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Revista Brasileira de História da Educação Respeite o direito autoral Reprodução não autorizada é crime

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Revista Brasileira deHistória da Educação

Respeite o direito autoralReprodução não autorizada é crime

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Revista

Conselho DiretorDermeval Saviani (UNICAMP); Marta Maria Chagasde Carvalho (PUC-SP); Ana Waleska Pollo CamposMendonça (PUC-Rio); Libânia Nacif Xavier (UFRJ).

Comissão EditorialAna Maria de Oliveira Galvão (UFMG-MG); DislaneZerbinatti Moraes (USP); José Gonçalves Gondra(UERJ); Maurilane de Sousa Biccas (USP).Secretaria – Lilianne Souza Magalhães

Conselho Consultivo

Membros nacionais:Álvaro Albuquerque (UFAC); Ana Chrystina VenâncioMignot (UERJ); Ana Maria Casassanta Peixoto (SED-MG); Clarice Nunes (UFF e UNESA); Décio Gatti Jr.(UFU e Centro Universitário do Triângulo); DeniceB. Catani (USP); Ester Buffa (UFSCAR); Gilberto LuizAlves (UEMS); Jane Soares de Almeida (UNESP); JoséSilvério Baia Horta (UFRJ); Luciano Mendes deFaria Filho (UFMG); Lúcio Kreutz (UNISINOS); MariaArisnete Câmara de Moraes (UFRN); Maria deLourdes de A. Fávero (UFRJ); Maria do AmparoBorges Ferro (UFPI); Maria Helena Camara Bastos(PUCRS); Maria Stephanou (UFRGS); Marta Mariade Araújo (UFRN); Paolo Nosella (UFSCAR).

Membros internacionais:Anne-Marie Chartier (França); António Nóvoa (Por-tugal); Antonio Viñao Frago (Espanha); DarioRagazzini (Itália); David Hamilton (Suécia); NicolásCruz (Chile); Roberto Rodriguez (México); RogérioFernandes (Portugal); Silvina Gvirtz (Argentina);Thérèse Hamel (Canadá).

Revista Brasileira de História da EducaçãoPublicação semestral da Sociedade Brasileira de História da Educação – SBHE

COMERCIALIZAÇÃO

Editora Autores AssociadosAv. Albino J. B. de Oliveira, 901CEP 13084-008 – Barão Geraldo

Campinas (SP)Pabx/Fax: (19) 3289-5930

e-mail: [email protected]

Sociedade Brasileira de História daEducação – SBHE

A Sociedade Brasileira de História da Educação(SBHE), fundada em 28 de setembro de 1999, é umasociedade civil sem fins lucrativos, pessoa jurídicade direito privado. Tem como objetivos congregarprofissionais brasileiros que realizam atividades depesquisa e/ou docência em História da Educação eestimular estudos interdisciplinares, promovendointercâmbios com entidades congêneres nacionaise internacionais e especialistas de áreas afins. Éfiliada à ISCHE (International Standing Conferencefor the History of Education), a Associação Interna-cional de História da Educação.

Diretoria NacionalPresidente: Diana Gonçalves Vidal (USP)Vice-presidente: Luciano Mendes de Faria Filho (UFMG)Secretária: Maria Elisabeth Blanck Miguel (PUC-PR)Tesoureiro: Elomar Antonio Callegaro Tambara (UFPEL)

Diretores RegionaisNorte:Titular: Andréa Lopes Dantas (UFAC)Suplente: Clarice Nascimento de Melo (UFPA)Nordeste:Titular: Jorge Carvalho do Nascimento (UFSE)Suplente: Diomar das Graças Motta (UFMA)Centro-Oeste:Titular: Maria de Araújo Nepomuceno (UCG)Suplente: Regina Tereza Cestari de Oliveira (UFMS)Sudeste:Titular: José Carlos de Souza Araújo (UFU)Suplente: Cláudia Maria Costa Alves (UERJ)Sul:Titular: Flávia Werle (UNISINOS)Suplente: Norberto Dallabrida (UDESC)

SecretariaRev. Bras. de História da EducaçãoFaculdade de EducaçãoUniversidade de São PauloAv. da Universidade, 308 – Bloco A – sala 219CEP 05508-900 – São Paulo-SPTel.: (11) 3091-3195 – ramal 282E-mail: [email protected]

Indexada em/Indexed in:BBE – Bibliografia Brasileira de Educação (Brasil, Inep)EDUBASE (Brasil, FE/UNICAMP)

Versão on-line/version online:http://www.sbhe.org.br/

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Revista Brasileira deHISTÓRIAEDUCAÇÃO

SBHE

Sociedade Brasileira de História da Educação

da

janeiro/junho 2006 no 11

ISSN 1519-5902

A publicação deste no 10 da Revista Brasileira de História daEducação contou com o apoio financeiro do Conselho Nacionalde Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – EntidadeGovernamental Brasileira Promotora do Desenvolvimento Científicoe Tecnológico.

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EDITORA AUTORES ASSOCIADOS LTDA.Uma editora educativa a serviço da cultura brasileira

Av. Albino J. B. de Oliveira, 901Barão Geraldo – CEP 13084-008Campinas-SP – Pabx/Fax: (19) 3289-5930e-mail: [email protected]álogo on-line: www.autoresassociados.com.br

Conselho Editorial “Prof. Casemiro dos Reis Filho”Bernardete A. GattiCarlos Roberto Jamil CuryDermeval SavianiGilberta S. de M. JannuzziMaria Aparecida MottaWalter E. Garcia

Diretor ExecutivoFlávio Baldy dos Reis

Coordenadora EditorialÉrica Bombardi

Assistente EditorialAline Marques

RevisãoCyntia Belgini AndrettaEdson Estavarengo Jr.

Diagramação e ComposiçãoDPG Ltda.

Projeto Gráfico e CapaÉrica Bombardi

Arte-finalÉrica Bombardi

Impressão e AcabamentoGráfica Paym

Revista Brasileira de História da Educação

ISSN 1519-5902

1º NÚMERO – 2001Editora Autores Associados – Campinas-SP

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Sumário

CONTENTS 7

EDITORIAL 9

ARTIGOS

Da palmatória à internet: uma revisitação da profissão docente 11Rogério Fernandes

A pedagogia de Sílvio Romero e as suas notas de leitura 41Jorge Carvalho do Nascimento

Um estudo sobre a cultura escolar no Rio de Janeiro dos anos de 1930pelas lições de história 71Miriam Chaves

Educação física na Revista do Ensino de Minas Gerais (1925-1935):organizar o ensino, formar o professorado 101Tarcísio Mauro Vago

Estratégias de aproximação, sociedades de idéias e educação anarquistaem São Paulo na Primeira República 135Fernando Antônio Peres

O Ato Adicional de 1834 na história da educação brasileira 169André Paulo Castanha

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RESENHAS

A produção da escola pública contemporânea 197Por Mônica Cristina Martinez de Moraes

Pensadores sociais e história da educação 203Por Haroldo de Resende

NOTA DE LEITURA

La Presse d’Éducation et d’Enseignement (1941-1990):répertoire analytique 211Por Diana Gonçalves Vidal

ORIENTAÇÃO AOS COLABORADORES 215

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EDITORIAL 9

ARTICLES

From the ferule to the internet: a revisitation of the teaching profession 12Rogério Fernandes

Sílvio Romero’s pedagogical project and his reading notes 42Jorge Carvalho do Nascimento

A study about the schooling culture in the Federal Districtof the 30’s through the teaching of History 72Miriam Chaves

Physical education in the Magazine of Teaching ofMinas Gerais (1925-1935): to organize teaching, to form teachers 102Tarcísio Mauro Vago

Strategies of approach, society of ideas and anarchistic educationin São Paulo in the Early Republic (1889-1930) 136Fernando Antônio Peres

The Additional Act of 1834 in the history of the brazilian education 170André Paulo Castanha

Contents

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BOOK REVIEWS

A produção da escola pública contemporânea 197By Mônica Cristina Martinez de Moraes

Pensadores sociais e história da educação 203By Haroldo de Resende

NOTE READING

La Presse d’Éducation et d’Enseignement (1941-1990):répertoire analytique 211By Diana Gonçalves Vidal

GUIDES FOR AUTHORS 215

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Editorial

Apresentamos aos leitores a edição número onze da Revista Brasi-leira de História da Educação (RBHE). Com ela damos prosseguimen-to à nova fase da revista, que completou cinco anos em janeiro de 2006.Procuramos, neste trimestre, atualizar as orientações aos colaboradores,estabelecendo regras mais claras quanto ao envio e seleção de traba-lhos. Esperamos com isso garantir cada vez mais a qualidade editorial,o rigor científico e o fluxo da revista. Faz parte do projeto editorial,ainda, difundir e ampliar a circulação do periódico, buscando relaciona-mento com as principais instituições de pesquisa, sistemas de informa-ção, bibliotecas e bancos de dados nos planos nacional e internacional.Assim, hoje a RBHE está indexada em importantes bancos de dados nopaís, tais como: Biblioteca Brasileira de Educação (BBE – Brasília –Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais – INEP); Base deDados da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campi-nas (EDUBASE – UNICAMP); Divisão de Periódicos da Universidade deBrasília (BCE – UNB); Base de Dados da Fundação Carlos Chagas(DBFCC).

Parece-nos que, com essa iniciativa, a revista se reafirma como umespaço privilegiado de diálogo entre pesquisadores nacionais e interna-cionais e mantém acesa a reflexão sobre os caminhos tomados pela pes-quisa em história e historiografia da educação.

Esta edição contém seis artigos, duas resenhas e uma nota de leitu-ra, que abarcam diferentes temas, objetos e fontes de estudo, ensejandoimportantes e instigantes reflexões, bem como abrindo outros camposde investigação. Rogério Fernandes, tomando o modelo português, apre-

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senta significativo artigo tratando das transformações nas práticas edu-cacionais e de seus desdobramentos na definição profissional do profes-sor, desde o século XVI até os dias atuais. Os artigos, densos e informa-tivos, de Jorge Carvalho, Miriam Chaves, Tarcísio Mauro Vago, FernandoAntônio Peres e André Paulo Castanha, por sua vez, analisam idéias,projetos e discursos acerca das questões educacionais. Em todos os arti-gos se percebe a intenção de compreender tanto as estratégias de confi-guração do campo educacional quanto as formas históricas de constitui-ção da profissão docente.

Esperamos que os pesquisadores aproveitem a leitura e renovamoso nosso convite para que contribuam com a revista, enviando sempreartigos, resenhas, notas de leitura, traduções, bem como sugerindo eorganizando dossiês temáticos.

Comissão Editorial

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Da palmatória à internet

uma revisitação da profissão docente

Rogério Fernandes*

Resumo:Este texto pretende olhar do ângulo das práticas educacionais o exercício do ensino quese define historicamente como profissão. O autor aborda as actividades dos professoresdesde os seus rudimentos didácticos na esfera dos saberes elementares até a busca deinformação e da sua transmissão pelo recurso a fontes não escriturais extra-escolares.Ao mesmo passo, mostra que a modalidade privilegiada de punição da transgressão denormativos escolares – a chamada “correcção física” – não configura uma prática confi-nada ao passado. Mostra igualmente que no presente ela é ainda não só aceite comopraticada em instituições ditas educativas. No exemplo português tratou-se mesmo dasdefinições doutrinais apresentadas no quadro do Supremo Tribunal de Justiça portuguêsque foram recebidas com severas críticas pelos círculos pedagógicos portugueses que seinspiram de uma educação humanista.PALMATÓRIA – ENSINO; LER – ESCREVER – CONTAR; CALIGRAFIA – INTERNET.

* Professor da Universidade de Lisboa (Portugal).

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From the ferule to the internet

a revisitation of the teaching profession

Rogério Fernandes*

Abstract:This text intends to look from the angle of educational practices the performance of theteaching that defines historically as a profession. The author approaches the activities ofthe teachers since the rudimentary didactics on the sphere of elementary knowledgesuntil the search for information in it’s transmission through the resources to sources notregistered extra scholastic.At the same step, shows that the privileged form of punishment of transgression ofnormatives scholastics – the named “physical correction” – does not configure a practiceconfined to the past. It shows equally that in the present it is still not only accepted aspractice in institutions said educatives. In the portuguese example it was about thedoctrinal definitions presented in the board of the Supreme Court portuguese that werereceived with severe critics from the circle of portuguese pedagogues that inspirethemselves in an humanist education.FERULE – TEACHING; READ – WRITE – COUNT; CALLIGRAPHY – INTERNET.

* Professor da Universidade de Lisboa (Portugal).

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da palmatória à internet 13

Um dos traços mais significativos da história da educação comodisciplina científica tem a ver com a multiplicidade dos seus possíveispercursos. História e educação definem-se como pluralidades, de acor-do com as nossas linhas de abordagem. Essa característica interdiz aeventual unicidade metodológica a partir da qual se pretenda recons-truí-las.

Em contrapartida, a escola, enquanto espaço pedagógico, o que nelase ensina e ocorre mediante o processo de ensino-aprendizagem, exige,para ser surpreendida, uma variedade de ângulos de leitura.

O caminho clássico, decorrente da emergência de uma abordagemsócio-histórica, fundava-se na sistematicidade atribuída ao processoeducativo. A concepção de que a educação escolar se organizou em sis-tema no período pós-moderno favoreceu a reflexão ao nível macroscó-pico, clarificando interacções com outros sistemas que lhe serviam decontexto: o político, o económico, o social, o ideológico. A prática edu-cativa, ao nível da escola, não teve guarida no campo da história en-quanto prevaleceram as análises das grandes narrativas educacionais,definidas pelas políticas educativas centrais, ligadas, por sua vez, àspersonalidades incomuns de políticos, pedagogos, filósofos, homens decultura.

Continuando a ser indispensável levar em conta os ganhos obtidospor essa via, cumpre-nos reconhecer que uma parte relevante da intriganão se desvenda por essa pista.

O estudo da organização da educação pública como sistema nãopode ignorar a realidade escola como teatro do quotidiano docente/dis-cente, na variedade das suas valências. Além da escola fundada comoinstituição pelo poder político, não é legítimo esquecer outras modali-dades de acção educativa, quais sejam as do professor em cuja residên-cia funcionava uma escola por sua própria iniciativa e responsabilidade,ou que agenciava o seu ganha-pão visitando os alunos e leccionando-osnos seus lares (diferentemente do preceptor que vivia na casa deles comocomensal). Por sua condição de profissional, o exercício itinerante des-se trabalho imprimia-lhe o carácter de profissão assinalada no espaçosocial pelas interacções da oferta e da procura. Em Portugal, na Gazetade Lisboa, desde os finais do século XVIII, inseriam-se anúncios em

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que se solicitava ou oferecia trabalho de docentes ou de educadores deum ou de outro sexo.

No quadro desse quotidiano depara-se-nos a escola como choque ouconvergência de distintas vontades e desejos, de formas antagónicas deexercício do poder, de modos de submissão ou de ganhos de liberdade.

Como se expunha o professor no seu exercício profissional? Comoorganizava diariamente as suas práticas e como enquadrava os seus alu-nos num espaço qualificado pela sua normatividade intrínseca e pelosseus objectivos? De que meios dispunha em ordem ao reforço da pala-vra? Como assegurava a imposição da disciplina à microssociedade ju-venil que o enfrentava? Que saberes transmitia àqueles por quem eraresponsável? Tais são as indagações que comandam este pequeno estu-do e que servem de tema à nossa reflexão.

A emergência da profissão docente e as suascompetências

A definição da profissão docente exige que tenhamos em conta aevolução histórica do campo cultural a que respeita. Num plano geral,podemos definir profissão como uma actividade cujo exercício assentana celebração continuada de contratos (orais ou escritos) de prestaçãode serviços remunerados, mediante os quais uma das partes contratan-tes reconhece à outra a capacidade técnica necessária ao desempenhodas tarefas previstas no contrato, ao mesmo tempo em que a estas sereconhece valor social.

Não vamos entrar no debate que tem acompanhado entre os espe-cialistas o recorte conceptual dessa actividade. Limitar-nos-emos a su-blinhar que nos cumpre situar o problema num contexto histórico.

Em Portugal a profissão docente apresenta os seus primeiros vestí-gios desde muito cedo. Embora nos finais da Idade Média apareçam-nos provas de que o ensino existia ao nível laico mediante contratosfirmados entre pais e eclesiásticos, exercendo estes últimos tal trabalhocomo actividade remunerada, fora do quadro das suas obrigações pasto-rais. Entretanto, só no século XVI podemos comprovar plenamente a

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a politicagem na instrução pública da amazônia imperial 15

existência de mestres e mestras leigos que viviam em exclusivo do ensi-no elementar de meninos ou meninas.

Pertencessem ou não à classe eclesiástica, esses profissionais doensino estavam sob controlo doutrinal dos bispos, nas respectivasdioceses, cabendo a estes mandar vigiar a competência e as práticasmorais e religiosas dos ensinantes.

A escolha dos métodos de trabalho evoca, além disso, todo um con-junto de condições educativas que conferem alcance significativo àspráticas do mestre. A materialidade da escola remete-nos para um climade acção no interior da aula, graças à tecnologia da palavra e ao uso demeios educacionais, graças aos equipamentos disponíveis e aos condi-cionamentos decorrentes da organização arquitectónica dos espaços.

Desse modo, a reconstrução histórica da educação não pode imobi-lizar-se no limiar da escola ou da agência individual do ensinante.Revisitar a profissão docente exige mais do que recuperar a caixa negraque guarda as derradeiras mensagens antes do desastre. O docente e osmeios de acção que lhe estão distribuídos dão-nos o rosto da aventuraquotidiana do processo de ensino-aprendizagem.

Poderes e símbolos: a glorificação da palmatória

Ao mestre não bastava a palavra como transmissora do seu poderpersuasivo sobre o aluno. O castigo corporal foi uma das heranças tran-sitadas da cultura romana à pedagogia cristã. A férula figurou desdecedo em diversas formas nas escolas do Lácio. Já no mundo medievalera admitida como necessidade inelutável cuja utilização se graduavaconforme as idades dos discípulos e a gravidade das faltas. A correcçãodo corpo era uma forma de amoldar o espírito ao modelo divino.

Uma ordem religiosa tão humanizada e benévola como a de SãoBento estabelecia na sua regra a necessidade do castigo corporal e a suagraduação conforme as idades. Múltiplas razões poderiam justificá-lo1.

1. La Regola di San Benedetto, Montecassino, 1997

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Um dos mais antigos instrumentos de trabalho ao dispor do mestreganha relevância desde o século XVI em ordem à obtenção da discipli-na dos alunos, isto é, da sua obediência. Até nos casos em que a opçãomagistocêntrica ia no sentido de uma relação afectiva de carácter posi-tivo, a unir discípulos e mestres, a supremacia destes sobre os primeirosficava demarcada pela posse e manuseio de um poder simbólico perso-nificado num objecto de regulação e disciplinação. É o caso do padrejesuíta Inácio Martins, figura mítica do imaginário educacional quinhen-tista, que passou a vida ensinando meninos de rua pela cartilha do padreMarcos Jorge, seu colega da Companhia de Jesus, livro escolar cujapaternidade era, muitas vezes, erradamente atribuída ao próprio padreInácio. Consagrando-se à explicação da doutrina e ao ensino da leiturapelas ruas e vielas de Lisboa, o sacerdote fazia-se acompanhar semprede um exemplar da cartilha e de uma caninha verde que lhe servia paraorientar os pequenos discípulos nas aulas improvisadas ao ar livre. Essacaninha verde foi talvez precursora da cana da Índia, flexível e doloro-sa, ou do ponteiro de madeira que perduraram nas salas de aula portu-guesas até ao século XX e que tanto serviam para apontar letras e alga-rismos no quadro preto como para castigar um grande erro ou umaenorme desatenção mediante uma ponteirada ou “carolo” no alto da ca-beça do “prevaricador”.

Mas o instrumento punitivo preferencial do professor era a palma-tória. O humanismo pedagógico não excluía a violência escolar. João deBarros, cronista, gramático e pedagogo do século XVI, comentava essetipo de prática em algumas passagens dos seus textos. Ele classificava,por exemplo, a matemática como ciência “demonstrativa” ao passo queoutras ciências seriam aprendidas “debaixo do temor da palmatória e dasua disciplina” (Fernandes, 1986). A palmatória simbolizava o castigoaté nos casos em que assumia um sentido moral, de que é exemplo otexto em que Francisco Rodrigues Lobo escreve: “tendo por palmatóriade seus erros a vergonha de os conter à vista de tantos censores deles[…]” (Lobo apud Barros, 1971, p. 320).

A história dos castigos físicos, em Portugal, introduz menos umapolémica de opiniões opostas do que um quadro quase diríamos cine-matográfico das brutalizações de que se acompanhava a acção docen-

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da palmatória à internet 17

te. A imagem da escola coadunava-se com o ambiente de violência aque Castilho chamou, em meados do século XIX, com plena proprie-dade, a “escola da galé e o ensino sevícia”. Os componentes desseclima ultrapassavam muito qualquer eventual herança, porquanto de-rivavam directamente de práticas criadas pelos docentes. Veja-se otexto de um memorialista de Setúbal, que descreve uma dessas situa-ções de infância:

Na aula adoptava-se o sistema chamado “ir à aposta”: dois discípulos iam à

lição e enquanto um lia, o outro estava atento para emendar qualquer erro. Na

escrita, o sistema era diferente: dois, três ou mais estudantes saíam da aula,

transportando um deles todas as escritas […] e corriam, por assim dizer, a vila,

de porta em porta, apresentando as escritas às pessoas que consultavam, para

que estas indicassem qual era a melhor, a seguinte, etc., isto é, para que as

classificassem. O aluno mais votado tinha, por prémio, o dever ou obrigação

de dar meia dúzia de palmatoadas nos menos classificados […]. Havia tam-

bém o costume do primeiro aluno que entrasse na aula ser encarregado de dar

meia dúzia de palmatoadas em todos os condiscípulos que entrassem um quar-

to de hora mais tarde. Costumes tão anacrónicos e educação tão defeituosa

nunca permitiriam despertar verdadeiros sentimentos de fraternidade entre as

crianças que estudavam, riam e folgavam conjuntamente.

Deixado o início da escolaridade ao arbítrio das famílias e das suasintuições mais ou menos felizes, elas mostravam-se pouco exigentesquanto à qualidade do mestre ou da mestra e não se hesitava em entre-gar a criança ao ambiente deletério da escola numa idade muito temporã.Aos quatro anos de idade, mostrando algum desenvolvimento intelec-tual, eis que o mesmo memorialista se viu obrigado a frequentar diaria-mente uma escola de Primeiras Letras regida por uma mestra que aspalavras inculcam como francamente repulsiva: “velha, feia, carrancu-da e malcriada”. Na escola dessa mulher que o autor classificava de“ignorante e boçal, mas que passava por ser a principal e mais bemprendada da vila”, pairava constantemente a ameaça da palmatória ouda cana. A consequência inevitável da constante pressão do medo eraprecisamente a oposta daquela que se pretendia obter: “Durante o tem-

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po que frequentei tal ‘escola’, não me foi possível aprender uma pala-vra, nem sequer ficar a conhecer uma letra, tal o horror que me inspiravaa virago!”. Até a capacidade da palavra resultava diminuída emconsequência desse regime: “Tornei-me tímido, receoso e triste. Tarta-mudeava a falar. Meus avós viram-se forçados a tirar-me da escola, li-bertando-me de tal sofrimento”.

Alguns pedagogistas de oitocentos pretendiam que tais práticasbrutalizantes tivessem fundamentos por assim dizer psicofísicos. A apren-dizagem seria mais eficaz se fosse induzida pela dor física. Tais posi-ções conheciam formulações grotescas, do tipo daquelas que narrou ogrande contista português Trindade Coelho num dos seus livros maiscelebrados (Lobo, s.d.). O seu testemunho ficou consignado na autobi-ografia dedicada a Louise Ey, na qual evoca o tempo em que, juntamen-te com o irmão, viveu uns anos na aldeia aprendendo latim com doissacerdotes. “Estes dois padres”, escreve, “não saberiam talvez muitolatim, mas davam-nos muitas palmatoadas, e eu levei mais do que arei-as tem o mar e estrelas o céu” (idem, p. 12). Tal prática apresentava aosolhos de um desses padres-mestres uma legitimidade indiscutível:

Um deles até imaginava que a palmatória operava por compressão, infiltrando-

nos na palma das nossas mãos (no Inverno roxas de frio) as coisas que nós

não sabíamos. Depostas essas coisas na palma da mão, como se fosse beijá-

la, dava-lhes por cima um grande bolo, e pensava ele que as coisas trepavam

assim pelo braço acima e não sei mais por onde, até se nos alojarem na cabe-

ça – e era desta forma que nos metia na cabeça o que nós não sabíamos. Uma

vez até uma velhinha que morava perto assomou à janela do rés-do-chão

onde era a aula, e disse assim para o sr. professor, aflita de ouvir tanto bolo:

– Credo, sr. Padre Joaquim! Isso é mesmo não ter alma! [idem, ibidem].

Essa “pedagogia torcionária” coexistia por vezes com práticas con-vergentes com as do ensino activo, o que não é de espantar sendo ohomem o produto de impulsões contraditórias. No mesmo livro surpre-endeu Trindade Coelho com saudade e ternura uma das imagens da suainfância à entrada da escola. Levado pela ama de leite, sentado no joe-lho do mestre, respondia a uma dificílima pergunta: o que pretendia ele

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da palmatória à internet 19

ser. E vinha a resposta, condicionada desde logo pelo questionamentodo professor:

– “Olha lá, Josézinho, tu queres ser militar, queres? […]”

“– Corneta, mais quero ser corneta. Ou então como o Sr. Prior: dizer missas”

[idem, p. 119]

Da saquinha que o pequeno transportava saiu então um livro, o Monteverde,

famoso em Portugal e no Brasil, um livro que o mestre dizia próprio para

formar priores. “A primeira coisa que é precisa para prior é saber bem isto,

vês? […] Isto aqui já é missa, chama-se o a, b, c […]” [idem, p. 120].

Aquilo que o mestre vinha fazendo, esclareceu, era “puxar o gosto”e com aquela motivação, tão sujeita a flutuações ao longo dos verdesanos, considerava ele que o pequeno até iria estudar com mais prazer(idem, p. 121).

O diálogo, porém, conduzia-os ao confronto entre dois locais desocialização: a casa e a escola. Enquanto em casa vigorava o regime daliberdade, na escola era o dever que preponderava:

“Diga: sim senhor – ensinou-me então a Helena. – Hei-de estudar muito e ser

sossegadinho na aula: diga. – E a meia voz para o professor: – isto em casa é

o vivo mafarrico; faz lá ideia?

Ele riu, já o sabia. As crianças são todas assim, enquanto estão no mimo das

mães. Mas uma vez metidas na escola, as coisas mudavam um pouco. E

piscando o olho, designou a palmatória. A Helena ficou transida!

Faz milagres, Senhora Helena. Digam lá o que disserem, olhe que faz mila-

gres.”

E tornando mais explícita a sua convicção, diria:“Um mestre sempalmatória é um artista sem ferramenta, não faz nada. Santa Luzia mila-grosa! Aqui onde a vê tem feito muitos doutores” (idem, p. 117).

Não sabemos se o pequeno aluno teve bons resultados escolares.No caso de Trindade Coelho o conto é escrito em Coimbra, no dia dasua formatura, e dedicado a Helena, a ama de leite que o levara à escola

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pela primeira vez. Mas o que transcorria desse texto era uma saudadeforte do seu tempo de infância e o reconhecimento pelo velho professor.

A profissão docente, no sexo masculino, foi em muitos casos noPortugal oitocentista um sucedâneo da profissão militar. É bem prová-vel que o influxo da disciplina militar tenha contribuído para perpetuarna escola o recurso à violência física. O memorialista a quem já nosreferimos, por sua vez, descreveu o mestre para onde fora transferidoapós a sua primeira experiência escolar, o tenente reformado DionísioJosé Godinho. Embora dado facilmente ao uso da “menina de cincoolhos”, ignorante das matérias que era suposto ensinar, e de contactofísico nada agradável, Dionísio merecia a gratidão do autor da memó-ria: fora ele quem o ensinara a ler e escrever, quem, por assim dizer, lhedera as condições de exprimir pensamentos e sentimentos.

Estaremos nós a esgrimir contra moinhos de vento? Vejamos o queé possível colher em nível oficial, perante o decreto-lei que se mantinhaem vigor desde a I República, autorizando os castigos desde que “pater-nalmente aplicados”.

Em 1955 era posição oficial considerar que o recurso à palmatóriafazia parte de um processo pedagógico que a escola transpunha do meiosocial envolvente. Vale a pena ver a propósito um texto intitulado “Cas-tigos pedagógicos”, retirado da revista Escola portuguesa, Boletim deAcção Educativa, publicado em plena ditadura salazarista pela DirecçãoGeral do Ensino Primário (1955). Embora restrinja em parte o mérito ea legitimidade das punições corporais, essa publicação oficial assumiauma posição eclética em relação a castigos físicos:

A corrente dominante entre nós é a de que os castigos corporais constituem o

processo mais eficaz, e nalguns casos único, não só para se obter a disciplina

na escola mas também para se assegurar o aproveitamento dos alunos. Fa-

zem parte da nossa tradição familiar e não podem dispensar-se na escola,

visto que as crianças, habituadas a obedecer por medo aos pais, não obedece-

riam de outro modo aos professores. Os castigos corporais são considerados,

por isso, o melhor reagente educativo sobre o espírito das crianças

indisciplinadas ou preguiçosas.

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E acrescentava-se: “Há nestas razões, com que geralmente se justi-ficam os castigos corporais, uma parcela de verdade, mas não toda a quese supõe […]”.

É verdade que, em 1957, o ministro Leite Pinto, criticandoexactamente a aplicação de castigos corporais, lembrava aos inspectoresque a vontade do professor se impunha pelo seu prestígio e não pelaviolência (Teodoro, 2006, p. 36, nota 27).

É certo que isso foi escrito e aduzido já lá vão cinquenta anos e queactualmente a violência já não é unilateral, porquanto existem alunosque também agridem professores e não, necessariamente, em legítimadefesa. O texto sintetiza, porém, um discurso cuja tradição se prolongaaté aos nossos dias.

Assim, o jornal português O Público (12 abr. 2006) inseria o títuloseguinte: “Supremo diz que são lícitos ‘correctivos’ corporais dados acrianças deficientes”.

Em seguida, basta-nos ler o seguinte: “O Supremo Tribunal de Jus-tiça considerou “lícito” e “aceitável” o comportamento da responsávelpor um lar de crianças com deficiências mentais, acusada de maus tratosa vários menores”.

Essa notícia desencadeou um conjunto vigoroso de protestos daparte da consciência progressista existente em Portugal2.

Na pista dos primeiros saberes

Ao nível elementar o ensino da leitura e o da doutrina cristã consti-tuíam o portal por onde se ingressava no mundo das letras. Apesar deexistirem cartilhas para aprendizagem da leitura e da doutrina (Castelo-Branco, 1971), os mestres e as mestras recorriam a manuscritos retira-dos às mais diversas fontes, sobretudo às escrituras de compra e venda eaos autos judiciais.

2. Ver ainda Pontos nos ii, ano I, n. 5, p. 55, maio 2006.

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Essa prática tinha inconvenientes de carácter moral e de carácterpedagógico. Havia quem visse na utilização desses manuscritos umafuga aos conteúdos morais que deveriam estar presentes no ensino. Notexto anónimo de origem italiana, o Ritrato et riuerso del regno diPortogallo, censurava-se o facto de os portugueses, em virtude do quese entendia ser uma litigiosa inclinação natural, darem às crianças quefrequentavam a escola “em vez de um salmo, da oração dominical, oudo ofício de Nossa Senhora”, um processo sobre o qual principiavam aler e outras coisas semelhantes em que estudavam assuntos práticos doforo.

É de crer que a opção se devia, sobretudo, às solicitações de umasociedade essencialmente mercantil na qual a burguesia fazia exigên-cias específicas ao ensino elementar, ainda que em prejuízo da forma-ção religiosa. Assim, Barros dirá com ironia, “quando um moço sai daescola […] pode fazer melhor uma demanda que um solicitador delas,porque mama estas doutrinas católicas no leite da primeira idade” (Bar-ros, 1971, p. 407).

Quanto aos inconvenientes pedagógicos, a opção pela letra manus-crita (“tirada”) em detrimento da impressa (“redonda”) teria aconsequência de que, “por letra tirada andam um ano aprendendo porum feito, porque a cada folha começa novamente [a] conhecer a dife-rença da letra que causou o aparo da pena com que o escrivão fez outrotermo judicial” (idem, ibidem).

Tal prática manter-se-á durante muito tempo. Apesar dos inconve-nientes que acarretava, a utilização de manuscritos como textos de lei-tura prosseguiu. Jerónimo Soares Barbosa, visitador as escolas daComarca de Coimbra, no período pombalino, evocava o espectáculocomovedor de as mães cercarem as pessoas que passavam pelas estra-das, rogando-lhes a oferta de uma carta pela qual os filhos aprendessema ler. No mesmo período, a Real Mesa Censória apontava ao marquês osefeitos negativos que tais costumes implicavam quanto à pontuação eao ritmo da leitura, dado que a escrita não introduzia intervalos de sepa-ração entre os vocábulos. Finalmente, em pleno século XX, FranciscoAdolfo Coelho confessava que o ensino por meio de manuscritos eravisível nos seus tempos de escola.

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Semelhantes posições polémicas incidiam ainda numa opçãomodernizante sobre um processo de ensino-aprendizagem que se coa-dunasse com os traços específicos da psique infantil. Na idade da pal-matória é verdadeiramente surpreendente achar quem recomendasse umapedagogia compatível com a prática cognitiva da criança. Assim, Joãode Barros escreveria na sua gramática um texto em que expõe toda umaestratégia de dominação da infância:

As plantas novas, para prenderem com viva raiz, não querem logo o ferro ao

pé; depois que são duras e bem enramadas, então lhes convém o podão, para

as desafogar. Não se amansam e trazem ao jugo os novilhos como os touros,

nem assim recebe o freio o potro como o cavalo; uns querem mimo e outros

estímulo. Mais pode o artifício do que a força, a continuação branda e mimo-

sa que o ímpeto áspero. E quando, para as coisas irracionais isto se requer,

que tal deve ser o artifício para plantar doutrina áspera em naturezas tenras,

como é o entendimento dos meninos. […] Como no modo de proceder, de

letra a sílaba e de sílaba a nome, tem essa ordem [de grau em grau, de pouco

a mais] assim queria que a tivessem no género da escritura e caracteres dela,

porque, como o entendimento se deleita nas partes conformes que guardam

proporção, simetria e figura, e nesta tal terra a memória prende com mais

viva raiz, nesta doçura de leite que tem a letra redonda os queria primeiro

amamentar, e daí fossem levados à côdea da tirada, que requer força de dente

e paciência de negócios, estes são os seus preceptores. As audiências e não as

escolas fizeram todos os juristas destros no ler dos feitos, e os oficiais públi-

cos – cuja profissão é papel e tinta – porque a não tiveram de letra redonda,

não sabem rezar uma oração por ela, e pela tirada são mais correntes que um

cego na oração da emparedada. Assim que, desta experiência podes inferir:

ler, a escola o ensina; desenvoltura, os negócios a dão; letra redonda se aprende

e a tirada sem mestre se alcança [idem, p. 407].

Na perspectiva de tornar o texto escolar o mais possível atraenteaos seus pequenos leitores, ou, pelo menos, aos principiantes, João deBarros revelar-se-á adepto do que poderíamos chamar pedagogia dosensível ao recorrer pela primeira vez à imagem na “Introdução paraaprender a ler” com que abre a Gramática da Língua Portuguesa com

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os mandamentos da Santa Madre Igreja. O valor de cada letra era suge-rido pela imagem de um objecto em cuja designação entrava. Assim,pelo menos na literatura pedagógica portuguesa, João de Barros é oprimeiro educador a preconizar um ensino de iniciação à leitura baseadaparcialmente em informações visuais.

A escritura: a arte de dominar e desenhar a letra

Seguia-se o escrever: uma necessidade social no Portugal de qui-nhentos. João Brandão (de Buarcos) no livro que corre impresso com otítulo de Grandeza e abastança de Lisboa em 1552, ao indicar os ofíciosexistentes na capital do Reino, mencionava a existência de cinco ho-mens que vendiam penas aparadas. Era escasso negócio numa cidadeonde o comércio e a administração pública, assim como a mobilidadedas pessoas, impunham o recurso frequente à escrita como modo decomunicação.

Os chamados oficíos de pena cobriam uma extensa gama deactividades, desdobrando-se entre a esfera do judicial, na qual o escri-vão reinava, até as mais diversas actividades do funcionalismo adminis-trativo e comercial. A par do escrivão, achava-se o escrevente, o qual,possuidor de capacidade gráfica para desenhar a letra, era capaz de aintegrar num sistema geral de significações3. Além dos escrivães quetrabalhavam nas Relações e Corregedorias da Corte, contavam-se 280homens que na cidade viviam de escrever. Havia 18 escrivães públicos.No antigo Pelourinho existiam 10 ou 12 homens que, sentados cadaqual à sua mesa, escreviam continuamente as mensagens que lhes soli-citassem, mediante pagamento, além de mais 30 homens que copiavamtextos judiciais. (É curioso observar que no meio dessa contagem deJoão Brandão apareciam mencionadas 30 escolas de ensinar a ler e aescrever, frequentadas por uns cinco ou seis mil meninos.) Os viajantes

3. Sobre o conjunto de problemas aqui evocados, cf. o trabalho excelente de Marquilhas(2003). Ver também Viñao Frago (1999).

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italianos Tron e Lippomani, que também se referiam aos escrivães dochamado Pelourinho Velho, pormenorizavam: “Sabida que é a ideia dequalquer freguês, que se chega a eles, imediatamente redigem o quepretende, de modo que ora compõe cartas de amores, de que se faz gran-de gasto, ora elogios, orações, versos, sermões, epicédios, requerimen-tos, ou outro qualquer papel em estilo chão ou pomposo”.

Francisco de Morais, numa das suas peças satíricas, põe em cenaum Moço de Estribeira e uma Regateira pegados de amores. Sobretudoela, que tentara enviar-lhe cartas para Flandres sem que ele as tivesserecebido, pagando-as ela por bom preço a um dos melhores escreventesda praça. Analfabeta, induz do preço a pagar e do aspecto gráfico dotexto a intensidade passional que supunha transmitisse:

Pois digo-vos que eram as melhores do mundo. Fui ao Pelourinho Velho e

fez-mas Burgos, o pequenino, que, crede, leva as lampas a todos. Pela pri-

meira lhe dei cinco reais; depois me fez outra por dez, que levava já mil

máguas; quando veio a de vintém, houvéreis já dó de mim, escrita de uma

banda e da outra com tinta mais negra que um azeviche, que era para mover

as pedras [Diálogo III].

Embora insuficiente a alfabetização popular, o certo é que o ensinoda escrita não somente se fazia nas escolas de “ler e escrever” comonoutros locais, incluindo as residências de alunos nobres ou abastados.Semelhante ensino tendia a ser uma actividade especializada. Nesse as-pecto a educação do futuro dom João III fora confiada a Martim Afon-so, um homem pobre que, pelo facto de ser bom escrivão, tinha escolaaberta na cidade. No paço terá havido também o ensino de caligrafiaitaliana de que teriam beneficiado as damas da corte, as quais terão sidocalígrafas exímias.

O uso da “letra tirada” introduzia uma sensível variedade ortográfi-ca, tanto mais que não havia qualquer obrigatoriedade estabelecida namatéria. Pêro Magalhães Gândavo afirmará que os mais dos portugue-ses eram “mui estragados e viciosos”, deformando a pronunciação dalíngua em razão dos inumeráveis erros que cometiam. Uma das origens

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desses traços negativos estaria, por exemplo, no uso de abreviaturas porparte dos escrivães ou nos seus desequilíbrios ortográficos.

João de Barros confirmaria a existência de professores especializa-dos na caligrafia, chamando-lhes “mestres de escrever”. Estes limita-vam-se a facultar aos discípulos alguns modelos de escrita, por meio decópias “da maneira que se hão de terçar e delinear as letras e, com elas,ajuntar as sílabas e vocábulos. Depois, por ali compõe cada um o que hámister em seus negócios” (Barros, 1971). Na confluência dessa prática,leve-se em conta a publicação em 1590 de Exemplares de diversas sor-tes de letras, tirados da Poligrafia de Manuel Barata, escritor portu-guês. Aí achamos modelos de letra chancelaresca, castelhana e portu-guesa. Acostado a esse livro figurava um livrinho sobre ortografiaportuguesa, de Pêro de Magalhães Gândavo, cujas regras formulava emintenção da instrução elementar dos que ainda não eram “latinos”, ape-sar de admitir que a outros pudessem ser úteis.

No ensino da escrita, como no da leitura, o impresso tardará, pois, aimpor-se. Os meios de ensino modernizados no quadro da criação daimprensa reduziam-se afinal a algumas publicações de difusão restrita.

No século XVIII, porém, a caligrafia e a ortografia passaram a serobjecto de intenções formativas por parte dos didactas, dada a impor-tância crescente dos novos estilos de escrita. O manual de JerónimoSoares Barbosa, intitulado Escola popular das primeiras letras dividi-da em quatro partes, publicado em Coimbra na Real Imprensa da Uni-versidade em 1796, continha abundantes indicações relativas ao ensinodas várias disciplinas. Quanto à caligrafia, deixando para trás a pobrezaquinhentista de meios de ensino, reduzidos ao papel, aos traslados e àspenas de pato aparadas, assim como à receita para fabricar a tinta deescrever, Soares Barbosa recomendava o recurso a outros meios. Alémde receitas de tinta, enunciavam-se outros instrumentos de escrita: pe-nas de pato tiradas das asas, o aparo da pena (sete golpes, feridos emconformidade com o tipo de letra), régua, lápis, compasso, regrados,pautas e o canivete.

Entretanto, outros instrumentos de apoio aos professores e aos alu-nos acabaram por constituir-se como fontes de produção industrial e decomercialização. Em 1890, por exemplo, achamos numa lista de objectos

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à venda na firma Luiz José d’Oliveira & Cª, situada no Porto, entre osquais papel de escrever, de todas as qualidades, cabos de penas, penasde aço, lápis, lapiseiras, tinta de escrever e tinteiros de vidro, porcelana,charão, bronze e madeira.

No reino negligenciado dos números

Que a aritmética era matéria cujo ensino não preocupavagrandemente as pessoas documentavam-no as palavras de que GasparNicolas antecede o seu Tratado da pratica da arismetica. Num paísdedicado ao comércio intercontinental, a aritmética seria de enormeimportância. Daí a necessidade de promover o seu ensino ao nível ele-mentar.

Nesse quadro, compreende-se que o livreiro João Ocanha, ao pu-blicar os Exemplares de diversas sortes de letras de Manuel Barata, setenha permitido incluir no mesmo volume um Tratado de arismética.Parece tratar-se de uma obrinha devotada às crianças, já que advertia:“primeiramente é necessário conhecer as letras: e depois de conhecidassaber numerar: […]”. As matérias inclusas no volume têm carácter ele-mentar: tabuadas, numeração, quatro operações, modos de disposiçãode contas, regra de três “chã” (simples), regra de três “com tempos”(composta) e regras de juros. Era visivelmente intenção do livreiro res-ponder não somente às solicitações postuladas pelo ensino das crianças,como também por outros públicos que eventualmente surgissem.

Assim se inaugurava uma modalidade de ensino que se prolongaráaté os nossos dias, independentemente de currículo e plano de matériase que abundavam nos finais do século XVIII: as escolas nocturnas “deescrita e aritmética”, isto é, de caligrafia e de cálculo comercial. Tendosempre à frente o seu proprietário, em regra um calígrafo de nomeada,de que foram exemplo José Joaquim Ventura ou Manuel Satyrio Salazar,com horário pós-laboral, destinavam-se expressamente aos moços quetinham abandonado a escola insuficientemente preparados em seme-lhantes matérias de tão directa aplicação ao comércio ou à administra-ção pública, em alternativa a funcionários que tinham ingressado navida activa e pretendiam aperfeiçoar-se.

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E as mestras?

Há um aspecto da acção docente que, em regra, fica na sombra: oque tem a ver com a actividade ensinante das mestras que desde o sécu-lo XVI se manifestam no campo pedagógico. O seu ensino só em partecoincidia com o dos seus colegas do sexo masculino: na leitura, na es-crita e no ensino da doutrina cristã. Por vezes a escrita não figurava noplano de estudos feminino, ficando reduzido às duas matérias literáriase às chamadas “prendas femininas”: o coser e o bordar nos seus diferen-tes matizes. As meninas frequentavam as casas das mestras, fazendo-seacompanhar de matérias-primas e de instrumentos necessários, entre osquais uma almofadinha que lhes tornava mais cómodas as tarefas.

Em busca de uma pedagogia activa

No plano filosófico produzir-se-á no século XVII um acontecimen-to de extraordinária influência nas actividades educacionais. A difusãodo pensamento de Locke, de orientação sensista e racionalista, conduzi-rá a uma valorização hiperbólica da empiria, de que a imagem seria oreflexo. Em Portugal, em pleno século XVIII, se pronunciará concor-dante com esta orientação o pedagogista Martinho de Mendonça Pina eProença no seu livro Apontamentos para a educação de um meninonobre (1734). O conhecimento apoiar-se-á na experimentação, ou pelomenos na experiência do observador.

Desse modo, o Emílio de Rousseau realizará o essencial das suaspesquisas guiado unicamente pelo preceptor, que é o seu educador detodas as horas e de todos os temas. O livro será voluntariamente postode parte nessa primeira educação. Só numa data bem tardia – cerca dos12 anos – deveria a criança aproximar-se dos livros. Até então terá fo-lheado apenas o grande e curioso livro da natureza. Outros instrumentosde ensino não aparecem no romance de Rousseau, que é a história deuma educação preceptorial em casa do aluno, fora do contexto específi-co da escola.

O certo é que o desenvolvimento de uma tecnologia experimen-talista ganhará lugar cada vez mais pronunciado. Assim, Parot, pre-

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ceptor do Delfim, recorrerá à lanterna mágica para mostrar de modosistemático ao seu ilustre aluno imagens desenhadas nos vidros quetinham conseguido captar a atenção do seu aluno. Mais tarde, será avez de Marat fazer uma comunicação à academia sobre as vantagenscientíficas e pedagógicas da projecção luminosa (Dieuzeide, 1965,p. 11).

No século XVIII também Portugal reconhece os méritos da lanter-na mágica, mas tudo parece indicar que ela se destinava a ser aplicadano ensino de adultos. Sabemos, por exemplo, que o Gabinete de FísicaExperimental da Universidade de Coimbra, segundo uma lista datadade 1788, dispunha de três lanternas mágicas e de 52 lâminas de vidroexibindo figuras pintadas, além de 103 cartões igualmente ilustrados(Carvalho, 1978, p. 85)4.

À medida que nos internamos nesse período difunde-se fortementea moda dos cursos públicos de divulgação das “novas ciências” (ciên-cias experimentais), baseados em demonstrações físicas, os quais eramobjecto de inscrição e de pagamento. Eram quase sempre estrangeirosos que se entregavam a essa actividade. Os cursos eram frequentadospor pessoas de diversas classes sociais, com a condição de apresenta-rem-se decentemente vestidas. Outra manifestação dessa moda culturalconsistia em instalar em casas particulares pequenos gabinetes que per-mitiam realizar experiências. Em Portugal, o paço dispunha de um delespara uso de dom João V. Os oratorianos, rivais dos jesuítas, foram auto-rizados a instalar-se em Portugal e, entre as benesses que ficaram a de-ver ao soberano, figurou justamente a oferta de um gabinete de físicaexperimental. No quadro das reformas pedagógicas pombalinas, foi igual-mente prevista a instalação de um desses gabinetes no Colégio dos No-bres, mais tarde transferido para a Universidade de Coimbra após a re-forma de 1772.

A Academia Real das Ciências, por sua vez, adquiriu em 1794 umalanterna mágica e figuras móveis inglesas para o mesmo aparelho, em

4. Em 1890, no Porto, ofereciam-se lanternas mágicas para venda.

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ordem a apoiar os cursos de adultos que se realizavam sob a sua respon-sabilidade (Carvalho, 1981)5.

Contudo, a lanterna mágica, antecedendo o cinema, não entrou fa-cilmente no circuito escolar. Onde a vemos ser usada com significativafrequência é nas conferências e cursos de adultos das universidades po-pulares nos primórdios do século XX. Em Portugal foi o caso do cursolivre de botânica levado a efeito pelo eminente biólogo portuense Gon-çalo Sampaio e em 1912 na série de conferências promovidas pela Uni-versidade Livre para a Educação Popular de Lisboa. Nessa instituiçãoassistimos também à utilização do gramofone no ensino de línguas vi-vas (Fernandes, 1993).

Se os anos de 1960 constituem em Portugal o período em que oedifício escolar se encontra na primeira linha das preocupações do pro-fessorado e dos pedagogistas, o começo do século XX põe a tónica naquestão conjunta da escola e dos meios de instrução por observaçãodirecta.

Trata-se, provavelmente, de uma consequência da teoria das “li-ções de coisas” que tanto impressionou a reflexão dos docentes. É sig-nificativo que as Noções de pedagogia elementar, de José Augusto Co-elho, aprovadas pelo decreto de 26 de novembro de 1903, e destinadas àformação dos alunos das escolas Normais e de habilitação para o magis-tério primário, definissem primeiramente as características dos edifíci-os escolares e do respectivo mobiliário. Considerando o chamado “ban-co-mesa” como o elemento mais importante do mobiliário escolar,acentuava a necessidade de o professor dispor de uma cadeira e de umamesa, sobre um estrado, mas adverte que “o lugar do professor é princi-palmente no meio dos seus alunos”.

Na verdade, o que se pede com insistência crescente ao ensinante éuma atitude activa no plano do ensino, o que pressupunha a existênciade equipamentos capazes de a apoiar. Assim, no mesmo livro, preconi-

5. Ver também, do mesmo autor, O material didáctico dos séculos XVIII e XIX doMuseu Maynense da Academia das Ciências de Lisboa, publicações do II Cente-nário da Academia das Ciências de Lisboa, Lisboa, 1993.

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zava-se que a escola possuísse um quadro negro de 1m de altura por1,3m de largura, rolos destinados a pendurar cartas, uma colecção depesos e medidas, modelos miniaturais de instrumentos agrícolas,colecções mineralógicas, botânicas e zoológicas, que deveriam ser pos-tas no compartimento de um museu ou na sala de aula, colecção desólidos geométricos. Tratando-se ainda de preparar as crianças para asolidariedade, deveria existir um utensílio destinado à caixa económicaescolar, “contendo pequenos compartimentos, independentes e fecha-dos, a fim de receberem os depósitos de cada aluno” (p. 19).

Deixando de lado os equipamentos adequados às escolas infantis,José Augusto Coelho ocupava-se dos meios de instrução do ensino pri-mário, utilizados no apoio da acção do professor: bibliotecas escolares,museus escolares, colecções de ensino e, especialmentre, o livro escolar(p. 21).

As bibliotecas escolares deveriam ser constituídas por colecções delivros que proporcionassem a consulta de professores e de alunos, alar-gando a esfera das noções adquiridas pelo livro de texto.

Os museus escolares, por sua vez, eram considerados da maior im-portância para cada instituição. Divididos, regra geral, em três secções –histórico-natural, agrícola e fabril – pretendia-se que proporcionassemao ensino uma íntima ligação à vida e à comunidade local, colocandodiante dos alunos, numa síntese resumida,

quer o mundo mineral ou vegetal ou animal, quer, em miniatura, a vida agrí-

cola […] quer, finalmente os próprios produtos realizados pela actividade

dos alunos ou pela energia transformadora dos centros de trabalho localiza-

dos em redor da escola e, com eles, o instrumentos, os modelos, as matérias-

primasetc. etc.; ora, assim constituídos, são um verdadeiro espelho onde se

reflectirá constantemente a actividade trabalhadora do aluno ou dos seus

conterrâneos e, portanto, a iniciativa, a vida, o movimento do restrito – mas

para ele tão simpático – grupo de famílias humanas que o cercam: e neste

caso haverá nada mais útil?

O museu escolar pertencia, portanto, à categoria dos meios educa-tivos que permitiam imprimir ao ensino um cunho mais activo e promo-

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ver uma interacção mais rica entre o aluno, enquanto sujeito de conheci-mento, e os seus objectos.

A instituição educativa deveria possuir, porém, outros instrumen-tos susceptíveis de dilatarem o horizonte da experiência do aluno. Era ocaso da colecção de pesos e medidas, da colecção de instrumentos defísica e de química, capazes de auxiliar o professor na exposição denoções relativas a essas ciências, da colecção de cartas geográficas, in-cluindo a carta geral do continente, das ilhas e das colónias de África eda Ásia, da colecção de quadros parietais auxiliares do ensino da geo-grafia e da história, por fim uma colecção de sólidos geométricos e deoutros elementos tidos por auxiliares do ensino da geometria, quer doensino do desenho6.

Sobre a indispensabilidade de tais instrumentos pronunciava-se JoséAugusto Coelho com inteira clareza:

Todas estas colecções são de uma evidente importância, pois que […] a cada

passo auxiliam o professor no ensino das disciplinas a que dizem respeito.

Como seria, com efeito, possível ensinar o sistema métrico-decimal sem lan-

çar mão dos modelos destinados a representar as diferentes unidades de me-

didas – unidades que o aluno deve ver, ou, por exemplo, oferecer-lhe noções

sobre as formas geométricas sem lhe mostrar as próprias formas, as quais ele

deve contemplar? [p. 23].

Por último, referindo o denominado “livro de ensino”, José AugustoCoelho distinguia entre o livro do discípulo e o livro do mestre. Enquan-to o primeiro se destinava a servir de manual de estudo ao aluno, o livrodo mestre teria como função não apenas a ampliação dos conhecimen-tos desenvolvidos como também a fixação e o desenvolvimento dosprocessos mais adequados à apresentação das matérias. A preocupaçãopedagógico-didáctica manifestava-se no campo do professorado do en-sino elementar.

6. Em 1890, numa loja precitada, ofereciam-se para venda mapas de Portugal, Espanha,França, Terra Santa, Ásia, Oceania, África, América, Europa e mapa-múndi.

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A maior parte dessas recomendações estava longe de poder vigorarem muitas das pobres escolas elementares e até nas áreas corresponden-tes das escolas secundárias. Inconveniência das instalações e falta deequipamentos caracterizavam o sistema educativo, apesar de algunsnovos edifícios escolares terem sido, entretanto, construídos.

Durante a I República fervilhará entre o professorado, sobretudoentre o do ensino primário elementar e superior, um espírito de intensaprocura da inovação, apesar das condições materiais adversas. Regista-se uma profusão de contactos e manifestações firmadas nas teoriza-ções pedagógicas do ensino activo e da escola nova. As dificuldadespráticas enfrentadas, bloqueando ou, pelo menos, dificultando a ino-vação, justificarão uma actividade sindical reivindicativa consequente.Os docentes reclamavam não somente melhor formação como tam-bém condições de trabalho que os dignificassem e dignificassem oensino.

Tais iniciativas, porém, não terão continuidade após o golpe de Es-tado de 1926. Iniciada a Ditadura Militar, cedo se transitará, a partir dosanos de 1930, à instalação da ditadura salazarista, inaugurando o cha-mado Estado Novo. Os sindicatos e associações profissionais de profes-sores foram extintos na sua quase totalidade. As escolas Normais pri-márias, nas quais, em Lisboa, Coimbra e Porto, vigorava até então umespírito vivificador de pesquisa, serão extintas e assim ficarão duranteseis anos. Professores de todos os graus de ensino e quadros superioresdo Ministério da Instrução foram demitidos com o mesmo tipo de acu-sações.

O regime, porém, virá a alterar a sua posição em relação à escolaNova. Do ponto de vista doutrinal, tenta-se ajustar a teorização pedagó-gica salazarista às orientações da corrente pedagógica animada porFerrière. Este visitará Portugal, no regresso de uma viagem ao Brasil e,combatido pelos jornais de direita, acabará por ser recebido e elogiadopelo ministro da Instrução.

Malgrado a atmosfera de coacção que se abatera sobre o professo-rado, houve quem mantivesse contacto com os movimentos de educa-ção activa, pela leitura e até de algumas iniciativas discretas. Foi o casoda persistência do recurso a uma das técnicas Freinet, a utilização do

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prelo com vista à impressão de textos de jornais escolares e de “livrosde vida” (Figueira, 2004).

No plano do audiovisual a I República não foi muito pródiga eminiciativas. É certo que António Sérgio, na sua passagem pelo Ministé-rio de Instrução (1923-1924), criaria um serviço de cinema educativo, oqual o ministro quereria difundir sobretudo nas universidades livres epopulares nas quais, aliás, o recurso ao audiovisual era prática correntedesde o começo do século.

O Estado Novo português, por seu turno, ocupar-se-á igualmentedo cinema educativo nos seus anos iniciais e recorrerá à rádio no planoda comunicação com os professores. Será, porém, no começo da décadade 1960 que o audiovisual fará verdadeiramente a sua entrada no meioescolar. Em dezembro de 1964 seria criado o Instituto de MeiosAudiovisuais de Ensino, encarregado de promover a utilização dosaudiovisuais como meios de acção educativa e escolar. Ao mesmo tem-po, cria-se na sua dependência a telescola, destinada a promover a esco-larização no âmbito do 5º e do 6º anos de escolaridade, e o Centro deEstudos de Pedagogia Audiovisual, no intuito de apoiar cientificamenteas citadas actividades e designadamente a promover a formação de do-centes treinados naquelas áreas.

O funcionamento da telescola marca a entrada em funções dos meioselectrónicos de comunicação social no sector do ensino. Emitidas aslições a partir de um centro oficial, elas seriam recebidas em postosparticulares, graças a um aparelho de TV. Se as emissões, a partir docentro, eram asseguradas por docentes profissionais de elevada compe-tência, já o mesmo não se podia dizer daqueles que, na sala de aula, sesupunha que “explorassem” cada segmento da emissão. Tratava-se demonitores que se candidatavam àqueles postos e que deveriam apresen-tar pelo menos o diploma do 7º e último anos do ensino secundárioliceal segundo o esquema curricular em vigor.

Em semelhantes condições, editavam-se abundantes materiais deapoio a monitores e alunos, uns e outros gratuitos, recebendo os primei-ros, antes das emissões lectivas, algumas indicações de carácter peda-gógico-didáctico.

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Os anos de 1960 verão, também, o aparecimento de instrumentosde ensino que valorizam crescentemente a pedagogia audiovisual deque se faz divulgação em livros e artigos. De todos os meios (rádio,electrofone, magnetofone, projecção fixa, projecção animada), o pri-meiro que terá a primazia entre os professores será o diapositivo, vul-garmente conhecido em Portugal por slide, o qual se tornou o compa-nheiro mais útil dos ensinantes, graças à existência do projector. Odiapositivo permitia que a aula mostrasse visualmente aspectos sugesti-vos do objecto do ensino. Matérias como a geografia, a história, a zoo-logia, o estudo dos meios, a botânica, a literatura, a moral e a religiãoestavam representadas em catálogos de livrarias especializadas, consti-tuindo abundantes sugestões de compra que as escolas e os própriosprofessores realizavam quando podiam.

Através da França chegavam-nos, entretanto, alguns livros de teo-rização que ficaram como clássicos: nos “Cahiers de PédagogieModerne” (1961), o volume intitulado Les techniques audio-visuellesau service des enseignants, organizado por Robert Lefranc e redigidopor uma equipa de especialistas, entres os quais Henri Diezeide. Se-guiu-se no mesmo ano o trabalho de Henri Cassirer, editado pela Orga-nização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO),intitulado La Télévision et l’Enseignement e, em 1964, o célebre estudode Mialaret, Psychopédagogie des moyens audio-visuels dansl’enseignement du premier degré UNESCO/PUF (1964).

Outros meios, entretanto, virão a juntar-se a esses instrumentos co-adjuvantes dos professores e dos alunos. Uma das suas característicasreside na possibilidade que abrem de dimensionar segundo necessida-des específicas os conteúdos das respectivas mensagens. É o caso dovídeo e do DVD.

O acetato (transparência) viria ocupar uma parte substancial do lu-gar reconhecido ao diapositivo, permitindo inclusive a sua utilizaçãocomo superfície de comunicação atenta às vicissitudes da aula. Isso nãoimpede, porém, a utilização de recursos que, não pertencendo à catego-ria de audiovisuais, nem por isso desempenhavam menos um importan-te papel na dinâmica das aulas. Classicamente o professor dispunha,

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quando muito, do chamado estêncil, cuja utilização requeria a gravaçãodo texto em papel de cera e o manejo manual do aparelho, enquanto nãofoi possível fazê-lo funcionar graças à corrente eléctrica. A fotocópia(xerox) permitiria obter uma difusão rápida de suportes do ensino (detextos ou de imagens), criando uma atmosfera mais participante aos alu-nos e aos professores.

Deixámos para o termo da nossa intervenção o exemplo do compu-tador. Graças ao ciberespaço e ao universo cognitivo da internet, pro-fessores e alunos, graças a esse aparelho, poderão investigar os temasque lhes interessam, obtendo informações rápidas. Serão elas fiáveis?Além disso, graças à existência de blogs emanados de comunicadoresentusiastas, o computador, mediante o acesso à internet, permite alargara comunicação. Todos sabemos, contudo, que nem sempre a comunica-ção via internet se inscreve em propósitos transparentes, podendo, aoinvés, servir para enredar numa teia prejudicial àqueles que se deixamenvolver por falta de advertência.

No plano do trabalho científico e académico, a sua utilidade crescede ponto: o computador consentirá o estabelecimento de contactos pro-fessor/alunos ou de investigador/investigador e consequentemente a cria-ção de redes que rentabilizam singularmente o trabalho pedagógico e depesquisa. Essa categoria de organização cognitiva traduzir-se-á no de-senvolvimento mais rápido das ideias em jogo em projectos de naturezainternacional.

As taxas de utilização da internet não são, todavia, uniformes. In-dependentemente de acusarem crescimento, 2/3 dos portugueses (59%do sexo masculino), em 2005, mostraram-se arredados da internet, sen-do as mulheres o grupo mais afastado do ciberespaço. Entretanto, osestudantes portugueses estão entre aqueles que mais a procuram. “Astaxas de utilização sistemática entre os alunos portugueses (88% dizemusá-la pelo menos uma vez por semana) está ao nível das observadas empaíses como a Alemanha e a Bélgica, por exemplo, e é superior à médiaeuropeia (79%)” (O Público, 07-04-06). Esse resultado verifica-se ape-sar de Portugal ter menos lares ligados à internet (31%, contra uma médiaeuropeia de 48%) (idem).

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Comentários finais

A multiplicação de meios de ensino, auxiliares de professores ealunos, traduz a complexificação das matérias escolares e ao mesmotempo a elevação dos níveis de exigência da formação humanística ecientífica. A evolução histórica dos conteúdos educativos encontra pa-ralelo na criação de uma indústria de ensino que se apropriou dos mate-riais escolares e passou a comercializá-los.

Se a existência desses equipamentos tornou mais atraente o ensinoescolar, facilitou a motivação do estudo e a assimilação de matérias, averdade, porém, é que uma parte dos conteúdos veiculados escapam aonosso controlo crítico. Assim, aparentando tratar-se de um modo de as-segurar a liberdade do professor, acabar-se-á por elaborar uma formasubtil de dominação dos saberes e das concepções do mundo, transmiti-dos e recebidos no intercâmbio educacional. Os alunos e estudantes re-correm desarmados a esse universo cognitivo, no qual coexistem as maisdiversas versões culturais, literárias e filosóficas.

Não quer isso dizer que devamos abolir a utilização do computadorou de quaisquer outros meios de ensino cujos resultados não passempela previsão crítica. Queremos dizer que, no termo da evolução histó-rica em presença, a questão central que continua a levantar-se é a decontribuir para que o aluno tome posse plena da sua liberdade na cons-trução do saber e na recusa de um saber centralmente elaborado nasoficinas da indústria da cultura.

Em contrapartida, a difusão da informação reclama-se como umaface da democratização do ensino, colocando os alunos em iguais con-dições de recepção. Essa afirmação remete-nos para uma igualdade ilu-sória, porque nem todos os alunos dispõem dos mesmos equipamentosnas suas casas e as escolas não podem assegurar a todos o uso oportunodos equipamentos necessários. O ciberespaço não é um universo frio edistante dos conflitos dos humanos. Pelo contrário, é uma criação deles,do mesmo modo que foram criadas, pelos humanos, desiguais as condi-ções de acesso ao mundo da cultura.

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Endereço para correspondênciaRogério Fernandes

Unidade de Investigação & Desenvolvimento

em Ciências da Educação Faculdade de Psicologia e

de Ciências da Educação da

Universidade de Lisboa

Alameda da Universidade, s/n.

Lisboa-Portugal

Código Postal 1649-013

Recebido em: 23 maio 2006Aprovado em: 1 jun. 2006

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A pedagogia de Sílvio Romeroe as suas notas de leitura

Jorge Carvalho do Nascimento*

Resumo:Este artigo analisa o projeto pedagógico de Sílvio Romero a partir das discussões e dostextos sobre política educacional que ele produziu e das notas de leituras e margináliasencontradas nos livros da sua biblioteca, por entendê-los como um importante instru-mento para a reconstrução do quadro das idéias e da ação pedagógica nos anos de 1880e das duas primeiras décadas do século XX. Parte das reflexões feitas por Sílvio Romeroteve como escopo a análise do ensino público. A partir da sua cadeira no Colégio PedroII, Sílvio Romero produziu propostas acerca da educação brasileira do século XIX.Romero lutava contra o que dizia ser a mentalidade reacionária e retrógrada do ensinobrasileiro. Redescoberta na década de 1990, a biblioteca ainda não foi objeto de umestudo mais atento.SÍLVIO ROMERO; EDUCAÇÃO BRASILEIRA; ENSINO PÚBLICO; ESCOLA DORECIFE; POLÍTICA EDUCACIONAL.

* Professor do Departamento de História e coordenador do Programa de Pós-Gra-duação em Educação da Universidade Federal de Sergipe. É doutor em educaçãopela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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Sílvio Romero’s pedagogicalproject and his reading notes

Jorge Carvalho do Nascimento*

Abstract:This article analyses Sílvio Romero’s pedagogical project from the discussions and textsabout educational politics produced by him and the reading notes and marginal found inhis library books, understanding them as an important instrument for rebuilding theideas and the pedagogical action in the 1880 and the to first decades of 20th century. Partof the reflections done by Sílvio Romero intended to analyze the public education. Fromhis position in Dom Pedro II School, Sílvio Romero produced purposes to 19th century’sBrazilian Education. Romero struggled against what called the reactionary and latementality of Brazilian teaching. Redescoverd in 90’s, it was not an object of a morecarefull study.SÍLVIO ROMERO; BRAZILIAN EDUCATION; PUBLIC TEACHING; RECIFE’SSCHOOL; EDUCATIONAL POLITIC.

* Professor do Departamento de História e coordenador do Programa de Pós-Gra-duação em Educação da Universidade Federal de Sergipe. É doutor em educaçãopela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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Ao lado de Tobias Barreto, Sílvio Romero constituiu o núcleo dopensamento da chamada Escola do Recife1. Ele também balizou o mo-vimento que se consolidou na segunda metade do século XIX na Facul-dade de Direito pernambucana, movimento articulador de um amplodebate livre de idéias no Brasil, e ajudou a abrir o pensamento brasileiropara correntes filosóficas que tinham pouca penetração no país.

A defesa de idéias materialistas cimentou o pensamento de SílvioRomero e do grupo de intelectuais que juntamente com ele e com TobiasBarreto assumiu posições políticas anticlericais – uma espécie de “mis-sionários” da ciência. A fase da vida brasileira que Romero ajudou ainaugurar tinha o espírito crítico como seiva. A visão de modernidadeque buscou consolidar tinha como propósito a eliminação do que seafirmava na época ser o dogmatismo do passado, que não tinha maisqualquer correspondência com os imperativos vigentes, posto que fun-dado numa concepção metafísica de homem e de mundo. O objeto detal crítica era fundamentalmente o domínio moral e religioso da Igrejaao qual se comparava o que ele via como as fórmulas políticas que aselites concebiam para exercer o domínio sobre a população brasileira.Para ele, a única possibilidade de libertação estava no livre exercíciodas idéias.

Este trabalho pretende analisar o projeto pedagógico de SílvioRomero a partir das discussões e dos textos sobre política educacionalque ele produziu, por entendê-los como um importante instrumento paraa reconstrução do quadro das idéias e da ação pedagógica nos anos de1880. O principal suporte para o estudo é a biblioteca que pertenceu aoescritor aqui analisado.

1. Movimento surgido na segunda metade do século XIX a partir da Faculdade deDireito do Recife, com o propósito de buscar uma identidade nacional brasileira,assumindo a necessidade de utilização da cultura e da educação para a construçãode novos valores. As principais expressões da Escola do Recife, ademais dos doisautores citados, são Artur Orlando, Clóvis Bevilacqua, Fausto Cardoso, CastroAlves, Celso de Magalhães, Capistrano de Abreu, Franklin Távora, Carneiro Vilela,Inglês de Souza, Domingos Olímpio, Luís Guimarães, Plínio de Lima, Santa Hele-na Magno e Souza Pinto.

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Redescoberta, reorganizada e colocada à disposição dos pesquisa-dores na década de 90 do século XX, a biblioteca que pertenceu a SílvioRomero ainda não foi objeto de um estudo mais atento, mas pode serreveladora de muitos aspectos a respeito das reflexões realizadas e dosprojetos propostos por esse importante intelectual brasileiro, nascido nacidade sergipana de Lagarto, em 1851. Até o presente, apenas dois pes-quisadores têm trabalhado sistematicamente sobre os livros de SílvioRomero: Jackson da Silva Lima (1999) e Cristiane Vitório de Souza2.

O acervo que pertenceu a Sílvio Romero foi adquirido pelo Gover-no do Estado de Sergipe no ano de 1918, quatro anos após a sua morte.A fim de orientar e avaliar o material, o governador do estado nomeouuma comissão composta pelo senador José Joaquim Pereira Lobo, Mau-rício Gracho Cardoso e o filho de Sílvio, Nelson Romero (Lima, 1999,p. 151). Os 1.919 volumes custaram quatorze contos de réis e foramentregues pela família Romero em dezembro do mesmo ano de 1918 aoentão diretor da biblioteca pública, Epiphanio da Fonseca Dória. Se-gundo relatório apresentado por ele, os volumes recebidos eram refe-rentes a 1.717 obras, “inclusive algumas coleções de revistas, muitasdas quais incompletas. Foram postos à margem diversos volumes trun-

2. Além do trabalho aqui citado, Jackson da Silva Lima vem estudando a obra deSílvio Romero por diversos outros pontos de vista. Entre seus mais importantestrabalhos sobre Sílvio Romero, consultar os seguintes: O folclore em Sergipe, v. 1;“Sílvio Romero: um mestre a distância” em Os estudos antropológicos, etnográfi-cos e folclóricos em Sergipe; História da literatura Sergipana, v. 2.; “Sílvio Romeroe a poesia científico-filosófica” em Actas do III Colóquio Tobias Barreto. A respei-to dos estudos realizados por Cristiane Vitório de Souza sobre a biblioteca de Síl-vio Romero, verificar: “A formação do Sílvio Romero leitor (1851-1868)” em Ca-dernos UFS História da Educação; “A formação do Sílvio Romero leitor em Lagarto”em Caderno do Estudante; “A apropriação da educação intelectual, moral e físicade Herbert Spencer por Sílvio Romero” em Anais da V Semana de Educação & IIEncontro Regional de Educação. Formação docente X qualidade social da escolapública; “Educação e nação: um estudo preliminar das leituras pedagógicas nabiblioteca de Sílvio Romero” em Anais do III Congresso Brasileiro de História daEducação – A educação escolar em perspectiva histórica; “Educação e nação: umestudo preliminar das leituras pedagógicas na biblioteca de Sílvio Romero” emAnais do III Congresso Brasileiro de História da Educação – A educação escolarem perspectiva histórica.

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cados e inaproveitáveis. Das obras, 628, com 763 volumes, estavamencadernadas, e 1.089, com 1.186 volumes, estavam apenas brochadas”(Dória, 1920, p. 34). Jackson da Silva Lima assinala que o bibliófiloresponsável pelo recebimento do acervo não fez, em seu relatório, qual-quer registro a respeito da existência de uma possível lista dos títulosrelacionando todas as obras adquiridas, observando apenas que após acompra pelo Governo do Estado de Sergipe os livros foram reencader-nados (idem, p. 152).

Após a nova encadernação, a biblioteca de Sílvio Romero passou acontar com 2.270 obras, total que inclui 49 livros que não pertenceramoriginalmente ao autor aqui analisado, mas foram incorporados ao acer-vo por serem trabalhos de sua autoria, sobre ele e sua obra e algunsoutros prefaciados por Romero. Do total do acervo, 920 títulos estãoencadernados em 251 volumes de miscelânias, contendo dois ou maistrabalhos reunidos por uma única encadernação. Os livros estão identi-ficados por “um carimbo especial, circular, com a inscrição BibliothecaSylvio Romero, tendo no centro a estampa de um livro aberto” (idem,p. 149). A identificação foi colocada por determinação de EpiphanioDória, após a chegada dos livros a Sergipe. Além dessa marca, os livros“guardam o nome autógrafo do sergipano (Romero ou S. Romero), cen-tenas estão dedicados a ele, centenas contêm suas anotações e marcasde leitura, não pairando em tais casos qualquer dúvida quanto à suapropriedade” (idem, p. 150), além de outros elementos comprobatórioscomo “dedicatória a SR, seu autógrafo e/ou anotações de próprio pu-nho” (idem, p. 150). Do total do acervo, 123 títulos não possuem qual-quer tipo de registro: não foram carimbados e não contêm nenhuma dasmarcas de leitura que Sílvio Romero costumava deixar nos livros quelia. Mesmo assim, restam ainda 2.147 livros.

É possível perceber que, certamente, dentre os livros identificadospelo carimbo há alguns outros que também não pertenceram ao escritorsergipanos. São 47 livros editados em 1914, 25 em 1915 e 11 em 1916.Mesmo em relação aos publicados em 1914, parece pouco plausível quetenham pertencido a Sílvio Romero, posto que ele morreu no dia 18 dejulho daquele ano, aos 63 anos de idade, enfrentando problemas deesclerose e cardíacos. O fato é que, em relação a um total de 1.717 obras

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recebidas em 1918, Jackson da Silva Lima anotou um acréscimo de 430livros, atribuindo o fato a duas possibilidades de contaminação do acer-vo: “após a chegada dos livros, as 1.089 brochuras, com 1.186 volumes,foram encaminhadas para encadernação, juntamente com outras obrasde procedência diversa [...], e aí começou certamente a contaminaçãoda biblioteca de Sílvio Romero” (idem, ibidem). A outra possibilidadeindicada pelo estudo aqui referenciado

e essa em maior grau, ocorreu, presumimos, quando, encadernadas as bro-

churas em miscelâneas (obras do acervo de Sílvio Romero com obras que

não lhe pertenciam), teve ensejo a etapa posterior da carimbação, com a pos-

sibilidade de erros por omissão (falta de carimbo), ou de erros por excesso

(carimbação indevida), sendo, nesse caso, a incidência mais freqüente, dan-

do origem, assim, à diferença a maior constatada [idem, p. 151].

Depois de carimbados, os livros que pertenceram a Sílvio Romeroforam catalogados e passaram a integrar o acervo geral da BibliotecaPública do Estado de Sergipe, distribuídos por assunto e por autor nasestantes da instituição, sem que houvesse qualquer preocupação emmantê-los numa sala ou outro espaço que servisse para preservar a uni-dade e a identidade da biblioteca de Sílvio Romero. Assim eles perma-neceram até o ano de 1974, quando a Biblioteca Pública do Estado deSergipe, já então denominada Biblioteca Pública Epiphanio Dória numahomenagem ao seu maior bibliófilo3, ganhou um novo edifício. Com amudança para o novo prédio, parte do acervo geral da biblioteca foiencaixotada e após a mudança permaneceu indisponível nos depósitosda instituição durante 21 anos. Em 1995, o pesquisador Jackson da Sil-

3. Epiphanio da Fonseca Dória e Menezes nasceu no município de Campos, provín-cia de Sergipe, em 7 de abril de 1884. Foi diretor da Biblioteca Pública do Estadode Sergipe; fundador, em 1905, do Clube Literário Progressistas da Vila do Boquim;secretário e organizador do arquivo do Gabinete de Leitura de Maroim; sócio esecretário perpétuo do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe; sócio corres-pondente do Instituto Histórico e Geográfico Parahybano; e presidente da LigaSergipense Contra o Analfabetismo. Cf. Guaraná (1925).

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va Lima decidiu “recuperar o acervo antigo da Biblioteca PúblicaEpiphânio Dórea – BPED, que jazia num depósito infecto, quase semiluminação, amontoado entre móveis imprestáveis e ferros-velhos, jun-tamente com os periódicos nacionais e estrangeiros” (idem, p. 149). Elecoordenou uma equipe de trabalho4 que desmontou a “vergonhosa li-xeira, separando os livros, periódicos e documentos importantes dassucatas existentes, já danificados pela poeira, umidade, ratos, baratas eroedores de todos os gêneros” (idem, ibidem). Foram necessários oitomeses de trabalho para recuperar o acervo.

A Biblioteca Pública Epifânio Dória acresceu às suas estantes, co-locando à disposição dos leitores, aproximadamente 15 mil títulos, alémde redescobrir velhos catálogos organizados no começo do século XX.Desse total foi possível formar um banco de teses médicas e reagruparas bibliotecas que originalmente pertenceram a Gumercindo Bessa, aosirmãos Felisbelo e Laudelino Freire e também à biblioteca de SílvioRomero. Esta última está organizada em duas salas, com os livros distri-buídos em 18 estantes de aço5, e é atualmente uma importante fontepara estudos que ajudam a compreender a atuação daquele escritor. Oacervo pode ser identificado a partir de dois catálogos: o velho, do iní-cio do século XX, organizado apenas por autor, e um novo, digitalizado,que permite três tipos de consulta – registro de entrada, título e autor.

Na coleção de 1.717 livros adquirida pelo Governo do Estado deSergipe em 1918, 107 constituem um acervo especializado em temaseducacionais. Nesse total estão incluídos três volumes de leis brasilei-ras tratando de matéria educativa; o projeto de reforma do ensino secun-dário e superior discutido em 1882; o projeto de reforma do ensino pri-mário; dois anais de congressos; três estatutos de faculdades; uma listade alunos matriculados na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e So-ciais do Rio de Janeiro no ano de 1907; uma outra relação referente aestudantes do Colégio Anchieta de Niterói, em 1899; dois regulamentos

4. Integravam o grupo os professores Pedro dos Santos, Antonio Alves Amaral, AcássiaAraújo Barreto e o bibliotecário Carlos Alberto Freire de Almeida.

5. Cada estante é dotada de seis prateleiras.

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de faculdades do Rio de Janeiro; os regulamentos dos institutos milita-res de ensino; e dois relatórios de instituições de ensino secundário. São64 textos em português, 39 em francês, três em espanhol e um em in-glês. O idioma no qual o texto está publicado não estabelece uma vincu-lação automática com a nacionalidade do autor, posto que existem mui-tas traduções. O único texto em inglês existente na biblioteca de SílvioRomero foi escrito por um alemão. Os textos do inglês Herbert Spencerforam lidos pelo intelectual brasileiro na sua edição em francês, do mes-mo modo que foi esta a língua na qual Romero teve acesso ao pensa-mento de William James. Há textos em português escritos não apenaspor intelectuais brasileiros, mas também de países europeus, a começarpor Portugal.

Os embates do intelectual Sílvio Romero

Sílvio Romero iniciou a sua vida intelectual combatendo o ecletismoespiritualista e a metafísica para, em seguida, incorporar as idéias deAugusto Comte. Mas rompeu com o positivismo6 alguns anos depois,fazendo com que a sua obra fosse freqüentemente contestada por váriosintelectuais positivistas. “Via no Positivismo um sistema tumular queencarcera consciências através de um catecismo feroz e agressivo, semqualquer vinculação com a índole nacional” (Nascimento, 1999, p. 191).Como a maior parte dos intelectuais da Escola do Recife, Sílvio Romerocompôs o núcleo central da sua visão de mundo a partir de leiturasmonistas7 e evolucionistas, principalmente pelas leituras atentas que fez

6. O livro Doutrina contra doutrina, escrito por Sílvio Romero, tem a crítica ao posi-tivismo como seu objeto central. Um artigo publicado por José Veríssimo na Revis-ta Brazileira sobre o livro de Romero fez a animosidade entre ambos chegar àsraias da intolerância. A forma como Veríssimo o criticou irritou profundamenteSílvio Romero.

7. “Monismo, em seu sentido mais geral, designa uma teoria ou interpretação desen-volvida em termos de um único princípio. [...] Assim, em metafísica, a realidadeseria reduzida a uma única substância básica ou princípio. [...] Em história ou so-

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do pensamento de Wolf, Ernest Haeckel, Ludwig Noiré, Charles Darwine Herbert Spencer. Foi com os monistas e os evolucionistas que Romeroaprendeu a criticar o positivismo e ao mesmo tempo assumir a defesadas idéias materialistas, tomando uma posição anticlerical e de críticaao catolicismo. Ao longo da segunda metade do século XIX buscousempre tornar popular a idéia de filosofia como epistemologia, pois as-sumia a posição de que a teoria do conhecimento era o objeto próprio dafilosofia.

Como a sua geração, Romero adotou o convencimento de que esta-va descobrindo os novos rumos da humanidade e de que era uma espé-cie de “missionário” do século da ciência. Com esse espírito, viveu dis-cutindo e criticando “as filosofias e os filósofos do seu tempo, ao invésde simplesmente repeti-los como era prática no Brasil até então” (idem,p. 155).

Com posições muitas vezes divergentes daquelas assumidas peloseu próprio grupo, Sílvio Romero faria dos estudos sobre filosofia, crí-tica literária, psicologia social e sociologia a sua preocupação mais ar-dente, apesar do descrédito em relação à psicologia atribuído pelo seuparceiro na Escola do Recife, Tobias Barreto. Pelo ponto de vista políti-co, Sílvio Romero também avança muitas vezes na direção contráriaàquela assumida pelo seu próprio grupo. Enquanto Tobias Barreto con-siderava as idéias de Rousseau acerca da democracia contaminadas peloque chamava de os furores demagógicos do romantismo, Sílvio tinhauma percepção segundo a qual não seria possível estabelecer limites aum princípio que se identificava com a sua maneira de ser – a sua sede dejustiça social, a sua faculdade de opinar sem restrições, a sua incontinên-cia verbal. E ia, nesse campo, até o limite das possibilidades da sua visãopolítica, ao considerar legítimo o direito de sublevação das massas.

Tendo-se consolidado como um intelectual importante durante asegunda metade do século XIX, Sílvio Romero viu chegar o século XX

ciologia, um certo fator é considerado a causa básica, determinante de comporta-mentos e instituições ou de toda a história. Esse mesmo fator também pode sertomado como base para uma teoria causal.” Cf. Roberts (1986).

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aos 50 anos de idade e com o reconhecimento de ser o mais importantecrítico literário brasileiro. O maior e o mais virulento, o mais passional,o mais destemperado. Sílvio era sem dúvida nenhuma um dos intelec-tuais mais vaidosos dentre aqueles que viveram a segunda metade doséculo XIX e as duas primeiras décadas do século XX. A sua coleção dedesafetos era inesgotável. Convivia socialmente com José Veríssimo,mas mantinha com este uma violenta disputa pelo domínio das interpre-tações da cultura nacional.

Nos seus primeiros estudos culturalistas, Sílvio Romero realça ovalor do papel dos negros e da mestiçagem brasileira das raças e dasidéias. A posição defendida por Sílvio Romero mudou bastante durantetodo o processo de propaganda republicana e, pelo ponto de vista dainterpretação da cultura nacional brasileira, ultrapassou os limites dopensamento positivista.

Num estudo que fez sobre Sílvio Romero, Antônio Cândido (Cân-dido, 1978) aponta que desde cedo ele pareceu aos seus contemporâne-os muito contraditório, muito injusto e recebeu a acusação de ser maisapto a fazer generalizações do que críticas. E traçou um perfil das con-tradições do polêmico pensador:

primeiro foi positivista e depois atacou desabridamente o positivismo; na

política de Sergipe desancou um lado e depois se ligou a ele; considerou Luís

Delfino um poetastro e, em seguida, um dos maiores poetas brasileiros; pro-

clamou Capistrano de Abreu o maior sabedor de História do Brasil e, mais

tarde, um medíocre catador de minúcias; era evolucionista agnóstico e afinal

aderiu à Escola da Ciência Social, de raízes católicas, e assim por diante.

Não é difícil mostrar como fazia e refazia as suas divisões de períodos, os

seus catálogos de bons e maus escritores [Cândido, 1978, p. 52].

Antônio Cândido chama a atenção para algumas obsessões intelec-tuais que estiveram presentes ao longo da vida de Sílvio como a suamanifesta e incompreensível má vontade pela obra de Machado de As-sis. Daí a leitura de Sílvio Romero tanto irritar como despertar um sen-timento de admiração por um homem ao qual o movimento de análise,de compreensão, de construção era o mesmo que o levava a destruir,

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dando ao seu pensamento uma característica dual e uma marca revolu-cionária, que retratam com perfeição a imagem nervosa que o Brasil doseu tempo possuía.

Sílvio Romero dedicou-se ao longo da vida a construir uma críticacientífica e objetiva que teve como base o espírito expansivo das ciên-cias da natureza durante o século XIX. Armado com uma visão peculiarda natureza e função da mestiçagem, que buscou no racismo de Gobineau,ele punha-se posições características de um certo liberalismo progres-sista que pregava a luta contra as oligarquias, mas desconfiava profun-damente da capacidade política do povo. Interessado e sem escondersuas simpatias pelo socialismo, Sílvio Romero via essa proposta comoinviável para a sociedade brasileira e influenciou claramente posiçõesbem distintas na cultura brasileira, como as de Otávio Brandão, OliveiraViana, Mário de Andrade e Gilberto Freyre. Dentro do quadro das suascontradições, Romero construiu o seu “racismo” antropológico apon-tando para uma igualdade racial que deveria levar à universalização dosdireitos e que desprezava as elites que tentavam se apresentar comoraça superior. Para ele a sociedade brasileira encontraria o seu “ethos”exatamente na equalização de todas as raças.

Inteligência precoce, Sílvio Romero começou a escrever e participarde polêmicas desde os 18 anos de idade, quando estudava direito em Re-cife, no ano de 1869, causando pânico a alguns e obtendo a admiração deoutros, conforme anota Araripe Junior (Rabello, 1967). Foi muito forte noseu pensamento, desde o início, a necessidade de desmistificar tudo queexaminava, formando uma concepção de crítica concebida como vasta ecomplexa atividade de análise realista e rejeição de preconceitos mentais,com vistas a uma reavaliação objetiva de toda a cultura.

Suas análises são a expressão de uma visão teórica nova, fundadasobre a ciência e a filosofia do seu tempo. Na História da literaturabrasileira (1949) – a sua obra mais importante – atenua a influência queo ambiente físico exerceu sobre a configuração da sociedade brasileira,traz à discussão fatores biológicos e põe em primeiro plano os proble-mas de natureza social e psíquicos.

Republicano e partidário do federalismo, Sílvio foi, após a procla-mação, um dos mais contundentes dentre os críticos do republicanismo

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brasileiro. Ele preferia o parlamentarismo ao presidencialismo adotado,como deixa bem claro no seu trabalho Realidade e ilusões do Brasil.Parlamentarismo e presidencialismo e outros ensaios (1979). Tendodefendido que a república unitária parlamentar deveria ser implantadaatravés da intervenção dos militares, Sílvio Romero afirmava que temiaa permanência destes no poder por muito tempo e não aceitava a ditadu-ra republicana proposta pelo positivismo. No rol dos seus inúmeros equí-vocos há um outro que se soma à sua, já aqui citada, incapacidade deentender Machado de Assis: a forma como atacou a obra de ManoelBonfim, sem entender a crítica que este fazia à teoria da desigualdadedas raças e à busca que Bonfim empreendia das causas sociais do atrasodos povos latino-americanos.

Tudo isso fez com que o autor sergipano fosse objeto de discrimi-nações e do escárnio dos grupos aos quais se contrapunha. Principal-mente depois que o conjunto de idéias que pregava ganhou importânciano debate que se travou durante as últimas décadas do século XIX e asprimeiras do século XX. Sílvio Romero disse de si próprio ser “um ho-mem de seu tempo, sem deixar de ser homem de seu país e aplicou asnovas idéias européias sempre a assuntos nacionais” (Romero, 1898,p. 124).

A reforma do pensamento foi o caminho escolhido por ele comovia de acesso às reformas sociais. Para ele estava muito claro que reali-zações, discursos e projetos têm valores diferentes. Por isso buscou umdiscurso pelo qual pudesse convencer a intelectualidade brasileira quantoa viabilidade de um novo projeto. Preocupado com o que entendia ser aausência de um projeto nacional brasileiro, Sílvio Romero foi articuladorde um discurso que, a partir do tema da cultura, propunha a galvanizaçãodo Estado nacional. A partir das duas últimas décadas do século XIXRomero começou a realizar leituras e a esboçar um pensamento peda-gógico entusiasmado com os novos rumos que a pedagogia tomava,principalmente na Alemanha, criticando de modo contundente algumasidéias pedagógicas assumidas por intelectuais franceses e demonstran-do certa perplexidade em relação a um vigoroso conjunto de idéias pe-dagógicas que se irradiavam a partir dos Estados Unidos da América.

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A pedagogia de Romero

Sílvio Romero buscou o caminho do magistério como alternativaprofissional. Em 1875 prestou concurso para a cadeira de filosofia noColégio das Artes, anexo à Faculdade de Direito do Recife, então dirigidapor Paula Batista. Anulado o concurso, a congregação convocou os cin-co candidatos a novas provas, no ano seguinte. Em 1876 fez as provasdo concurso outra vez, sendo classificado em segundo lugar. A cadeiracoube ao candidato Antônio Luís de Melo Vieira. Sílvio Romero recor-reu ao conde D’Eu, seu patrono apara com a princesa Isabel. No ano de1880 Sílvio Romero submeteu-se a concurso para a cadeira de filosofiano Imperial Colégio Pedro II. As provas foram anuladas. Fez novo con-curso no mesmo ano, com mais sete candidatos, sendo classificado emprimeiro lugar. O decreto imperial para a nomeação ao cargo de profes-sor tem a data de 13 de maio. Atuou como professor do Colégio Pedro IIdurante 30 anos, aposentando-se em 1910. Também trabalhou comoprofessor da cadeira de filosofia na Faculdade de Direito do Rio de Ja-neiro. Em 1913, por motivo de saúde, recusou o convite da Faculdadede Letras de Paris para ministrar um curso de etnografia brasileira.

Parte das reflexões que Sílvio Romero fez ao longo da sua vidateve como escopo a análise do ensino público no Brasil. Vários dos seustrabalhos que tiveram a educação como temática foram publicados narevista Lucros e perdas. A partir da sua cadeira no Colégio Pedro II,Sílvio Romero produziu uma série de reflexões acerca da educação bra-sileira do século XIX. Há vários indícios dessas reflexões nos arquivosdo próprio Colégio Pedro II, a exemplo da monografia apresentada peloprofessor Sílvio Romero durante o Congresso de Instrução Pública queaconteceu no Rio de Janeiro, em 1883. É um texto que nos permitecompreender as bases do debate pedagógico que se travava no Brasil,durante o século XIX, sob a influência da Kultur alemã. As teses cen-trais dessa monografia estão sintetizadas no texto “Notas sobre o ensinopúblico” (1901). À sua maneira, Romero lutava contra o que dizia ser amentalidade que chamava de reacionária e retrógrada do ensino brasi-leiro. Nesse período, Sílvio Romero privilegiou os estudos em educa-ção a partir das questões de filosofia e do ensino secundário. Fez críti-

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cas ao fato de a escola brasileira haver reduzido o ensino de filosofia auma única disciplina – o ensino da lógica e defendeu ardorosamente oensino de disciplinas como psicologia, metafísica, ética, ontologia e his-tória da filosofia. Também durante o período em que trabalhou para ojornal Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, Sílvio Romero escreveumuitos artigos sobre o ensino público.

O trabalho “Notas sobre o ensino público” foi editado pela primei-ra vez em 1884. Naquele momento Sílvio estava engajadíssimo na cam-panha republicana, apesar das restrições que fazia aos positivistas. Em1901 o texto ganhou uma outra edição, em uma coletânea que recebeu otítulo de Ensaios de sociologia e literatura. No momento da segundaedição, Sílvio Romero era um crítico da ação do governo presidencialistarepublicano e incorporou uma série de observações irônicas sobre apolítica educacional de Benjamin Constant e sobre a política de aproxi-mação do Brasil com os Estados Unidos da América.

A discussão que Sílvio Romero fez com suas “Notas sobre o ensinopúblico” gravita em torno de sete temas básicos: o Estado nacional;ensino público x ensino privado; a liberdade de ensino; a influência es-trangeira na educação brasileira; o ensino primário; o ensino secundárioe o ensino superior. No seu entendimento, a consolidação do Estadonacional moderno requeria uma expansão intelectual permanente dapopulação. “A expansão intelectual é uma resultante da própria existên-cia do agregado político e nacional” (Romero, 1901, p. 130). Esse Esta-do que requeria a expansão intelectual seria o responsável pela unidadedo espírito nacional, o que a seu ver justificaria o caráter nacional daeducação e do ensino que marcaram a pedagogia do século XIX. Umensino desse tipo precisaria ser fundado pelas aptidões étnicas da nação,embasado na realidade das pessoas, nas suas histórias, nas suas índoles,nas suas aspirações fundamentais. Um ensino que fortaleceria as quali-dades nativas da raça, robusteceria o gênio nacional e afirmaria a indivi-dualidade das pessoas, tendo como pano de fundo a preocupação nacio-nalista patriota, a consagração do que ele chamava de “indigenismo”digno. A relação Estado-Nacional e ensino, tal como a via Sílvio Romero,era o que daria sentido a estima própria que todo indivíduo deveria terde si mesmo interpretava , o que para as nações se traduziria como cons-

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ciência do seu valor e confiança no seu destino. Por força desse tipo derelação, assim como o Estado tinha responsabilidades como agente dapromoção do progresso e assumia tarefas na economia, deveria destinarparte significativa do seu orçamento para zelar pela instrução pública.Dever que no caso do Estado-Nação brasileiro teria que ser um encargodo poder central, se erguidos os moldes do figurino de Romero. Uminstrumento útil ao combate do caudilhismo localista, da mesma manei-ra que poderia utilizá-lo para sobrepujar o que o autor designava comosendo pretensões menores dos que não entendiam a pátria-nação maisampla e mais justa.

As concepções que defendia em educação, segundo o próprioRomero, eram inspiradas na pedagogia e na teoria do Estado de origemalemã. Sua rejeição ao processo de aproximação do Brasil com os Esta-dos Unidos era muito grande. Na sua opinião, somente o modelo dareforma educacional da Alemanha poderia ajudar a educação brasileira.

No contexto das reformas educacionais propostas por Sílvio Romeropara o projeto do Estado republicano brasileiro, o melhor caminho parao Brasil seria o da fundação de escolas, da organização mesmo de umsistema nacional de ensino, da intervenção em escolas particulares, dadelimitação geral das matérias a serem obrigatoriamente estudadas portodos e em todo o território nacional, na fiscalização dos exames finais.

A clareza de Sílvio Romero quanto ao Estado-Nacional, ao seu ca-ráter e ao papel que a educação e o ensino deveriam exercer para servi-lo, levaram o seu raciocínio a antepor o ensino público ao ensino priva-do. O ensino público punha-se, para ele, como uma função racional doEstado, presa à questão geral da organização política e das condiçõessociais, como desdobramento das aptidões étnicas e históricas. Críticoda opinião liberal que sugeria retirar do Estado umas tantas funções, eleconstatava, àquela altura do século XIX, que o ensino público no Brasil,em todos os graus, sempre fora muito ruim, mas, sem nenhuma dúvida,o considerava de melhor qualidade que o ensino privado. E não cansavade denunciar a extorsão que era praticada por muitas pessoas que seimiscuíam com a área, além de lhe questionar a competência.

Em Sílvio Romero não há como desentranhar o debate a respeitodos temas que relacionam Estado-Nacional/ensino e ensino público/en-

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sino privado da questão da liberdade do ensino. Ele percebia que o ensi-no primário escapava quase que totalmente das mãos do Estado, que oensino normal também estava quase completamente fora do controle daUnião e que o ensino secundário e superior tenderiam a escapar-lhe.Condenava o entendimento que havia no Brasil de liberdade do ensinocomo sendo a liberdade de permitir a qualquer cidadão ministrá-lo, afir-mando existir sobre tal matéria duas alternativas: uma que chamava debrasileira; a outra, que o entusiasmava, a prussiana. “A teoria incons-cientemente admitida no Brasil sobre a liberdade de ensino é puramenteexterior, não penetra no âmago dos fatos; é altamente nociva e de todoerrônea”, afirmava (Romero, 1901, p. 133).

A liberdade condenada por Romero consistia no poder de cadaum, fosse quem fosse, de ensinar. A liberdade desejada por ele era aque dizia respeito aos conteúdos, aos métodos de ensino, as doutrinas,e não a praticada, que sequer cobrava a habilitação do pessoal docente.Entusiasta do germanismo, ele revelava que na Alemanha não existialiberdade de ensinar no sentido de permitir a quem quer que seja oexercício do direito de lecionar, já que naquele país só podia ensinarquem estivesse habilitado e o demonstrasse submetendo-se a provasaplicadas pelo Estado que, examinando caso a caso, concedia ou não aautorização. A essa restrição do Estado alemão correspondia uma imen-sa liberdade que era concedida ao professor quanto aos métodos e ànatureza das doutrinas, o que transformava o docente alemão numaforça autônoma, preocupado apenas em desenvolver a elasticidade dosespíritos e preparar o caráter com base na independência da razão. Oensino brasileiro, na sua visão, seria a negação da autonomia da inteli-gência, pois ensinava a decorar fórmulas, escravizava o raciocínio eensinava inutilidades. O Estado deveria – propunha Sílvio Romero –tornar efetiva e ampla a liberdade completa e radical do ensino de dou-trinas e de utilização de métodos. E isso só seria possível se a Uniãoorganizasse uma carreira para o magistério que fosse economicamenteatrativa, único meio de atrair e manter na docência os mais competen-tes, dos quais se exigiria uma formação sólida. A liberdade de ensino,no seu entendimento, dizia respeito às doutrinas a transmitir e aosmétodos a serem utilizados para essa transmissão. Aquilatar quem ti-

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nha competência para tal tarefa seria possível com a organização deconcursos pelo Estado.

O tema da liberdade de ensino tinha em Sílvio Romero uma dimen-são fundamental para explicitar a sua visão pedagógica. Tratava-se daquestão da qualidade do ensino ministrado aos brasileiros. Ele qualifi-cava a escola brasileira como uma instituição pedante e palavrosa queformava ignorantes pomposos e fúteis. Tal escola estaria formando umanação de pigmeus intelectuais que sabiam frases e fórmulas, mas nãosabiam pensar. Uma geração portadora de um palavreado desprovido deidéias, depositária de uma espécie de ensino a retalho, ministrado atra-vés de caderninhos prontos, dosadores de ignorância que teria contami-nado as gerações de brasileiros que viveram no século XIX. Ao identifi-car o problema, Romero atribuiu aos norte-americanos a responsabilidadepor ele: “Cabeças superficiais, desorientadas pelo espetáculo vistoso doindustrialismo hodierno, entenderam de tal ser, em definitivo, o espíritodos modernos tempos e sonharam introduzir esse materialismo, essaamericanisação, até na esfera do ensino” (Romero, 1901, p. 153).

Seguindo esse raciocínio, fez a defesa da cultura humanista, afir-mando que o caminho para o avanço da ciência da sociedade industrialpassava por uma sólida formação geral. Entendia que toda a ciência doséculo XIX era parte de um processo histórico que tinha suas raízes naAntiguidade clássica.

A visão que Sílvio Romero tinha das necessidades sociais postaspara o seu tempo permitiu que ele afirmasse haver necessidade de in-dústrias e compreender que tal necessidade não dispensava o papel so-cial que cumpriam os literatos. A sociedade precisava de quem soubessemontar máquinas, mas igualmente não prescindia dos que sabiam gregoe latim; havia necessidade de homens que dominassem as propriedadesdo ácido fluorídrico e do manganês, mas também quem interpretasse ascorrentes do pensamento contemporâneo e suas origens greco-romanas.Na sua perspectiva o ensino não poderia ser o mero reflexo de coisaspráticas, de objetos industriais e nada mais. Seria inconcebível se o en-sino primário se preocupasse apenas com a transmissão de rudimentosdos ofícios mais comuns, desde a agricultura até a ferramentaria, pas-sando por coisas como serralheria e alfaiataria. Seria inconcebível a re-

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núncia à leitura de lendas, contos, criações estéticas, substituindo-asapenas por receitas práticas, pequenos pedaços de física e química, fór-mulas de sais, de tintas, de aplicações industriais, madeiras, metais, tudoexclusivamente prático. Seria inaceitável, no ensino secundário, que serenunciasse ao grego, ao latim, à literatura, à gramática, à história e sesubstituísse tudo isso somente por matemática, física, química, histórianatural, apenas visando o fim de algum ofício, indústria ou emprego.Esse processo de americanização futilizava o papel da história, filologia,arqueologia, estética, filosofia e tudo o mais que não abrisse as portas auma carreira, a um meio de vida.

A liberdade de ensino pregada por Sílvio Romero não era a dos quedefendiam a proposta de americanização, mas também não era a dosque defendiam um humanismo clássico e desinteressado, sem qualquercompromisso com aquilo que o seu evolucionismo entendia ser a mo-dernidade. As bases para tanto, Romero buscou no fisiologista Du Bois-Reymond e no francês Alf Fouillé. O francês, como Sílvio Romero,entusiasta do germanismo, fôra buscar em uma palestra que Du Bois-Reymond fizera em 1867 as bases para o seu livro L’ensigment au pointde vie national. O brasileiro trabalhou com os dois textos e entendeuque “tanto a conferência de Du Bois-Reymond como o livro de Fouillé,deveriam constituir o programa de quem no Brasil se quisesse ocuparcom a instrução popular” (Romero, 1901). Culturalista, Sílvio Romeroassumia-se como adversário do que ele mesmo chamava de americani-zação. Condenava o que dizia ser uma instrução terra-a-terra, que nãoservia para elevar o espírito e não possuía ideal. Não aceitava que oensino fosse meramente voltado à formação de trabalhadores para a in-dústria e visasse apenas o ganha-pão imediato, fosse reduzido a umaaptidão mecânica que apenas buscava um ofício, preparado em dosescomo se faz com uma receita de bolos ou com uma lista de compras. Ainstrução, tal como ele a desejava, teria que abrir os horizontes da cultu-ra, tocar a alma, falar ao coração, desanuviar o espírito, aperfeiçoar aíndole humana. Responsabilizava o espírito humano de rotina pelo qua-dro que a americanização industrial do ensino apresentava. Via na Fran-ça as bases desse espírito de rotina que influenciara os norte-america-nos. Mas, via também na França a possibilidade de escapar ao espírito

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de rotina. E acreditava ser a Alemanha a nação que reunia as melhorescondições para que se pudesse dar um salto de qualidade. Para ele, oindustrialismo norte-americano fora uma tentativa de fugir ao espíritode rotina que exagerara na dose.

Essa reação ao espírito de rotina se dera por uma outra razão queSílvio Romero também abominava. O apego à tradição e a velhos hábi-tos que faziam perdurar um falso humanismo, palavroso e fútil, circuns-crito ao que ironicamente ele chamava de “gramatiquices sovadas” e“ratorismos mofentos”, base que gerara toda essa reação industrialistado ensino. Daí se começou a confundir ciência com ofício. Nas suaspalavras: “espírito científico com espírito de ganância”, educação comreceituários para a memória. O classicismo inútil e envelhecido foratrocado por uma americanização que, por sua ótica, estreitava o hori-zonte cultural. Romero reclamava contra ambas as posições e invocavasempre, para dar força aos seus argumentos, a autoridade pedagógica ecientífica de Du Bois-Reymond, ex-reitor da Universidade de Berlim,àquela ocasião uma instituição científica já bem reconhecida interna-cionalmente e, coincidentemente, o modelo no qual se espelhavam al-gumas universidades americanas.

Sílvio Romero fazia a defesa daquilo que a pedagogia socialista doséculo XX chamaria de escola unitária, capaz de formar o homem emtodos os sentidos. O pensador Du Bois-Reymond inspirava SílvioRomero nas afirmações de que uma mesma e única escola deveria sercapaz de formar o homem em todos os sentidos. O pensador alemãotinha, no seu tempo, a clareza de afirmar que uma mesma e única escoladeveria ser capaz de preparar os que iriam entrar na universidade, noexército, nas academias industriais ou nas academias de arquitetura. ParaRomero, o professor berlinense tocava fundo na ferida, quando diag-nosticava que a “mania industrial trouxe a moléstia da especialização[...], e os grandes horizontes da especulação generalizada apertaram-see com eles se incrustaram também os altos vôos das pesquisas desinte-ressadas” (Romero, 1901, p. 165). Esse seria o principal problema afazer com que houvesse em países como o Brasil um clima de guerra àsprofissões diplomadas, uma equiparação do ensino à indústria e ao co-mércio e uma exacerbação do liberalismo que Romero condenava.

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Uma liberdade de ensino como entendida por Sílvio Romero teriaque receber o acompanhamento permanente do Estado. Mais de 50 anosdepois, Anísio Teixeira lutou em defesa do que chamava de “exame deEstado”. O tema dos exames de Estado aparecia em Sílvio Romero como rótulo de “exame integral”, ao qual todos deveriam estar obrigados.Nenhuma reforma séria da educação brasileira poderia ser feita – diziaRomero – sem que se adotasse o exame integral. A implantação dessesexames requereria uma outra atitude que o nosso autor também defen-dia: o abandono dos pomposos e intermináveis programas que, segundoele, não saíam do papel e só serviam para iludir os incautos.

A discussão de Sílvio Romero a respeito do ensino público no Bra-sil o levava a debater a maneira como a influência de outras culturas sefazia presente entre nós. A mais fundamental de todas as influências era,sem dúvida, a prussiana. Ele localizava no governo de Frederico o mo-mento em que a instrução pública passara a ter um papel primordialpara os germânicos. Dizia que a qualidade da educação daquela socie-dade foi fundamental para que se fizesse o seu reerguimento depois doesmagamento imposto pelos exércitos franceses em 1806. A instruçãopública é que teria sido o grande instrumento para que os alemães acu-mulassem as vitórias necessárias até chegarem a derrota total da Françaem Sedan.

A força que o ensino público ganhara no século XIX era vista comoresultante de um processo que destruíra a aristocracia e democratizara opoder econômico e político, da mesma maneira que distribuiu melhoros saberes e talentos. Não havia mais uma classe social determinada aproduzir grandes idéias, grandes doutrinas, grandes obras de arte – in-terpretava Sílvio Romero. “É o advento do quarto Estado, o domínio dademocracia pura, o reinado do proletariado em todo o mundo ocidental,desde os Montes Urais até as Campinas da Austrália, passando pelospíncaros dos Andes” (Romero, 1901, p. 156). O acesso do proletariadoao poder, tal como o via Sílvio Romero, era um caminho competente deluta pela vida no que ela tinha de mais doloroso – a miséria.

O Brasil não poderia permitir, pela perspectiva de Sílvio Romero,que trilhássemos o mesmo caminho que levou a França a implantar adualidade escolar. A única maneira de evitá-lo seria fazer com que o

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governo central entendesse as suas responsabilidades com o ensino pri-mário e se ocupasse dele como em todo o território nacional. O ensinoprimário seria assim a compensação que daria a todos os cidadãos umEstado brasileiro que os impedia de exercer a cidadania através do voto –e aí, ele criticava já o Estado republicano. O ensino primário seria, noseu entendimento, uma espécie de marca da modernidade que toda so-ciedade deveria ter como ponto de partida da sua organização econômi-ca, já que Romero considerava terríveis as exigências que o capital im-punha ao trabalho. Explicava que nas sociedades democráticas o governonão estava fundado na vontade de Deus, mas sim na decisão coletiva dopovo e que, por isso, a instrução pública adquiria o status de pré-requi-sito do exercício do governo. O fato de o ensino primário não envolverquestões que diziam respeito a doutrinas transcendentais, não ser fun-damentalmente um espaço no qual as crenças se punham chocadas, sermesmo elementar, fazia dele uma função pública geral que deveria serimposta, obrigatoriamente, a todos. Deveria ser igual para todos, poisnão tinha caráter técnico e muito menos especializador a ponto de re-querer diferenciações.

O fato de a União assumir o ensino primário em todo o país apre-sentava inúmeras vantagens, pelo raciocínio de Sílvio Romero. Umadelas dizia respeito ao fato de ser esse um meio que tornaria possívelretirá-lo dos interesses menores que normalmente são mesquinharias daaldeia, dando-lhe um tom nacional que se punha acima de todos os ou-tros. A escola primária seria um instrumento de consolidação do Esta-do-Nacional brasileiro, destinar-se-ia a ser o cimento a formar e unir ocaráter do povo, constituindo-se em privilégio na União. Estava claroque a sociedade moderna não poderia prescindir do ensino obrigatório.

A biblioteca e as notas de leitura

O estatuto científico que a biologia e a psicologia vinham oferecen-do à educação desde as últimas décadas do século XIX entusiasmou ointelectual aqui estudado. No seu acervo de 107 livros, 33 são dedica-dos a temas dessa natureza. O olhar educacional de Romero também

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estava embalado pela observação das práticas educacionais de outrospaíses e pelo ensino superior: existem dez livros a respeito de cada umdesses assuntos. São em número de oito os livros que se dedicam aestudar o ensino secundário; cinco estão voltados para a formação deprofessores; quatro para a educação cívica; idêntico número para as dis-cussões a respeito da pedagogia moderna; três sobre educação infantil;três a respeito do ensino primário; três enfocando disciplinares escola-res; dois sobre intelectuais da educação; dois a respeito da história daeducação; igual número abordando o ensino agrícola, o pragmatismo, oensino público, o ensino profissionalizante, a escola republicana e asrelações entre escola e democracia. Os outros livros, com um exemplarcada, discutem temas como as reformas da instrução pública, a educa-ção da mulher, as relações entre família e educação, os problemas dajuventude, avaliação e higienismo.

O trabalho mais antigo dentre os que integram o acervo de SílvioRomero foi publicado em 1802. Os mais recentes são dois livros adqui-ridos em 19148, ano da sua morte. Nesse intervalo de tempo que vai de1802 a 1914, o ano em relação ao qual existe a maior quantidade deregistros de livros publicados é o de 1911 – 13 trabalhos. No acervo,todavia há pelo menos uma ausência digna de registro. Trata-se do livrode Du Bois-Reymond, publicado em 1867 com o título L’enseignementau point de vie national, como já foi visto. O texto do intelectual alemãotomara como base uma conferência que este fizera com o título de “His-tória da civilização e da ciência”. Nele o autor brasileiro localizou osargumentos teóricos que esgrimiu no seu mais importante trabalho arespeito da educação, o já citado “Notas sobre o ensino público”.

Jackson da Silva Lima (1999, p. 152) catalogou algumas das mar-cas e anotações deixadas pelo leitor Sílvio Romero nos livros por elemanuseados. “Sílvio Romero tinha por hábito anteceder as suas anota-

8. Os dois livros adquiridos por Sílvio Romero em 1914 são os seguintes: Relaçãointellectuaes e moraes entre os Estados Unidos e as outras republicas da America,de Bard, e La instrucción pública primaria en la Republica Oriental del Urugay,da República Oriental del Uruguay,

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ções manuscritas com sinal de mais [+] ou de igualade [=], e com estrelaou asterisco [*], bem como de sublinhar trechos com traços (simples ouduplos) verticais nas margens da mancha tipográfica e horizontais naparte superior e no rodapé”. A partir dessas marcas é possível tomar oslivros da biblioteca de Sílvio Romero e resgatar alguns diálogos queeste manteve com os autores que leu, de modo a penetrar no seu univer-so mental, expresso sob a forma das idéias que deixou escritas e dasobservações, concordância, discordância e críticas que estão à margemdos livros que leu. Os vestígios deixados por aquele leitor são reveladoresde como ele incorporou o pensamento de outros intelectuais contempo-râneos e antecedentes seus, penetrando na gênese das sua mentalidade,na sua forma de trabalhar intelectualmente, no seu processo de leitura enas suas reflexões.

A leitura romeriana de William James é muito útil e fértil, revelado-ra dos modos como o pragmatismo norte-americano estava sendo apro-priado por um dos mais importantes dentre os intelectuais brasileiros doinício do século XX. Sobre James, Romero fez apenas uma rápida refe-rência “em ‘Questões e Problemas’, prefácio datado de outubro de 1912,para o livro Novos e Velhos, de Tito Lívio de Castro, publicado no anoseguinte” (Lima, 1999, p. 153). No texto, Sílvio diz que “o própriodogmatismo intelectualista recebeu fortes repulsas das mãos de umH. Poincaré, um Mach, um W. James, um Bergson” (idem, ibidem). Ojá citado Jackson da Silva Lima aponta ter sido William James o últimoautor lido por Romero, e como não deixou nenhum trabalho específicosobre ele, por certo, a única possibilidade de apreender o modo atravésdo qual o pensamento do norte-americano foi incorporado e o juizo crí-tico que o brasileiro fez dele são as notas e marcas de leitura.

Dos dois livros escritos por William James que integram a bibliote-ca de Sílvio Romero, foi possível descobrir que um deles9 foi presentea-do por Carlos Fróes em dezembro de 1910, fato que está registrado emdedicatória inscrita no próprio livro. O significado da verdade, numa

9. A edição francesa de 1910 do livro Filosofia da Experiência.

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edição em francês publicada no ano de 1913 é a outra obra de James quepertenceu a Romero. O primeiro trabalho é rico em anotações. Nesteartigo estão registradas apenas algumas delas. Na folha em branco ini-cial do livro, o intelectual brasileiro fez as seguintes anotações:

Tem: *Psicologia, *Filosofia da experiência, *Pragmatismo, *Variedades da

Experiência religiosa, *Vontade de crer, *A significação da Verdade.

As idéias energéticas de Mach, [autor não identificado] e Le Bom desnortei-

am. As de Poincaré ainda mais. Mas as de W. James e Bergson levam-nos ao

cúmulo da desordem. Faz-se mister muita calma e m[u]ito raciocínio p[ar]a

tomar posição em tal batalha.

No final do livro, também na folha em branco, pode ser lido:

Este pragmatismo tem de boa a crítica ao intelectualismo puro; e mais o

valor da prática e da ação p[ar]a a origem da razão e das idéias. Desnorteia

sobre o Absoluto, sobre um Deus finito, sobre o pluralismo exagerado que

compromete a unidade [frase riscada], na crítica sem razão ao monismo como

síntese superior idealista. É bom quando mostra a riqueza do instinto, do

sentimento, da imaginação, etc.

Acho-o melhor na exposição do Rey e do Bérgson.

Este autor argumenta como se todos os intelectualistas fossem monistas, e

sectários da filosofia do Absoluto ao jeito de Hegel.

Pluralismo e monismo,

Intelectualismo e pragmatismo ou Filosofia da ação,

Absolutismo,

O monismo pode se conciliar com o pluralismo: monismo na base, no ponto

de partida, monismo no viver e no evoluir; pluralismo, nos resultados, na

força e na consciência peculiar adquirida. Tenho isto no mono-duo, e mono-

plural.

Quanto ao Significado da verdade, são poucas as anotações feitaspor Sílvio Romero que, ao que parece, não dispôs de saúde e tempo devida suficiente para esgotá-lo. Há apenas duas breves anotações. A mais

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importante à página III: “A verdade não é senão a afirmação do seratravés de idéias, assim como o bem é a afirmação do ser na ordem dosfatos”.

Considerações finais

Há muito a dizer a respeito das notas deixadas por Sílvio Romeronos livros da sua biblioteca. Os dois textos de William James são objetode análises ainda em processo e que serão publicadas em um outro arti-go. Mas as notas são ricas e numerosas. É possível, através das leiturasfeitas por esse autor, compreender muito do processo no qual se prepara-va um dos mais importantes dentre os vários pontos de inflexão realiza-dos pela educação brasileira – a incorporação do discurso que toma abiologia, a psicologia e, mais tarde, a sociologia como fundamentos cien-tíficos da educação e que, de resto, embala, no caso brasileiro o discursoa respeito da pedagogia moderna e, mais tarde, da Escola Nova, a respei-to das reformas do ensino e, particularmente, da instrução pública.

As leituras que Romero, nos últimos anos de sua vida, fazia dostextos de William James eram indicadoras de mudanças na sua pedago-gia. Com James, Romero buscava os fundamentos da compreensão queesboçara ainda nas suas “Notas sobre o ensino público” de que seriapossível atribuir à educação o desenvolvimento dos norte-americanos,suíços, dinamarqueses e ingleses. Nas “Notas sobre o ensino público”ele já havia assinalado que todos esses eram povos protestantes e atri-buía ao protestantismo parte desse êxito, tal como continuariam a fazê-lo mais de meio século depois as interpretações de Anísio Teixeira eFernando de Azevedo em face do pragmatismo norte-americano.

O novo olhar de Sílvio Romero ganha maior importância, principal-mente quando se considera que este autor havia abominado o industria-lismo americanizado e afirmara que essa tendência já fizera grandes es-tragos na Europa, principalmente na França, porque levada às últimascircunstâncias. Esse industrialismo teria levado a França ao dualismoescolar, que Sílvio Romero rejeitava. Criticava o fato de terem sido cria-das na Europa escolas primárias que se destinavam aos candidatos a car-

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reiras industriais e outras que iriam servir aos que desejavam a carreiraliterária. Fenômeno que também foi verificado no ensino secundário.

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Endereço para correspondênciaJorge Carvalho do Nascimento

Avenida Deputado Sílvio Teixeira, 990

apto. 901

Bairro Jardins

Aracaju - SE

CEP 49025-100

[email protected]

Recebido em: 28 mar. 2006Aprovado em: 30 maio 2006

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Um estudo sobre a culturaescolar no Rio de Janeiro dos

anos de 1930 pelas lições de história

Miriam Chaves*

Resumo:Este texto tem como objetivo ressaltar de que maneira as lições de história em umaescola experimental do antigo Distrito Federal nos anos de 1930 contribuem para afermentação de certos saberes e práticas culturais que procuram modelar um tipo decidadão idealizado não apenas pela escola, mas pela nação que, naquele momento histó-rico, ansiava por modernizar-se. Em primeiro lugar salienta a importância dos estudosculturais para as pesquisas em história da educação para, em seguida, mostrar como ahistória surge enquanto matéria escolar no Brasil. Por último, é explicitado o modo peloqual o ensino de história se desenvolve na Escola Argentina, tendo como objetivo disse-minar certos conhecimentos, comportamentos e qualidades que transformaram o pró-prio cotidiano da escola.ANOS DE 1930; ESCOLA ARGENTINA; CULTURA ESCOLAR; INOVAÇÕESMETODOLÓGICAS; ENSINO DE HISTÓRIA.

* Doutora em educação brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio deJaneiro (PUC-RJ); professora da Faculdade de Educação da Universidade Federaldo Rio de Janeiro (UFRJ).

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A study about the schooling culturein the Federal District of the 30’sthrough the teaching of History

Miriam Chaves*

Resumo:This article will discuss how the teaching of history in as experiential school in theFederal District of the 30’s contributed to the production of school knowledge and teachingpractices that shaped an ideal citizen, not only in the view of the school but also of theBrazilian nation which aspired to modernization at that historical moment. Firstly thisarticle highlights the importance of cultural studies for the investigation of history ofeducation. Then, it shows the emergence of history as a discipline in mainstream educationin Brazil. Lastly, it makes clear how the teaching of this discipline evolves at EscolaArgentina serving the purpose of disseminating the knowledge, behaviour patterns andcertain qualities that shaped the school day-by-day.THE 30’S; ARGENTINA SCHOOL; SCHOOL CULTURE; METHODOLOGICALINNOVATIONS; TEACHING OF HISTORY

* Doutora em educação brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio deJaneiro (PUC-RJ); professora da Faculdade de Educação da Universidade Federaldo Rio de Janeiro (UFRJ).

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um estudo sobre a cultura escolar no rio de janeiro dos anos de 1930... 73

Estudos sobre a história das disciplinas escolares pressupõem umdebate acerca dos saberes e das práticas escolares na medida em que suacondição de existência se encontra ligada não apenas às suas ciências dereferência, mas também à cultura escolar que se constitui de conheci-mentos, comportamentos e valores (Pessanha, Daniel & Menegazzo,2004). Envolvem, nesse caso, uma discussão sobre aquilo que lhe éinterno e externo, ou melhor, seus saberes de base e ao que se refere àsforças e aos interesses sociais e políticos em jogo no âmbito da cultura,desfazendo-se a idéia de que seriam algo desencarnado, neutro e inde-pendente. Pelo contrário, seriam produtos das mais variadas disputastravadas no interior da sociedade e da própria escola que, em cada mo-mento histórico, expressariam o que é valorizado e desvalorizado polí-tico, social, cultural e cientificamente (Forquin, 1992).

Este texto, parte ampliada de minha tese de doutorado1, tem comofoco central este tema: uma reflexão a respeito do ensino de história nasprimeiras séries do ensino primário da Escola Argentina2, uma das cin-

1. A escola anisiana dos anos 30: fragmentos de uma experiência – A trajetória daEscola Argentina no antigo Distrito Federal (1931-1935), defendida na PUC-RJ,no ano de 2001.

2. A Escola Argentina é fundada em 1924 por Carneiro Leão no antigo Distrito Fede-ral. Compõe um grupo de escolas primárias que tinha como objetivo homenagearos países do continente americano. Em 1929, na gestão de Fernando de Azevedo,ao mudar-se para um prédio neocolonial no Engenho Novo, recebe instalaçõescondignas, abrigando um pátio para educação física, sala para atendimento médi-co, biblioteca, duas oficinas e 16 salas de aula. Durante a administração de AnísioTeixeira, transforma-se em uma escola modelo na cidade, aprofundando a reformapedagógica iniciada anteriormente: adota o sistema Platoon (rodízio dos alunosentre as salas de aula) e torna-se experimental em 1932 e, em 1935, transfere-separa um prédio moderno e arrojado em Vila Isabel. Nesse novo endereço passa ater ginásio, auditório, 25 salas que se dividiam em duas bibliotecas, 12 salas deaula comuns, salas específicas para o ensino da história, geografia, desenho, artesindustriais e ciências (com dependência para um viveiro). Prevista para matriculardois mil alunos, na tentativa de resolver o problema da falta de vagas, transforma-se em uma das maiores escolas da cidade. Com a saída de Anísio Teixeira da Secre-taria de Administração Educacional, a escola vai perdendo a sua marca – ser expe-rimental e fomentar novos métodos de ensino – e passa a ser um estabelecimentoescolar como tantos outros da cidade. Nos dias de hoje a escola pertence à redemunicipal de ensino do Rio de Janeiro e continua no mesmo endereço.

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74 revista brasileira de história da educação n° 11 jan./jun. 2006

co escolas experimentais3 criadas por Anísio Teixeira no antigo DistritoFederal na primeira metade dos anos de 1930, visando compreender deque maneira as suas lições contribuíram para a produção de determina-das práticas e saberes que tinham como preocupação modelar um tipode cidadão idealizado não apenas pela escola, mas pela própria nação.

Dividido em três partes, enquanto na primeira são feitas algumasconsiderações acerca desse novo campo de pesquisa em que se insere ahistória das disciplinas escolares, na segunda é mostrado como a histó-ria surge enquanto matéria escolar no Brasil e em que medida as inova-ções curriculares e metodológicas em curso influenciaram o seu próprioensino, modernizando-o e o transformando em algo mais ativo e menosenraizado na memória. Na última parte é apresentado o quê e como erao ensino de história na Escola Argentina para assim poder explicitar-sequais eram os procedimentos metodológicos e os conhecimentos, com-portamentos e qualidades por ela valorizados4.

A história da educação escolar: uma históriarenovada da educação

O crescimento das pesquisas sobre a história das disciplinas esco-lares remonta aos anos de 1970 e de 1980, quando se percebe que aescola não é apenas uma instituição que reproduz as desigualdades so-ciais, mas também um lugar de produção de saberes e práticas sociais eculturais (Munakata, Warde & Carvalho, 2001; Veiga, Gouvêa & FariaFilho, 2001; Julia, 2001; Faria Filho, 2002; Bittencourt, 2003; Fonseca,2003; Faria Filho et al., 2004; Souza, 2005).

A análise sociológica estruturalista que definia a escola a partir deseus condicionantes externos vai aos poucos ser substituída por um novo

3. As demais escolas experimentais são: Bárbara Ottoni, México, Estados Unidos eManuel Bonfim.

4. As informações contidas neste item foram obtidas nos 15 exemplares da RevistaEscola Argentina, encontrados na escola. Editada por alunos e professores de 1929até 1935, expressa o que se passava no seu interior nos idos de 1930.

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olhar que procura entre outros aspectos privilegiar o próprio ambienteescolar. Se antes a historiografia produzida pela história da educaçãoconstituía-se de estudos no âmbito das políticas educacionais e do pen-samento pedagógico, com a reconversão desse olhar passa a interessar-se mais pelo trabalho escolar que é desenvolvido no interior das salas deaula.

Nesse sentido, as disciplinas escolares, em um primeiro momento,submetidas às análises tradicionais que se restringiam às instâncias maislegais da escolarização, eram basicamente definidas segundo os seuscomponentes curriculares formais, impossibilitando que outros recortesteóricos sobre esse mesmo tema fossem considerados. E, por conse-guinte, as fontes também permaneciam limitadas a uma perspectiva maisformal, reduzindo a própria interpretação que se poderia ter acerca daescola.

Será, entretanto, por intermédio da história cultural que as discipli-nas escolares deixam de ser compreendidas apenas segundo a sua cons-tituição formal e passam a ser vistas a partir de suas condições de produ-ção desenvolvidas no interior da escola. Ou melhor, pela história culturalos pesquisadores na área da história da educação começam a entenderas disciplinas escolares do ponto de vista sociocultural, o que implicaanalisar as práticas escolares enquanto práticas culturais.

Constitui-se uma nova historiografia que muitos historiadores de-nominam de a história da educação escolar que procurará dar conta deuma série de questionamentos ainda não respondidos pelas análises clás-sicas sobre a escola.

As pesquisas começam a interessar-se pelos tempos e espaços es-colares, pelas práticas de leitura e escrita, pelos impressos pedagógicos,pela arquitetura, os materiais e os objetos escolares. E os estudos sobreas disciplinas escolares se concentrarão nas formas com que a culturainterfere na definição dos conteúdos a serem ensinados, nos seus méto-dos e, ainda, nas múltiplas formas pelas quais os conhecimentos escola-res seriam apropriados e internalizados pelos alunos sob a forma dehabitus intelectual e/ou cultural (Bourdieu, 1989).

Por essa ótica, a cultura escolar emerge como um dos objetos privi-legiados e a escola, interpretada a partir de seu cotidiano, transforma-se

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em um espaço vivo e dinâmico, mas ainda muito pouco explorado (Fa-ria Filho et al., 2004).

Esta é justamente a função dessa história da educação escolar: abrira “caixa-preta” da sala de aula e buscar compreender o que acontece noseu interior. Ou ainda, identificar um outro núcleo duro nos estudossobre a escola que não sejam mais aqueles que se fundam exclusiva-mente nos mecanismos de seleção e exclusão social praticados pela es-cola (Julia, 2001).

No entanto, se conhecer o que ocorre no interior da escola implicaa construção de uma outra história da educação, também exige que sedeixe de lado as fontes oficiais ou tradicionais e se vá à procura, nemsempre fácil, daqueles documentos que são produzidos pelos própriosprofessores e alunos, tais como cadernos escolares, anotações de aula,relatórios de classe e jornais escolares, por exemplo.

Mas, enfim, este seria um dos desafios dessa história renovada daeducação: uma busca incessante por um tipo de fonte que trouxesse àtona as práticas culturais produzidas no interior da escola.

Portanto, no âmbito desses estudos culturais, as pesquisas em tornoda história das disciplinas escolares despontam com bastante destaquena atualidade, inclusive, propondo-se a lidar com algumas interroga-ções formuladas por esse novo campo de investigação.

Enquanto uma delas se refere às várias acepções do termo culturaescolar (Faria Filho et al., 2004), a outra implica a relação que essamesma expressão estabelece com o currículo (Souza, 2005).

Entretanto, se a pluralidade de sentidos indica a força interpretativadaquele termo, mostrando que se trata de um caminho fértil a ser segui-do por esse campo da história da educação, as ligações entre culturaescolar e currículo revestem-se de uma maior complexidade (p. 76).

Os estudos sobre currículo, ao preocuparem-se com a seleção e trans-missão de conteúdos e com a maneira como são implementados emcontextos práticos, ligam-se, sem sombra de dúvidas, às questões relati-vas à cultura escolar. Principalmente no que se refere à história da esco-la primária, que, desde a sua origem, se vincula diretamente às práticasde governo, implicando reformas pedagógicas assim como inovaçõescurriculares.

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Além disso, essas ações da escola primária, ao se estabelecerem jun-to a uma abordagem científica tanto da educação quanto do que se deve-ria ensinar nas salas de aula, fomentam uma concepção político-pedagó-gica-curricular que, implementadas no interior da sala de aula, pressupõemainda mais a pertinência da relação entre cultura escolar e currículo.

Se mais uma vez fica clara a relação que existe entre cultura escolare currículo, também não se deve esquecer de salientar o vínculo queexiste entre a escola e a cidade (Faria Filho, 2005), principalmente noque se refere à Escola Argentina na primeira metade dos anos de 1930,uma vez que o seu projeto pedagógico, a sua grade curricular e a suaambiência cultural expressam os próprios comportamentos e valores quea urbe naquele momento deveria assimilar para inaugurar o seu estar namodernidade.

Uma outra interrogação que a história da educação escolar evocaatravés da sua relação com o currículo refere-se à polêmica em torno dadefinição do que seja uma disciplina/matéria escolar, posto que o co-nhecimento que dela emana se encontra intrinsecamente ligado tanto àssuas ciências-fonte quanto à própria cultura escolar a que ela se vincula.

O que se está querendo dizer é que essa definição determina o pa-pel que a cultura escolar e o próprio currículo desempenham na criaçãodo conhecimento escolar. Ou se considera-se as disciplinas escolaresenquanto entidades epistemológicas relativamente autônomas que se for-mariam no interior da própria cultura escolar ou se leva em conta oconceito de transposição didática que defende a idéia de que se precisa-ria evitar o distanciamento entre a produção científica e o que deve serensinado no sentido de que as ciências-fonte é que seriam a base daestruturação do conhecimento ensinado pelas disciplinas escolares(Bittencourt, 2003).

Por conseguinte, dependendo do tipo de opção teórica anterior, ha-veria diferentes concepções de escola, currículo, professor e aprendiza-gem, implicando uma noção do conhecimento escolar ora mais vincula-da à cultura escolar que o produz ora mais subordinada ao saber científicoao qual deveria a sua existência.

Essas diferentes escolhas ainda pressupõem entender a história dasdisciplinas ou como mera metodologia ou como parte integrante de um

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conjunto de saberes e práticas que se produzem em relação à própriacultura geral e à sociedade.

Conteúdos e métodos, nesse último caso, nem seriam analisadosseparadamente nem aqueles seriam considerados meras adaptações deum conhecimento produzido em um outro lugar que não a escola, ape-sar de se encontrarem intrinsecamente ligados a esses saberes elabora-dos fora do ambiente escolar (idem).

Nesse caso, as disciplinas escolares apenas tomariam forma a partirda idéia que se tem sobre as finalidades da escola, o tipo de aluno queem determinado momento histórico se está desejando formar e segundoa combinação desses mesmos aspectos com o próprio cotidiano escolarque os agentes envolvidos no processo de aprendizagem estão dispos-tos a forjar a partir de sua prática.

Essa discussão, entretanto, adquire aqui contornos bastante específi-cos na medida em que este texto toma como base a história das disciplinasno âmbito do ensino primário, que, por sua própria natureza, mantémuma frágil vinculação com as ciências de referência. Muito porque essesprimeiros anos de escolarização se referem mais a uma diversidade desaberes e práticas – “noções” científicas, normas de conduta moral, éticae cívica e habilidades motoras, físicas e artísticas – que devem ser apren-didas do que a um ensino que privilegia os estudos teóricos que se encon-tram ancorados em suas ciências de referência (Souza, 2005, p. 85).

De outro lado, o ensino primário, por encontrar-se historicamentepreso aos imperativos de didatização, dá margem para que conteúdo emétodo estejam quase sempre condicionados às exigências imperiosasda transposição didática, tornando ainda mais evidente não só a relaçãoentre cultura escolar e matérias escolares, mas também o papel da cultu-ra escolar na criação sui generis da própria escola (idem, ibidem).

Após essas considerações, conclui-se que a história da educaçãoescolar, principalmente no que se refere ao ensino primário, circunscre-ve-se no âmbito dos saberes e das práticas escolares que, ao definirem aescola segundo a sua ambiência cultural, posiciona a história das disci-plinas como um de seus focos privilegiados.

Conseqüentemente, essa reflexão sobre o ensino de história das pri-meiras séries do curso primário da Escola Argentina nos anos de 1930

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implica um entendimento de que as suas lições se realizavam com baseem uma organização curricular e de acordo com certas “noções” cientí-ficas que, mescladas por alguns comportamentos e valores escolares,produziam uma cultura escolar que implicava a formação de uma cida-dania que deveria expressar os próprios princípios nacionais da época.

Breve história da história ensinada no Brasil(subdivisões, reformas pedagógicas e métodos)

Apesar de o antigo ensino secundário ser o foco principal da bibli-ografia sobre a história do ensino de história, acredito que as suas con-siderações possam, neste trabalho sobre a mesma matéria na escola pri-mária, ser levadas em conta na medida em que nos seus primórdios,independente do nível de ensino, preocupava-se eminentemente em con-tribuir para a formação da nação.

A história transforma-se em matéria escolar, com objetivos, con-teúdos selecionados, métodos próprios e saberes ancorados na produ-ção científica ainda no século XVIII, quando o Império inicia o proces-so de organização do ensino com a intenção de pôr fim em sua diversidadesocial, cultural e étnica (Fonseca, 2003).

Em virtude das disputas entre o pensamento liberal e conservadorou entre o Estado e a Igreja católica, por exemplo, a história ensinadaincluía em seu currículo três subdivisões: a história sagrada, a históriauniversal e a história pátria. Seus conteúdos, atravessados pelos valoresda doutrina católica ou pelos fatos notáveis da história do Império, quemuito oportunamente se mesclavam, tinham o propósito de formar mo-ralmente crianças e jovens com o intuito de contribuir com o processocivilizador instituído pelas elites governantes que buscavam o controlesocial e político do vasto território imperial.

Por esse ponto de vista, a história ensinada procura cada vez maisintensamente moldar o indivíduo à vida civil, que se amplia à medidaque o pensamento liberal ganha força no interior do Estado, que, aoimpor-se a tarefa de civilizar a população, se investe de uma função

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pedagógica que tinha como alvo enquadrá-la cada vez mais rapidamen-te às novas exigências sociais.

O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), com o obje-tivo de elaborar uma história nacional que contribuísse para a fabrica-ção da identidade nacional, e o Colégio Pedro II, ambos fundados em1838, criam as condições para a organização e sistematização de umahistória ensinada que, com forte influência francesa, se baseia em umahistória eminentemente política e nacionalista, que exalta a colonizaçãoportuguesa e a ação missionária religiosa (Martins, 2002).

Nesse período, enquanto disciplina, a história sofre inúmeras mo-dificações, alterando a distribuição de seus conteúdos pelas séries, prin-cipalmente no que se refere ao ensino secundário. E se antes as subdivi-sões entre história antiga, medieval, moderna e contemporâneacompunham a história geral, no final dos oitocentos esta passa a serdenominada de história universal (Fonseca, 2003).

Já durante a segunda metade do século XIX, com as discussões emtorno da constituição de uma educação popular visando à ampliação doensino, a história torna-se uma matéria crucial para o curso primário.

Exemplo dessa nova postura pode ser notada pelo parecer de RuiBarbosa acerca da reforma do ensino primário em 1883. Dela, o autorressalta a necessidade da difusão dos conhecimentos úteis de naturezatanto social quanto moral e cívica, comprovando-se desde já a impor-tância dos conteúdos da história para a concretização desse intento.Aponta para a necessidade de a escola distanciar-se do ensino verbalistae repetitivo das escolas das primeiras letras do Império por meio daadoção do método intuitivo que buscava valorizar os sentidos e a obser-vação no processo de aprendizagem. Também chama a atenção para ofato de que a história a ser ensinada na escola primária haveria de ser ahistória local, tendo a pátria como tema central e que o conhecimento darealidade social ainda deveria ser apreendido por meio da história dosalunos, levando a surpreender-nos com a própria contemporaneidadedessa proposta (Souza, 2000).

Com o advento da República, entretanto, alarga-se ainda mais odebate sobre os temas educacionais: os livros e manuais didáticos, osmétodos de ensino, os programas, a inclusão de novas disciplinas tor-

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nam-se assuntos candentes; o ensino passa a ser cada vez mais determi-nado pelas reformas pedagógicas; as preocupações em relação ao cursoprimário ganham força conforme o Estado republicano avança na reali-zação de seu projeto nacional e as lições de história, cada vez mais,organizam-se objetivando contribuir para a formação desse mesmo pro-jeto nacional por meio de um ensino que despertasse em seus alunos acriação de um “espírito de povo” (Fonseca, 2003).

Já nos anos de 1920 e de 1930, serão as reformas pedagógicas quedeterminarão as regras do ensino que, a partir daí, terá uma históriaensinada mais regular e sistemática. As preocupações em torno da cen-tralização política e da necessidade da formação de um projeto nacionalrepublicano encontram no ensino dessa matéria um aliado incontestá-vel, já que pressupunha a internalização em forma de habitus (Bourdieu,1989) de certos comportamentos e atitudes valorizados pela própria naçãonaquele momento histórico.

Pela Reforma Francisco Campos, de 1931, o ensino passa a serelaborado de maneira unificada e a definição tanto dos programas quan-to das instruções metodológicas tornam-se competência exclusiva dorecém-criado Ministério da Educação e Saúde Pública, que, ao retirarda escola essa atribuição, prioriza uma educação mais pautada pelosinteresses nacionais do que regionais, como o era anteriormente. Osconteúdos de história, nesse sentido, reforçam esse novo modelo nacio-nal, que, por sua vez, é transmitido nas salas de aula por meio de trêspilares: unidade étnica, cultural e administrativa (Abud, 1998).

Essa mesma reforma ainda transforma o ensino de história em uminstrumento central de educação política e com a criação da cadeira dehistória da civilização, rompe-se com a divisão anterior entre históriauniversal e história do Brasil, alterando principalmente o seu ensino nocurso secundário (Reznik, 1998).

Essa inovação, ao permitir o ensino simultâneo da história geral,história da América e história pátria, procura, em última instância, con-solidar o próprio princípio em que a reforma se encontra assentada: aidéia de unidade. Ou seja, o que essa lei buscava era inculcar não apenasa noção de unidade nacional, mas também a de que a civilização seconstitui de maneira uniforme, em direção a um eterno progredir.

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Apesar de essa mudança gerar uma série de protestos por acreditar-se que estaria havendo um certo descaso em relação ao ensino da histó-ria do brasil, o que de fato ocorre é

um descentramento em relação à História Nacional. A ênfase recai no desen-

volvimento histórico universal: a “evolução da humanidade”; o estudo si-

multâneo, devido à integração do Brasil no cenário internacional; enfim, deve-

se estudar a obra coletiva dos homens para melhor resolução dos problemas

da humanidade [idem, p. 74].

Portanto, essa inovação implica uma disputa que envolve não ape-nas duas proposições sobre o ensino da história, mas também um debateem torno do currículo, principalmente do curso secundário, mas que,sem sombra de dúvidas, respinga no ensino dessa mesma disciplina nocurso primário: enquanto os defensores da criação de uma história dacivilização enfatizam “o aspecto da evolução/progresso da humanida-de, tanto em seu aspecto material como intelectual e moral”, os queacreditavam ser necessário o ensino da história do Brasil valorizam “aslições decorrentes do ensino do passado nacional: a disciplina cumpriaum importante papel cívico, glorificando a Pátria desvendando suas ca-racterísticas vocacionais, fundamento para se pensar o porvir” (idem,p.78-79).

Além disso, a Reforma Francisco Campos para o ensino secundá-rio, ao inspirar-se em um “sincero desejo de promover uma radical re-novação dos métodos didáticos” (Hollanda, 1957, p. 15), conecta-se àsreformas estaduais desse mesmo período em curso em quase todas asgrandes cidades do país. Enfim, não apenas iniciam uma discussão emtorno da introdução dos estudos sociais no currículo do ensino primá-rio, em substituição à história e à geografia (PCN, 1997, p. 23), comotambém pressupõem que uma reflexão mais acurada sobre as questõeseducacionais só poderia ser encaminhada caso se levasse em considera-ção um método de ensino mais ativo que implicasse a instauração denovas relações de ensino-aprendizagem.

Os princípios da psicologia experimental são o fundamento dessasnovas idéias que ressaltam a importância da figura da criança durante as

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aulas que, nesse caso, se pautariam na mais variadas atividades para queela aprendesse não simplesmente ouvindo o que o professor teria paradizer, mas, prioritariamente, vendo e agindo sobre as situações escola-res a fim de que assim pudesse sentir-se co-autora de todo esse processode aprendizagem (Vidal, 2000). Ou seja, a criança só aprenderia casoobservasse e experimentasse o mundo escolar – a vida – que se encon-trava à sua volta. Precisaria interagir com o conhecimento/meio paraque, desse modo, construísse um pensamento lógico, disciplinado e ar-gumentativo.

Portanto, pautada pela racionalidade e pelo experimentalismo dastarefas, a reforma de Anísio Teixeira para o ensino primário do antigoDistrito Federal possibilita que o ensino de história, e principalmente oda Escola Argentina, que se torna experimental em sua administração,passe a ser pensado com base em uma série de atividades a fim de que ascrianças ligassem a sua própria experiência à experiência humana con-tida nas matérias e nos livros escolares. Somente assim a aprendizageme a matéria deixariam de ser isoladas, isto é, apartadas da vida e se im-pregnariam do sentido que lhes é próprio.

Conforme palavras do próprio Anísio Teixeira,

aprender não significa[ria] somente fixar na memória, nem dar expressão

verbal própria ao que se fixou na memória.

Desde que a escola e a vida não mais se distingam aprender importará sem-

pre em uma modificação da conduta humana, na aquisição de alguma coisa

que reaja sobre a vida e, de algum modo, lhe enriqueça e aperfeiçoe o sentido

[Teixeira, 1931].

O ensino de história, desse modo, ao não precisar mais ensinar tudoaquilo que a criança quando adulta não poderia deixar de ignorar, teria,a partir desse momento em diante, de lutar contra o “ensino verbalista,repetitivo e enraizado na memória e nas abstrações inúteis” (Souza,2000), sem deixar de ser intelectual para assim poder transformar-se emuma prática mais ativa ou de trabalho, ou seja, um ensino em que seaprende vendo e fazendo, observando e experimentando as inúmerasatividades propostas (Chaves, 2001).

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Nessa perspectiva, está implícito que as novas relações de ensinonão se deveriam restringir às salas de aula, mas serem ampliadas paraoutros espaços de aprendizagem a fim de que os novos procedimentosdidáticos atingissem o seu objetivo: tornar o ensino e, nesse caso, o dehistória, algo que estivesse mais ligado à vida do aluno para que a esco-la pudesse transformar-se em uma verdadeira casa de educação, comoassim idealizara Anísio Teixeira.

Através dessas considerações é possível perceber quais seriam asbases para a implementação de uma história ensinada mais moderna,isto é, mais condizente com as novas exigências metodológicas e maisde acordo com o que se entendia por conhecimentos históricos naqueledeterminado momento.

Resta agora analisar que tipo de ensino de história era implementadona Escola Argentina nos anos de 1930, objetivando explicitar os senti-dos de suas lições e sua relação com alguns aspectos da cultura escolar.

As lições de história da Escola Argentina

Cabe destacar que a Escola Argentina, enquanto uma escola expe-rimental da administração de Anísio Teixeira no Departamento de Edu-cação do antigo Distrito Federal, nos anos de 1930, assimila as propos-tas anteriormente descritas. Institui como meta a aplicação de novosprogramas que incluem mais do que o programa convencional das esco-las tradicionais e as aulas ainda passam a ser dadas a partir de atividadesou projetos (Teixeira, 1997, p. 173). Adota novos métodos de ensino,amplia a participação de seus alunos e seu ensino de história torna-semenos repetitivo e monótono e mais ativo e condizente com as novasexigências pedagógicas.

Nessa perspectiva, sua história ensinada mescla-se a sua culturaescolar produzindo saberes e práticas, moldando os comportamentos eatitudes de seus alunos. Ou seja, se “as disciplinas escolares intervêmna história cultural da sociedade, preparando a aculturação dos alunosem conformidade com certas finalidades, sendo isto que explica suagênese e constitui sua razão social” (Chervel, 1990, p. 220), o ensino de

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história da escola, nos anos de 1930, possibilita que esta se constituaenquanto um espaço civilizador que dissemina o ethos de uma novasociedade urbana e industrial que floresce junto com um movimento demodernização nacional.

Portanto, o artigo sobre o Dia do Trabalho, escrito por Jurema Soutoda Silva, do 5º ano, publicado na edição de maio/jun. de 1932 da Revis-ta Escola Argentina, mostra como essa cultura é fermentada. Apontapara a existência de um novo personagem na história brasileira – o ope-rário –, que representaria os novos valores de uma nação que, ao iniciaro seu processo de industrialização, cada vez mais desejava distanciar-sede um tipo de sociedade que se caracterizava pela mão-de-obra escrava,pela monocultura e pelo latifúndio.

Por meio de uma homenagem aos trabalhadores brasileiros, a auto-ra exalta a importância do trabalho operário para o crescimento do paíse ainda por intermédio de uma perspectiva funcionalista defende que adivisão social do trabalho deveria ser regida pelo princípio da harmoniae da cooperação entre os grupos sociais:

Festejar o trabalho é a mais bela homenagem que se pode prestar ao operário,

pois seu esforço muito concorre para o engrandecimento da nação.

Tudo quanto o operário ganha provem do seu esforço e do seu trabalho.

Que seriam dos engenheiros, das fábricas, das nações, se não houvesse esses

humildes artífices sempre prontos a executar, a tornar em realidade os so-

nhos e as idéias?

É grande número de operários analfabetos; entretanto, está bem diminuído

agora, depois que se abriram as escolas noturnas, para os que têm horas do

dia tomadas pelo trabalho.

Há no Brasil muitas fábricas, porém ainda são necessárias mais, talvez o

decuplo das existentes. A grandeza de um país muito depende do número de

operários.

Devemos pois, tratá-los com muito carinho.

Todo trabalho honesto é virtuoso.

Essas idéias ainda revelam uma preocupação em educar o alunopara que se solidarizasse com os mais necessitados pelo respeito aos

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mais trabalhadores, mais pobres, mais velhos, mais sofridos e mais do-entes etc.

Essa é inclusive uma lição de nacionalismo, conforme o título doartigo “Trabalhando em prol da nacionalidade” escrita por HumbertinaPereira na edição de maio/jun. de 1932 que, ao relatar o quanto a visitaà Pró-Matre transforma a sua vida e a de suas colegas, mostra comoaquele sentimento pátrio ligava-se à idéia de compaixão, assistencialis-mo e caridade:

Durante o ano de 1931 nós, alunas da Escola Argentina, aproveitamos para

costurar para as criancinhas da Pró-Matre...Foi uma obra caridosa... suavizar

a vida dos pobres é sempre um ato nobre.

Que alegria teriam sentido as mães pobres ao receber as peças de roupa tra-

balhadas com tanto cuidado pelas devotadas alunas da Escola Argentina.

Uma outra maneira de despertar aqueles sentimentos ocorre pormeio da dramatização de fatos históricos que freqüentemente é estimu-lada pelas aulas de auditório5. A libertação dos escravos, por exemplo, éteatralizada para comover os alunos, que deveriam, pelo ato da “bondo-sa” princesa Isabel, passar a sentir esse mesmo tipo de sentimento pelosmais humildes e sofridos:

No dia 13 de maio D. Flora fez uma dramatização no auditório.

Chamou Déa Pereira para ser a princesa Isabel e o Edgard para ser D. Pedro

II.

D. Pedro II era o pai da princesa Isabel.

D. Flora dividiu a turma em duas porções: de um lado ficaram os portugue-

ses e do outro ficaram os escravos...

A princesa Isabel ficou com pena dos escravos. No dia 13 de maio de 1888

ela libertou os escravos.

Quando Déa libertou os cativos todos nós batemos palmas [maio/jun. de 1932].

5. A reforma de Anísio Teixeira amplia o currículo assim como os espaços de apren-dizagem da escola e tanto o auditório quanto a biblioteca passam a fazer parte dagrade curricular da escola por meio de aulas semanais.

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De outro lado, o nacionalismo também pressupõe amor à pátria,sentimento que é fortemente estimulado pela escola e que se materializapor meio do culto à bandeira, tema de inumaras redações publicadas aolongo de todos os números da revista. Aqui, porém, destacamos a daaluna do 3º ano, Oclidalina de Oliveira Barros, editada em set./out. de1932, que, inclusive, conclama todos os brasileiros a participarem so-cialmente de maneira harmônica, sem violência ou conflito (Nadai, 1992/1993):

Ó linda bandeira: orgulho dos brasileiros, e o espelho do nosso caro Brasil.

Tens lindas cores: verde, amarela, branco e azul. O verde representa as nos-

sas lindas florestas, o amarelo a grande quantidade de ouro do nosso país; o

azul a beleza do céu; e o branco indica a paz. E o Brasil deve viver tranqüilo

e feliz dentro do lema da nossa bandeira: Ordem e Progresso!

De acordo com essa lógica, a história do Brasil que se quer fixar noimaginário dos alunos é a de uma história nacional que se constrói semrupturas e traumas sociais. A ação benevolente da princesa Isabel, o atoheróico de Tiradentes e a postura passiva de dom Pedro II descritas aseguir confirmam essa versão da história do Brasil ensinada:

ESCRAVIDÃO

[...] Muito justo foi que a chamassem [...] a Redentora, pois, era uma alma

generosa e nobre que passou pelo Brasil, praticando sempre a caridade.

[...] Essa lei foi recebida alegremente por todos os brasileiros, que viam os

infelizes escravos livres do terrível cativeiro [Humbertina Pereira, 5ª série,

edição de maio/jun. de 1932].

TIRADENTES

Tiradentes veio para o Rio comprar munições e fazer propaganda da revolu-

ção, quando foi cruelmente traído por seu companheiro Silvério dos Reis que

desejando ser querido pelos portugueses e ganhar dinheiro e títulos, não guar-

dou segredo. Foram todos presos e condenados à morte, porém D. Maria I,

rainha de Portugal, comutou a pena para degredo perpétuo, exceto para

Tiradentes, que subiu ao patíbulo no dia 21 de abril de 1792 com grande

sangue frio e coragem. Devemos pois, prestar muitas homenagens a este

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grande herói, que deu a vida pela Independência de sua Pátria [Nedyr Galvão,

5º ano, maio/jun. de 1932].

15 DE NOVEMBRO

[...] O magnânimo imperador D. Pedro II foi, com sua família, para a Europa.

E sem lutas, sem guerras, começou a nossa República [...] [Dayse Guima-

rães, 4º ano, nov./dez. de 1932].

As soluções apaziguadoras dão o tom dessa história ensinada. Mos-tram que nossas lutas e insurreições não romperam com o passado im-perial português, mas, pelo contrário, tiveram, muitas vezes, a solidarie-dade dos próprios lusitanos, de quem, contraditoriamente, se procuravalibertar.

Soma-se a essa perspectiva a forma etnocêntrica como os persona-gens brancos, negros e índios são descritos nos textos das lições. En-quanto os brancos são generosos como a princesa Isabel e magnânimoscomo dom Pedro II, também o são valentes e aventureiros como osbandeirantes. Em contrapartida, se os negros africanos são trabalhado-res e humildes, os índios, por sua vez, são indolentes, mas ao mesmotempo guerreiros, por não terem aceitado a escravidão.

Portanto, muito se ensina sobre os personagens portugueses, poucosobre os escravos e quase nada sobre os índios, demonstrando que se oexemplo a ser seguido teria de vir dos colonizadores, os subjugados, aocontrário, deveriam apenas despertar ou compaixão, no caso dos ne-gros, ou certa desconfiança no que se referia aos índios, na medida emque seriam selvagens e ainda teriam uma cultura muito diferente danossa. Ou ainda, a interpretação histórica que prevalece é aquela emque mostra o colonizador português como o personagem principal danossa história (Nadai, 1992/1993; Reznik, 1998; Abud, 1998):

ENTRADAS E BANDEIRAS – EXPLORAÇÃO DO INTERIOR BRASI-

LEIRO

Já uma grande parte do interior do Brasil era conhecida e explorada, graças

às bandeiras. Assim se chamava às expedições de muitos homens valentes e

aventureiros, que se empenharam na descoberta de minerais, riquezas imen-

sas que suspeitaram existir no país.

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um estudo sobre a cultura escolar no rio de janeiro dos anos de 1930... 89

As jornadas bandeirantes foram cheias de sobressaltos, sacrifícios e ativida-

de intensa. Perdiam-se eles pelas florestas, vivendo ali tempos e tempos,

alguns, devorados por feras ou mortos por índios. Outros sucumbiam de fe-

bres e males e os mais felizes regressavam, mas esgotados e doentes [4º ano,

jul./ago. de 1933].

A ESCRAVIDÃO

A princípio a escravidão visou o índio, mas este, indolente, guerreiro e com a

proteção dos jesuítas, não foi subjugado. Recaiu então a atenção sobre o

negro africano, trabalhador, humilde e sem defensores.

Vinham todos os escravos da África, em troca de miçangas, facões de aço e

quinquilharias. Eram transportados como fardos e amontoados no porão dos

navios [4º ano, set./out. de 1933].

PRIMITIVOS HABITANTES DO BRASIL – ÍNDIOS OU SILVÍCOLAS

Costumes: Além de tudo os índios eram indolentes e guerreiros valorosos. O

casamento era solenidade complicada. Os pretendentes antes de fazerem seus

pedidos, submetiam-se a provas cruéis e difíceis que demonstravam audácia

e valentia.

Os filhos ao nascerem eram logo mergulhados em água fria para serem for-

tes. Havia tribos que achatavam o nariz, deformavam a cabeça, etc.

Os prisioneiros de guerra geralmente eram comidos pelos vencedores. Algu-

mas tribos eram antropófagas (comiam carne humana e dos membros da fa-

mília, os parentes muito velhos...). Os tupis comiam os inimigos, geralmen-

te, por vingança. Os tapuias apreciavam imensamente a carne humana [2º

ano, set./out. de 1933, grifos do original].

O amor pelo continente americano e pelo Brasil também é um ou-tro valor estimulado. Os alunos são ensinados a exaltar seus heróis esuas terras, a colaborar com as causas humanitárias do continente e adesenvolver uma vida social e participativa que estimule a solidarieda-de e a cooperação entre os povos americanos.

A escola, dentro dessa perspectiva, incentiva um trabalho em tornodo pan-americanismo, divulgando os seus objetivos, estabelecendo con-tatos com escolas na Argentina e exaltando a paz em solo americano. Osalunos criam vários concursos de redação sobre a vida dos heróis latino-americanos, visitam e participam de exposições de trabalhos dos clubes

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pan-americanos, procuram sempre festejar as datas de libertação dessespaíses, nas quais, curiosamente, declamam em espanhol e, em 1935,criam o próprio Clube Pan-Americano da Escola.

Quanto ao solo portenho, as lições de história exaltam seus heróis,descrevendo-os de maneira romântica, como se fossem verdadeirossuper-homens, conforme redação do 5º ano, publicada na edição de jul./ago. de 1932:

O general D. José de San Martín, cujo físico belo, tinha a majestade dum

deus olímpico, possuía uma alma que foi corrente maravilhosa de esplendo-

res; heroísmo, bondade, altruísmo, sabedoria e abnegação! Foi o poder mag-

nético dessa alma, que dirigiu para a vitória final, o movimento argentino de

independência.

As aulas ainda ativam o sentimento de fraternidade em relação ànação Argentina, fazendo com que seus alunos desenvolvam uma es-treita relação com os seus habitantes por intermédio seja da Embaixadada Argentina seja do Clube Argentino, ambos localizados no antigo Dis-trito Federal.

Juan Albertotti, o presidente do clube citado, é quem personifica aligação dos alunos da Escola Argentina com a terra de San Martin. Coma incumbência de divulgar a cultura portenha na escola, presenteia osalunos com mapas, livros, jornais, bandeira e hinos argentinos, ensinaas danças típicas de seu país e, principalmente, facilita a correspondên-cia entre os alunos da escola com alunos argentinos.

Exemplar é o discurso da professora Else Machado, publicado nacoluna Página de Educação, em 15 de julho de 1933, por ocasião dafesta de comemoração da independência da nação argentina na escola.

Entusiasmada, clama para que os alunos da escola, guiados pelosvalores portenhos, desenvolvam o seu caráter, ou melhor, um tipo de ci-dadania que, de acordo com suas próprias palavras, deveria ser um fardopesado a ser conquistado: “Meninos! A nossa escola terá alcançado umafinalidade se esta reunião, inspirada no triunfo da Argentina, transformarnuma iluminura, para vocês, as asperezas do caminho de ser homem. E,ainda mais, o alvo predestinado de ser Super-Homem!” (grifo meu).

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A poesia Fraternidade, da professora Flora Nobre, escolhida parao concurso de declamação do clube literário em 1935, mostra como essetipo de sentimento é trabalhado pela escola:

América que eu amo! Oh! Pedaço do mundo

Que sempre exista em nós este orgulho profundo

De ter nascido em ti, de ter nascido forte.

Que sempre o teu ideal de Paz, Concórdia e União

Encontre o apoio amigo dos americanos,

Seja o teu solo livre, hospitaleiro e irmão

Um exemplo de amor aos déspotas tiranos.

Que te quebrem de vez, os marcos e as fronteiras

E o sol do Amor abra-se a seára em luz e pão

Pela Paz se troquem todas as bandeiras [...]

Quando surgir tal dia, América imortal

Há de ser para sempre um grande coração

A palpitar dentro da Pátria Universal!

Como demonstração de que as crianças aprendiam a lição de amor epaz desse poema, vale a pena reproduzir a redação Paz na escola, de Augustodos Santos, de doze anos, publicada na edição de jul./ago. de 1935:

A paz que reina por toda a nossa escola, quero eu que reine sempre. Nós, crian-

ças, não devemos brigar para que fique na escola a verdadeira paz. Os crescidos

não devem aproveitar dos pequeninos para provocá-los e dar-lhes pancada.

Desde criança é que nós aprendemos a viver sem guerra. E é na escola, prin-

cipalmente, para que haja paz com os colegas, não só com os da nossa turma,

como também com as das outras classes.

Habituando-nos a essa união com os nossos colegas, mais tarde saberemos

viver sem guerra. Nessas horríveis guerras é que vemos muitas famílias en-

lutadas, ficando ao desamparo.

Paz pela escola é o que queremos!

Quero que reine paz na nossa escola!

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Essas palavras mostram não apenas que é na escola que se tem essalição, mas principalmente que só se aprende a viver em paz praticando apaz desde criança nos mais variados espaços sociais. Demonstram oquanto às lições de história amalgamavam-se a cultura escolar da escolaque naquele momento transforma-se em uma verdadeira casa de educa-ção como assim idealizara Anísio Teixeira.

A poesia escrita pela aluna Maria de Lurdes Bruce, do 1º ano, reve-la esse espírito. Indica o quanto seus alunos internalizavam os seus va-lores, posto que sabiam que estudavam para se tornar os futuros traba-lhadores da nação:

A escola é uma oficina.

O livro, o papel, a pena, a tinta, são nossos instrumentos de trabalho.

Nós somos os pequeninos operários que haveremos de trabalhar pelo Brasil.

Por esse poema conclui-se que, pelo menos, um dos objetivos doexperimentalismo da escola fora alcançado: a aprendizagem tornava-semais ativa, não se restringindo às salas de aula convencionais que con-tinuavam, muitas vezes, com um ensino calcado na memória, e se es-praiava até a biblioteca e o auditório, que, de maneira lúdica edescontraída, procuravam ensinar a matéria de acordo com as novasmetodologias.

Distantes das salas de aula convencionais, esses novos espaços deaprendizagem juntos com as instituições escolares6 surgem como ver-dadeiras alternativas para tentar implementar os novos métodos de ensi-no que, de modo geral, continuavam a enfrentar a resistência dos pró-prios professores que tinham certa dificuldade em romper com a escolado passado.

A partir deles os alunos têm a oportunidade de praticar aquilo quelhes é ensinado pelas lições de história e, por ali desenvolverem ativa-mente conhecimentos, comportamentos e valores, conclui-se que a ma-

6. Definiam-se como organizações escolares dirigidas por alunos que, por meio deatividades práticas, complementariam o trabalho da sala de aula.

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um estudo sobre a cultura escolar no rio de janeiro dos anos de 1930... 93

téria se compunha não apenas dos seus conteúdos específicos, mas tam-bém do próprio caldo cultural produzido pela escola como um todo.

No artigo “Auditorium”, publicado em nov./dez. de 1932, vê-seconfirmada a função prática educativa dessas lições:

Os clubes são de grande valor educativo: social, moral, intelectual e físico.

Unificam as idéias da classe e despertam a vontade de saber para poder falar.

Os clubes, porém só devem funcionar nas turmas adiantadas [...]

O que se obtém com os clubes: o clube desperta o interesse pelo estudo;

estimula e facilita a expressão; vence a timidez; formam hábitos e atitudes

corretas; ensina a assumir a responsabilidade; socializa a escola; ensina a

trabalhar em cooperação.

Nota-se o quanto o ensino de história da escola tenta romper com oaquartelamento da sala de aula, objetivando a implantação de um ensi-no mais ativo e, conseqüentemente, a própria ampliação do sentido desuas lições.

Entretanto, os artigos da Revista Escola Argentina também deixamtransparecer aspectos mais conteudísticos desse ensino de história. Cha-mam a atenção para o fato de que essa maneira mais lúdica de ensinar amatéria que até agora foi mostrada coexiste com um ensino que priorizaa memorização de grandes quantidades de conteúdos que, na maioriadas vezes, são ensinados sem necessariamente se encontrarem ligados àvida dos próprios alunos.

A partir da edição de mar./abr. de 1933, quando a revista passa apublicar, sob o título de “As nossas lições”, os conteúdos de história, aafirmação anterior pode ser facilmente comprovada.

Conforme palavras de uma espécie de editorial, a referida sessão tra-ria “o resumo das aulas fornecido aos alunos pelas professoras especializa-das”. Teria por definição que servir de “guia dos conhecimentos ministra-dos nas classes”, implicando ainda a dispensa da compra de compêndios,já que os alunos poderiam adquirir a revista por um pequeno preço.

Após essa decisão, listas e mais listas de conteúdos são transcritasna revista. E se as páginas anteriores nos fazem pensar em uma espéciede história ensinada que parece ter vida, já que os alunos dramatizavam

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fatos históricos, participavam de concursos de redação e visitavam ou-tras escolas ou mesmo o centro do Rio antigo para aprenderem in locoalgum fato histórico, com a listagem dos conteúdos tem-se a impressãode que se ensinava uma história que também parecia sem alma e distan-te da realidade dos alunos.

Essa característica é evidenciada quando longos textos, cheios dedetalhes, são escritos em “As nossas lições”, tentando ensinar uma his-tória recheada de nomes, datas e fatos sem importância.

Exemplo desse tipo de história ensinada pode ser comprovada com oque é publicado na edição de set/out. de 1933 e que são aqui transcritos:

GRANDES INVENÇÕES – PÓLVORA

Admite-se hoje, que os chineses já a conheciam desde os primeiros séculos

da era cristã; porém, apenas se serviram dela para a fabricação de fogos de

artifício. É também opinião aceita que os árabes foram os primeiros a empregá-

la para lançar projéteis. Atribuem a descoberta da pólvora ao frade alemão

Bertholdo Shumartz; segundo outros, ao inglês Rogério Bacon. Conseqüên-

cias: o seu uso modificou o sistema de guerra, pelas novas e úteis aplicações

das armas de fogo [5º ano].

SEGUNDO IMPÉRIO

O governo ficou exercido por uma regência por ter D. Pedro II, 5 anos, de

idade. Nomeou-se uma regência interina e depois uma regência permanente.

Em 1835 foi eleito regente o padre ilustre Diogo Feijó. Durante esta regência

arrebentou a guerra dos Farrapos (Rio Grande do Sul), que durou 10 anos.

Foram criados por Feijó: a Guarda Nacional, o Código do Processo Criminal

e o Júri. Em 1837, por motivos políticos renunciou ao cargo, sucedendo-lhe

ao cargo o marquês de Olinda, Pedro Lima [4º ano].

HISTÓRICO GERAL DA CIDADE

Fundador: Estácio de Sá.

Data de fundação da cidade: 1567.

Primeiro governador da cidade: Salvador Correa de Sá. Fez um bom governo.

1710-1711: invasões francesas, Duclerc e Duguay Trouin.

1733 a 1763: foi a província governada por Gomes Freire de Andrade, o

conde de Bobadella, em cujo governo foi construído o Aqueduto de S. Teresa

e o convento do mesmo nome [2º ano].

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um estudo sobre a cultura escolar no rio de janeiro dos anos de 1930... 95

Por meio da coluna “As nossas lições” ainda é possível classificar oque era ensinado sobre história do Brasil e história universal nas quatroúltimas séries da escola7. Enquanto no 5º ano os conhecimentos sãorelativos à história universal, incluindo aí um pouco de história da Amé-rica, nas demais séries o conteúdo refere-se à história do Brasil.

A história universal ensinada no 5º ano diz respeito à pré-história(Idade da Pedra Lascada e Polida); Antigüidade (hebreus, egípcios,assírios, babilônios e fenícios); Antigüidade clássica (gregos e roma-nos); Idade Média (bárbaros e árabes e decadência do Feudalismo); Ida-de Moderna (Grandes Navegações, invenções, descobertas marítimas ehistória colonial da América); descobertas que contribuíram para o pro-gresso da humanidade e, por último, as maravilhas do mundo.

Os textos geralmente especificam a “religião”, “habitação”, “ali-mentação”, “divisão de trabalho”, os “utensílios domésticos”, “homensnotáveis”, as “armas”, “cidades principais” e o “governo” das socieda-des citadas numa tentativa de mostrar a “Marcha geral da civilização”,conforme o título do capítulo que introduz os conteúdos da Antigüidade(Oriental e Clássica). Ou seja, estariam permitindo que os alunos, aoterem contato com o seu passado distante, se conscientizassem do pró-prio “ajustamento dinâmico dos indivíduos ao longo da história das ci-vilizações” (Reznik, 1998, p. 71), que necessariamente aponta para asuperioridade da cultura branca ocidental.

De outro lado, a matéria do 4º ano refere-se ao descobrimento daAmérica, capitanias hereditárias, governos gerais, invasão holandesa,entradas e bandeiras e movimentos nativistas (Guerra dos Emboabas,Insurreição Pernambucana, Guerra dos Mascates, Emboabas e dosPalmares). Chama a atenção para a construção de uma sociedade brasi-leira democrática, marcada pelo equilíbrio social, cujos conflitos, quan-do existentes, teriam sido aplacados pelos mais justos, fortes e valentes,os portugueses. É como se quisesse fabricar a imagem de um país irreal(Nadai, 1992/1993) que se fez a partir da amizade entre portugueses e

7. Não é possível fazer uma listagem sobre os conteúdos da 1º ano na medida em queestes não são transcritos em “As nossas lições”.

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brasileiros ou pela astúcia de um dos dois, conforme descrição da Guer-ra dos Emboabas, publicada na edição de jul./ago. de 1933. A ação rápi-da da Coroa portuguesa teria impedido o levante dos paulistas:

[...] Mais tarde Nunes Vianna, que não desanimara, numa falsa atitude de

reconciliação, surpreendeu os paulistas que desprevenidos como estavam,

foram obrigados a se refugiarem em S. Paulo. Ao chegarem à cidade natal, a

censura e indignação das famílias incentivaram-nos à luta, à vingança. Essa

vingança já estava preparada, quando chegou a notícia de que Portugal de-

cretava a anistia e criava a capitania de São Paulo e Minas Gerais, indepen-

dentes da do Rio de Janeiro [grifos do original].

Já na terceira e segunda séries a cidade do Rio de Janeiro é o focoprivilegiado da matéria. Enquanto naquela se ensina sua história, funda-ção e, inclusive, alguns aspectos da vinda da família real ao Brasil, naoutra são os meios de comunicação, os transportes, as diversões e osseus primeiros habitantes os temas a serem aprendidos.

Nessas séries a ênfase recai sobre a necessidade em mostrar como acidade do Rio de Janeiro no passado era constituída por uma “vida pri-mitiva” que aos poucos vai sendo substituída por um estilo mais moder-no, marcado pelo progresso e pelo desenvolvimento cultural. Daí asvisitas dos alunos ao centro da cidade para justamente poderem apreciarde perto essas transformações urbanísticas.

Os textos, muitas vezes, podem ser longos, cheios de detalhes dis-pensáveis, como já foi exposto, ou até mesmo conter algum tipo deinformação “pouco histórica” na medida em que o uso em excesso dosadjetivos e dos diminutivos é uma das estratégias mais utilizadas paradescrever o fato histórico. Conforme o exemplo a seguir, que se refereao estilo de vida do Rio de Janeiro colonial comparado ao dos anos de1930, nota-se esse tipo de artifício:

Distribuição de leite

Outrora: pela vaquinha leiteira (enfeitada de fita e guizos, acompanhada dos

bezerrinhos)

Hoje: automóveis higiênicos Hygêa.

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um estudo sobre a cultura escolar no rio de janeiro dos anos de 1930... 97

Essas são as considerações acerca do ensino da história da EscolaArgentina, que, ao que tudo indica, parece ter conquistado um lugardefinitivo no currículo da escola na medida em que, além de ser estrutu-rado a partir de um programa específico para cada uma das séries, fer-menta, por meio de suas lições, alguns dos mais significativos conheci-mentos, comportamentos e atitudes que ajudariam a compor a própriacultura da escola.

Considerações finais

A partir dessa exposição, independentemente de uma maiorpormenorização dos conteúdos, o que, de fato, se pretendeu mostrar foio quanto as lições de história da Escola Argentina amalgamavam-se àsua cultura escolar, produzindo um conjunto de conhecimentos, com-portamentos e valores que tinham como objetivo educar seus alunossegundo determinados padrões sociais, culturais e éticos a fim de que seintegrassem a um projeto de nação que, naquele momento, encontrava-se em plena gestação.

Para que tal propósito se concretize, o ensino de história utiliza-sede uma série de estratagemas. Lança mão de um método mais ativo paraque assim garanta o sucesso de seu intento. O que era ensinado mescla-se de tal modo à maneira como se ensinava a história que, nessas cir-cunstâncias, suas lições enraizavam-se na própria cultura da escola,implicando mais do que a simples assimilação de conteúdos.

Conseqüentemente, a história, além de se fixar enquanto uma disci-plina regular do currículo da escola, cujos conteúdos já se encontram deantemão organizados por séries e com base em uma divisão entre histó-ria do Brasil e história universal, também se define como uma matériaaltamente valorizada.

Nessa perspectiva, seu ensino implica uma seleção que já de ante-mão expressava certa visão que se tinha sobre as histórias citadas queigualmente pressupunham uma determinada versão que se queria dar aessas mesmas histórias quando ensinadas.

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Histórias que privilegiam a riqueza cultural dos povos da Antigüi-dade, as grandes navegações, a colonização portuguesa, os heróis na-cionais, a valentia dos bandeirantes, os conflitos negociados, o sofri-mento dos negros africanos, a rebeldia dos índios e a importância dosoperários, por exemplo. Enfim, uma história que procura contribuir paraa formação de novos cidadãos, cujos valores deveriam ser pautados pe-los princípios da civilização ocidental, berço da nossa própria história.

Pode-se também considerar que o ensino de história da Escola Ar-gentina ainda resulta de uma ampliação do seu raio de ação para alémda “velha” sala de aula que, ao deixar de ser o único lugar de aprendiza-gem, possibilita que outros espaços também ensinem história, contri-buindo sobremaneira para a produção de uma cultura escolar rica e re-pleta de valores a serem disseminados.

Portanto, a Escola Argentina, uma escola experimental, ao viabilizarum novo ensino de história em seu curso primário, também se autodefinecomo um templo do saber, consciente que é de que apenas pelo conhe-cimento acumulado pela humanidade poderá apontar para seus alunos ocaminho do futuro. Ou seja, a escola tem consciência de que as suaslições de história se fundamentam nos princípios da própria história dacivilização, berço da sociedade brasileira.

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Endereço para correspondênciaMiriam Chaves

Rua Paissandu, 269 – Bloco 1, apto. 304

Laranjeiras,

Rio de Janeiro-RJ

CEP 22210-080

[email protected]

Recebido em: 6 out. 2005Aprovado em: 11 abr. 2006

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Educação física na Revista do Ensinode Minas Gerais (1925-1935)

organizar o ensino, formar o professorado

Tarcísio Mauro Vago*

Resumo:O artigo trata da presença da educação física na Revista do Ensino de Minas Gerais, noperíodo 1925-1935. A produção e circulação desse periódico, a partir de 1925, foi deimportância central para a conformação do campo escolar em Minas Gerais. Assim,tornou-se um suporte e uma condição para a organização da educação física, constituin-do estratégia tanto para a sua difusão como para a formação do professorado para assu-mir a responsabilidade por ela. A revista contribuiu então para uma “virada” ocorridanesse período na educação física, fazendo circular novas representações sobre suas fi-nalidades e prescrevendo práticas para compor seu programa, sintonizando-a com asnovas exigências da vida moderna.EDUCAÇÃO FÍSICA; GINÁSTICA; ESCOLA; HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO; HISTÓRIADA EDUCAÇÃO FÍSICA

* Doutor em educação (história e historiografia da educação) pela Universidade deSão Paulo (USP); professor da Escola de Educação Física, Fisioterapia e TerapiaOcupacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e do Programa dePós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFMG.

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Physical education in theMagazine of Teaching of

Minas Gerais (1925-1935)

to organize teaching, to form teachers

Tarcísio Mauro Vago*

Abstract:The article deals with the presence of physical education in the Revista do Ensino deMinas Gerais (Magazine of Teaching of Minas Gerais), in the period 1925-1935. Itspublication and circulation, from 1925 on, played a central role in the shaping of theschooling in Minas Gerais. This way, it became a support to and a condition for theorganization of physical education, becoming a strategy not only for its diffusion, but alsofor the formation of future teachers. The magazine contributed to the shift that took placein the period, putting into motion the new representations of its aims, and also prescribingpractices as part of the program, tuning it in to the new demands of modern life.PHYSICAL EDUCATION; GYMNASTICS; SCHOOL; PHYSICAL EDUCATIONHISTORY; HISTORY OF EDUCATION

* Doutor em educação (história e historiografia da educação) pela Universidade deSão Paulo (USP); professor da Escola de Educação Física, Fisioterapia e TerapiaOcupacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e do Programa dePós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFMG.

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Apresentação

O paulatino enraizamento escolar da educação física nas escolasmineiras foi fertilizado nas décadas seguintes à reforma de ensino pri-mário de 1906, que trouxe como principal novidade o advento dos Gru-pos Escolares, para os quais novos programas de ensino foram prescri-tos. De fato, o mesmo movimento de constituição de uma nova culturaescolar em Minas Gerais, no início do século XX, promoveu também aescolarização da então chamada “cadeira de Exercicios Physicos”. Areforma manteve a obrigatoriedade de sua realização, prescreveu paraela um programa de ensino, com os objetivos pretendidos, destinou tem-po, previu espaços, enfim, cuidou para que fosse inserida nas escolas.

Em outro trabalho (Vago, 2002) procurei mostrar que esseenraizamento da educação física nas escolas de Minas Gerais, nas pri-meiras décadas do século XX, deu-se pelo primado da correção, doendireitamento e da constituição dos corpos de crianças – isto é, comouma prática ortopédica1, cuja melhor tradução aparece no relatório quea diretora Ignacia F. Guimarães, do Grupo Escolar Henrique Diniz, deBelo Horizonte, apresentou ao secretário do Interior, ao final do ano de1915. Registrando o trabalho realizado em seu grupo, escreveu: “os re-sultados desses exercicios foram excellentes. Alumnos que, a principio,apresentavam posição incorreta e andar desgracioso, corrigiram-se empouco tempo” (Secretaria do Interior, 1916, SI 3597).

A ortopedia que a ginástica realizaria nesses corpos empenados se-ria conseguida por meio dos exercícios incluídos no programa: marchasmilitares, exercícios calistênicos e séries de exercícios baseadas no mé-todo sueco de ginástica. Com eles, visava-se a “aquisição do poder e dosentido de uma boa atitude normal” (Marinho, s.d., p. 180). Criançasdispostas por filas e colunas, como que em “ordem unida”. Não havia

1. Estou aqui incorporando a proposição de Marta Carvalho da “metáfora da discipli-na como ortopedia” para compreender “as práticas discursivas e institucionais que,no Brasil do final do século XIX até, pelo menos, a década de 1920, buscaramlegitimação enquanto pedagogia moderna, científica ou experimental” (cf. Carva-lho, 1997a).

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prescrição de práticas que envolvessem coletivamente as crianças – odestino dos exercícios era localizado e centrado no sujeito individual.Depois de executar as séries de exercícios, as crianças podiam “brincarlivremente pelo pateo, sob supervisão do instrutor” (Legislação do En-sino de Minas Gerais, decreto n. 1960, de 30 de setembro de 1906).

Daquele trabalho restou evidenciado que da presença da educaçãofísica na escola esperava-se uma intervenção ortopédica nos corpos decrianças levados a freqüentar os Grupos Escolares, provenientes de ex-tratos socialmente empobrecidos: desempená-los e colocá-los em “po-sição erecta e varonil” (Barbosa, 1882, p. 132) como deveria ser a pos-tura de um cidadão republicano.

Ocorre que esse movimento de inserção da educação física nos Gru-pos Escolares de Minas Gerais (tendo Belo Horizonte como referência)foi também marcado por impasses e precariedades. Inexistência de es-paços físicos conforme previsto na legislação; reduzida (e até mesmodesconsiderada) participação na distribuição dos tempos escolares; se-cundarização de seu ensino em relação a outras cadeiras do programa;dúvidas entre sua obrigatoriedade ou facultatividade; professoras sen-tindo-se despreparadas e sem condições de ensinar, e mesmo a sua au-sência das práticas escolares: esses são exemplos das circunstâncias emque seu ensino esteve envolvido nos primeiros momentos de sua inser-ção escolar na capital. São precariedades como essas que levaram odiretor da Escola Normal Modelo da Capital, Arthur Joviano, a afirmarem 1916, uma década após a reforma de ensino de 1906, que a“gymnastica” não passava de “lettra morta” do programa.

Assim, passados 10 anos desde a reforma de 1906, a presença daeducação física nas escolas mineiras experimenta esse contraste: aomesmo tempo considerada fundamental para o “desenvolvimentophysico” das creanças – para a produção de corpos portadores dos atri-butos republicanos – e tida como “lettra morta” do programa. Contrasteque leva a interrogar seus desdobramentos na década de 1920. Esseperíodo traz novidades para o ensino de educação física?

Há indicações para uma resposta positiva. Entre elas, as iniciativasdo governo mineiro, das quais se destacam: a produção e circulação daRevista do Ensino (a partir de 1925), a realização do I Congresso de

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educação física na revista do ensino de minas gerais (1925-1935) 105

Instrucção Primária de Minas Gerais (em 1927); a reforma do ensinoprimário e do ensino normal (também em 1927) e a criação da Inspeto-ria de educação física (em 1928). Iniciativas como essas produziramcircunstâncias inéditas para o ensino de educação física, com desdobra-mentos importantes para sua afirmação nas escolas mineiras, merecen-do por isso investigações específicas. Preliminarmente, pode-se dizerque a década de 1920 foi um momento de “virada” na história escolarda educação física, tornando-se, por conseguinte, um período funda-mental para a compreensão de seu enraizamento nas escolas de MinasGerais.

Neste trabalho, tratarei mais detidamente da circulação da Revista doEnsino de Minas Gerais, periódico de importância central para a confor-mação do campo escolar do estado, especialmente após o advento do ideá-rio da Escola Nova (com a reforma de 1927). Em que medida ela teriacontribuído para uma reconfiguração do ensino de educação física?

Tentarei mostrar que a Revista do Ensino de Minas Gerais foi decentral importância tanto para a organização do ensino de educação físicacomo também, e ao mesmo tempo, de formação do professorado paraassumir a responsabilidade por ele. Com efeito, ela foi um suporte e umacondição para a organização do ensino de educação física. Aqui, é neces-sário interrogar também sobre a orientação que a revista imprimia a esseensino, naquele momento. Penso que esteja aí uma chave para entender a“virada” ocorrida no ensino de educação física, que se consolida na e apartir da década de 1920, quando um outro primado orientador passa aorientar seu ensino (como será tratado ao longo deste trabalho).

Sobre a Revista do Ensino de Minas Gerais

Trabalhos importantes foram produzidos sobre a Revista do Ensinode Minas Gerais, tomando-a como objeto pesquisa2. Aqui, apoio-me

2. Sobre a Revista do Ensino de Minas Gerais remeto para a leitura de importantestrabalhos como os de Borges, 1993; Souza, 2000; Biccas, 2001.

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centralmente naquele desenvolvido por Maurilane de Souza Biccas(2001), que propõe a Revista do Ensino de Minhas Gerais como estraté-gia de formação de professores no estado, no período de 1925-19403.Em outro trabalho (Biccas, 2005), ela argumenta que

tomar o impresso em sua materialidade implica tratá-lo como objeto cultural

que, constitutivamente, guarda as marcas de sua produção e de seus usos. No

caso dos impressos de destinação pedagógico-escolar, trata-se, em primeiro

lugar, de analisá-los da perspectiva de sua produção, distribuição, como pro-

dutos de estratégias pedagógicas e editoriais determinadas [BICCAS, 2005].

Com essa perspectiva é que procuro discutir a presença da educa-ção física em artigos e seções da Revista do Ensino de Minas Gerais,depois de apresentar, a seguir, alguns aspectos gerais sobre sua finalida-de e circulação.

A Revista do Ensino de Minas Gerais foi criada em 1892 no Gover-no do presidente Affonso Penna, sendo inteiramente reformulada em1925, na presidência de Fernando Mello Vianna, quando passa a circu-lar mensalmente, pela responsabilidade da Diretoria de Instrucção Pu-blica, “destinada a orientar, estimular e informar os funcionários do en-sino e os particulares interessados”, como prevê o Regulamento doEnsino (art. 479). A estrutura para ela prevista constava de uma “partedoutrinária”, cujos objetivos eram “dirigir o professorado publico doestado, harmonizando seus esforços”, “pô-lo ao corrente da evoluçãodo ensino primário em todos os seus aspectos” e “publicar-lhe os traba-

3. Cf. Biccas, 2001. A pesquisadora apóia-se no conceito de estratégia, tomando-o aMichel de Certeau (1994), e que remete a práticas cujo exercício pressupõe umlugar de poder. Em outro trabalho (Biccas, 2005), ela defende que em uma históriados impressos de destinação escolar, como é o caso da Revista do Ensino de MinasGerais, esse conceito possibilita flagrar “dispositivos de imposição de saberes enormativização de práticas, referidos a lugares de poder determinado: editoras;departamentos governamentais; instituições vinculadas à igreja; iniciativas de re-formas educacionais, entre outras analisados como produtos de estratégias deter-minadas, os materiais impressos deixam ler as marcas de usos prescritivos e dedestinatários visados” (Biccas, 2005).

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educação física na revista do ensino de minas gerais (1925-1935) 107

lhos ou extratos destes, quando de evidente interesse didático” (art. 480).Essa parte devia “limitar-se a publicações de pequenos trabalhos de in-teresse imediato, resumo de obras e artigos extraidos de revistascongeneres, nacionais ou extrangeiras” (art. 481). Além disso, havia tam-bém a previsão de uma “parte noticiosa”, destinada a publicar “factos eocorrências locais, nacionais ou extrangeiras, que possam orientar osfuncionários do ensino” e “dados estatísticos relativos á instrucção” ede “actos oficiais que interessem aos funcionários do ensino conhecer”(art. 480).

Assim, a Revista do Ensino de Minas Gerais constituía um suportede divulgação da política educacional do governo por todo o estado,como “tentativa de unificação de uma nova organização e administra-ção da rede escolar [...], inspirados na Escola Nova”. Transformou-senum “órgão público de divulgação, orientação e fiscalização das medi-das publicas tomadas pelo Estado de Minas” (Biccas, 2005), na área dainstrução pública. Nela passam a ser publicados, além de artigos sobreas diversas cadeiras do programa de ensino, leis, decretos e atos ofi-ciais, dados estatísticos sobre freqüência escolar e expansão do atendi-mento e, ainda, textos traduzidos de literatura estrangeira, especialmen-te francesa e americana, acerca da pedagogia Escolanovista.

Educação física na Revista do Ensino de MinasGerais

Desde seu reaparecimento em 1925, houve na Revista do Ensino deMinas Gerais um intenso movimento de formação do professorado paraatuar com a “educação physica” nas escolas4. Com efeito, foi grande acirculação de artigos na revista que direta ou indiretamente se referiamà educação física, configurando como que uma campanha permanentepara a sua inserção e consolidação nas escolas mineiras. Um levanta-mento de artigos e seções publicados na Revista do Ensino de Minas

4. Cf. Vago, 1999.

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Gerais (do ano 1, 1925, após sua reformulação, ao ano 11, 1935) apon-tou que, de um universo pesquisado de 121 números5, há 61 artigos ouseções destinados à “educação physica”, aí incluindo aqueles dedicadosa jogos, à recreação, entre outros, como mostra o Quadro 1, abaixo:

Quadro 1: Artigos da Revista do Ensino de Minas Geraisdedicados à educação física (1925-1935)

ANO NÚMERO MÊS ARTIGOS1925 3 Maio Jogos menores

4 Junho Gymnastica respiratória5 Julho Secção recreativa: jogos physicos na escola6 Agosto Secção recreativa: jogos menores7 Setembro Technica sobre educação physica

GymnasticaSecção recreativa: jogos menores

8 Outubro Secção recreativa: jogos activos9 Dezembro Para dar um fremito de vida ao ambiente escolar:

descripção de alguns jogos interessantes1926 10 Janeiro Para fazer a raça forte e energica: methodos de

educação physica11 Fevereiro Para fazer a raça forte e enérgica: methodos de

educação physica (continuação...)Para dar umfremito de vida ao ambiente escolar (continuação...)

12 Março Os jogos nas escolas: horas de alegria e de forçapara fazer a raça forte e enérgica

13 Abril Noções de educação physica, exercicios e jogos14 Maio Noções de educação physica15 Junho A alegria dos recreios: diversos jogos gymnasticos

16/17 Julho Educação physicaAgosto Pela Belleza da Raça

19 Dezembro Educação physica1927 20 Abril A gymnastica rythmica, na opinião de uma

especialista22 Agosto Theses do Congresso de Instrucção Primaria sobre

Setembro a hygiene e educação physica1928 26 Outubro A nova organização pedagógica. methodos

peculiares a cada ensino: educação physicaGymnastica

5. Algumas números da revista saíram em uma mesma edição.

(continua)

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educação física na revista do ensino de minas gerais (1925-1935) 109

27 Novembro Pequenos jogosNomenclatura de Calisthenia

28 Dezembro Educação physica: marchas1929 29 Janeiro Educação physica: jogos gymnasticos

30 Fevereiro Educação physica: sua efficiencia e a professora32 Abril Educação physica: Instrucções baixadas pela

Inspectoria Geral da Instrucção33 Maio Educação physica: jogos menoresActividades extra-

programma nos Estados Unidos: jogos athleticos34 Junho A educação physica35 Julho Curso de aperfeiçoamento para assistentes

technicos do ensino: educação physicaA educação physica moderna

36 Agosto As principaes actividades instinctivas da creança: ojogo e a imitação

39 Novembro Educação physica: Callisthenia1930 47 Julho Qual a parte que deve caber á educação physica no

ensino primário?49 Setembro Praticabilidade de uma gymnastica electiva nos

Grupos Escolares1931 53/54/55 Janeiro Objetivos na organização e administração da

Fevereiro educação física escolarMarço

56/57/58 Abril Educação física: ginástica historiadaMaioJunho

59/60/61 Julho Praticabilidade de uma ginástica electiva nosAgosto Grupos Escolares

Setembro A educação física e o sexo femininoCorpo de Leaders

68/69/70 Abril Excursão e sua relação com a educação físicaMaioJunho

1933 83 Março Programa de ensino da educação física nas EscolasNormais

96 Novembro Curso intensivo de educação física97 Dezembro Trabalho sobre educação física

1934 103 Junho Educação física104 Julho Reunião Annual dos Assistentes: educação physica105 Agosto Curso para professores districtaes e ruraes:

educação physicaJogos

107 Outubro Importância dos exercicios physicos108 Novembro Impressões de uma professora de educação physica

(continua)

(continuação)

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109 Dezembro Jogar ou não jogar.1935 110 Janeiro Educação do corpo e educação do espírito

Para a ginástica historiadaAspectos da educação: educação moral e physica

112 Março A educação physica tratada em Congresso114/115 Maio Educação physica na escola primária

Junho118 Setembro Para a gymnastica historiada119 Outubro Decálogo da cultura physica

Fonte: Revista do Ensino de Minas Gerais, MG, n. 1 (1925) a n. 121 (1935).

O Quadro 1 mostra a intensa circulação, na Revista do Ensino deMinas Gerais, de produções sobre educação física, que incluem objeti-vos defendidos e autorizados para ela e prescrições de práticas indica-das para realização em suas aulas. São evidências da intenção de fo-mentar, legitimar e organizar seu ensino, buscando-se para isso incentivare capacitar o professorado mineiro a assumir tal responsabilidade, ofe-recendo-lhe ao mesmo tempo suporte teórico, recomendações de natu-reza metodológica e sugestões de atividades. Em suma: organizar o en-sino de educação física e formar o professorado. É então que se podeconsiderar a Revista do Ensino de Minas Gerais como “instituição me-diadora” (Carvalho & Nunes, 1993) utilizada pelo governo de Minaspara a formação do professorado, também no que diz respeito à educa-ção física. Tal importância é potencializada sabendo-se que não haviaentão cursos específicos para professores nessa área, sendo que a for-mação do professorado para ministrá-la estava legada às Escolas Nor-mais então existentes6.

Esse argumento será desdobrado a seguir, tomando-se para refle-xão alguns artigos e seções da Revista do Ensino de Minas Gerais queaparecem no Quadro 1.

6. Cf. a este respeito: Vago, 1997 e 1999. A primeira iniciativa de formação específicado professorado em educação física em Minas Gerais foi a criação do “Curso In-tensivo de Educação Física”, promovido pela Inspetoria de Educação Física. Essainspetoria foi criada com o decreto n. 7.970-A, de 15 de outubro de 1927, assinadopelo presidente Antônio Carlos e seu secretário do Interior, Francisco Campos,

(continuação)

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educação física na revista do ensino de minas gerais (1925-1935) 111

Uma campanha pela organização doensino de educação física

como deve ser ministrada a EducaçãoPhysica nas escolas primarias

Revista do Ensino, setembrode 1925, p. 184-186

A discussão sobre a organização do ensino da educação física que arevista dá a ver foi exemplificada em um artigo posto em circulaçãologo no primeiro ano de sua circulação, em setembro de 1925 (antes dareforma de ensino de 1927), intitulado “Technica sobre educaçãophysica”7, cujo objetivo declarado era o de mostrar ao professoradomineiro “como deve ser ministrada a educação physica nas Escolas Pri-marias do Estado de Minas”, numa evidente intenção de intervir em suaação pedagógica. A importância desse artigo deve ser ainda mais acen-tuada porque ele inaugura uma política específica de orientação do pro-fessorado para a inserção e a organização desse componente do progra-ma do ensino primário. A ele seguiram-se outros, como pode-se notarno Quadro 1.

Trata-se de um relatório de estágio realizado por uma comissão deprofessores(as) de alguns grupos escolares de Belo Horizonte em colé-gios e estabelecimentos primários da cidade do Rio de Janeiro, entãocapital do país, “com fitos de adquirir conhecimentos sobre a educaçãophysica”. E, para que eles não ficassem restritos aos grupos escolares dacapital mineira, a revista publicaria aos poucos “a série de jogos egymnasticas rytthmicas, com o augurio de que serão de real proveito

após o I Congresso de Instrucção Primária de Minas Gerais (maio de 1927), eapenas um mês antes da reforma do ensino primário. Já neste decreto que a instituiprevê-se como uma de suas atribuições “ministrar na Capital um curso especialpara formação e aperfeiçoamento do pessoal docente destinado ao ensino de edu-cação physica” (art. 94).

7. REVISTA DO ENSINO DE MINAS GERAIS, Belo Horizonte, ano I, n. 7, p. 184-186, set.1925. Esse item foi primeiramente trabalhado em um outro artigo, sendo aqui reto-mado (cf. Vago, 1999).

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para todos os nucleos de instrucção em nosso grande estado” (Revistado Ensino, setembro de 1925, p. 184-186).

Importante observar que a comissão de professores empregou otermo “educação physica” para designar, de modo restrito, um compo-nente do programa do ensino primário, em substituição paulatina aosternos até então usados, como “exercicios physicos” e “gymnastica”(em Minas Gerais o termo “educação física” para designar a área pas-sou a ser adotado após a reforma do ensino de 1927, consolidando-se aolongo da década de 1930).

Quanto às práticas corporais prescritas para serem realizadas naeducação física, a referida comissão indica: “A educação physica emnossas escolas primarias, deve ser ministrada do seguinte modo:comprehenderá os exercicios naturaes, respiratorios, suecos, jogos e agymnastica rytmhica”.

Nessa prescrição, além do método sueco (que já influenciava a con-figuração dos programas oficiais de “exercicios physicos” em Minasdesde pelo menos 19068), aparecem agora práticas corporais presentesno método francês de ginástica.

É importante atentar para os argumentos mobilizados pela comis-são para afirmar a necessidade da educação física nas escolas para crian-ças. E eles são múltiplos: as práticas prescritas eram importantes por-que, em conjunto, contribuiriam para o “desenvolvimento do corpo” e,ao mesmo tempo, para sugerir aos alunos “coragem, força, decisão, agi-lidade e destreza”, além de promover a “harmonia dos movimentos”.Ainda mais, elas serviriam para “corrigir os defeitos de posição”, para“augmentar a força de resistencia, também para “educar o systema ner-voso” e “fortificar os orgams da respiração e da circulação”. Eram con-sideradas educativas pois desenvolviam “o espírito de collectividade ede observação”, tendo também repercussões sobre “a vista, a memoria,a destreza, a habilidade, etc.”. Para coroar, deveriam ser motivo de “ale-gria e enthusiasmo”.

8. Cf. Vago, 2002.

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Não por outro motivo, a comissão de professores que visitou o Distri-to Federal defendeu a inclusão dessas práticas corporais nas escolas pri-márias de Minas Gerais na certeza de que elas eram “mais que suficientespara o completo alinho das faculdades organicas das nossas creanças”.Esperava-se que a educação física nas escolas primárias mineiras fossecapaz de produzir corpos infantis alinhados, e dotados de alguns predicados:força, agilidade, destreza, habilidade, coletividade, harmonia dos movi-mentos – em outras palavras: dela esperava-se que produzisse corpos efi-cientes. As novas práticas autorizadas para o seu ensino seriam portadoresde valores próprios aos “tempos modernos”, a que o Estado de MinasGerais e o país almejavam alcançar. Valores que deveriam ser impressosnos corpos das crianças, desde cedo. A vida moderna exigia. Sinais de umnovo primado orientador para a educação física nas escolas.

Além de prescrever essas práticas, a comissão de professores enve-redou pelo ensinamento de “como deve ser a aula” de educação física. Einiciou com essa recomendação ao “professor de cultura physica”:

É preciso ficar bem patente que o professor de cultura physica não tenha em

vista “ensinar” gymnastica, nem jogos, para que os alumnos conheçam um

numero interminavel de exercicios e memorizem regras de jogos, mas dirigir

a classe de maneira que todos os alumnos “pratiquem” com regularidade os

exercicios e se entreguem aos jogos, com prazer e enthusiasmo.

E os alunos, como deviam praticar tais exercícios?

Os exercicios de gymnastica deve o alumno fazel-os por imitação, procuran-

do se egualar na sua execução ao mestre que, nesse momento, nada mais é

que um companheiro mais adestrado, a que estão sujeitas a ordem e a disci-

plina dos demais.

Esse “companheiro mais adestrado” que as crianças deviam imitarrecebeu outras recomendações da comissão: “Não se deve exigir, nasahida dos alumnos para o pateo de gymnastica, uma disciplina rigoro-sa. Si a aula vae interessar e produzir alegria nas creanças, seriaincoherente prival-as da expansão do espirito”.

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E ainda: “Uma vez preparados – o pateo, o material e os jogos – porintermedio de um apito, deve-se exigir uma disciplina perfeita. Será,porém, desprezado o velho habito de obrigar os alumnos á posição for-çada de ‘braços cruzados’ ”.

Sobre o transcorrer da aula, propriamente, a comissão prescreveu:

Iniciado o jogo, permitir os gritos de enthusiasmo e naturaes, tanto aos

contendores, como aos assistentes, tudo, porém, sob o domínio immediato

do apito commandante. Exigir dos alumnos o maximo respeito ao dirigente

da partida (mestre ou alumno) e a maior cordialidade entre collegas da mes-

ma ou de outra escola.

Ainda sobre o “professor de cultura physica”, a comissão ponderouque ele precisava de alguns predicados, dispensáveis aos professoresdas demais disciplinas: agilidade, destreza, presença de espírito, boacompleição e, sobretudo, bom humor – este “imprescindivel e primor-dial”, porque “é necessario que o professor, sempre alegre e satisfeito,faça sentir aos discipulos que, durante os exercicios e jogos, tambémestá se divertindo”

A comissão considerou que o ideal seria a existência, em cada es-cola, de um professor especializado para a prática da “cultura physica”.Mas, na sua inexistência, àquela altura, relativiza esse ideal e apela aoprofessorado:

Devido ao grande numero de escolas existentes em nosso estado, essa idéa,

porém, torna-se irrealizavel. Em compensação, é o professorado bastante

dedicado, intelligente e apprehendedor, para que o mestre se transforme em

um verdadeiro cultor do desenvolvimento physico dos pequeninos que lhes

são confiados.

Em cada professor, um “cultor do desenvolvimento físico dospequeninos”, representação que se queria largamente difundida nas es-colas primárias. Como recomendação final, a comissão prescreve noartigo que uma aula completa de “gymnastica” deveria ter a duração de30 minutos. Tempo de cultivo dos corpos das crianças.

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educação física na revista do ensino de minas gerais (1925-1935) 115

A publicação desse artigo na Revista do Ensino de Minas Gerais,com aprovação e autorização do secretário do Interior, conferiu-lhe avale legitimidade. Ainda mais significativo é o fato de que as proposiçõesnele contidas foram incorporadas, quase que integralmente, ao texto dareforma do ensino primário conduzida pelo secretário do Interior, Fran-cisco Campos, dois anos mais tarde, em 19279.

Evidencia-se então que a Revista do Ensino de Minas Gerais, logoem seu primeiro ano de circulação, apresentava-se como um importanteveículo de difusão de conhecimentos considerados necessários para or-ganizar o ensino de educação física, intervindo na formação do profes-sorado.

A mobilização do professorado mineiro para trabalhar com a edu-cação física nas escolas prossegue nos anos seguintes, como indica oQuadro 1. Em dezembro de 1926, uma seção intitulada “EducaçãoPhysica” traz, no alto da página, como um convite à leitura, em letras decorpo maior, uma contundente afirmação: “a gymnastica torna o corposadio, bello e forte, suggerindo ao espirito força de vontade, energia,coragem, decisão, alegria e cordialidade”. O artigo então inicia-se comuma pergunta: “qual é o fim da gymnastica?”. Uma primeira resposta,sintomaticamente, vem em francês: “Faire des êtres forts”, citandoGeorges Hebert. Fazer seres fortes. Essa representação-síntese é segui-da de uma explicação ao professorado de que a “educação physica emnossas escolas deverá, pois, ser orientada no sentido de melhorar ascondições physicas da geração, que se inicia na vida”.

Uma segunda resposta àquela pergunta está expressa em uma espe-rada contribuição da ginástica para o decorrer da vida escolar: ela deve-ria ter “por fim fazer com que a criança possa despender com vontade,de futuro, os esforços e energias que outros estudos de ordem mais seriairão requerer da vida adolescente [...]”. Ao ser representada como pre-paração para conhecimentos de natureza “mais séria”, outro não pode

9. Cf. decreto n. 8.094, de 22 de dezembro de 1927, do governo de Minas Gerais, que“Approva os programas do ensino primário”.

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ser o entendimento de que ela não usufrui de uma mesma valoraçãoatribuída às demais disciplinas.

A revista repercute, reforça e amplia representações sobre a educa-ção física na escola, como em 192610, aproximando-a da “hygiene”, àqual deveria estar “intimamente ligada”:

Nossas escolas, que empregam todos os esforços para o desenvolvimento

intellectual do alumno, não poderão descuidar de seu desenvolvimento

physico. A hygiene e a educação physica devem estar intimamente ligadas,

dando em resultado – uma, a saúde, e outra, o poder muscular.

Acrescente-se a isso o título de uma das seções da revista para seter uma compreensão precisa do que se pretendia com a presença daeducação física nas escolas – “Para fazer a raça forte e enérgica”11.

A revista está em permanente campanha pela organização da educa-ção física nas escolas mineiras, insistindo em sua necessidade, que estaria“tão bem traduzida no tão citado aphorismo ‘Mens sana in corpore sano’”:

A importancia da gymnastica já é um assumpto sobre o qual não pairam

duvidas, sendo esta disciplina praticada com intensidade nos paizes adeantados

da Europa, assim como nos Estados Unidos da America do Norte.

Se era praticada nos países adiantados, o Brasil não poderia deixarde fazê-lo, sob pena de ficar à margem da história: “Imitemos-lhes, pois,o exemplo, para que um dia possamos competir com os povos maiscivilizados”.

Povos mais civilizados praticam ginástica. As crianças incivilizadasdo Brasil não teriam chance de competir com elas, com seus corpos raquí-ticos, débeis e tristonhos, segundo as representações que circulavam narevista. O que resulta, então, a necessidade de “fazer a raça forte e energica”.

10. REVISTA DO ENSINO DE MINAS GERAIS, Belo Horizonte, ano II, n. 16-17, p. 274-276,jul./ago. 1926.

11. REVISTA DO ENSINO DE MINAS GERAIS, Belo Horizonte, ano II, n. 10, p. 60-62, jan. 1926.

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educação física na revista do ensino de minas gerais (1925-1935) 117

Para tanto, era preciso marchar. E muitas eram as maneiras de mar-char: marcha em caracol, marcha asas de moinho, executadas pelosalunos estando organizados em colunas ou fileiras, sob as vozes de co-mando: “Marcha em caracol!”, “Contra-marcha”, “Acelerado!”, “Alto”,“Direita... volver! Para a marcha! Preparar! Ordinário! Marcha!”. Apósmarchar, seguem-se exercícios de ginástica sueca.

Havia também a posição prima, “que é a chave da execução detodos os movimentos”. Tal posição era assim descrita na revista:

a cabeça erguida sem constrangimento; o olhar dirigido em linha recta, para

a frente; o corpo aprumado; os braços pendidos ao longo do corpo, natural-

mente, com as palmas das mãos voltadas um pouco para deante; o peito dila-

tado, sem esforço visivel; o ventre retraido; os calcanhares unidos, e as pon-

tas dos pés naturalmente apartadas.

E o artigo indica essa posição-chave porque só “o facto unico demanter esta posição exerce um salutar effeito de correcção no porte, econstitue de per si um exercicio racional, deveras util”.

“Correção no porte”. Endireitamento dos corpos. A representaçãode corpo que a revista faz circular e que professores deveriam se esfor-çar para materializar é a de um corpo racional, útil, de porte ereto,militarizado. (Registre-se que a legislação do ensino mineiro de entãoprevia a contratação de um “instructor militar” para lecionar nas Esco-las Normais, mas somente para os homens – futuros professores de crian-ças nas escolas primárias.)

“Qual a parte que deve caber á educação physicano ensino primario?”

Em sua campanha pela organização do ensino de educação física ,a revista também abre espaço para a participação de professoras queatuavam em escolas. Em julho de 1930 (n. 47), a revista circula comuma pergunta estampada: “Qual a parte que deve caber á educaçãophysica no ensino primario?”.

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Duas professoras é que respondem: Elza Ferraz Koeler e Maria deVasconcellos Pinto. É importante deter-se um pouco em suas argumentações.

O texto da professora Elza Ferraz Koeler é uma reprodução fiel(pode-se dizer que é uma cópia) das proposições contidas naquele rela-tório da comissão de professores mineiros que foram ao Rio de Janeiroconhecer o que se fazia nos Grupos Escolares a respeito da educaçãofísica, publicado cinco anos antes, em setembro de 1925, antes tratado.Proposições que de fato foram incorporadas ao texto da Reforma Fran-cisco Campos. Pode-se entender que a sua reprodução em um artigo darevista, três anos após a reforma, é uma maneira de reafirmar as prescri-ções para o ensino de educação física, reacendendo no professoradomineiro o ânimo para realizá-lo. Tanto mais que, agora, é uma professo-ra que escreve.

Respondendo à pergunta, ela escreve que “a parte que deve caber áeducação physica no ensino primário são os exercicios fisicos”. Ela citaHerbert Spencer, exatamente o mesmo fragmento contido na ReformaFrancisco Campos: “O corpo e o espirito devem ser objeto da mesmasolicitude, e o corpo humano deve ser desenvolvido todo inteiro” (p. 70).E defende a idéia, também fielmente retirada da reforma, de que

Para a juventude crescer sã, forte, vigorosa e numa harmoniosa perfeição

intellectual e physica, é preciso fazer diariamente gymnastica, porque esta

robustece o physico, que muitas vezes, enfraquecido, é a causa do enfraque-

cimento moral.

É patente que se queria muito mais com a ginástica que “robustecero physico”. É então que ela defende que “a educação physica trazbeneficios não só de ordem individual como tambem de ordem social enacional”. E aponta o objetivo amplo que a escola deve perseguir com aeducação física:

Para a educação do corpo, a gymnastica, é, sem duvida, um agente poderoso;

concorrendo para seu desenvolvimento, torna-o sadio, bello, e forte,

suggerindo ao espirito – força de vontade, energia, coragem, decisão, alegria

e cordialidade.

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Sadio, belo e forte. Assim se queria o corpo das crianças. Para con-segui-lo, a professora Elza Koeler defende como finalidade para o ensi-no de educação física:

A educação physica terá por fim desenvolver as grandes funções organicas:

respiração, circulação, nutrição, innervação e funccionamento da pelle; – vi-

sará educar o systema nervoso.

Um corpo reduzido à sua fisiologia. Caberia à educação físicaadestrá-lo. Questões metodológicas também estavam entre suas preo-cupações:

A lição de educação physica deve ser continuada, isto é, não comportará

repouso algum, salvo os exercicios respiratorios. E deve ser alternada, gra-

duada, attrahente, disciplina e adaptada, finalmente, aos meios materiaes de

que dispuser o estabelecimento de ensino.

Todas essas características defendidas para uma aula de educação físi-ca – influenciadas pelo método francês de ginástica –, estavam na legisla-ção produzida com a Reforma Francisco Campos, agora reafirmadas.

A professora Elza Koeler também reproduz o argumento de que oprofessor não deve ensinar ginástica para que os alunos memorizemregras, jogos, mas que eles devem praticar com regularidade os exercí-cios físicos, entregando-se aos jogos com prazer e entusiasmo. Esse foi,inclusive, um argumento repetido à exaustão. Afinal, será pela práticade exercícios, pela sua repetição diária, e não pela memorização de re-gras e jogos, que se poderá construir o corpo “sadio, bello e forte”, tãodesejado. Praticar o corpo, essa é a regra.

A segunda professora a responder à mesma pergunta da Revista doEnsino de Minas Gerais foi Maria de Vasconcelos Pinto.Chamo a aten-ção à contundência dessa professora quando reforça a representação deque o ensino da educação física deve estar vinculado às questões nacio-nais: “A educação physica forma a base sobre a qual os interesses danacionalidade têm de apoiar-se. A ella estão subordinados a vitalidadeda raça e o progresso do país”.

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Vitalidade da raça, progresso do país: razões da existência da edu-cação física na escola. Argumentos centrais que essa professora defen-derá, ao longo de seu texto, como se verá a seguir.

A imediata articulação da educação física ao trabalho no campo enas indústrias aparece fortemente em sua escrita:

Sendo o Brasil um pais agricola por excellencia, com vastos campos e exten-

sas florestas, precisa da energia de seus filhos para intensificar a cultura de

seu solo e incentivar o labor em suas officinas. Isto só se conseguirá, porém,

através da educação physica, pois o valor de um povo muito depende do seu

desenvolvimento physico.

A articulação que ela promove entre o que chama de “valor de umpovo” e o seu “desenvolvimento físico” é ampliada com novos argu-mentos:

O individuo que não cultiva seu corpo jamais terá uma vida sadia: será

sempre um ser vencido, sem energia. Só uma mentalidade forte poderá

produzir bons fructos. Para a regeneração de nossa raça é mistér que inici-

emos muito cedo a educação physica de nossas creanças a partir da escola

primaria. É uma disciplina que, pelas suas vantagens, merece cuidado es-

pecial do educador.

Regeneração da nossa raça. Daí o “cuidado especial” que ela pediaaos educadores mineiros com o ensino da educação física, que poderiaoperar o milagre de uma radical transformação do corpo das crianças,como sugere a pergunta da professora: “Quantas vezes não consegui-mos, por meio dos exercicios physicos, fazer de uma creança rachitica,debil e tristonha um indivíduo robusto e forte?”.

A professora Maria de Vasconcellos Pinto, por sua vez, ao enfrentara pergunta proposta pela revista, defende que os exercícios físicos com-preendem a ginástica, os desportos e os jogos. É importante perceber edestacar em sua resposta, um movimento de escolarização de esportes ede jogos como práticas prescritas para a educação física (que será trata-do adiante).

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A professora indica também a ginástica sueca, a alemã, e a deDalcroze. Segundo ela, a ginástica sueca, por sua “simplicidade e natu-ralidade” estava, naquela ocasião, conquistando supremacia sobre asoutras. Sua presença nas reformas de ensino mineiras data das primeirasdécadas do século XX. Curioso é que nas proposições da reforma de1927, é o método francês que mais parece inspirar as prescrições para aeducação física. Mas, de fato, em Minas a ginástica sueca não foi aban-donada (Vago, 2002).

Ela também aponta inúmeras vantagens do exercício físico, tal comoa de que ele “facilita o desenvolvimento physico, intellectual e moral”dos alunos. Essa tríade, presente na legislação de ensino desde 1906,permanece também nas representações da professora sobre o ensino deeducação física.

Algumas indicações metodológicas também são oferecidas e, juntoa elas, uma preocupação com a formação profissional daqueles que seresponsabilizariam pelo ensino da educação física:

Os exercicios physicos devem ser feitos ao ar livre, em area espaçosa e nive-

lada. As aulas não devem ser improvisadas: reclamam preparo previo do

profissional. Serão falhos os seus resultados e não raro prejudiciais, si não

obedecerem a uma technica especial.

“Preparo prévio”: indício de uma profissionalização do professorde educação física, em curso.

Ainda quanto à questão metodológica, surge no artigo uma hierar-quização das práticas corporais a serem oferecidas às crianças: “Os jogostornam as aulas mais recreativas, estimulam as creanças, mas não devemter primazia sobre a gymnastica”. A professora afirmava a ginástica comoo conteúdo privilegiado da educação física. E se justificava, escrevendo:

No dizer de alguns autores, “a gymnastica formal actua sobre o espirito como

agente mechanico. Executada sob commando, em serie e rithmo determina-

dos, aviva a attenção, apressa a obediência e estabiliza as attitudes”. A pres-

teza dos movimentos e a estabilidade das attitudes dão ao menino habitos de

regularidades e de ordem, de energia e de firmeza.

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Disso se depreende que, para a professora, a prática metódica, ana-lítica, sistemática e organizada dos exercícios de ginástica, parecia maisconforme e adequada do que os jogos destinados àquele objetivo deeducar o corpo sadio, belo e forte.

Depois de defender que a necessidade de movimento se manifestana criança desde o berço e que tal necessidade marca na vida infantiluma fase de desenvolvimento, que evolui com os anos, a professoraafirma que obrigá-la à imobilidade “seria um crime”: “e é na escolaprimária que a creança deve encontrar todos os meios satisfactorios parao seu pleno desenvolvimento [fisico]”.

A professora termina seu artigo escrevendo: “de tudo isso resulta,pois, a necessidade da introdução dos exercicios physicos no programmadas escolas primarias”.

Ao referir-se à “necessidade de introdução”, a professora dá a en-tender que eles ainda não haviam sido introduzidos nos programas dasescolas, depois de tantas reformas do ensino decretando a sua inclusão,desde pelo menos 1906.

“Impressões de uma professora de educaçãophysica”

Mais tarde, em outubro de 1934, uma outra professora, Judith Diasde Freitas, de um grupo escolar da cidade de Palma (MG), também pu-blicou na Revista do Ensino de Minas Gerais as suas “Impressões deuma professora de educação physica”12. Ela foi aluna de um Curso In-tensivo de Educação Física, realizado na capital em 1933, promovidopela Inspetoria de Educação Física (criada em 1927 e vinculada à Se-cretaria do Interior). Possuía então uma formação para além daquelaoferecida pela Escola Normal. Ela escreve sobre as circunstâncias emque organiza o ensino de educação física, as dificuldades e os avançosque obteve:

12. REVISTA DO ENSINO DE MINAS GERAIS, Belo Horizonte, ano VIII, n. 107, p. 58-59, out. 1934.

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Confesso que fiquei um tanto desanimada ao iniciar, neste Grupo, as aulas

diárias de gymnastica; mas, depois de muito labor, os exercicios physicos

estão em franco progresso. Vejo que os meus esforços estão sendo coroados

de exitos. [...] Ainda prevejo muitas difficuldades..

Tais dificuldades começavam com o espaço físico da escola e in-cluíam, também, a temperatura ambiente:

Não temos o galpão, e a sombra do predio não é suficiente, porque o calor é

intenso. No proximo anno, farei, com o auxilio dos alumnos e dos paes que se

interessam pela saude de seus filhos, um appelo ás autoridades locaes e á Inspe-

toria de Educação Physica, a fim de construir o galpão no nosso Grupo Escolar.

A motivação das crianças também foi outro problema enfrentadopela professora. Mas uma prática corporal aparecia como a preferidaentre elas:

A principio, quando eu ia buscar os alumnos em suas classes, uns davam

muchochos, outros faziam cara feia e afinal davam graças a Deus quando

ouviam o sino, que dava por terminada a aula. Mas, no correr dos mezes,

conversando e procurando agradar as creanças em tudo, verifiquei com mui-

to interesse que estas gostavam, com muita distincção, dos jogos.

Em função desse interesse das crianças, ela assim organizava assuas aulas:

Comecei então a pôr em prática o que lhes era agradável. Nos primeiros

minutinhos dava, após a marcha, um grupo facil de exercicios formais, e o

resto do tempo era occupado com jogos, corridas, etc..

Mas, a sua intenção era outra:

Pouco a pouco, fui tomando, sem que as creanças percebessem, mais tempo

de gymnastica formal e, hoje, como já disse, sinto em mim alma nova, pois

venci, a muito custo, a primeira difficuldade.

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Por essa conclusão da professora, pode-se dizer que ela conseguiuimpor a ginástica como conteúdo principal da aula, aumentando-lhe otempo a ela inicialmente destinado e, consequentemente, reduzindo o tem-po dos jogos, antes bem maior. Essa foi a maneira de envolver as crianças:dar-lhes inicialmente o que elas queriam e gostavam e, com o tempo,levá-las à prática da ginástica formal. Sem que elas percebessem.

Para ilustrar as dificuldades vividas no concreto de uma escola pú-blica de uma cidade do interior, é interessante registrar um relato dessaprofessora. Em virtude da deficiência de material, a professora queriaadquirir bastões para o seu grupo escolar. O preço total de um centodeles seria de 36$000. A caixa escolar só contava com 10$000. Ela,então, organizou uma demonstração em praça pública “para incitar nãosó os alumnos, como seus paes”. O resultado não fica esclarecido, masa situação é exemplar da distância entre o que prescreve a legislação, asrepresentações que a Revista do Ensino de Minas Gerais faz circular eas práticas em um grupo escolar.

Demonstrando que havia incorporado as representações correntessobre a educação física, que circulavam na própria revista, ela escreve:

Tem constituido o objectivo principal de cada uma das nações ministrar ao

seu povo um cultivo intellectual que lhe permitta triumphar na arena das

sciencias, para elevar o seu paiz e legar á posteridade tradições inesqueciveis.

Este objetivo só será alcançado quando a educação physica estiver bem

comprehendida, porque, na verdade, uma intelligencia robusta, uma cultura

solida, não podem coexistir com uma organização atrophiada, rachitica,

anemica, do mesmo modo que não se pode exigir um trabalho perfeito de um

machinismo deteriorado.

Para ela, os exercícios possuíam um duplo benefício: “recreiam oespirito e robustecem o organismo”. Acreditando nisso, ela esperavaque “num futuro não mui longinquo, os exercicios physicos sejam cul-tivados entre nós com mais carinho”. E, com essa esperança, conclui oseu artigo: “Então, surgirá uma geração mais forte e sadia, e o Brasil seorgulhará de ter filhos que o honrem com sua força e seu saber”.

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Prescrevendo práticas: “Os jogos nas Escolas –Horas de Alegria e de Força”

O Quadro 1 também permite detectar e destacar um intenso movi-mento de escolarização de jogos, promovido pela revista naquele perío-do. Movimento presente em diferentes seções, cujos títulos já anuncia-vam o que deles se esperava com sua realização nas escolas primárias:Seção Recreativa; Para dar um fremito de vida ao ambiente escolar13;Jogos nas Escolas – Horas de Alegria e de Força14; O encanto do re-creio nas Escolas15. Com efeito, era muito comum na revista a prescri-ção de jogos para serem incluídos no programa de educação física. Masnão somente nessa disciplina, como em outros tempos escolares: impor-tante é que os jogos fossem ensinados às crianças – é então que se tornanecessário interrogar o motivo.

Tantos jogos a revista prescreveu: deck tennis; grãos de feijão; cor-rida em carteiras; jogo de balões; bom dia; zig-zig; reinos da natureza;relay; estátua; center stride ball; center cath ball; Jacob e Rachel; jogosquietos; jogos activos; pegar a corda; batalha; passar a bola a cavalo;barra; o veado quer fugir; corrida de círculo; luta montado; tomar a trin-cheira; empurrar a corda; ida e volta; pega-pega indú; pega-pega monta-do; bóia cortada; barra; flores ao vento; corrida contrária; pegador; oesquilo; muralha chinesa; jogo chinês; o gato e o rato; viúva; o gato emseu cantinho; gato doente; chicote queimado; trem de ferro; caminho aJerusalém; pega-pega contrário; dooge ball; sacos de feijão; pega-pegaavestruz e roubar munições.

Observa-se que o nome de alguns jogos sequer foram traduzidos.Seria a busca de inspiração em um país “mais adiantado”?

Havia também nessa seção a participação de professoras na indica-ção de jogos, como em seu número 5, de julho de 1925, quando trouxecomo tema “Jogos physicos nas escolas”, publicando “jogos menores e

13. REVISTA DO ENSINO DE MINAS GERAIS, Belo Horizonte, ano I, n. 9, p. 269-270, dez. 1925.14. REVISTA DO ENSINO DE MINAS GERAIS, Belo Horizonte, ano II, n. 12, p. 94-97, mar. 1926.15. REVISTA DO ENSINO DE MINAS GERAIS, Belo Horizonte, ano II, n. 13, mar. 1926.

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corridas”, organizados (ou mesmo inventados) pela professora MariaBueno, da cidade mineira de Lavras. Sobre a professora e também sobreo conteúdo dos jogos que ela enviara para publicação, a redação darevista escreve:

Conhecendo que educar as potencias intellectuaes das creanças, esquecen-

do-lhes todavia as faculdades organicas seria um trabalho imperfeito e de

nenhum resultado para a sociedade, D. Maria Bueno, sobre ter sido talhada a

formar o carater e o coração dos jovens educandos, não descurou o seu de-

senvolvimento physico, promovendo meios no sentido de serem simultanea-

mente aprimoradas as faculdades organicas e inorganicas dos seus alumnos

[Revista do Ensino de Minas Gerais, 1925, p. 141].

Com essa representação, a revista legitima as práticas corporaislistadas pela professora:

Recommendamos, portanto, em nome do Snr. Secretario, aos dirigentes do

ensino, a pratica dos exercicios physicos, cujas instrucções editamos abaixo,

scientes de que serão os mesmos de francos exitos no meio escolar [idem,

ibidem].

No número 10 da revista, a seção “Recreativa”, mais condensada,prescrevia a realização de um único “jogo gymnastico”, chamado “cor-rida, salto e arremesso”. Após a descrição de cada uma dessas três ativi-dades, segue-se a orientação para o jogo. Destaco a orientação sobre acorrida: “é um dos exercicios mais importantes da gymnastica, pois, porsi só, constitue um exercicio completo e contribue, naturalmente, paradesenvolver as aptidões viris, o que importa fazer adquirir á mocidade”.

Desenvolver as aptidões viris da mocidade, “naturalmente”. Umarepresentação do que se pretendia com a ginástica (no caso, a corrida),ao que parece para os meninos.

Interessante observar nessa seção uma combinação entre jogo e gi-nástica, donde o seu nome “jogo gymnastico”. Se o jogo é mais motivantepara as crianças, não se pode esquecer da educação do corpo que só aginástica proporciona. A aproximação entre ambos é, então, benéfica,

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pois, “a creança ao mesmo tempo que alegra o espirito, executa algunsdos exercicios naturaes – a carreira, o salto e o arremesso”.

Essa fusão entre jogo e ginástica fica bastante evidente em umaseção “Os jogos nas escolas – horas de alegria e de força”16, que tam-bém explicita uma tentativa de imposição de um modelo de corporeidadea ser seguida:

A cultura physica aperfeiçoa e embelleza o corpo humano. Haja vista a supe-

rioridade aristocratica do typo inglez. Na Inglaterra, os jogos escolares é que

constituem a gymnastica da mocidade escolar.

Inspirada na “superioridade aristocratica” dos ingleses, a escola de-veria operar o milagre da transformação dos corpos das crianças dasMinas Gerais. E o fato de os jogos serem, segundo a revista, o conteúdoda “gymnastica da mocidade escolar” da Inglaterra, contribui para ex-plicar a insistente indicação dessas práticas em sucessivas seções, sen-do que os nomes sequer foram traduzidos: deck tennis, center cath ball,por exemplo.

A combinação “jogos gymnasticos” – considerados “a mais naturalforma de exercicio” – foi assim defendida: “Nos jogos gymnasticos,cuja orientação vamos dando, a criança vê, não uma disciplina escolar,porém uma derivação de prazer dentro de suas obrigações diuturnas, devalor extraordinário como exercicio physico” (Revista do Ensino deMinas Gerais, 1925, p. 269-270). Uma tentativa de juntar prazer e obri-gação: jogo e ginástica, que ficará ainda mais explícita no número 19 darevista17, de dezembro de 1926: “Aos exercicios de gymnastica, unifor-mes, faltam a emulação, o attractivo, o interesse que os jogos infantisdespertam. E a criança entregue a essa disciplina sente-se feliz, demons-trando intelligencia precoce em suas attitudes”.

16. REVISTA DO ENSINO DE MINAS GERAIS, Belo Horizonte, ano II, n. 12, p. 94-97, mar. 1926.17. REVISTA DO ENSINO DE MINAS GERAIS, Belo Horizonte, ano II, n. 19, p. 387-389, dez.

1926.

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128 revista brasileira de história da educação n° 11 jan./jun. 2006

Então, esse artigo faz circular uma representação sobre a pretensasuperioridade de crianças que praticassem os jogos e a ginástica sobreas que não o fizessem:

As crianças, que se dedicarem aos jogos, terão superioridade, quer physica,

quer moral, sobre os companheiros que tenham desprezado essa disciplina.

Nem todos podem ser fortes como Hercules, mas todos poderão, si o quizerem,

adquirir um desenvolvimento natural – resultado logico de um exercicio

physico adrede feito e em regra.

Ora, escrever isso em uma revista autorizada e mantida pelo gover-no e de circulação estadual era uma forma de instigar professores a en-sinar jogos às crianças, procurando convencê-los com o argumento da“superioridade física e moral” de umas crianças sobre outras, advindadessa prática. Um apelo deveras sintomático para aquele momento.

Com efeito, a escolarização dos jogos foi largamente autorizada nadécada de 1920 no Estado de Minas e na Revista do Ensino, o principalveículo para tanto. Como tratei desse movimento em outra oportunida-de, aqui apenas sintetizo o meu entendimento a respeito18. Minha hipó-tese é a de que a escolarização de jogos resulta da articulação da escolaàs novas exigências daquele momento: prescrevê-los tinha como pro-pósito a pretensão de imprimir eficiência aos corpos das crianças, cons-tituindo um modo de educá-las e prepará-las para as exigências da vidamoderna.

É que os jogos trazem uma novidade em relação às marchas e sériesde exercícios físicos até então prescritas nos programas de Gymnastica.Eles mobilizam coletivamente as crianças na consecução de um fim, deum resultado: nos jogos deve-se atingir uma finalidade e, para isso, sãoregulados por regras, que devem ser aprendidas, incorporadas (isto é:tornadas corpo), respeitadas e praticadas, ou seja, depois de uma dispu-ta, de uma competição, há uma conquista, uma vitória – enfim, um re-sultado. Resultado que exige empenho, esforço, dedicação, ou, como

18. Cf. Vago, 2004.

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no texto da reforma de ensino mineira de 1927: “dextreza”, “habilida-de”, “agilidade”, “observação”, e, especialmente, “espirito de colletivi-dade”. Essa socialização que os jogos promoveriam é marcada não poruma solidariedade pela solidariedade. É uma socialização marcada pelaeficiência.

São atributos que um país que almejava participar do competitivomundo industrializado precisaria cultivar. Tornada essencial, a aprendi-zagem de atributos como esses teve nos Grupos Escolares lugar ideado.Se os corpos das crianças deveriam ser impregnados deles, a ginásticaoferecia um campo de possibilidades para esse investimento, o que aju-da a compreender a inclusão dos jogos em seu programa: ela confereimportância a eles, que deixam de ser prática difusa e assistemática etornam-se matéria de ensino, prevista na legislação e com larga difusãona Revista do Ensino de Minas Gerais. A articulação da ginástica à pre-tensão de incutir hábitos do trabalho nas crianças é com isso reforçada.Imprimir eficiência e eficácia aos gestos, aos movimentos corporais dascrianças, aos seus corpos – realizar uma economia política dos gestos.Entrando em sintonia com a vida moderna, a educação física passava aser centralmente orientada pelo primado da eficiência19.

Considerações finais

Com este exercício exploratório aqui realizado procurei evidenciarque a Revista do Ensino de Minas Gerais, ao circular entre os(as)professores(as) das escolas de ensino primário de Minas Gerais, consti-tuiu estratégia de fundamental importância para o enraizamento, a orga-nização, a difusão, a conformação e consolidação da educação físicanas décadas de 20 e 30 do século XX, na medida em que se tornou vozautorizada e legitimada sobre o que fazer em seu ensino.

Múltiplas foram as representações acerca da educação física afir-madas em diferentes números e seções da revista: foi considerada capaz

19. Cf. Vago (2002; 2004).

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de promover o “completo alinho das faculdades organicas das crian-ças”; deveria constituir a “base sobre a qual os interesses da nacionali-dade têm de apoiar-se”; a “ella estão subordinados a vitalidade da raça eo progresso do país”; “a educação physica traz beneficios não só deordem individual como tambem de ordem social e nacional”. Represen-tações que fazem parte de um movimento de refundar e regenerar osdesalinhados corpos das crianças. E para tanto suas páginas continhamprescrições de práticas que deviam torná-los não apenas belos, fortes erobustos, como também para fazê-los corpos eficientes, afeiçoados aomundo do trabalho.

Afinal, relembrando o que escreveu a professora Maria Vasconce-los Pinto, o Brasil era então “um pais agricola por excellencia, comvastos campos e extensas florestas” e precisava “da energia de seus fi-lhos para intensificar a cultura de seu solo e incentivar o labor em suasofficinas”. Ela estava convencida de que isso só seria conseguido “atra-vés da educação physica, pois o valor de um povo muito depende do seudesenvolvimento physico”.

Ora, todo o professorado precisava ser convencido disto, para en-tão organizar e realizar o ensino de educação física nas escolas minei-ras. Com o pequeno número de Escolas Normais existentes no estado, ediante da inexistência de Cursos Superiores de Educação Física20 a Re-vista do Ensino de Minas Gerais foi de fato uma potente ferramentapara atingir o professorado mineiro, convocado para se transformar “emum verdadeiro cultor do desenvolvimento physico dos pequeninos quelhes são confiados”. Mas, para tanto era preciso seguir as recomenda-ções, instruções, prescrições de práticas, enfim, os conhecimentos porela difundidos e autorizados. Confirma-se, também no âmbito da edu-

20. O Estado de Minas Gerais esperaria ainda até 1952 por cursos superiores de educa-ção física. Nesse ano foram abertos dois cursos, um ligado à Polícia Militar deMinas Gerais, mantido pelo governo, e o outro, pelas Faculdades Católicas deMinas Gerais, ligadas à Igreja católica, ambos funcionando na capital. No anoseguinte, houve a fusão desses cursos que originou a Escola de Educação Física deMinas Gerais, mantida financeiramente pelo estado mas sob acadêmica das Facul-dades Católicas. Em 1969 esse curso foi federalizado, passando a pertencer desdeentão à Universidade Federal de Minas Gerais.

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educação física na revista do ensino de minas gerais (1925-1935) 131

cação física, o argumento de Biccas (2001), de que a Revista do Ensinode Minas Gerais foi uma estratégia de formação do professorado mobi-lizada pelo governo mineiro.

Como anotei, penso que a Revisa do Ensino de Minas Gerais foiimprescindível na “virada” ocorrida nesse período no ensino de educa-ção física, que se consolida na e a partir da década de 1920. Essa viradaaponta para uma reconfiguração e ampliação de seu primado orienta-dor: se nas primeiras décadas do século XX ela foi orientada como prá-tica ortopédica (de endireitamento e correção dos corpos), agora, nos“tempos modernos” isso somente não bastava. Além de corrigir e endi-reitar os corpos infantis, era preciso dotar-lhes também de eficiência –esse novo atributo necessário às novas práticas do mundo do trabalhoindustrial. Isso exigiu a formação do professorado para assumir a orga-nização de seu ensino sob esse primado da eficiência, em que circulamnovas representações sobre suas finalidades e, especialmente, outraspráticas corporais passam a fazer parte de seu programa (como é, espe-cialmente, o caso dos jogos).

Ampliar o exercício será necessário, já que a Revista do Ensino deMinas Gerais tem vida longa (vai até a década de 1970), e nela muitoainda pode ser encontrado e debatido acerca da presença da educaçãofísica nas escolas de Minas Gerais.

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Endereço para correspondênciaRua Estanislau Fernandes, 197

Bairro Ouro Preto – Belo Horizonte-MG

CEP 31340-130

[email protected]

Recebido em: 30 jun. 2005Aprovado em: 26 out. 2005

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Estratégias de aproximação,sociedades de idéias e educação

anarquista em São Paulona Primeira República

Fernando Antônio Peres*

Resumo:O artigo apresenta algumas reflexões sobre a educação anarquista em São Paulo naPrimeira República, partindo do fato de que os grupos libertários elaboraram estratégiasde aproximação para atrair outros atores sociais para as causas que defendiam, por meiode diversas iniciativas, tais como a difusão do ideário pela propaganda, a edição delivros e jornais e a criação de escolas. O conceito de sociedades de idéias, criado porAugustin Cochin e utilizado por François Furet e Jean-Pierre Bastian, é utilizado comoum fator explicativo da presença libertária em São Paulo na Primeira República, contri-buindo para ressaltar as potencialidades desse novo olhar sobre a temática anarquista,para além das estratégias do desterro.ANARQUISTAS; HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO; SÃO PAULO; SOCIEDADE DE IDÉIAS;PRIMEIRA REPÚBLICA.

* Mestre em educação e doutorando em educação (história da educação e historio-grafia) pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).

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Strategies of approach, societyof ideas and anarchistic education

in São Paulo in the EarlyRepublic (1889-1930)

Fernando Antônio Peres*

Abstract:The article presents some reflections on the anarchistic education in São Paulo in theEarly Republic, beginning for the fact of that the anarchistic groups had elaboratedstrategies of approach to attract other social actors for the causes that defended, throughdiverse initiatives, such as the diffusion of the ideas through the propaganda, book andnewspaper publication and the creation of schools. The concept of society of ideas,created for Augustin Cochin and used by François Furet and Jean-Pierre Bastian, it isused as a clarifying factor of the anarchistic presence in São Paulo in Early Republic(1889-1930), with emphasis in the power of this new look at this subject, apart from theexile’s strategies.ANARCHISTS; HISTORY OF THE EDUCATION; SÃO PAULO; SOCIETY OF IDEAS;EARLY REPUBLIC.

* Mestre em educação e doutorando em educação (história da educação e historio-grafia) pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).

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estratégias de aproximação, sociedades de idéias e educação anarquista... 137

Introdução

A educação anarquista (ou libertária)1 pode ser considerada umadas iniciativas educacionais não oficiais mais importantes, dentre as di-versas que se desenvolveram em São Paulo nas décadas iniciais do sé-culo XX2, pois se afirmava como uma proposta de educação diferencia-da, alternativa, em conflito com as proposições oficiais e com asiniciativas da Igreja católica3. As escolas anarquistas foram espaços dedisputa dos corações e das mentes dos atores sociais que circulavampelos bairros em que estavam instaladas ou se faziam presentes nas pá-ginas dos jornais que as defendiam ou atacavam. Estudá-las, na linhasugerida por Hilsdorf (2003), significa apresentar um contraponto paracompreender o tema da escolarização da sociedade, questão tão cara àsoligarquias brasileiras na Primeira República e vista também como crucialpelos trabalhadores, só que em termos bastante diversos, como vere-mos.

1. Como na maioria dos estudos sobre a temática, neste artigo o termo “libertário”será considerado sinônimo de “anarquista”.

2. Outras iniciativas educacionais escolares não oficiais foram as de alguns dos gru-pos políticos radicais, como os socialistas, que propunham “o uso de verbas e re-cursos públicos” para “a criação de escolas operárias noturnas e profissionalizan-tes”; houve também iniciativas de grupos étnicos específicos, como das colôniasde imigrantes europeus (por exemplo, dos italianos) e em defesa da criação deescolas “no interior de um projeto de conscientização das populações negras”(Hilsdorf, 2003, p. 73 e p. 77). Além disso, havia as iniciativas da maçonaria, comoparte de uma estratégia para “ampliar o número de escolas leigas voltadas para ossetores populares”, o que significou, em 1922, 132 escolas em 16 estados, commais de 7.000 alunos matriculados (Barata, 1999, p. 141 e ss.).

3. Nossas reflexões inserem-se na linha de produção acadêmica que, desde a décadade 1980, atenta ao trabalho pioneiro de Catani (1989), tem procurado “redimensionara história da educação paulista menos em função das ‘grandes reformas e realiza-ções’ (ou dos acontecimentos luminosos) e mais em função das iniciativas nãooficiais”, superando a visão dos anos de 1900 a 1920 como um tempo de “desâni-mo, desilusões e frustrações”, uma era de “sombras”, uma época mergulhada na“penumbra” e caracterizada pelo “discurso dominado pela nostalgia do ‘períodoáureo’” de Caetano de Campos, Rangel Pestana, Bernardino de Campos, CesárioMotta, Gabriel Prestes e outros (p. 12 e p. 284).

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A presença anarquista em São Paulo pode ser analisada a partir doestudo das principais correntes ou tendências libertárias4 ou pelo outroolhar que, sem desconsiderar as diferenças entre essas tendências, privi-legie os mecanismos e estratégias de aproximação, sobretudo por tratar-se de uma característica central das sociedades de idéias. Somos incli-nados a considerar que no campo educacional as divergências entre osprincipais grupos anarquistas em São Paulo estavam bastante mitiga-das, prevalecendo o espírito de colaboração.

Considerada a importância das iniciativas anarquistas para a com-preensão da história da educação brasileira no período inicial do séculoXX, outra questão relevante se refere aos documentos disponíveis paraa investigação dessa temática.

As fontes primárias disponíveis para pesquisas sobre os libertáriosno Brasil são relativamente escassas5, pois a repressão policial na Pri-meira República não mediu esforços para destruir os arquivos perten-centes aos círculos anarquistas. Da mesma forma, o aparecimento deoutros interlocutores no movimento social e operário – comunistas, ca-tólicos, sindicalistas de orientação reformista e oficial – resultou na pe-quena produção de documentos e no confinamento, por algum tempo,das trajetórias dos sujeitos sociais libertários que atuaram nas duas pri-meiras décadas do século XX aos “sótãos e porões” da história.

Uma terceira questão diz respeito às relações e às aproximaçõesdos libertários com os demais grupos da sociedade, que ainda permane-

4. Mundialmente os anarquistas nunca constituíram um movimento monolítico ouplenamente sistematizado em termos teóricos ou práticos. Dividiam-se em diver-sas correntes ou “tendências”, tais como: a mutualista-individualista (Godwin), aindividualista (Stirner), a “anarco-cristã” (Tolstoi), a “terrorista” (Ravachol), amutualista (Proudhon), a coletivista (Bakunin), a anarco-comunista (Kropotkin,Réclus, Malatesta) e a anarco-sindicalista. Em São Paulo os grupos libertários iden-tificavam-se principalmente com as duas últimas correntes. Como informa Toledo(1993), entre os anarquistas paulistas havia mais objetivos comuns a aproximarcada uma dessas correntes do que estratégias divergentes a separá-las.

5. Sem dúvida as fontes mais promissoras são as de natureza jornalística. Ferreira(1978) cita 343 títulos de jornais operários ou sindicais publicados no Brasil entre1875 e 1920. Há também um filão promissor nos textos memorialísticos dos mili-tantes anarquistas do começo do século. Ver Peres (2004, p. 16, nota 11).

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estratégias de aproximação, sociedades de idéias e educação anarquista... 139

cem como surpreendentes aos autores que investigam essas temáticas,principalmente na perspectiva educacional. Convém lembrar que o in-teresse acadêmico pelos anarquistas na Brasil tomou fôlego em meadosda década de 1970, resultando na produção de numerosos estudos6, quefaziam a crítica ao confinamento a que foram submetidos aqueles atoressociais. No entanto, a perspectiva adotada pelos autores ainda privilegi-ava a estratégia do desterro7, com a ampla utilização desse conceito naprodução historiográfica das décadas finais do século XX.

Em nossa visão, o ideário libertário transformou-se num mecanismode aproximação entre diferentes atores sociais, atando-os por meio de al-guns “fios”, como o espírito científico predominante na época, os gruposde afinidade e algumas iniciativas concretas: jornais, comícios, campanhas,livros, associações e escolas, temas já explorados pela historiografia8.

6. O trabalho de Boris Fausto, Trabalho urbano e conflito social, publicado em 1976e o de Sheldon L. Maram, Anarquistas, imigrantes e o movimento operário brasi-leiro: 1890-1920, publicado em 1979, constituem as obras pioneiras dessa safrasobre os anarquistas no Brasil. Vale ressaltar também a produção de coletâneas dedocumentos sobre a classe trabalhadora: A classe operária no Brasil, de PauloSérgio Pinheiro e Michael Hall, em dois volumes publicados em 1979 e 1981; e Omovimento operário no Brasil (1877-1944), de Edgar Carone, publicado em 1979.No campo educacional, ver Hardman (1983) e Luizetto (1984).

7. O conceito de estratégia de desterro deve ser compreendido tanto na perspectiva daburguesia quanto dos trabalhadores. Por um lado, manifestava-se como “segrega-ção sócio-cultural e política da força de trabalho, seu confinamento geográfico nosbairros proletários” (Hardman, 1983, p. 43), justificado, segundo o viés burguês,“pela necessidade de ampliação do exército industrial de reserva, de intensificaçãoda exploração capitalista e de consolidação do capital industrial nascente” (idem,p. 59). Na perspectiva dos trabalhadores, tratava-se da “defesa da ‘cultura operá-ria’ intransigente”, numa espécie de vocação para “o isolamento social e oautodesterro na ‘cultura operária’” (idem, p. 59 e p. 78), permeada pela atitude deauto-suficiência filosófica e estética, e apresentando-se como resposta à dupla si-tuação vivida pelos trabalhadores na Primeira República: imigrante estrangeiro eforça de trabalho segregada pelo capital e pelo Estado.

8. Ver, dentre outros: Hardman (1983) para a questão das instituições da classe operá-ria e cultura; Luizetto (1984) para os episódios literário e educacional dos libertários;Toledo (1993) para os grupos de afinidade, com o emprego do jornal O Amigo doPovo; Giglio (1995) para o estudo da imprensa operária, com a utilização do jornalA Voz do Trabalhador; Oliveira (1996), para a atuação dos anarquistas nas lutasanticlericais; Romera Valverde (1996), para a questão do autodidatismo.

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140 revista brasileira de história da educação n° 11 jan./jun. 2006

Este artigo9 pretende contribuir para que o conceito de sociedade deidéias seja considerado outro fator explicativo da presença libertária emSão Paulo na Primeira República, sobretudo na perspectiva educacio-nal, porque entendemos que os grupos anarquistas elaboraram simulta-neamente estratégias de desterro e estratégias de aproximação.

A propaganda, considerada pelos militantes e pelos estudiosos datemática um dos princípios fundamentais da prática libertária, mereceráuma síntese que possa iluminar o estabelecimento de estratégias de apro-ximação entre os atores sociais que viviam em São Paulo na PrimeiraRepública. No item seguinte será apresentado o conceito de sociedadede idéias, que será empregado, de forma inédita, como instrumento deanálise de uma fonte de natureza jornalística. Com esse percurso, pre-tende-se contribuir para ressaltar as potencialidades desse novo olharsobre a temática anarquista em São Paulo na Primeira República.

A propaganda anarquista e a educação escolarcomo estratégias de aproximação

A difusão do ideário anarquista em São Paulo processou-se princi-palmente pela propaganda, o que tornava os grupos extremamente ati-vos e, por isso, pelo menos na visão das autoridades governamentais,muito ameaçadores à ordem dominante.

A propaganda, isto é, a divulgação de idéias pela sua apresentaçãoe debate, e não a doutrinação, constituía a essência da pregação anar-quista. Azis Simão, ao comentar um diálogo que manteve com EdgardLeuenroth sobre os acontecimentos de maio de 1968 na França, obser-vou a insistência de alguns jovens estudantes parisienses no tema da“libertação das mentes”. E ouviu do velho militante anarquista: “Sim,

9. Este artigo é composto, com algumas modificações, pela síntese do terceiro capítu-lo da dissertação “Estratégias de aproximação: um outro olhar sobre a educaçãoanarquista em São Paulo na Primeira República”, defendida em 2004 sob orienta-ção de Maria Lucia Spedo Hilsdorf.

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estratégias de aproximação, sociedades de idéias e educação anarquista... 141

sempre achamos que a libertação das mentes é a libertação dos homens”(Simão, 1989, p. 58).

A propaganda ocupava papel central nas doutrinas anarquistas. Erafacilitada pela situação social e econômica que afligia a humanidade,principalmente os trabalhadores. Os libertários identificavam, e divul-gavam através de todos os meios disponíveis, inúmeros problemas denatureza social e econômica e propunham uma solução social para eles.Assim, a propaganda transformou-se num pólo de aproximação entrelibertários e outros grupos preocupados em resolver tais problemas dasociedade.

As diversas formas de propaganda anarquista desenvolvidas no Bra-sil podem ser didaticamente agrupadas em três tipos: propaganda peloexemplo, propaganda pelo enfrentamento e e propaganda pela palavra.

A principal forma de propaganda pelo exemplo foi a criação decolônias anarquistas. Já a propaganda pelo enfrentamento10 das condi-ções adversas de vida e de trabalho ocorria pela participação dos mili-tantes e dos grupos em atividades de mobilização (tanto nos bairrosquanto nas fábricas), em greves e em campanhas.

Apesar da grande importância assumida pelas atividades de mobi-lização, pelas greves e pelas campanhas, a forma predominante de difu-são do ideário libertário no Brasil processou-se através da propagandapela palavra, através de uma multiplicidade de ações: conferências, pa-lestras, comícios, apresentações teatrais e musicais, recitais de poesia ede canto. Os materiais escritos eram fartamente empregados nas ativi-dades de propaganda pela palavra, através da confecção de gravuras,ilustrações, cartões postais, caricaturas e cartazes, da publicação de li-vros, folhetos e opúsculos e da edição de jornais.

Os grupos libertários criaram bibliotecas e gabinetes de leitura, nosquais eram encontradas obras socialistas, anarquistas e de caráter cientí-

10. Evitamos denominá-la de propaganda pela ação porque essa expressão ficou inti-mamente relacionada aos atos violentos praticados por grupos ou indivíduos isola-dos entre 1881 e 1894 na França, com repercussões mundiais. Era uma expressãotambém utilizada para descrever algumas práticas dos sindicalistas revolucionári-os a partir dos anos iniciais do século XX.

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fico, clássicos da literatura universal e muitos jornais. Para os anarquis-tas, o livro era comparado a uma fagulha numa organização social em si já“explosiva”, capaz de fazer “estourar e rebentar o já enfraquecido invólu-cro que a comprime: o capitalismo” (A Lanterna, 15 abr. 1916, p. 3).

Bibliotecas e gabinetes de leitura prestavam-se aos círculos de lei-tura, uma prática muito comum aos grupos libertários brasileiros. Poresses círculos, os materiais de propaganda – livros, opúsculos e jor-nais – eram lidos e comentados pelos trabalhadores em seus momentosde descanso11. Com essa prática de oralização, os militantes que nãodominavam os mecanismos da língua escrita podiam apropriar-se doconteúdo da literatura libertária. Muitos trabalhadores, analfabetos, de-senvolviam técnicas de leitura pela audição e tornavam-se capazes deler pela boca de seus companheiros. Outros ainda memorizavam trechosinteiros de suas obras prediletas. A leitura em comum era importanteporque “procurava contornar as dificuldades de aquisição individual doslivros, mas, ao mesmo tempo, [possibilitava] aos não-alfabetizados oacesso a esse conhecimento das então chamadas obras sociológicas”(Gonçalves & Silva, 2001, p. 31). A imprensa também era vista pelosgrupos anarquistas como um poderoso instrumento de educação, pordivulgar os principais textos da literatura libertária.

Como a preocupação com a alfabetização dos trabalhadores tam-bém era recorrente nos círculos anarquistas desde suas origens, estes pro-moveram o ensino das primeiras letras, a alfabetização de operários adultose diversos cursos (desenho, música, línguas estrangeiras). Criaram tam-bém associações incumbidas de promover a educação formal e informalcomo os centros de estudos sociais e as universidades populares.

Os libertários não foram os únicos grupos a criar cursos livres euniversidades populares, pois essa prática estava difundida nos meiosintelectuais da época. Hilsdorf informa-nos que, no início do século XX,“quando o partido republicano paulista, já no poder, oferecia ensino

11. Um exemplo do funcionamento de tais círculos de leitura encontra-se no livroBelenzinho, 1910: retrato de uma época, de Jacob Penteado, publicado em 1962 erepublicado em 2003.

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popular na rede oficial, através de escolas públicas noturnas, os cursoslivres serão associados à prática de outros grupos ideológicos como, porexemplo, os anarquistas” (1986, p. 342, nota 17). As associações deorientação libertária foram as grandes promotoras de tais iniciativas,que utilizavam o ensino mútuo como método pedagógico preferido.

“O sistema monitorial, ou a instrução das crianças e dos adultoscom a colaboração de alguns dentre eles, que seriam monitores de seuscolegas” (Lesage, 1999, p. 9-10), foi um sistema de ensino criado naInglaterra nos últimos anos do século XVIII e divulgado por André Belle Joseph Lancaster. Esse método foi aplicado na França no século XIX,recebendo a denominação de método mútuo, com a primeira escola des-se tipo de ensino criada em Paris em 1815. Foi um sistema amplamentedifundido nas jovens nações sul-americanas e em alguns locais do Bra-sil, como a província de São Paulo. Embora associado em sua origemaos círculos liberais – o ensino mútuo fez-se presente em São Paulo naprimeira metade do século XIX, ligado à prática dos liberais ilustrados(Hilsdorf Barbanti, 1977) – essa metodologia esteve também profunda-mente enraizada nas práticas sociais dos trabalhadores. É possível queas tradições de ensino mútuo dos liberais radicais fossem incorporadaspelos grupos libertários, servindo-se das lojas maçônicas como inter-mediárias, num intenso fenômeno de circulação e de mediação de idéiase práticas, num contexto de aproximação entre diferentes atores sociaisem São Paulo.

Convém realçar o fato de que os grupos libertários procuravam fa-zer da propaganda em si um ato fundamentalmente educativo, ensinan-do aos leitores dos jornais e à audiência nas palestras as técnicas e osprocessos mais eficazes para a difusão das doutrinas anarquistas. As-sim, na visão desses grupos, a educação tornava-se o principal objetivoda propaganda emancipadora.

O professor Florentino de Carvalho apresentou os fins e os meiosda propaganda anarquista em sucessivos artigos publicados no jornalGerminal! em 1913. Para ele, a “crítica racional e científica” e a “poten-te ação do [...] braço invencível” constituiriam os pontos fortes do ideallibertário, capazes de desmantelar os pilares da sociedade burguesa:capitalismo, governo, magistratura, códigos, costumes, hábitos, tendên-

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cias e princípios. Além disso, ele expressava a concepção de que nasociedade capitalista as conquistas obtidas com muito sacrifício eramanuladas por ações patronais e que a situação da maioria dos trabalha-dores resumia-se em salário baixo, má alimentação, moradia precária,tarefas insalubres e toda sorte de humilhações. Dessa forma, segundoFlorentino, tornava-se necessário “agitar a consciência da classe [e] de-senvolver as faculdades mentais de um certo número de interessados[...] distribuindo livros, folhetos e jornais de propaganda, realizandoconferências, assembléias e organizando as classes em entidades de com-bate e revolucionárias, que façam praticável a solidariedade” (Germinal!,22 jun. 1913, p. 2). E, para atingir os objetivos propostos, o articulistaconsiderava válidos todos os meios que não estivessem em conflito comos princípios, numa escala decrescente de emprego da violência: a revo-lução armada, o atentado, o incêndio e a sabotagem, a greve, a manifes-tação pública e a organização operária. Florentino expôs um plano deação ideal, baseado em grupos de militantes que desenvolveriam umamultiplicidade de iniciativas e difundiriam as diversas tendênciaslibertárias para além do círculo restrito das sociedades de classe, o queidentificamos como um reforço das estratégias de aproximação.

Contudo, apesar de defender todos os métodos de luta, na práticacotidiana a atuação dos grupos em São Paulo foi baseada na propagan-da: “Ainda hoje falamos em violência e dinamite, e vamos às reuniõesou comícios sem levar um alfinete, e nas nossas residências não se en-contram outras armas que alguns livros ou jornais para defender-nosdos assaltos dos cossacos e detetives” (Germinal!, 15 jun. 1913, p. 1).

Se havia uma preocupação com a educação da humanidade em to-das as atividades de propaganda desenvolvidas pelos libertários, os tra-balhadores eram particularmente destacados como os mais necessitadosde instrução e de ações educativas. Assim, a demanda por educaçãoformal e informal existente nos meios fabris foi também atendida peloscírculos libertários.

O estímulo à prática da leitura apresentava-se como uma das prin-cipais manifestações da propaganda emancipadora e, portanto, das ati-vidades educativas libertárias. Praticamente todos os jornais possuíamuma coluna permanente de anúncio de livros na qual se recomendava a

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leitura das obras de interesse do movimento. Os clássicos da literaturalibertária constituíam a maioria dos títulos: Proudhon, Kropotkin,Bakunin, Augustin Hamon, Elisée Réclus, Sébastien Faure, Jean Grave,Errico Malatesta, Charles Malato, Max Stirner, Louise Michel, LuigiFabbri, dentre muitos outros. Dos grandes escritores do século XIX,Victor Hugo, Émile Zola, Tolstoi, Górki e Flaubert também se faziampresentes. Marx e Engels vez ou outra apareciam como leitura reco-mendada. Livros de educação racional eram anunciados12. Obras de na-tureza científica não eram incomuns: Darwin, Haeckel, Letourneau eGustave Le Bon figuravam entre os autores sugeridos nas páginas dediversos jornais libertários e operários13.

A atividade literária também era recomendada e estimulada. Comoafirma Luizetto (1984), os libertários brasileiros não só sugeriram quetodos colaborassem nas páginas da imprensa, como também redigiramobras de “literatura útil”, isto é, comprometidas com os ideais de liber-tação. Inúmeros escritores produziram romances e peças teatrais quetratavam da questão social: Benjamim Mota com a obra Rebeldias (1898)e Fábio Luz com Ideólogo (1903) talvez tenham sido, no Brasil, os pio-neiros de uma safra de escritores “engajados”, na qual podemos incluir,entre outros, Manuel Curvello de Mendonça, Antonio Avelino Fóscolo,Domingos Ribeiro Filho, Mota Assumpção, Francisco Pausílippo daFonseca, Ricardo Gonçalves e Martins Fontes.

Além da “literatura útil”, o conhecimento científico também eraconsiderado pela maioria dos grupos libertários uma das mais podero-sas armas nas mãos dos trabalhadores. Segundo Florentino de Carva-lho: “O proletariado precisa dos novos e atrevidos esclarecimentos cien-tíficos da Questão Social, para iniciar com mais brios a luta pelaRevolução e pela Anarquia” (Germinal!, 3 ago. 1913, p. 2).

12. No Germinal! de 22 jun. 1913 há o anúncio dos seguintes livros: Como se deveeducar o espírito, de Toulouse; Iniciação astronômica, de Flamarion; Iniciação quí-mica, de Darzens; Iniciação matemática, de Laisant; e Iniciação zoológica, de Brucker.

13. Um levantamento exaustivo da bibliografia libertária foi recentemente apresenta-do por Gonçalves e Silva (2001).

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Apesar de toda a importância dada pelos libertários à instrução e àprática da leitura, tais procedimentos não estavam incorporados ao coti-diano da maioria dos trabalhadores. Aliás, esse descompasso entre oideal almejado pelos libertários e a realidade vivida pelo conjunto dahumanidade era percebido e reafirmado com veemência nos jornais quepromoviam a propaganda emancipadora. O estímulo à leitura e à práticada escrita era um ideal acompanhado da crítica às pessoas que não par-ticipavam das atividades culturais libertárias. Essas orientações asso-ciavam-se à defesa de uma rígida moralidade, notável característica dasconcepções dos grupos anarquistas atuantes no Brasil na Primeira Re-pública, à semelhança do que ocorria em diversas partes do mundo,como na Espanha e no México. Os grupos anarquistas repudiavam ojazz, o carnaval, o futebol, os concursos em clubes burgueses e os víciosda bebida, do tabaco e dos jogos de azar. Dessa forma, ao participar dasatividades culturais, os libertários concretizavam estratégias de aproxi-mação com outros grupos que compartilhavam dessas posições sobre aleitura, a escrita e a concepção de moral exemplar.

A multiplicidade de formas de propaganda pela palavra, as leiturase os cursos também conformavam uma preocupação dos libertários coma autoformação – intelectual física e moral – da espécie humana. Oslibertários foram autodidatas e ardorosos defensores de práticas de auto-instrução. Ernesto Gattai, pai de Zélia, “tivera apenas alguns meses deescola, o suficiente para aprender o alfabeto e as quatro operações. Oresto, tudo o que sabia, resultara de esforço próprio, da vontade de apren-der” (Gattai, 2002, p. 95). Em nosso entender, a formação de autodida-tas foi um elemento vital para a organização das lutas sociais.

Segundo Romera Valverde (1996), o autodidatismo apresentou-secomo uma espécie de “atitude espiritual e prática”, fruto do ensino mú-tuo que se difundiu em todos os setores da sociedade, sobretudo com oflorescimento do capitalismo e, ao mesmo tempo, um imperativo para aorganização autônoma das lutas sociais. No Brasil, os autodidatas eramativistas do livre-pensamento, sindicalistas revolucionários, publicistasdo anarquismo, mas num movimento de aproximação que aglutinavatambém os maçons, os liberais radicais e os socialistas. Para RomeraValverde, “pedagogia libertária e autodidatismo são pares gêmeos e com-

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plementares” (1996, p. 296), numa perspectiva que considera a aquisi-ção de cultura como ingrediente fundamental para as práticas de lutasocial. Em nosso entender, porém, as estratégias de aproximação foramfundamentais para a sustentação da prática educacional e do estímulo àautoformação, que marcaram a presença libertária em São Paulo.

Além do estímulo à leitura e à escrita, da concepção de moral exem-plar e da autoformação, a criação de escolas libertárias apresentou-secomo uma iniciativa primordial em São Paulo. Em outro dos jornais daimprensa libertária, Florentino de Carvalho afirmou que a grande ques-tão colocada naquele momento dizia respeito à “necessidade de criar edifundir novos métodos de instrução e educação”. Mas a escola defen-dida por Florentino de Carvalho tinha como ideal “formar seres aptospara se governarem a si mesmos”, isto é, uma educação para a autono-mia. A educação integral era proposta como forma de revelar todas asverdades demonstradas pela experiência e facilitar os meios necessáriospara que os alunos “possam adquirir os conhecimentos mais essenciaisa fim de que eles próprios criem a sua educação”. Em suma: “Para for-mar uma verdadeira cultura é preciso criar ao redor da infância um am-biente de justiça, de independência e de estética que a liberte dos víciose dos preconceitos que adquire quando está em contato com os elemen-tos de degeneração da sociedade presente” (A Voz do Trabalhador, 1ºjan. 1914).

Se boa parte das atividades escolares cotidianas nas escolaslibertárias paulistas assumia formas costumeiras – a leitura, a escrita, adeclamação de poesia, o canto e outras práticas desenvolvidas nas salasde aula provavelmente não diferiam muito do que se fazia na escolaoficial republicana e nas escolas confessionais católicas na mesma épo-ca –, o conteúdo e os objetivos de tais atividades eram radicalmentediferentes, pois as experiências cotidianas de luta dos trabalhadores es-tavam intrinsecamente presentes nas escolas libertárias.

Nesse sentido, os textos de leitura, desde o aprendizado das primei-ras letras, eram os clássicos da literatura libertária e universal, comoHugo e Zola. As poesias e as canções aprendidas nos bancos escolaresfaziam parte do repertório das lutas operárias e eram repetidas nas gre-ves, nas manifestações de rua, nos comícios e nas festas operárias. Es-

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crevia-se, desde as primeiras linhas, para divulgar idéias renovadoras,talvez mesmo com vistas a formar futuros articulistas para os jornaisoperários ou conferencistas para as atividades de propaganda. No Bole-tim da Escola Moderna, noticiou-se que a publicação d’O Início – jor-nal escolar editado pelos alunos – foi interrompida e substituída peloBoletim, por causa da necessidade de redução de despesas. Mas reafir-mou-se o desejo de retomar a publicação d’O Início, pois “os alunostambém precisam de exercitar-se na imprensa, afim de se habilitarempara a luta do pensamento na sua cooperação para o progresso moral eintelectual da Humanidade” (Boletim da Escola Moderna, 13 out. 1918).

Além do ensino mútuo, as demais bases da pedagogia libertáriapodem ser localizadas numa tradição de educação popular, sustentadatanto pela sede de conhecimento dos autodidatas quanto pelas formula-ções teóricas e ações práticas que, como nos informa Luizetto (1986),remontam ao programa educacional do “Comitê para o ensino anarquis-ta”, iniciativa de âmbito mundial datada de 1882, e que preconizava: asupressão da disciplina, dos programas e das classificações; o ensinointegral, racional, misto e libertário; a valorização da instrução, do co-nhecimento científico e da solidariedade; disseminação de escolas deformato laico nas associações operárias; e o objetivo de vulgarizar epopularizar os saberes científicos. Essa proposta de uma instrução ba-seada na combinação do ensino teórico com o prático apontava para apossibilidade de preparar o indivíduo para a execução de atividades in-telectuais e profissionais. A educação moral centrada no racionalismocientífico preparava o indivíduo para a “consciência da inteligência edo braço”, numa vivência de liberdade e de construção de uma socieda-de de fato fraterna e solidária, conforme informa Giglio (1995).

Assim como nas atividades especificamente de propaganda, nessamultiplicidade de experiências e iniciativas educacionais, formais e nãoformais, houve sempre a presença de outros atores sociais, como osprotestantes, os espíritas e os maçons, elementos aparentemente estra-nhos ao universo libertário, que em inúmeras ocasiões prestaram auxí-lio e manifestaram apoio às ações dos anarquistas, apesar do ferrenhocombate que sofriam da polícia, do governo, do patronato e da Igreja.Tais vínculos, que recuperamos da historiografia e das fontes jornalísticas,

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não podem ser justificados pelo clima cultural da época. A nosso ver,essas ligações explicam-se satisfatoriamente pelas estratégias de apro-ximação, sistematicamente elaboradas e aplicadas pelos atores sociaisque viveram naquela época sob influência do ideário libertário. Esseolhar que privilegia as aproximações entre diferentes atores sociais14 naperspectiva das sociedades de idéias amplia significativamente a com-preensão do fenômeno libertário.

A perspectiva das sociedades de idéias comoestratégias de aproximação

As aproximações e as práticas comuns entre libertários, maçons,protestantes e espíritas explicam-se pelos conceitos de “centros deconvivialidade”, “grupos de afinidade”, “lugares de encontro” e “socie-dades de idéias”, encontrados na historiografia sobre os anarquistas.Apesar de relacionados, são conceitos que descrevem e explicam fenô-menos diferenciados.

Os centros de convivialidade foram os fenômenos mais amplos,característicos do século XVIII, expressão de uma nova sociabilidade eque se manifestaram em formas novas de associação que proliferaramna Europa naquela época: academias, salões, cafés, círculos e, princi-

14. Evidentemente, as aproximações entre anarquistas, maçons e espíritas encontram-se mais bem detalhadas em Peres (2004, p. 174 e ss.). As aproximações com osprotestantes resultaram menos evidentes, talvez em função dos posicionamentosanti-religiosos dos anarquistas e do fato de que os protestantes não abriam mão dadefesa dos evangelhos. Mesmo assim, se tomarmos as iniciativas educacionais dosprotestantes a partir da década de 1870 em São Paulo, havia vários pontos emcomum com as propostas dos libertários, como a “diretriz de ensino prático, cien-tífico e comum para todos” e os princípios do cientificismo, do ensino de ciênciasexatas e naturais, da laicização da vida pública, da co-educação, da formação damulher e da educação popular (Hilsdorf Barbanti, 1977, p. 156 e ss.). Há indíciosde que as aproximações entre anarquistas e protestantes de fato ocorreram em SãoPaulo. Trata-se de uma questão ainda aberta, que este artigo também não se propôsa enfrentar.

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palmente, clubes e lojas maçônicas. Essas associações baseavam-se naadesão voluntária de seus membros, a “livre adesão de indivíduos”, es-tavam “fora do controle do Estado” e representavam a ruptura com asinstituições tradicionais da sociedade: família, paróquia, corporação eordem (Aymard, 1991, p. 480). E, mais importante, “a nova sociabilida-de que então se instituía [...] pode ser considerada liberal, em primeirolugar porque veiculava, entre outras, as idéias das Luzes, e a seguir por-que sua própria existência tinha um princípio liberal” (Agulhon, 1989,p. 56). Essa nova sociabilidade configurava-se à medida que cada asso-ciação tornava-se um “lugar de circulação de idéias” e uma “instânciade aprendizagem de práticas modernas”, como a escolha dos associa-dos, o debate entre os pares e a deliberação (idem, p. 57). Eram, sobre-tudo, “espaços de liberdade” e lugares marcados pela existência de rela-ções igualitárias. Nas lojas, por exemplo, prevalecia o regime deigualdade social, na medida em que nelas se defendia o princípio de que“toda posição e toda promoção em sua hierarquia” fossem determina-das unicamente pelo “genuíno mérito pessoal”, resultante da combina-ção de qualidades absolutamente individuais, isto é, a “virtude” e o “ta-lento” (Aymard, 1991, p. 480).

Nessa perspectiva, podemos considerar as sociedades de idéias comoresultado dessa nova sociabilidade que se constituiu na Europa ao lon-go do século XVIII, tendo recebido um forte estímulo a partir da Revo-lução Francesa. Difundidos, já no século XIX, para todos os setores dasociedade, esses princípios de adesão voluntária de indivíduos a certonúmero de idéias – e que constituíam grupos baseados em relações ho-rizontais, sem fortes relações hierárquicas – mostraram-se particular-mente importantes para a afirmação da identidade das classes médias e,principalmente, das nascentes classes trabalhadoras. Estas souberamapropriar-se de elementos do meio social e cultural em que viviam e,com eles, criar poderosos instrumentos de luta contra as precárias con-dições de existência, traduzindo-os em verdadeira experiência de clas-se. Para além desse posicionamento, através de associações baseadas naafinidade entre idéias, preferências, posturas e concepções, forjaramlugares de encontro capazes de dar sustentação aos ideais de transfor-mação da sociedade em que viviam e inclusive romper com a lógica das

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classes. Já os grupos de afinidade eram “pequenos grupos distintos,espontaneamente constituídos”, preocupados com a formação teóricade militantes e que se afirmavam “primordialmente [como] centros dediscussão” (Toledo, 1993, p. 53 e p. 60)15.

Jean-Pierre Bastian (1989, 1990, 1994) empregou o conceito desociedade de idéias ao investigar a campanha de sociedades missioná-rias norte-americanas para introduzir e difundir o protestantismo noMéxico entre 1872 e 1911, explicando a difusão de outras formas mo-dernas de associação (sociedades de reforma, círculos de artesãos e ope-rários, lojas maçônicas, grêmios mutualistas, círculos espíritaskardecistas, sociedades protestantes, clubes políticos liberais, círculospatrióticos e de reforma) na América Latina, ao longo da segunda meta-de do século XIX.

A expressão sociedade de idéias (ou sociedades de pensamento) foicriada por Augustin Cochin (1876-1916) enquanto uma tentativa decompreender as origens da Revolução Francesa. François Furet recupe-rou a análise de Cochin:

[...] o jacobinismo é a forma acabada de um tipo de organização política e

social que se difundiu na França na segunda metade do século XVIII, e que

[Cochin] chama de “sociedade de pensamento”. Círculos e sociedades literá-

rias, lojas maçônicas, academias, clubes patrióticos são suas diversas mani-

festações. [Sociedade de pensamento] é uma forma de socialização cujo prin-

cípio consiste em que seus membros [...] devem despojar-se de qualquer

particularidade concreta e de sua existência social real. [...] A sociedade de

pensamento é caracterizada, para cada um de seus membros, somente pela

relação com as idéias, e é nisso que ela prefigura o funcionamento da demo-

cracia [Furet, 1989, p. 185].

Para Furet, as sociedades de idéias tinham por objetivo opinar, istoé, construir consensos que depois seriam exprimidos no, propostos para

15. Os grupos de afinidade, em nosso entender, constituem uma questão ainda aberta,pois até o momento não receberam um tratamento conceitual adequado nos estu-dos sobre a temática libertária.

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e difundidos pelo conjunto do tecido social, na busca de fabricar-se umaopinião unânime ou um consenso democrático capaz de exercer a coer-ção coletiva sobre o conjunto da sociedade. Efetuava-se, assim, a pro-dução social da verdade, enquanto obra de um trabalho coletivo. Segun-do Furet, o consenso era a verdade, expressando-se por representaçõescristalizadas e impondo-se ao conjunto da sociedade como “tirania dosocial”. Nesse sentido, novas redes de poder foram tecidas pela socie-dade civil à margem do Estado. As sociedades de pensamento consti-tuíam-se como modelo de democracia pura, sem permitir a delegaçãode poderes ou quaisquer formas de representação.

De todas as formas de associações agrupadas sob o rótulo de socie-dade de idéias, Furet destacou especialmente as lojas maçônicas, consi-deradas por ele associações exemplares: “A maçonaria é [...] o molde danova forma social, destinada a reproduzir muitas outras, que reunirãooutros públicos, veicularão outros consentimentos, mas que estarão sub-metidas à mesma lógica da democracia pura; e que se tornará, sob aRevolução, o poder da ideologia e dos homens anônimos das seções”(1989, p. 213).

As razões que explicam a cristalização ideológica das sociedadesde idéias na segunda metade do século XVIII e, mais precisamente, de1789 a 1793 também foram discutidas por Furet. Esse autor identificacomo fatores que justificam a multiplicação quantitativa e a força sim-bólica que adquiriram as sociedades de pensamento naquele momentohistórico: a existência de idéias-mães, produzidas no âmbito da filoso-fia política e ancoradas nas grandes obras individuais, e a “disponibili-dade de um corpo social que perdeu seus princípios tradicionais” (idem,p. 209). Da mesma forma que Furet privilegiou os fatores endógenoscomo determinantes para a difusão e o sucesso das contribuições trazidaspelas novas idéias, Bastian destacou as “camadas sociais em transição”como fator essencial para o triunfo das sociedades de idéias na AméricaLatina. Ou seja, ambos os autores mostraram que as novas idéias e abase social em que elas proliferaram constituíram fatores essenciais paraa própria existência de sociedades de idéias.

Nesse movimento de resgate da genealogia do conceito, podemosrecorrer a Alexandre Barata, que compartilha com Furet a concepção de

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que as lojas maçônicas são sociedades de idéias exemplares. Partindodas reflexões de Cochin, Furet e Agulhon, Barata situou a maçonariacomo uma instituição “profundamente vinculada à nova sociabilidadepré-democrática que se consolidava na França do século XVIII” (1999,p. 36). Por intermédio de diversas iniciativas, as lojas tornaram-se oinstrumento privilegiado para a divulgação do ideário liberal e dos prin-cípios da Ilustração.

O conceito de sociabilidade também se reveste, segundo Barata, degrande importância para a compreensão da presença maçônica e da açãodos maçons na história brasileira. “A sociabilidade proporcionada pelaMaçonaria a transformava em sede de uma racionalidade e de uma pe-dagogia ilustrada, mediante as práticas do sufrágio, do debate entre ospares e da deliberação” (Barata, 1999, p. 91). Além disso, essa sociabi-lidade, “por ser secreta, exclui todos os que não estão implicitamenteincluídos, mas que, paradoxalmente, tem por princípio moral abarcarem seu seio toda a humanidade” (idem, p. 136). Ou seja, configurava-seum grupo, herdeiro da Ilustração, que, protegido nas sombras do segre-do, difundia ideais políticos a toda humanidade. A estratégia maçônica,tal qual a anarquista, organizava-se em torno de procedimentos pedagó-gicos, com a divulgação do ideário liberal pela palavra, seja escrita oufalada, por jornais, conferências, debates e escolas para alfabetizaçãodo povo.

Convém lembrar que quando os setores dominantes brasileiros con-seguiram congregar seus interesses em projetos políticos e organiza-ções partidárias, a partir dos anos finais do Império, as sociedades ma-çônicas passaram a mediar outras relações, permitindo a divulgação deoutros ideários, como o libertário, baseando-se na longa tradição de lutapela liberdade, tolerância religiosa e valores republicanos, assim comonos novos ideais de modernidade e de ciência. A relação entre maçons,anticlericais e livres-pensadores foi particularmente forte entre fins doséculo XIX e princípios do XX, momento em que ficaram patentes asarticulações entre a maçonaria e as tendências políticas liberais e radi-cais, como os socialistas e anarquistas, e as correntes espiritualistas. Asaproximações entre libertários e maçons foram as mais nítidas e persis-tentes. Nessa perspectiva, realçamos a importância das lojas e associa-

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ções da maçonaria para a difusão de outras sociedades modernas noBrasil: círculos kardecistas, associações espiritualistas esotéricas e cír-culos libertários.

Assim, podemos afirmar que as sociedades de idéias partilhavamde uma tábua de valores que, segundo Bastian (1989, 1994), centrava-se na valorização do indivíduo, na defesa da política democrática, naadoção de princípios da Ilustração, na adesão a uma conduta moral exem-plar e na difusão do ideário liberal e das práticas e valores modernos.

Valorização do indivíduo significa partir do pressuposto de que arelação mais importante estabelecia-se entre os indivíduos e as idéias,exigindo-se assim adesão pessoal e conversão individual dos atores so-ciais, que constituíam uma comunidade ideológica assentada no espíritode livre associação. A defesa da política democrática efetivava-se na ado-ção de modelos de democracia pura (centrados no sufrágio, no debateentre os pares e na deliberação) e de organização horizontal (baseada emprincípios federativos) e dos princípios da cultura cívica, isto é, da defe-sa dos direitos dos cidadãos. A adoção dos princípios da Ilustração mani-festava-se na primazia da razão e no emprego da racionalidade, na peda-gogia ilustrada e ativa, na divulgação de idéias pela palavra (escrita oufalada), em jornais, conferências e escolas, na universalização do ensinolaico, garantindo acesso à leitura e à escrita para todos os cidadãos, e naseparação entre Igreja e Estado. A adesão a uma moral exemplar signifi-cava a adoção de princípios de austeridade, fidelidade conjugal e comba-te aos vícios (sobretudo alcoolismo, tabagismo e jogos de azar) e à pros-tituição. A difusão do ideário liberal manifestava-se na crença absolutanas vantagens da liberdade política e econômica, assim como na defesado progresso econômico e da posição central das ciências na conduçãodo progresso. E a difusão de práticas e valores modernos significava:ética do trabalho, valorização dos esportes, defesa de valores republica-nos e democráticos, práticas igualitárias e mutualistas e valorização docaráter, do esforço e da superação individual. De modo geral, as socieda-des de idéias dirigiam suas críticas às corporações, às hierarquias, à Igrejacatólica em sua vertente ultramontana e aos valores do Antigo Regime.

Nos últimos anos, a historiografia vem pontuando a identificaçãodos libertários em São Paulo com grande parte desses princípios consti-

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tuintes da tábua de valores das sociedades de idéias. Em nossa perspec-tiva, entretanto, o conceito de sociedade de idéias permite uma com-preensão maior, do todo, pois os anarquistas construíram estratégias deaproximação para dialogar e aglutinar outros segmentos sociais, paraalém da estratégia do desterro.

Esse movimento pode ser evidenciado tomando-se o jornalanticlerical A Lanterna16, publicado na capital paulista entre 1901 e 1916,como um caso exemplar. Ou seja: a adesão do grupo anticlerical articu-lado em torno do jornal anticlerical à militância anarquista foi propicia-da pelas aproximações entre diferentes atores sociais que viviam na com-plexa trama de relações existentes em São Paulo na Primeira República.

O jornal anticlerical A Lanterna apresentou três fases de publica-ção: de 1901 a 1904, sob direção do advogado Benjamim Mota; de 1909a 1916, sob direção de Edgard Leuenroth; e de 1933 a 1935, ainda diri-gido por Leuenroth, uma das maiores expressões da militância anar-quista no Brasil. Um arrazoado do ideário defendido pelo jornalanticlerical em suas duas primeiras fases de publicação, situadas emnosso período de estudo, permite a compreensão de como se processa-ram essas aproximações, que ao cabo provocaram a identificação d’ALanterna com a doutrina anarquista.

Na primeira fase, o jornal defendia um conjunto amplo de idéias:progresso, civilização, valorização do trabalho produtivo e da liberda-de. Tratava-se de um compromisso com as causas da modernidade e doprogresso, tanto espiritual (do indivíduo), quanto material e moral (dasociedade). Preconizava-se a instrução laica e integral, baseada no ra-cionalismo, na experimentação, na co-educação e nas ciências, assimcomo princípios morais cívicos, quase evangélicos, sustentados nafraternidade humana, no altruísmo, na tolerância, na solidariedade, noapoio e respeito mútuos. Buscava-se difundir ideais de regeneração e

16. O jornal anticlerical pode ser encontrado no Centro de Documentação e Memória(CEDEM) da Universidade Estadual Paulista (UNESP) e no Arquivo Edgard Leuenroth(AEL) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), que possui a coleçãocompleta do periódico.

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elevação moral dos indivíduos e da sociedade como um todo, através daigualdade e da justiça, do trabalho e do bem-estar compartilhados, dodesprezo das riquezas e da democratização do saber. Defendia-se o so-cialismo revolucionário e a valorização das “leis naturais”, com a rejei-ção das disputas político-eleitorais, do Estado enquanto instituição, dapropriedade privada e de todo e qualquer tipo de autoridade. Propunha-se o livre debate na sociedade livre (A Lanterna, 7 mar. 1901, p. 1; 24mar. 1901, p. 1; 6 abr. 1901, p. 2; 20 abr. 1901, p. 1-2; 3 maio 1901, p. 1;19 maio 1901, p. 1; 3 jun. 1901, p. 2; 6-7 jun. 1903, p. 1; 15-16 ago.1903, p. 1; 5-6 set. 1903, p. 1; 12-13 set. 1903, p. 3; 17-18 out. 1903,p. 2-3; 15 dez. 1903, p. 1; 9 jan. 1904, p. 1; 24 jan. 1904, p. 1). Dessaforma, as pautas anticlericais foram suficientes para aproximar e aglutinardiferentes atores sociais, na medida em que tais idéias constavam nastábuas de valores dos grupos presentes em São Paulo na Primeira Repú-blica, como os maçons, os protestantes, os espíritas, os “esotéricos”17, osestudantes, os republicanos (radicais ou descontentes) e os socialistas.

Na segunda fase de publicação, A Lanterna conservou a maior partedo ideário da primeira fase, como veremos abaixo. Contudo o jornal foigradualmente destacando a questão social e acrescentando elementos anti-religiosos em sua agenda anticlerical, o que provocou o afastamento dosaliados da primeira fase, que não abriam mão da visão religiosa: partedos maçons, os espíritas e os protestantes (A Lanterna, 20 nov. 1909,p. 1; 12 mar. 1910, p. 2; 7 jan. 1911, p. 2; 14 jan. 1911, p. 1; 11 maio1912, p. 1; 13 jul. 1912, p. 2; 18 jan. 1913, p.2; 22 ago. 1914, p. 3; 5 set.1914, p. 2; 14 ago. 1915, p. 4). Ao mesmo tempo em que preservava aaliança com a outra parte dos maçons, o grupo editor reforçava a aproxi-mação tanto com os agrupamentos libertários quanto com os trabalhado-res e suas associações de classe. Nesse movimento, os anarquistas e seusaliados atuavam, para além do jornal anticlerical, com iniciativas e ações

17. Dos grupos conhecidos como “esotéricos” ou espiritualistas, o Círculo Esotéricoda Comunhão do Pensamento apresenta-se como um promissor objeto de pesqui-sa. Criado em 1909 por Antônio Olívio Rodrigues, chegou a contar com dois tem-plos na capital paulista e o controle da editora e livraria O Pensamento.

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culturais, em grupos de afinidade e centros de convivialidade tipicamen-te modernos: centros de estudos sociais, teatros, círculos de leitura, esco-las e universidades populares. Nesses “lugares de encontro” (ou melhor,lugares de aproximação), a relação entre os atores sociais articulava-secada vez mais em torno das já citadas questões sociais (A Lanterna,20 nov. 1909, p. 1; 3 dez. 1910, p. 2; 21 jan. 1911, p. 2; 27 jan. 1912, p. 2;19 abr. 1913, p. 2; 17 maio 1913, p. 2-3). Simultaneamente, Estado eIgreja puseram-se a campo para disputar corações e mentes no conjuntoda sociedade, particularmente entre os trabalhadores.

Da primeira para a segunda fase do jornal anticlerical, o que mudoufoi a tônica da luta, que passou, aos poucos, do combate ao clero para adefesa das causas sociais. A propaganda emancipadora tornou-se entãoo núcleo do ideário d’A Lanterna. Nos artigos, afirmava-se o triunfo daciência e do método experimental para a aquisição do conhecimentolibertador e para o progresso da saúde pública, por meio de medidas deprofilaxia e de higiene. O socialismo e os verdadeiros ideais republica-nos eram exaltados, assim como o princípio da solidariedade humana,opostos ao militarismo, ao patriotismo, à repressão e à opressão. Defen-dia-se um mundo emancipado, instruído e cientista; uma humanidadedotada de idéias avançadas, progressistas e modernas. E, para comple-tar a obra de regeneração da sociedade, a revolução social como objeti-vo principal da existência humana (A Lanterna, 25 jun. 1910, p. 1; 2 jul.1910, p. 1; 9 jul. 1910, p. 1; 23 jul. 1910, p. 1; 30 jul. 1910, p. 1-2; 8 out.1911, p. 2; 1 jun. 1912, p. 2; 2 nov. 1912, p. 1; 23 nov. 1912, p. 1-2;31 nov. 1912, p. 1; 25 jul. 1914, p. 2; 15 ago. 1914, p. 1; 2 set. 1916, p. 1).

Em termos educacionais, houve na primeira fase do jornal a divulga-ção de algumas iniciativas escolares que defendiam a educação laica ecentravam suas práticas em métodos considerados modernos. O jornal tam-bém buscou estimular o surgimento de escolas leigas em São Paulo, a partirde exemplos de iniciativas em outros estados brasileiros e em países estran-geiros (A Lanterna, 24 mar. 1901, p. 2-3; 20 abr. 1901, p. 3; 6-7 jun. 1903,p. 1; 20-21 jun. 1903, p. 4; 8-9 ago. 1903, p. 2; 15-16 ago. 1903, p. 2;10-11 out. 1903, p. 2; 17 dez. 1903, p. 1 e p. 4; 23 dez. 1903, p. 1-2).

Já na segunda fase, a criação de escolas nos moldes da proposta deensino racionalista de Francisco Ferrer tornou-se um dos objetivos prin-

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cipais do grupo editor do jornal anticlerical. Convém lembrar que ou-tros grupos libertários e os grêmios operários também se esforçarampara criar escolas no Brasil desde os primórdios da república. Algunsgrupos com os quais A Lanterna dialogava – como os maçons, os espí-ritas e os protestantes – também se empenharam em fundar ou estimularo surgimento de iniciativas escolares desde a década de 187018. Como amaioria deles, o jornal anticlerical também se dedicou à tarefa de plane-jar uma verdadeira rede de iniciativas escolares, composta de: uma casaeditora para produção de material didático (livros, revistas, folhetos eopúsculos), um núcleo modelo na capital paulista para direção das ini-ciativas e formação de professores, um internato misto para crianças aténove anos, institutos dedicados ao ensino superior (por meio de confe-rências populares de divulgação científica) e uma considerável quanti-dade de unidades escolares, na capital e no interior de São Paulo, paraeducação e instrução de crianças e adultos, em cursos diurnos e notur-nos. Objetivamente, em função da escassez de recursos, apenas umaparte desse plano concretizou-se, após anos de esforços. Mesmo assim,conseguiu-se criar três unidades escolares (no Belenzinho, no Brás e emSão Caetano) e editar duas revistas (O Início e Boletim da Escola Mo-derna), além de prestar apoio e solidariedade às iniciativas em outrascidades ou àquelas instaladas na capital paulista e patrocinadas por ou-tros grupos (A Lanterna, 27 nov. 1909, p. 1; 4 dez. 1909, p. 1; 15 jan.1910, p. 3; 28 out. 1911, p. 2; 31 maio 1913, p. 3; 19 jul. 1913, p. 3;4 out. 1913, p. 3; 25 out. 1913, p. 2; 31 jan. 1914, p. 1; 10 jul. 1915, p. 2).

As iniciativas educacionais escolares do grupo libertário articuladoem torno da folha anticlerical e de combate prestaram-se a difundir oideário anarquista em São Paulo. Além da instrução racional e científi-ca, baseada no método experimental, essas iniciativas propuseram-se atarefa de desenvolver a educação moral das crianças e dos adultos numaperspectiva solidária e libertária, empenhada na regeneração da huma-nidade pela revolução social. Dessa forma, apesar de não termos docu-

18. Ver Hilsdorf Barbanti (1977) para as iniciativas protestantes, Barata (1999) para aatuação da maçonaria e Colombo (2001) para a pedagogia e as escolas espíritas.

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mentação suficiente que nos informe sobre o que ocorria no interior dassalas de aula, as manifestações públicas das escolas modernas de SãoPaulo – nas festas e veladas divulgadas nos jornais – são reveladorasdos conteúdos provavelmente trabalhados no cotidiano daquelas insti-tuições. Os hinos, as poesias e os temas das conferências versavam so-bre os ideais compartilhados pelos grupos libertários (A Lanterna,6 dez. 1913, p. 2; 13 dez. 1913, p. 1; 5 dez. 1914, p. 2; 16 jan. 1915, p. 2;10 jul. 1915, p. 3-4; 15 abr. 1916, p. 2).

Ao longo da década de 1910, A Lanterna, jornal anticlerical e decombate, metamorfoseou-se numa folha em que o combate dava o tom,no momento em que a agenda anticlerical mostrou-se insuficiente paraa continuidade da defesa do ideário libertário, cada vez mais afirmadopelo grupo editor. Esse processo concretizou-se em 1917 com a trans-formação d’A Lanterna no jornal A Plebe, porta-voz das posiçõeslibertárias (A Plebe, 9 jun. 1917, p. 1).

De qualquer forma, o jornal A Lanterna, em sua segunda fase, como enfrentamento da questão social, assumiu um papel de órgão de com-bate e desenvolveu estratégias de aproximação com outros atores so-ciais, aglutinados em torno de uma tábua de valores característica dassociedades de idéias.

Um primeiro aspecto a ser destacado é o fato de que a circulação depessoas imbuídas do ideário libertário em ambientes não anarquistasem nada as poderia desmerecer. Assim, consideramos os gruposlibertários associações de atores sociais originários de diferentes seg-mentos da sociedade e que, pela identidade com um conjunto de idéias,acabaram por promover atividades conjuntas, sobretudo no campo edu-cacional, seja no informal, seja no formal escolar.

Além disso, essas aproximações entre grupos sociais distintos emdiversos aspectos (origem social, práticas profissionais e relações como trabalho, trajetórias de vida e concepções políticas ou filosóficas) re-velam um fecundo processo de apropriações de elementos da culturaburguesa por parte dos trabalhadores e dos grupos libertários. Pelosmecanismos das sociedades de idéias, as nascentes classes trabalhado-ras apropriaram-se de elementos criados por outras classes sociais. Nãose trata pura e simplesmente de uma “influência”, nem com isso quere-

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mos desqualificar o trabalhador, adjetivando-o como imaturo, incapaz,frágil, débil, fraco ou coisa que o valha; enfim, um elemento“influenciável” pela cultura hegemônica. Diante da produção culturalda humanidade, apropriada pelas classes dominantes, os trabalhadoresselecionaram e reapropriaram-se daqueles elementos importantes parasustentar e apoiar suas práticas políticas e suas ações cotidianas, princi-palmente as que revelavam o enfrentamento da dura realidade e as lutascontra a ordem social excludente. Em nosso entendimento, os trabalha-dores brasileiros recriaram aspectos da cultura universal a partir de es-toques de idéias e de práticas sociais, disponíveis a um número maiorde pessoas em virtude da generalização do hábito de ler, revestindo-osde novos sentidos e significações. Recorrendo a eles de acordo comsuas necessidades no processo concreto de luta social e enfrentamentodas dificuldades do cotidiano, diversos grupos sociais, entre os quais ostrabalhadores, contribuíram para a efervescência cultural e política quemarcou as décadas finais do século XIX e as iniciais do XX. Em contra-partida, a prática dos princípios do debate, da discussão e da delibera-ção, ocorrida no interior das sociedades de idéias, contribuiu significa-tivamente para a difusão de ideários avançados e emancipadores, dentreos quais o libertário.

Esse processo de apropriação de elementos culturais efetivou-senum contexto favorável de circulação de idéias, num mundo integradopela economia capitalista no qual ocorriam fluxos de mercadorias (co-mércio mundial) e de seres humanos (processos migratórios). Parte des-sas mercadorias eram materiais escritos (livros, folhetos, opúsculos, jor-nais), que atravessavam os oceanos, muitas vezes já na bagagem dosimigrantes, para subsidiar a difusão de idéias. Além disso, tais instru-mentos concretos de luta também foram criados localmente, como ates-ta a rica produção editorial em São Paulo, com atividades de publicaçãode jornais, livros, folhetos e opúsculos, tradução de obras em línguasestrangeiras e eficiente sistema de distribuição e utilização prática detodo esse material impresso.

O jornal A Lanterna constitui-se num exemplo concreto dessas apro-ximações processadas por intermédio do princípio das sociedades de idéias.O próprio jornal era, em si, um pólo de aproximações, ao aglutinar dife-

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rentes atores sociais. Ao comentar o atentado na calle Câmbios Nuevosem Barcelona (na procissão de Corpus Christi de 1896), a folha anticlericalafirmou que a repressão desencadeada contra seus supostos autores trans-formou-se numa onda que tragara anarquistas, socialistas, republicanos,livres-pensadores, anticlericais e maçons. Ao analisar artigo publicadon’O Estado de S. Paulo em 1901, A Lanterna afirmou que, no caso Dreyfus,foi desencadeada “a guerra contra os judeus, porque depois iriam de em-brulho os protestantes, anticlericais, maçons, livres-pensadores, socialis-tas e anarquistas, enfim todos que se opõe [sic] aos planos abomináveisdo jesuitismo” (A Lanterna, 7 mar. 1901, p. 2 e p. 4). Trata-se de umrecurso amplamente utilizado pelo jornal anticlerical para dialogar comoutros grupos: maçons, socialistas, protestantes e espiritualistas na pri-meira fase; e com os maçons, anarquistas e operários na segunda fase (ALanterna, 6 abr. 1901, p. 2; 14-15 nov. 1901, p. 1; 4-5 jul. 1903, p. 2; 22dez. 1903, p. 2; 23 out. 1909, p. 3; 8 out. 1910, p. 4; 13 maio 1911, p. 3; 8out. 1911, p. 2; 13 jun. 1914, p. 3; 27 mar. 1915, p. 3).

Em suma, os grupos de convivialidade, os grupos de afinidade e associedades de idéias – que podemos entender como constituídos en-quanto práticas de discussão e formação de consensos democráticos –são conceitos fundamentais para o entendimento da história dos gruposanarquistas no Brasil. Se os grupos de convivialidade foram fenômenosamplos, característicos do século XVIII e que receberam um novo vigorcom a Revolução Francesa, as sociedades de idéias tornaram-se os prin-cipais mecanismos para a difusão das idéias avançadas. No caso exami-nado, essas idéias avançadas foram as de matriz libertária, destinadaspelo jornal A Lanterna a toda a humanidade e, especificamente, aostrabalhadores brasileiros.

Dessa forma, as sociedades de idéias permitiram a difusão de novasidéias e de práticas sociais ao conjunto da sociedade brasileira, fazendocom que os trabalhadores, originariamente destinados ao desterro, ela-borassem estratégias de aproximação com outros segmentos sociais.Essas estratégias fizeram florescer uma criativa rede de propaganda doideário anarquista e uma miríade de iniciativas educacionais formais einformais, capazes de preocupar as autoridades civis e eclesiásticas emSão Paulo no final da década de 1910.

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Assim, a propaganda anarquista pode ser apontada como um ele-mento crucial para a concretização das estratégias de aproximação entreos libertários e outros grupos da sociedade paulista na Primeira Repú-blica. As iniciativas educacionais escolares formais e informais consti-tuíram-se em um segundo ponto de aglutinação. As pautas anticlericaisexpressas no jornal A Lanterna, como vimos, aparecem como um ter-ceiro fator de proximidade entre diferentes atores sociais.

Outro canal de difusão do ideário libertário relaciona-se com a po-sição central que as ciências assumiram para amplos setores da socieda-de brasileira. Barros (1959) afirma que a grande renovação intelectualde fins do Império processou-se nos círculos de estudantes autodidatas,amparados pelos livros a que tinham acesso e pelos jornais, tanto os queliam quanto os que editavam. Nesses círculos, divulgavam-se os conhe-cimentos científicos, o ideário liberal e os ideais da Ilustração e da Re-pública.

Essa tradição foi apropriada, algumas décadas depois, pelos anar-quistas. Esse fenômeno ocorreu inclusive em pessoas educadas no seiodo catolicismo19, demonstrando a força das sociedades de idéias atuan-do sobre as “camadas sociais em transição”, por meio de lojas maçôni-cas, sociedades espíritas ou da propaganda (palestras, conferências, jor-nais e livros), através das estratégias de aproximação.

Centradas em tábuas de valores construídas em torno das grandesidéias da Ilustração e da revolução, as sociedades de idéias permitiamque as adesões ocorressem num espectro social bastante amplo, congre-gando atores sociais aparentemente diferenciados. Em nosso entender,os grupos anarquistas em São Paulo foram minorias ativas entre todosos segmentos sociais, cuja força residia exatamente na interlocução comoutros grupos de opinião, mesmo que se considere o clima de indiferen-ça da grande maioria da população. O ideário anarquista, que se movi-mentava no contexto das camadas sociais em transição e dialogava comamplos setores da sociedade, pôde difundir-se por todo o corpo social,

19. É o caso de Joaquim Pimenta no Ceará (ver Peres, 2004, p. 179 e ss.).

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por meio de mecanismos próprios das sociedades de idéias, num pro-cesso de apropriação de experiências de outras associações modernas,como os grupos “esotéricos”, os círculos espíritas, os anticlericais, osprotestantes, os liberais, os radicais e as lojas maçônicas. Assim, a pro-paganda emancipadora dos anarquistas envolvia a totalidade do corposocial e processava-se em grupos organizados pelo princípio da afinida-de com pontos do ideário. A própria natureza das sociedades de idéias,que não implicava participação institucional, permitia diferentes modosde inserção dos atores sociais nos grupos, como militantes, participan-tes esporádicos ou apenas simpatizantes.

O esgotamento das estratégias de aproximação

Apesar das aproximações, não houve total identidade entre os ato-res sociais citados no item anterior. Os distanciamentos entre os grupostambém se fizeram presentes ao longo das décadas iniciais do séculoXX, num reforço das estratégias de desterro que, aliás, nunca foramabandonadas pelos anarquistas.

A historiografia demonstra que o esgotamento das propostasanticlericais e em defesa do livre-pensamento ocorreu a partir de mea-dos da década de 1910, reforçando as diferenças e aprofundando osdistanciamentos entre os antigos aliados. Em nosso entender, na linhaproposta por Oliveira (1996), a década de 1920 representou a conclusãode um processo de renovação da aliança entre o Estado e a Igreja e otérmino de um período de “crise institucional” do catolicismo. Nesseprocesso, foi objetivo do Estado fazer reverberar o discurso das elitespor todas as esferas da sociedade, acomodando tensões sociais e esvazi-ando as pretensões dos grupos políticos mais radicais. A Igreja, por seuturno, pretendia acumular forças e recatolicizar a sociedade brasileira,consolidando reformas internas centralizadoras e reconstruindo-se en-quanto instituição. A expansão das escolas confessionais católicas(diocesanas e das ordens ou congregações religiosas) ocorreu aproxi-madamente no mesmo período, enquanto estratégia de aproximação (daIgreja) com as camadas dominantes e reconciliação com o Estado, opon-

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do-se ao avanço dos grupos mais radicais como uma “sólida barreiraconservadora” (Oliveira, 1996, p. 210). Esse autor justificou o sucessodesse projeto da Igreja como resultado do temor das elites diante dasagitações populares e das crises militares tenentistas. Coincidentemen-te, nessa época assistiu-se ao declínio do movimento libertário e à difu-são de centros operários católicos na capital paulista.

Em outros termos, afirmava-se uma nova configuração para o blo-co dominante, no qual a conciliação entre Estado e Igreja católica obri-gava os grupos libertários a assumir outro posicionamento, determinan-do os limites das estratégias de aproximação definidas nas décadasanteriores. Parcialmente derrotados pela Igreja e pelo Estado na disputapelos corações e mentes da população de São Paulo, os grupos e asso-ciações anarquistas buscaram uma afirmação mais cristalina de seusprincípios, pois o discurso anticlerical não mais servia como mecanis-mo de aglutinação. Ao fazer isso, ao assumirem-se como anarquistas edefensores dos oprimidos – posição inconteste diante do novo título dojornal, A Plebe –, os grupos libertários ingressam, na década de 1920,numa espécie de período outonal.

As estratégias de aproximação, que sustentaram um vigoroso deba-te nas décadas anteriores, foram abandonadas diante do recrudescimen-to da repressão governamental combinada com uma difusão de iniciati-vas escolares públicas e particulares, principalmente da Igreja. Os antigosaliados desistiram das causas sociais que haviam compartilhado com osanarquistas. Não é à toa que em 1919, diante do fechamento das escolasanarquistas e do empastelamento do jornal A Plebe, a sociedade paulistatenha respondido com um altissonante silêncio.

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Endereço para correspondênciaFernando Antônio Peres

Rua Marina, 191

Vila Matilde – São Paulo-SP

CEP 03516-030

[email protected]

Recebido em: 27 abr. 2005Aprovado em: 29 nov. 2005

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O Ato Adicional de 1834 nahistória da educação brasileira

André Paulo Castanha*

Resumo:Pretendo com este trabalho suscitar o debate com a historiografia educacional brasileirareferente ao papel do Ato Adicional de 1834, na definição das políticas de instruçãoelementar no Império. Para a maioria dos historiadores a descentralização fragmentouos parcos projetos e recursos existentes, contribuindo para a proliferação de leis contra-ditórias e, na prática, pôs por terra a instrução elementar no Brasil imperial. A pesquisaque venho desenvolvendo tem demonstrado a necessidade de rever várias afirmações dahistoriografia. Para tanto, tomo como parâmetro de análise obras clássicas e atuais pro-duzidas por um número significativo de historiadores da educação e as posições defen-didas por conceituados intelectuais do século XIX.ATO ADICIONAL DE 1834; HISTORIOGRAFIA DA EDUCAÇÃO; INSTRUÇÃOELEMENTAR NO IMPÉRIO.

* Doutorando em fundamentos da educação pela Universidade Federal de São Carlos(UFSCAR), com pesquisa sobre a educação elementar no Brasil do século XIX. Atual-mente é professor no Colegiado de Pedagogia da Universidade Estadual do Oestedo Paraná (UNIOESTE) – campus de Cascavel; e membro do grupo de pesquisaHISTEDOPR.

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The Additional Act of 1834 in thehistory of the brazilian education

André Paulo Castanha*

Abstract:In this work, I intend to raise the debate on the Brazilian educational historiography, inrespect to the 1834 Additional Act document, defining the empire’s elementary politicalinstructions. For the majority of the historians, decentralization fragmented alreadyexisting, sparing projects and resources, contributing to the proliferation of contradictorylaws, and in practice, dismissing elementary instruction in imperial Brazil. The researchI have been developing has demonstrated the need to review historiography statements.For this reason, classic and resent works created by a significant number of educationhistorians, and positions defended by renowned intellectuals of the XIX century wastaken as analysis parameter.THE ADDITIONAL ACT OF 1834; EDUCATION HISTORIOGRAPHY; ELEMENTARYINSTRUCTION.

* Doutorando em fundamentos da educação pela Universidade Federal de São Carlos(UFSCAR), com pesquisa sobre a educação elementar no Brasil do século XIX. Atual-mente é professor no Colegiado de Pedagogia da Universidade Estadual do Oestedo Paraná (UNIOESTE) – campus de Cascavel; e membro do grupo de pesquisaHISTEDOPR.

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o ato adicional de 1834 na história da educação brasileira 171

Introdução

O Ato Adicional foi o marco que desencadeou uma vasta discussãoentre centralização e descentralização no Brasil imperial, principalmen-te no campo educacional. Quem teria o poder de legislar sobre educa-ção? A quem caberia a tarefa de organizar a instrução pública? Ao go-verno geral ou às províncias? Foram questões que esquentaram asdiscussões entre políticos, administradores, professores e intelectuais.

Os debates do século XIX, de certo modo, não foram superados,pois no presente ainda há discussões no plano nacional sobre a descen-tralização da educação no que se refere à gestão financeira, à autonomiapolítica-pedagógica e aos currículos. Dentro da estrutura educacionalatual, qual é o papel do governo federal, dos estados e dos municípios?Qual o melhor sistema, o centralizado ou descentralizado?

Diante dessas questões sinto que é necessário resgatar o processode organização da educação pública no Brasil do novecentos e ao mes-mo tempo refletir sobre os discursos produzidos pela historiografia edu-cacional ao longo dos anos, para compreender as tensões entre centrali-zação e descentralização na história brasileira. Fazer uma análise rigorosae profunda sobre essas questões é o grande desafio da pesquisa quevenho desenvolvendo sobre a instrução elementar no Brasil do séculoXIX.

Para a maioria dos historiadores a descentralização fragmentou osparcos projetos e recursos existentes, contribuindo para a proliferaçãode leis contraditórias, e na prática pôs por terra a instrução elementar noBrasil imperial. O Ato Adicional é visto como fator determinante nadefinição das políticas de instrução pública elementar, pois cada pro-víncia, a partir de então, tinha autonomia para se organizar ao seu modo.No dizer de Fernando de Azevedo, ela (a instrução pública elementar)arrastou-se “através de todo o século XIX, inorganizada, anárquica, in-cessantemente desagregada” (1996, p. 556).

A pesquisa que desenvolvi sobre a história da educação na provín-cia de Mato Grosso colocou em dúvida algumas das teses defendidaspela historiografia, tais como: a desorganização completa da instruçãoelementar devido ao Ato Adicional; a inexistência de coerência entre os

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projetos provinciais e os da Coroa; a de que não havia por parte dasautoridades públicas preocupação com a instrução elementar. Isso memotivou a aprofundar os estudos em âmbito nacional para ter uma visãomais ampla da educação elementar no Império, e com isso verificar opeso do Ato Adicional na definição das políticas de instrução pública noBrasil do século XIX. Nesse sentido, estou fazendo uma análise compa-rativa sobre os projetos de instrução pública das províncias de MatoGrosso, Paraná, Rio de Janeiro e da Corte, ou Município Neutro.

As fontes centrais que estão sendo trabalhadas são os regulamentosde instrução pública (legislação educacional) produzidos pelas provín-cias, relatórios dos inspetores de instrução publica das províncias e daCorte e os autores do século XIX. Além dos relatórios dos presidentesde províncias, ministros do império, leis e decretos diversos e, é claro, ahistoriografia educacional que discute o período imperial.

O presente artigo representa uma provocação inicial e tem comoobjetivo central suscitar o debate com a historiografia educacional refe-rente ao papel do Ato Adicional de 1834. Para tanto, tomo como parâ-metro de análise obras clássicas e atuais produzidas pelos historiadorese analistas da educação brasileira e as posições defendidas por concei-tuados intelectuais do século XIX. O texto apresenta-se como um en-saio historiográfico inicial, que busca rever alguns pontos cristalizadospela historiografia.

No primeiro momento faço uma breve contextualização do períodopré-Ato Adicional. Em seguida apresento as posições de diversos histo-riadores ante o mesmo. Posteriormente aponto alguns limites do Atoadicional na óptica dos intelectuais do século XIX e por fim faço algu-mas considerações em relação à organização da instrução pública brasi-leira no século XIX.

Um breve panorama histórico

Para muitos historiadores, entre eles Caio Prado Jr. (1994), a inde-pendência do Brasil não pode ser compreendida somente a partir desetembro de 1822, pois já na Colônia começava a se constituir uma elite

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local que almeja maior poder político. Com a vinda da família real em1808, o processo ganhou outra dinâmica, pois a partir de então váriasmedidas foram tomadas no âmbito econômico, político, social e cultu-ral, as quais estimularam as elites locais e fortaleceram a luta pela inde-pendência. Ela chegou e tudo transcorreu em harmonia, sem guerra, decima para baixo, ou seja, sem nenhuma ruptura significativa. No entan-to, tal fato foi importantíssimo para nossa história. A partir de então opoder estava próximo e por isso mais sujeito às criticas, às contradiçõese ao jogo de interesses.

Coube à nova nação a tarefa de criar instituições e leis para substi-tuir as existentes. Nesse sentido, o imperador convocou eleições, quan-do foram eleitos noventa ilustres cidadãos para compor a AssembléiaConstituinte no ano de 1823 e elaborar a nova Constituição. Nela, inten-sos debates foram travados entre os parlamentares, sobre os mais varia-dos temas da época, entre eles a forma de governo, a instrução pública,a criação da universidade brasileira e muitos outros. No calor dos deba-tes os grupos políticos foram-se definindo, tais como: os conservadores,os liberais moderados e os exaltados. Os liberais queriam restringir opoder do imperador e a intervenção do Estado na vida econômica epolítica da nação. Mas como bem lembrou Emilia Viotti da Costa “oliberalismo brasileiro, no entanto só pode ser entendido com referênciaà realidade brasileira. Os liberais brasileiros importaram princípios efórmulas políticas, mas as ajustaram às suas próprias necessidades”(1999, p.132). Entre os blocos políticos não havia grandes divergênciasideológicas, pois ambos eram formados por proprietários rurais, comer-ciantes e intelectuais. As principais diferenças estavam na forma de or-ganização do Estado: monarquia constitucional, parlamentar, federativae república.

Sentindo as tensões políticas dom Pedro I dissolveu a Constituintee pouco tempo depois outorgou a Constituição de 1824. Os conflitos doEstado, daí em diante, agravaram-se: revoltas no Nordeste, crise econô-mica, pressão de Portugal. Esses fatos, aliados a outros, levaram domPedro I a abdicar o trono em 1831 em favor de seu filho menor, Pedro deAlcântara. A renúncia do imperador desencadeou no Brasil um dos pe-ríodos mais tensos da nossa história. Como estabelecia a Constituição

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imperial, no seu artigo 123 foi instituída a regência trina provisória quedepois virou regência una definitiva. Com o objetivo de minimizar osconflitos políticos gerados pela vacância do monarca, pela própria insti-tuição das regências e de interesses regionais aprovou-se o Ato Adicio-nal de 18341, que delegou poderes às câmaras municipais e às provín-cias. O Ato criou as assembléias legislativas provinciais, as quaispassaram a ter poder de legislar e organizar vários setores da adminis-tração pública, entre eles a instrução primária e secundária.

Quem fizer uma leitura daquele período pela óptica da história, veráque as questões centrais são as revoltas e levantes regionais, o golpe damaioridade e a reação conservadora foram feitos com o intuito de resta-belecer a ordem e garantir a integridade da nação. O Ato Adicional évisto pelos historiadores como um fato secundário, principalmente apartir da lei de interpretação do mesmo em 1840. No entanto, se a leitu-ra for feita pelo viés da história da educação, o leitor perceberá que oAto Adicional é representado como um marco fundamental e determi-nante na organização da educação brasileira.

O Ato Adicional e o fracasso da instrução elementar

Há, pode se dizer, quase uma unanimidade na historiografia da edu-cação brasileira em relação ao grau de influência das medidasdescentralizadoras desencadeadas pelo Ato Adicional de 1834. A maio-ria desses historiadores argumenta que a instrução primária ou elemen-tar no período imperial foi um fracasso geral. O curioso é que entre oshistoriadores que compactuam com essa idéia se encontram positivistas

1. O Ato Adicional (uma emenda constitucional) foi aprovado em 12 de agosto de1834 com o objetivo de amenizar os conflitos do período regencial. Criou as as-sembléias provinciais e possibilitou às mesmas, no artigo 10º parágrafo 2º, legislar“sobre instrução públicas e estabelecimentos próprios a promovê-la, não compreen-dendo as faculdades de medicina, os cursos jurídicos, academias atualmente exis-tentes e outros quaisquer estabelecimentos de instrução que para o futuro foremcriados por lei geral” (Nogueira, 2001, p. 108).

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idealista e marxistas. Para evidenciar essa afirmação faço o resgate dosdiscursos produzidos por alguns, dos mais significativos historiadoresao longo do tempo.

As afirmações apresentadas a seguir obedecem à ordem cronológi-ca de suas publicações. No entanto optei por apresentar primeiro os au-tores que consideram o Ato Adicional como determinante do fracassoda instrução e em seguida aqueles que relativisam o papel do mesmo.

Começo por José Ricardo Pires de Almeida (1989), que pode serconsiderado o primeiro autor que tentou fazer uma sistematização dahistória da educação brasileira. Assim ele se expressou:

Desde suas primeiras sessões, as Assembléias Provinciais apressaram-se em

fazer uso de suas novas prerrogativas e votaram, sobre a instrução pública,

uma multidão de leis incoerentes. Esta incoerência podia-se observar não

somente de Província a Província, mas também, nas disposições legislativas

da mesma Província [1989, p. 65].

Segundo ele, a “diversidade de leis e a ausência de regra não con-correm de modo algum – longe disso – para formar um espírito nacionaluno e homogêneo” (1989, p. 66)2.

No início da década de 1940, Fernando de Azevedo (1996), um dosmaiores clássicos da nossa historiografia educacional, aprofundou essadiscussão dizendo:

O ensino público estava condenado a não ter organização, quebradas como

foram as suas articulações e paralisado o centro diretor nacional, donde se

devia propagar às instituições escolares dos vários graus uma política de

educação, e que competia coordenar, num sistema, as forças e instituições

2. Quero aqui chamar a atenção para o fato de que Almeida (1989), após fazer essasafirmações, procurou mostrar no seu texto as várias iniciativas do governo imperi-al para combater as medidas descentralizantes desencadeadas pelo Ato Adicional.Sua obra foi encomendada pela Coroa e escrita em francês para divulgar os feitosdo Império brasileiro sobre educação por toda a Europa.

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civilizadoras, esparsas pelo território nacional. [...]. Foi esse estado de

inorganização social que dificultou a unificação política e impediu a consoli-

dação educacional num sistema de ensino público, se não uniforme e centra-

lizado, ao menos subordinado a diretrizes comuns [1996, p. 556].

A obra de Azevedo é a referência para a maioria dos pesquisadoresem história da educação. No dizer de Marta Maria Chagas de Carvalho(1998), ela transformou-se em monumento, que mesmo quando tomadacomo crítica, os discursos historiográficos acabam repetindo os senti-dos já cristalizados pelo autor. Segundo ela:

As representações sobre a educação no Brasil e sua história, articuladas na

obra de Azevedo, não foram ainda suficientemente desarticuladas e criticadas,

enquanto dispositivos de produção de rígidos esquemas de enquadramento

da disciplina. Estruturando-se monumentalmente como obra de síntese, A

cultura brasileira é uma espécie de compêndio em que se apagam as posições

da enunciação e, por isso, é sem dúvida um lugar no qual a memória dos

renovadores é erigida em conhecimento histórico [1998, p. 331].

Devido ao peso do autor no meio intelectual e à densidade de seusestudos, sua obra acabou-se constituindo em referência obrigatória nocampo da história da educação brasileira. Muitas de suas afirmaçõespermaneceram como “verdades” por um longo período. Somente com oavanço das pesquisas em história da educação dos últimos anos é quealgumas delas começam a ser questionadas.

Não se pode esquecer de levar em conta o tempo e o espaço no qualAzevedo produziu seu discurso histórico. Ele está localizado no augedo Estado Novo e como um agente daquele Estado em construção releua história da educação brasileira a partir da óptica de seu tempo, ou seja,pela perspectiva dos renovadores, da centralização posta em prática pe-los estadonovistas. Seu objetivo era mostrar o progresso da cultura,enfatizando que as proposições defendidas pelo seu grupo eram as me-lhores para o país, naquele momento.

No início da década de 1960, Theobaldo Miranda Santos (1970)publicou um manual didático para ser utilizado nas escolas normais e

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nos cursos de graduação dedicando um capítulo sobre a educação brasi-leira. Ao referir-se à educação imperial afirmou o seguinte:

Em 1834, sob a influência da corrente liberal que dominou a política da re-

gência exprimindo a vitória das tendências regionalistas em luta contra o

espírito nacional, foi decretado o Ato Adicional que transferiu às províncias

a alçada de legislar sobre instrução pública. Com exceção do Município Neutro

[Distrito Federal] cujo sistema escolar permanecia sob a jurisdição do gover-

no central. Com o Ato Adicional ficava eliminada a possibilidade de se con-

ferir uma estrutura orgânica e unitária ao sistema educacional em formação

[1970, p. 418].

Em meados da década de 1960, Josephina Chaia (1965) publicou seuestudo sobre o financiamento escolar e nele fez a seguinte afirmação.“Agrava-se o estado doentio do ensino no Brasil. Como bem afirma oMagnífico Reitor Pedro Calmon: o Ato Adicional colocava a instruçãoprimária e secundária na angústia dos pobres orçamentos locais, ao espí-rito acanhado e rotineiro que persiste longe da Corte” (1965, p. 30).

Por essa mesma época, Maria José Garcia Werebe (1985) publicouum capítulo sobre educação na obra Historia geral da civilização brasi-leira, e lá asseverou:

Em 1834, o Ato Adicional consumou o desastre para nosso sistema educa-

cional, atribuindo competência às assembléias provinciais para legislar so-

bre o ensino elementar e médio. [...] com esta descentralização, precipitada e

mal orientada, o já lento progresso do ensino elementar sofreu sério golpe.

Longe de incentivar progressos locais, que poderiam ter sido mais facilmen-

te atingíveis sem um excessivo centralismo, serviu somente para fortalecer o

jogo de interesses de grandes latifundiários que agiam, a seu bel-prazer em

territórios mais ou menos extensos [1985, p. 376-377].

No final da década de 1960, Anísio Teixeira (1999) fez uma retros-pectiva sobre a relação entre educação e a sociedade brasileira e, refe-rindo-se ao período imperial, escreveu:

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178 revista brasileira de história da educação n° 11 jan./jun. 2006

Por isto mesmo, quando, com a independência e as idéias então dominantes de

monarquias constitucionais liberais, procurou-se organizar o País, já com o pen-

samento na educação do povo brasileiro, confiou-se esta tarefa às Províncias,

deixando-se o sistema da elite sob a guarda do poder central, afim de se lhe

salvaguardar o caráter anterior. Chamou-se a esse Ato Adicional de 1834 de

descentralizador, quando, na realidade, pelo menos em educação, só descentrali-

zava algo que não se considerava suficientemente importante [1999, p. 357].

Logo depois, Gervásio Leite (1970), ao escrever sobre a história daeducação mato-grossense, seguiu na mesma linha, afirmando que:

Desde que o Ato Adicional entregou às Províncias a faculdade de legislar

sobre o ensino, este perdeu a possível unidade que devia ter e seguir, incerto

e sem rumo, dentro da balbúrdia de regulamentos, resoluções, atos, provi-

sões, regimentos e leis que cada Província, ou melhor, cada governante re-

solvesse decretar. Província de poucas possibilidades, Mato Grosso teve pés-

simo sistema de ensino. Não se obedeciam aos regulamentos [1970, p. 31].

No início dos anos 1970, José Antônio Tobias (1986) afirmou que“uma das conseqüências, logo sentidas, do Ato Adicional foi à decadên-cia, ainda maior do ensino público, que ficou decapitado, dividido egradativamente anemiado” (1986, p. 157). No final da década, Otaízade Oliveira Romanelli (2000), ao analisar o Ato Adicional, disse que:

O resultado foi que o ensino, sobretudo o secundário, acabou ficando nas

mãos da iniciativa privada e o ensino primário foi relegado ao abandono,

com pouquíssimas escolas, sobrevivendo à custa do sacrifício de alguns mes-

tres-escolas, que, destituídos de habilitação para o exercício de qualquer pro-

fissão rendosa, se viam na contingência de ensinar [2000, p. 40].

Maria Luisa Santos Ribeiro (2001), na mesma época, escreveu que,em conseqüência do Ato Adicional,

a instrução, em seus níveis elementar e secundário, não era considerada com

“assunto de interesse geral da nação”. [...] Tais níveis de instrução sofrem,

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desta maneira, as conseqüências da instabilidade política, da insuficiência de

recursos, bem como do regionalismo que imperava nas províncias, hoje esta-

dos [2001, p. 48-49].

Em seguida, Maria Elizabete Xavier (1985) publicou seu estudo efez a seguinte afirmação:

Em 1834, esse descaso foi oficializado com o Ato Adicional. Diogo de Feijó,

através do qual o poder central, único capaz de concentrar recursos para a

extensão do ensino elementar em todo o país, legalizou a sua omissão e aban-

donou definitivamente o problema. Deixado a mercê da insuficiência de re-

cursos e da instabilidade política reinante nas Províncias, a escola elementar

brasileira ficará indefinidamente marcada por sérias deficiências quantitati-

vas, e qualitativas [1985, p. 134].

No final da década de 1980, Arnaldo Niskier (1996), na época mem-bro do Conselho Federal de Educação, escreveu uma obra sobre os 500anos de educação no Brasil. Ao retratar o período imperial, trouxe mui-tos dados e fez importantes reflexões sobre o processo educativo. Sobreo Ato Adicional argumentou o seguinte:

Embora essa nova lei representasse um passo decisivo para a descentraliza-

ção do ensino, o professor Alfredo Nascimento Silva é de opinião que piorou

o sistema de organização escolar, “quando o Ato Adicional de 1834, tirando

do governo geral passou para os das províncias esse encargo da educação

inicial”. [...] Na quase totalidade das províncias, a instrução pública se man-

teve, durante muitos anos, em nível precário, não só em conseqüência das

revoltas mencionadas como, também, devido à exigüidade de recursos fi-

nanceiros e á falta de pessoal qualificado para ministrar, até mesmo, o ensino

das primeiras letras [1996, p. 111 e p. 121].

Geraldo Francisco Filho (2001) em obra recente, quando analisou aeducação no Império, enfatizou que os filhos da elite estudavam emescolas confessionais e que a grande preocupação do Estado era com oensino superior. Diante disso, argumenta o autor, “poucas escolas pri-

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márias foram fundadas e a instrução elementar, com o passar do tempotornou-se um encargo da família para os mais pobres. [...] A instruçãopública gratuita para ensinar a ler e escrever ficou quase esquecida naslinhas mortas da constituição de 1824”. (2001, p. 56-57).

Dermeval Saviani (2004) ao refletir sobre o legado educacional doséculo XX, fez uma rápida retrospectiva sobre a educação no Império, enisso argumentou da seguinte forma:

Após a Proclamação da Independência em 1822, uma escola pública nacio-

nal poderia ter decorrido da aprovação da lei das Escolas de primeiras le-

tras, de 1827, mas isso acabou não acontecendo. O Ato Adicional de 1834

colocou as escolas primárias e secundárias sob a responsabilidade das pro-

víncias, renunciando, assim, a um projeto de escola pública nacional [2004,

p. 17].

A falta de um projeto nacional para a instrução pública elementar évista, por esses estudiosos como conseqüência direta do processo dedescentralização das decisões ocorrido a partir do Ato Adicional. O com-bate à descentralização é plenamente justificado para alguns dos histo-riadores citados acima, pois cada qual escreveu dentro de um contextoespecífico e pela perspectiva de um determinado grupo. No entanto,para outros, principalmente os que escreveram com a óptica marxista ecom base em pesquisas acadêmicas, pairam algumas dúvidas. Diantedisso, uma conclusão pode ser tirada. A maioria seguiu a lógicaazevediana para interpretar a educação imperial.

A seguir apresento alguns historiadores que relativizam o papel doAto Adicional na definição das políticas de educação elementar no Bra-sil após a sua aprovação. Todos escrevem com base em pesquisas reali-zadas na academia.

Em 1980, Luiz Antonio Cunha (1980), ao estudar a trajetória doensino superior brasileiro, fez algumas considerações sobre o Império.Sobre o Ato Adicional ele argumentou o seguinte:

O ato adicional dividiu o setor estatal de ensino em duas esferas. A primeira

era a esfera nacional, compreendendo os estabelecimentos criados por lei da

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o ato adicional de 1834 na história da educação brasileira 181

Assembléia Geral. A segunda esfera, provincial, compreendia os estabeleci-

mentos de ensino criados pelas assembléias provinciais. Na prática, houve

uma correspondência entre essas esferas de competência e os graus de ensi-

no. A esfera nacional abrangia as escolas que ministravam ensino primário e

médio, no município da corte, e superior em todo o país; a esfera provincial,

as que se dedicavam ao ensino primário e médio nas províncias [1980, p. 79].

No final de 1992 em um seminário nacional que discutiu a relaçãoeducação, sociedade e Estado pela mediação jurídico-constitucional,Newton Sucupira (1996) fez um estudo sobre o Ato Adicional e a des-centralização da educação, e nele argumentou que a falta de recursosfinanceiros destinados às províncias, por parte do governo central foiresponsável pelo fracasso do ensino elementar. Por isso, é “uma atitudesimplista atribuir toda responsabilidade pelo fracasso e descaso da ins-trução primária no Império à descentralização decretada pelo Ato Adi-cional” [1996, p. 66].

Luciano Mendes Faria Filho (2000), um dos grandes estudiosos dainstrução elementar no século XIX, procurou mostrar algumas iniciati-vas educacionais no Império para ampliar o acesso à instrução elemen-tar, e isso permitiu a ele afirmar que, “a diversidade e a forma desigualcomo se desenvolveu o processo de escolarização primária não devenos levar a acreditar que a descentralização política administrativa pos-sibilitada pelo Ato Adicional de 1834 acabou por impedir o desenvolvi-mento da instrução primária no Brasil imperial” (2000, p. 138).

Em estudo bem recente sobre a política educacional no Brasil, Vieirae Freitas ao analisarem o século XIX fizeram a seguinte afirmação:“Atribuir a uma lei como o Ato Adicional de 1834 todas as mazelas quedificultam e postergam o desenvolvimento de um sistema nacional deensino significa secundarizar o impacto das determinações externas so-bre o processo educacional” (2003, p. 62)3.

3. As referidas autoras, ao analisar o Império, utilizam-se basicamente de Fernandode Azevedo e Pires de Almeida, criticam o primeiro e em algumas passagens fazemuma leitura aligeirada do segundo.

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Pode-se evidenciar no quadro montado acima uma supremacia con-siderável dos estudiosos da educação, que consideram o Ato Adicionalum determinante do fracasso educacional no Império. Até que pontoesses discursos correspondem à realidade? Será que havia de fato umadescentralização? É o que me proponho a discutir a seguir.

Os limites do Ato Adicional

Para compreender os limites do Ato Adicional vou tomar como re-ferência principal os autores do século XIX. A partir deles é possíveldemonstrar a lógica da construção do aparelho estatal e como ele pas-sou a interferir nas províncias e na sociedade em geral.

O grupo político que assume o poder após a abdicação de dom PedroI era constituído principalmente pelos liberais moderados e exaltados,oriundos da luta pela independência e da Constituinte de 1823. De pos-se do poder passam a propor algumas medidas que visavam fortalecer opoder das províncias atendendo aos interesses de alguns grupos. Os âni-mos ficam exaltados e vários conflitos emergem Brasil afora. Para ame-nizar as tensões, a Câmara dos Deputados passa a discutir e aprova umprojeto de emenda à Constituição que procurou rever principalmente ocapítulo V, no qual se definiam as atribuições dos conselhos gerais dasprovíncias. Em 12 de agosto de 1834, pela lei nº 16 foi aprovado o AtoAdicional, o qual extinguiu os conselhos gerais das províncias e criouas assembléias legislativas provinciais com poderes para legislar sobreeconomia, justiça, educação, entre outros. Além disso, o mesmo Atocriou o Município Neutro, desmembrado da província do Rio de Janei-ro, e suprimiu o Conselho de Estado. Foi uma vitória significativa dogrupo liberal.

No entanto os conflitos não desapareceram, pois várias rebeliõescontinuaram explodindo por todo o Império. Por outro lado, vários arti-gos do Ato apresentaram interpretações duvidosas e, por isso, muitasprovíncias passaram a tomar medidas que iam contra o poder geral e aprópria Constituição imperial. Com a justificativa de combater as rebe-liões começou a ganhar corpo junto ao regente um movimento regressista

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que passou a defender medidas centralizadoras. Assim se expressouPaulino José Soares de Souza, futuro visconde do Uruguai e um doslíderes do partido conservador, ao propor o projeto de lei visando à in-terpretação do Ato Adicional em 1837:

Não é, porém, possível que esta augusta Câmara, decretando o Ato Adicio-

nal, o fizesse por tal modo que em vez de estreitar os laços da União os

afrouxasse, introduzindo nas leis judiciárias e administrativas um germe fe-

cundo de intermináveis conflitos e de irremediável confusão e anarquia [2002,

p. 530].

O grupo conservador-regressista defendia um poder forte e centra-lizado como forma de garantir a ordem e o progresso da nação. Com aqueda do regente Diogo Feijó em 1837, assumiu o poder na nova regên-cia, Pedro de Araújo Lima, o qual nomeou Bernardo Pereira de Vascon-celos para a pasta da Justiça. Vasconcelos havia sido um dos autores doprojeto do Ato Adicional. Desiludido com os vários conflitos gerados apartir da aprovação do mesmo acabou tornando-se figura central nomovimento conservador-regressista. Sendo ele extremamente habilido-so com a arte da palavra, notabilizou-se como um dos principais intelec-tuais da emergente força política. Ao assumir o Ministério da Justiça,assim definiu a ação do governo:

Guardar e fazer guardar a Constituição, o Ato Adicional e as leis sendo a

condição devida de qualquer administração brasileira, ocioso se torna dizer

que será a do atual governo. Todavia, para que as nossas instituições liberais

produzam os esperados frutos, para que da sua leal e plena execução resulte

a liberdade e a ordem, é mister que o governo tenha a necessária força; por-

que é só assim que ele pode fazer o bem e prevenir o mal [VASCONCELOS,

1999, p. 242].

Ao falar para os deputados em 1838 acrescenta o seguinte:

Eu não mudei de opinião, eu quero o Ato Adicional entendido literalmente:

só me desviarei de sua letra quando as regras da hermenêutica, quando o bem

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público exigirem que seja interpretado, a fim de que não seja, como algum

dia suspeitei, em vez da carta de liberdade, carta de anarquia [idem, p. 253]4.

O projeto de interpretação do Ato Adicional foi ganhando adeptosno Senado e na Câmara dos Deputados e foi aprovado em maio de 1840.Com ele, limitou-se o poder provincial, principalmente no plano admi-nistrativo e judiciário, e definiram-se claramente as competências dasCâmaras Municipais e das províncias.

Os liberais ainda tentaram o golpe da maioridade de dom Pedro II,em julho de 1840, mas os conservadores logo conquistaram a simpatiado jovem imperador. Com ele começaram a pôr em prática vários ins-trumentos visando á centralização política e administrativa do império.Hegemônicos politicamente, foram suprimindo as resistências e conso-lidando paulatinamente o poder imperial.

No início da década de 1860, Paulino José Soares de Souza publi-cou o livro Ensaios sobre direito administrativo, no qual fez uma análi-se do Estado brasileiro. Nele, ao referir-se ao Ato Adicional, apresentoua seguinte indagação: “Quem há aí que possa contestar que a continua-ção desse estado de completa desorganização e anarquia social, à qualdavam o nome de liberdade, traria por fim a dissolução do Império?”(2002, p. 460).

4. Bernardo Pereira de Vasconcelos é considerado o autor de um discurso clássico,muito citado pela historiografia, e que reflete muito bem aquele período histórico.“Fui liberal; então a liberdade era nova no país, estava nas aspirações de todos,mas não nas leis, não nas idéias práticas; o poder era tudo: fui liberal. Hoje, porém,é diverso o aspecto da sociedade: os princípios democráticos tudo ganharam emuito comprometeram; a sociedade que então corria risco pelo poder, corre agorarisco pela desorganização e pela anarquia. Como então quis, quero hoje servi-la,quero salvá-la, e por isso sou regressista. Não sou trânsfuga, não abandono à causaque defendi, no dia seguinte do seu perigo, de sua fraqueza; deixo-a no dia que tãoseguro é o seu triunfo que até o excesso o compromete. Quem sabe se, como hojedefendo o país contra a desorganização, depois de o haver defendido contra o des-potismo e as comissões militares, não terei algum dia de dar outra vez a minha vozao apoio e à defesa da liberdade? Os perigos da sociedade variam; o vento dastempestades nem sempre é o mesmo; como há de político, cego e imutável, serviro seu país?” (Vasconcelos apud Martins, 1978, p. 230).

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Pouco tempo mais tarde, referindo-se à lei de interpretação do AtoAdicional, no seu livro A província: estudo sobre a descentralização doBrasil, publicado em 1870, Bastos, um dos grandes líderes liberais eardoroso defensor do poder provincial no século XIX, fez uma afirma-ção contundente mostrando a força conservadora.

Debalde lutou-se, porém: cada ano, o gênio da monarquia, o ideal de um

governo forte pela centralização simétrica, fazia maiores conquistas nas leis,

na prática da administração, digamos mesmo, por vergonha nossa, no espíri-

to das populações. Vinte anos depois, ainda promulgava-se a lei contra o

direito de reunião, a lei afrancesada de 22 de agosto de 1860, esse diadema

da onipotência monárquica [1975, p 62].

Para ele, a lei de interpretação de 1840 foi o “ato mais enérgico dareação conservadora”, pois limitou em muito o poder das assembléiasprovinciais. E continuou: “Não interpretava-se, amputava-se o ato adi-cional; e tudo sem os trâmites de uma reforma constitucional: obra poresses dois motivos igualmente odiosa” (idem, p. 67).

No mesmo ano foi lançado o “Manifesto republicano” que trouxefortes críticas à política centralizadora do estado imperial. Nele os ma-nifestantes afirmavam:

A Lei de 3 de dezembro de 1841, que confiscou praticamente a liberdade

individual, é o corolário da lei da interpretação do Ato Adicional, a qual

seqüestrou a liberdade política, destruindo por um ato ordinário a delibera-

ção do único poder constituinte que tem existido no Brasil [1998, p. 730]5.

Além desses depoimentos citados, não se deve esquecer, que o car-go de presidente de província teve suas funções definidas pela lei n. 40,de 3 de outubro de 1834. Nela está explicito no seu artigo 1º que “o

5. A lei de 3 de dezembro de 1841, que eles se referem, reformou o Código de Proces-so Criminal dando maior poder às autoridades policiais e judiciárias nomeadaspelo governo central e, dessa forma, restringindo o poder das províncias.

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presidente da província é a primeira autoridade dela. Todos os que nelase acharem, lhe serão subordinados, seja qual for sua classe ou gradua-ção” (lei n. 40, de 3 de outubro de 1834). A figura do presidente deprovíncia constitui-se em um instrumento central do projeto conserva-dor. Ele limitou o poder das assembléias provinciais e, ao mesmo tem-po, foi fundamental para garantir a hegemonia conservadora, produzin-do e difundindo um tipo ideal de sociedade e Estado para todo o Império.Sua nomeação era uma prerrogativa da Coroa e não tinha um períodofixo de mandato a ser cumprido, poderia ser substituído a qualquer mo-mento6. A província apenas poderia eleger o vice-presidente, mas estesairia de uma lista de seis nomes que seriam escolhidos pelo imperador.

Para entender o poder dessas figuras no Império brasileiro recorronovamente a Bastos (1975) com uma afirmação muito ilustrativa.

O presidente exerce hoje uma dupla autoridade: delegado do governo central,

administra e inspeciona os negócios gerais na província; executor das resolu-

ções da assembléia, dirige e promove os interesses peculiares da província.

Confundidas atualmente nas mãos de um só funcionário, essas duas fontes de

poder conspiram para convertê-lo em um verdadeiro vice-rei [1975, p. 89].

Como procurei demonstrar, após o Ato Adicional as forças conser-vadoras desencadearam uma série de medidas que ao longo do tempominimizaram a ação das províncias. A lei de interpretação do Ato Adici-onal, o Código de Processo Criminal, a criação do Conselho de Estadoe a nomeação dos presidentes de província constituíram-se em instru-mento que buscaram restabelecer a ordem e impor a hierarquia políticae administrativa. Dentro dessa lógica também é possível verificar umagrande influência no campo educacional e, a partir disso, rever o discur-so produzido pela historiografia ao longo do tempo.

6. A Constituição de 1824 no seu art. 165 estabelece o seguinte: “Haverá em cadaProvíncia um presidente, nomeado pelo Imperador, que o poderá remover quandoentender que assim convém ao bom serviço do Estado” (Nogueira, 2001, p. 101).Na maioria das províncias o tempo médio do mandato do presidente era sete me-ses, enquanto na província do Rio de Janeiro era de 15 meses.

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Ao fazer uma comparação entre as legislações (regulamentos) pro-duzidos pelas províncias e os que foram elaborados na Corte, na provín-cia do Rio de Janeiro, é possível perceber que havia uma grande seme-lhança. Não há dúvidas de que o núcleo conservador localizado no Riode Janeiro tenha sido a força irradiadora de um projeto de Estado e so-ciedade, também via instrução pública. Nesse sentido, a legislação edu-cacional tornou-se um importante instrumento desse processo e aos pou-cos aqueles preceitos foram sendo assimilados nas demais províncias.Portanto, também havia, de certa forma, uma centralização no campoeducacional. Para demonstrar isso, novamente vou me reportar aos au-tores do século XIX.

Começo por Bastos (1975), que ao analisar a instrução pública afir-mou, “escusado fora discutir os obstáculos que nesta matéria tem a cen-tralização oposto às províncias, e que já citamos a propósito de grausliterários, cadeiras de ensino secundário, penas para a sanção de regula-mentos, etc” (idem, p. 145). Segundo ele, a interferência e direção fi-cam mais clara a partir da reforma Coutto Ferraz de 1854: “Antes de1850 não se conheciam tantos abusos, mas, por triste imitação de umregulamento geral, desde então cada presidente foi impondo às provín-cias o regime europeu da intervenção no ensino privado” (idem, p. 147).A afirmação de Bastos procede, pois não há dúvidas que a reforma deCoutto Ferraz é um marco na organização da instrução pública no Impé-rio. Nela são definidos os princípios que nortearam a organização dainstrução a partir de então. Gratuidade, obrigatoriedade, controle dosprofessores, inspeção escolar, ordenamento do ensino particular etc. sãoconceitos e instrumentos que passaram a fazer parte das legislações nasprovíncias a partir de 1854.

Antonio de Almeida Oliveira (2003) argumentou no mesmo senti-do de Bastos, quando discute a questão da liberdade de ensino, no seulivro O ensino público, publicado em 1873. Assim ele se expressou:

Mandado pela lei de 17 de setembro de 1851, o governo atacou-a no Regulamen-

to que deu à instrução pública da Corte em 17 de fevereiro de 1854, e tanto

bastou para que o imitassem os seus delegados nas províncias. O contágio pegou

facilmente. Mas quão difícil não tem sido a sua extirpação? [2003, p. 95].

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A questão da liberdade de ensino e do ensino particular no Império,também merece ser revista pela historiografia educacional. Basta fazeruma leitura atenta nos autores do século XIX e na legislação educacio-nal para verificar como o Estado imperial, a partir de 1854, passou aocupar-se dessa questão impondo normas legais e instrumentos de ins-peção, nos quais o requisito da moralidade era fundamental para serprofessor7.

Portanto, no dizer de Maria Lourdes Viana Lyra (2000), “ao contrá-rio do que é comumente afirmado, o Ato Adicional não descentralizavaos mecanismos de poder político ou administrativo, nem concedia aautonomia às províncias”. Sua aprovação teve como objetivo principal“impedir a descentralização do poder político no Brasil imperial, justa-mente o contrário da idéia corrente que entendia essa lei como concedenteda autonomia provincial” (2000, p. 93-95).

Ilmar R. Mattos (1990), em estudo profundo sobre a formação doestado imperial, apresentou-nos argumentos bem contundentes, que for-talecem a idéia de rever as posições da historiografia sobre o Ato Adici-onal. Seu objetivo é mostrar como se deu a direção Saquarema8 a partirdo núcleo central fluminense, no processo de formação da nova nação.Para ele, a aprovação do Ato Adicional, que também separou a provín-cia do Rio de Janeiro da Corte, fortaleceu o grupo conservador sediadona mesma. Ao separar-se da Corte, a província fluminense passou a go-zar de uma condição especial e isso foi fundamental para os conserva-dores, que a governaram- após a separação. Como os presidentes deprovíncias eram nomeados pelo imperador, a província do Rio de Janei-ro e a Corte passaram a fornecer a maioria dos homens que receberam atarefa de administrar as várias províncias do Império. Dessa forma, a

7. Afirmações como estas: “A liberdade irrestrita, de que gozavam os particulares,permitiu a multiplicação descontrolada de escolas ou aulas avulsas de ensino se-cundário. [...] Efetivamente, o ensino privado jamais sofreu restrições, em nossopaís” (Werebe, 1985, p. 374 e p. 377), respectivamente, devem ser revistas.

8. A expressão Saquarema era utilizada para caracterizar o grupo conservador da pro-víncia do Rio de Janeiro e acabou virando sinônimo de conservador. O mesmoaconteceu com a expressão Luzias, que passou a ser sinônimo de liberais.

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Corte e a província do Rio de Janeiro tornaram-se o centro irradiador deidéias para o resto do país. Devido à sua proximidade com o MunicípioNeutro, ou sede do Império, a província fluminense teve uma relaçãomuito dinâmica com o centro do poder e, por isso, os presidentes nome-ados para administrá-la eram geralmente da região e certamente conhe-cedores dos principais problemas que a mesma enfrentava. Em contra-partida, as outras províncias recebiam, em geral, um novo presidentenum período que variava de seis meses a um ano. Como vinham deoutras regiões, desconheciam os problemas que as mesmas enfrenta-vam. O resultado dessa política permitiu que:

a província fluminense cumprindo o papel de um laboratório, no qual os

Saquaremas tanto testavam medidas e avaliavam ações que buscavam esten-

der à administração geral, quanto aplicavam decisões do Governo Geral, sem-

pre com a finalidade última de consolidar a ordem no Império [Mattos, 1990,

p. 252-253].

Esses argumentos, aliados a uma análise detalhada da legislaçãoeducacional produzida por várias províncias (incluindo aquelas men-cionadas na introdução), permitem repensar o papel do Ato Adicionalna formulação de políticas de instrução pública no Império brasileiro.

Ao analisar a legislação educacional de algumas províncias, é pos-sível perceber que havia uma filosofia, uma direção que orientava esseconjunto de leis, no que se refere à instrução elementar, ao controle dotrabalho do professor, ao caráter moral, e ao projeto político e socialpara aquela região.

A tarefa da instrução elementar estava muito clara, e o sucesso des-se projeto dependia da ampliação e difusão desses princípios entre apopulação livre. Cabia à instrução formar as crianças e os jovens (futu-ros cidadãos e trabalhadores), disciplinando-os e preparando-os paradesempenhar um certo papel social, bem como ocupar os espaços gera-dos a partir das novas relações de trabalho que estavam se concretizan-do. Portanto, uma instrução mínima devia ser difundida de maneira ade-quada para todos os pontos possíveis do Império. O papel esperado daescola e do professor seria o de levar o povo até a civilização fazendo

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com que estes pudessem, aos poucos, assimilar os preceitos de umasociedade ordenada. Reservava-se à instrução pública elementar umatarefa muito importante naquele projeto de construção de uma ordem edifusão da civilização. No dizer do inspetor de instrução pública da pro-víncia de Mato Grosso Joaquim Gaudie Ley (1858):

A instrução primária não é só uma dívida social para o povo; é também uma

necessidade pública: sem ela a religião, as luzes, a ordem e a segurança pú-

blica dificilmente serão conservadas; pois é certo que em todos os tempos e

lugares, a ignorância tem sido a mãe de todos os vícios [Relatório de 1858].

Não restam dúvidas de que havia uma direção com princípios nor-teadores claros, que deram uma certa lógica ao conjunto da legislaçãoeducacional produzida nas províncias e, dessa forma, as políticas deeducação elementar no Império. O núcleo produtor daquelas idéias es-tava na província do Rio de Janeiro e na Corte, região mais desenvolvi-da do Brasil do século XIX.

Considerações finais

Em matéria recente publicada no jornal O Estado de S. Paulo, Jor-ge Werthein (2004), ao analisar a situação educacional do Brasil atual,fez a seguinte afirmação sobre o século XIX: “Todavia, o Ato Adicionalde 1834, digerindo mal o liberalismo da época, delegou às provínciasessa responsabilidade, isentando o poder central de uma missão que lheseria própria, deixando a educação primária à sua própria sorte” (2004).Será que depois de vivermos regimes de pesadas ditaduras, que tudocentralizaram, ainda temos que recorrer ao Ato Adicional para justificaro quadro atual de nossa educação? O Ato Adicional não pode ser consi-derado tão nefasto à organização educacional no Império e consequen-temente para a história da educação. Até que ponto esse discurso cons-truído pela historiografia não dificultou uma discussão mais profundasobre as políticas educacionais brasileiras ao longo da nossa história?Ou ainda, até que ponto esse mesmo discurso não impediu experiênciasdescentralizadas de organização da educação?

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Ao fazer essa crítica à historiografia não estou afirmando que haviaum amplo acesso à educação no Brasil do século XIX. Sei que as crian-ças que recebiam instrução eram pouquíssimas, que o ensino era muitodeficitário, que os professores não tinha a formação adequada e, princi-palmente, que eram mal remunerados. Mas como historiador da educa-ção preciso fazer uma leitura a partir do contexto, no qual o objeto deestudo está inserido. Para isso me reporto aos ensinamentos de Marx(1987) que diz:

É por isso que humanidade só se propõe às tarefas que pode resolver, pois, se

se considerar mais atentamente, se chegará à conclusão de que a própria

tarefa só aparece onde as condições materiais de sua solução já existem, ou,

pelo menos, são captadas no processo de seu devir [1987, p. 30].

No Brasil do século XIX não havia condições históricas para resol-ver o problema da escola pública. Não havia condições econômicas, polí-ticas, sociais, materiais e humanas para difundir escolas por todo o territó-rio habitado. Além disso, o interesse da população pela instituição escolarera muito pequeno, uma vez que o Brasil da época era basicamente rural,a população estava dispersa, com difíceis recursos de comunicação e trans-porte e tinha como base de organização a escravidão. A escola era umainstituição em processo de constituição e, por isso, disputava espaço comoutras entidades e outros interesses da população.

A partir dessa posição de Marx é permitido pensar que a maioriados historiadores da educação, ao interpretar a educação elementar noImpério, acabaram chegando a conclusões que, de certa forma, negam aperspectiva da história, pois condenam aqueles homens por não teremuniversalizado a educação popular. Muitos desses historiadores passama idéia de que havia uma certa atitude conspiratória por parte da elitedirigente, pois não se preocupavam com o processo de organização edifusão da escola elementar no Brasil imperial. Esqueceram-se que oshomens fazem a história a partir das condições dadas pelo seu tempo.Nesse sentido, penso a sociedade como resultado das ações humanas,portanto, construída historicamente, por isso, partilho da seguinte afir-mação de Gilberto Luiz Alves:

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Não há homens pérfidos, oportunistas, traidores e farsantes realizando tare-

fas políticas com a intenção primeira de prejudicar os trabalhadores; há ho-

mens propondo solução para os problemas de seu tempo sob a sua perspecti-

va de classe. Especialmente para o historiador que se coloca no campo do

fazer científico, tal como entende Marx, os papéis históricos de pensadores e

de pedagogos não podem ser reduzidos a traços de caráter nem interpretados

a partir de exigências extemporâneas [2001, p. 32-34].

Diante disso, é forçoso afirmar que no Império não havia preocupa-ção alguma com a instrução pública elementar, que não havia planonem metas, que era completamente desorganizada. Creio que é possívelfazer uma leitura diferenciada, bastando para isso reler o processo deorganização da instrução pública a partir de outra óptica, ou seja, dacentralização, levando-se em conta que aquela era uma sociedade con-servadora, escravocrata e essencialmente rural, ou seja, pensá-la à luzdas condições materiais e sociais do século XIX.

Quero chamar a atenção para esse fato, que felizmente estamos avan-çando muito nas pesquisas em história da educação no Brasil, e isso temcontribuído para revermos várias afirmações dogmáticas da historio-grafia. Assim, para compreender o papel do Ato Adicional, estou com-parando os regulamentos de instrução elaborados por algumas provín-cias e, dessa forma, verificando a dimensão da chamada descentralização.Será que havia projetos tão diferentes entre as províncias, ou havia prin-cípios que norteavam o conjunto das legislações?

Bastos (1975), na minha concepção, estava certo ao defender maiorpoder de participação das províncias e dos municípios para resolver osproblemas da educação elementar. Acredito que teremos qualidade naeducação fundamental quando houver um envolvimento efetivo da po-pulação nas questões educacionais dos municípios. Do poder central sóprecisamos garantir os recursos. Não podemos esperar que o governofederal vá resolver os problemas da educação, pois o país é muito gran-de, e muitos são os interesses. Quem vai dar a efetiva qualidade é amunicipalidade.

Diante disso, deixo as seguintes questões. Até que ponto grandeparte da apatia de nossos educadores não está relacionada ao discurso

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da necessidade de centralidade nas políticas de educação produzido pelahistoriografia educacional? Será isso uma evidência de falta de expe-riências democráticas? Qual o papel da história da educação nesse pro-cesso?

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Endereço para correspondênciaRua Universitária, 1334

Bairro Universitário

Cascavel-PR

CEP 85819-110

[email protected]

Recebido em: 30 jun. 2005Aprovado em: 20 fev. 2006

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Resenhas

A produção da escola pública contemporânea

autor Gilberto Luiz Alves*cidade Campo Grande-MS

Campinas-SPeditora Editora UFMS

Autores Associadosano 2001

A produção da escola pública contemporânea é resultado dosestudos de pós-doutorado do autor cuja origem se encontra em suabusca pelo entendimento sobre a escola moderna. Fundamenta-sena análise da produção material da escola e, portanto, a categoriacentral de sua obra é o trabalho. De matriz teórica marxista, o autorreclama a necessidade de releitura politizada dos clássicos por partedos educadores e revela rigor metodológico em sua análise dos de-terminantes das origens da escola pública. Assim, realiza o estudo

* Gilberto Luiz Alves – Graduado em pedagogia (Universidade Estadual Paulis-ta – UNESP, 1969); mestre em educação (Universidade Federal de São Carlos –UFSCAR, 1981); doutor em educação (Universidade Estadual de Campinas –UNICAMP, 1991); concluiu o pós-doutorado em educação (UNICAMP, 1998). Pro-fessor titular aposentado da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul(UFMS). Professor do mestrado em educação da Fundação Universidade doContestado, campus de Caçador (SC). Membro da Sociedade Brasileira de His-tória da Educação e do Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade eEducação no Brasil” (HISTEDBR – Corumbá-MS). Desenvolveu os projetos: Edu-cação e história em Mato Grosso: 1719-1864 (UFMS), Memória da educaçãosul-mato-grossense (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais –INEP/UFMS), A produção da escola pública contemporânea (UFMS/UNICAMP).Projetos em desenvolvimento: Origens e desenvolvimento da escola públicamoderna no Brasil até o início do século XIX; Levantamento, catalogação edigitalização de fontes primárias e secundárias da educação sul-mato-grossense;A modernização tecnológica da pecuária no Pantanal da Nhecolândia: estudohistórico a partir do discurso de memorialistas da região. Publicou, ainda, Opensamento burguês no Seminário de Olinda 1800-1836 pela editora AutoresAssociados (fontes: CNPq/Lattes; Sociedade Brasileira de História da Educa-ção; site Livraria Cultura).

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da escola pública contemporânea adotando dois grandes períodos:de sua origem até o século XIX e da metade deste até o século XX.

No primeiro período, segundo análise particular, aponta as raízesda escola pública contemporânea em três vertentes do pensamentoburguês: a Revolução Francesa, a economia clássica e a Reforma pro-testante. Faz, a partir de fontes clássicas e documentais, a análise dapassagem da escola feudal para a universalização do atendimento es-colar e dá atenção especial à análise da vertente religiosa fazendo areleitura da obra Didáctica Magna de Comenius. Finaliza esse pri-meiro período indicando um quadro de referência para a expansãoescolar no século XIX e assim retorna aos primeiros apontamentosindicando que: a educação pública na França teve parte central nasdiscussões políticas pelo entendimento de que ela seria condição daconsolidação da República; na Inglaterra, a educação pública poucodominou o debate no século XVIII e o interesse e a preocupação reca-íram sobre a função da educação como intervenção para “impedir aquase total corrupção e degeneração da grande maioria das pessoas”1;na Reforma protestante, por sua vez, a educação pública recebe aten-ção especial por ser considerada importante para o acesso à leiturabíblica, instrumento de salvação e aprimoramento dos crentes.

O segundo período dedica-se a analisar a produção material e aexpansão da escola pública e aponta as relações entre esse processode produção da escola e sua natureza e as funções sociais que foi evem assumindo, desencadeadas pela Revolução Industrial. Para essaanálise, o autor usa a base teórica marxista para discutir a produçãomaterial do bandido: “[...]O criminoso não produz apenas crimes,mas também o direito criminal e, com este, o professor que produzpreleções de direito criminal e, além disso, o indefectível compên-dio em que lança no mercado geral ‘mercadorias’, a suas conferên-cias [...]”2. A exemplo disso, vale apontar o cenário que se colocou àescola pública: ela não produz apenas a exclusão dos alunos da clas-se trabalhadora, mas produz também a subordinação daqueles quenela permanecem na medida em que são submetidos às suas rotinasde organização do tempo, do espaço, dos sujeitos e dos saberes, bem

1. Smith apud Alves, p. 74.2. Marx apud Alves, p. 16.

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resenhas 199

como à utilização das “mercadorias” por ela recomendadas: o livrodidático, as apostilas, reprografia de livros que deveriam comporsuas bibliotecas, a avaliação da aprendizagem, as tarefas extraclasse –a conhecida lição de casa.

Essa segunda seção de sua obra está organizada, então, na apre-sentação das idéias acerca da produção da clientela escolar, da pas-sagem da escola dualista à escola única, da escola que seuniversalizou, dos câmbios sociais, das funções da escola pública,da crise econômica e da expansão escolar. A análise considera espe-cialmente a crise do capitalismo e a barbárie social que se agudiza ecaminha para o interior da escola.

Enfim, conclui apontando duas saídas para a educação pública:a tarefa de construir uma nova organização didática da escola com-patível com as necessidades e recursos contemporâneos, e a consti-tuição de sujeitos no interior da escola que se coloquem em lutacontra a “escola manufatureira” e pela construção de uma nova es-cola pública.

A obra toda é de relevância para o estudo da escola e de suaorganização didática. Entretanto, cabe destacar dois aspectos: a crí-tica à obra Educação e luta de classes, de Aníbal Ponce, apresentadana introdução do livro de Alves e que não era, de início, propósito deestudo do autor, mas que se tornou um objetivo implícito aos trêsdefinidos a priori, e a relação entre a construção de uma nova escolapública e a formação dos professores.

Primeiramente, na crítica à obra Educação e luta de classes, deAníbal Ponce, Alves confirma sua posição marxista e faz a crítica àsposturas teóricas pouco rigorosas nas investigações sobre a produ-ção da escola pública. Para isso, aponta ainda que os estudiosos deesquerda no século XX desenvolveram um referencial teórico defiliação marxista, porém marcado pelo “materialismo vulgar”. Nes-se sentido, ao abordarem o objeto de estudo – a produção materialda escola pública – adotaram uma análise que coloca a escola emsituação de simples reprodução mecânica das condições impostaspelas bases econômicas da sociedade em que se dá – a capitalista,nesse caso – e dispensa “[...] a concepção dialética de superação porincorporação, que implica, necessariamente, salto de qualidade”(Alves, p. 40) defendida por Gramsci. O autor insiste, assim, queinexiste oposição no interior da escola à sua constituição histórica –

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a escola manufatureira – “[...] o que retarda o parto histórico da ins-tituição social que o novo tempo exige” (idem, p. 241).

O segundo aspecto – a relação entre a construção de uma novaescola pública e a formação dos professores – aponta para uma evi-dência: a de que a educação escolar buscou e assimilou concepçõesde ciência e pesquisa que ainda não possibilitaram uma práxis quesuperasse a “escola manufatureira” e, portanto, não criou nem de-senvolveu alternativas para, enfim, alcançar a educação e escola paratodos.

Mas, que modelo de educação e ciência atenderia a essa neces-sidade? Inúmeros estudos apontam a dificuldade do professor eminserir-se no contexto escolar de forma a transformá-lo, embora suaprática na escola, na maioria das vezes, esteja marcada por confli-tos, confrontos e contradições. Constata-se, então, que a formaçãode professores não contribui para o entendimento da prática peda-gógica como prática social e, por conseqüência, o papel da escola naatualidade. Nesse contexto, cabe lembrar que como prática humanaa educação é marcada por um caráter provisório, de contínua cons-trução, uma vez que decorre da interiorização e da elaboração darealidade, disponível e distribuída socialmente. É nesse sentido quevale destacar que o autor insiste que os educadores, especialmente,vêm contribuindo para a preservação da escola idealizada e realiza-da por Comenius no século XVII. É interessante, inclusive, notarque as informações veiculadas hoje, tanto no âmbito da formação deprofessores quanto no cotidiano da educação, apontam para a manu-tenção da escola de Comenius ao insistirem em afirmar sua propostapedagógica como muito avançada; de fato o foi em seu tempo, poisestava consoante com a lógica social e representava sua interpreta-ção das necessidades produtivas da época.

Porém, quanto ao desenvolvimento profissional, importa for-mar professores na perspectiva de uma prática docente para alémdas técnicas e dos métodos, que na maioria das vezes apenasdogmatizam o trabalho docente e não possibilitam ao professor com-preender que as situações que se apresentam no interior da escolasão únicas e exigem, portanto, respostas únicas, ou melhor, exigema incorporação das inovações tecnológicas próprias de cada tempo.Isso nos remete à consideração de que mesmo os esforços contem-porâneos do Estado, consciente ou inconscientemente apoiados pe-

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los educadores, de encontrar soluções a fim de garantir a escola paratodos são marcados pela ignorância de que não é na criação de maisescolas, mais salas de aula e na formação continuada de professoresque darão conta de superar o modelo de organização do trabalhopedagógico incorporado e mantido desde o século XVII e fortemen-te representado na atualidade pelo instrumento de trabalho do pro-fessor: o livro didático. Acrescente-se aí, a importante representaçãodo modelo manufatureiro nas concepções de tempo – a seriação dasatividades e dos períodos escolares – e espaço – a sala de aula – naescola.

Embora o autor demonstre ao longo de sua obra que as condi-ções sociais objetivas vêm comprometendo as possíveis alternativasà sua própria superação, afirma que “A barbárie não é o único cená-rio que se coloca no horizonte da humanidade” (idem, p. 240). As-sim, depreende-se que esse modelo de educação escolar será superadona medida em que dialeticamente educadores, pais e alunos no inte-rior da luta de classes derem movimento ao curso de produção daescola para todos. E mais, tal modelo será superado à medida emque, principalmente, os educadores superarem a análise materialis-ta vulgar da produção da escola contemporânea.

Mônica Cristina Martinez de MoraesDoutoranda em educação

Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

Endereço para correspondênciaRua Dr. Quirino, 1730 – apto. 12

Campinas-SP

CEP 13015-082

[email protected]

Recebido em: 20 jan. 2006Aprovado em: 1 maio 2006

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Pensadores sociais e história da educação

autor Luciano Mendes deFaria Filho (org.)

cidade Belo Horizonteeditora Autênticaano 2005

O livro Pensadores sociais e história da educação, organizadopor Luciano Mendes de Faria Filho, apresenta um panorama da uti-lização de autores clássicos das ciências humanas e sociais em dife-rentes campos de pesquisa de história da educação brasileira. Trata-sede uma coletânea de textos, cujo propósito é mostrar abordagensque trabalham com conceitos de autores clássicos, tanto estrangei-ros como brasileiros, efetivando apropriações teórico-metodológi-cas que realizam leituras e interpretações da educação na sociedadebrasileira. Ao todo são quinze textos que discutem, respectivamen-te, a contribuição de quinze pensadores sociais. O critério definidopara a escolha dos autores foi justamente sua afinidade teórico- me-todológica com o “clássico”, de maneira que se mostre sua contri-buição à investigação e historiografia de educação brasileira.

O texto de Elomar Tambara, “Karl Marx: contribuições para ainvestigação em história da educação no século XXI”, traça uma aná-lise da aplicação de categorias marxistas na investigação histórica daeducação, salientando que um dos requisitos de qualquer esboço me-todológico na área de história da educação, pautando-se por catego-rias analíticas desenvolvidas por Marx, não pode prescindir doentendimento de que o objeto de pesquisa se insere numa sociedadecaracterizada pela luta de classes. De modo que, nessa perspectiva, opesquisador comprometido com a transformação social e engajadocom a condição da classe trabalhadora encontrará no horizonte episte-mológico delineado por Marx elementos que o amparam.

Maria Madalena Silva de Assunção busca responder, em seutexto, em que medida e como a teoria psicanalítica de Sigmund Freud

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contribuiu para a construção de história da educação. Argumentaque, embora a psicanálise tenha tomado a mente individual comotema, ao investigar sobre o indivíduo, não deixa de tratar da baseemocional da relação entre indivíduo e sociedade. Do mesmo modoque a história, buscando reconfigurar espaços que continuam a agirsobre a atualidade, a psicanálise emprega mecanismos parecidos naconstrução do conhecimento sobre o passado, sendo que a memóriaé a categoria básica desse processo, possibilitando uma penetraçãonaquilo que o tempo tem de ininterrupto e de descontinuo na suacomplexidade e multiplicidade. Assim, o desafio da psicanálise paraa história é constituir uma forma para que a maneira psicanalítica depensar se torne um mecanismo de investigação, um modo de apreen-são dos objetos históricos, uma vez que para Freud o pesquisadorapenas lida com hipóteses e nelas apóia-se como substitutos de fon-tes e indícios dos quais não se dispõe.

Bruno Bontempi Junior faz um balanço da presença da sociolo-gia durkheimiana na historiografia da educação brasileira, por vezes“visível”, por vezes “invisível”. Para o autor, a “presença visível” deDurkheim dá-se pela filiação de Fernando Azevedo à ÉmileDurkheim, de modo que Azevedo instaura sobre o passado da edu-cação brasileira uma memória que se fez sob a insígnia das questõesde método de análise e escrita e de explicações das relações entresociedade e educação. Já a “presença invisível” de pressupostos so-ciológicos durkheimianos na histografia da educação brasileira éreconhecida na produção pós-azevidiana a partir de escolhas temáti-cas operadas, de periodizações, do uso de conceitos, da interpreta-ção do fenômeno da educação, indiciários da sociologia de Durkheim,embora não haja referência direta ao sociólogo francês.

O texto de Carlos Eduardo Vieira discute aspectos da massadocumental em que se encontram as idéias de Gramsci, visando àanálise do conhecimento histórico no contexto do projeto intelec-tual e político de Antônio Gramsci. Assim, o roteiro de análise pro-posto dirige-se na direção da discussão sobre as condições deinterpretação do pensamento gramsciano. Para tanto, o autor traba-lha em duas frentes: uma que se refere à crítica documental, na qualsão discutidas as fontes das idéias gramscianas; e outra que diz res-peito ao entendimento do projeto intelectual de Gramsci, especial-mente na reflexão sobre o saber histórico em sua produção.

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Em “Walter Benjamin: os limites da razão”, Clarice Nunes, argu-mentando que a concepção de infância está no centro da concepção dehistória de Walter Benjamim, desenvolve seu texto apresentando pis-tas daquilo que provocou a vulnerabilidade da razão benjaminiana. Sóé possível recuperar o passado por um trabalho de memória que indi-que vestígios de embates no âmbito pessoal e coletivo que repercutenas lutas do presente. Nesse sentido, a autora descreve informaçõesbiográficas de Walter Benjamim como também apresenta categoriasde seu pensamento, buscando contornar os limites da razão.

Maria Rita de Almeida Toledo desenvolve seu artigo sobreMikhail Bakhtin observando que há um relativo desconhecimentodesse pensador pelos historiadores da educação, de modo que aindaé incipiente sua utilização no campo da história da educação. O ob-jetivo do artigo é expor as contingências da produção de Bakhtinpara compreender a circulação e a peculiaridade da apropriação deseu pensamento. Para tanto, o texto apresenta passagens da trajetó-ria de sua formação, bem como o contexto de surgimento de suaprodução intelectual. Apresenta ainda, conceitos que constituem oarcabouço teórico de Bakhtin, além de trabalhar com a concepçãode linguagem e de interação verbal, que envolvem a relação entrecomunicação lingüística e política, uma vez que, no entendimentodo autor, a linguagem é resultado da interação social em que se pro-cessa e, ao mesmo tempo, é também resultante da interação dos in-terlocutores, afastando-se de subjetivismos individualistas, o quepermite compreender a comunicação de forma politizada, uma vezque se apresenta como produto vivo no jogo das forças sociais.

No texto “Vigotsky e a teoria socioistórica”, os autores, apre-sentando contribuições do pensamento de Vigotsky e sua teoria so-cioistórica, apontam que, nas análises do psicológico, a atividadehumana muda historicamente, relacionando-se com as transforma-ções das condições concretas da existência, indicando que a nature-za humana é uma categoria em permanente mudança e movimento,numa perspectiva claramente inspirada no pensamento marxista, masmuito mais voltada para o desenvolvimento e a evolução. Para osautores a contribuição de Vigotsky para a área de história da educa-ção pode ser efetivada a partir do estabelecimento de leituras quedialoguem com conceitos-chave de suas formulações, permitindo asuperação do mecanismo de sua concepção histórica.

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Cynthia Greive Veiga desenvolve questões teórico-conceituaisna relação entre a história e a sociologia, especialmente a de NorbertElias, sugerindo que sua obra não é fundamentalmente significativapela pesquisa histórica propriamente, mas, sobretudo, pela proble-mática sociológica que dispõe para a história. Elias preocupa-se como modelo de interpretação possível para a compreensão da singula-ridade dos acontecimentos históricos. Para o sociólogo, os modosde mudança social acontecem em diferentes ritmos, podendo atéadquirir aparência de imutabilidade ou percepção de mudança de-masiadamente lenta. A interpretação da singularidade de um aconte-cimento requer a análise e investigação da forma como os indivíduosfiguram no corpo social, permitindo compreender a existência sin-gular e o movimento de transformações e rupturas.

Marcos Cezar Freitas, em seu texto, adverte que para fazer his-tória da educação com Gilberto Freyre, especialmente pensando emmarcos para refletir sobre o aluno, é preciso levar em conta o acervode gestos que o antropólogo inventariou. As possibilidades de orga-nização mínima desse repertório, indica o autor, para a contribuiçãode uma “antropologia do aluno” são os seguintes textos: Casa-gran-de & senzala; Sobrados & mucambos e Ordem e progresso, numprimeiro plano; e, num segundo, Nordeste, O mundo que o portu-guês criou e Açúcar. Para Freitas, fazer história da educação comGilberto Freyre pode assustar a muitos, pois pode parecer a aceita-ção de pressupostos duvidosos de suas formulações mas, ao mesmotempo, diz que o importante é a disponibilidade em procurar emsuas decisões uma sabedoria efetivamente consistente. Desse modo,a obra de Freyre pode ser concebida como uma espécie de guia paraque se obtenham novas fontes.

Elegendo o pensamento de Sérgio Buarque de Holanda pararefletir sobre a história de educação no Brasil, Thais Nivia de LimaFonseca ressalta que esse pensador se orientou pela negação à utili-zação abstrata de paradigmas, categorias ou conceitos sem que selevasse em consideração as condições históricas reais, sem que sepraticasse, de certo modo, uma espécie de relativismo. Ao mesmotempo, a autora destaca que a referência a Sérgio Buarque, emboratenha sido profícua em outros campos de investigação histórica, naárea de história da educação, de fato, não chegou a estabelecer umatradição sólida, especialmente no que se refere ao período colonial

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que é marcadamente caracterizado por análises que privilegiam umaperspectiva mais tradicional que se preocupa com ações do Estado eda Igreja sobre a escola, num ângulo institucional e legal. Nesseparticular, há a indicação de que a relação entre a obra de SérgioBuarque e a história da educação pode apresentar possibilidades fér-teis, entre outras tantas, nas investigações sobre o período colonial,um campo praticamente aberto na historiografia da educação brasi-leira, segundo as considerações desse capítulo.

Eliane Marta Teixeira Lopes desenvolve um texto no qual pro-cura mostrar em que sentido o pensamento de Hannah Arendt podeajudar no trabalho da historiografia da educação, especialmente na-quilo que se refere a pensar a história da educação. Utilizando-se deinformações biográficas de Arendt, a autora mostra a importânciada narrativa na reconstituição de significados. Adverte que a histó-ria da educação em suas operações historiográficas não pode pres-cindir das fontes e do conseqüente trabalho sobre elas. Mas também,que a história que se conta não pode ficar restrita àquilo que foiguardado pelo passado para ser depois contado de determinada for-ma. A narrativa é lacunar, quebradiça, esquivando-se da linearidadee continuidade racionais, posto que encerrar uma lembrança por suanarrativa é sempre buscar significações que possam ser comparti-lhadas. Na esteira dessas considerações a autora conclama-nos acontar histórias e a fazer uma história da educação que nos auxilie afazer ligações com o passado e permita ao presente ser possível.

No texto “Florestan Fernandes: arquiteto da razão”, MarcosVinícius da Cunha, utilizando-se da metáfora que remete a imagemde Florestan Fernandes à de um arquiteto da razão, elabora um textoem que, buscando sentidos na obra de Florestan Fernandes e mesmoem sua biografia, propõe-se a traçar linhas que permitam compreen-der sua inserção na esfera das ciências sociais e desta na temáticaeducacional. O autor adverte que a vida e a obra de Florestan Fernandesconstituem uma única coisa, suas concepções de ciência e de educa-ção não são categorias isoladas, mas conceitos a partir dos quais oleitor ou o estudioso pode situar-se na mesma busca de sentido.

Luciano Mendes de Faria Filho enfoca a possibilidade de utili-zação da produção de E. P. Thompson como instrumento teórico-metodológico na história da educação, mas observa que, salvo rarasexceções, a recepção da produção de Thompson é bastante tímida,

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sendo o autor pouco citado e, ainda menos, usado como instrumentode pesquisa no campo da história da educação. Portanto, para darconta do propósito do texto, Faria Filho, em vez de empreender umrastreamento sistemático acerca da presença de Thompson na escri-ta da história da educação no Brasil, debruça-se sobre sua próprialeitura da obra do historiador inglês, chamando a atenção para di-mensões de suas pesquisas que têm sido embasadas por esse autor.Assim, destaca-se a dimensão política na obra de Thompson que sedesdobra na exigência ética do compromisso do historiador com suaépoca e na sensibilidade com a luta dos esquecidos pela história. Emcontrapartida, apresenta-se a necessidade de um rigor teórico-meto-dológico que, permanentemente, promove o carreamento da teoria àexperiência e ao debate historiográfico.

Diana Gonçalves Vidal, objetivando oferecer um contatointrodutório aos escritos de Michel de Certeau, elabora um texto, com-posto por quatro sessões, no qual inicialmente explora aspectos datrajetória de vida do autor. Em seguida trata de suas visitas ao Brasil,retratando que suas experiências nesse país o marcaram como intelec-tual a ponto de, em diversas passagens de sua obra, referir-se à culturapopular brasileira. Na terceira parte detém-se nas obras traduzidas parao português. Na parte final a autora esboça um estudo salientando seucaráter restrito e provisório, sobre a recepção da obra de Certeau peloshistoriadores da educação no Brasil. Para isso, a autora recorre à pro-dução divulgada nos três Congressos Brasileiros de História da Edu-cação, localizando os trabalhos que citam Michel de Certeau, a partirdo que é feita uma análise das apropriações.

José Gonçalves Gondra, situando Paul-Michel Foucault numquadro de crítica a elementos da modernidade, busca fazer uma re-flexão sobre a presença desse autor francês na historiografia educa-cional brasileira no artigo “Paul-Michel Foucault: uma caixa deferramentas para a história da educação?”. A partir de dados biográ-ficos de Foucault, na primeira parte do texto Gondra desenvolveaspectos ligados à produção intelectual do pensador naquilo que serefere às abordagens temáticas por ele empreendidas para, em se-guida, apresentar relações dessas formulações com a história. Parainventariar apropriações foucaultianas na histografia da educaçãono Brasil, o autor – salientando que tais apropriações podem serverificadas em produções de programas de pós-graduação em edu-

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cação, como também em instâncias de difusão de conhecimento daárea – acaba por operar com fontes específicas para estabelecer esseinventário, quais sejam, a Revista História da Educação e a RevistaBrasileira de História da Educação. A partir desse rastreamento oautor elenca os textos de Foucault referidos e a freqüência com queeles aparecem, seguida de uma análise teórico-metodológica sobretais utilizações. Como exercício adicional, o autor faz uma espéciede balanço das temáticas e das formas de recorte delas nas cincoprimeiras edições do Congresso Luso-Brasileiro de História da Edu-cação, visando a pensar a configuração e os desafios da pesquisa emhistória da educação. Por fim, Gondra – talvez respondendo afirma-tivamente à questão formulada no título do artigo, a partir de umaimagem criada pelo próprio Foucault acerca da utilização de suaobra – mostra que tanto as publicações dos periódicos com os quaistrabalhou como a edição dos lusos têm auxiliado na construção daconcepção de que o objeto educacional se caracteriza pela inexistênciade universais e perenidades, podendo ser visto como efeito e, aomesmo tempo, como produtor de cultura, o que provoca afastamen-to de concepções que tendem naturalizá-lo.

O que perpassa a totalidade dos textos apresentados é a mobili-zação que os diferentes pensadores vêm provocando e ainda podemprovocar nos pesquisadores da história da educação em seus respec-tivos campos de investigação, especialmente no que tange a renova-das formas de apropriações teórico-metodológicas. O conjunto daobra mostra que a história da educação, ao voltar-se para novos ob-jetos ou novos modos de abordagem de antigos objetos, acaba porincorporar categorias cuja predominância pertence a outras áreas deconhecimento, tornando-se imprescindível para melhor abranger acomplexidade que contorna o passado dos acontecimentos que sereferem aos processos educativos da sociedade brasileira.

Essa série de quinze textos, cada um apontando a pertinência deum determinado pensador social para a historiografia da educaçãobrasileira, constitui um rico material de referência, não só para quemse interessa em aprofundar nos aportes teórico-metodológicos ela-borados a partir de cada autor, mas também para aqueles que, demodo geral, se interessam pela temática da história, particularmenteda história da educação. Se, para a utilização de construtos teórico-práticos de pensadores sociais em empreendimentos investigativos,

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o recomendável é que se vá direito às fontes teóricas, à escrita origi-nal de cada autor, os textos aqui apresentados funcionam como umaleitura introdutória, mas também como uma leitura capaz de desa-fiar e instigar outras leituras, inclusive, e sobretudo, a leitura diretados pensadores selecionados.

Embora na apresentação do livro o organizador indique e justi-fique a ausência de três pensadores (M. Weber, P. Áries e P. Bourdieu),deve-se apontar a ausência de alguns clássicos na seleção feita, tan-to de pensadores nacionais como estrangeiros, cuja importância parareflexão da área da história da educação é ou pode ser profícua.

Mesmo ficando no recorte da obra, de trabalhar apenas compensadores já falecidos, pode-se lembrar contribuições e possibili-dades de utilização de nomes como Fernando de Azevedo (queincidentalmente é abordado no texto sobre Durkheim), AnísioTeixeira, Maurício Tragtenberg, Darcy Ribeiro, Luís da CâmaraCascudo, Friederich Nietzsche, entre outros tantos. Mas também éclaro que, nesse caso, a coletânea esbarraria na questão dos limitesespaciais, o que facilmente se resolve com um segundo volume, oumesmo um terceiro, já que na apresentação se anuncia um segundovolume com autores ainda vivos. Mas é indiscutível que a coletâneacumpre seu papel de apresentar como esses clássicos movem e re-movem a produção historiográfica da educação. Nesse sentido, cadatexto funciona como um apropriado “cartão de visitas” para cadapensador, convidando o leitor interessado a visitar diretamente osescritos de cada um.

Haroldo de ResendeProfessor na Faculdade de Educação e membro do Núcleo de

Estudos e Pesquisas em História e Historiografia da Educação(NEPHE) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

Endereço para correspondênciaRua Izaú Rangel de Mendonça, 945/101

Santa Mônica

Uberlândia-MG

CEP 38408-136

[email protected]

Recebido em: 24 maio 2006Aprovado em: 31 jul. 2006

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Nota de Leitura

La Presse d’Éducation et d’Enseignement(1941-1990): répertoire analytique

autora PénélopeCaspard-Karydis

cidade Pariseditora Institut National de

Recherche Pédagogiqueano 2000-2005

Situado no prolongamento direto de uma série de quatro volu-mes consagrados aos periódicos educacionais editados na França doséculo XVIII a 1940, como explicita Pénélope Caspard-Karydis, naIntrodução, o repertório sobre a imprensa da educação e do ensinoagora se completa com o lançamento de mais quatro tomos, referen-tes ao período de 1941 a 1990. Em aproximadamente 5.000 páginas,3.741 revistas são descritas. Cada verbete compreende uma breveinformação bibliográfica (título, subtítulo, período de existência,órgão editor, filiação a outras revistas, comitê editorial, periodicida-de, formato, número de páginas, preço, tiragem e lugar de edição);um excerto com os objetivos da publicação; a relação dos principaistemas abordados pelo periódico ao longo de sua história; e a locali-zação do impresso na Biblioteca Nacional de França.

A disposição dos verbetes respeita a seqüência alfabética do tí-tulo do periódico. No primeiro volume da nova coleção, encontra-mos relacionadas as revistas de A a D; no segundo, de E a K; noterceiro, de L a Q; e no quarto de R a Z. Ao final de cada tomo,índices geográficos, onomásticos, temáticos, cronológicos, de esta-belecimentos, associações e organismos e das revistas mencionadasnas notícias do repertório reenviam o leitor às múltiplas possibilida-des de busca e entrecruzamento das informações, permitindo tantoacesso a dados específicos quanto a constituição de novas séries.Nesse sentido, oferece subsídios não apenas aos historiadores daeducação, como a pesquisadores interessados em outros temas como

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religião, família, infância (abandonada, em risco, delinqüente), ci-nema e música, dentre muitos outros.

Ao manusear os impressos dessa segunda fase, PénélopeCaspard-Karydis pôde perceber aspectos importantes da história dasedições na França. Destaco, aqui, apenas dois. O primeiro deles foia constatação de que a Segunda Grande Guerra não constituiu paraos periódicos educacionais uma ruptura radical. A desorganizaçãomaterial e humana de suas redações, o espaçamento da periodicida-de e a perda de parte dos assinantes não significaram o abandonodas publicações, particularmente por parte da imprensa ligada aosmovimentos e associações de jovens. Se a divisão da França emduas partes – zona ocupada pelos nazistas e zona livre – impôs alte-rações no funcionamento das associações ou editoras, subterfúgiosforam criados de forma que se garantisse a circulação dos impres-sos. As que estabeleceram a sede na zona livre muitas vezes se vale-ram do expediente de publicar duas edições com títulos diferentespara manter contato com os filiados. Outras, que se mantiveram nazona ocupada, com o intuito de contornar as proibições de publica-ção, recorreram à prática de mudar o título do periódico a cada nú-mero editado.

Outro aspecto percebido pela autora foi a rapidez com que osperiódicos repercutiram as revoltas ocorridas contra a escola, a fa-mília, o poder e a autoridade nos anos de 1960 na França. Maio de1968 foi objeto de análise e discussão por parte da maioria das revis-tas, provocando mudanças nas linhas editorais. Na década seguinte,alguns impressos adotaram atitudes revolucionárias ou provocado-ras. Temas que até então eram tabus, como sexo, drogas e abortos,passaram a figurar nas páginas dos periódicos de educação e ensino,associados a outros como desemprego, solidão e suicídio, demons-trando uma nova concepção de jovem, do papel social da escola e dafunção da imprensa especializada.

Apesar da abrangência do repertório analítico, em seus oito vo-lumes, ressalva Pénélope Caspard-Karydis que ele contém apenasuma parcela dos periódicos franceses sobre educação e ensino. Nãoforam analisados a imprensa sindical, os boletins de alunos, os jor-nais escolares, os relatórios de congressos e os anuários. Essas fon-tes têm sido objeto de outros levantamentos e devem receber umtratamento específico posterior, o que significa a promessa de conti-

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nuidade do empreendimento. Promessa, aliás, que se expressa tam-bém no desejo manifesto pela autora de efetuar uma revisão dosvolumes iniciais editados entre 1981 e 1991. É, de fato, louvável oentusiasmo da pesquisadora.

Diana Gonçalves VidalProfessora de história da educação na Faculdade de Educa-

ção da Universidade de São Paulo. Coordenadora do NúcleoInterdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação

(NIEPHE) na mesma instituição e pesquisadora do ConselhoNacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

Endereço para correspondênciaAvenida da Universidade, 308

sala 219 – Bloco A

São Paulo-SP

CEP 05508-900

[email protected]

Recebido em: 20 maio 2006Aprovado em: 1 jun. 2006

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Orientação aos Colaboradores

A Revista Brasileira de História da Educação publica artigos,resenhas, traduções e notas de leitura inéditos no Brasil, relacionadosà história e à historiografia da educação, de autores brasileiros ouestrangeiros, escritos em português ou espanhol, reservando-se o di-reito de encomendar trabalhos e compor dossiês. Os artigos devemapresentar resultados de trabalhos de investigação e/ou de reflexãoteórico-metodológica. As resenhas devem discorrer sobre o conteúdoda obra e efetuar um estudo crítico, além de poder versar sobre textosrecentes ou já reconhecidos academicamente. As notas de leitura de-vem trazer uma notícia de publicação recente.

Seleção dos trabalhosOs artigos são submetidos a dois pareceristas ad hoc, sendo ne-

cessário a aprovação por parte de ambos. No caso de divergência dospareceres, o texto será encaminhado a um terceiro parecerista. A pri-meira página deve trazer o título da matéria, sem indicar nome e in-serção institucional do autor. Deve conter também o resumo emportuguês ou espanhol e o resumo em inglês (abstract), com exten-são máxima de sete linhas, e cinco palavras-chave em português ouespanhol e em inglês. Em folha avulsa, o autor deve informar o títulocompleto do artigo em português e em inglês, seu nome, titulação einstituição a que está vinculado, projetos de pesquisa dos quais parti-cipa, endereço, telefone e e-mail.

As resenhas e notas de leitura são avaliadas pela Comissão Edi-torial.

Normas gerais para aceitação de trabalhosOs originais devem ser encaminhados em três vias impressas e

uma cópia em disquete, observando-se o formato: 3cm de margemsuperior, inferior e esquerda e 2cm de margem direita; espaço entrelinhas de 1,5; fonte Times New Roman no corpo 12.

Os trabalhos remetidos devem respeitar a seguinte padronização:Extensão mínima e máxima, respectivamente:

• Artigos – de 30 mil caracteres a 60 mil caracteres (aproxima-damente de 15 a 30 páginas). Cada resumo que acompanharo artigo deverá ter, no máximo, 700 caracteres (contando

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espaços). Para contar os caracteres no Word, no item “Ferra-mentas”, a opção “Contar palavras”. Para as palavras-chave,consultar as Bases de Dados: Lilacs, Medline, Sport Discus.

• Resumos e abstracts – os resumos e abstracts dentro decada artigo não devem ter mais de 4 linhas cada.

• Resenhas – de 8 mil caracteres a 15 mil caracteres (aproxi-madamente de 4 a 8 páginas).

• Notas de leitura – de 2 mil caracteres a 4 mil caracteres(aproximadamente de 1 a 2 páginas).

As indicações bibliográficas, no corpo do texto, devem vir noformato sobrenome do autor, data de publicação e número da pági-na entre parênteses, como, por exemplo: (Azevedo, 1946, p. 11). Asreferências no final do texto devem seguir as normas da ABNT NBR6023:2002. Notas de rodapé, em numeração consecutiva, devem tercaráter explicativo.

Vale notar que todas as citações devem vir entre aspas e nãodevem estar em itálico, salvo trechos que se deseja destacar.

A Comissão Editorial não aceitará originais apresentados comoutras configurações.

A revista não devolve os originais submetidos à apreciação. Osdireitos autorais referentes aos trabalhos publicados ficam cedidospor um ano à Revista Brasileira de História da Educação.

Serão fornecidos gratuitamente aos autores de cada artigo cincoexemplares do número da revista em que seu texto foi publicado.Para as resenhas e notas de leitura publicadas, cada autor receberádois exemplares.

Os originais devem ser encaminhados à Comissão Editorial, comsede no Centro de Memória da Educação – Faculdade de Educação,Universidade de São Paulo. Av. da Universidade, 308 – Bloco B –Terceira Fase – Sala 40, CEP 05508-900, São Paulo-SP.

Informações adicionais podem ser obtidas no e-mail:[email protected] ou no telefone (11) 3091-3194, das 13h

às 18h.