revista acadÊmica do curso de letras da...
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ISSN 1982-2685
REVISTA ACADÊMICA DO CURSO DE LETRAS DA FACULDADE CCAA
Rio de Janeiro
2011
ISSN 1982-2685
FACULDADE CCAA
Diretora Geral • Eliane Faial
Superintendente • Daniel Hoorn
Diretora de Legislação e Normas • Anna Maria Ernesto Ferreira Machado
Diretora Acadêmica • Marcia Moraes
Editores
Roberto Loureiro • Faculdade CCAA
Simone Meirelles • Faculdade CCAA
Conselho Consultivo
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Henry Giroux • McMaster University – Canadá
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Gilda Santos • Universidade Federal do Rio de Janeiro
Conselho Editorial da Faculdade CCAA
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María Paz Pizarro
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Priscila Menezes
Ricardo Pinheiro
Ricardo Teixeira
Susan Kratochwill
Catalogação na fonte pela Biblioteca Brian McComish da Faculdade CCAA.
InterSignosInterSignos
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA
INTERSIGNOS – Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA
V. 4, Out 2011, Rio de Janeiro, CCAA Editora, 2011.
pg. 116
Anual
ISSN: 1982-2685
1. Literatura. 2. Linguística.
CDD 800
Esta obra segue as normas estabelecidas no Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que prevê a padronização do
idioma nos países lusófonos.
Editoração e Impressão
CCAA Editora
Editora Gerencial
Sylene Matturo
Capa
Bruno Gomes
Projeto Gráfico
Juliana Andrade
Editoração Eletrônica
Paulo Aguiar de Souza
Revisão de Língua Portuguesa e Formatação de Texto
Rita Cyntrão • Roberto Loureiro • Simone Meirelles
Revisão Editorial
Luís Antônio Guimarães
Revisão de Língua Inglesa
Simone Meirelles
Revisão de Língua Espanhola
María Paz Pizarro
Faculdade CCAA
Curso de Letras
INTERSIGNOS
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA
Periodicidade
Anual
Assinatura
R$ 40,00
Endereço para correspondência
Avenida Marechal Rondon 1.460 • Riachuelo
Rio de Janeiro – RJ • CEP 20950-202
Tel.: (21) 2156-5000
www.faculdadeccaa.edu.br
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial.
Os textos assinados são de inteira responsabilidade de seus/suas autores/autoras.
A Revista INTERSIGNOS, publicação acadêmico-científica anual da Faculdade CCAA, tem
como objetivo publicar trabalhos acadêmico-científicos inéditos na área de Letras e afins, com
uma abordagem inter, multi e transdisciplinar. A proposta é oferecer à comunidade acadêmica um
espaço para a troca de conhecimentos, reflexões, experiências e informações.
INTERSIGNOS procura destacar os diversos temas que fazem parte do contexto da Língua
Portuguesa e das Línguas Estrangeiras e respectivas literaturas, dos estudos multiculturais, dos
cursos de licenciaturas, e a inserção das novas tecnologias no cenário linguístico-educacional,
trazendo reflexões que permitam oxigenar as discussões na área.
A Revista é uma publicação científica do Curso de Letras da Faculdade CCAA e publicada
pela CCAA Editora.
Editorial
Medievalismo, cultura e língua galega na pesquisa de Maria do
Amparo Tavares Maleval
Nina Barbieri Pacheco • UERJ
Aflorar dos eus no texto clariceano
Angélica Castilho • Faculdade CCAA, Colégio Estadual
Visconde de Cairu
Primeiros europeus na América: a questão da alteridade
observada através dos relatos de viagem
Lêda de Carvalho • Faculdade CCAA, UNISUAM
Diálogo entre memória e História através da crônica andina de
Felipe Guaman Poma de Ayala
Helena Dias dos Santos Lima • Faculdade CCAA
McOndo e a estética do business plan : considerações sobre
a escrita pós-moderna e a lógica do mercado na
literatura hispano-americana
Rodrigo Fernández Labriola • Faculdade CCAA, UFF
Tendências contemporâneas na poesia brasileira
Rachel Fátima dos Santos Nunes • Universidade Estácio de Sá
Competências, cultura e competência (comunicativa) intercultural:
discussão de conceitos e breve reflexão acerca da adaptação
de material didático para o ensino de Língua Inglesa
Daniela Terenzi • UFSCar
Uma análise semântica de pegar + nome
Karen Sampaio Braga Alonso • UFRJ
Nalinle Costa Vaz • Faculdade CCAA
O admirável mundo de Guimarães Rosa: “Sequência”, o conto
Marlene Lessa V. Borges • FFLCH, USP
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EDITORIAL
A revista InterSignos chega ao seu quarto volume mantendo o compromisso
com uma produção acadêmica relevante, em que procuramos apresentar
estudos que contemplem as necessidades de alunos e professores do Curso
de Letras.
São oito textos que abrangem poesia brasileira contemporânea,
Guimarães Rosa, Clarice Lispector, ensino de Língua Inglesa, Linguística e
artigos envolvendo temas voltados para os estudantes da Língua Espanhola
e Literatura Latino-americana. Os artigos do presente número passeiam por
variados temas de língua e literatura associados a importantes questões
culturais, históricas, filosóficas e didáticas.
Para além disso, a nossa entrevistada é a Professora Maria do Amparo
Tavares Maleval, renomada medievalista brasileira, fundadora da ABREM
(Associação Brasileira de Estudos Medievais) e artífice dos dois centros de
estudos de língua e cultura galegas no Estado do Rio de Janeiro – primeiro na
Universidade Federal Fluminense e, posteriormente, na Universidade Estadual
do Rio de Janeiro.
Outro ponto que nos traz grande satisfação é poder contar, neste número,
com estudos produzidos por pesquisadores da Universidade de São Paulo e
da Universidade Federal de S. Carlos. Esses artigos ampliam as fronteiras da
nossa revista e proporcionam uma troca científica e cultural entre estudantes
e professores que têm acesso à nossa publicação.
Gostaríamos de agradecer aos editores do volume três desta publicação
pelos conselhos que muito nos ajudaram; ao nosso Conselho Editorial, que
trabalhou com a presteza e o rigor necessários na análise dos artigos enviados;
aos membros do Conselho Consultivo, que nos honram com as suas
chancelas; à Direção da Faculdade CCAA, pelo apoio e pela cobrança
necessários para que esta publicação chegasse a bom termo; e a todos os
envolvidos no processo posterior ao nosso trabalho de editores, da revisão à
distribuição da revista.
Finalmente, esperamos que a presente edição da InterSignos proporcione
aos leitores um acréscimo importante aos seus estudos e que tenham todos
um largo incentivo para o prosseguimento das suas carreiras acadêmicas.
A todos, uma boa leitura.
MEDIEVALISMO, CULTURA E LÍNGUA
GALEGA NA PESQUISA DE MARIA
DO AMPARO TAVARES MALEVAL
Nina Barbieri Pacheco
UERJ
Mestre em Literatura Portuguesa pela UERJ
contato: [email protected]
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Maria do Amparo Tavares Maleval é uma pesquisadora respeitada, Professora
Doutora especialista em Idade Média, pela USP, é, ainda, pioneira em estudos galegos
e divulgadora empenhada desta língua e cultura no Brasil.
A contribuição da professora para os estudos medievais e galegos é
impressionante. Maria do Amparo publicou diversos livros ao longo de sua vida
acadêmica. Fernão Lopes e a retórica medieval, pela Editora da UFF – universidade
da qual é professora aposentada – é a sua mais recente publicação (junho de 2011).
O livro é fruto de uma pesquisa extensa em Retórica no medievo.
Fundadora do núcleo de estudos galegos da UFF e da UERJ, promotora de
congressos, palestras e inúmeros eventos na área, a Professora Amparo é um
exemplo para colegas e alunos por sua paixão pela pesquisa e seu carinho em ensinar
e incentivar os estudantes a seguirem o caminho laborioso, mas gratificante, da
pesquisa acadêmica. As suas obras inspiram a um mergulho nas belezas da Idade
Média, na redescoberta de textos, culturas e, o mais importante, ensinam a pousar
novos olhares sobre as questões medievais.
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Nina Barbieri Pacheco
O seu estudo acerca da Retórica, por exemplo, é elucidativo para que enxerguemos
de outra maneira questões políticas medievais. O último livro de Maleval, inclusive,
possibilita que o leitor perceba em Fernão Lopes a construção de um discurso retórico
que, por este mesmo motivo, não pode ser parcial como se pretende. Na verdade, os
recursos retóricos utilizados pelo autor demonstram que é tendencioso, apesar de
tratar de fatos históricos. O livro traz, ainda, um breve panorama da história da
Arte Retórica até o medievo e é uma leitura indispensável não só aos estudantes
e professores de Letras, mas também aos estudantes de História, professores e
historiadores em geral.
O livro de Maleval sobre o Códice Calixtino, As maravilhas de São Tiago: narrativas
do Liber Sancti Jacobi (Codex Calixtinus), traz uma edição bilíngue (latim/português)
do Códice e, ainda, uma leitura fantástica acerca do mito jacobeu. Infelizmente, o
Codex Calixtinus original foi roubado da Catedral de Santiago de Compostela em
julho de 2011, onde permanecia guardado por muitos séculos. A polícia galega
investiga o sumiço da obra, a que muito poucos tinham acesso. Entre nós fica
a angústia de ver um patrimônio espanhol, significativo para os católicos, para
os galegos, para os historiadores, para qualquer um que reconheça a imensa
importância de uma obra como esta. A professora Amparo também nos fala um
pouco sobre isso ao final desta instigante conversa.
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Medievalismo, cultura e língua galega na pesquisa de Maria do Amparo Tavares Maleval
A ENTREVISTA
1 Nina Barbieri – De onde surgiu o interesse pela Idade Média?
MALEVAL – Desde a época em que comecei as minhas atividades docentes no Instituto
de Letras da UFF, quando, interessada em fazer o curso de Doutorado na USP, escolhi
para o projeto a ser desenvolvido, tendo em vista a elaboração da tese, a obra de
Fernão Lopes, primeiro cronista-mor de Portugal e genial escritor do século 15 – portanto,
da Baixa Idade Média.
2 Nina Barbieri – Como a senhora vê a situação das pesquisas sobre o medievo no
Brasil? Que mudanças significativas pode apontar, desde a criação da ABREM
(Associação Brasileira de Estudos Medievais)?
MALEVAL – Tais pesquisas são fecundas principalmente nas áreas de História, Letras e
Filosofia. A ABREM surgiu como necessidade de divulgação dos estudos medievais e de
aproximação entre pesquisadores e professores de todo o território nacional, cumprindo
tais objetivos de forma expressiva, através, principalmente, de iniciativas editoriais
e de encontros internacionais e regionais, bem como do fomento à criação e
desenvolvimento de grupos vários de medievalistas.
3 Nina Barbieri – A senhora está estudando a Retórica na Literatura há alguns anos.
Que objetivos pretende alcançar nesta área tão pouco estudada nos cursos de
Letras?
MALEVAL – A Retórica, entendida aristotelicamente como disciplina que observa as
técnicas de persuasão nos discursos, vem sendo revalidada enquanto conhecimento
imprescindível, principalmente para as áreas de História e Letras, sem nunca ter sido
elidida do Direito etc. No caso específico de Letras, é a única orientação que focaliza
o discurso em seu todo, atentando para a sua construção e exegese e colocando em
relevo o receptor a quem o discurso se dirige. Portanto, o meu objetivo principal é
conhecer, e dar a conhecer, os elementos que permitem melhor conhecimento do texto
literário, nunca desvinculado do seu contexto de produção.
4 Nina Barbieri – Quais são os pontos mais relevantes da sua última publicação,
Fernão Lopes e a retórica medieval?
MALEVAL – Além de atualizar dados sobre o cronista maior, apresenta um histórico,
embora resumido, do percurso da Retórica clássica até a sua assimilação pelo discurso
medieval em seus vários gêneros e nas artes praedicandi. Inclusive, comprova a
indiscutível relação da retórica com o discurso historiográfico, tão em evidência nas
reflexões dos historiadores em nossos dias.
5 Nina Barbieri – Foram os estudos em Idade Média que a levaram a se interessar
pela cultura galega?
MALEVAL – Sim. Lembro-me que a minha primeira ida à Galiza tinha por intuito
participar de um congresso promovido pela AGAL (Associação Galega da Língua),
onde apresentei trabalho sobre o substrato celtibero das cantigas de mulher no
Trovadorismo medievo galego-português. Foi então que conheci essa terra “meiga” e me
apaixonei ainda mais pela sua cultura.
6 Nina Barbieri – A língua e a literatura galegas, infelizmente, ainda são pouco
conhecidas no Brasil. No entanto, este panorama está mudando com a promoção
de diversas palestras e encontros tendo a Galiza como tema, muitos deles
organizados pela senhora. Por que essa dedicação em fazer emergir entre nós o
estudo de língua e literatura galegas?
MALEVAL – Inicialmente, com o intuito de relevar a importância da língua, da
literatura e da cultura galegas no medievo como heranças importantíssimas para a
constituição da nossa própria cultura brasileira. E posteriormente, pela luta identitária
assumida pelos (re)construtores da galeguidade, principalmente na fecunda literatura
que vem sendo produzida na Galiza e em galego, língua obscurecida por séculos devido
a interesses políticos dos reis da dominadora Castela no passado e da ditadura
franquista mais recentemente.
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Nina Barbieri Pacheco
7 Nina Barbieri – Como funciona e quais são os objetivos do convênio que o PROEG
(Programa de Estudos Galegos) mantém com a Xunta de Galicia?
MALEVAL – O PROEG foi criado na UERJ por ato executivo do Reitor em 23 de julho de
1996. Tem por objetivos primordiais desenvolver e estimular atividades relativas ao
ensino e à pesquisa relacionadas com a língua, com a literatura e com a cultura
galegas em geral, bem como promover o intercâmbio cultural com a Galiza. Neste
sentido, foi criado um Leitorado para a docência de galego na UERJ, mantido por
convênio com o governo galego, que proporciona também meios para a realização
de eventos e publicações.
8 Nina Barbieri – Escrever em galego ainda é uma luta e uma forma de resistência?
O preconceito linguístico ainda impera na Espanha, em sua opinião?
MALEVAL – Sem dúvida. E o preconceito relaciona-se, inclusive, à sua condição de
língua minoritária. Desprestigiada por séculos, na Idade Média foi a língua da poesia
por excelência, usada por todos os poetas da Península Ibérica (e não só), inclusive pelo
próprio rei de Leão e Castela, Afonso X, o Sábio.
9 Nina Barbieri – A questão da identidade galega vem sendo muito discutida nos
últimos anos. Muitos galegos acreditam que o português pode ajudar a livrar o
galego da contaminação do espanhol e da situação de menosprezo social e cultural,
fortalecendo e enriquecendo a língua galega. O que a senhora acha da reaproximação
dessa cultura com as suas raízes galego-portuguesas?
MALEVAL – Acho que a reaproximação cultural é válida, mas a normatização do
galego é obviamente algo que só compete aos seus usuários estabelecer.
10 Nina Barbierii – Que benefícios ou problemas essa acolhida do galego na comunidade
lusófona poderia trazer para a Galiza?
MALEVAL – Isto é futurologia, sobre a qual prefiro não opinar.
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Medievalismo, cultura e língua galega na pesquisa de Maria do Amparo Tavares Maleval
11 Nina Barbieri – Qual é a importância da literatura galega, hoje, para os estudos
literários brasileiros?
MALEVAL – A importância decorre, principalmente, da qualidade de muitos dos seus
escritores e obras, bem como do interesse, que deve ser incentivado, por uma literatura
expressa em língua irmã da nossa, decorrente de uma comum ancestralidade e de
um imaginário muito próximo do imperante no Brasil, povoado de crenças no outro
mundo, por exemplo.
12 Nina Barbieri – Através do seu livro As Maravilhas de São Tiago: narrativas do
Liber Sancti Jacobi (Codex Calistinus), os leitores brasileiros puderam entrar em
contato com um documento histórico importantíssimo, senão o mais importante
para a Galiza. Fale-nos um pouco a respeito deste livro.
MALEVAL – Além de coligir lendas sobre a transladação do corpo do Apóstolo Tiago
Maior da Palestina à Galiza, o livro apresenta também algumas narrativas sobre as
incursões de Carlos Magno à Espanha para liberação do santo sepulcro apostólico e de
milagres de São Tiago. Essa recolha de material do documentado no Códice Calixtino
é apresentada em latim (língua original do Códice) e em português. Na introdução,
busco historiar a formação do mito jacobeu e da peregrinação motivada pelo culto
sepulcral na Basílica de Santiago de Compostela. Tal tradição, cujo apogeu foi no
século 12, até hoje se mantém viva, como sabemos.
13 Nina Barbieri – No dia 05/07/2011, foi divulgado o roubo do Códice Calixtino
da Catedral de Santiago de Compostela. Sabemos do seu valor histórico, mas
gostaríamos de ouvir o que a senhora pode acrescentar sobre o valor literário da
obra e a perda que o roubo da mesma acarreta.
MALEVAL – É realmente uma perda inestimável, dado o valor do Códice, fundamental
não apenas para a história da religião, mas da música (já com exemplos polifônicos),
do teatro (através de ofícios dialogizantes), da literatura... – enfim, para a observação
do imaginário, da cultura, dos costumes vigentes nos primórdios do Ocidente cristão,
muitos dos quais ainda hoje observáveis como heranças fundacionais.
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Nina Barbieri Pacheco
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AFLORAR DOS EUS NO TEXTO
CLARICEANO
Angélica Castilho
Faculdade CCAA
Colégio Estadual Visconde de Cairu
Doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ
contato: [email protected]
Resumo: As personagens criadas por Clarice Lispector deparam-se com suas
existências de repente, em um processo epifânico. Elas mergulham e emergem de si
mesmas, em uma experiência dionisíaca. As descobertas advindas de tal processo
anunciam a condição clandestina da felicidade na obra da autora.
PALAVRAS-CHAVE: dionisíaco; existencialismo; Clarice Lispector.
Abstract: The characters created by Clarice Lispector encounter their existence
abruptly, in a epiphanic process. They dive and emerge out of themselves in a Dionysiac
experience. The discoveries that arise from this process announce the secret condition of
happiness in the author’s work.
KEYWORDS: dionysiac; existentialism; Clarice Lispector.
Resumen: Los personajes creados por Clarice Lispector se deparan de repente con
sus existencias en un proceso epifánico. Sumergen y emergen de sí mismos en una experiencia
dionisíaca. Los descubrimientos que surgen de tal proceso anuncian, en la obra de la
autora, la condición clandestina de la felicidad.
PALABRAS CLAVE: dionisíaco; existencialismo; Clarice Lispector.
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Angélica Castilho
Em A escritura de Clarice Lispector, Olga de Sá (SÁ, 2000, p. 163-211) escreve um
capítulo destinado ao conceito de epifania vinculado à obra clariceana e, para tal, cita
alguns nomes representativos que contribuíram para ampliar o uso do termo e lançá-lo
no universo literário. Segundo a ensaísta, o termo “epifania” vem do grego e significa
manifestação, aparição. É uma palavra pertencente ao universo hebreu e consiste na
manifestação de Deus através de vozes, visões e mesmo contato físico, porém, sem
o vislumbre do divino em sua totalidade. São Tomás de Aquino faz uso do termo com
o sentido mítico-religioso para designar manifestações divinas. Em termos literários,
James Joyce (1882-1941) parte do conceito desenvolvido pelo religioso, todavia,
afasta-se significativamente do que existe de místico na revelação epifânica.
O escritor refere-se à palavra como relato de uma experiência aparentemente simples,
porém, que transforma a visão do eu sobre ele e o mundo.
O momento de revelação na obra de Clarice Lispector é nomeado de epifania por
alguns críticos. Vale ressaltar que a palavra “epifania” não surge na obra da autora
(SÁ, 2000), embora as duas concepções possam ser identificadas e ter um
enriquecedor alargamento de significado. Como bem ressalta Affonso Romano de
Sant’anna, na narrativa clariceana, o aspecto divino situa o homem no mesmo plano
de Deus por ser capaz de experimentar a eternidade que este representa, mesmo que
seja por instantes. (SANT’ANNA, 1997)
A epifania figura como uma forma de as personagens atingirem um esclarecimento
sensitivo de sua vida, e salienta, consequentemente, a ânsia por amenizar a sensação
de finitude de algumas delas: “[...] A nostalgia não é do Deus que nos falta, é a
nostalgia de nós mesmos que não somos bastante; sentimos falta de nossa grandeza
impossível – minha atualidade inalcançável é o meu paraíso perdido.” (LISPECTOR,
1995, p. 153)
Com isto, não se fecha o assunto nem se resume uma verdade. As personagens
que defendem o elemento divino da revelação o fazem com o mesmo fervor das que
não o defendem.
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Aflorar dos eus no texto clariceano
O termo “dionisíaco” é usado nesse texto para aludir ora aos momentos de
encontro da personagem com seus muitos eus e com o divino presente em seu
interior, ora aos momentos de encontro com a força da vida. Tal opção terminológica
para o “estado de graça” das personagens dá-se para reforçar o caráter arrebatador e
os movimentos de vida e de morte presentes no íntimo das personagens clariceanas.
Remetendo ao mito de Dioniso, a fim de compreender o teor dionisíaco que percorre
a escrita da autora, visto que esta efetivamente configura-se como “movimento puro” –
epígrafe do livro Água viva (1973) –, vale salientar que ele é essencialmente o deus da
metamorfose e, por isso, promove a mudança de quem toca sua essência. Por seu caráter
divino, não morre, mas renasce do próprio coração. Sua morte configura-se como uma
catábase, isto é, descida ao mundo inferior, seguida, logo depois, de uma anábase, volta
ao mundo dos vivos. Ele manifesta a vida e a morte conjuntamente, revelando que uma
está contida na outra. (BRANDÃO, 1990)
Dioniso é múltiplo, está em movimento constante, vai a todos os locais e acaba
por associar-se a divindades de naturezas diversas e contrárias, como ocorre em
relação a Apolo no teatro grego. Por ser tão plural, ele fascinava a todos na Grécia:
de camponeses a aristocratas. O deus está presente na embriaguez, na chegada dos
mortos, na mania – loucura sagrada –, no êxtase e no entusiasmo de comunhão com
qualquer deus. (KERÉNYI, 2002)
O termo “dionisíaco” dimensiona a iluminação vivenciada pelas personagens e o
desvendar do que existe de primordial no mundo e no homem. A força vivida é um
impulso para seguir adiante, mas, sobretudo, é um instante perigoso para vidas
sempre protegidas em um cotidiano mecanizado e rotineiro.
Em um trecho de Um sopro de vida, tal temática é abordada significativamente,
pois revela que o dionisíaco não aliena, mas sim, fomenta o surgimento de questões
inquietantes e mesmo sociais:
[...] Eu baseio minha vida no sonho-acordado. O que me guia é o
projeto de amanhã vir a ser amanhã. Minha liberdade? minha própria
liberdade não é livre: corre sobre trilhos invisíveis. Nem a loucura é livre.
Mas também é verdade que a liberdade sem uma diretiva seria uma
borboleta voando no ar. Mas nos sonhos dos acordados há uma
ligeireza inconsequente de riacho borbulhante e coerente. O estado de
ser. (LISPECTOR, 1994, p. 81)
A sociedade atual também valoriza o racional, porém, de forma diferente da grega,
que se balizava nos conselhos de Apolo: “nada em excesso”, “conhece-te a ti
mesmo”. Vale ressaltar que o homo dionysiacus, através do êxtase e do entusiasmo,
liberta-se de condicionamentos e interditos de ordem ética, política e social,
tornando-se um perigo para a manutenção de regras (KERÉNYI, 2002). Cabe afirmar,
portanto, que as personagens configuram-se como eus tocados pelo dionisíaco e que
estão prestes a arrebentar as amarras.
A autora aborda a monotonia como uma ameaça à própria ordem; afinal, a
personagem pode ser arrebatada, quase sempre, através do olhar, por algo
aparentemente banal, mas capaz de provocar as perturbações mais violentas e
decisivas. Da abordagem do cotidiano nasce uma leitura que nega a hegemonia
do real e que revela ser possível o trânsito do homem entre o estar acordado e
sonhando, entre os fatos como são e a ilusão criada em torno destes.
Muitos eus habitam cada personagem e manifestam-se de diversas formas através
de máscaras, fantasias, loucura. No conto “A imitação da rosa”, de Laços de família
(1960), Laura foge ao padrão de normalidade, é considerada desequilibrada, mas a
palavra “loucura” não surge, é um tabu, por marcar a transgressão da ordem e da
racionalidade.
Buscando o ininteligível, as palavras incompreensíveis, Laura aproxima-se do
arquétipo do louco, pois fica à margem da sociedade, com suas regras de normalidade
e do que não é. As personagens estão, justamente, no mundo do sensível, e não do
racional. Elas passam pelo trágico e encontram-se em situações nas quais todas as
regras rompem-se e a realidade social anula-se.
O livro A imitação de Cristo, de Tomás de Kempis (1379-1471), surge como
referência de conduta para a personagem. O árduo, no entanto, não é a humildade,
é abdicar do belo; por isso, ela sucumbe à beleza das rosas. Desejar ter a beleza para
si a despertou para o esplendor da existência com toda a sua força e ímpeto. É uma
personagem que não racionaliza o que acontece, apenas atinge a experiência de
descobrir-se pelos sentidos: da visão, passa ao tato e, depois, ao olfato.
Mais uma vez, a transgressão está em a personagem desejar algo bom e não se
considerar merecedora. A felicidade de Laura é “clandestina”, como de muitas outras
personagens. A simplicidade de apenas existir torna-se um grande desafio e uma
grande tortura. Uma rosa é uma rosa, e isto fascina Laura, por ela não saber ao
menos quem ou o que ela é.
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Angélica Castilho
Clarice Lispector prioriza a liberação de eus adormecidos em momentos de pura
descoberta da própria natureza como temas em sua obra. O conceito de “alegre” é
trazido em sua acepção original, “animado”, “vivo” (CUNHA, 1982, p. 28), e percebido
como a força pelas personagens, quando estas interagem com o mundo através de
seus olhares e de suas escolhas, como se nota em A cidade sitiada:
O que não se sabe pensar, se vê! A justeza máxima de imaginação neste
mundo era pelo menos ver: quem pensara jamais a claridade? Pelo
menos Lucrécia via e batia a pata.
Experimentando alegria tão exterior que já era a alegria dos outros que
ela sentia, deus impessoal para quem as nuvens fossem um modo dele
não estar na terra e as serras o modo dele estar mais longe. (LISPECTOR,
1992, p. 91)
A obra da autora é um espaço em que se representa caráter e vontade. Por isso,
não existe um caminho definido: a personagem possui desejos. Por ter visto o mundo
e a si mesmo com um novo olhar, a personagem sofre uma transformação em sua
percepção de mundo. Justamente por ter atingido outro estado de experimentação da
vida, entende o mundo como um conjunto de elementos integrados. Entre muitos
exemplos na obra da autora, segue um de Água viva:
Essa felicidade eu quis tornar eterna por intermédio da objetivação
da palavra. Fui logo depois procurar no dicionário a palavra beatitude
que detesto como palavra e vi que quer dizer gozo da alma. Fala em
felicidade tranquila – eu chamaria, porém, de transporte ou de levitação.
Também não gosto da continuação no dicionário, que diz: “de quem se
absorve em contemplação mística”. Não é verdade: eu não estava de
modo algum em meditação, não houve em mim nenhuma religiosidade.
Tinha acabado de tomar café e estava simplesmente vivendo ali sentada
com um cigarro queimando-se no cinzeiro. (LISPECTOR, 1993, p. 94)
Tal processo revela que é necessário o não entendimento sobre as coisas para
chegar ao mais primitivo do ser: “[...] Existir não é lógico.” (LISPECTOR, 1996, p. 34)
Os abalos vividos surgem das mais variadas fontes. Em “Amor”, conto de Laços
de família, a deficiência física e o sombrio do Jardim Botânico enfatizam a importância
da vida em ebulição e em todos os aspectos. O que interessa às personagens é o
êxtase de viver e experimentá-lo em todas as esferas. O que arrebata é a vida e a
morte, enquanto processos de integração do eu ao cosmos.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 21
Aflorar dos eus no texto clariceano
Em Perto do coração selvagem (1943), Joana possui momentos de visões da
efervescência da vida. Ela valoriza esse instante de captura do que sempre havia
escapado, por permitir que ela se situe no mundo e se aproxime mais do seu interior:
[...] Assim, um cão latindo, recortado contra o céu. Isso era isolado, não
precisava de mais nada para se explicar... Uma porta aberta a balançar
para lá, para cá, rangendo no silêncio de uma tarde... E de repente, sim,
ali estava a coisa verdadeira. [...] Para se ter uma visão, a coisa não
precisa ser triste ou alegre ou se manifestar. Basta existir, de preferência
parada e silenciosa, para nela se sentir a marca. Por Deus, a marca da
existência... [...] (LISPECTOR, 1995, p. 54-55)
No romance A cidade sitiada (1949), é a incapacidade de ver a si e ao lugar onde
mora que deixa Lucrécia em reclusão nela mesma. Ela percorre o caminho inverso
de personagens de romances escritos anteriormente pela autora. Lucrécia não se
deixa seduzir pela sua natureza, todo seu movimento a impulsiona para o artificial.
A percepção da vida e do mundo ocorre acidentalmente para a personagem.
Embora sejam muitas as passagens que fazem referência às tomadas de consciência
das personagens, estas não ocorrem no plano da racionalidade. O entendimento dá-se
através do místico ou da experimentação de sentimentos desconhecidos, como se
nota no romance A paixão segundo G.H. (1964) e no conto “Onde Estivestes de
Noite” (1974):
Eu entrara na orgia do sabá. Agora sei o que se faz no escuro das
montanhas em noites de orgia. Eu sei! Sei com horror: gozam-se as
coisas. Frui-se a coisa de que são feitas as coisas, esta é a alegria crua
da magia negra. Foi desse neutro que vivi, o neutro era o meu verdadeiro
caldo de cultura. Eu ia avançando e sentia a alegria do inferno.
(LISPECTOR, 1995, p. 106)
[...] Olha o que era. Enfim, enfim, não havia símbolo, a “coisa” era!
A coisa orgíaca. Os que subiam estavam à beira da verdade.
(LISPECTOR, 1994, p. 55)
[...] O silêncio pululava de respirações ofegantes. A visão era de bocas
entreabertas pela sensualidade que quase os paralisava de tão grossa.
Eles se sentiam salvos do Grande Tédio. (LISPECTOR, 1994, p. 56-57)
O dia é o espaço do civilizado, e a noite é o do primordial; aquele, de uma claridade
racional, este, de uma sombra inebriante que oculta e apresenta possibilidades
variadas e distintas sobre um mesmo fato. A missa, durante o dia, não reverte os
efeitos da missa profana noturna. A última frase do conto demonstra o medo
22 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Angélica Castilho
e o fascínio que o narrador tem do processo de conscientização de sentimentos e
pensamentos mais íntimos:
Epílogo:
Tudo o que escrevi é verdade e existe. Existe uma mente universal
que me guiou. Onde estivestes de noite? Ninguém sabe. Não tentes
responder, pelo amor de Deus. Não quero saber da resposta. Adeus.
A-Deus. (LISPECTOR, 1994, p. 72)
Em A paixão segundo G.H., a ascese mística ocorre no plano da matéria: a essência
da vida é simbolizada pela barata. O humano toca o divino e perde-se nele, voltando
modificado pela experiência e conferindo tragicidade à vida de G.H., pois, a partir de
então, ela percebe que ocupa o mesmo plano ontológico de todos os seres e que sua
vida anterior era inautêntica.
O momento de encontro do eu com ele mesmo nas narrativas surge ora claramente
ora metaforicamente, como através da fantasia de carnaval, em que o ato de se mascarar
é elemento revelador dos múltiplos eus habitantes de uma personagem e,
principalmente, do forte desejo de buscar e de reconhecer outras faces. Nos textos da
autora, as máscaras tanto são para esconder quanto para revelar, dependendo sempre
do momento de cada personagem. Um instante de reconhecimento é narrado no conto
“Restos de carnaval”, de Felicidade clandestina (1971):
E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque
vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano
também fosse uma espécie de máscara. (LISPECTOR, 1998, p. 26)
As personagens exemplificam a ânsia por entendimento de seus interiores, do
que existe de universal e de individual, de constante e de mutável. Tais personagens
não se encaixam em tipos psicológicos preestabelecidos, pois vivenciam situações
primordiais. Em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969), a busca pela origem
é evidenciada: “A mais premente necessidade de um ser humano era tornar-se um ser
humano.” (LISPECTOR, 1998, p. 32)
Benedito Nunes (1929-2011) nomeia de teologia negativa tal lógica de atingir a
divindade: Deus não é compreendido por meio de qualquer coisa, está acima do ser
humano ou da existência, logo, Ele nada é. O nada comporta essa realidade negativa
de que só se pode falar por exclusão de todas as coisas (NUNES, 1989). G.H.
posiciona-se frente a Deus como frente ao nada e conscientiza-se que o enigma que
persegue o homem na figura de suas indagações é a própria pergunta. A personagem
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 23
Aflorar dos eus no texto clariceano
Ângela, através do êxtase sensual que o encontro lhe proporciona, expõe tal questão
em Um sopro de vida:
[...] Oh Deus dos desesperados, me ache, você tem poder para
distinguir a minha pequena parte nobre que mal faísca entre o comum
cascalho, me ache! Agora! Já! Ah... Ah... Ah... me achou... Como voa a
alma que acaba de ser libertada há instantes pelo encontro de mim!
Deus me ACHOU. ALELUIA! Aleluia! E achei Deus na minha mais
profunda inconsciência, na espécie de estado de coma em que vivo
eu consegui balbuciar a visão do Deus – em mim mesma! Eu, também
escolhida pela piedade divina. Que glória. Ah, mas que glória.
(LISPECTOR, 1994, p. 142)
[...] Abençoa-me, Deus: estou te estendendo uma boca arranhada pela
febre de uma longa sede, estou te estendendo minhas quatro patas
estraçalhadas até o sangue nessa minha procura de me agarrar a Ti. Vem
e plenifica-me toda com a tua grande luz sossegada, Amém, eu dona de
nada, enfim, bafejada enfim por um sono infantil, pela rósea saúde da
alma, que se emana de mim para mim mesma e enobrece meu modo
de existir, eu, vestal sagrada, drogada pela essência da eternidade, eu
bafejada pela sorte da penúria extrema que, por não se aguentar mais
como dar, se torna riqueza. Não preciso mais pedir: Deus dá. [...]
(LISPECTOR, 1994, p. 143-144)
Ângela está assumindo a sua animalidade para atingir o êxtase. O que chama de
Deus pode ser nomeado outro deus ou conceito que implique um mergulho em si em
busca do essencial e do primordial em sua natureza.
Segundo Benedito Nunes:
[...] o ascetismo é um método que visa fundamentalmente ao sacrifício
do eu, extirpando o senso de propriedade da criatura humana em
relação a si mesma. A ascese só se completa quando, pela ação
conjugada de suas técnicas de redução da sensibilidade, da inteligência
e da vontade que levam ao despojamento interior e aos diversos graus
de vida contemplativa, dá-se a superação das limitações egoístas que
separam o indivíduo da totalidade do real. Nesse sentido, a nudez
e o esvaziamento ascéticos constituíram uma antecipação da morte.
(NUNES, 1989, p. 102)
G.H. toca o divino em um movimento de descida que é ascensão de um eu
desconhecido e que não preenche o significado das iniciais do nome que até então
se identificava. Ao olhar para baixo de seu prédio, ao ver o quarto da empregada em
sua luminosidade, ao ter contato com a matéria em si, representada pela barata, a
personagem atinge os primórdios da vida. Da mesma forma, Ana, personagem do
conto “Amor”, observa na disposição de seres do Jardim Botânico uma possibilidade
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Angélica Castilho
de entrar em contato com a vida em si. Todavia, não estabelece um contato mais
íntimo nem altera o curso de sua vida e, por fim, deixa-se levar pelas mãos do marido.
As personagens chegam ao divino através do grotesco, das manifestações de vida e
de morte conjuntamente.
A matéria viva desperta o interesse das personagens, aponta para um lado da vida
ignorado até então. O universo clariceano é escatológico no sentido do termo
enquanto estudo de excrementos, secreções, odores que animais produzem, pois a
narrativa não ignora e mesmo reforça que o homem é um animal, embora tente
esquecer todos os pontos de contato entre ele e as outras espécies. Trata-se
igualmente de um universo sexuado, pois a integração com o mundo atinge um
estado erótico (NUNES, 1989). Em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, Lóri
recebe em uma das suas “aulas” a lição de vivenciar a náusea de saber-se existindo:
[...] o forte cheiro sensual que o peixe cru tem. Lóri aspirou
profundamente o cheiro quase ruim, quase ótimo. [...] o cheiro de
maresia lembrava também o cheiro de um homem sadio, [...] Aspirou de
novo a morte viva e violentamente perfumada dos peixes azulados, mas
a sensação foi mais forte do que pôde suportar e, ao mesmo tempo que
sentia uma extraordinariamente boa sensação de ir desmaiar de amor,
sentiu, já por defesa, um esvaziamento de si própria: (LISPECTOR, 1998,
p. 99)
Os animais sempre presentes figuram como seres que suscitam o que existe em
comum entre todos os seres vivos. O eu que aflora é instintivo e primordial e ameaça
o eu social, como é exposto em Água viva:
Às vezes eletrizo-me ao ver bicho. Estou agora ouvindo o grito
ancestral dentro de mim: parece que não sei quem é mais a criatura, se
eu ou o bicho. E confundo-me toda. Fico ao que parece com medo de
encarar instintos abafados que diante do bicho sou obrigada a assumir.
(LISPECTOR, 1993, p. 54)
Existe uma integração entre humano e animal, ambos partilham do movimento de
vida e de morte.
A natureza opõe-se à rigidez do social. As personagens passam também pelo
momento de estranheza frente ao próprio elemento humano, o que proporciona
ainda mais a experiência dionisíaca. De acordo com Benedito Nunes, o que Jean-Paul
Sartre (1905-1980) chama de náusea é o instante de extremo descontínuo
contemplativo e mudo, o instante de revelação. Porém, esta circunstância na obra de
Clarice Lispector difere da náusea sartreana em um aspecto: o caminho percorrido
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Aflorar dos eus no texto clariceano
pelas personagens é muitas vezes místico, pois explora o ininteligível, ao passo que
uma postura unicamente existencialista caminha para uma busca pela explicação do
processo de tornar-se um ser. (NUNES, 1989)
O mistério é aceito nos textos clariceanos. A busca é pela descoberta de si e do
mundo e, finalmente, o encontro é a esperança que orienta. O encontro é belo e,
momentaneamente, aplaca a carência humana. O olhar primeiro que revela dores e
angústias do caminho também descobre alegrias, mesmo que sejam “clandestinas”.
Clarice Lispector narra o processo que encaminha personagem, narrador e escritor
a esse despertar. A escrita é a via crucis de todos que a reconhecem como condutora
para a contemplação da situação do homem moderno. Porém, a descoberta possui
um preço: uma vez consciente, o eu não mais se ilude com “armadilhas” do cotidiano
que ocultam a fragilidade e a transitoriedade do homem.
Referências
• BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. 5ª. ed. Petrópolis:
Vozes, 1990. v. 1
• CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua
portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
• KERÉNYI, Karl. Dioniso: imagem arquetípica da vida indestrutível. Tradução de
Ordep Trindade Serra. São Paulo: Odysseus, 2002.
• KEMPIS, Tomás de. A imitação de Cristo. Tradução de Pietro Nassetti.
São Paulo: Martin Claret, 2001.
• LISPECTOR, Clarice. A cidade sitiada. 7ª. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1992.
• ______. Água viva. 12ª. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.
• ______. A hora da estrela. 24ª. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1996.
• ______. A paixão segundo G.H. 18. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
• ______. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
• ______. Laços de família. 28ª. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
• ______. Onde estivestes de noite. 7ª. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.
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Angélica Castilho
• ______. Perto do coração selvagem. 16ª. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
• ______. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
• ______. Um sopro de vida. 10. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.
• NUNES, Benedito. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector.
São Paulo: Ática, 1989.
• SÁ, Olga de. A escritura de Clarice. 3ª. ed. Petrópolis: Vozes; Lorena: Faculdades
Integradas Teresa D’Ávila, 2000.
• SANT’ANNA, Affonso Romano de. O ritual epifânico do texto. In: LISPECTOR,
Clarice. A paixão segundo G.H. São Paulo: Scipione Cultural, 1997.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 27
Aflorar dos eus no texto clariceano
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 29
PRIMEIROS EUROPEUS NA AMÉRICA: A
QUESTÃO DA ALTERIDADE OBSERVADA
ATRAVÉS DOS RELATOS DE VIAGEM
Lêda de Carvalho
Faculdade CCAA / UNISUAM
Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Federal Fluminense
contato: [email protected]
Resumo: O presente artigo apresenta a experiência com a alteridade,
considerando o fato de que o conhecimento de uma cultura passa necessariamente pelo
de outras, e que este fenômeno de interação social leva à constatação das infinitas
possibilidades que a noção do outro e de seu universo podem oferecer como
contribuição para uma visão mais ampla do mundo do qual fazemos parte. Para ilustrar
a questão apresentada, utilizamos exemplos de textos conhecidos como relatos de
viagem, produzidos durante o período da conquista do território americano pelos
espanhóis.
PALAVRAS-CHAVE: alteridade; cultura; literatura de viagem.
Abstract: This article aims at presenting the experience with alterity considering
the fact that the knowledge of a specific culture suffers influence from others and that this
social interaction phenomenon leads us to believe in the endless possibilities that the notion
of oneself and its universe can offer as a contribution for seeing the world from a wider
perspective. To illustrate this issue, we have worked with texts known as travelling
accounts produced by the Spaniards during the conquest of the American territory.
KEYWORDS: alterity; culture; travelling literature.
30 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Lêda de Carvalho
Resumen: Este artículo presenta la experiencia con la alteridad, considerándose el
hecho de que el conocimiento de una cultura pasa necesariamente por el de las demás y que este
fenómeno de interacción social conlleva a la identificación de las infinitas posibilidades que
puede ofrecer la noción del otro y su universo como forma de contribuir a una más amplia visión
del mundo del que formamos parte. Con el fin de ilustrar la cuestión presentada utilizamos
ejemplos de textos conocidos como crónicas de viaje, producidos durante el período de la
conquista del territorio americano por los españoles.
PALABRAS CLAVE: alteridad; cultura; literatura de viaje.
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Primeiros europeus na América: a questão da alteridade observada através dos relatos de viagem
Entre os chamados relatos de viagem escritos à época das primeiras visitas ao
continente americano por parte dos europeus, muitos são os aspectos interessantes
a serem observados, a partir do olhar do homem que chega ao Novo Continente no
século 16. Entre eles, destacamos a questão da alteridade, vista aqui não apenas no
sentido do conflito gerado a partir do contato com outro, neste caso, o indígena, o
não-europeu, o pagão, assinalando o não-reconhecimento de seu universo cultural,
mas através dos momentos em que ocorre uma identificação, por parte deste mesmo
europeu, com o indivíduo que vê como um “selvagem” e que, entretanto, apresenta
alguma coisa em comum com sua própria natureza humana.
Vale ressaltar que não consideramos, ingenuamente, que haja existido, naquele
momento histórico, uma profunda reflexão sobre a questão do outro, nos termos em
que se discute hoje em dia. O que, sim, nos parece digno de atenção é a ocorrência,
ainda que esporádica, de um lampejo dessa percepção e o registro que dela possa ter
sido feito.
Com base nos sentidos que Todorov atribui à alteridade, em sua obra A conquista
da América, escolhemos para realizar estas observações três relatos de viagem: o que
foi realizado pelo frei Gaspar de Carvajal junto à expedição capitaneada por Francisco
de Orellana ao percorrer o rio Amazonas; o de Antonio Pigafetta sobre a célebre
viagem de circunavegação, sob o comando de Fernão de Magalhães, e o do francês
Jean de Léry, que esteve ao lado de Villegaignon no Rio de Janeiro.
É fato conhecido a fascinação que nutriam os navegadores pelos mistérios e
maravilhas que podiam encontrar durante suas frequentemente árduas e longas
expedições, assim como seu afã por encontrar riquezas que pudessem não apenas
alimentar seus sonhos pessoais como, também, as ambições dos monarcas que
patrocinavam suas ousadas viagens. Contudo, raras vezes se observa uma reconhecida
identificação do forasteiro com o sujeito nativo, devido a encontrarem-se, ambos,
distanciados da compreensão de um universo estranho ao seu conhecimento.
Dessa forma, no momento em que projetamos nossa mente ao passado, nos
damos conta do quão difícil deve ter sido àqueles homens considerar hábitos tão
diversos dos seus. Não apenas hábitos, mas, sobretudo, crenças e concepções de
vida, já que as distâncias que os separavam eram difíceis de vencer e as formas de
comunicação eram de todo precárias. Os intercâmbios ocorriam dentro de estreitos
limites geográficos (considerando-se a vastidão dos territórios hoje conhecidos) e
as notícias emitidas a respeito de povos distantes estavam sempre sujeitas à
interpretação dos poucos que conseguiam estabelecer contato. Há que se destacar,
também, a complexidade da sociedade europeia de então, que já trazia em seu seio
um acúmulo de vitórias e derrotas de inúmeras nações, como herança histórica de
vastos impérios e potências dominadoras em suas lutas de conquista. Acrescente-se,
ainda, um fator de peso indiscutível, a religião, e teremos à frente um quadro
bastante complicado para a mente do homem que, ao chegar à América, se
defrontava, inicialmente, com a imagem do paraíso, para, logo em seguida, ver essa
imagem transmutar-se em uma terra onde elementos desconhecidos e indivíduos de
aparência exótica lhes descortinam seus estranhos ritos, rodeados por uma natureza
agigantada, enigmática, formidável e, às vezes, hostil e incompreensível. Para esse
homem, a figura do nativo americano deve ter representado, ao mesmo tempo, uma
surpresa e um desafio. Não podia absorvê-lo. Sua cultura falava em dois grupos: os
dominadores e os dominados; teria, portanto, que escravizá-lo, caso contrário, se
submeteria a ele e isso era impensável. A religião dominante excluía, de forma
categórica, aqueles que fugissem a seus cânones e, dissimuladamente, a seu poder
tiranizador; o que reforçava a crença no direito natural de uns sobre outros. Tudo
isso contribuía grandemente para que aquele elemento europeu encontrasse sérias
dificuldades para enxergar o outro como um semelhante, ainda que diferente de si,
tornando ainda mais improvável que viesse a respeitar suas diferenças .
É exatamente neste ponto que reside a questão que nos propomos ressaltar.
Sem nos determos em divagações sobre conceitos subjetivos como certo/errado,
justo/injusto, bom/mau etc., tratamos de pontuar, nos referidos relatos, aqueles
momentos em que é possível identificar a semente de uma nova compreensão sobre
a alteridade, onde a dessemelhança não esteja fatalmente atrelada ao receio e a
variedade não tenha que ser combatida. Semente esta que, infelizmente, até nossos
dias, parece ainda não ter se aberto completamente à germinação.
Antes de estabelecer pontos comuns ou divergentes nos três textos relativos à
alteridade, convém, ainda, destacar uma observação: a religião predominante entre
os viajantes era Católica Romana e sob sua ótica estão os relatos de Pigafetta e
Carvajal. Jean de Léry, por outro lado, pertencia a um grupo de adeptos da Reforma,
em expansão na Europa àquele tempo. Este detalhe pincela com cores mais vibrantes
as anotações ressaltadas neste artigo, pois, apesar das divergências de credo, o
comportamento semelhante em muitos aspectos confirma que, do ponto de vista
32 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Lêda de Carvalho
da cultura geral, o homem europeu se parecia mais do que diferia no tocante à
intolerância em relação a todo aquele que se comportasse de modo diverso do seu
ou que expressasse distinta maneira de pensar.
Iniciando pelo relato de Pigafetta, testemunha e relator da primeira viagem ao
redor do mundo, sob as ordens de Fernão de Magalhães, encontramos uma pálida
percepção do outro como elemento indicador de uma cultura que, embora estranha,
ocupava seu lugar no tempo e no espaço, uma vez que, guiados pela ânsia de
completar a volta ao redor do globo e obter, com isso, vantagem em relação aos
portugueses, seus concorrentes, os navegadores que cruzavam os mares sob os
auspícios da coroa espanhola, eram obrigados a travar sucessivos intercâmbios
com nativos de diferentes regiões do planeta. Naturalmente, foi a necessidade que
impulsionou este movimento de interação e permitiu àqueles homens captar alguns
detalhes da existência de outras comunidades humanas, com seus próprios sistemas
e recursos, ainda que sob a névoa de um estreito entendimento. Em seu relato,
além de fatos corriqueiros nesse tipo de aventuras, como a troca de objetos
e de informações de caráter superficial, Pigafetta deixa clara a importância que a
observação atenta dos hábitos e manifestações das diferentes comunidades que
encontravam pelo caminho constituía um fator indispensável para que se atingisse o
objetivo de concluir com êxito a complexa viagem.
É assim que, por trás do espanto inicial e das arraigadas críticas fixadas,
sobretudo, em conceitos de cunho religioso, surge, de parte dos navegadores, a
tentativa de compreender, de alguma forma, o modus vivendi desses povos, conforme
se depreende das palavras do relator ao descrever o modo de vida dos indígenas que
viviam próximo às Ilhas Marianas, em que deixa escapar uma certa admiração
pelos trabalhos das mulheres e pela construção de suas casas, classificando-os de
“belíssimos” e considerando-os como “um povo engenhoso, apesar de ladrão”
(PIGAFETTA, 1957, p. 34). O documento apresenta, também, um longo relato sobre
o conhecimento adquirido junto aos índios para aproveitamento das qualidades do
coco – que os navegadores não conheciam até então –, assinalando que a obtenção
dessas novas e detalhadas informações, fundamentais para a sua sobrevivência,
exigia, como pré-requisito, um tratamento cordial em relação ao povo local que os
obrigava a abandonar, momentaneamente, juízos e preconceitos. O próprio Pigafetta
declara que “aquela gente” havia adquirido grande familiaridade com eles (os
navegadores) e que não apenas procedimentos, mas nomes, termos, enfim,
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 33
Primeiros europeus na América: a questão da alteridade observada através dos relatos de viagem
vocabulário, passaram a ser objeto do interesse de todos. O relato ainda fala da
“educação” ou da “fineza” com que os nativos locais se dirigiam aos forasteiros.
(PIGAFETTA, 1957, p. 35)
Alguns outros detalhes sutis, presentes nos relatórios destinados à metrópole,
como a explicação sobre as hierarquias de certos povos, eram referidas através da
associação com títulos usados pela própria formação hierárquica europeia (tais
como: reis e príncipes), traçando um paralelo entre as culturas; a declaração de
Pigafetta de que se submetera a comer carne na sexta-feira santa, em companhia dos
nativos, por força das circunstâncias, e a forma elogiosa como descreve a postura e
a vestimenta dos senhores daquele povo também atestam o despertar, involuntário
que fosse, do reconhecimento a que nos referimos.
Outras referências do relato de Antonio Pigafetta mencionam os povos do
Oriente, aos quais atribui uma vida com justiça, de amor à paz e conhecimentos
dignos de consideração. Adiante, na propaganda que faz do trabalho de conversão
ao Cristianismo que realizavam junto a tais povos, refere-se à rainha local em termos
que expressam admiração, apesar do modo de vestir e enfeitar-se completamente
diverso dos que se aceitavam na Europa de então.
Se, contudo, no documento redigido pelo italiano em seu notável trabalho de
observação, as referências são vagas, no relato do frei Gaspar de Carvajal nota-se
maior abertura para esse longo percurso que leva à discussão sobre o tema da
alteridade.
Carvajal foi responsável pelo relato da viagem realizada ao longo do rio
Amazonas, sob o comando de Francisco de Orellana. O rio, até então desconhecido,
foi percorrido pela primeira vez em toda a sua extensão por ocasião desta aventureira
e arriscada jornada.
Diferenciando-se de outros relatórios de viagens de descobrimento, as notícias
que nos chegam através de Gaspar de Carvajal falam de uma travessia quase
acidental, cuja prioridade era a sobrevivência. Em outras palavras: a busca por
alimentos e meios para autopreservação superava, de forma definitiva, o interesse
por riquezas. Esta contingência motivou uma nova maneira de encarar a figura do
indígena. Naturalmente, não nos referimos a uma concepção avançada que superasse
as enormes distâncias culturais – o que beiraria o absurdo –, mas a uma, digamos,
renovada predisposição para encontrar valores naquele outro, tão diferente de si.
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Lêda de Carvalho
Muito bem: se, na expedição que acompanhava Pigafetta, a luta pela
sobrevivência era inerente à meta a ser atingida, na de Orellana não havia nada mais
prioritário, pois a própria viagem pelo antigo rio Grande teria sua origem nessa luta.
Como religioso, Carvajal, naturalmente, preencheu seus comentários com o fervor de
sua crença e ressaltou os atributos dos seus compatriotas, atribuindo-lhes os mais
importantes feitos. Seu discurso é todo permeado pela certeza da atuação divina
em favor dos espanhóis e sua convicção é, como já se sabe, a de que estes eram
superiores naturais aos índios. Não difere, portanto, de outros tantos documentos
de mesmo cunho, neste particular. No entanto, ao longo de seu relato, por diversas
vezes, enaltece as qualidades dos índios de modo direto ou indireto e são essas
referências que o distinguem de alguns outros.
Inicialmente, um detalhe bastante frequente no texto é o emprego do título de
“senhor” atribuído aos chefes de grupos indígenas. A um deles o autor se refere,
inclusive, como sendo um homem de grande inteligência (CARVAJAL, 1992, p. 43).
Durante todo o relato do encontro com os índios, Carvajal expressa a preocupação
do capitão e de seus homens de evitar confrontos desnecessários – o que os obrigava
a manter o hábito da cordialidade e do respeito a determinados limites. Embora
forçosamente, poderíamos dizer que os comandados de Orellana eram comumente
levados a ter que reconhecer, em certa medida, o espaço e o direito dos índios,
mesmo quando impulsionados por razões de natureza pouco nobre.
Adiante, o frei apresenta situações em que menciona a boa vontade dos índios em
relação ao convívio com os europeus, o que possibilitava a todos compartilhar o
espaço em harmonia, acrescentando que aqueles sempre pediam licença antes de se
aproximarem. Enfatizando a questão da deferência e da cordialidade que requeriam,
também eles, para com seus costumes, chama a atenção dos leitores para o detalhe de
que o próprio capitão falava vários idiomas indígenas – condição que lhe outorgava
respeito e que teria salvo a vida de seus homens. (CARVAJAL, 1992, p. 45)
O que se vê, nesse fato, é a tentativa de uma adaptação à nova realidade que se
impunha, pois, na dura batalha pela vida, um pensamento era inquestionável: sem a
presença do índio, não haveria comida. Assim sendo, aqueles navegadores
intercalavam seus anseios de dominação e enriquecimento com o exercício da
contenção e as atitudes moderadas daqueles que reconhecem que compartilhar,
muitas vezes, é a única saída.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 35
Primeiros europeus na América: a questão da alteridade observada através dos relatos de viagem
Voltando ao texto de Carvajal, encontramos a narração de alguns episódios em
que houve luta entre os espanhóis e os índios e, mesmo nessas situações, não é raro
o autor referir-se à bravura dos adversários ou à sua organização nos momentos de
ataque (CARVAJAL, 1992, p. 57-59-61-89). Adiante, o relator se declara maravilhado
com a distribuição das casas e das aldeias dos nativos em espaços mais ou menos
regulares e demonstra extrema admiração pela arte dos indígenas, sua sabedoria
e engenhosidade, chegando mesmo a comparar suas habilidades à dos romanos
(CARVAJAL, 1992, p. 65-99)
Ao escrever sobre as invasões que seu capitão ordenou contra duas aldeias,
aproximadamente na época da Santíssima Trindade, Carvajal cita novamente o vigor
e a determinação com que os índios as defenderam, recordando que a persistência
dos espanhóis se devia quase exclusivamente à fome desesperadora que sentiam.
Apesar disso, o capitão decidiu bater em retirada diante da resistência encontrada, o
que, nas palavras do relator, teria ocorrido com o fim de evitar que os espanhóis
não saíssem honrados do confronto. Neste particular, um pormenor curiosamente
assinalado, em relação às batalhas contra tribos hostis, é o de que a hostilidade dos
próprios espanhóis foi previsivelmente ignorada por estes, como se lhes coubesse
sempre o papel de vítimas. Se observarmos o aspecto sutil desta passagem, podemos
inferir que, de modo indireto, Carvajal deixa claro que os índios poderiam oferecer
resistência digna de atingir a honra dos espanhóis. Desse modo, os coloca,
inconscientemente, em condição superior à de meros seres primitivos, como
gostavam de considerá-los os conquistadores de suas terras.
Uma coisa que sempre causava repulsa entre os viajantes europeus era o feroz
costume que os índios mantinham de devorar seus inimigos. A antropofagia era uma
forma de caracterizar o que os homens do Velho Continente consideravam bárbaro e
servia de justificativa para muitos de seus atos violentos. A este respeito, vêm bem
a propósito alguns comentários sobre o relato realizado por Jean de Léry; porém, não
sem antes fazer uma pequena introdução sobre o trabalho que realizou.
Jean de Léry era francês e calvinista. A expedição da qual participou, portanto,
possui características distintas das outras duas mencionadas aqui. Vivendo no Brasil,
entre os caraíbas e sob a autoridade de Nicolas Durand de Villegaignon, Léry se
36 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Lêda de Carvalho
expressa na condição de um homem instruído que se opunha não apenas a certas
condutas consideradas selvagens, provindas de um mundo que ainda mal conhecia,
mas também aos espanhóis, aos portugueses e à religião católica. Desse modo, sua
visão crítica revela uma postura mais abrangente, em especial quando contrapõe,
indiretamente, dois desses elementos.
Retomando a questão da antropofagia abordada no parágrafo anterior, podemos
acompanhar a pormenorizada exposição que Léry faz do ritual indígena que precedeu
a morte de um prisioneiro e que culminou quando este foi devorado pela tribo que o
derrotou. Suas palavras não escondem o espanto e o horror que tais espetáculos
lhe causaram. Contudo, ao final da exposição, ele se reporta à selvageria dos seus
compatriotas e de outros povos de seu “mundo civilizado” dissecando atos infames
e da mais profunda violência por eles praticados. Não é difícil concluir que seu
discurso representa um protesto político-religioso, uma manifestação de repúdio
à perseguição dos católicos aos protestantes; entretanto, não deixa de chamar a
atenção para as diferenças culturais como fatores de especial significação no
momento em que se pretende estabelecer um julgamento de valores.
Ao referir-se às características básicas dos indígenas, Léry discorre, também,
acerca da nudez das mulheres, das razões para a sua obstinação contra o uso
de roupas e do hábito de se banharem com muita frequência, confessando-se
maravilhado, ainda que surpreso. Em sua eloquência, que deixa entrever as
qualidades de futuro pregador religioso, convida aqueles que pretendessem condenar
com austeridade semelhantes hábitos a refletirem sobre a indecência do “vício
oposto”, ou seja, daqueles que, em seu meio social, se ocupavam apenas da
excessiva vaidade no vestir. Lembra o relator que a nudez das índias não estimulava
tanta malícia quanto os adornos provocantes das damas europeias, apesar de atribuir
àquelas a mesma beleza destas. Fala, ainda, do prazer que sentia em observar a
correria dos indiozinhos em contato com a natureza, com seus beiços furados, os
cabelos tosquiados e apresentando mais saúde que os meninos da sua terra natal.
Ao recordar o modo como os índios preparavam o cauim – sua bebida predileta –
e como realizavam as suas refeições, ele reafirma as particularidades que distinguia
essa sociedade daquela em que ele cresceu e foi educado. Ao mesmo tempo,
estabelece um paralelo entre elas para poder fazer-se entender mais claramente.
Por diversas vezes, Léry ressalta para o leitor que seu inicial espanto diante de um
determinado procedimento entre os índios terminava, não raro, sendo substituído
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 37
Primeiros europeus na América: a questão da alteridade observada através dos relatos de viagem
por uma assimilação natural. Em favor da mastigação de raízes, por exemplo, ele
contrapõe a feitura do vinho, proveniente da uva que foi pisoteada, e propõe que
se questione se um método poderia ser considerado menos higiênico que o outro.
(LÉRY, 1980, p. 133)
Seu relato é todo sinalizado com experiências inusitadas de maior ou menor
impacto, desde alguns fatos corriqueiros, como a adaptação ao sabor dos lagartos ou
a adoção de medicamentos naturais utilizados pelos índios, até a participação em
guerras entre tribos na qualidade de observador minucioso. Elogia a gratidão dos
índios e repudia os vícios da sociedade europeia, declarando que aqueles amavam as
pessoas alegres e liberais, não os avaros, neurastênicos ou taciturnos.
No tocante às concepções religiosas, apesar do esforço para entender a
descendência desses povos à luz da Bíblia, Léry desenvolve um pequeno discurso, em
que exorta o leitor a meditar sobre a fé e o materialismo, retirando bons exemplos da
conduta dos índios com seu desapego aos bens do mundo e sua confiança plena na
força da natureza. (LÉRY, 1980, p. 170).
Para finalizar esta despretensiosa e sintética investigação, não podemos deixar
sem registro certas passagens significativas do texto do relator que acompanhou a
chegada de Villegaignon ao Rio de Janeiro. Uma delas é a que descreve a poligamia
dos índios, mostrando-se encantado pela harmonia que imperava entre as esposas e
elucidando o leitor quanto à diferença de concepção que transformava, a seu ver, o
vício em virtude (LÉRY, 1980, pp. 223-224). Adiante, menciona o nascimento das
crianças e o modo de criá-las, considerando-o muito mais salutar do que os
procedimentos da chamada civilização (LÉRY, 1980, p. 226-227). Finalmente, a
música. Léry procura transcrever em notas musicais o ritmo que presidia algumas
cerimônias dos nativos, classificando-o como harmonioso, em consonância com o
canto e a dança que realizam.
Como se pode observar, nas cartas e relatórios abordados nestas páginas,
encontramos algumas expressões distintas daquilo que Todorov chamou de
“doutrina da desigualdade”, referindo-se à tendência, geralmente caracterizada
em tais documentos, de “apresentar os índios como imperfeitamente humanos.”
(TODOROV, 2003, p. 217)
38 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Lêda de Carvalho
Nossa reflexão final considera que as relações entre europeus e indígenas, dentro
do processo histórico que se desenvolveu a partir do “Descobrimento da América”,
refletem questões sociais que se estendem até os dias de hoje e, dentro dessa
perspectiva, a visão, algo incomum, presente nos casos que assinalamos, se torna
precursora das discussões que contemplam a temática da diversidade e dos direitos
de igualdade, tão frequentes nas sociedades modernas.
Referências
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Editorial, 1992. Edição Bilíngue.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 39
Primeiros europeus na América: a questão da alteridade observada através dos relatos de viagem
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 41
DIÁLOGO ENTRE MEMÓRIA E HISTÓRIA
ATRAVÉS DA CRÔNICA ANDINA DE
FELIPE GUAMAN POMA DE AYALA
Helena Dias dos Santos Lima
Faculdade CCAA
Doutora em Literatura Comparada pela UFF
contato: [email protected]
Resumo: Este artigo tem por objetivo desvelar na obra Nueva Corónica y Buen
Gobierno, do índio peruano Felipe Guaman Poma de Ayala, o processo de recuperação
da memória histórica peninsular e andina. Evidenciamos no discurso escrito e no
iconográfico de Guaman Poma imagens formadoras da carta-protesto do cronista contra
a devastação colonial, a mestiçagem e a ausência de valores morais e religiosos por parte
dos espanhóis. Por outra parte, apresentamos o poder do discurso oral e do escrito,
assim como a dialética entre a imagem e o poder.
PALAVRAS-CHAVE: crônica; memória e História; poder da imagem.
Abstract: The purpose of this article is to unveil the process of recovery of the
Andean historical memory in the masterpieces Nueva Corónica y Buen Gobierno, by the
Peruvian Indian Felipe Guaman Poma de Ayala. In Guaman Poma’s text, the images that
form the chronicler’s letter of protest against the colonial devastation, the miscegenation
and the absence of moral and religious values performed by the Spaniards are highlighted
both in the written and in the iconographic discourse. On the other hand, not only is the
power of the oral and written discourse presented, but also the dialectic between image and
power.
KEYWORDS: chronicle; memory and History; the power of image.
42 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Helena Dias dos Santos Lima
Resumen: Este artículo tiene por objetivo desvelar en la obra Nueva Corónica y
Buen Gobierno del indio peruano Felipe Guamán Poma de Ayala el proceso de recuperación
de la memoria histórica peninsular y andina. Evidenciamos en el discurso escrito y en el
iconográfico de Guaman Poma, imágenes formadoras de la carta protesta del cronista a la
devastación colonial, al mestizaje y a la ausencia de valores morales y religiosos por parte
de los españoles. Por otra parte, presentamos el poder del discurso oral y del escrito, como
también, la dialéctica entre la imagen y el poder.
PALABRAS CLAVE: crónica; memoria e Historia; poder de la imagen.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 43
Diálogo entre memória e História através da crônica andina de Felipe Guaman Poma de Ayala
O artigo que ora apresentamos consiste em uma pequena argumentação teórica
sobre o processo de reconstrução e recuperação da memória histórica andina. Para
conferirmos relevância às nossas apreciações sobre o tema aqui proposto, faz-se
necessário abordar questões sobre a memória individual, a coletiva e a histórica. Em
cumprimento aos nossos objetivos, analisamos a obra do cronista peruano Felipe
Guaman Poma de Ayala – Nueva Corónica y Buen Gobierno.
Traçamos como finalidade assinalar o poder que a escritura e a imagem exerciam
para a preservação e recuperação da memória histórica como expressão de um
indivíduo ou de uma coletividade. Consideramos um lugar no tempo e no espaço,
onde a escritura e a imagem são capazes de dominar o próprio tempo, utilizando-se
dos artifícios manipulados pela expressão humana. Desse modo, entendemos que
o estudo da memória abrange a Psicologia, a Biologia, a Psiquiatria, além de outras
ciências que dela se utilize.
Através da linha empírica da realidade do corpo humano, Aristóteles estabelece a
diferença entre a memória consciente e a memória inconsciente. Atribui à memória
consciente a capacidade de aflorar de maneira espontânea e de conservar o passado;
e a inconsciente como um ato voluntário de recordar esse passado.
La memoria tiene por objeto el pasado; nadie podría pretender recordar
el presente, mientras el es presente. [...] Toda memoria o recuerdo
implica, pues, un intervalo de tiempo. (ARISTÓTELES, 1962, p. 83)
As observações aqui propostas se fundamentam na teoria de que a memória é
a responsável por conservar e recuperar elementos de experiências individuais ou
coletivas, permitindo realizar operações mentais aproveitando-se das experiências
passadas. Dessa forma, podemos afirmar que escrever é um ato de recordar e fazer
memória. Literatura é memória; escrever, então, é um ato de transformar a memória
em uma expressão perene, porque informa valores sociais, culturais, políticos e
históricos, não deixando de constituir um campo de disputa pelo poder,
naturalmente associado a classes sociais e étnicas.
Tomando como referência as pesquisas de Jacques Le Goff, observamos que
o historiador afirma que a memória constituiu um pilar importante na luta pelo
poder conduzida por forças sociais, e acrescenta que se apoderar da memória e do
esquecimento é uma das grandes preocupações das classes sociais que dominaram e
ainda dominam as sociedades históricas. Para o historiador, a memória faz parte do
jogo do poder, e a História tem como norma a verdade.
Dessa forma, apropriar-se da memória e do esquecimento é ter como objetivo a
aquisição e a manipulação do poder. Resulta que os esquecimentos e os silêncios da
História são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva.
Entendemos, assim, com Le Goff, que a memória faz parte do jogo de poder, é
a que autoriza manipulações conscientes ou inconscientes, devendo obedecer aos
interesses individuais ou coletivos. A memória passa a ser uma recordação de um
passado vivido ou imaginado, daí ser um fenômeno coletivo.
Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes
preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e
dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da
História são reveladores deste mecanismo de manipulação da memória
coletiva. (LE GOFF, 2003, p. 422)
A escrita, como afirma Le Goff, permitirá a essa memória a criação de um suporte
especialmente dedicado a ela: o documento. Passa a escrita a ser responsável por
armazenar informações e assegurar a passagem da esfera auditiva à visual.
[...] a escrita tem duas funções principais: ‘Uma é o armazenamento de
informações, que permite comunicar através do tempo e do espaço, e
fornece ao homem um processo de marcação, memorização e registro’;
a outra, ‘ao assegurar a passagem da esfera auditiva à visual’, permite
‘reexaminar, reordenar, retificar frases e até palavras isoladas’. (LE GOFF,
2003, p. 429)
Por conseguinte, trazemos as reflexões do sociólogo Maurice Halbwachs, defensor
da teoria de que toda memória é social, e a definição de Pierre Nora, da memória como
“instrumentalización del pasado en el presente” (NORA, 1985, p. 25), ou seja, o uso do
passado com fins políticos. A proposta de Halbwachs apresenta três hipóteses:
na primeira, o passado não se conserva, e sim se reconstrói a partir do presente; a
segunda hipótese estabelece que a memória individual existe, desde que participe
de uma memória social preexistente, quer dizer, a memória do grupo é condição
fundamental para a lembrança dos indivíduos; a terceira esclarece que o passado
serve para justificar as representações do presente. Entendemos, então, que a
memória coletiva é a condição para a existência das memórias individuais.
44 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Helena Dias dos Santos Lima
A memória coletiva é um instrumento e objeto de poder, que permite estratégias
de indivíduos empreendedores a adaptar genealogias, legalizar vantagens históricas
e controlar tradições. Halbwachs fala da memória coletiva como um processo de
reconstrução de um passado vivido por um grupo ou por uma sociedade, inseridos
em marcos sociais, como o tempo e o espaço, e esclarece que, para recordar um fato,
não basta reconstruir peça a peça a imagem de um fato passado. Essa reconstrução
deve realizar-se a partir de dados que se encontram em nossa mente e nas mentes
dos demais que integram a mesma sociedade.
Observamos que recriar a história passada, por meio da literatura, é uma forma
de conceber e reviver determinadas ações que se perderiam ao longo do tempo,
entendendo, assim, que a História se alimenta de memória e a recuperação dessa
memória é o meio de combater o esquecimento. Desse modo, Eugenio Amaya, em
seu texto La búsqueda de la memoria y su traslación escénica en Tejas Verdes, afirma
que a recuperação da memória histórica deveria ser um ato de reflexão constante: “La
recuperación de la memoria histórica, en mi opinión, debería ser un continuo, una
reflexión permanente. Contemplar el presente para indagar en el pasado y viceversa”.
(AMAYA, 2007, p. 13)
Nesse sentido, a visão que Halbwachs apresenta sobre a memória coletiva
estabelece uma união entre passado e presente, assim como o indivíduo com o grupo
social ao qual pertence, produzindo um sentido de continuidade histórica. O passado
é reconstruído pela memória de acordo com os interesses, as crenças e as situações
geradas no presente, e a memória que teria por finalidade reforçar o sentido de
continuidade histórica com o passado exerce a função de reconstruir constantemente
o próprio passado. Essa visão apresentada por Halbwachs sobre a memória coletiva
leva-nos a entender que existe uma construção ideológica dando um sentido de
identidade atribuída ao grupo, a uma nação ou a uma comunidade, justificando o
fato de se inventar uma memória para conservar a continuidade histórica.
Em nossas considerações sobre a memória coletiva, percebemos que existe,
em todo esse conceito, uma preocupação por não confundir memória coletiva com
memória histórica. A memória histórica constrói uma parte da memória coletiva e
se caracteriza pela concepção crítica de um fato histórico de participação coletiva.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 45
Diálogo entre memória e História através da crônica andina de Felipe Guaman Poma de Ayala
Dentro desse âmbito histórico, a recuperação da conquista andina se formaliza na
leitura da História ao recuperar a memória desse período de confronto, de imposição,
vivência entre expressões culturais tão diferentes.
José F. Colmeiro, em suas pesquisas sobre a recuperação da memória histórica,
afirma que: “La memória histórica se caracteriza, así pues, por su naturaleza
auto-reflexiva sobre la función de la memoria. Toda memoria histórica es por fuerza
coletiva, aunque se active de manera individual” (COLMEIRO, 2005, p. 18). Desse
modo, entendemos que toda memória é sempre resultado de uma construção social
e que tanto a memória individual quanto a coletiva deve integrar-se, pois uma não
existe sem a outra.
Nesse contexto, inserimos questões de caráter político-social como elementos
fundamentais para a representação do poder, mesmo porque a política sempre esteve
presente tanto nos discursos históricos como nos artísticos e, nessa esfera, citamos
a confluência entre teatro, História e memória. Incluímos, então, a política a essas
abordagens, até mesmo como forma de reler a história inerente à própria questão da
memória.
Deste modo, observamos que, no espaço colonial, Felipe Guaman Poma de Ayala
constrói a memória histórica do Peru dos incas, por meio da sua obra, apresentando
a crônica como um instrumento literário administrativo e portador de memórias.
O cronista apresenta, além do discurso escrito, o discurso oral onde insere 398
desenhos que dão mais realismo à sua narrativa.
A utilização de imagens como recurso para validar e testemunhar a memória da
conquista do Peru, na visão do indígena, será o artifício pelo qual Felipe Guaman
Poma de Ayala utilizar-se-á, juntamente à língua espanhola e o quéchua, para expor
em sua crônica peruana os fatos até então narrados apenas pelos espanhóis. Essa
leitura nos permite entender com Balandier que “o poder só se realiza e se conserva
pela transposição, pela produção de imagens, pela manipulação de símbolos e sua
organização em um quadro cerimonial”. (BALANDIER, 1982, p. 7)
Lembramos que, antes da escrita e sem o papel para armazenar informações, era
necessário treinar a memória. Nessa época, a memória era praticada de forma visual,
por meio das artes: da pintura, da arquitetura. A memória como arte da visualização
se centrava nas imagens e nas palavras. Ao pensarmos nos sentidos humanos, a
visão era o primeiro processo para a recuperação e a conservação de informações.
46 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Helena Dias dos Santos Lima
Saímos da visão espanhola sobre o processo histórico da conquista para a visão
do indígena que a viu e a viveu. Cabe-nos dizer que a ótica adotada é a de um
peruano que vivenciou os momentos da conquista e sofreu os da colonização.
Apoiando-se na escrita como elemento de resgate e divulgador de sua cultura,
Guaman Poma será o protagonista e testemunho da própria história.
Em sua origem, a palavra “crônica” significava relato de acontecimentos que
sucediam em ordem cronológica, apresentando-se como um breve relato ou registro
de eventos, funções semelhantes às do livro. A crônica, de um modo geral,
apresentará as características de um relato, como assinala a própria origem da
palavra, reunindo dados históricos com uma narração poética. Não pretendemos
analisar a problemática gerada entre verdade poética e verdade histórica;
coincidiríamos com as teorias de Aristóteles, que analisava a História como
formadora de fatos reais e a poesia como formadora de fatos desejados:
Es manifiesto asimismo de lo dicho que no es oficio del poeta el contar
las cosas como sucedieron, sino como debieran o pudieran haber
sucedido, probable o necesariamente; porque el historiador y el poeta
no son diferentes por hablar en verso o en prosa (pues se podrían poner
en verso las cosas referidas por Herodoto, y no menos sería la verdadera
historia en verso que sin verso); sino que la diversidad consiste en que
aquél cuenta las cosas tales cuales sucedieron, y éste como era natural
que sucediesen. Que por eso la poesía es más filosófica y doctrinal que
la historia; (ARISTÓTELES, CAP. III, p. 41)
Nesse tipo de gênero, o cronista se assemelha ao historiador, por seu
comprometimento com a História, porém sem perder o caráter literário. Observamos
essas manifestações nas crônicas das Índias, que representam e se constituem do
gênero histórico e do literário, muito semelhante à literatura medieval, que incorporava
um caráter descritivo proveniente da narração dos grandes feitos realizados pelos
cavaleiros medievais. Walter Benjamin afirmará que
o cronista é o narrador da história [...] O historiador é obrigado a
explicar de uma ou outra maneira os episódios com que lida, e não
pode absolutamente contentar-se em representá-los como modelos da
história do mundo. (BENJAMIN, 1996, p. 209)
Entre as formas épicas, a crônica é aquela que apresenta os fatos históricos de
maneira incontestável, pois à medida que o historiador é obrigado a explicar de uma
ou outra maneira os episódios com que lida sem poder apresentá-los como modelos
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 47
Diálogo entre memória e História através da crônica andina de Felipe Guaman Poma de Ayala
da história do mundo, o cronista fica livre do ônus da explicação verificável, sendo
substituída pela interpretação, que não se preocupa com o encadeamento exato de
fatos, mas como o insere na narrativa.
Na Europa, particularmente na Espanha, a crônica surgiu como uma das
derivações do gênero épico. Tinha como característica a exaltação de ações de
príncipes e monarcas, mas logo é tomada pelo espírito da ética espanhola, assume
características didáticas, passando a ser exemplo para bons governantes como
espelho da verdade e exemplo de doutrina, como afirma Gonzalo Fernández de
Oviedo:
Historiadores y cronistas son en la real casa oficio muy prominente, y el
mismo título dice qué tal debe de ser, y de qué discursos de las personas
reales y sucesos de los tiempos, con la verdad y limpieza que se
requiere. Oficio es de evangelista, y conviene que esté en persona que
tema a Dios, porque ha de tratar de cosas muy importantes, y tanto
arrimándose a la elocuencia y ornamento retórico; cuanto a la puridad
y al valor de la verdad, llanamente y sin rodeas ni abundancia de pues
es notorio que sin el que lleva salario de tal oficio. (OVIEDO, 2006,
p. 162)
Durante o processo de conquista do Peru, alguns soldados de Francisco Pizarro
assumem a figura de escrivães e iniciam a tarefa histórica de narrar as peripécias e as
aventuras dos espanhóis na América.
Afirmam algumas escrituras que os cronistas das Índias passam a ser os olhos e
o coração da História, pois a viram e a sentiram; são testemunhos diretos da História.
No entanto, nem todos viram, alguns apenas ouviram, fato que questiona o grau de
fidelidade. Oviedo, em sua crônica (1549), nos alerta a desconfiar dos cronistas que
escrevem seguindo a relação de olhos que não são os do cronista:
[...] Solamente quiero deçir ó dar un aviso al letor contra la maliçia de
algunos historiales [historiadores] que hablan en Yndias sin verlas; y es
que atienda el letor en dos cosas: la una desde dónde escribe el que lo
diçe; é la otra que no debe dexar de considerar que hallará algunos
passos [pasajes], que yo he escripto y essostros remiendan, mudando
las palabras, porque parezca que[e]s suyo lo cuentan, é van à dar de piés
en lo que de mi tractados han hurtado; é tal ha avido que casi á la letra
en partes diçe lo que he dicho. (OVIEDO. T. IV 3ª parte, p. 592)
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Helena Dias dos Santos Lima
A crônica de Guaman Poma se reveste de uma narração histórica e abre espaço
para escrever a história dos incas, passando a assumir a função de historiador.
À medida que escreve para um determinado destinatário, o rei Felipe III, o cronista
assume uma voz coletiva, de denúncia, que exterioriza sua relação contra o sistema
colonial de seu tempo.
Por se tratar de uma denúncia do poder centralizador na figura do conquistador,
apresentando Francisco Pizarro como o responsável pelo extermínio cruel da
população andina, Nueva Corónica y Buen Gobierno teve sua condenação marcada
pelo anonimato por três séculos. Guaman Poma tinha como projeto denunciar ao
monarca espanhol Felipe III dados da violência e cobiça dos que ocupavam postos
administrativos na colônia, além de defender os andinos como cristãos civilizados e
apresentar os espanhóis como pecadores desviados da fé. O cronista transmite as
imagens de um mundo “al revés”, em desordem.
O reverso da conquista é apresentado pelo cronista em defesa dos indígenas,
destituídos de respeito. A história da conquista, como afirma Todorov, estaria
marcada, ao mesmo tempo, pela revelação e pela recusa da alteridade humana.
A concepção de mundo que apresenta Guaman é percebida através da magia do
mito, entre “arriba y abajo”. Aída Marcuse, em seu livro de contos míticos sobre os
incas, explica que, para os povos das serras do sul do Peru, o mundo está dividido
entre “Hanan Pacha, el mundo de arriba, y Ukhu Pacha, el mundo de abajo”.
(MARCUSE, 1999, p. 21)
Ao citar a topologia do Peru, quando a referência era a parte alta de Cuzco,
denominava Hanan Cuzco. A parte baixa era Lurin Quzco ou o sinônimo Hurin
Cuzco. No tocante à postura do cronista, é importante observar que Guaman Poma,
através dos seus desenhos, apresenta a rigorosa ordem hierárquica que concebia o
mundo andino, e esta busca do passado mítico recupera as tradições baseadas nas
dualidades “arriba-abajo” (Hanan-Hurin), já comentadas antes.
Desta forma, são atribuídos valores hierárquicos à disposição de cada desenho,
sempre confrontando as dualidades: mundo superior e mundo terreno, esquerda e
direita, masculino e feminino. Estas relações operam no plano gráfico, propiciando
um diálogo permanente com o leitor.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 49
Diálogo entre memória e História através da crônica andina de Felipe Guaman Poma de Ayala
Para o entendimento deste diálogo, o pesquisador deve familiarizar-se com a
geografia andina, voltada para a estruturação do Tahuantinsuyo (as quatro partes
do mundo andino). Era um império que possuía mais de quatro mil quilômetros,
equivalente hoje ao Peru, Bolívia, Equador, nordeste da Argentina, sul da Colômbia
e parte do Chile. Dividido, segundo a língua quéchua, em: Chinchaysuyo (norte),
Antisuyo (leste), Collasuyo (sul) e Cuntisuyo (oeste). O território que correspondia
ao Chinchaysuyo era mais importante que Antisuyo; fazem parte de Hanan (arriba).
Por outro lado, Collasuyo é mais importante que Cuntisuyo, situado em Hurin (Urin,
Lurin) (abajo).
No início do século 16, o Tahuantinsuyo era governado pelo Inca Huayna Capac.
Após sua morte, o império entrou em crise pela sucessão do incanato. Os irmãos
Atahualpa e Huáscar lutaram pela posse do império. O primeiro contava com o apoio
das famílias elitistas do Hanan, e Huáscar, apoiado pelos sacerdotes do Hurin, se
proclamou o novo Inca.
Guaman Poma interpreta o Peru como todo o universo, segundo as categorias de
Acima e Abaixo. Na imagem ou desenho de número 42, as Índias estão situadas na
parte mais alta do mundo, portanto, mais próxima do sol. Castela está na parte
baixa. O cronista explica que a proximidade do mundo inca com o sol é interpretada
como as terras que sempre estão com a presença do sol, sempre é dia claro, “en el
dia” “in dias”, como explica a citação abaixo:
Estaua esta tierra en más alto grado, ací lo llamaron Yndias. Quiere dezir
tierra en el día, como le pucieron el nombre tierra en el día, yndias, no
porque se llamase los naturales yndios de yndias rrodearon yndios el
qual esta tierra está en más alto que todo Castilla y las demás tierras
del mundo. El primer bocablo fue el Mundo Nuebo; este título y
uerdadero nombre tiene y se llama naturales. (GUAMAN POMA, 1993,
p. 342)
O relato ao monarca espanhol apresenta a relação da sociedade andina desde os
começos dos tempos até o reinado dos incas, informando que a profunda crise em
que se encontram os incas é resultado da colonização e conquista dos espanhóis.
Ao longo da sua crônica, descreve as tradições, os hábitos, costumes e crenças dos
incas, recompõe o passado e recupera a memória individual, que será o suporte da
memória coletiva, correspondendo à memória dos membros da cultura inca e de seus
descendentes.
50 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Helena Dias dos Santos Lima
Denomina sua crônica como “Nueva Corónica”, cujo objetivo é apresentar-nos
uma nova versão da história pré-colombiana e da conquista, até então não conhecida
pelos que se inteiraram da história do Peru somente por meio do discurso europeu.
Apresenta, detalhadamente, a cosmogonia inca e a compara ao modelo da história
cristã. Para preservar seu ponto de vista, Guaman Poma escreve um longo texto
em prosa, em espanhol e em quéchua, e, para completar seu texto, intercala 398
desenhos que ilustram sua posição e argumento sobre seu ponto de vista,
particularmente sobre o abuso contra a população nativa, além de ser o modo mais
direto de comunicar suas ideias ao rei e persuadi-lo a intervir na colônia.
Descrever características culturais, narrar os valores de um povo, resgatar
tradições são algumas das ações que rememoram e conferem um significado à
imagem que se descreve, se narra e se resgata. Manter viva a imagem do império inca
é um dos objetivos da crônica de Guaman Poma. Nada escapa às suas descrições dos
hábitos e costumes dos incas. Na crônica, atua a memória coletiva, construída por
meio da memória histórica.
As narrativas centradas em uma visão puramente europeia não tomariam por
defesa a divulgação dos valores das populações dominadas. Caberia ao nativo a
narrativa desses testemunhos, que, como proprietários da cultura, da terra e dos
costumes, recuperariam a memória anterior à conquista e a transformariam em juízo
para a posteridade. Assim atuará a crônica de Guaman Poma.
Em Nueva Corónica y Buen Gobierno, o cronista se identifica como príncipe, filho
de don Martín Guaman Mallqui de Ayala, descendente dos grandes senhores incas,
e sua mãe, Curi Ocllo, filha do décimo inca Topa Ynga Yupanqui. A ascendência nobre
de Guaman legitima sua condição política de luta pela preservação da cultura do
seu povo e a recuperação da sua história. Durante quase trinta anos, Guaman Poma
percorreu o território peruano extraindo informações sobre a conquista e a
colonização para serem acrescentadas à sua crônica:
EL PRIMER COMIENZO: la historia donde se comensó a escribirse este
dicho libro, Primer corónica y de buen uiuir de los cristianos, que es la
historia y uida y cristiandad que pasaron seruiendo a Dios los dichos
don Martín de Ayala, segunda persón del Topa Ynga Yupanque, y su
muger, doña Juana Curi Ocllo, coya [reina], hija de Topa Ynga Yupanque,
y de sus hijos. (GUAMAN POMA, 1992, p. 11)
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 51
Diálogo entre memória e História através da crônica andina de Felipe Guaman Poma de Ayala
A primeira parte é dedicada à genealogia inca. O relato apresenta, passo a passo,
segundo seus preceitos religiosos, como começou Deus a criação do mundo. O autor
divide a origem do mundo em idades: a criação do mundo europeu e a do mundo
inca. Idades caracterizadas: a primeira pela cronologia bíblica e a segunda pelas
idades andinas.
Essas idades correspondiam às gerações de tribos indígenas dos Andes e, com
elas, o autor traça um paralelo com as idades europeias. O conceito de descendência,
de linhagem ou de casta, para Guaman Poma, serve para distinguir as quatro
primeiras idades andinas da dinastia dos Incas. As idades, segundo Guaman Poma,
se distribuem da seguinte forma:
Observamos que a representação da criação do mundo segue as tradições das
narrativas bíblicas, tendo como fio condutor a fé cristã, na obra atuando como elo
moral no discurso do autor. Nesse caso, os instrumentos de resistência utilizados
por Guaman foram a fé, a escrita e a imagem. Sua representação é a de que o andino
não difere das demais raças, sempre fez parte da família comum a todos os homens,
de forma que somos todos descendentes de Adão e Eva. Em outro momento, após o
dilúvio, os descendentes de Noé repovoaram o mundo, onde se insere, também, a
região andina.
Guaman, por meio dos desenhos que ilustram o seu texto, resgata e perpetua a
história do imenso império inca, o Tahuantinsuyo. Cada uma das partes do império
possuía um senhor, de casta principal, que a governava e fazia parte do conselho
real. A memória histórica do Peru inca é recuperada à medida que todo o sistema
EDADES ANDINAS EDADES EUROPEAS
1 – Uari Wiracocha runa
2 – Uari runa
3 – Purun runa
4 – Auca runa
5 – Inca runa
6 – España en Indias
1 – Adán y Eva
2 – Noé
3 – Abrahán
4 – David
5 – Jesucristo
52 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Helena Dias dos Santos Lima
organizacional desse povo é submetido à apreciação do leitor dessa imensa carta
destinada a ser a memória de uma nação: “Estos señores prencipales uirreys y príncipes
y capac apo, apo, curaca, allicac y otros caualleros estauan y rrecidían en la gran
ciudad del Cuzco”. (GUAMAN POMA, 1993, p. 337)
A escrita e os desenhos conferem e legitimam os valores da cultura inca, e essa
consonância do diálogo estabelecido entre as imagens e o texto nos conecta aos
mitos, à religião, à política, à arte e às tradições do império inca. Guaman Poma
transita pelo período colonial por meio de suas imagens, adequando sua
ancestralidade inca à nova realidade cristã. A cultura dos incas é apresentada como
modelo a ser seguido; os crimes, traições, roubos, adultério são punidos com
severidade, nada escapa à justiça do imperador e dos senhores principais.
A chegada do conquistador espanhol ao Peru foi o encontro com um Estado
organizado, com um amplo sistema de leis, uma arquitetura significativa, forte
produção de alimentos que abastecia a comunidade inca, templos religiosos, códigos
de preservação de conduta e respeito. O momento da chegada dos espanhóis
coincide com os tempos de tensão provenientes da guerra civil, provocados pela
morte de Huayna Capac e o fator que desencadeará os conflitos entre os irmãos
Huáscar e Atahualpa. Enfim, elementos que contrastam com a visão veiculada pelos
cronistas europeus. O resgate das tradições e a preservação da riqueza cultural dos
incas são o eixo que organiza e imortaliza a memória desse povo.
Para os espanhóis, a memória da conquista se perpetua por meio das inúmeras
crônicas, informando a visão unilateral espanhola dos fatos, e por meio da
construção da imagem dos conquistadores. Para os peruanos, a conquista, na visão
de Guaman Poma, representa a destruição de uma sólida estrutura, fragmentada pela
cobiça, pela inveja e pela violência. Os espanhóis contaminam o Tahuantinsuyo com
os vícios e a falta de virtudes. Nessa exposição, a inversão transcorre no sentido de
que os indígenas serão os verdadeiros cristãos, tementes a Deus, e os espanhóis os
homens de pouca fé.
A crônica pomiana é um ir e vir de informações sobre o Peru colonial, trazendo
reminiscências desde a criação do mundo. Foi escrita com muitos propósitos:
testemunhar os fatos acontecidos antes, durante e depois da chegada dos espanhóis,
exigir justiça e a reforma da administração real espanhola. O cronista, como herdeiro
da cultura inca, utiliza-se dos meios do próprio conquistador, a fé e a escrita, para
perpetuar a memória das tradições do seu povo e suas constantes transformações.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 53
Diálogo entre memória e História através da crônica andina de Felipe Guaman Poma de Ayala
A memória, como antes comentamos, é a presença viva do passado no presente,
e o discurso de Guaman caminha para a objetividade do discurso histórico,
procurando afirmar como verdadeira a composição do relato. A memória coletiva se
constrói, na crônica, à medida que envolve as inúmeras vozes do vencido na sua
narrativa. A própria História analisa as vozes do conquistado como a do vencido, do
dominado, do subalterno. Guaman não se permite ser identificado como uma voz
subalterna. Sua apreciação dos fatos é a de crítico consciente do seu valor e do valor
de sua cultura. O poder se encontra em mãos inimigas, e esse inimigo não é superior,
mas sim o mais bem equipado em termos bélicos.
Guaman deixa em seu relato a história e a memória do império inca e quéchua.
A voz de um povo que trouxe para o presente, como resgate daquela memória, a certeza
de que entre seus antepassados não havia fome e miséria, havia ética, honra e verdade.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 55
Diálogo entre memória e História através da crônica andina de Felipe Guaman Poma de Ayala
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 57
McONDO E A ESTÉTICA DO BUSINESS
PLAN: CONSIDERAÇÕES SOBRE A
ESCRITA PÓS-MODERNA E A LÓGICA
DO MERCADO NA LITERATURA
HISPANO-AMERICANA
Rodrigo Fernández Labriola
Faculdade CCAA / UFF
Doutor em Literatura Comparada pela UERJ
contato: [email protected]
Resumo: Na literatura dos anos 1990, sobreveio um movimento autodenominado
McOndo. Integrado por um grupo de jovens escritores hispano-americanos, tratava de
uma proposta estética influenciada pela mídia, pelo mercado editorial e pela política
neoliberal. Através dos prólogos de duas antologias e em outros textos diversos,
McOndo tinha como ponto fundamental a rejeição do realismo mágico – gênero que
caracterizara quase hegemonicamente a literatura do continente a partir dos anos 1960.
Este artigo avalia as relações desse movimento com alguns elementos da literatura
pós-moderna presentes na atualidade, e também com os discursos da indústria cultural
que apelam ao mercado para legitimar sua proposta estética.
PALAVRAS-CHAVE: McOndo; Fuguet; pós-modernidade.
Abstract: Back on 90’s literature, a movement so-called McOndo broke forth. Its
members were part of a young Hispanic writers group, broaching the aesthetical proposal
influenced by the media, the editorial market and the neoliberal politics. Throughout two
anthologies’ prologues and other several texts, McOndo had its basis upon a rejection of
58 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Rodrigo Fernández Labriola
magical realism – a genre that almost defined Latin-American literature since the 60’s. This
article analyses the dialogue between this movement and some postmodern literature
elements that are present nowadays, likewise the culture industry speeches that appeal to
the market in order to legitimate its aesthetical proposal.
KEYWORDS: McOndo; Fuguet; postmodernity.
Resumen: En la literatura de los años 90 sobrevino un movimiento autodenominado
McOndo, integrado por un grupo de jóvenes escritores hispanoamericanos, alrededor de
una propuesta estética influenciada por los medios masivos, por el mercado editorial y por
la política neoliberal. A través de los prólogos de dos antologías y en otros textos dispersos,
McOndo defendía como punto fundamental el rechazo al realismo mágico que había
caracterizado casi hegemónicamente a la literatura del continente a partir de los años 60.
Este artículo evalúa las relaciones de ese movimiento con algunos elementos de la literatura
posmoderna presentes en la actualidad y con los discursos de la industria cultural que
apelan al mercado para legitimar su propuesta estética.
PALABRAS CLAVE: McOndo; Fuguet; posmodernidad.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 59
McOndo e a estética do business plan: considerações sobre a escrita pós-moderna e a lógica
do mercado na literatura hispano-americana
INTRODUÇÃO
Os anos 1990 presenciaram múltiplas transformações no âmbito da literatura
latino-americana, e muitas delas ainda não parecem analisáveis sem recorrermos a
uma tendência que surge tanto das dificuldades da contemporaneidade quanto da
irrupção na literatura, em geral, dos sintomas mais característicos da globalização.
Essa tendência subjacente, quase que hegemônica hoje, é a de ver uma ruptura
qualitativa entre as obras literárias de décadas passadas e a produção dos novos
textos “literários” do período que se denominou pós-modernismo. Por um lado,
existe um certo gesto vanguardista em uma grande porção das obras
contemporâneas, tentando se afastar violentamente da tradição letrada (os livros)
em prol de uma espécie de genealogia bastarda e tecnológica ao mesmo tempo,
composta pelos produtos do cinema, da TV, da informática e da indústria discográfica
pop. Essas obras literárias pós-modernas, porém, são publicadas no formato livresco
e, claro está, recebem toda a aura “culta” dos âmbitos letrados. Por outro lado,
pareceria que essa tendência a pensar numa ruptura seria coerente com as mudanças
radicais que sofreu a crítica literária nas últimas décadas: os estudos culturais
abriram o campo disciplinar para além do cânone e a literatura foi assimilada
rapidamente pelas produções da indústria cultural (a ponto de se tornar, ela própria,
um objeto difuso no contexto das “culturas híbridas”). A ideia de um cânone, porém,
estaria longe de ser abandonada, se por cânone entendermos um conjunto de textos
legitimados com o rótulo de literatura pela pesquisa acadêmica e pelo sistema de
publicações.
O presente artigo se propõe a problematizar essa suposta ruptura com a análise
de um movimento? / grupo? / estética? que foi um dos primeiros a apresentar essas
características dentro da literatura hispano-americana. Trata-se do autodenominado
grupo McOndo, que surgiu e cresceu na década de 1990, mas cujos procedimentos
discursivos, objetivos estéticos e efeitos na crítica literária se prolongam de diversas
maneiras até hoje, mesmo na prática intelectual de autores que já não formariam
parte dele. Para isso, tomaremos alguns dos prólogos e artigos escritos pelo
representante mais expoente de McOndo, o chileno Alberto Fuguet, seguindo as
linhas que o professor André Trouche pesquisou nesses textos no final de sua vida,
procurando avaliar o novo McOndo como signo genérico e eixo de uma construção
identitária substitutiva àquela anterior referência estética e política que formara
o campo intelectual hispano-americano do século passado: o Macondo de García
Márquez.
É importante mencionar que a originalidade da pesquisa iniciada por Trouche,
infelizmente inconclusa, residia na análise dos procedimentos discursivos dos
McOndos em relação a seus objetivos estéticos e aos efeitos sobre a crítica literária.
Assim, essa escolha, que deixava deliberadamente fora as obras, estava motivada
pela hipótese de que existiria uma lógica de mercado, extraliterária (no sentido
tradicional do que é especificamente literário), e visível somente nesses textos de tipo
programático ou metaficcionais, sendo preciso trabalhar nas margens discursivas
do que já está sendo fixado como “texto literário” antes mesmo de ser publicado
ou ainda escrito. Isto é: propondo uma tendência teórica alternativa àquela do
par ruptura/continuidade na hora de pensar as novas configurações da literatura
latino-americana. Sem pretender demonstrar tal hipótese em sua totalidade, é
preciso explicitá-la previamente para considerar a análise que se segue como uma
série de possíveis apontamentos para tentar cercá-la e aplicá-la.
PÓS-MODERNISMO E DISCURSO PUBLICITÁRIO
Na América Latina, a “moda do pós-modernismo” (num sentido amplo) já não é
nova, tampouco o era quando chegou à escrita literária por volta de 1989, com uma
forte influência de autores americanos como Charles Bukowski e John Fante (no
conto), ou Bret Easton Ellis e Douglas Coupland (no romance), além de autores de
culto (cult) como Thomas Pynchon (que, em 1973, escreveu O arco-íris da gravidade,
uma obra cheia de referências à cultura de massa), entre outros. Naquela época, a
literatura latino-americana estava vivendo um certo apogeu que, se bem era menor
do que aquele do boom dos 1960 e 70, deu fama mundial a autores tão heterogêneos
como Isabel Allende, Antonio Skármeta ou Laura Esquivel. Todos eles poderiam ser
incluídos no final do que Donald Shaw (1999) denomina Pós-boom, mas é preciso
indicar que suas características diferem, em parte, das de outros autores da transição
boom/pós-boom, tais como Manuel Puig, Severo Sarduy, Mario Benedetti, Juan José
Saer ou David Viñas, todos mencionados em maior ou menor medida por Shaw.
Assim, enquanto os últimos tinham participado dos debates estéticos em torno do
realismo mágico, do lugar da experimentação e do comprometimento político, já em
1989 os anteriores acharam esse debate quase que enclausurado. E ainda há mais,
pois talvez poder-se-ia dizer que o sucesso editorial dos romances de Allende, de
Esquivel, de Skármeta e de outros autores da mesma época ajudou a fechar esses
debates. As causas disso parecem múltiplas e uma rápida revisão iria desde o possível
esgotamento da fonte de temas literários que deu origem ao boom, até o impulso
60 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Rodrigo Fernández Labriola
dos departamentos de estudos latino-americanos da academia dos Estados Unidos.
As consequências foram mais claras: o realismo mágico foi fixado como padrão da
literatura do continente, a experimentação foi abandonada em prol de uma narrativa
linear e ausente de obstáculos estilísticos para o leitor médio, e o comprometimento
político ficou reduzido, quando muito, ao testemunho de uma práxis política quase
mítica no período das ditaduras militares das décadas anteriores.
Nesse contexto, aparecem os primeiros textos que consideram o problema da
pós-modernidade e a globalização na América Latina. Merece uma especial menção
o ensaio de García Canclini, que propõe o conceito de culturas híbridas. Publicado
em 1989, consideramos que ainda não foi avaliado o forte impacto desse texto sobre
o que depois seriam as chamadas obras literárias pós-modernas. Mas, certamente, é
possível encontrar traços da “hibridez” tanto no posterior discurso de Fuguet, por
exemplo, quanto de seus críticos. Voltaremos a isso no percurso do nosso trabalho,
mas, por enquanto, basta indicar que, por volta de 1989, o tema do pós-modernismo
era, principalmente, um problema relevado nos ensaios. Ele começava apenas a ser
representado numa escrita literária oculta, de tipo urbana e jovem, e mais ligada ao
mundo da comunicação do que à instituição literária (academia, prêmios, editoriais,
cadernos culturais).
O termo McOndo surge apenas em 1996, como título de uma antologia de uma
parte daquela produção literária “pós-moderna”, publicada por Mondadori e
compilada por Alberto Fuguet e Sergio Gómez. No prólogo, Fuguet menciona como
antecedente histórico outra antologia, Cuentos con walkman, publicada pela
espanhola Planeta em 1993. Não é, porém, o único antecedente. A partir de 1991, a
editora inicia uma agressiva política de expansão comercial com a criação da coleção
Biblioteca del Sur, cujos textos são escolhidos e editados pelas próprias filiais da
editora na Argentina, no Chile e no México. Entre 1991 e 1996, autores como Fuguet
e os argentinos Rodrigo Fresán e Martin Rejtman são publicados nessa coleção. Mas
tais autores estavam longe de serem desconhecidos. Apesar de não serem massivos,
todos eles tinham conexões bem fortes com dois âmbitos: a mídia (cadernos jovens
dos jornais, programas de rádio, música rock) e a academia (as novas cadeiras de
Literatura Comparada, Estudos Culturais e a carreira de Comunicação).
À primeira vista, essa relação tripla entre mídia, academia e editoras poderia
parecer um resultado feliz de aglutinação cultural: num continente em franca carreira
de privatização e entusiasmo neoliberal, surge uma primavera literária com juízo
crítico e dando conta da vitalidade cultural do continente. Mas também poderia ser
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 61
McOndo e a estética do business plan: considerações sobre a escrita pós-moderna e a lógica
do mercado na literatura hispano-americana
contemplado outro panorama. Por um lado, um deslocamento dos acadêmicos para
a mídia, mas sem abandonar suas cadeiras: a proverbial crise de orçamento das
universidades latino-americanas torna esse movimento ainda mais complexo do que
uma simples consequência dos novos objetos de estudo cultural. Por outro lado,
a designação como editores de alguns desses novos acadêmicos midiáticos ou,
diretamente, de personagens da mídia com reconhecimento entre o público jovem
urbano. Mais complexo se torna o quadro se constatarmos que os autores
publicados excedem a mera conexão com a mídia, a academia e as editoras, e eles
mesmos trabalham como editores e diretores de cadernos jovens, além de estar
vinculados com as universidades. Temos, então, que a primeira sensação de uma
grande quantidade de autores “descoberta” pela indústria cultural é apenas um
reduzido grupo de letrados (recortado do universo só um pouco menos reduzido dos
letrados totais) que possuem o controle quase monopólico dos meios de produção
de livros de literatura e de sua difusão através da mídia e da academia. A isso,
deveríamos acrescentar a sua participação nos processos de seleção de prêmios,
bolsas e subsídios estatais. Até aqui, estamos só constatando fatos contextuais que
nada têm a ver com uma estética nem com um tipo de escrita, tampouco com a
tradição literária. Mas a história do McOndo se encontra indissoluvelmente ligada
a esses avatares “curriculares”, o caminho no mercado do trabalho intelectual dos
1990, e que talvez poderia ser analisada em extenso como uma transformação
contemporânea daquilo que Angel Rama (1994) denominou “a Cidade Letrada”.
A pertinência do breve racconto se deve ao paradoxo que significa o apagamento
dessa história no prólogo de McOndo, ao contrário do que acontece no final de vários
romances dos McOndos. Os nomes da história, não é preciso citar aqui, encontram-se
agradecidos, por exemplo, nas últimas páginas de Por favor rebobinar, de Fuguet, ou
de Mantra, de Fresán. O estilo é similar ao de uma confraria, com reminiscências
new age: “a la hermandad cósmica...”, “sincronia digna de considerarse mágica...” etc.
O uso das metáforas astrológicas é interessante, porque confere uma maquiagem às
relações concretas de poder nas quais avança a história. Mas, no prólogo de McOndo,
essas relações são visíveis apenas de forma indireta. Fuguet esclarece, em termos de
“registro histórico”, que a antologia do ano 1993 foi compilada a partir dos trabalhos
dos assistentes nas oficinas literárias do Zona de Contacto, o caderno juvenil
do jornal El Mercurio (Santiago de Chile), mas não indica que ele próprio era o
responsável pelo caderno. Em outro parágrafo, ele diz: “Casi todos los autores aquí
incluidos son absolutos desconocidos fuera de su país. Y muchos son apenas conocidos
62 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Rodrigo Fernández Labriola
en su propia casa”, mas também acrescenta que tiveram que rejeitar alguns autores
porque “teníamos muchos representantes de ese país (Argentina, México, España)”;
países que são, precisamente, aqueles onde apareceram as primeiras publicações
daquela literatura urbana antes mencionada, e cujos autores já eram bem conhecidos
ao serem publicados na antologia intitulada McOndo.
As causas do apagamento da história, talvez não seja necessário procurá-las nas
formulações ideológicas ou políticas, tais como as referências ao individualismo, ao
neoliberalismo ou ao pós-modernismo, como fazem a maioria das posições críticas
em relação a Fuguet e seus McOndos, por exemplo, Diana Palaversich. Por isso,
gostaríamos de colocar aqui pelo menos outras duas causas possíveis, tendo em
vista aquela lógica do mercado exposta na introdução.
A primeira causa estaria apoiada na necessidade de um discurso publicitário
coerente. McOndo foi publicada pela Mondadori, uma editora do grupo
Grijalbo-Mondadori, mistura dos cansados capitais espanhóis da Grijalbo com a
injeção de novos capitais italianos (dos quais era parceiro o neoliberal Silvio
Berlusconi). A ideia de marketing é evidente: a Planeta tinha aproveitado um mercado
de leitores jovens, universitários e urbanos através da Biblioteca del Sur, mas só
em poucos países latino-americanos. Por que não estender o negócio ao resto do
continente? A meu ver, o impacto dessa operação de marketing sobre o universo
de alguns escritores latino-americanos foi tremendo, de uma eficiência medonha, e
talvez o caso do boliviano Edmundo Paz Soldán seja o mais patético de todos, antes
e depois dos contos de seu primeiro livro, intitulado Dochera.
É importante destacar, porém, que acreditamos nas palavras de Fuguet, quando
ele conta, no prólogo, que a ideia não teria surgido da editora, mas de David Toscana
(representante do México em Iowa), e que:
Como em todo ato criativo, o mais divertido (e cansativo) foi coordenar
e achar os autores que entrariam no cânone preestabelecido. O primeiro
desafio, dos muitos que a gente teve, foi conseguir uma editora que
confiasse em nós, que oferecesse infraestrutura e redes de comunicação
e, sobretudo, que tivesse certeza absoluta de poder fazer uma
distribuição por toda América Hispânica, para assim tentar apagar as
fronteiras; o que tornou esta antologia não apenas uma compilação,
mas também uma viagem de descoberta e conquista. (FUGUET; GÓMEZ,
1996, p. 6, tradução nossa)
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 63
McOndo e a estética do business plan: considerações sobre a escrita pós-moderna e a lógica
do mercado na literatura hispano-americana
O parágrafo anterior não tem desperdício; voltaremos sobre outras partes dele mais
adiante. Para os fins de nossa argumentação, agora, mencionaremos apenas o tripé
infraestrutura-comunicação-distribuição. A ideia de marketing estava pronta antes de
qualquer departamento de marketing editorial entrar no jogo. A lógica da empresa,
afirmava Gilles Deleuze, permeia todos os níveis da sociedade de controle. A
visão míope dos sofridos compiladores não conseguiria enxergar para além da
caracterização de seu projeto como “acto creativo”, porque seria a mesma palavra
“creativo” que foi tomada pela lógica da empresa. Não se trataria, pois, de uma
elucubração maquiavélica de Fuguet contra a literatura, nem de uma marca de
ideologia de direita. Hoje, com ou sem McOndos, essa lógica parece atravessar o
universo da literatura, e assim a constrói como instituição artística e até redefine
suas categorias mais específicas (como o cânone ou os gêneros), ou bem inutiliza
politicamente a nova crítica dos Estudos Culturais. Da literatura como criação,
poder-se-ia dizer a mesma coisa que Deleuze diz sobre a filosofia enquanto criadora
de conceitos:
De provocação em provocação, a filosofia enfrentaria seus rivais cada
vez mais insolentes, cada vez mais calamitosos que Platão, ele mesmo,
não teria imaginado em seus momentos mais cômicos. Enfim, o fundo
do poço da vergonha foi atingido quando a Informática, o Marketing,
o Design, a Publicidade, todas as disciplinas da Comunicação
apoderaram-se da própria palavra conceito e disseram: é nosso negócio,
somos nós os criativos, nós somos os conceituadores! (DELEUZE, 1992,
p. 19)
Apagar a história “curricular” no prólogo de McOndo faz parte de um discurso
publicitário que, por um lado, procura delimitar seus “prospectos” ou consumidores-alvo
(na gíria do marketing), e que, por outro, deve se apresentar como uma mercadoria
nova. Curiosamente, ou nem tanto assim, o primeiro objetivo se baseia numa espécie
de experimentação de campo do conceito de culturas híbridas, proposto por García
Canclini. Em palavras de Fuguet:
Existe uma parte da academia e da inteligentsia que quer vender para o
mundo não apenas um paraíso ecológico (a polução de Santiago de
Chile?), mas uma terra de paz (Bogotá? Lima?). Aqueles que são mais
ortodoxos acreditam que o latino-americano é o indígena, o folclórico,
o esquerdista. Mercedes Sosa seria latino-americana, Pimpinela, não.
Cadê o que é bastardo, o híbrido? (FUGUET; GÓMEZ, 1996, p. 7,
tradução nossa)
64 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Rodrigo Fernández Labriola
A seguir, desencadeia-se uma enumeração caótica (e, neste caso, caótica mesmo,
apesar das reservas borgianas sobre as enumerações “falsamente caóticas” da
literatura) que inclui Ricky Martin, as telenovelas, “El condor pasa”, Sting, Machu
Picchu, Cantinflas, Puig, Onetti, Corin Tellado, a MTV Latina, e inumeráveis etcéteras.
E Fuguet acrescenta: “Temerle a la cultura bastarda es negar nuestro propio
mestizaje”.
De fato, o que seria mais interessante aqui é observar a maneira com que
Fuguet sobrepõe toscamente o popular e o massivo (BARBERO, 1991), e liga
irremediavelmente a ideia de mestiçagem com a de hibridez (KOKOTOVIC, 2000). No
entanto, questionar a exatidão conceitual de Fuguet não adianta: seria morder a isca
da “academia” e da “inteligentsia” discutindo as imagens identitárias da América
Latina. A palavra-chave do parágrafo é “venderle”. Mais adiante, Fuguet repete a
mesma estratégia discursiva: “Vender un continente rural cuando, la verdad de las
cosas, es urbano [...] nos parece aberrante, comodo e inmoral”. Do que se trata, em
última instância, é de vender algo. Por isso, a mistura de produções culturais referida
por Fuguet não tem a intencionalidade de conformar uma comunidade de leitores
(como seria o caso dos manifestos do século 20) nem uma sociedade de cidadãos
(o gênero discursivo das proclamações no século 19), mas uma definição
operativamente efetiva de um mercado de consumidores que, nesse caso, eram
latino-americanos, e, no caso da seguinte antologia (Se habla español, publicada pela
Alfaguara em 2000, e em Miami), era a enorme massa de hispânicos nos Estados
Unidos.
Assim, deveríamos procurar o modelo discursivo dos prólogos de McOndo e de
Se habla español em outro campo disciplinar, fora da estética, fora da política, e talvez
também fora da literatura, inclusive considerada em seu sentido mais amplo. Esse
modelo se conhece no mundo dos negócios como business plan.
BUSINESS PLAN E REALISMO VIRTUAL
O segundo ponto interessante em relação ao apelo do discurso publicitário, e
àquele apagamento da história que mencionamos no início de nosso trabalho, teria
a ver com uma estratégia primária de marketing: a definição do produto. Deste ponto
de vista, a coerência e o sucesso do discurso publicitário dependem, em grande
medida, de que o produto seja apresentado como “novo”.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 65
McOndo e a estética do business plan: considerações sobre a escrita pós-moderna e a lógica
do mercado na literatura hispano-americana
No contexto inócuo de um pós-boom residual cheio de estereótipos do realismo
mágico (a meu ver, condimentado com receitas de cozinha artesanal, além do
testemunho de sofrimentos e lutas sociais em prol de uma “democratização”
politicamente correta do continente), não é estranho que a atitude do grupo McOndo
estourasse com uma força e como um gesto que poderiam lembrar as vanguardas.
Para Adorno (1993), o experimento está ligado sempre ao novo, instaura o gesto do
imprevisível para questionar a tradição; tal seria a atitude vanguardista. No entanto,
se considerarmos o aspecto claramente neoliberal (cativo e complacente com o
sistema) da proposta exposta por Fuguet, McOndo se afastaria grandemente das
vanguardas clássicas (se o oximoro é tolerável, Borges dixit), caracterizadas tanto
pela ruptura dentro da instituição literária quanto fora dela, devido a seu
comprometimento político (BÜRGER, 1987). A novidade da “experimentação” formal
de McOndo, pois, entraria no quadro do que Peter Bürger (1983) denomina como
“modernização literária”.
Achamos, porém, que vale a pena considerar a possibilidade de que McOndo
represente algum tipo de ruptura, mas, se fosse assim, talvez essa ruptura não se
encontrasse já no campo da estética nem da teoria literária... Damos, a seguir, nossas
razões.
A proposta da suposta ruptura mcondiana tem um nome (uma grife?): o realismo
virtual, que pareceria propor uma estética literária, cujos pontos fundamentais são
rejeitar o realismo mágico (considerado falso e folklórico) e assimilar a cultura de
massa (cinema, TV, rock, etc.) ao universo representacional da ficção. Esse postulado
básico de McOndo só pode ser formulado a partir da superposição do pós-boom com
a poética do boom, numa continuidade que iria do realismo mágico de fundação
dos 1960 até a sua banalização no mercado editorial literário dos 1990. Não
aprofundaremos aqui todas as possíveis nuances do realismo mágico e do boom que
se poderiam inferir das leituras desse fenômeno realizadas por Rodríguez Monegal,
José Donoso e Angel Rama. Também deixaremos de lado a continuidade
boom/pós-boom estudada por Shaw (que, em parte, apoiaria os pressupostos
mcondianos), e os questionamentos de Palaversich quanto a jogar no mesmo saco
os autores “maestros del género” (?) e os “emuladores tipo Isabel Allende o Laura
Esquivel, quienes astuta y cinicamente explotan el gênero, cocinando best-sellers
que arrojan excelentes dividendos”. O que nos interessa destacar, ao contrário, é que
a operação discursiva realizada por Fuguet é extremamente lúcida para além da sua
consideração literária. Isto é: McOndo vê os traços gerais de uma mudança de lógica
66 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Rodrigo Fernández Labriola
na instituição literária, que vai da estética e da política para o marketing e a
economia.
Quando Fuguet qualifica de “kitsch” o realismo mágico dos 1990, não está se
referindo a uma categoria estética – mas a um certo profile de mercado, que consome
essa mercadoria. A estética é deslocada da obra artística para o consumidor, definido
por variáveis, uma das quais seria sua “estética”, seus gostos literários. O produto
McOndo, ao contrário, instalar-se-ia na fissura paradoxal do cult, que tem um rosto
bifronte como Janus: é bastardo, mas também é distinguido; é midiático, sem ser
popular; é tecnológico, mas também é artístico; é massivo, pelo seu apelo à difusão,
mas sem ser intencionalmente bem-sucedido em vendas (best-seller); é apolítico,
sem deixar de ser capitalista; uma confraria de iniciados que fala de muitos, para que
muitos admirem a confraria que fala deles, mas estando fora.
A faixa da quarta edição de Cuentos con walkman está incluída no prólogo
de McOndo: “Una nueva generación literaria que es post-todo: post-modernismo,
post-yuppie, post-comunismo, post-babyroom, post-capa de ozono. Aquí no hay
realismo mágico, hay realismo virtual”. Assim, o discurso publicitário entra na
definição supostamente estética não como um recurso retórico, mas como uma
maneira de conceituar. Em nenhum momento McOndo esclarece seus slogans, porque
a lógica em jogo não é a de esclarecer – mas a de repetir, acumular, redundar
em fórmulas publicitárias (por exemplo, as comparações com a MTV Latina ou as
remissões a outros produtos da indústria cultural: “McOndo é como tal ou qual
filme [...]”, “O filme X ou a música X é McOndo [...]”, de maneira semelhante ao que
acontece nos cartazes ou nas capas de DVD dos filmes quando se menciona “Fulano
de Tal, ator de um outro filme X”). Para a definição do produto McOndo, só é
necessário construir o profile do realismo virtual por oposição ao realismo mágico, e
para isso basta opor o mundo contemporâneo da globalização à redução de uma
estética baseada no cotidiano fantástico e regional. Por isso, tampouco se insiste em
elucidar a intertextualidade com o realismo sujo da pós-modernidade para além
dos previsíveis modelos da narrativa americana. O realismo mágico dialoga com um
conceito de realismo amadurecido durante séculos no seio da literatura europeia;
o realismo virtual, ao contrário, dialoga com a fixação do realismo mágico em um
perfil de consumo. Realismo mágico e realismo virtual não seriam, pois, categorias
comparáveis; elas pertencem a universos conceituais diferentes.
Em resumo, o trabalho de Fuguet junta essas categorias heterogêneas para definir
um produto grifado McOndo segundo uma lógica de consumo de massa que poderia
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 67
McOndo e a estética do business plan: considerações sobre a escrita pós-moderna e a lógica
do mercado na literatura hispano-americana
remontar às estratégias do mercado de oferta a partir dos anos 1950. O modelo
discursivo utilizado é o do business plan. O prólogo de McOndo segue escrupulosamente
os passos ou os objetivos desse tipo de escritos: definição de produto, definição
do mercado, estratégia da campanha publicitária, orçamento e logística etc.;
são os “quatro Ps” do marketing: produto, ponto de venta, publicidade, perfil do
consumidor (as marcas disso podem ser procuradas no prólogo de Fuguet com
facilidade). O original, em McOndo, não se encontraria no realismo virtual, mas na
explicitação ao velho modo de uma Estética, uma lógica de mercado que teria invadido
a literatura. A ruptura/continuidade que nós, como críticos literários, poderíamos
avaliar, então, pareceria estar na passagem discursiva da proclamação para o
manifesto, e daí para o business plan.
De novo, a palavra-chave é vender. Se, para Fuguet, o “realismo mágico” é aquilo
que caracteriza o produto do concorrente que “vende um continente rural”, o mais
curioso é verificar que a mesma lógica permeia a crítica de Palaversich quando,
ingenuamente, desqualifica o best-sellerismo de Allende e Esquivel como uma
exploração maquiavélica, cheia de cinismo e astúcia. É um sintoma. O que seria
considerado literatura, hoje? A resposta pareceria mostrar uma produção textual,
cuja condição de possibilidade não estaria sustentada numa discursividade apoiada
em três pés estratégicos: a indústria editorial, o jornalismo cultural e a academia.
Aparentemente divergentes, todas elas estariam ancoradas na mesma lógica do
mercado: só aqueles textos que obtêm a legitimação nos três níveis conseguem
decolar da informe multidão de publicações para levar a etiqueta correspondente à
mercadoria literária. Simultaneamente, a crítica literária sofreu mudanças radicais: os
estudos culturais abriram o campo disciplinar para além do cânone e a literatura foi
assimilada rapidamente pelas produções da indústria cultural (a ponto de se tornar,
ela própria, um objeto difuso no contexto das culturas híbridas). McOndo deu como
resultado a produção de contos e romances heterogêneos, quase sempre
ambientados num continente atravessado pela globalização política e o
neoliberalismo econômico; mas qual seria, hoje, seu valor literário? A pergunta
parece anacrônica. Mas ao constatar, por exemplo, a obsolescência rápida do
romance Por favor rebobinar (no qual os aparelhos tecnológicos já parecem peças de
museu e o título faz uma referência ao vídeo que logo foi abandonado pelo DVD), não
posso deixar de me perguntar, de novo, pelo lugar da literatura na cultura atual. Essa
pergunta, porém, se estende à perplexidade que pareceria surgir de uma academia
que abriu o campo de literatura, mas não consegue se prevenir contra a fraqueza da
68 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Rodrigo Fernández Labriola
apreciação estética. Os estudos sobre McOndo na academia são já suficientes como
para dizer que McOndo entrou na literatura. Um jogo de simulacros: Fuguet ataca o
protocolo do politicamente correto com um jeito de ruptura filo-vanguardista, mas
precisa da academia “aberta” dos estudos culturais para legitimar seu produto.
O business plan é redigido, pois, visando à instauração de um novo cânone, um
cânone fugaz, talvez digital, talvez absurdo para o antigo conceito do “valor
literário”, mas com a mesma relação legitimadora com o poder, seja ela qual for.
Mais uma perplexidade. Alberto Fuguet, que, ao se referir à “postura ante la
literatura” dos McOndos, diz: “El mundo se empequeñeció y compartimos una
cultura bastarda similar, que nos ha hermanado irremediablemente sin buscarlo.
Hemos crecido pegados a los mismos programas de televisión, admirado las mismas
películas y leído todo lo que se merece leer, en una sincronía digna de considerarse
mágica”. Sem dúvida, é possível ver a mesma TV. Também é possível, ainda que mais
difícil, ter assistido a todos os filmes que merecem ser vistos. Mas, como possuir a
certeza de ter lido todos os livros que merecem ser lidos, inclusive num cânone
literário já fechado definitivamente?
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McOndo e a estética do business plan: considerações sobre a escrita pós-moderna e a lógica
do mercado na literatura hispano-americana
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 73
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS NA
POESIA BRASILEIRA
Rachel Fátima dos Santos Nunes
Universidade Estácio de Sá
Doutora em Letras (UFF)
contato: [email protected]
Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar as tendências da poesia
contemporânea a partir dos estudos da chamada poesia concreta, poesia marginal e poesia
pós-moderna. Teremos como apoio teórico os conceitos de poesia e visualidade pensados
por Ítalo Moriconi e Celia Pedrosa. O trabalho propõe investigar os dilemas da poesia atual
em torno da poesia ligada às novas tecnologias e à arte pop e a subversão da linguagem
tradicional e o uso do verso livre. As ideias centrais de que trataremos no artigo a seguir
estão associadas à marca da subjetividade da poesia atual, à valorização das novas mídias
para o fazer poético e à busca de elementos pós-modernos na estética poética atual.
PALAVRAS-CHAVE: visualidade; novas tecnologias; subjetividade.
Abstract: This article aims at analyzing the contemporary poetry trends based
on the studies of the so-called concrete poetry, outside poetry and post-modern poetry. The
concepts of poetry and view thought by Ítalo Moriconi and Celia Pedrosa are the basis for
this research. This paper intends to look over the contemporary poetry dilemmas linked to
the new technologies, to the pop art and to the conventional language subversion, and the
use of free verse. The ideas that will be approached in the following article are associated
with: the subjectivity present in current poetry, the valorization of the new-media related to
the poetic doing and the quest for postmodern elements in the present-day poetical esthetic.
KEYWORDS: view; new technologies; subjectivity
74 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Rachel Fátima dos Santos Nunes
Resumen: El objetivo de este artículo es analizar las tendencias de la poesía
contemporánea, a partir de los estudios de las llamadas poesía concreta, poesía marginal
y posmoderna. Tendremos como apoyo teórico los conceptos de poesía y visualidad
pensados por Ítalo Moriconi y Celia Pedrosa. El trabajo se propone investigar los dilemas
de la poesía actual en torno a la poesía ligada a las nuevas tecnologías y al arte pop, así
como la subversión del lenguaje tradicional y el uso del verso libre. Las ideas centrales que
trataremos en el artículo a seguir están asociadas a la marca de la subjetividad y de la
poesía actual, a la valorización de las nuevos medios de comunicación para el hacer
poético y a la búsqueda de elementos posmodernos en la estética poética actual.
PALABRAS CLAVE: visualidad; nuevas tecnologias; subjetividad.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 75
Tendências contemporâneas na poesia brasileira
Este artigo nasceu da necessidade de se repensar a poesia contemporânea, tendo
como foco as vertentes históricas da poesia dos anos 1950 e 1970, respectivamente
o movimento concretista, o neoconcretista e a chamada poesia marginal. Pretende-se
fazer uma análise das vertentes estéticas pelas quais a poesia contemporânea
se desenvolveu, e como a relação entre poesia, visualidade e mídias digitais se
estabeleceu no contexto da atualidade.
Assim, traçando um panorama da poesia contemporânea, não podemos deixar de
mencionar a importância do movimento de vanguarda denominado Concretismo.
Este movimento da década de 1950 foi marcado pela instauração da poesia concreta
traduzida na intenção de criar um poema que fosse um objeto/mensagem, inscrito
no contexto das vivências das transformações da época. Está caracterizado,
principalmente, por poemas realizados dentro das estruturas próprias e visuais, com
formas de geometrização, antagônicas aos recursos poéticos tradicionais de então.
Os três poetas paulistas que fundaram o movimento da poesia concreta foram
Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari.
De acordo com Ítalo Moriconi (2002), o fundamento do poema concreto está no
cartaz, no outdoor, no dazibao. O poema torna-se objeto de contemplação visual
instantânea. Outra característica do poema concreto, dentro das possibilidades de
uma estética da palavra-imagem, é que ele é geometrizante, simétrico, explorando
dualidades contrastantes de sentido: luxo/lixo; beba/babe etc. Através dessas formas
sintéticas, desses minipoemas, genuínas versões pop-midiáticas do epigrama satírico
vão conceituando aspectos da sociedade de consumo:
Os concretistas buscaram transcender a página do livro como espaço
próprio da criação poética. Saíram de uma estética da literatura para
uma estética da comunicação. Na linha evolutiva do pós-concretismo,
temos o poema-videoclipe, o poema holográfico, o poema sonorizado
em CD ou digitalizado em CD-ROM. (MORICONI, 2002, p. 110)
O Concretismo foi um movimento de vanguarda dos anos 1950, marcado,
principalmente, pela intenção de criar um poema que fosse um objeto/mensagem
inscrito no contexto das vivências das transformações da época. Está caracterizado
por poemas realizados dentro de estruturas próprias e visuais, como formas de
geometrização, antagônicas aos recursos poéticos tradicionais. Participaram do
movimento Décio Pignatari, os irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Ferreira
Gullar.
A ousadia da poesia concreta, sua posição no poema, e agregando sua
significância visual, desarticulava o verso ortodoxo com fragmentação para uma
representação vivenciada, com uma correspondência às três dimensões da palavra:
semântica, sonora e gráfica, estabelecendo na arte o conceito de obra aberta:
O movimento neoconcreto rompeu com a relação passiva do espectador
em face da obra, fazendo-o participar de sua explicitação; criou um novo
tipo de obra aberta, que se caracterizou por essa participação direta
do ex-espectador, ao contrário de outro tipo de obra cuja abertura
se refere não ao espectador, mas apenas à estrutura da própria obra.
(COUTINHO, 2009, p. 241)
O Neoconcretismo, de acordo com Afrânio Coutinho (2009), foi o movimento de
arte de vanguarda, de arte concreta, não figurativa (1959-1961), com a reconsideração
dos conceitos de espaço, tempo e estrutura na obra de arte, compreendendo a
realização da obra artística em todo o espaço real, com a incorporação de todos os
seus componentes não como suportes, mas como parte integrante do produto ou
sua elaboração. Historicamente, encontra-se o registro do movimento neoconcreto
em 1957, como resultante de dissidência no movimento concretista, com o
rompimento do poeta Ferreira Gullar com o grupo de poetas concretos de São Paulo,
e tendo como participantes iniciais artistas plásticos como Lígia Clark, Lígia Pape,
Hélio Oiticica e outros. A poesia neoconcreta espelhava-se nas artes plásticas de
idêntica nomeação, com mútuas influências.
O salto da poesia neoconcreta se dá exatamente quando se procura superar a
problemática ótico-mecanicista: os neoconcretos encaram o espaço brando da
página como o avesso da linguagem, isto é, como silêncio, e consideram que a
utilização do reverso da página, cortada em tamanhos e formas diferentes, permitiria
criar o poema como forma visual e possibilitaria a participação mais efetiva do leitor
na formação dele: isto é, o passar das páginas seria um ato de construção do poema
cuja forma final nasceria dessa ação do leitor, pela acumulação gradativa das palavras:
assim nasceu o livro-poema:
A etapa seguinte foi a criação de um poema espacial (não objeto),
o primeiro dos quais se compunha de duas palavras brancas, uma
quadrada e outra triangular em cima, ligadas entre si e móveis: a placa
triangular, levantada, deixava ver uma palavra escrita no seu verso.
(COUTINHO, 2009, p. 242)
76 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Rachel Fátima dos Santos Nunes
Em 1962, surgiu a Poesia Práxis, com a publicação do livro Lavra-lavra, de Mário
Chamie. O primeiro documento teórico da instauração da práxis é o “Manifesto
Didático”, escrito em 1961, e lançado como posfácio de Lavra-lavra. O efeito desse
documento foi colocar em crise o formalismo mecanicista da então chamada
“vanguarda velha”. O Concretismo – que sustentava ser o conteúdo de um poema
sua própria estrutura – insistia numa reificação da linguagem e do texto. O poema-práxis
é definido no manifesto como aquele que organiza e monta, esteticamente, uma
realidade situada, segundo três condições: a) o ato de compor; b) a área de
levantamento; c) o ato de consumir.
O que se desejava nos três movimentos de vanguarda da poética modernista era
a libertação da poesia das fórmulas e dos temas acadêmicos, para que se fizesse
atual. Isso redundaria na procura de novos assuntos ou na destruição dos assuntos
poéticos, em novos princípios de composição do poema e em novas formas de
expressão. O denominador comum: o desejo de libertação. A poesia brasileira estava
fadada, por assim dizer, ao moderno e ao antitradicional, forçosamente posicionada
contra o que parecia estorvo colonial. Assim afirmava Mário Pedrosa no fim dos
anos 1950: “Estamos, pela fatalidade mesma de nossa formação, condenados ao
moderno”. A atualização concretista nesses anos criou uma ideia de vanguarda
diretamente vinculada à mitologia da nova era industrial e tecnológica do pós-guerra,
com suas invenções científicas, planejamento racional, novos meios de informação e
comunicação.
De acordo com Ítalo Moriconi (2002), ao longo das décadas subsequentes,
mesmo depois que o Concretismo, como movimento doutrinário, já se encerrara,
seu trio de protagonistas manteve-se fiel ao projeto experimentalista, buscando
combinar a arte da palavra à exploração das formas visuais possibilitadas pela
evolução das tecnologias comunicacionais. No entanto, o poema concreto como
fonte de uma poética multimídia não esgota a presença no cenário nacional dos
irmãos Campos e de Décio Pignatari. A intervenção concretista tem, também, um
lado forte de erudição literária, muito influente na formação da geração de leitores e
autores de poesia que surgiu entre fins dos anos 1960 e início dos 1970. O nome
emblemático dessa geração é Paulo Leminski, mas uma parte dos poetas marginais
cariocas também entrou para a poesia pela porta da cartilha concretista.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 77
Tendências contemporâneas na poesia brasileira
De acordo com Roberto Corrêa dos Santos (2005), a poesia marginal corporifica
os seguintes traços: estar entre a arte e a vida, tematizar vivências cotidianas e fatos
corriqueiros, ser a escrita da e de circunstância (histórica e pessoal), privilegiar o
poema curto, a coloquialidade, a anotação do instante vivido, manifestar descrença
em relação a grandes projetos literários ou sociais, refletir o apego ao corpo, traduzir
um dramático sentimento do mundo, praticar a psicografia do absurdo cotidiano etc.
O autor questiona por que esse tipo de poesia é/foi tão mal visto ou, simplesmente,
não é/foi tido como válido por grande parte dos críticos. Por que esses traços
parecem corporificar, então, uma marginalidade literária? Por que há um consenso tão
forte no sentido da invalidação desses procedimentos usados pela poesia marginal
como procedimentos literários? Qual é o conceito de poesia em que se aplica o
conceito do qual a poesia marginal é desviante?
O teórico também aponta em seu texto o critério persistente de “quantidade de
eu” na poesia marginal, como já mencionou Luiz Costa Lima. Roberto Corrêa não
consegue ver na poesia marginal a prática de tal idolatria. O teórico faz a seguinte
pergunta provocativa: Que espaço maior se tinha naquela época que o espaço
individual, circunscrito ao próprio corpo? Não eram os anos de sufoco, do
cerceamento da liberdade, da censura, do confinamento? O “apego ao corpo” de que
fala Ítalo Moriconi, como um dos traços a serem lidos na poesia marginal, reflete uma
questão espacial concreta, mensurável.
A pergunta colocada pela poesia marginal sobre ela ser ou não ser literatura como
potência de sua estetização; a dupla construção – do poema e do poeta – contida no
poema; a insistente presença do eu e de seu pequeno universo como recurso poético
da repetição, não parecem fornecer provas para Roberto Corrêa de condenação da
poesia marginal, mas, pelo contrário, parece constituir o principal desafio de pensá-la
criticamente.
Ítalo Moriconi ainda diz que Leminski, poeta trickster, mediador, faz elo entre
todas as vertentes surgidas no panorama poético pós-pop brasileiro. Na meteórica
carreira de Leminski, cruzam-se uma apressada e irrequieta erudição literária e as
virtudes e vícios de toda uma geração de poetas drogados, cujos sobreviventes
chagaram à meia-idade na última década do século 20. O suicídio, a overdose, a
loucura e a AIDS não foram incomuns como final triste e precoce de muitos poetas
formados nesse caldo pop-contracultural. Basta lembrarmos os nomes de Leminski,
de Torquato Neto, de José Agripino de Paula, de Cacaso e de Ana Cristina César.
Segundo Moriconi, o subjetivismo dos poetas brasileiros pós-68 não pode ser
78 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Rachel Fátima dos Santos Nunes
reificado como um bloco homogêneo e ingênuo, pois, na civilização hedonista, é
da ferida narcísica que a poesia fala. Em boa parte dos melhores casos (como Ana
Cristina César, Chico Alvim e outros) há, na verdade, distanciamento em relação à
posição de um sujeito pleno e presente de si. A questão do sujeito é colocada para
ser desestabilizada.
Na perspectiva dos anos 1970, em conformidade com os princípios popularizados
pela contracultura, erotismo e afirmação individual, constituem reações antitéticas
ao que é definido (e rechaçado) como universalismo totalitário dos centramentos na
linguagem e no social. O hedonismo pode, portanto, desembocar numa política
do corpo e fornece o solo que explica a presença dionisíaca na poesia brasileira
contemporânea.
Celia Pedrosa (2005) aponta em seu ensaio “Poesia, contemporaneidade e
experiência” a sobrevida destes poetas dos anos 1970. Segundo a teórica, Ana Cristina
César encena uma tensão entre vida e linguagem que se desdobra na configuração
discursiva dos seus textos, sempre no limiar de prosa e poesia, diário, carta,
literatura, interioridade e exterioridade, isolamento e comunicabilidade. Já o olhar
do poeta Cacaso desliza da poesia para a crítica e permite revelar um contexto
desconjuntado, heterogêneo, em que se modaliza toda a afetividade. Como percebera
Leminski, as certezas inaugurais estavam sendo substituídas pelo talvez. A guerrilha,
grande signo da inserção utópica no momento presente, se transforma, sob a ótica
da relação entre experiência e linguagem, em lugar de batalhas nunca decisivas,
vitórias sempre confusas, com desdobramentos imprevistos, em que signos geram
signos por cissiparidade, por hibridismo, por mutação.
Celia Pedrosa (2005) ainda diz que, ao longo dos anos 1980, de forma breve, mas
intensa, Ana Cristina César, Cacaso e Leminski tomaram posse dessa herança de vida
e de morte e indicaram a possibilidade de transformar a porta fechada em segredo e
promessa, o assassinato em sobrevida, entre o coração e a palavra, o dentro e o fora,
o corpo e a memória, na corda bamba.
Além da análise feita por Celia Pedrosa, é preciso apontar, em termos históricos,
que a poesia, ao sair do centro da cena cultural, cede lugar a outras manifestações
capazes de lidar com as contradições daquele momento de maneira mais interessante
e com maior alcance comunicativo, tais como o cinema, o teatro e a música popular.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 79
Tendências contemporâneas na poesia brasileira
Sinalizando a mudança de estatuto cultural da poesia, o movimento seguinte,
surgido nos anos 1970, chamar-se-á “poesia marginal”, a bem dizer um movimento
de jovens poetas que pretendiam, com rebeldia e irreverência, reagir ao autoritarismo
da ditadura militar criando alternativas às formas de produção e de consumo de
poesia. Do lado da renovação editorial, eles imprimiam e financiavam os próprios
livros, vendendo-os em portas de cinemas, bares e teatros, buscando sensibilizar
o leitor mais jovem para uma experiência artística que não possuía equivalente
industrial. Do lado estilístico, os poetas marginais restauravam as principais armas
de choque da tradição modernista, tais como a piada, a poesia-minuto, o coloquialismo,
a espontaneidade e o humor:
Tais minipoemas, destinados e apreendidos num golpe só de visão,
vinham acompanhados de manifestos doutrinários, em que categorias
tradicionais de crítica literária eram substituídas por novos termos
técnicos, extraídos de uma cornucópia de teorias sobre a estética da
linguagem. (MORICONI, 2002, p. 113)
De acordo com Marcos Siscar (2005), o poeta visual Luis Dolhnikoff, vinculado
à linhagem do Concretismo brasileiro, exprimiu seu descontentamento em relação à
discussão sobre poesia contemporânea, argumentando que ela deixa de ser a “verdadeira
contraposição” de tendências poéticas pelas quais passou o Brasil: uma, visualista e
outra, verbalista. Marcos Siscar diz que a tradição poética, desde o evento histórico
da ruptura concretista, se dividiria entre os que acreditavam que a tradição do verso
estava superada e aquela que apostava em suas potencialidades futuras. Em suma, a
divisão, logo, a escolha colocada à poesia brasileira, foi entre poesia visual e poesia
verbal.
Segundo o poeta Dolhnikoff (2009), do Concretismo para cá o estado da relação
entre verbal e visual mudou sensivelmente. O autor acredita que houve o abandono
de uma das opções, a visualista, juntamente ao esgotamento das vanguardas.
Nenhum dos muitos nomes mais conhecidos da poesia contemporânea é um poeta
visual. O poeta dá, assim, sua versão para a ausência de “grandes questões poéticas”
que alguns críticos atribuem ao contemporâneo. Para ele, a poesia brasileira teria
dado passos para trás, retornando ao verso “por inércia”. A prática do verso estaria
ligada, para o autor, não ao resultado de um labor, mas ao abandono da criatividade
e da inteligência, qualidades que seriam o apanágio da vanguarda e, de forma
específica, da poesia visual.
80 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Rachel Fátima dos Santos Nunes
Por fim, a pedagogia concretista, alicerçada sobre um programa de superação do
verso, interpretado como anacronismo, teve sua importância histórica. O novo, neste
momento, significava a liberação das repressões, das insatisfações, dos valores morais,
familiares e institucionais – como se, no âmbito da intimidade e da subjetividade,
estivesse a resposta que poderia enfrentar o autoritarismo. O desespero inocente desse
lirismo poderia então dizer, nas palavras poéticas de Chacal: “Meu amor se esparrama
na grama/meu amor se esparrama na cama/meu amor se espreguiça/meu amor deita e
rola no planeta.”
Já nos anos 1980, pergunta-se o que ocorre com a tríade autor-texto-leitor
quando o suporte deixa de ser o papel e o poético e vai se entranhando nas novas
mídias, em especial nos formatos digitais.
Um trabalho pioneiro no Brasil, na perspectiva da tradução intersemiótica, é a
Vídeo Poesia – Poesia Visual, encabeçado por Ricardo Araújo, juntamente aos irmãos
Campos, Décio Pignatari e Arnaldo Antunes. O trabalho “Nome”, de Arnaldo Antunes,
assim como em Ricardo Araújo, funda-se sobre conceitos da hibridização de linguagens
e na postura questionadora acerca de conceitos e ideias predeterminadas, como por
exemplo, em “Pessoa” – um videopoema alicerçado no desencontro de leituras,
pois é marcado pela rasura do texto que atravessa a tela pela leitura morfológica e
sintática feita, em vez da convencional.
Temos, portanto, nos anos 1980, o nascimento da poesia digital, que necessita
operar com as linguagens do meio computacional. Percebe-se que a poesia digital
caminha em direção à valorização da participação ativa do espectador, ou seja, a
relação da poesia com a interação com os meios eletrônicos e os usuários destes
meios.
Sucedem-se experimentos formais com novas plataformas, cujo resultado
mais recente encontramos exemplificado em uma denominada nanopoesia, com a
inserção, em um substrato na medida de 1milionésimo de fio de cabelo, onde inseriu-se
uma palavra, “Infinitozinho”. O caminho experimental da literatura está aberto a
novas possibilidades, mas subsiste, como no mencionado nanopoema de Arnaldo
Antunes, a palavra, ainda que invisível aos olhos.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 81
Tendências contemporâneas na poesia brasileira
Finalizando, verificamos que a atual tendência da poesia brasileira contemporânea,
após ter buscado na fonte dos concretistas e dos neoconcretistas, assim como
na poesia marginal, está atualmente voltada para as relações entre mídia e meios
eletrônicos, ou seja, a poesia hoje está antenada com as tecnologias digitais, seguindo
uma nova tendência: a de associar a poesia à era da imagem midiática e da virtualidade
das redes sociais.
Referências
• BORBA, Francisco da Silva. Dicionário gramatical de verbos do português
contemporâneo. São Paulo: UNESP, 1991.
• CAMPOS, Haroldo de. A poesia concreta. São Paulo: Perspectiva, 2009.
• COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. São Paulo: Editora Global, 2009.
• DOLHNIKOFF, Luis. Poesia ontem e hoje. Porto Alegre: Editora LPM, 2009.
• LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira. São Paulo: Editora Companhia das Letras,
2009.
• MORICONI, Ítalo. A poesia brasileira. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2002.
• PEDROSA, Celia. Poesia e visualidade. Rio de Janeiro: EDUFF, 2005.
• SANTOS, Roberto Corrêa dos. “Poesia e esquemas mentais”: ensaio do livro
Poesia e visualidade. Rio de Janeiro: EDUFF, 2005.
• SISCAR, Marcos. “Poesia e contemporaneidade: ensaio do livro Poesia e
visualidade. Rio de Janeiro: EDUFF, 2005.
82 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Rachel Fátima dos Santos Nunes
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 83
COMPETÊNCIAS, CULTURA E
COMPETÊNCIA (COMUNICATIVA)
INTERCULTURAL: DISCUSSÃO DE
CONCEITOS E BREVE REFLEXÃO ACERCA
DA ADAPTAÇÃO DE MATERIAL DIDÁTICO
PARA O ENSINO DE LÍNGUA INGLESA
Daniela Terenzi
Universidade Federal de S. Carlos
Mestre em Linguística
contato: [email protected]
Resumo: Este artigo apresenta uma discussão sobre a possibilidade de
adaptação de um material didático considerando a competência intercultural. Para
tanto, utilizaremos apontamentos teóricos já feitos acerca de competência, competência
comunicativa e intercultural por autores como Chomsky, Hymes, Almeida Filho e Aguilar.
Além disso, consideraremos também concepções de cultura (nos estudos de Geertz e
Thompson, por exemplo) e escolha e/ou elaboração de material didático para o ensino
de língua estrangeira (Leffa). Por fim, discutiremos um exemplo de adaptação de atividade
que visou a contemplar a proposta de desenvolvimento da competência intercultural
dos aprendizes.
PALAVRAS-CHAVE: cultura; competência intercultural; material didático.
84 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Daniela Terenzi
Abstract: This paper aims at presenting a discussion about the possibility of
adapting didactic materials considering the intercultural competence. In order to do that,
we will use theoretical considerations about competence, communicative and intercultural
competence before made by authors like Chomsky, Hymes, Almeida Filho and Aguilar.
Besides that, we will also consider cultural concepts (according to Geertz and Thompson,
for example) and design of teaching materials (Leffa). Finally, we intend to discuss an
example of adapted activity that was designed to develop the learners’ intercultural
competence.
KEYWORDS: culture; intercultural competence; teaching material.
Resumen: El artículo presenta una breve discusión acerca de la posibilidad de
adaptación de un material didáctico considerando la competencia intercultural. Para ello,
utilizamos apuntes teóricos ya realizados sobre competencia, competencia comunicativa e
intercultural por autores como Chomsky, Hymes, Almeida Filho y Aguilar. Consideramos
también algunas concepciones de culturas (en los estudios de Geertz y Thompson, por
ejemplo) y discusiones acerca de la elaboración de materiales didácticos para la enseñanza
de lengua extranjera (Leffa). Al final, presentamos la discusión de un ejemplo de
adaptación de actividad que tenía como objetivo estar adecuada a la propuesta de
desarrollo de la competencia intercultural de los aprendices.
PALABRAS CLAVE: cultura; competencia intercultural; material didáctico.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 85
Competências, cultura e competência (comunicativa) intercultural: discussão de conceitos e
breve reflexão acerca da adaptação de material didático para o ensino de Língua Inglesa
INTRODUÇÃO
Há décadas, Noam Chomsky (1965) estabeleceu a dicotomia entre competência
e desempenho, definindo competência como o conhecimento que o falante-ouvinte
tem de sua própria língua.
Posteriormente, Hymes (1972) propôs o conceito de competência comunicativa,
a qual é subdividida em outras competências e se refere não apenas ao conhecimento,
mas também à habilidade de utilizar esse conhecimento. Ao acrescentar comunicativo
ao termo competência, demonstrou claramente estar preocupado com o uso da
língua (SILVA, 2004).
Canale e Swain (1980) e Van Ek (1986) desenvolvem a ideia da competência
comunicativa, também considerando suas subdivisões, em que há aquela relacionada
aos aspectos socioculturais ou, diante de alguns pontos de vista, relacionada à cultura.
Portanto, a concepção de cultura é importante nesse âmbito, principalmente a de
Thompson (1995), que a considera como formas simbólicas em contextos estruturados,
contextos esses diretamente ligados ao uso de uma língua.
Byram (1997), após considerar três possíveis situações de comunicação entre
falantes de diferentes línguas maternas e aspectos culturais de cada um trazidos na
interação, defende a integração do ensino para a comunicação intercultural no sistema
educacional. Tal proposta é o modelo para a competência comunicativa intercultural.
Diante dessas considerações, a discussão de uma abordagem comunicativa
intercultural se faz relevante, sobretudo acerca da tentativa de respeitar os pressupostos
de tal modelo ao planejar aulas de línguas e/ou elaborar materiais didáticos que
contemplem essa competência.
1. Objetivos e organização do artigo
Visando a instigar a reflexão sobre uma abordagem de ensino de línguas que
desenvolva nos aprendizes a competência intercultural, disponibilizaremos exemplos
de atividades e ponderações acerca das mesmas após explicitação dos pressupostos
teóricos que orientam nossa discussão.
Apresentaremos inicialmente, e de maneira breve, a discussão sobre as concepções
de competência e suas subdivisões, considerando os autores tidos como os mais
importantes nessa área, para assim focalizar a competência intercultural. Porém,
para considerarmos a competência cultural, acreditamos que se faz necessária uma
descrição e reflexão sobre o conceito de cultura, para que então, em seguida,
possamos pensar sobre atividades desenvolvidas na tentativa de contemplar
aspectos de interculturalidade.
2. Conceito de competência e suas subdivisões
Chomsky considera a criatividade linguística, a capacidade que o falante-ouvinte
tem de produzir e entender sentenças originais e lançou, então, a sua tese inatista da
aquisição da linguagem, segundo a qual o ser humano nasce dotado de uma faculdade
biológica da linguagem. Através dos dados provenientes do meio ambiente linguístico
onde cresce, a criança desenvolve essa faculdade e se torna competente em termos
linguísticos, independentemente de mecanismos behavioristas (SILVA, 2004).
Em seu estudo de 1965, Chomsky lança um dos seus principais trabalhos: Aspectos
da teoria da sintaxe, em que estabelece a dicotomia entre competência e desempenho,
definindo o primeiro como o conhecimento que o falante-ouvinte possui da sua língua
e o segundo termo como o uso da língua em situações verdadeiras.
O conceito de competência proposto por Chomsky é também chamado de
competência linguística, pois o autor se atém ao conhecimento gramatical, estrutural
da língua, apesar de não deixar de considerar a competência pragmática, ao falar em
desempenho.
Algum tempo depois, Hymes (1979) discute as questões relativas à competência
e incorpora o aspecto social ao conceito e, demonstrando sua preocupação com o
uso da língua, acrescenta comunicativo ao termo competência. Para o estudioso,
o indivíduo precisa não só ter o conhecimento, mas usá-lo comunicativamente.
Após esse momento, outros autores buscam redefinir o conceito de competência
comunicativa, entre eles Canale e Swain (1980), Almeida Filho (1997) e Van Ek
(1986), sobre os quais discutiremos a seguir.
Canale e Swain (1980) dizem que a competência comunicativa é entendida como
sistemas subjacentes de conhecimento e habilidades requeridas para comunicação.
O modelo proposto pelos autores inclui quatro tipos de competências: competência
gramatical (habilidade em relação ao código linguístico); competência sociolinguística
(conhecimento das regras sociais que norteiam o uso da língua, compreensão do
contexto social no qual a língua é usada); competência discursiva (conexão de uma
das orações para formar um todo significativo) e competência estratégica (recursos
usados para compensar eventuais imperfeições por falta do conhecimento das regras
ou para complementar o que está sendo dito).
86 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Daniela Terenzi
Ao conceituar competência comunicativa, Almeida Filho (1997) retoma discussões
anteriores, a de Hymes, por exemplo, como observamos em suas palavras: Um
conhecimento abstrato subjacente e a habilidade de uso não só de regras gramaticais
(explícitas ou implícitas) como também de regras contextuais ou pragmáticas
(explícitas ou implícitas) na criação de discurso apropriado, coeso e coerente. Esse
conceito de competência comunicativa é, para alguns teóricos, distinto do conceito
de desempenho comunicativo (HYMES, 1972), mas o tomamos aqui como
englobando tanto competência como desempenho efetivo.
Considerando os estudos e definição de Hymes, Van Ek (1986) também apresenta
um modelo de competências, descritas a seguir.
1. Competência linguística – habilidade de produzir e interpretar elocuções de
acordo com as regras da língua.
2. Competência sociolinguística – capacidade de escolha das formas
considerando o cenário, relações pessoais, intenção; relação entre símbolos e
seus significados no contexto.
3. Competência estratégica – utilização de estratégias para o entendimento ou
complementação, como reformulações e solicitação de explicações.
4. Competência sociocultural – familiaridade com o contexto para uso adequado
da língua.
5. Competência social – habilidade para interagir com o outro, envolvendo
motivação, atitude, empatia e habilidade para lidar com situações sociais.
As especificações de Van Ek (1986) são bastante similares àquelas apontadas por
Canale e Swain; porém, a maior diferença dos estudos do autor é a incorporação de
outros dois pontos de vista: o social e o cultural.
É exatamente nesse ponto que a discussão proposta aqui se justifica. Podemos
inferir que as questões culturais eram consideradas dentro da competência social
pelos teóricos que iniciaram as descrições e especificações das competências.
Todavia, nos deparamos, no modelo de Van Ek (1986), com a menção explícita de
uma competência em que se leva em consideração a cultura. E, posteriormente, é
proposto (por Byram, 1997) um modelo de competência comunicativa intercultural,
colocando a cultura não só como uma subcompetência, mas como algo macro,
pertencente diretamente ao conceito de competência e não só a uma de suas partes.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 87
Competências, cultura e competência (comunicativa) intercultural: discussão de conceitos e
breve reflexão acerca da adaptação de material didático para o ensino de Língua Inglesa
Considerando que o aspecto cultural é o foco da discussão, propomos um melhor
entendimento do mesmo. Assim, apreciaremos diferentes conceituações do que seja
e do termo cultura, bem como as diferentes percepções apresentadas por estudiosos.
3. Definições e considerações sobre cultura
Discutiremos, neste item, as possíveis definições de cultura, considerando desde
já se tratar de um termo polêmico e que tem sido definido por inúmeros estudiosos,
sem que tenham chegado a um consenso ou a uma definição satisfatória.
Para chegarem à definição, estudos buscaram responder à pergunta: O que é cultura?
E, nessa tentativa, há, provavelmente, mais de trezentas respostas que se assemelham
ou se diferem, variando de acordo com o campo de estudo (ROZENFELD, 2008).
Assim, faremos uma breve discussão, considerando algumas concepções do termo.
Uma das definições mais difundidas é aquela proposta por Geertz (1989).
Kumaravadivelu (2008) retoma o que fora postulado pelo autor, sendo cultura um
padrão de significados transmitidos historicamente, incorporado em símbolos;
um sistema de concepções herdadas, expressas em formas simbólicas, por meio das
quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas
atividades em relação à vida.
Compartilhando a ideia de Geertz, Thompson (1995) propõe uma de suas quatro
concepções de cultura: a simbólica, a qual define cultura como o padrão de significados
incorporados nas formas simbólicas, que inclui ações, manifestações verbais e
objetos significativos de vários tipos, em virtude dos quais os indivíduos se comunicam
e partilham suas experiências, concepções e crenças.
No entanto, apesar de reconhecer a importância da formulação do conceito que a
obra de Geertz oferece, Thompson apresenta algumas críticas que apontam fraquezas
no trabalho, como a inconsistência do termo e visão da natureza.
Além dessa, o autor ainda caracteriza cultura como processo de desenvolvimento
das faculdades humanas, facilitado pela assimilação de trabalhos acadêmicos e
artísticos e ligado ao caráter progressista da era moderna, na concepção clássica.
Já na concepção descritiva é o conjunto de crenças, costumes, ideias e valores
adquiridos pelo indivíduo enquanto membro de um grupo ou sociedade.
Ao repensar a cultura, como o subtítulo do capítulo nos diz, Thompson (1995)
formula a concepção estrutural da cultura, com a qual corroboramos e acreditamos
ser a que melhor responde à indagação sobre o que é cultura.
88 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Daniela Terenzi
Segundo o autor, nessa concepção há ênfase tanto no caráter simbólico dos
fenômenos culturais como no fato de tais fenômenos estarem sempre inseridos em
contextos sociais estruturados (destaque do autor). Podemos, então, focar na definição
de que fenômenos culturais são formas simbólicas em contextos estruturados.
Entendemos, assim, que a língua é uma forma simbólica e é utilizada em contextos
estruturados, o que nos leva a relacioná-la diretamente à cultura.
Nesse raciocínio, nos deparamos com o estudo de Mendes (2002), em que há a
concepção de língua-cultura, ou seja, um conjunto potencial de estruturas, forças e
símbolos que assume posições, formas e cores diferentes, a depender dos matizes
impressos pelo mundo à sua volta e de sua interpretação por aqueles que interagem
através dela. E é neste ponto acerca da interação que o foco de nossa discussão se
encontra, considerando o contato de indivíduos provenientes de diferentes culturas
– interculturalidade – que estabelecem uma comunicação por meio de uma língua em
comum, sendo que essa língua pode ser uma LE.
Chegamos, então, a algumas indagações: considerando que o campo de ensino de
línguas estrangeiras é cada vez maior e que questões acerca da cultura devem ser
levadas em consideração: devemos ensinar a cultura da LE? Seria a cultura uma nova
competência a ser desenvolvida (competência cultural)? Como trabalhar (ou ensinar?)
cultura em sala de aula?
Diante desses questionamentos, estabeleceremos a seguir uma discussão acerca
da competência (comunicativa) intercultural e o ensino de LE.
4. Competência (comunicativa) intercultural e o ensino de LE
Aguilar (2002) apresenta em seu estudo um resumo do modelo de competência
comunicativa intercultural proposta por Byram (1997), cujas características são:
conhecimento de si e do outro e da interação individual e social; habilidade de
interpretar e relacionar-se com educação, educação política e sensibilidade cultural
crítica. Além disso, há a relativização de si e valorização do outro.
Levando em consideração tais características do componente intercultural,
discutimos, teoricamente, em que âmbito esse elemento pode ser inserido.
O autor que acabamos de mencionar o classifica como um desenvolvimento da
competência comunicativa, ou seja, algo a posteriori, como uma evolução dessa
competência, considerando a interculturalidade um elemento importante, a ponto de
permear todas as competências que compõem a comunicativa. Porém, ao analisarmos
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 89
Competências, cultura e competência (comunicativa) intercultural: discussão de conceitos e
breve reflexão acerca da adaptação de material didático para o ensino de Língua Inglesa
detalhadamente as competências propostas por outros autores, como Canale e Swain
(1980) e Van Ek (1986), podemos inferir que o elemento intercultural está inserido na
competência sociolinguística ou, ainda, na competência sociocultural, considerando as
características e definições de cada uma.
Acreditamos, diante da importância da interculturalidade no ensino de línguas,
que essa competência possa ser incluída nas subdivisões da competência comunicativa,
ou seja, além dos tipos de competências já propostos (como a competência gramatical;
a competência discursiva e a competência estratégica, por exemplo), teríamos a
competência intercultural.
Analisando aquelas propostas por Van Ek (1986) e apresentadas neste estudo,
sugerimos que a competência sociocultural e a competência social sejam mescladas
e redefinidas como competência intercultural, considerando a habilidade de ser
sensível e crítico em relação à cultura do outro e à sua própria, e como competência
social, ou seja, capacidade de levar em consideração o contexto para uso da língua,
além de habilidade em interagir em diferentes situações sociais.
Diante dessas considerações, professores de línguas são instigados a pensar sobre
a competência intercultural ao desenvolverem suas aulas e elaborarem atividades.
Embora Byram (1997) admita que esses fatores possam ser adquiridos por meio de
experiências e reflexão, a ideia de integrar ensino para uma comunicação intercultural
no sistema educacional é apoiada.
Rozenfeld (2008) apresenta o ponto de vista de vários autores acerca da cultura
no ensino de LE, dentre eles, Moita Lopes (1996), o qual aponta para a importância
dos estudos da cultura na formação geral do aluno, e Viana (2003), que focaliza a
dimensão cultural da/na interação e as implicações de tal dimensão para os processos
de aprendizagem de LE. O referido autor ainda considera que elementos da
perspectiva de exterioridade (como clima, tradições e gastronomia, por exemplo) são
insuficientes para a conscientização sobre a dimensão cultural da/na interação.
Ponderamos, assim, que o objetivo do professor não deve ser ensinar cultura,
apresentando curiosidades ou diferenças dos falantes da língua-alvo, mas buscar
conscientizar os aprendizes de que as pessoas utilizam diferentes ferramentas e
meios para se expressar e que muitas dessas estratégias são provenientes da cultura
de cada indivíduo.
90 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Daniela Terenzi
Leffa (2003), ao discutir a produção de material didático, postula que, para sobreviver
no mundo real, o aluno precisa ser preparado pela escola; e para ser preparado, de modo
que a aprendizagem faça sentido, o aluno precisa conhecer o mundo real, o que, a nosso
ver, é coerente com a proposta de sensibilização acerca das culturas que interagem em
uma comunicação.
No mesmo estudo, nos deparamos com a seguinte afirmação.
A produção de materiais de ensino é uma área essencialmente prática.
A teoria é importante na medida em que fornece o suporte teórico
necessário para justificar cada atividade proposta, mas subjaz à
atividade, podendo ou não ser explicitada. Quem prepara o material
precisa ter uma noção bem clara da fundamentação sobre a qual se
baseia, mas vai concentrar todo seu esforço em mostrar a prática, não
a teoria. A teoria trabalha nos bastidores; a prática é o que aparece
no palco. Um bom trabalho de bastidores dá segurança ao que é
apresentado, permitindo inovações e até ousadias. (LEFFA, 2003)
Dessa maneira, já tendo discutido teoricamente as questões acerca da competência
intercultural, trataremos da elaboração ou adaptação de material didático para ensino de
língua inglesa como LE, almejando contemplar o desenvolvimento de tal competência.
5. Competência intercultural e a elaboração/adaptação de material didático
Há diversos materiais didáticos disponíveis cuja proposta abrange elementos da
interculturalidade, e cabe ao professor julgar e escolher aquele que lhe parece adequado.
Alem disso, não podemos descartar as possibilidades de elaboração ou adaptação
de materiais no processo de ensino-aprendizagem de uma LE para contemplar a
competência intercultural.
Visamos, neste item, a exemplificar e brevemente discutir acerca da adaptação de
duas atividades propostas em livro didático. O livro é destinado ao ensino de inglês
como LE para aprendizes brasileiros, cujo nível é pré-intermediário.
O tema da primeira unidade didática é “nome” (Name) e, após uma atividade de
compreensão auditiva em que as pessoas falam sobre seus nomes, há a proposta de
discussão acerca do mesmo tema, orientada pelas perguntas: 1. Quais nomes são
típicos em seu país? 2. Qual nome é o mais incomum? 3. Qual nome você mais
gosta?
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 91
Competências, cultura e competência (comunicativa) intercultural: discussão de conceitos e
breve reflexão acerca da adaptação de material didático para o ensino de Língua Inglesa
Acreditamos que a proposta é bastante interessante no que diz respeito a uma
reflexão sobre a cultura do aprendiz, mas não oferece oportunidade de conscientização
a respeito de outros costumes em relação ao nome das pessoas. Assim, sugerimos
uma adaptação desse material, em que outra discussão poderia ser proposta em
sequência, orientada por perguntas como: 1. Quais são os nomes típicos em outros
países? 2. Quais nomes são comuns em diferentes países? 3. Como é o processo da
escolha de nomes em seu país e em outros países?
O professor, então, ofereceria aos aprendizes a possibilidade de refletir sobre a
questão do nome das pessoas em diversos países e em seu próprio, podendo, assim,
deixá-los sensíveis ao fato de que esse elemento é cultural e assim, pode ser diferente
daquilo a que eles estão acostumados.
Tal adaptação tem o potencial de desenvolver, além da competência cultural, as
competências linguística e/ou discursiva (VAN EK, 1986/CANALE; SWAIN, 1980)
por meio da discussão em língua inglesa, o que é um dos objetivos do processo de
ensino-aprendizagem de línguas.
Posteriormente, na mesma unidade e ainda baseada no mesmo tema, uma atividade
de compreensão de texto, intitulado “Como lembrar nomes em festas” (How to remember
names at parties) solicita aos alunos que relacionem cada subtítulo ao parágrafo
correspondente e, em seguida, três perguntas orientam uma nova discussão: 1. Quais
das técnicas você já utilizou para lembrar nomes? 2. Quais dessas técnicas poderiam
lhe ajudar a lembrar novas palavras em inglês? 3. Em quais outras maneiras você pode
pensar para ajudá-lo a lembrar e aprender novas palavras em inglês?
Além dessa discussão, o professor tem a possibilidade de solicitar aos alunos
que pesquisem sobre como os nomes são utilizados em diferentes situações sociais,
como, por exemplo, em festas, em reuniões de uma empresa ou em sala de aula,
e em diversos países. A pesquisa e o posterior compartilhamento das informações
facilitarão a compreensão de mal-entendidos e poderão deixar os aprendizes mais
atentos em relação ao uso de nomes ao se depararem com indivíduos de diferentes
culturas.
CONCLUSÃO
Retomando conceitos valiosos que definem competência, competência
comunicativa, cultura e interculturalidade, discutimos o termo competência
92 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Daniela Terenzi
comunicativa intercultural, argumentando que nos parece que não seria ideal ir
um passo além da competência comunicativa, discordando do apontado por Aguilar
(2002). Porém, enfatizamos a importância da inclusão de aspectos interculturais nas
aulas de línguas, principalmente no ensino de línguas estrangeiras, o que nos leva a
objetivar o desenvolvimento da competência intercultural.
Com base nos exemplos apresentados, alertamos para o fato de que cultura não
deve ser ensinada, mas o professor pode criar oportunidades para que os aprendizes
reflitam e se sensibilizem acerca das características, costumes, concepções e
interpretações de formas simbólicas do outro para que assim melhor os interpretem
e também melhor compreendam seus próprios.
Referências
• AGUILAR, M. J. C. Intercultural communicative competence: a step beyond
communicative competence. Elia: Estudios de linguística inglesa
aplicada, ISSN 1576-5059, N.º 3, págs. 85-102, 2002.
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94 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Daniela Terenzi
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 95
UMA ANÁLISE SEMÂNTICA DE
PEGAR + NOME
Karen Sampaio Braga Alonso
UFRJ
Doutora em Linguística pela UFRJ
Nalinle Costa Vaz
E. M. Pracinha João da Silva
Licenciada em Letras (Português-Inglês) pela Faculdade CCAA
contato: [email protected] / [email protected]
Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar o papel das expressões idiomáticas
na língua a partir da descrição dos usos da estrutura pegar + nome. Mais especificamente,
pretende-se mostrar que não há uma oposição discreta (absoluta) entre idiomaticidade
e composicionalidade, mas que as estruturas linguísticas, de modo geral, encontram-se
em um continuum que vai do mais idiomático ao mais composicional, dependendo do
contexto de uso.
PALAVRAS-CHAVE: expressões idiomáticas; idiomaticidade e composicionalidade;
pegar.
Abstract: The aim of the present work is to analyse the role of idiomatic expressions
in language from the descriptions of the use of the structure ‘pegar’ + noun (take, catch +
noun). More specifically, the intention is to show that there is not an opposition between
idiomaticity and compositionality, but that the linguistic structures as a whole are in a
continuum that goes from the most idiomatic to the most compositional meaning,
depending on the context of use.
KEYWORDS: idioms; idiomatic and compositional expressions; ‘pegar’.
96 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Karen Sampaio Braga Alonso & Nalinle Costa Vaz
Resumen: El objetivo del presente trabajo es analizar el papel de las expresiones
idiomáticas en portugués desde la descripción de los usos de la estructura ‘pegar’ + sustantivo
(tomar, coger + nombre). Más específicamente, la intención es mostrar que no hay una
oposición entre idiomaticidad y composicionalidad, sino que las estructuras lingüísticas
en su conjunto están en un continuo que va desde las más idiomáticas hasta las más
composicionales en función del contexto de uso.
PALABRAS CLAVE: expresiones idiomáticas; idiomaticidad y composicionalidad;
‘pegar’.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 97
Uma análise semântica de pegar + nome
INTRODUÇÃO
Neste artigo, será discutida a questão em torno da dicotomia clássica idiomaticidade X
composicionalidade. Para tanto, serão analisados os diferentes usos da estrutura
pegar + nome na língua portuguesa, procurando defender a existência de um
continuum em vez de uma distinção rígida entre esses dois fenômenos de integração
sintaxe-semântica.
Em um primeiro momento, será feita uma breve discussão em torno do escopo da
semântica e do da pragmática – em que se procura refletir sobre propostas teóricas
que aproximam ou diferenciam esses campos. Dentro dessa mesma perspectiva, o
texto contempla uma pequena descrição acerca das abordagens formal e funcional da
linguagem, a qual será importante para justificar a análise da estrutura pretendida.
Após essas reflexões iniciais, será apresentada a análise do verbo pegar a partir
de uma análise de suas acepções nos diferentes usos da estrutura pegar + nome, com
exemplos de frases retiradas do site corpus do português, procurando, assim, demonstrar
que não há uma oposição absoluta entre idiomaticidade e composicionalidade,
mas que as palavras atualizam seu sentido de acordo com o contexto em que são
empregadas.
O ESCOPO DA SEMÂNTICA E DA PRAGMÁTICA: DIVERGÊNCIAS E
CONVERGÊNCIAS
A semântica mais clássica está vinculada em grande sentido à filosofia de Platão
e Aristóteles, para quem o significado carregava um sentido básico, estável. Segundo
essa perspectiva, a Semântica tem como objetivo descrever o “significado” das
palavras e das sentenças através da referência e sentido (MUSSALIN, 2003). Neste
caso, a referência seria a relação estabelecida entre uma expressão linguística e um
objeto.
Assim, à Semântica caberia estudar a relação entre forma e sentido. Mas, o que
fazer com o contexto? A Semântica não trataria de fenômenos envolvendo a situação
comunicativa? Pois bem, em uma ótica mais tradicional, esse seria o objeto de análise
da Pragmática – a ciência das palavras em uso.
98 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Karen Sampaio Braga Alonso & Nalinle Costa Vaz
Há, porém, um outro caminho que se pode traçar no entendimento da fronteira
entre Semântica e Pragmática, que estabelece uma aproximação entre as duas áreas
dos estudos linguísticos. De fato, sob determinadas perspectivas teóricas, o sentido
não pode ser tomado independente do uso. Desse modo, foge-se da teoria clássica
de tratamento do significado, pois o sentido das palavras muda o tempo todo, de
acordo com a situação em que elas estão inseridas.
A relação entre estrutura e contexto de uso é classicamente compreendida como
o escopo da Pragmática, mas tendo em vista que o sentido está sempre no uso que
se faz dele, Semântica e Pragmática se confundem ou se fundem para a análise do
significado das formas de uma língua.
ESTRUTURALISMO E FUNCIONALISMO
Tomando a discussão de modo bastante geral, seria possível entender dois
caminhos básicos para a análise da estrutura das línguas: o formalismo (cujo foco
está na forma, e a análise semântica se faz da forma mais clássica) e o funcionalismo
(cujo foco está no uso da língua, e a análise dos dados leva em conta a aproximação
entre Semântica e Pragmática).
Assim, considerando o estruturalismo formalista de Saussure (1969), por
exemplo, pode-se entender que a composicionalidade – em que o todo é a soma das
partes –, por exemplo, de que o significado de uma palavra é exatamente a soma dos
sentidos dos morfemas que a compõem – é o mecanismo central da busca do sentido
das formas linguísticas.
Nesse sentido, para entender a proposta composicional, deve-se partir do
princípio de que uma determinada forma linguística pode ser normalmente dividida
em unidades menores: por exemplo, em porta-retrato, é possível dividi-la em porta e
retrato; já a palavra geralmente pode ser dividida em geral e mente. Sendo assim, partir
de uma análise semântica composicional aplicada a esses casos é dizer que o sentido
de porta-retrato é o sentido de porta mais o sentido de retrato; da mesma forma, o
sentido da palavra geralmente seria o sentido de geral mais o de mente.
A abordagem composicional se molda no princípio de que as palavras (e frases)
carregam um sentido relativamente estável, o qual pode ser revelado pelo mecanismo
da composição que acabou de ser comentado. Algumas palavras, e até mesmo
sentenças, inteiras apresentariam, assim, uma previsibilidade semântica, a qual
dependeria basicamente do conhecimento individual do sentido dos morfemas da
palavra ou dos vocábulos que compõem a frase.
Isso significa dizer que a aposta composicional se ligará mais fortemente às
correntes de estudos linguísticos mais relacionadas ao chamado paradigma
formalista, que procura concentrar suas forças na estabilidade, na previsibilidade das
formas, aplicando esse princípio, inclusive, ao nível semântico.
Entretanto, tomando dois exemplos de Salomão (2000) e fazendo uma
comparação de base funcionalista das palavras prisioneiro e carcereiro, conclui-se que
as duas possuem a mesma estrutura base + o sufixo -eiro. Dessa maneira, em uma
lógica mais formalista, entende-se que o sentido de carcereiro é a soma do sentido
de cárcere mais o sentido de -eiro, assim como o sentido de prisioneiro é a soma do
sentido de prisão mais o sentido de -eiro.
Como as palavras prisão e cárcere têm basicamente o mesmo significado (cadeia),
as palavras prisioneiro e carcereiro também deveriam ser sinônimas, já que,
composicionalmente, ambas possuem uma base de sentido próximo e um mesmo
elemento sufixal. Só que isso não acontece: carcereiro é o guarda de cárcere e prisioneiro
é o homem privado da liberdade, preso. Isto é, carcereiro é o contrário de prisioneiro,
no sentido relativo à posição de cada um na penitenciária. Como não o são, entende-se
que há um sentido não-composicional, ou melhor, não imediatamente inferível dos
morfemas componentes de cada uma das palavras. Na comparação entre o sentido
de carcereiro e de prisioneiro, depreende-se um valor que foge à mera decomposição
da palavra em sentido da base + sentido do sufixo. Essa conclusão parece rever o
tratamento composicional, uma vez que demonstra que nem sempre o sentido final
da palavra ou da frase está nas suas partes componentes. Essa nova perspectiva,
que entende o sentido de uma forma linguística como indo além da análise
parte-por-parte, é chamada de idiomaticidade, em que o todo não é a mais
exclusivamente a soma das partes, mas é também relativo ao contexto de uso em que
a forma está sendo empregada.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 99
Uma análise semântica de pegar + nome
100 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Karen Sampaio Braga Alonso & Nalinle Costa Vaz
Exemplos desse tipo mostram a fragilidade da descrição linguística, especialmente
semântica, quando se adota uma perspectiva formal de análise dos dados. Assim
também se entende que o caminho mais interessante e rico para o tratamento da
semântica e para a discussão do tema proposto é uma abordagem mais funcionalista,
em que se relacionam palavra (ou frase) e contexto de uso, em que o sentido de uma
forma (seja em nível mais lexical ou frásico) é instável, uma vez que depende de onde
e quando ela é ou passa a ser empregada pelos falantes.
O funcionalismo é uma corrente da Linguística que, em oposição ao formalismo,
preocupa-se em estudar a relação entre a estrutura gramatical das línguas e os
diferentes contextos comunicativos em que ela é usada, ou seja, foca exatamente a
relação deixada em segundo plano pelo formalismo – sentido e uso.
Sendo assim, acredita-se que os manuais de Português, como dicionários,
gramáticas, apostilas, entre outros, deveriam abordar a língua levando em
conta os diferentes usos que se fazem de suas formas. É dentro da perspectiva
pragmático-funcional que o texto analisará a estrutura pegar + nome, a partir dos
diferentes sentidos que pegar assume nesse contexto.
AS ACEPÇÕES DE PEGAR
Já foi comentado que o sentido de uma palavra – assim como uma sentença ou
uma expressão – pode variar de acordo com o contexto em que ela for empregada.
O exemplo clássico são as expressões conhecidas como idiomáticas (por exemplo,
Maria vai com as outras, tirar água do joelho etc.), que, se interpretadas como soma
dos significados de suas partes, soariam estranhas, na maioria das vezes.
Aprofundando a discussão, o que se está defendendo é o fato de que as palavras ou
expressões apresentam graus de idiomaticidade distintos que nem sempre são levados
em consideração, como no caso de algumas expressões formadas por verbos, que,
por serem muito comuns no nosso vocabulário, não são vistas como idiomatismos, mas
como estruturas composicionais – haja vista os exemplos carcereiro e prisioneiro.
Tratando mais diretamente do tema do artigo, vejamos algumas acepções do
verbo pegar na estrutura pegar + nome, retirados do site corpus do português:
Tabela 1: Resultados com pegar + nome
Nessa tabela, observa-se que foram encontrados 63 exemplos de pegar dentro
de pegar + nome. Dentre esses exemplos, os sentidos encontrados foram: contrair,
buscar, selecionar, capturar, conseguir, receber, colher ou coletar, roubar, incendiar,
tomar ou embarcar e ir com calma.
Tratando mais especificamente da análise da tabela anterior, tem-se que, com
relação aos exemplos referentes a pegar + nome no sentido de contrair, foram
encontradas nove ocorrências. Essas ocorrências se mostraram bastante produtivas
em contextos que envolvem doença e possibilidade de se adquirir ou desenvolver
algum mal. Para ilustrar casos desse tipo, observe os exemplos a seguir e suas
respectivas análises:
(1) “Quando se está apaixonado, não passa pela cabeça a possibilidade de pegar
AIDS!”
Sentido Ocorrências
Conseguir 2
Receber, ganhar 7
Colher, coletar 3
Roubar 4
Incendiar 3
Tomar, embarcar 2
Ir com calma 1
Total 63
Sentido Ocorrências
Pegar, alcançar com as mãos 7
Contrair, adquirir 9
Buscar, ir a busca de 7
Selecionar 7
Capturar 11
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Uma análise semântica de pegar + nome
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Karen Sampaio Braga Alonso & Nalinle Costa Vaz
Neste exemplo, o informante toma pegar no sentido de contrair algo. Para tanto,
ele faz uso da combinação pegar + nome; no caso, pegar AIDS. Este é um exemplo
que pode ser entendido como idiomático, na medida em que não há alguém pegando
fisicamente nada, mas sim desenvolvendo alguma doença que, em geral, é passada
de uma pessoa para outra. Esse é um uso de pegar + nome mais abstrato, metafórico.
Portanto, mais idiomático e menos composicional.
Com relação aos exemplos referentes a pegar no sentido de buscar ou ‘ir buscar X’
foram encontradas sete ocorrências. Essas ocorrências são também formadas pelo
verbo pegar + nome. Vejamos o seguinte exemplo:
(2) “Delfino saiu com as chaves, desceu as escadas do Santuário e foi ao hotel pegar
Adriano.”
No exemplo 2, pegar + nome tem o sentido de buscar, ato de locomoção até uma
pessoa com a intenção de leva-lá para outro lugar. Este exemplo também apresenta
um sentido idiomático, uma vez que a pessoa não pega a outra com as mãos, apenas
busca, acompanhando essa pessoa de um lugar para o outro.
No exemplo a seguir, encontramos outro sentido para a estrutura em questão:
(3) “Gosto de pegar poemas dramáticos como Dom Perlimplin.”1
No exemplo 3, o informante trata de pegar + nome com o sentido de selecionar,
escolher criteriosamente. Pode-se observar que nesta ocorrência o sentido do verbo
também é idiomático, porque apesar da possibilidade de pegar poemas com as mãos,
uma vez que ele esteja em um papel (também idiomático: não se pega o poema e sim
o papel), o informante não pega qualquer poema, apenas os que lhe agradam, por
isso ele seleciona.
Já no exemplo seguinte, encontra-se um outro sentido para pegar + nome:
(4) “[...] matando lagartixas a baladeira ou fazendo arapucas para pegar rolinhas.”
1
Amor de Dom Perlimplim com Belisa em seu jardim é uma peça de teatro escrita pelo dramaturgo espanhol Federico García Lorca
em 1928. A peça estreou em 1933, em Madrid. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Amorde_Dom_Perlimplim_com_
Belisa_em_seu_Jardim.
Nesta ocorrência, o ato de pegar rolinhas é, na verdade, o ato de deter ou capturar
rolinhas. Nesse caso, o verbo pegar adquire uma acepção distinta das anteriormente
comentadas, o que mostra que o uso da língua relativiza a ideia da idiomaticidade,
em que pegar manteria sempre o mesmo significado básico, ao qual se somaria a
noção de rolinha. Esse é mais um caso em que se pode demonstrar que o significado
não é estável, mas sim pragmaticamente/discursivamente construído.
Nos exemplos a seguir, vê-se o verbo em questão com o sentido de conseguir em
dois contextos diferentes. Observe:
(5) “[...] gente correndo para chegar primeiro aos vagões e pegar lugar sentado...”.
Neste exemplo, o informante tem o objetivo de conseguir um lugar para se sentar
e não o de apanhar com as mãos. Sendo assim, este sentido apresenta um grau
maior de idiomaticidade, pelo fato de que o lugar, neste caso, é abstrato por não ser
específico nem concreto.
Agora, observe o outro exemplo com o mesmo sentido:
(6) “[...] não queria correr o risco de pegar taxista com pouco dinheiro.”
No exemplo 6, o sentido do verbo é o de conseguir ou encontrar um taxista com
pouco dinheiro, e que não seja capaz de dar troco ao passageiro. Observa-se aqui,
também, uma certa idiomaticidade, pois, assim como nos exemplos anteriores, não
há o ato de apanhar com as mãos, mas sim conseguir ou encontrar.
Já nos exemplos abaixo, encontra-se o sentido de receber/ganhar. Vejamos:
(7) “Entre fazer Piano e fazer Letras, se é pra pegar dinheiro, vou fazer Direito, pôxa.”
(8) “[...] poderá pegar suuspensão de até seis partidas.”
Nos dois exemplos (7 e 8), há sentidos parecidos. No primeiro, o sentido de
ganhar dinheiro através de uma profissão (formação), o que é abstrato, uma vez
que não se trata do contato direto do dinheiro com as mãos, mas sim do fato de que,
tendo a formação pelo curso de Direito, uma pessoa ganha, recebe mais dinheiro do
que “fazendo Piano” ou “fazendo Letras”, por exemplo.
No segundo exemplo (8), trata-se de receber ou ganhar uma suspensão como
punição por um ato incorreto. Nesse caso, também não há o contato físico ou ato
de pegar, isto é, o sentido é também idiomático.
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Uma análise semântica de pegar + nome
104 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Karen Sampaio Braga Alonso & Nalinle Costa Vaz
Já no exemplo 9, a seguir, encontra-se o sentido de colher, coletar:
(9) “O próprio Gabeira, que fez todo um trabalho de idas e vindas, de pegar comida,
botar as mensagens..”
Neste exemplo, entende-se que o sentido de pegar + nome é o de coletar,
ou arrecadar comida, por exemplo. Esse sentido também carrega uma certa
idiomaticidade. Pode-se pegar a comida com as mãos, porém há duas possibilidades:
a comida pronta, cozida etc. (que não parece ser o caso do exemplo anterior)
ou a comida na embalagem – nesse caso, a pessoa não tem o contato direto com a
comida, mas sim com a própria embalagem.
Nos exemplos 10 e 11, veremos o verbo pegar com o sentido de roubar:
(10) “Ninguém mais vai acusar ninguém de pegar dinheiro do governo.”
(11) “Outra boa é pegar turista pelo Corcovado e na Vista Chinesa.”
No primeiro exemplo, tem-se o sentido de roubar diretamente, alguém rouba algo
de alguém; nesse caso, dinheiro. Esse exemplo apresenta um grau idiomático menor,
por haver uma relação direta com o verbo pegar. Já no segundo exemplo, o sentido
do verbo é o mesmo do primeiro, roubar, porém indireto, uma vez que alguém pega
os turistas para roubá-los, mas sabe-se que algo é roubado de alguém, toma-se à
força, e não se rouba alguém (no sentido literal da expressão).
Já nos próximos exemplos, aparecem três contextos diferentes com o sentido de
acender, incendiar:
(12) “[...] tinha medo da lamparina pegar foogo na varanda.”
(13) “[...] já há muita gente de isqueiro na mão para ver mais esse circo pegar fogo.”
No primeiro exemplo, o sentido do verbo é o sentido literal de incendiar, inflamar,
ou seja, há uma relação real com fogo. Porém, este sentido também é idiomático,
uma vez que o fogo não é concreto.
Já no exemplo 13, a expressão pegar fogo tem o sentido conotativo e significa
que uma situação ficará complicada, difícil, e que algo pode dar errado. Este sentido
é ainda mais idiomático, por não ter nenhuma relação com fogo, é apenas uma
metáfora, em que se associa fogo, coisas quentes, com perigo, enfim.
Nos exemplos 14 e 15, tem-se que o sentido de pegar + nome é o de embarcar,
tomar:
(14) “Nem por sonho tentem pegar ônibus na Rodoviária.”
(15) “Para quem começou a pegar onda em o tempo de as monoquilhas.”2
No primeiro exemplo, o sentido é o de embarcar, com o complemento expresso
por nome indicativo de veículo: ônibus, trem, avião etc. Esse sentido é também
metafórico, por não haver o ato real de pegar com as mãos.
Já no segundo exemplo, o verbo pode se referir à expressão “embarcar na onda”,
ao fato de “ir junto”, ser transportado por ela, que não é um objeto concreto como
ônibus, porém carrega o mesmo sentido e se mostra mais idiomático pelo fato de
também ser abstrato.
O último dos exemplos é um dos que se mostra mais idiomático:
(16) “Por enquanto, o partido decidiu pegar leve com o governador [...].”
No exemplo 16, o sentido em questão é de ir com calma, devagar. Neste caso,
tem-se um dos mais idiomáticos de todos os exemplos. Assim como pegar fogo (uma
situação complicada), por não haver ligação nenhuma da expressão (pegar leve) com
o real sentido do verbo pegar, apanhar, tomar para si alguma coisa, nem com nenhum
dos outros indicados na tabela.
A partir desta análise, pode-se perceber que a estrutura verbo + nome é também
uma forma de expressão idiomática, pelo simples fato de não podermos analisar
as duas palavras separadamente, mas apenas em um contexto, do qual emergem
sentidos os mais variados.
A seguir, encontra-se um esquema que procura ilustrar o fato de que os diferentes
usos de pegar + nome atualizam o sentido de pegar e que, ainda, esses sentidos
apresentam laços semânticos entre si.
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Uma análise semântica de pegar + nome
2
Monoquilha: Prancha de uma quilha só, muito usada até alguns anos atrás. Atualmente só as pranchas grandes, as longboards e
as guns, são monoquilhas. Disponível em: http://ricosurf.globo.com/pagina_escolinha/glossario_surf.htm
106 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Karen Sampaio Braga Alonso & Nalinle Costa Vaz
APROXIMAÇÃO SEMÂNTICA ENTRE OS EXEMPLOS
Pegar
Capturar com
critério
Pegar
Capturar
Pegar
Alcançar com as
mãos e trazer
para si
Pegar
Beneficiário
Pegar
Contrair,
desenvolver,
adquirir
Esquema 1: sentidos de pegar + nome.
Analisando o esquema 1, é possível entender que há um sentido de pegar mais
central – o de apanhar algo com as mãos e mantê-lo em sua guarda. Nas setas para
cima, por exemplo, o sentido de capturar está diretamente ligado ao fato de que
pegar envolve apanhar algo com as mãos e o sentido de capturar com critério está
relacionado diretamente ao de apanhar e, através desse, ao de pegar em si (relação,
portanto, indireta com pegar).
Pegar
Deslocamento. Seguir
em uma direção
Pegar
Meio de
transporte
Nas setas para baixo, o sentido de beneficiário, de pegar algo de outra pessoa
(pegando emprestado ou roubando) está diretamente ligado ao de tomar algo para si
e indiretamente ligado a contrair, desenvolver alguma doença.
Com relação às setas para a direita, tem-se o sentido de pegar diretamente
associado ao de deslocamento, uma vez que o próprio ato de pegar, como ação, envolve
deslocamento das mãos em direção do objeto. A esse sentido de deslocamento, liga-se
o de meio de transporte, que também envolve locomoção (que se liga indiretamente
a pegar, em si).
Assim, entende-se que os sentidos de pegar + nome mantêm relações entre
si, entendendo que essa é a maneira mais adequada de tratamento das formas
idiomáticas da língua: leva em conta a situação comunicativa, sofisticando a análise
semântica de uma expressão e contribuindo para o próprio conhecimento acerca de
como os seres humanos fazem sentidos do mundo à sua volta.
CONCLUSÃO
Pode-se concluir, a partir da análise de exemplos de expressões com o verbo
pegar + nome, que uma descrição linguística que leve em conta a língua em uso
contribui para a discussão em torno da dicotomia composicionalidade/idiomaticidade.
Passa-se, então, a partir da ótica funcionalista, a entender que nem sempre o todo
é o resultado cego da soma das partes, como foi visto no par carcereiro/prisioneiro e
como pode ser demonstrado a partir das várias acepções assumidas pelo verbo pegar,
as quais dependiam do contexto em que pegar era empregado.
A respeito da discussão do tratamento composicional dado pelas abordagens
ditas formalistas, o artigo mostrou que a interpretação semântica de pegar é
fortemente condicionada por fatores de ordem pragmático-discursiva e que o
entendimento de um sentido básico para pegar que se mantém como tal,
independente do uso desse verbo, é insustentável quando se passa à análise
de dados. Vê-se, por outro lado, que pegar + nome é uma estrutura altamente
polissêmica e, portanto, com graus de idiomaticidade e composicionalidade. Em
outras palavras, entende-se que as formas linguísticas não devem ser analisadas
fora de contexto, mas devem ser compreendidas dentro de um continuum que vai do
(+) idiomático ao (+) composicional.
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108 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4
Karen Sampaio Braga Alonso & Nalinle Costa Vaz
Conclui-se, assim, que o contexto é um fator importante na avaliação semântica das
formas e que, a cada novo uso, vários sentidos podem ser revelados. Em consequência,
defende-se que se trabalhar com a ideia de um contínuo, a partir de uma noção
prototípica, como aquela que foi atribuída ao verbo pegar dentro de pegar + nome, por
exemplo, não apenas auxilia, como dá mais coerência ao tratamento dos dados reais da
língua.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2011 • Vol. 4 109
O ADMIRÁVEL MUNDO DE GUIMARÃES
ROSA: “SEQUÊNCIA”, O CONTO
Marlene Lessa V. Borges
FFLCH / USP
Mestranda do Programa de Letras Clássicas da Universidade de São Paulo FFLCH/USP
contato: [email protected]
Resumo: Por meio do conto “Sequência”, o leitor tem a oportunidade de
adentrar ao mundo mágico de Guimarães Rosa, em que as ações humanas podem
receber um sentido oculto e transcendente. Uma busca aparente pode ocultar outra,
muito mais profunda e, talvez, inconsciente.
PALAVRAS-CHAVE: mito; transcendência; mistério.
Abstract: The reader can delve into the magic world of Guimarães Rosa through
his short story “Sequência” (Sequence), in which human actions can bear a hidden,
transcendent meaning. A simple search can hide another far deeper or even unconscious
one.
KEYWORDS: myth; transcendence; mystery.
Resumen: Mediante el relato “Sequência” (Secuencia), el lector puede adentrarse
en el mundo mágico de Guimarães Rosa, en el cual las acciones humanas pueden entrañar
un sentido oculto y trascendente. Una búsqueda aparente puede ocultar otra, mucho más
profunda y, quizás, inconsciente.
PALABRAS CLAVE: mito; transcendência; misterio.
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Marlene Lessa V. Borges
Integrando a obra Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa, o conto “Sequência”
apresenta um enredo que se organiza a partir de um fato simples, banal e corriqueiro
na vida do sertanejo: uma vaca que foge, um vaqueiro que sai em sua perseguição.
Esse é o fato aparente, mas, em se tratando de Guimarães Rosa, o que importa
mesmo não é o fato, e sim o que está por trás do fato. Para ele, todo acontecimento
é um milagre, entendido no sentido originário do termo do latim miraculum:
maravilha, prodígio, que causa admiração. É o que ele diz no início do conto
“O espelho”: “Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a
ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos
vendo” (ROSA, 2001, p. 119). O que ocorre neste conto não é diferente: o vaqueiro
parte em busca da rês fugitiva, mas, sem o saber, parte em busca do amor, fato que
só ao final lhe será revelado.
O relato do conto se estrutura como uma narrativa mítica, em que um
acontecimento da realidade humana é interpretado mediante uma conexão com o
mundo transcendente. O narrador do conto quer mostrar que há forças mágicas
atuando sobre o mundo, as quais conferem um sentido oculto às ações humanas.
O homem tem a impressão de ter em suas mãos as rédeas do próprio destino, mas
a verdade é que ignora as surpresas que lhe estão reservadas no caminho.
Este é um tema caro a Guimarães Rosa, escritor que atualiza em sua literatura
uma inusitada dimensão mágico-espiritual do regionalismo. O autor optou por uma
literatura regionalista muito particular. Não praticou o regionalismo social militante
dos anos 1930, desprovido de metafísica, que primava por documentar a
problemática do homem em relação ao seu ambiente social. Também não abraçou
com exclusividade o movimento contrário, ou seja, a reação espiritualista, que
defendia que a literatura devia expressar o mundo transcendente e sondar a
interioridade do sujeito, e não se ater ao mundo material. Guimarães Rosa vai, a
seu modo, utilizar elementos de uma e de outra tendência, procurando representar
o homem rústico em seu contexto social e, também, perscrutar-lhe a alma e o
inconsciente. O cenário que se repete em suas obras é o do sertão de Minas Gerais,
região que conhece bem, porque ali viveu sua infância e sua juventude. A paisagem
é sempre a de extensas pastagens, altos morros, rios e brejos e, de raro em raro,
alguns pequenos povoados. Neste conto, “Sequência” (1969, reeditado em 2001), o
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O admirável mundo de Guimarães Rosa: “Sequência”, o conto
espaço em que ocorre a ação tem referências vagas, como a “estrada das Tabocas”, a
“fazenda Pãodolhão” e a “fazenda Pedra”, mas a região descrita se parece com muitas
outras de suas obras.
O relato do conto se dá em terceira pessoa, por meio de um narrador onisciente
e onipresente, que alterna o foco narrativo entre os dois personagens, a vaca e o
vaqueiro. O tempo de duração da narrativa é de um dia de sol mais algumas horas
da noite. O tempo é dado por sinais da natureza, o que confere um efeito espontâneo
e poético ao relato, como por exemplo: “a vaquinha se fugira, da Pedra,
madrugadamente, entre o primeiro canto dos melros e o terceiro dos galos – [...]”(ROSA, 2001, p. 114). Para designar o avanço das horas, o narrador menciona as
cores que o céu vai adquirindo no transcorrer do dia. Para significar a madrugada,
diz que o céu era quase da cor da vaquinha vermelha (“num céu quase da sua cor”)
(ROSA, 2001, p. 114); para significar o meio-dia, diz que “o dia era grande, azul e
branco, [...] O sol, inteiro” (ROSA, 2001, p. 115). Para representar o final da tarde,
diz “o céu também em amarelo” (ROSA, 2001, p. 116); e ainda, “o ouro esboço do
crepúsculo” (ROSA, 2001, p. 117). Desse modo, percebe-se um narrador totalmente
integrado à natureza e comprometido com a cultura rústica do personagem, pois
essa é a maneira pela qual o sertanejo percebe a passagem do tempo, ou seja, através
das mudanças que constata no céu que o recobre.
A narrativa tem início in medias res, ou seja, quando a vaquinha já está em plena
marcha de retorno para sua antiga “querência” (ROSA, 2001, p. 114). “Na estrada
das Tabocas, uma vaca viajava” (ROSA, 2001, p. 113). O narrador descreve o afã da
vaquinha para regressar ao lar atribuindo-lhe sentimentos humanos, tais como amor,
saudade, e qualidades humanas, como “sonsa” (ROSA, 2001, p. 114), “querençosa”
(ROSA, 2001, p. 115), “uma malícia” (ROSA, 2001, p. 117), “três vezes esperta”
(ROSA, 2001, p. 115). É o mesmo procedimento que o autor já adotara ao
caracterizar o “sábio” burrinho do conto “O burrinho pedrês”. Depois de descrever
os esforços da vaquinha no primeiro momento da fuga, o narrador regressa algumas
horas no tempo para contar as circunstâncias em que ela fugira. O fato era que a
“vaquinha vermelha”, que fazia parte de um rebanho recém-chegado à fazenda Pedra,
do “seo Rigério”, tomada de saudades do seu antigo lar, fugira de madrugada em
direção às terras do seu antigo dono, Major Quitério, da fazenda Pãodolhão. Ao
amanhecer, dado o alarme da fuga na fazenda Pedra, um dos filhos de “seo Rigério”
se oferecera para ir resgatar a “rês fujã”. Neste ponto, o narrador deixa bem claro ao
leitor que não havia necessidade alguma de que tal fato se desse, isto é, que o rapaz
tomasse para si aquele encargo, pois havia muitos vaqueiros para tal serviço: “Seus
vaqueiros, postos, prontos. Esse seu Rigério tinha os filhos diversos, que por em
volta se achavam. Nem deles, para o quê, havia necessidade.” (ROSA, 2001, p 114)
O narrador julga, portanto, e faz entender ao leitor, que alguma força oculta
impulsionara o jovem a abraçar aquela missão. E introduz, então, uma ponta de
mistério e suspense, ao dizer a respeito do jovem: “Soubesse o que por lá o botava,
se capaz.” (ROSA, 2001, p. 114)
Montado no seu “bom cavalo”, o rapaz toma então a mesma direção que a
vaquinha já tomara mais de duas horas antes. Fazem o mesmo caminho, mas com
diferentes estados de ânimo, pois ela sabe por onde e para onde vai (“Seguia, certa;
por amor, não por acaso”) (ROSA, 2001, p. 114), já ele não sabia a que parte aquela
busca o levava: “ia desconhecidamente” (ROSA, 2001, p. 114). O amor move o
esforço da vaquinha, o brio, o dele. Mas, sendo o amor mais forte, a vaca não arrefece
o ânimo diante dos tantos obstáculos do caminho. Já o moço, depois de muito
cavalgar, exausto pela busca cega, chega a pensar em desistir: “Desanimadamente,
ele, malandante, podia tirar atrás. Aonde um animal o levava?” Mas o orgulho o
impede de fazê-lo (“voltasse sem ela, passava vergonha”). (ROSA, 2001, p. 115)
Ocorre que os dois personagens estão em situações antagônicas entre si. A vaca
está ameaçada pela perseguição do vaqueiro: “O inimigo já vinha perto”, diz o
narrador, ao relatar o fato sob o ponto de vista da vaca. E, a respeito do rapaz, que
sentia o ridículo da situação em que a vaca o colocava, dirá: “Ele agora se irritava”
(ROSA, 2001, p. 115). A longa e sacrificada viagem representa uma grande travessia
para os dois viajantes. Para a vaca, esse desafio tinha um significado: “levantar o
desterro” (ROSA, 2001, p. 116). Para o rapaz, tudo aquilo era um enigma, e pensou:
“Seja o que seja.” (ROSA, 2001, p. 116)
A travessia costuma constituir uma simbologia na obra de Guimarães Rosa.
Significa uma passagem, uma transformação na vida das personagens que se dá
mediante a superação de obstáculos. Neste conto, há outra travessia dentro da
travessia principal: a travessia de um rio, que os dois personagens são obrigados
a empreender a nado. São dois momentos de intenso lirismo no relato. Sobre a
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travessia da vaca, o narrador dirá, com delicada poesia: “Foi uma mexidinha figura
quase que mal os dois chifres nadando – a vaca vermelha o transpondo, a esse rio,
de tardinha” (ROSA, 2001, p. 116). Sobre a travessia do rapaz, desconstruindo e
invertendo o léxico para intensificar o sentido das palavras, diz o narrador: “E entrou
de peito feito. Àquelas quilas águas trans – às braças” (ROSA, 2001, p. 117). Em
ambos os casos e com recursos diferentes, o autor consegue criar uma vívida imagem
da cena da travessia do rio na imaginação do leitor. Ressalte-se que o rio, aqui, é um
símbolo que separa as duas fases da vida daqueles que o cruzam.
Causa estranheza ao vaqueiro a descomunal resistência física da vaquinha, pois,
ao anoitecer, seu cavalo, que o narrador já chamara de “bom cavalo” – começa a
bambear as pernas. De onde viria tamanha força? Tudo parece ter uma aura mágica.
De fato, a vaquinha é tratada pelo narrador como uma figura quase sagrada.
Basta ver a maneira sublime como ele a descreve saltando uma cerca que lhe impedia
a passagem: “E além se sumia a vaca vermelha, suspensa em bailado, a cauda
oscilando” (ROSA, 2001, p. 115). Ou no trecho em que o vaqueiro, por um instante,
divisa a vaquinha na linha do horizonte de um morro ao longe, e o narrador diz,
de modo a dar duplo sentido às suas palavras: “Aí, se afundou para o de lá, e se
escondeu de seus olhos. Transcendia ao que se destinava” (ROSA, 2001, p. 116).
Com “transcender”, o narrador pode designar tanto o movimento da vaca de ir para
além do morro, de ultrapassá-lo, indo em busca do seu destino, como também pode
significar que a vaquinha se elevava a um patamar sagrado, ao executar um plano
arquitetado pelo destino. São muitas as sutilezas desse poético e sapiencial narrador.
Tendo atravessado todo o dia e uma parte da noite escura, chegam, enfim, a
vaquinha seguida do vaqueiro, à fazenda Pãodolhão. Numa roda de quatro moças,
filhas do Major Quitério, o olhar do rapaz se encontra com o da segunda filha. O
encantamento acontece e ele sente que está defronte daquela que sempre buscara.
De repente, tudo começa a lhe fazer sentido. Então era o amor! O amor dava sentido
a tudo: à obstinação da vaquinha, ao impulso cego que o movia. O narrador, para
traduzir o êxtase desse instante, poupa as palavras e dá vazão à emoção: “Da vaca,
ele a ela diria: ‘É sua’. Suas duas almas se transformavam?”, pergunta. E conclui:
“E tudo à sazão do ser” (ROSA, 2001, p. 118), expressão de caráter ontológico e
universal que, na opinião de Bosi (1988, p. 30), “faz pensar que o narrador crê
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O admirável mundo de Guimarães Rosa: “Sequência”, o conto
em uma harmonia preestabelecida”. Nesse surpreendente final, o conflito anterior é
apaziguado, os antagonismos desaparecem e tudo se harmoniza no amor, a grande
mola propulsora para a realização dos desejos, mesmo os inconscientes.
A busca narrada neste conto remete à busca mítica que Fernando Pessoa narra
em seu poema “A lenda de Eros e Psiquê”. Também ali o poeta retrata uma busca
inconsciente e cheia de obstáculos, a busca do Amor (Eros) pela Alma (Psiquê). Eis um
pequeno trecho:
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.
No poema, o despertar da Alma por meio do Amor faz com que este se descubra
e perceba que são um só ser. É uma metáfora para a busca do eu e para o encontro
com o outro, processo que implica dor e superação. No conto de Guimarães Rosa, o
jovem, ainda que por um percurso inconsciente, realiza uma busca que é ao mesmo
tempo pela sua alma e pela alma do outro. Ao descobrir a alma da amada, ele
encontra a sua, e o mundo ao seu redor passa a fazer sentido.
Referências
• BOSI, Alfredo. Céu, inferno. São Paulo: Ática, 1988, p.11-32.
• PESSOA, Fernando. Poemas. 9 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 49.
• RÓNAI, Paulo. Art. “Os vastos espaços”. In: Primeiras estórias. 15 ed., 3ª imp.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 14-48.
• ROSA, João Guimarães. “Sequência”. In Primeiras Estórias. 15 ed., 3ª imp.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 113-118.
• ______. O burrinho pedrês. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1996.
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