e r a t u ra ,
p rob l ema t i za ques tões que pe rme i am d ive rsas na r ra t i v as de
sua vas t a p rodução , f azendo um esfo rço c l a ro , em nossa
v i são , em expo r -se po r “ i n te i r o ” em uma p rosa que pode se r
compreend i da como f ranca , ág i l e d i r e t a . A na r ra t i v a aba rca
um “ rea l i smo ” de t a l hado no uso p rec i so que f az dos t e rmos ,
nos e fe i t os de sen t i do que c r i a , p ropondo uma p ro funda re f l e -
xão sob re os p rob l emas que pe rpassam o mundo con temporâ -
neo , como a f rus t r ação de g rupos que compar t i l h am d i ve rsas
espéc i es de descon t ro l e s emoc i ona i s , desencadeando ag ress i -
vas i n t e r fe rênc i as na v i da das pessoas . O que t emos , en t ão ,
são g rupos que se a rvo ram como j u í zes p l enos de t a l consc i -
ênc i a mora l que apon tam , com na tu reza f asc i s t a , a sexua l i d ade
a l he i a como exemp l o de degene ração f i s i o l óg i c a , t o rnando a
nossa soc iedade po l i c i ada , pa t ru l hada e med íoc re .
A p rosa de Ca i o Fe rnando Abreu , no bo j o da l i t e r a tu ra
b ras i l e i r a , compor t a o pos i c i onamen to de um esc r i t o r a t en to às
ques tões que pe rmearam seu tempo , f o ram t ambém p resen tes
em ou t ros momentos e con t i nuam em ev i dênc i a , o que reque r
um o l ha r c r í t i c o e ma i s humano , capaz de compreende r o ou t ro
em suas s i ngu l a r i dades , o que pe rcebemos não apenas em
“Aque l es do i s ” , mas em ou t ros con tos de Abreu .
No con to es tudado , acompanhamos o d rama do casa l de
f unc i oná r i os que f o i “p rem i ado ” com a dem i ssão po r expo r ,
com na tu ra l i d ade e co ragem , o que os ou t ros en t ende ram
como s i na i s de uma re l ação homossexua l , po r t an to , p rob l emát i -
ca . O che fe e os ou t ros f unc i oná r i os rep resen t am , com exa t i -
dão , o o l ha r re f r a t á r i o da soc iedade sob re os homossexua i s .
V imos o exe rc í c i o i n í quo da pun i ção sob re a sexua l i d ade dos
193
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do i s p ro t agon i s t as como um t i po de c r ime e como c r ime ,
devendo se r condenado , o que des l oca a ação pun i t i v a pa ra
quem dem i t i u Rau l e Sau l . A pena , a t r avés da dem i ssão das
pe rsonagens d i sc r im i nadas po r se rem homossexua i s , é uma
f r a t u ra expos t a de soc i edades que reso l vem suas ques tões
c r í t i c as com fo rça e c rue l dade desmed i da . Sem amparo da
“ve rdade ” , ao exe rc i t a rem esse pode r de f a l sa mora l , sem
r espa l do da l e i , f o r t a l ecem o o l ha r v i l do p reconce i t o sob re os
f unc i oná r i os , aba t endo -os , como se pudessem , po r me i o da
exc l usão , es t abe l ece r um pad rão de condu t a sexua l “no rma l ”
na i ns t i t u i ç ão .
A b s t r a c t : T h i s p a p e r a i m s t o a n a l y z e t h e h o m o s e x u a l
d i sc r im i na t i on i n t he sho r t s t o ry “Aque l es do i s ” pub l i shed i n t he
boo k Mo r a ngo s Mo f a d o s b y C a i o F e r n ando Ab r e u ( 1 9 8 3 ) . T h e
p r e s e n t s t u d y c o n s i s t s o f a b i b l i o g r a p h i c a l a n d q u a l i t a t i v e
a n a l y s i s , f r o m a c r i t i c a l r e a d i n g r e l a t e d t o t h e t h e o r e t i c a l
a s s um p t i o n s o f a u t h o r s w h o d i s c u s s h om o a f f e c t i v i t y . T h i s
n a r r a t i v e c o n t e x t u a l i z e s t h e p u n i t i v e m e a s u r e s s u f f e r e d b y
R a u l a n d S a u l i n t h e w o r k p l a c e b e c a u s e o f t h e i r s e x u a l
d e po r tm e n t . T h e r e l a t i o n s h i p b e twe e n t h e c h a r a c t e r s b e g i n s
w i t h a f r i e n d s h i p m a r k e d b y a f f e c t i v e a n d e r o t i c e l em e n t s ,
wh i c h a r e u nd e r s t o o d i n a n e g a t i v e way . T h i s s h o r t s t o r y i s
“ r e a l i s t i c ” a n d r e p o r t s t e rm s t h a t l e a d t o a d e e p d i s c u s s i o n
a b o u t h omo a f f e c t i v i t y a n d i t s i m p l i c a t i o n s . T h e a n a l y s i s w a s
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I S S N 2 2 3 6 - 3 3 3 5
L I T E RA TUR A E SO C I E DA D E : R E F L EX Õ E S À
LU Z D E UM H OM EM : K LAU S K LUMP , D E
G O NÇA LO M . TAVAR E S
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U n i v e r s i d a d e F e d e r a l d o R e c ô n c a v o d a B a h i a ( U F R B )
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TAVARES , Gonça l o M . Um homem : K l aus K l ump . São Pau l o :
Companh i a das Le t r as , 2007 .
A l i g ação en t re ob ra de a r t e , gue r ra e t ecno l og i a na
f o rmação das d i nâm icas e mecan i smos de pode r cos tuma se r
re t r a t ada nos romances con temporâneos . Um exemp l o c l a ro
dessa t emá t i ca é a ob ra Um homem : K l aus K l ump , de Gonça l o
M. Tava res , pub l i cado em 2003 . Tava res é um esc r i t o r po r t u -
guês , mas que nasceu em Luanda , em 1 970 . Po r me i o de sua
esc r i t a , j á recebeu d i ve rsos p rêm ios , i nc l us i ve o P rém io
Reve l ação de Poes i a da Assoc i ação Po r t uguesa de Esc r i t o res
( 2002 ) e o P rém io L i t e rá r i o José Sa ramago ( 2005 ) .
Sendo Um homem : K l aus K l ump ( 2007 ) o p r ime i r o romance
da t e t r a l og i a O Re i no , T ava res t r a t a da gue r ra , sendo que es t a
não é espec i f i c ada , mas s im , de mane i r a amb iva l en te , s imu l t a -
neamen te t omada como f enômeno que f oge do con t ro l e da
von t ade e da razão , e como f enômeno h i s t ó r i co e espec i f i c a -
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mente humano , que man i f es t a o pode r da ação humana
pe ran t e a na tu reza . Ta l ob ra t ambém reve la ou t r as t emá t i c as ,
que se i n te rc ruzam de mane i r a be l a e t r ans fo rmadora .
Com l i nguagem econôm ica e seca , Um homem : K l aus K l ump ( 2007 ) , ao mesmo t empo t r az uma sens i b i l i d ade poé t i c a
capaz de f aze r do co t i d i ano dos seus pe rsonagens um pano
de f undo pa ra que possamos aden t ra r nas re l ações ps i co l óg i -
cas da soc iedade em que v i vemos . Não é d i f í c i l p resenc i a rmos
ações em que a f r i eza e a ma l dade são pos t as de mane i r a
i ncessan te e cons t an t e . Pequenas a t i t udes que , no mundo
g l oba l i z ado e reg i do pe l o l uc ro t o t a l , não p rec i sam se r t ão
exp l í c i t as pa ra obse rva rmos o quan to o Ou t ro nos de te rm i na e
nos c l ass i f i c a .
Uma c i dade não nomeada que so f re com a gue r ra é um
f a t o i n t r i gan te e ques t i onado r . Ao remonta r ao ca rá te r con tem -
po râneo da l i t e r a tu ra , t a l p rem i ssa desvenda a busca po r
novos cam inhos e a re f l exão cada vez ma is acu rada e c r í t i c a
sob re a rea l i d ade . É bas t an te f requen te , na na r ra t i v a , passa -
gens de cunho f i l o só f i co , capazes de p ropo rc i ona r ao l e i t o r
uma desv i ncu l ação do p l ano ob j e t i vo e i nd iv i dua l i s t a .
O d e s t i n o t em um a l ó g i c a p r ó p r i a . S ã o n e c e s s á r i o s
c á l c u l o s c om p l e x o s p a r a p e r c e b e r o q u e p o d e r i a t e r
a c o n t e c i d o em v e z d o q u e r e a l m e n t e a c o n t e c e u . H á
d em a s i a d a s p o s s i b i l i d a d e s p a r a q u e a c o n t e ç a s emp r e
o m e smo . O m un d o t em v a r i e d a d e e é l o n g o . O m un d o
d e ve r i a s e r um t ú n e l , o n d e e n t r a v a s am an h ã e s a í a s à
n o i t e . S em r am i f i c a ç õ e s . Um a c a n a l i z a ç ã o o r i e n t a d a ,
c om o e x i s t e n a s c a s a s . ( T AVAR ES , 2 0 0 7 , p . 1 4 ) .
Quando Tavares ( 2007 ) i n t e r rompe a na r ra t i v a pa ra d i a l o -
ga r com passagens em que o l e i t o r vo l t a a consc iênc i a pa ra s i
mesmo , pa ra um exame de seu p róp r i o se r , mos t ra que não há
p repa ração e não há como ev i t a r o que há de rea l na v i da .
Pe rsonagens que de ce r t a f o rma são ca r i c a tu ra i s , como a
mãe de Johana (Ca thar i na ) , t i d a como l ouca que “ [ . . . ] i n t e r rom-
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p i a de modo g rande a v i da no rma l , e as pausas e ram a l uc i na -
ções ” (TAVARES , 2007 , p . 1 5 ) e que “ [ . . . ] t i nha o que Johana
chamava de v i são i n fe l i z . Uma v i são que não que r ve r bem .
Uma v i são que se de te r i o rou , mas não po r causas f i s i o l óg i c as .
Como exp l i c a r? E l a não v i a bem” (TAVARES , 2007 , p . 1 6 ) , nada
ma i s são que ca r i ca tu ras de t odos nós , pe r tencen tes a uma
soc iedade que machuca e po rque não “desqua l i f i c a ” o i nd i v í duo
cons i de rado f ru t o do modo como o ou t ro nos o l ha .
Ou t ro f a t o r p reponde ran t e que au to r exp ressa na ob ra ,
po r ma i s que es te j a i n t r i nsecamen te l i g ada à gue r ra , é a
v i o l ênc i a i ns t i t uc i ona l i zada , mas t ambém uma “v i o l ênc i a ” negoc i -
a t i va e revo l uc i oná r i a , que se imb r i c a na t omada de pos i c i ona -
mento .
A v i o l ênc i a i ns t i t uc i ona l i z ada nada ma i s é que o Es t ado
como agen te regu l ador , em que “ [ . . . ] pa recem ob j e tos pa r t i cu l a -
res , co i sas g randes fe i t as pa ra a h i g i ene das ruas . L impam as
p raças , l impam o l i xo das p raças . L impam a l i nguagem das
praças e dos ca fés [ . . . ] ” ( TAVARES , 2007 , p . 1 0 ) . Compos t a po r
homens que “ [ . . . ] sabem a l e i : a f o rça , a f o rça , a
f o rça ” (TAVARES , 2007 , p . 1 2 ) , esse t i po de v i o l ênc i a , r emon -
t ando ao pe r í odo an t e r i o r à Revo l ução dos Cravos em Po r tuga l ,
demonst ra o quan to a censu ra e ra no tó r i a , em que t udo aqu i l o
con t r á r i o aos p ressupos tos d i t a t o r i a i s e ram sup l an t ados e
es te reo t i pados . As i den t i dades das m inor i as , t r az i das po r
Bauman ( 2005 ) , e ram desuman i zadas e cons t ru í das s imbo l i c a -
mente em to rno de vá r i as máqu i nas i ns t i t uc i ona l i z adas . Ne l as ,
as negoc i ações e ram t ens i vas , impos tas , como bem Tavares
( 2007 , p . 2 1 ) t r az em uma de suas cenas :
Um d i a o s s o l d a d o s e n t r a r am n a c a s a d e J o h a n a e
v i am q u e J o h a n a e r a b o n i t a e v i r am q u e J o h a n a t i n h a
um a m ã e l o u c a q u e n ã o e n t e n d i a o s q u e f a l a v am a
s u a l í n g u a , m u i t o me no s q u em f a l a v a o u t r a l í n g u a .
Um s o l d a d o q u e c h am av a I v o r o l h o u m a i s v e z e s p a r a
J o h a n a ; o l h o u m a i s v e z e s q u e o s o u t r o s s o l d a d o s q u e
n ã o s e c h am av am I v o r .
200
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I v o r d i s s e n a l í n g u a q u e J o h a n a e r a o b r i g a d a a
p e r c e b e r .
V o u vo l t a r . N ã o t e e s q u e ç a s d e m im .
J o h a n a o uv i u . C a t h a r i n a t am b ém o u v i u .
D o i s d i a s d e p o i s , I v o r e t r ê s s o l d a d o s e n t r a r am à
f o r ç a em casa de Joh an a , ag a r r a r am -n a , e I v o r v i o l o u - a .
A ou t ra “v i o l ênc i a ” , de ca rá t e r revo l uc i oná r i o e pos i c i ona l ,
nada t em a ve r com a des t ru i ção desmed i da dos t anques que
en t r avam na c i dade , mas s im com o reconhec imento de s i
enquan to su j e i t o . O pe rsonagem p r i nc i pa l , K l aus K l ump , es tá
s i t uado nessa p rob lemát i c a . Quando , no i n í c i o da h i s t ó r i a , o
au to r con t a que e l e e ra de uma f am í l i a r i ca , t r aba l hava numa
t i pog ra f i a e e ra ed i t o r de l i v ros con t r á r i os à econom i a e à po l í -
t i c a do t empo , ass im que a gue r ra começou , es t e se ap rox i -
mou da f am í l i a , e v i u que “Am igos de K l aus j á t i nham s i do
mor tos . Am igos de K l aus j á t i nham ma tado ou t en t ado ma ta r .
K l aus , esse , mant i nha -se neu t ro . A inda não en t r a ram na m inha
t i pog ra f i a , d i z i a K l aus” (TAVARES , 2007 , p . 1 8 ) . Aqu i , es t á
presen te um su j e i t o que a i nda não descob r i u a sua i den t i dade
cons t ru í da po r me i o da d i f e rença .
Com o desen ro l a r da na r ra t i v a , ao t e r sua mu l he r Johana
v i o l ada po r aque les que compunham o pode r mandon i s t a e
co r ros ivo , e se envo lve r com ou t ra , chamada He r t he , mu l he r
que “nunca pensava no que j á t i nha suced i do . En t end i a -se
com os m i l i t a r es . As suas ancas j á t i nham en t regado docemen -
t e aos gue r r i l h e i r os . Uma mu l he r que quer i a mante r o seu
j a rd im ” (TAVARES , 2007 , p . 42 ) , se r p reso e na p r i são desco -
b r i r que a c i v i l i z ação t e rm i na a l i , naque le l uga r che i o de
homens pe r i gosos , um amb i en te fé t i do e sem l uz , K l aus se
descob re “des l ocado ” desse mundo au to r i t á r i o e cap i t a l i s t a ,
mas ao mesmo t empo pe r tencen te a uma “comun i dade f und i da
po r i de i as ” (BAUMAN , 2005 , p . 1 7 ) . Da í , quando K l aus , ao es ta r
preso , recebe a v i s i t a do pa i e o a t aca , c ravando um v i d ro no
o l ho des te (va l e des t aca r que , an tes de t a l ep i sód i o , o pa i de
K l aus t i nha p ropos to a l i b e r t ação do f i l ho desde que assum i sse
201
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a f áb r i c a e os negóc i os da f am í l i a ) , r eage de f o rma v i o l en t a
po r não ace i t a r a subo rd i nação do pode r pena l ao pode r po l í t i -
co-econôm ico reg i do pe l a l óg i c a e pe l o d i nhe i r o . O “co rpo
Oc iden t a l , que não rep resen tava o co rpo de K l aus , po i s es te
mesmo com as suas mãos nos bo l sos , e ra um co rpo de
homem” (TAVARES , 2007 , p . 85 ) , que é negado pe ran te a
f i x i dez p regada no mundo , se reconhece e se a f i rma como
i den t i dade angus t i ada po r renovação .
Ao ten t a r encon t ra r -se , K l aus , po r me i o da d i a l é t i c a de
Tava res ( 2007 ) , pensa e nos con t a sob re mov imen tos . O
p r ime i r o , d i z respe i t o ao con to rno dos i ns t rumentos que ma tam :
um t anque que a t i r a m i l ha res de bombas em ques t ão de m inu -
t os e des t ró i v i das ; uma l âm i na que ampu ta a l i b e rdade do
homem , que pode se r desvendada em p rosas . “Em ce r tos
momen tos há um t r á fego de l âm i nas e corpos i n t enso , mas
depo i s a ag i t ação apaga -se sub i t amen te ” (TAVARES , 2007 , p .
75 ) . O segundo mov imen to reme te ao quan to o pode r e o i nd i -
v í duo são i ns t áve i s e co r rem r i scos . Ass im como o cava l o da
na r ra t i v a , que apod rece meses na rua , sendo rodeado po r
moscas , K l aus , desc r i t o com um homem a l t o , sabe que :
Qu an do s e m o r r e t o d o s c a em p a r a o m e smo n í v e l . O
a v i ã o , o p á s s a r o , o s a n j o s , o h om em a l t o e o a n ã o . J á
o n o t a s t e ? S e r i a i n t e r e s s a n t e q u e o s h om en s a l t o s ,
q u a n d o c a í s s em , p e rm a n e c e s s em u n s c e n t í m e t r o s
a c i m a d o s o l o , s u s p e n s o s , o s c e n t í m e t r o s q u e e l e s
t êm a m a i s . M a s i s t o n ã o s u c e d e . A c a b am t o d o s c om
a s u a e s t a t u r a d e i t a d a , c om p l e t am en t e em t e r r a , c om o
um a t o a l h a . ( T AVAR ES , 2 00 7 , p . 8 1 ) .
Po r ú l t imo , o t e rce i r o mov imen to é como a água , f l u i da e
co r ren te , e compõe a i den t i dade do se r . Nossa i den t i dade é
he te rogênea , p l u ra l e “ [ . . . ] não t em a so l i dez de uma rocha , não
são ga ran t i dos pa ra toda a v i da , são bas tan t e negoc i áve i s e
r evogáve i s [ . . . ] ” ( BAUMAN , 2005 , p . 1 7 ) . K l aus , que an tes e ra
con t rá r i o ao cap i t a l i smo , mas no f i na l adequa -se confo rma t i va -
202
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 1 9 7 - 2 0 2 , 2 0 1 7
mente à o rdem soc i a l e econôm ica rees t abe lec i da , ass im como
He r the , p ros t i t u t a , que só que r i a se da r bem , se j a com os m i l i -
t a res , se j a com os empresá r i os ― e depo i s a t é chega a rec l a -
mar das novas p ros t i t u t as es t a rem em p l eno d i a no cen t ro da
c i dade ― , são exemp l os de como não podemos supe ra r a
g l oba l i z ação e seus e fe i t os , mas a r t i c u l a r e su tu ra r os d i scu r -
sos e l uga res de f a l a . Tava res ( 2007 , p . 8 1 ) r e t r a t a não só o
pe rsonagem p r i nc i pa l , K l aus K l ump , mas s im t odos nós .
O d i a é d i v i d i d o em v á r i o s m ome n t o s , c om o n um a
f o l h a um q u a d r a d o d e se n h ad o a l á p i s q u e s e v a i
c o r t a n d o em q u a d r ad o s c a d a v e z m a i s p e q u e n o s . E
em c a d a q u a d r a d o o m e smo o b j e c t i v o . E i s s o s i g n i f i c a
a p e n a s q u e n ã o f o i f e i t a n e n h um a s e p a r a ç ã o : e n q u a n -
t o e s t am o s v i v o s o d i a é i g u a l . É i s t o . S o b r e v i v e r .
C o n t i n u a r a q u e r e r e s t a r v i v o .
Des t a f o rma , Um homem : K l aus K l ump ( 2007 ) , mesmo com
a l i nguagem ca r regada de pa l av ras me ta f ó r i cas e uma semânt i -
ca pe rmeada po r ba rbá r i e s , ap resen t a um o l ha r f i l o só f i co
pass í ve l de reve l a r o í n t imo e o ex te rno , o l i n ea r e o não l i ne -
a r , sempre i ns t i gando o l e i t o r a descons t ru i r pa rad i gmas d i an te
dos acon tec imen tos da v i da . É um romance i n t r i c ado , que
t ambém é capaz de en t rec ruza r h i s t ó r i as e s imbo l i z a r a busca ,
a l u t a e a necess i dade de i den t i f i c ação cons tan t e do humano .
R E F E R Ê N C I A S
BAUMAN , Zygmunt . I den t i dade : en t rev i s t a a Benede t t o Vecch i .
T radução de Car l os A lbe r to Mede i r os . R i o de Jane i r o : Zaha r ,
2005 .
Env i ado em : 1 8/02/20 17 .
Ap rovado em : 02/ 10/20 17 .
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 2 0 3 - 2 0 9 , 2 0 1 7
I S S N 2 2 3 6 - 3 3 3 5
V I O L E TA : E N T R E E L D E B E R Y E L D E S EO
P o r A l i n e d e F r e i t a s S a n t o s 1
U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l d e F e i r a d e S a n t a n a ( U E F S )
L i c e n c i a t u r a em L e t r a s c om E s p a n h o l
l y n e l a u t n e r 1 2 @ gma i l . c om
CLAVEL , Ana . Las v i o l e t as son f l o res de l deseo . Méx ico :
A l f agua ra , 2007 . D i spon i b l e en : < h t t ps ://d r ive . goog l e . com/f i l e /
d/0B-Oo8Bf l bdQvanFBQ jRqY l R0WXM/v iew?usp=sha r i ng > .
Acceso en : 20 mayo 20 1 6 .
“ L a v i o l a c i ó n m á s f u l g u r a n t e s i em p r e e s s i l e n c i o s a… ”
( A n a C l a v e l )
La v i o l ac i ón com ienza con l a m i r ada . Es con es t a f r ase
que l a au to ra mex icana Ana C l ave l i n t r oduce su ob ra t i t u l ada
“Las v i o l e t as son f l o res de l deseo ” , pub l i cada en e l año de
2007 y ganado ra de l p rem io Juan Ru l f o en 2005 . Nac i da en
1 96 1 , en C i udad de Méx ico , Ana C l ave l pe r t enece a l a
gene rac i ón de esc r i t o ras mex i canas de l “boom femen i no ” de
l o s años 60 . Sus ob ras re t r a t an t emas como : l a i den t i dad , l as
sombras , l a sexua l i d ad a l i gua l que l a v i o l ac i ón y e l deseo , l os
cua les rep resen t an e l asun to abo rdado po r l a au to ra en
re fe r i da ob ra y que , po r t an t o , se rán l os pun tos d i scu t i dos en
es t a reseña con base en e l en foque ps i coana l í t i c o de S i gmund
F reud .
Nar rada en p r ime ra pe rsona , “Las v i o l e t as son f l o res de l
deseo ” ( 2007 ) es una nove l a co r t a que cuen t a l a h i s t o r i a de
un hombre l l amado Ju l i án Me rcade r , que posee un deseo
sexua l i ncon t ro l ab l e po r n i ñas más j óvenes . La na r ra t i v a
emp ieza con e l r e l a t o de l p ro t agon i s t a ace rca de su n i ñez y ,
según sus recue rdos , es en una c l ase con e l p ro feso r Anaya
que se man i f i e s t a en Ju l i án su deseo hac i a l as mu je res , en
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 2 0 3 - 2 0 9 , 2 0 1 7
espec i a l a l as v í r genes e i nocen tes . A l o l a rgo de l a h i s t o r i a e l
p ro t agon i s t a con t i nua a re l a t a r su pasado , hab l a de su f am i l i a y
de l a f áb r i c a de muñecas de su papá en donde s i empre es t aba
cuando n i ño . Ju l i án Me rcade r se t o rna adu l t o y pa ra su
descon ten to t i e ne una h i j a , l a cua l su mu je r , que se l l ama
He l ena , bau t i za V i o l e t a . Es a pa r t i r de es t e paso hac i a l a
pa t e rn i dad que emp ieza e l t o rmen to de Ju l i án : é l vue l ca e l
deseo a su h i j a .
Ana C l ave l en sus ob ras abo rda e l deseo en t odos l os
conf i nes , s i n embargo en “Las v i o l e t as son f l o res de l deseo ”
es te i n tenso sen t im i en t o se p resen t a desde e l pun to de v i s t a
de l deseo sexua l mascu l i no man i f i e s to en l a ob ra , como se
menc i ona en l a i n t roducc i ón de l p r ime r cap í t u l o , a t r avés de l a
m i r ada . La m i r ada de un pad re hac i a su p rop i a h i j a .
Un deseo oscu ro , e ró t i co y p ro f ano que a fec t a
i n t ensamen te e l p ro tagon i s t a y l e pone en un es t ado de
cas t i go , po rque su f re po r no pode r sa t i s face r l o , y a l m i smo
t i empo de cu l pa , pues l o que desea es a su p rop i a h i j a . Es te
hecho puede se r en t end i do a pa r t i r de l as i deas ps i coana l í t i c as
en l as que F reud hab l a de l deseo i nconsc i en t e que ,
[ … ] e s v é r t i c e d e t o d o d i a g r am a p o s i b l e p a r a l o p s í q u i -
c o [ … ] S u h a b i l i d a d e s d e s p l a z a r s e , c o n d e n s a r s e ,
h a c e r s e h um o , p a r t i r s e e n m i l p e q u e ñ o s p e d a z o s ,
a p a r e c e r y d e s a p a r e c e r p e rm a n e n t em en t e , t r a n sm u -
t a r s e p e rm an e n t eme n t e p a r a n o s e r h a l l a d o y e n
m uc h a s o c a s i o n e s p a r a s e r d e l o r d e n d e l o n o r e a l i -
z a d o . (MANASSA, 20 10 , p . 2 ) .
Hab l ando de l deseo i nconsc i en t e se t r a t a de un deseo
s i ngu l a r a un i nd i v i duo que es dañado , y por se r i no l v i dab l e se
t o rna na tu ra lmen te i nsa t i s f echo . E l deseo p resen tado en l a
ob ra t amb i én posee un ca rác te r reve l ado r , v i s t o que e l
p ro t agon i s t a a l p r i nc i p i o no sab í a que l o t en í a , y es te deseo
después de man i f i e s to en e l pe rsona j e hace más au tén t i c a su
pe rsona l i d ad en l a na r ra t i v a .
205
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 2 0 3 - 2 0 9 , 2 0 1 7
Ot ro e j e t emá t i co p resen te en l a ob ra es e l i nces to ,
pe ro un i nces to no consumado , dado que se t i ene e l deseo ,
más es te no es mate r i a l i z ado en l a rea l i d ad . E l asun to se t r a t a
de un tema muy sens i b l e que v i ene a f ron t ando l os más
pesados t abús en l a h i s t o r i a , l o cua l se ev i denc i a en a l gunos
e j emp l os l i t e r a r i os que rec i b i e ron f ue r tes c r í t i c as deb i do a l
emp leo de l t ema , como en “C i en años de so l edad ” de l au t o r
co l omb i ano Gab r i e l Garc í a Márquez ( 2002 ) , en e l cua l r e l a t a e l
i nces to p rop i amente d i cho p rac t i c ado en t re l a pa re j a de p r imos
( José Arcad i o y Úrsu l a ) , que va en con t ra a l os c r i t e r i os
cu l t u ra l e s y re l i g i osos , v i o l ando l a no rma en l a que dec re t a e l
i nces to como un ac to p roh i b i do .
Ya l o que sucede en “Las v i o l e t as son f l o res de l deseo ”
es t o t a lmen te l o con t ra r i o , aqu í e l t abú “ [… ] en t r aña , pues , una
i dea de rese rva , y , en e fec to , [… ] se man i f i e s t a esenc i a lmen te
en p roh i b i c i ones y res t r i cc i ones ” ( FREUD , [ 2003 ] ) , como se
puede ev i denc i a r en e l s i gu i en t e f r agmen to :
[ … ] n o h a y m á s p a r a í s o p o s i b l e [ … ] m i r a r l a f r e n t e a
f r e n t e , s o s t e n e r l e l a m i r a d a , s e r í a c omo a b a n d o n a r s e
a l a m u e r t e : a s om a r s e a s u e s p e j o d e a b i sm o y
é x t a s i s . [ … ] e l c o r a z ó n d e s b o c a d o e n u n g a l o p e s i n
f r e n o , q u e l l e g a h a s t a e l b o r d e y l u e g o n o l e q u e d a
s i n o s a l t a r a l v a c í o i r r em ed i a b l e : u n l a t i d o e n
e x p a n s i ó n q u e n o c o n o c e l í m i t e s , n i v e r g ü e n z a , n i
d o l o r [ … ] m i s p a s o s y e l r u i d o d e l a p u e r t a q u e
emp u j ó m i m a n o [ … ] u n f i l ó n e n l a c o r t i n a d e b a ñ o
n a d i e e n l a c a s a s o l o s l a p e q u e ñ a y y o . ( C LAVEL ,
2 0 0 7 , p . 1 5 4 - 1 5 7 ) .
Es te f r agmen to na r ra e l momen to en que V i o l e t a se
bañaba y Ju l i án con temp l ándo l a desnuda se exc i t a , p rac t i c ando
una v i o l ac i ón “men t a l ” . I númeras veces , a l o l a rgo de na r ra t i v a ,
e l p ro t agon i s t a t i e ne l a opo r tun i dad de p rac t i c a r e l i nces to
f í s i co con su h i j a , pe ro no l o hace deb i do a l a consc i enc i a de
l o p roh i b i do como impues to po r l as no rmas soc i a l e s .
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 2 0 3 - 2 0 9 , 2 0 1 7
En “Las v i o l e t as son f l o res de l deseo ” , C l ave l mane j a e l
asun to de l i nces to con una hab i l i d ad so rp renden te , t r a t ándo l o
con cu i dado y suav i dad . E l i nces to en l a ob ra con l l eva a l a
v i o l ac i ón que no se rea l i z a de mane ra f í s i c a , s i no que es
p rac t i c ada a t r avés de l a m i r ada . Una v i o l ac i ón que se hace
i r r es i s t i b l e a l p ro t agon is t a , v i s t o que l o que desea es t á s i empre
de l an te de é l , pues l a p resenc i a de su h i j a l e i nc i t a a desa t a r
sus deseos , t a l como se ev i denc i a en e l s i gu i en te f r agmen to
en que na r ra e l momen to que V i o l e t a ( l a h i j a de l p ro t agon i s t a )
j uega caba l l i t o con su papá :
Ac e l e r é e l t r o t e a l t i e mp o q u e d e s c u b r í a u n r a s t r o d e
s u d o r q u e l e p e r l a b a e s a z o n a d e l i c a d a y s e n s i b l e ,
c u y o n om b r e d e s c o n o z c o a l a f e c h a , y q u e d i s p u e s t a
e n t r e l a n a r i z y l o s l a b i o s , a l e x c i t a r s e e s e l b o t ó n
e r e c t o d e u n a f l o r a p u n t o d e p r o d i g a r s e . Y s í , c o n
t o d a l a p u r e z a d e q u e V i o l e t a e r a c a p a z , e s t a b a
a b s o l u t am e n t e , i n m ac u l a d am e n t e e x c i t a d a . L a
v i s l u m b r é c omo l a i m a g e n t o t a l d e m i s d e s e o s [ … ] Y
a h í e s t a b a e n t r e m i s p i e r n a s , e r g u i d a e i n d e f e n s a ,
h a c i é n d ome s e n t i r l o p o d e r o s o q u e p o r f i n e r a , l o
c om p l e t o q u e a l f i n e s t a b a . Y s i n n e c e s i d a d d e
t o c a r l a . F a s c i n a d o c o n l a s o l a i d e a d e s a b e r l a . P a r a
e s e m omen t o , l o s d o s r e í am o s p e r o y a e l d o l o r y e l
e s f u e r z o am e n a z ab a n c o n a c a l am b r a rme y e l g o z o d e l
h a d a e r a t am b i é n d em a s i a d o , y n u e s t r a s r i s a s s i n
s o n i d o s e c o n ve r t í a n e n l a s e ñ a l am en a z a n t e d e q u e
e l g a l o p e s e a d e l a n t a b a a l p r e c i p i c i o ( C LAVEL , 2 0 0 7 ,
p . 1 8 0 - 1 8 2 ) .
En e l avance de l a h i s t o r i a , Ju l i án l i de ra e l func i onam ien to
de l a f áb r i c a de muñecas pos t a l a mue r te de su papá y se
t o rna soc i o y am igo de l a l emán K l aus Wagne r , que f ue a l
p r i nc i p i o compañe ro t amb ién de su pad re en e l
es t abe lec im ien to , con qu i en c rea una l í nea de muñecas
“ sexuadas ” y que e l p ro t agon i s t a bau t i za con e l m i smo nombre
de su h i j a , V i o l e t a .
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 2 0 3 - 2 0 9 , 2 0 1 7
Es conven i en te resa l t a r que “Las v i o l e t as son f l o res de l
deseo ” se t r a t a de un h i pe r tex to t o t a lmen te f i e l a l a ob ra
t i t u l ada “Las Ho r t ens i as ” de Fe l i sbe r t o He rnández , que t odav í a
es c i t ada en a l gunos de l os cap í t u l os de l a ob ra , que abo rda
t amb i én l a h i s t o r i a de una f áb r i c a de muñecas e ró t i c as
nombradas Ho r tens i as , e l m i smo nombre de l a mu je r de l
p ro t agon i s t a ( Ho rac i o ) . Lo que hace Ana C l ave l es i r más a l l á
de l t r a t am ien to dado a l as muñecas en He rnández .
O t ro e l emento de re l evanc i a en l a ob ra de C l ave l es e l
emp leo de l nombre V io l e t a , a pa r t i r de l cua l se puede deduc i r
dos j us t i f i c ac i ones para e l uso de l nombre en l a ob ra de l a
au to ra : l a p r ime ra hace re f e renc i a a l hecho de que l a ob ra se
encuen t ra basada en e l l i b ro de He rnández que nombra l as
muñecas con nombre de l a f l o r Ho r tens i a de t a l f o rma que es
pos i b l e que Ana C l ave l haya emp l eado e l t é rm i no V i o l e t a como
una ana l og í a de l a p r ime ra . La segunda exp l i c ac i ón a l ude a l
hecho de que a pesa r de no pe r t enecer a l a m i sma ra í z
e t imo l óg i c a , e l t é rm i no V i o l e t a es asoc i ado men ta l y
g rá f i c amen te a l concep to de v i o l ac i ón , deb ido a l a p resenc i a
de l m i smo rad i ca l en d i chas pa l ab ras , y como l a ob ra de C l ave l
abo rda t a l t ema esa se r í a o t r a pos i b i l i d ad de i n t e rp re t ac i ón .
Aho ra b i en , en l o que se re f i e re a l a es t ruc tu ra de l t ex to
se ha no t ado que l as f r ases que i n t roducen l os cap í t u l os de l a
ob ra se p resen t an en l e t r as mayúscu l as , v i s t o que cada uno
de es tos f r agmen tos t r ansm i te una i n f o rmac i ón que se enca j a
con l as f r ases de l os t í t u l os s i gu i en tes dando fo rma a l a
compos ic i ón que s i gue :
La v i o l ac i ón com ienza con l a m i r ada . (c ap í t u l o I )
Contemp l o aho ra l a f o tog ra f í a ( cap í t u l o I I )
“Pe rve rso ” es aque l l o que l as t imándonos ( cap í t u l o I I I )
M i rándo l a con l a a tenc i ón su f i c i en te ( cap í t u l o IV )
Qu ie ro repe t i r l o una vez más ( cap í t u l o V )
A lguna fem in i s t a me acusa rá (cap í t u l o V I )
En aque l momen to (cap í t u l o V I I )
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 2 0 3 - 2 0 9 , 2 0 1 7
No p re tendo convencer a nad i e ( cap í t u l o V I I I ) ¿Cómo se fabr ica la p ie l de un deseo innombrab le?
(cap í tu lo IX) Podr ía argü i r que He lena nos hab ía abandonado (cap í tu lo X) S i pe rve rso es aque l l o ( cap í t u l o X I ) Pa ra que dos se condenen (cap í t u l o X I I ) Dec í a que d i l uv i aba aden t ro y a fue ra ( cap í t u l o X I I I ) En t re l os dos , e l l a e ra l a más i nocen te ( cap í t u l o X IV ) Fue en tonces que l as v i o l e t as n i ñas comenzaron a
f l o rece r ( cap í t u l o XV ) En ese en tonces l a v ida pa rec i ó f l o rece r t amb i én pa ra
m í (cap í t u l o XVI )
La i n f o rmac i ón que t r asm i t e l a compos ic i ón an t e r i o r no se encuen t ra pe r fec t amen te conca tenada en su t o t a l i d ad , s i n embargo a pa r t i r de l con j un to de t í t u l os de l os cap í t u l os es pos i b l e pe rc i b i r una s ín t es i s de l a h i s t o r i a con t ada .
Es t as máx imas u t i l i z adas po r C l ave l pa ra i n t roduc i r l os cap í t u l os ev i denc i an tamb i én una ca rga de s i gn i f i c ac i ón cuan to a l o que se p re t ende t r a ta r en l os t óp i cos y además ca rac te r i za e l es t i l o de l a esc r i t o ra .
En conc l us i ón , “Las v i o l e t as son f l o res de l deseo ” es una esp lénd i da ob ra y deb i do a l as ca rac t e r í s t i c as de l os t emas que abo rda se puede i nse r t a r l a en l a ca t ego r í a de l as c reac i ones l i t e r a r i as que se sus ten tan en e l su f r im ien to , l a confus i ón ps i co l óg i c a y l a des t rucc i ón . Una nove l a que p resen ta e l padec im i en t o de un pe rsona j e que es d i l ace rado po r un deseo i ncon t ro l ab l e y , l o peo r , i nsa t i s fecho , i nsac i ab l e .
A pesa r de posee r una ca rac te r í s t i ca exc i t an te y pe rve r t i da en es t a ob ra , l a au to ra no expresa ag res i v i dad y t ampoco po rnog ra f í a . Aunque e l t ema de l a v i o l ac i ón sea un asun to cons tan te en l a na r ra t i v a , de i gua l f o rma , Ana C l ave l hace t amb ién ev iden te e l amor de un pad re po r su h i j a ya que é l pone en r i e sgo su p rop i a v i da a l f ab r i c a r muñecas p roh i b i das con l a i n t enc i ón de sac i a r e l deseo i nqu ie t an te que s i en te po r V i o l e t a , buscando as í un med i o de no v i o l a r f í s i c amen te a su h i j a .
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G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 2 0 3 - 2 0 9 , 2 0 1 7
La au to ra d i spone de una hab i l i d ad so rp renden te en e l t r a t am i en to de l os recu rsos y t emas abo rdados en su ob ra . T ra t a de asun tos que se rep i t en a l o l a rgo de l a na r ra t i v a , pe ro que n i po r e l l o a t r i buye a l a ob ra l a sensac i ón de exceso . Ana C l ave l es una b r i l l a n t e esc r i t o ra y en “Las v i o l e t as son f l o res de l deseo ” ev i denc i a un es t i l o que seduce e l l ec t o r po r med i o de l as pa l ab ras .
R E F E R Ê N C I A S
CLAVEL , Ana . Las v i o l e t as son f l o res de l deseo . Méx ico : A l f agua ra , 2007 . D i spon i b l e en : < h t t ps ://d r ive . goog l e . com/f i l e /d/0B-Oo8Bf l bdQvanFBQ jRqY l R0WXM/v iew?usp=sha r i ng > . Acceso en : 20 mayo 20 1 6 .
MENASSA , M igue l Osca r . E l deseo en F reud y l a t r ansm i s i ón en ps i coaná l i s i s . E x t ens i ón Un ive rs i t a r i a – Rev i s t a de Ps icoaná l i s i s , Buenos A i r es/Madr i d , n . 1 1 1 , f eb re ro 20 10 . D i spon i b l e en : < h t tp : //www.ex tens i onun i ve rs i t a r i a . com/num1 1 1 /n 1 1 1 -Ex tens i on .pd f > . Acceso en : 29 mayo 20 1 6 .
FREUD , S i gmund . To tem y Tabú : a l gunos aspec tos comunes en t re l a v i da menta l de l hombre p r im i t i vo y l os neu ró t i cos . 1 9 1 2 -1 9 1 3 . [ 2003 ] . D i spon i b l e en : < h t t p : //www. i tva l l e de l guad i ana . edu .mx/ l i b rosd i g i t a l e s/S i gmund%20F reud%20-%20Totem%20y%20Tab%C3%BA .pd f > . Acceso en : 29 mayo 20 1 6 .
MÁRQUEZ , Gab r i e l Ga rc i a . Cem anos de so l i d ão . 5 2 ed . R i o de Jane i r o : Reco rd , 2002 .
N O T A S
1 G r a d u a d a em L e t r a s Ve r n á c u l a s p e l a U N I A S S ELV I e e s t u d a n t e d e 4 º s em e s t r e n o c u r so d e L i c e n c i a t u r a em L e t r a s c om E s p a n h o l n a U E F S .
Env i ado em : 1 9/02/20 17 . Ap rovado em : 27/05/20 17 .
G r a d u a n d o , F e i r a d e S a n t a n a , v . 8 , n . 1 1 , p . 2 1 1 - 2 1 4 , 2 0 1 7
I S S N 2 2 3 6 - 3 3 3 5
NO RMA S P A RA E NV IO D E
AR T I GO S E R E S E NHA S
R e s e n h a s e a r t i g o s , e l a b o r a d o s p o r g r a d u a n d o ( s ) e m
L e t r a s d o B r a s i l – a u t o r ( e s ) e c o a u t o r ( e s ) – , d e v e r ã o s e r
e n c am i n h ad o s p a r a av a l i a ç ã o p o r e -ma i l , e n t r e 2 0/ 1 2 / 2 0 1 7 e
2 5 / 0 2 / 2 0 1 8 , p a r a o e n d e r e ç o r e v i s t a g r a d u a n d o @ gm a i l . c om .
S ome n t e s e r ã o a c e i t o s t r a b a l h o s n a s á r e a s d e L i n g u í s t i c a ,
L i t e r a t u r a , A r t e s e Educação , em fo rma to e l e t r ôn i c o e i néd i t o s ,
o u s e j a , n ã o p u b l i c a d o s n o g ê n e r o d e t e x t o s o l i c i t a d o em
q u a i s q u e r o u t r a s p u b l i c a ç õ e s . A s l í n g u a s n a s q u a i s e l e s
p o d e r ã o s e r e s c r i t o s s e r ã o t o d a s a s e x i s t e n t e s n a g r a d e
c u r r i c u l a r d o C u r s o d e G r a d u a ç ã o e m L e t r a s d a U E F S
( Po r t uguês , I ng l ê s , F rancês e Espanho l ) .
O R I E N T A Ç Õ E S G E R A I S
Os t r aba l hos env i ados à rev i s t a Graduando : en t re o se r e o sabe r , d i g i t ados em f o rma to . doc ou .docx , deve rão con te r a
segu i n te f o rma t ação :
1 Fon t e T imes New Roman ;
2 Tamanho 1 2 ( t í t u l o , sub t í t u l o ( se houve r ) , t ó p i co e co rpo
d o t e x t o ) ; P a l a v r a s e s t r a n g e i r a s e t í t u l o s d e o b r a s
d ev em se r e s c r i t o s em i t á l i c o ( i t á l i c o ) ; p a r t e s d e o b r a
( a r t i g o s , c a p í t u l o s , p o e m a s e s i m i l a r e s ) d e v e m s e r
esc r i t os en t re aspas , sem i t á l i co ;
3 E sp aç amen t o e n t r e l i n h a s d e 1 , 5 ; m a r g en s e sque r d a e
supe r i o r de 3 cm , d i r e i t a e i n f e r i o r de 2 cm ;
4 C i t a ç õ e s c o m a t é 3 l i n h a s d e v e m a p a r e c e r
r e fe renc i adas no co rpo do t ex to e con te r aspas ;
5 C i t a ç õ e s c om m a i s d e 3 l i n h a s d e v e r ã o s e r e s c r i t a s
sem a sp a s e t e r r e cuo de 4 cm d a ma r gem e sque r da ,
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a l ém de não ap r e se n t a r r e c uo n a ma rgem d i r e i t a e t e r
espaçamen to s imp l es ;
5 . 1 O t amanho da f on t e da c i t aç ão deve se r menor que o
c o r p o d o t e x t o ( t aman ho 1 0 o u 1 1 ) e o e s p a ç amen t o
en t re as l i nhas deve se r s imp les ;
6 O núme ro de pág i n as com anexos não deve passa r de
2 ( do i s ) ;
7 Deve rá se r env i ado , a l ém do (s ) t r aba l ho (s ) , a gu i a de
mat r í cu l a do ( s ) au to r ( es ) re fe ren te ao ano de 20 17 ou
20 18 .
O R I E N T A Ç Õ E S E S P E C Í F I C A S
R E S E N H A C R Í T I C A
Se rão ace i t as resenhas c r í t i c as com m ín imo de 4 e
máx imo de 7 pág i nas , i nc l u i ndo re fe rênc i as e exc l u i ndo anexos .
A es t ru t u ra deve con te r , ob r i ga t o r i amente , a segu i n t e
sequênc i a :
1 T í t u l o e/ou sub t í t u l o ;
2 Nome comp l e t o do ( s ) au to r ( es ) , an teced i dos pe l a pa l av ra
“Po r ” , e b reve cu r r í cu lo ;
3 Apresen t ação e ava l i ação i n i c i a l do ob j e to da resenha ;
4 Desc r i ç ão e ava l i ação de pa r tes do ob j e to da resenha ;
5 Recomendação/cons i de ração f i na l sob re o ob j e to da
r esenha ;
6 Re fe rênc i as .
Após o nome do au to r na f o rma d i r e t a , no pa rág ra fo
segu i n te , o b reve cu r r í cu l o deve con te r , em l i nhas sepa radas :
nome da i ns t i t u i ç ão , cu rso ( ou depa r t amento , no caso do
o r i en t ado r ) e e -ma i l . Os dados au to ra i s são ob r i ga t ó r i os pa ra
au to r ( es ) ( ob r i ga tó r i o ) e o r i en t ado r ( opc i ona l ) . O número de
pessoas responsáve i s pe l a f e i t u ra da resenha ( au t o r , coau to r
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e/ou o r i en t ado r ) não deve passa r de 3 ( t r ês ) . I n fo rmações
ad i c i ona i s devem se r esc r i t as em no t a de rodapé .
A R T I G O
Se rão ace i t os a r t i gos com m ín imo de 7 e máx imo de 10
pág i nas , i nc l u i ndo re f e rênc i as e exc l u i ndo anexos . A es t ru tu ra
deve con te r , ob r i ga to r i amen te , a segu i n te sequênc i a :
1 T í t u l o e/ou sub t í t u l o ;
2 Nome comp l e to do ( s ) au to r (es ) e b reve cu r r í cu l o ;
3 Resumo ( l í ngua do t raba l ho ) ;
4 Pa l av ras -chave ( l í ngua do t r aba l ho ) ;
5 I n t rodução ;
6 Corpo do a r t i go ;
7 Conc l usão/cons i de rações f i na i s ;
8 Resumo ( l í ngua es t r ange i r a ) ;
9 Pa l av ras -chave ( l í ngua es t r ange i r a ) ;
1 0 Re fe rênc i as ;
1 1 Anexos ( se houve r ) .
Após o nome do (s ) au to r ( es ) , no pa rág ra fo segu i n t e , o
b reve cu r r í cu l o deve con te r , em l i nhas sepa radas : nome da
i ns t i t u i ç ão , cu rso ( ou depa r t amen to , no caso do o r i en tado r ) e e
-ma i l . Os dados au to ra i s são ob r i ga tó r i os pa ra au to r ( es ) ,
coau to r ( es ) ( opc i ona l ) e o r i en t ado r ( es ) ( opc i ona l ) . O número de
pessoas responsáve i s pe l a fe i t u ra do a r t i go ( au t o r ( es ) , coau to r
( e s ) e o r i en tado r (es ) ) não deve passa r de 4 (qua t ro ) .
I n f o rmações ad i c i ona i s devem se r esc r i t as em no ta de rodapé .
O resumo na l í ngua do t ex to deve ap resen t a r , de f o rma
conc i sa , os ob j e t i vos , a me todo l og i a e os resu l t ados
a l c ançados , não devendo u l t r apassa r 150 pa l av ras nem con te r
c i t ações . A l ém d i sso , deve rá ap resen t a r o resumo p r i nc i pa l ,
esc r i t o na l í ngua do a r t i go , e o resumo secundá r i o em um
i d i oma da p róp r i a esco l ha ( Po r t uguês , Espanho l , F r ancês e
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i n g l ê s ) . No caso de o a r t i go se r esc r i t o em l í ngua es t r ange i r a ,
o a r t i c u l i s t a f i c a o r i en tado a esc reve r o resumo secundá r i o em
L í ngua Po r t uguesa .
Pa l av ras -chave como e l emen to ob r i ga t ó r i o , f i gu rando l ogo
aba i xo de cada resumo (na l í ngua do a r t i go e es t r ange i r a ) , cu j o
número de pa l av ras não deve excede r a 5 e não se r i n f e r i o r a 3 .
O R I E N T A Ç Õ E S F I N A I S
1 Os pa r e ce r i s t a s e r ev i s o r e s pode r ão f aze r a l t e r ações nos
t r a b a l h o s , n o s e n t i d o d e m e l h o r a r s u a t e x t u a l i d a d e , s em
a l t e r a ç ã o d e s e n t i d o e a u t o r i a , a p r o x i m a n d o - o s d a s
c a r a c t e r í s t i c a s t e x t u a i s r e f e r e n t e s a u m a p u b l i c a ç ã o
acadêm ica ;
2 N ã o é v e t a d o o e n v i o d e t r a b a l h o s c u j o s a u t o r e s e / o u
c o au t o r e s se j am memb r o s e f e t i v o s do conse l h o e d i t o r i a l
( a n t e r i o r m e n t e d e n om i n a d o c o m i s s ã o e d i t o r i a l ) d e s t e
pe r i ód i co ;
3 O e n v i o d o t r a b a l h o i m p l i c a a a c e i t a ç ã o d e t o d a s a s
n o rm a s d e s c r i t a s n e s t e d o c ume n t o e a c o n c e s s ã o d o s
d i r e i t o s sob re o t ex t o à rev i s t a G r aduando : en t re o se r e o sabe r ;
4 Au t o re s de t r aba l h o t êm d i r e i t o a re cebe r ( po r co r re i o ou
p r e s e n c i a l m e n t e ) 3 ( t r ê s ) e x emp l a r e s i m p r e s s o s , d ema i s
pa r t i c i pan t es têm d i re i t o a 1 ( um ) exemp l a r ;
5 Os casos om i ssos se rão reso lv i dos pe l o conse l ho ed i t o r i a l .