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Respeite o direito autoral Reprodução não autorizada é crime Revista Brasileira de História da Educação

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Respeite o direito autoralReprodução não autorizada é crime

Revista Brasileira deHistória da Educação

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Conselho DiretorDermeval Saviani (UNICAMP); Marta Maria Chagas deCarvalho (PUC-SP); Ana Waleska Pollo CamposMendonça (PUC-Rio); Libânia Nacif Xavier (UFRJ).

Comissão EditorialDiana Gonçalves Vidal (USP); José GonçalvesGondra (UERJ); Marcos Cezar de Freitas (PUC-SP);Maria Lucia Spedo Hilsdorf (USP).

Conselho Consultivo

Membros nacionais:Álvaro Albuquerque (UFAC); Ana Chrystina VenâncioMignot (UERJ); Ana Maria Casassanta Peixoto (SED-MG); Clarice Nunes (UFF e UNESA); Décio Gatti Jr.(UFU e Centro Universitário do Triângulo); Denice B.Catani (USP); Ester Buffa (UFSCAR); Gilberto Luiz Alves(UEMS); Jane Soares de Almeida (UNESP); José SilvérioBaia Horta (UFRJ); Luciano Mendes de Faria Filho(UFMG); Lúcio Kreutz (UNISINOS); Maria ArisneteCâmara de Moraes (UFRN); Maria de Lourdes de A.Fávero (UFRJ); Maria do Amparo Borges Ferro (UFPI);Maria Helena Camara Bastos (UFRGS); MariaStephanou (UFRGS); Marta Maria de Araújo (UFRN);Paolo Nosella (UFSCAR).

Membros internacionais:Anne-Marie Chartier (França); António Nóvoa (Por-tugal); Antonio Viñao Frago (Espanha); Dario Ragazzini(Itália); David Hamilton (Suécia); Nicolás Cruz (Chile);Roberto Rodriguez (México); Rogério Fernandes(Portugal); Silvina Gvirtz (Argentina); Thérèse Hamel(Canadá).

Revista Brasileira de História da EducaçãoPublicação semestral da Sociedade Brasileira de História da Educação – SBHE

A Sociedade Brasileira de História da Educação(SBHE), fundada em 28 de setembro de 1999, é umasociedade civil sem fins lucrativos, pessoa jurídica dedireito privado. Tem como objetivos congregarprofissionais brasileiros que realizam atividades depesquisa e/ou docência em História da Educação eestimular estudos interdisciplinares, promovendo in-tercâmbios com entidades congêneres nacionais einternacionais e especialistas de áreas afins. É filiadaà ISCHE (International Standing Conference for theHistory of Education), a Associação Internacional deHistória da Educação.

DiretoriaPresidente: Marta Maria Chagas de Carvalho (PUC-SP)Vice-Presidente: Ana Waleska Pollo CamposMendonça (PUC-Rio)Secretária: Libânia Nacif Xavier (UFRJ)Tesoureiro: Jorge Luiz da Cunha (UFSM)

Diretores RegionaisNorte: Maria das Graças Pinheiro da Costa (UFAM) eAnselmo Alencar Colares (UFPA)Nordeste: Marta Maria de Araújo (UFRN) e AfonsoCelso Scocuglia (UFPB)Centro-Oeste: Silvia Helena Andrade de Brito (UFMS)e Nicanor Palhares de Sá (UFMT)Sudeste: Maria de Lourdes de A. Fávero (UFRJ) e JoséCarlos de Souza Araújo (UFU)Sul: Maria Thereza Santos Cunha (UDESC) e MarcusLevy Bencosta (UFPR)

SecretariaCentro de Memória da EducaçãoFaculdade de EducaçãoUniversidade de São PauloAv. da Universidade, 308 - Bloco BTerceira Fase - Sala 40CEP 05508-900 São Paulo-SPTel.: (11) 3091-3194.E-mail: [email protected]

Revista Sociedade Brasileira de História daEducação – SBHE

COMERCIALIZAÇÃO

Editora Autores AssociadosAv. Albino J. B. de Oliveira, 901CEP 13084-008 – Barão Geraldo

Campinas (SP)Pabx/Fax: (19) 3289-5930

e-mail: [email protected]

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Revista Brasileira deHISTÓRIAEDUCAÇÃO

SBHESociedade Brasileira de História da Educação

da

julho/dezembro 2003 no 6

ISSN 1519-5902

Dossiê “Memória do Ensino deHistória da Educação”

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EDITORA AUTORES ASSOCIADOS LTDA.Uma editora educativa a serviço da cultura brasileira

Av. Albino J. B. de Oliveira, 901Barão Geraldo – CEP 13084-008Campinas - SP – Pabx/Fax: (19) 3289-5930e-mail: [email protected]álogo on-line: www.autoresassociados.com.br

Conselho Editorial “Prof. Casemiro dos Reis Filho”Dermeval SavianiGilberta S. de M. JannuzziMaria Aparecida MottaWalter E. Garcia

Diretor ExecutivoFlávio Baldy dos Reis

Diretora EditorialGilberta S. de M. Jannuzzi

Coordenadora EditorialÉrica Bombardi

Assistente EditorialAline Marques

RevisãoAdemar Lopes JuniorCleide Salme FerreiraKelly Lima

Diagramação e ComposiçãoEdnilson Tristão

Projeto Gráfico e CapaÉrica Bombardi

Impressão e AcabamentoGráfica Paym

Revista Brasileira de História da Educação

ISSN 1519-5902

1º NÚMERO – 2001Editora Autores Associados – Campinas-SP

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SUMÁRIO

EDITORIAL 7

ARTIGOS

O jornal católico Novidades: sentido(s) do educar 9Maria José Remédios

Uma história das leituras para professores: análise da produção e circulaçãode saberes especializados nos manuais pedagógicos (1930-1971) 29Vivian Batista da Silva

A Revista Escola Argentina: reflexões sobre um periódicoescolar nos anos 20 e 30 59Miriam Waidenfeld Chaves

Instrução pública e formação de professores em Minas Gerais (1825-1852) 87Walquíria Miranda Rosa

O ensino da história da educação e a produção de sentidos na sala de aula 115Clarice Nunes

A história da educação programada: uma aproximação da história daeducação ensinada nos cursos de pedagogia em Belo Horizonte 159Luciano Mendes de Faria Filho e José Roberto Gomes Rodrigues

Educação e desenvolvimento nacional 177Geraldo Bastos Silva

RESENHAS

Friedrich Froebel: o pedagogo dos jardins de infância 217Por Diane Valdez

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Historia de la educación (Edad Contemporánea) 223Por Bruno Bontempi Júnior

O exercício disciplinado do olhar: livros, leituras e práticas de formação docenteno Instituto de Educação do Distrito Federal (1932-1937) 229Por Maria Cristina Soares de Gouvêa

Templos de civilização: a implantação da Escola Primária Graduadano estado de São Paulo, 1890-1910 235Por José Cláudio Sooma Silva

NOTA DE LEITURA

Negativos em vidro: coleção de imagens do Colégio Antônio Vieira (1920-1930) 241Por Rachel Duarte Abdala

ORIENTAÇÃO AOS COLABORADORES 245

CONTENTS 247

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Editorial

A Revista Brasileira de História da Educação conclui seu terceiro anode atividades com o lançamento do sexto número. A manutenção de suaperiodicidade representa a adesão da comunidade de historiadores da edu-cação brasileira ao projeto de uma publicação de caráter nacional, aglu-tinando as investigações no campo. A revista confirma assim seu lugar dedifusão dos trabalhos produzidos em história da educação no Brasil.

A política de proposição de dossiês amplia o espectro de atuação daRevista Brasileira de História da Educação, consagrando-a também comoum território plural de debates. É com este espírito que ora publicamos odossiê Memória do Ensino de História da Educação. Sua edição, comode resto dos demais dossiês, almeja estimular a discussão entre pares esuscitar a atenção para temas importantes e ainda pouco explorados nocampo. A Comissão Editorial reitera o convite aos historiadores brasilei-ros da educação para propor novos dossiês.

Mantendo o interesse em republicar textos fundamentais à memóriada educação brasileira e à historiografia educacional, a Revista Brasilei-ra de História da Educação traz, ainda, em suas páginas, o artigo “Edu-cação e desenvolvimento nacional”, de autoria de Geraldo Bastos Silva.Objeto de estudo no III Curso de Treinamento de Pessoal em PlanejamentoEducacional, oferecido pela Divisão de Aperfeiçoamento do Magistério,do Centro Regional de Pesquisas Educacionais “Prof. Queiroz Filho”, em1965, o texto captura um momento da educação nacional, interrogando-se sobre o problema da “eficiente operação da escola dentro da multidãode fatores em interação contínua na realidade sociocultural”. A respostavem associada à consideração dos aspectos culturais da instituição esco-lar no contexto de subdesenvolvimento econômico do país. Dado o cará-

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ter documental do artigo, alguns problemas de revisão não puderam sersolucionados.

Completam o conjunto da RBHE os artigos aprovados, as resenhas ea nota de leitura. Contando com o apoio da Sociedade Brasileira de His-tória da Educação e com o renovado prestígio dos pesquisadores do cam-po, a revista reafirma seu desejo de congregar os historiadores brasileirosda educação e servir como espaço editorial e acadêmico a esta área deinvestigação.

Comissão Editorial

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O jornal católico Novidades

sentido(s) do educar*

Maria José Remédios**

* Tem por base a comunicação apresentada no IV Congresso Luso-Brasileiro de Históriada Educação, realizado de 2 a 5 de abril de 2002, em Porto Alegre – Brasil.

** Mestre em ciências da educação, doutoranda em história da educação e professorada Escola Profissional de Agentes de Apoio e Serviço Social.

Com a reapropriação do jornal católico Novidades, como objecto da investigação históri-ca, de modo geral, e da história da educação, em particular, pretende-se delinear a propos-ta de reequacionamento do fenómeno educativo, exposta pelos católicos portugueses,entre 1945 e 1950, no órgão oficioso da Igreja. A partir de um conjunto de áreas temáticasversando a educação, identificadas no matutino, torna-se perceptível a trilogia pedagogiacatólica–educação nova–homem novo, a qual se oferece como a ideia organizadora do(s)sentido(s) do educar, expressos no Novidades.FONTES HISTORIOGRÁFICAS; IMPRENSA CATÓLICA PORTUGUESA; HISTÓRIADA EDUCAÇÃO; PEDAGOGIA CATÓLICA; ESTADO NOVO PORTUGUÊS.

With the use of the catholic news paper Novidades, as an object of historical research, ingeneral, and the history of education, in particular, we wish to draw the reequation proposalof educative phenomenon, expose by the portuguese catholics, between 1945 and 1950,in the oficious organ of the Church. Starting from a group of thematic areas about education,identified in the morning paper it becomes understandable a trilogy catholic padagogy –new education – new man, which gives itself an organizing idea of the sense(s) of theeducate expressed in Novidades.SOURCES HISTORICAL; PORTUGUESE CATHOLIC PRESS; HISTORY OF EDUCATION;CATHOLIC PEDAGOGY; PORTUGUESE ESTADO NOVO.

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10 revista brasileira de história da educação n° 6 jul./dez. 2003

Este texto surge na continuidade do trabalho realizado no âmbito doProjecto A Educação na Imprensa Periódica Portuguesa (1945-1974),dirigido pela professora doutora Áurea Adão e da responsabilidade doCentro de Estudos Observatório de Políticas de Educação e de Contex-tos Educativos, da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnolo-gias. Consistindo este projecto na “inventariação sistemática de notícias,informações, discursos, artigos de opinião e estudos, publicados nosdiários O Comércio do Porto, Diário da Manhã, Diário de Lisboa, Di-ário de Notícias, Novidades, República e O Século e nos jornais regio-nais Comércio do Funchal e Jornal do Fundão, com vista à elaboraçãode um roteiro de fontes provenientes daqueles títulos a utilizar em tra-balhos historiográficos e tendo por objecto a história da educação re-cente”1, delimitou-se o período de estudo do jornal em causa a seis anos,isto é, de 1945 a 1950. O facto de neste intervalo de tempo se assistir aimportantes reformas no ensino, quer liceal quer técnico, geradoras elasmesmas de polémica, foi uma das razões que pesou na selecção feita.Por outro lado, julga-se que as balizas adoptadas contribuem para a aná-lise deste matutino em termos de compromisso com a fase final da edifi-cação de uma nova escola, levada a efeito entre 1936 e 1947, e do seucontributo para o início do processo de adaptação do ensino às exigên-cias económicas impostas pelo pós-guerra, desenrolado entre 1947-1961(Nóvoa, 1992, pp. 458-462).

A reapropriação do jornal Novidades como objecto de investigaçãohistórica processa-se num quadro epistemológico interdisciplinar, o dahistória da educação. O esboço de uma proposta de reequacionamento dofenómeno educativo pelos católicos portugueses, entre 1945 e 1950,sugerida pela leitura do Novidades, constitui a matéria do presente artigo.

Num primeiro momento, com a caracterização do jornal, em análi-se, está-se a aceder ao quadro hermenêutico de processamento do real,disponível pelo Novidades, por um lado, e pode-se, ainda, reconhecer omaterial por ele produzido, enquanto fazedor de opinião. De seguida

1 Veja-se anexo 8 do Formulário de Candidatura do Projecto – A Educação na Im-prensa Diária Portuguesa (1945-1974) – ao programa Sapiens Proj99, da FCT.

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o jornal católico novidades 11

identificam-se e analisam-se os textos recolhidos, a fim de se tornarperceptível o conjunto de ideias que informam a visão da educação dis-ponível no Novidades e que se quer orientadora da política educativaassumida pelo Estado Novo. Por último, tenta-se articular as áreastemáticas sobre educação, identificadas, com a matriz doutrinária doNovidades, em ordem a esclarecer o pensamento pedagógico do jornal,o mesmo é dizer, para se desvelar o(s) sentido(s) do educar que aí seoferecem.

Iniciada a publicação do Novidades em 7 de janeiro de 1885, porEmídio Navarro2, esta terminou passados 90 anos, em 1975. Durante operíodo inicial o jornal sofreu algumas vicissitudes e lutando afincada-mente pela sobrevivência, a partir de 1913, sacrificará a periodicidadede publicação, oferecendo-se, bianualmente. A criação deste jornal dá-se três anos após a publicação pelo papa Leão XIII da Carta, de 25 dejaneiro de 1882, versando a Imprensa, a qual promove o aparecimentoda imprensa católica e de eclesiásticos jornalistas. Numa sociedade quese afasta do modelo medieval de sociedade cristã3, sem cisão entre Im-pério e Igreja, encaminhando-se para a distinção entre o poder temporale o espiritual, a imprensa católica, inicialmente de iniciativa particular edepois apoiada por organismos da Igreja, “tornou-se progressivamentenum dos meios de acção privilegiados pela Igreja Católica na evange-lização da sociedade moderna” (Fontes, 1999, p. 247).

A partir de 15 de dezembro de 1923 dá-se o rejuvenescimento4 domoribundo Novidades e, ao tornar-se o órgão oficioso do Episcopado

2 Nasceu em 1844 e faleceu em 1905. Foi advogado, conselheiro de Estado, ministro(das Obras Públicas, entre 1886 e 1889), deputado pelo Partido Progressista Histó-rico, escritor e jornalista. Além do Novidades, fundou O Correio da Noite, crioucom António Enes O Progresso, pertenceu ao corpo redactorial do País e partici-pou na maioria dos jornais portugueses da época.

3 Denominada de Cristandade.4 Acto que não pode ser visto isolado do Concílio Plenário Português, de 1926, o

qual “marcou o início de uma nova etapa na relação da Igreja com a sociedade aolongo do século. O reforço da unidade dos católicos, a secundarização das divisõespolíticas e o desenvolvimento de um projecto de recristianização da sociedade im-plicavam o desenvolvimento da imprensa católica” (Fontes, 1999, p. 250).

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Português, sairá ininterruptamente todas as manhãs, com excepção nodia 26 de dezembro, na cidade de Lisboa, com distribuição em todo opaís. Segundo as palavras de um dos seus jornalistas “dia a dia o pensa-mento das Novidades, que é o da Igreja, foi crescendo, mercê de Deus”(Almeida, 1998, p. 7).

O aparecimento deste jornal católico deve ser entendido numa matrizque contempla a necessidade de a Igreja impedir a difusão de ideologiasgeradoras de processos de secularização social, a par de um intensomovimento periodista, com repercussões em todo o país, no final doséculo XIX e inícios do século XX. Dada a limitada acção das folhasdiocesanas e a incapacidade de afirmação de alguns diários de feiçãocatólica e cobertura nacional, o Episcopado criará o Novidades “com oduplo objectivo de informar e doutrinar os católicos, furtando-os à in-fluência que neles poderia exercer a doutrinação católico-monárquica, tãoapaixonante nos anos vinte” (Almeida, 1998, p. 15). Concebido com umcarácter apologético, em ordem a viabilizar a doutrinação, “as Novida-des triunfaram, congregando à sua roda o que havia de mais puro entreleigos e de mais apostólico dentro do clero” (Almeida, 1998, p. 15).

O renovado matutino, voz da Eclésia Portuguesa, será propriedadeda União Gráfica5, assumindo o leigo Tomás Gamboa6 funções deredactor-principal. Com o formato clássico7, as suas iniciais quatro pági-

5 A União Gráfica será criada pelo cónego Fernando Pais de Figueiredo “como con-dição de viabilidade de um grande diário católico, financeira e doutrinalmente in-dependente” (Almeida, 1998, p. 30). Este padre, em 1923, será “mandado paraLisboa com o encargo, pelo venerando episcopado, da fundação das Novidades.Antes fora a Milão estudar a obra do cardeal Ferrari e a Paris a do jornal ‘LaCroix’” (Novidades, 5/12/1947). O cónego, distinguido com o título de monsenhor,Fernando Pais de Figueiredo será o director do Novidades desde 1937 até à data dasua morte em 4/12/1947, sendo substuído pelo padre Avelino Gonçalves, que assu-miu a direcção até à extinção do jornal.

6 O doutor Tomás de Gamboa Bandeira de Melo (21/10/1885 – 13/10/1950), licencia-do em direito pela Universidade de Coimbra, assumiu tais funções durante 27 anos,isto é, até à data da sua morte. Tanto no Novidades como, antes, em A União a suaacção jornalística norteou-se pela obediência à hierarquia eclesiástica, como um“verdadeiro ‘servo fiel’ e soldado dos mais galhardos do movimento católico nonosso país” (Novidades, 14/10/1950).

7 Refere-se às dimensões tradicionais, próximas de 60cm x 90cm.

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nas darão lugar, ao longo destes seis anos, a seis páginas, só ultrapassa-das, em datas especiais, distribuindo-se o texto por sete colunas. Com umapaginação uniforme ao longo do período estudado, o Novidades, além daspáginas diárias, Actualidade, Vida Católica, Internacional, apresentapáginas semanais dedicadas à mulher, à economia e finanças, à agricul-tura, às letras e artes, ao cinema e teatro, ao escutismo, à vida desportivae à educação, entre outras. Das páginas referenciadas, duas delas assumi-rão, alguns anos após a sua criação, a forma de um boletim destacável dojornal. As páginas em questão são dedicadas à agricultura e à educação,as quais passarão a denominar-se Vida Agrícola e Acção Escolar, o queleva a supor não ser fortuita tal mudança. Pensa-se que a oferta de umconjunto de quatro páginas semanais, passíveis de serem coleccionadas,não pode ser vista alheada do processo de introdução, pelo Estado Novo,de um conjunto de mecanismos instrumentais da valorização daruralidade e da educação, especialmente, a de nível primário.

No período estudado, a Página Escolar 8, criada em 6 de dezembrode 1927, e a sair à terça-feira, metamorfoseou-se no boletim Acção Es-colar, introduzido a partir de 15 de dezembro de 1937 e da responsabi-lidade do professor António Leal, presidente da Liga Escolar Católica ecolaborador da Rádio Renascença, desde a sua fundação. Deste modo, arecolha feita compreende textos publicados tanto no jornal, propriamentedito, como no suplemento Acção Escolar.

Se a análise da imprensa permite apreender “o peso do instante e daconjuntura” (Franco, 1999, p. 13), os discursos imanentes ao Novidadestêm que ser lidos como linguagens de poder, que escrevem e, simultanea-mente, se inscrevem na narratividade do poder institucional eclesiásticoe, também, na do poder político.

O reaparecimento do jornal Novidades enquadra-se num conjuntode iniciativas dos católicos conservadores, influentes, em ordem à ani-

8 Esta página será dirigida incialmente pelo professor Mário Sedas Nunes, substituí-do, em 1929 pelo professor Manuel Subtil, e a partir de 1931 pelo professor AntónioLeal. Com uma direcção ligada ao ensino primário há uma maior atenção a estenível de ensino, que é sobrevalorizado no quadro da política educativa do EstadoNovo.

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14 revista brasileira de história da educação n° 6 jul./dez. 2003

quilação do pensamento demoliberal, fundamento ideológico do regimerepublicano. Animados por uma atitude antiliberal, antidemocrática,antisocialista, antimarxista, antimaçónica, constituir-se-ão como umlobby, integrando o polígono de forças (Medina, 1993, p. 13), que seconjugou para derrubar o regime instaurado a partir de 1910 e que cons-trói a alternativa política a esse mesmo regime, o Estado Novo. A im-prensa afigurava-se como um importante meio de afirmação dessepensamento católico conservador, com relevância, de uma certa orien-tação tomista, estruturante do “regime de imobilismo, de cariz cristão,saudosista da ‘pax ruris’ medieval e renitente a tudo quanto representas-se alguma forma de modernidade novocentista” (Medina, 1993, p. 13),criado por Oliveira Salazar, a partir da Constituição de 1933. O Novida-des, afirmando-se como o órgão oficioso da Igreja, a par de vincular adoutrina à guarda desta, ele expressará um pensamento que é próprio doregime.

Ao indagar textos versando a educação, entendeu-se que a naturezade tal temática ultrapassa o domínio do ensino formal, abrangendo aeducação não formal, pelo que a educação familiar, a educação da mu-lher, contempladas com bastante peso no matutino em estudo, o cinemaeducativo, constituindo matéria para artigos de opinião, ou ainda as or-ganizações juvenis, entre outros, foram incluídos. Esta opção, confor-me refere António Nóvoa, “permite uma apreensão mais global dosfenómenos escolares e da forma como as dinâmicas educativas se esten-dem ao conjunto da sociedade” (Nóvoa, 1993, p. XVI).

A maioria dos textos jornalísticos seleccionados são artigos de opi-nião ou notícias, considerando apenas o jornal, e editoriais, se atenderisoladamente ao boletim sobre a educação. Foram identificados, noperíodo de 1945 a 1950, 1.281 textos, dos quais 911 localizam-se nojornal, em sentido restrito, e 370 encontram-se na Acção Escolar (verTabela 1).

O matutino em estudo, ao focalizar-se em matérias que gerarampolémica na sociedade portuguesa de então, quer refutando ideias oureafirmando pontos de vista, quer legitimando ou repudiando certas ini-ciativas, através da sua divulgação, permite aceder ao universo teórico-doutrinário, que determinou muitas das opções educativas portuguesas.

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o jornal católico novidades 15

Género 1945 1946 1947 1948 1949 1950 Subtotal

Notícia 117 54 87 60 79 163 560A Opinião 64 35 73 22 27 31 252Legislação 1 2 21 17 3 0 44Publicação 10 2 5 1 1 1 20Fotografia 1(10) 0(4) 3(1) 6(11) 3(12) 8(23) 21(61)Discurso 1 0 0 0 0 0 1Estudos 0 1 0 1 0 0 2Entrevista 0 2 0 2 0 1 5Biografia 0 0 0 0 0 2 2Editorial 0 0 0 0 0 0 0Reportagem 0 0 0 2 0 2 4Subtotal 194 96 189 111 113 208 911Notícia 10 7 2 2 1 4 26A Opinião 18 19 30 31 29 19 146Legislação 0 0 0 0 0 0 0Publicação 1 3 4 5 5 1 19Fotografia 0 0 0 0 0 0 0Discurso 0 0 0 0 0 1 1Estudos 1 0 0 1 1 1 4Entrevista 1 0 0 0 0 0 1Biografia 0 0 0 0 0 0 0Editorial 22 34 27 32 29 29 173Reportagem 0 0 0 0 0 0 0Subtotal 53 63 63 71 65 55 370

Total 247 159 252 182 178 261 1.281

Tabela 1FREQUÊNCIA ABSOLUTAS DOS GÉNEROS

JORNALISTICOS POR ANO

Jorn

alA

cção

Esc

olar

Assim, a reforma do ensino liceal9 despoletou um debate10, intenso,dada a criação de uma coluna para o efeito, na última página, e a fre-quente publicação de artigos de opinião na primeira página, e extenso,

9 Decretos-leis n. 36.507 e n. 36.508, de 17 de setembro de 1947.10 Que não se limita ao período imediatamente posterior à promulgação do texto le-

gal, mas que lhe é anterior, referenciando-se a sua necessidade e, consequente pre-

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atendendo ao número de artigos de opinião, quer no jornal, quer no seuboletim da educação, e ao período de tempo, aproximadamente 6 mesesem 1947, animado com essa discussão.

O ensino técnico, quando comparado ao liceal, será alvo de menoratenção, todavia assinala-se um aumento de títulos consagrados a ele apartir de 1947, data da lei n. 2.025, de 19 de junho de 1947, e com maiorincidência em 1948, quando da publicação do Estatuto do Ensino Profis-sional Industrial e Comercial11, a qual não é independente da reestrutura-ção de alguns organismos da administração central12. Também, a publica-ção do Estatuto do Ensino Particular13, em 1949, foi motivo para reafirmarposições anteriormente assumidas relativamente a esta oferta educativa.No ano de 1948, o ensino liceal volta a constituir uma das preocupações doNovidades, havendo a necessidade de doutrinar a opinião pública relati-vamente às finalidades deste tipo de ensino e expectativas que ele pode sa-tisfazer. Em conformidade com a política educativa da época, assume-seuma posição de controlo do aumento da procura deste tipo de ensino, valo-rizando-se as possibilidades do ensino profissional, relativamente ao in-gresso na vida activa. Por outro lado, a reformulação dos programas doensino liceal14, em 1948, na sequência da Reforma de 1947, é motivo para,além de se noticiar esse acontecimento, serem produzidos alguns artigosde opinião, também eles focalizados nas finalidades do ensino liceal ou napossibilidade, ou não, deste tipo de ensino satisfazer as necessidadesformativas da população que o frequenta, sobretudo a feminina15.

paração para a realizar, em artigos de opinião de primeira página, tanto no ano de1945 como no de 1946, e posterior, continuando a opinar-se sobre as finalidade doensino liceal ou sobre o aproveitamento e a avaliação neste nível de ensino, duran-te todo o mês de outubro de 1947.

11 Decreto-lei n. 37.029, de 25 de agosto de 1948.12 A direcção-geral do ensino técnico elementar e médio dá lugar à direcção-geral do

ensino técnico e profissional e são criadas subsecções na Junta Nacional de Educa-ção, contemplando os ensinos agrícola, industrial e comercial (decreto-lei n. 37.028,de 25 de agosto de 1948).

13 Decreto-lei n. 37.544, de 8 de setembro de 1949.14 Decreto-lei n. 37.112, de 22 de outubro de 1948.15 A qual supera em valores de frequência e no aproveitamento obtido a população

masculina.

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Torna-se compreensível que os géneros escolhidos para a produçãode material jornalístico, versando a educação, sejam, predominantementea notícia, o artigo de opinião e o editorial (ver Tabela 1). Ao estar-seperante um jornal informativo ou noticioso (Gaillard, 1974, p. 12), nãose pode estranhar a prevalência da notícia, dado ela servir para a conse-cução de um dos objectivos que presidiu à criação do Novidades, isto é,informar. Por outro lado, dada a índole formativa ou de opinião (Letria& Goulão, 1986, p. 23), os artigos de opinião têm de ter um elevadopeso, uma vez que o seu uso permite a doutrinação, objectivo visadocom a criação deste jornal.

Da consulta da Tabela 1, conclui-se que foram localizadas 560 notí-cias, no jornal propriamente dito, ocupando estas o primeiro lugar entreos produtos jornalísticos oferecidos. O artigo de opinião é o segundogénero mais frequente ao atender-se ao jornal, em geral ou discrimi-nadamente. Foram identificados 146 artigos de opinião na Acção Esco-lar, 252 no jornal, tomado em sentido restrito, o que perfaz um total de398 artigos de opinião. As notícias representam 46%, seguidas dos arti-gos de opinião, com uma valor percentual de 32%, cujo peso se afastado dos editoriais, representando estes 14% dos valores totais (ver Gráfi-co 1). Mas, ao considerar-se que o editorial é um texto que, tal como oartigo de opinião, expressa a posição de quem o escreveu, demarcando-se do artigo de opinião, não raras as vezes, pelo lugar que ocupa napaginação do jornal e pelo facto de não ser assinado, a análise dafrequência dos textos, tomados do ponto de vista da sua forma, altera-se. O número de textos de opinião16 equipara-se ao das notícias, demar-cando-se substancialmente dos outros tipos, ao representarem cada um46% dos 1.281 títulos seleccionados (ver Gráfico 2). Esse mesmo tipode texto constitui 87% dos materiais publicados na Acção Escolar, aoatingir um valor absoluto de 319 em 370 (ver Gráfico 3).

Caracterizado o Novidades, passa-se à identificação e análise dosconteúdos educativos em foco nele, em ordem ao delineamento das ideiasque norteiam a proposta educativa estruturada, por um lado, por esse

16 Categoria introduzida para não se discriminarem os artigos de opinião dos editoriais.

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mesmo periódico, e que se quer, por outro lado, que seja estruturante dasociedade portuguesa. Cruzando a metodologia quantitativa (frequênciados textos apresentados) com a qualitativa (análise de conteúdo dos pro-dutos escritos) reconhece-se a existência de cinco grandes temas trans-versais ao Novidades, na medida em que atravessam o período de 1945a 1946, tomado sincronicamente ou diacronicamente17. Educação e Es-cola, Sistema de Ensino e Currículos, Ensino Particular, Género e Edu-cação e Educação e Professores são as áreas temáticas consideradasapós a análise de conteúdo dos 1.281 títulos.

O pensamento sobre educação e escola versa a educação, quer esco-lar, quer familiar, perspectivada do ponto de vista da pedagogia e/ou dafilosofia da educação e, ao focalizar-se na escola, inclui a abordagem

17 Podendo afirmar-se que se está perante uma transversalidade ao nível vertical e aonível horizontal.

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dos métodos e técnicas de ensino, do aproveitamento escolar e outrosconteúdos de natureza pedagógica. A importância númerica é acompa-nhada de uma análise exaustiva, visando-se tanto a informação do leitorsobre a questão como a criação de uma opinião sobre o papel da educa-ção e a função da escola. A instrução é tomada como um meio, sendosistematicamente subalternizada em relação à educação, concebida comoo fim visado pelas três instituições que actuam sobre o indivíduo – afamília, o Estado e a Igreja. Esta área temática compreende, ainda, umconjunto de artigos, identificados sobretudo na Acção Escolar, centradosna cooperação entre a família e a escola, no alcance do mesmo objectivo,a coesão patriótica e religiosa. Também o enorme peso dado à informa-ção acerca da Mocidade Portuguesa (actividades, formação de gradua-dos ou dirigentes, discursos dos comissários...), disponível na forma denotícia, muitas delas de primeira página, denota uma preocupação coma vertente formativa do processo educacional. As actividades da Moci-dade Portuguesa, a par da leccionação da religião e moral, canto coral eeducação física, a cargo desta mesma organização juvenil, asseguravama inculcação dos valores patrióticos e morais católicos – a edificação daNova Escola.

Esquema 1SÍNTESE DOUTRINAL DO NOVIDADES

PEDAGOGIA CATÓLICA

EDUCAÇÃO NOVA

HOMEM NOVO

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Na sequência da valorização da componente formativa, o cinemaeducativo, tomado em sentido informal ou formal, é analisado algumasvezes, tanto em editorial de primeira página como em editorial da AcçãoEscolar, ao longo dos seis anos. Por último, a atenção dada às organiza-ções juvenis da Igreja, como as da Acção Católica, a par da dada à orga-nização estatal – Mocidade Portugal, manifesta um entendimento daeducação que não se restringe à instrução e, consequentemente, a com-preensão de que o fenómeno educativo ultrapassa os limites da sala deaula e da própria escola, valorizando-se a educação não formal.

A área temática Sistema de Ensino e Currículos inclui um conjuntode títulos que reflectem, isoladamente ou em conjunto, sobre o ensino pri-mário, liceal, técnico e universitário. O ensino universitário está em mino-ria, o que não é de espantar, dado este ser percepcionado como um nívelde ensino a que só uma minoria deve ter acesso. Apesar de o ensino licealter um elevado peso, sobretudo se atendermos ao ano de 1947, em queocorreu uma Reforma no Ensino Liceal, a presença do ensino primáriosupera, em termos quantitativos e qualitativos, a dos restantes níveis e ti-pos de ensino. O ensino primário é perspectivado como o nível de ensi-no a ser assegurado a todos os portugueses, permitindo formar o homemdo Estado Novo, instruído quanto basta, para fazer face à vida, e formadonos valores do amor e serviço à família, à pátria e à Igreja.

Foram incluídos nesta área todos os artigos de opinião e notíciascujo conteúdo é a Reforma do Ensino, processada ou em processamento,ou ainda a expressão, antecipada, da sua necessidade. Assistindo-se nesteperíodo à reformulação do ensino liceal (1947) e técnico (1946 e 1948),os materiais encontrados centrados nas reformas do ensino atingem umnúmero assinalável, valorizando-se em termos, quer quantitativos, querqualitativos, a Reforma do Ensino Liceal, de 1947. Considerou-se que areflexão sobre o ensino das humanidades, com especial relevância, quan-titativa e qualitativa, o caso do latim no Liceu, está associada à aborda-gem do currículo e como tal foi integrada no Sistema de Ensino eCurrículos.

O relevo dado ao Ensino Particular é maior ao nível da análise qua-litativa do que da quantitativa. Ainda que o número de textos versando,especificamente, o ensino particular não seja elevado, este acentua-se nos

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anos de 1948 e, com maior relevância, de 1949, ano em que se definiu oEstatuto do Ensino Particular18. Há uma sobrevalorização desta ofertaeducativa ao longo de todo o período estudado, tanto opinando-se sobrea qualidade do ensino aí ministrado, ao atender-se ao de teor católico,como reivindicando-se direitos legais para este tipo de ensino, em maté-ria, por exemplo, de realização de exames, ou medidas excepcionais, ocaso das habilitações exigidas para a leccionação do ensino liceal.

Reconhecendo-se o direito dos pais escolherem a educação para osseus filhos, isto é, a supremacia da família ao Estado, reclama-se que aopção entre o ensino particular e o público seja livre e não determinadapelos mecanismos legais existentes, os quais colocam o ensino particu-lar numa posição subalterna do público e os seus alunos em desvanta-gem, ao confrontá-los com maiores exigências do que os do público. Aoanunciarem-se actividades do ensino particular ou ao fazer-se a históriade certas instituições religiosas de ensino reconhece-se a obra educativadesenvolvida pela Igreja, sobretudo das ordens religiosas, e o seu carácterprecursor em relação ao Estado.

Ainda que a problemática da feminização do magistério pareça in-tegrar-se na temática da Educação e Professorado, ela só se constituicomo um problema educativo, porque há uma definição social davivência do ser mulher ou ser homem e do modo como se relacionamentre eles, pelo que se considerou uma área temática independente,intitulando-a Género e Educação. Tomado o género não como um factonatural, mas como uma realidade construída, ao nível social, cultural ehistórico, e com fins analíticos (Block, 1989, pp. 158-161), está-se pe-rante uma abordagem focalizada no género, na medida em que é admi-tido que o desempenho docente do professor se demarca do da professora.Por outro lado, é através de uma análise marcada pela categoria do género,que a afluência de mulheres ao professorado é vista de um modo nega-tivo, ao nível do ensino liceal, enquanto é acarinhada no ensino primá-rio. Ao não se dissociar a educação da infância, quer masculina, querfeminina, de uma componente afectiva, a professora primária, enquanto

18 Decreto-lei n. 37.544, de 8 de setembro de 1949.

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mulher, assegurará melhor funções que se concebem muito próximasdas maternais, ao passo que a formação do carácter dos futuros homens,visada com o ensino liceal, se vê comprometida caso escasseiem osmodelos masculinos.

Os textos que se debruçam sobre o modo como as professoras sedevem apresentar, ignorando-se a necessidade de uma reflexão sobre aapresentação masculina, revelam uma ideologização da prática docen-te (Araújo, 2000, p. 92), dada a impossibilidade de controlar a procura detrabalho pela mulher. Também, a análise do aumento da frequência femi-nina no ensino liceal, matéria de vários artigos de primeira página duranteo ano de 1948, manifesta a significativa importância que o Novidades deuao pensar o Género e a Educação, opondo-se intensamente à coeducação,a qual associa à educação ateia e ao modelo comunista de educação, epermite inferir procedimentos sociais que envolvem a construção daidentidade masculina e feminina, no Estado Novo.

A área temática Educação e Professores aparece no último patamarde importância quantitativa, ainda que em termos qualitativos se reconhe-ça, para “bem da Educação”, a importância de criar incentivos à fixaçãodos professores nos meios rurais ou de assegurar uma vida monetáriadigna aos professores. O estabelecimento de uma estreita associação entresucesso educativo dos alunos e a competência profissional dos professo-res, conduz ao enaltecimento da profissão docente, tomando-a como umsacerdócio, que, mais do que formação19, requer vocação.

Identificadas e analisadas sumariamente as grandes áreas temáticasdo Novidades, tenta-se proceder à sistematização do pensamento peda-gógico deste jornal. Definido este matutino como o órgão oficioso daHierarquia Católica Portuguesa, as afirmações da fé, proclamadas pelomagistério eclesiástico constituem as matrizes eurísticas da informaçãoe doutrina por ele processada. Poder-se-á considerar que a grande afir-mação da fé católica é a existência de um Deus uno e trino. Esta visãoinformará o pensamento católico de um modo decisivo a partir da Idade

19 Ainda que a formação seja abordada, em alguns artigos, tanto a inicial como a emexercício.

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Média, reconhecendo-se por analogia à trindade divina que tudo o que ébom é trino, tudo o que é trino é bom20.

O Estado Novo, regime em vigor durante a existência do Novida-des, conforme já se afirmou, expressa o seu ideário na trilogia – Deus,pátria e família, a qual vai ser trabalhada num dos sete quadros intituladosA Lição de Salazar, realizados no âmbito da campanha pedagógica des-tinada à celebração do 10º aniversário da tomada de posse de OliveiraSalazar como ministro das finanças. Com este quadro, conforme afirmao professor João Medina, Martins Barata, seu autor, revela

o essencial da filosofia política, do Paternalismo político, da noção cristã da

Chefia e da Obediência que anima o ideário da Ditadura salazarista, a par do

seu ideal “utópico” – mais concretamente ucrónico, ou seja, fora do tempo,

do seu tempo –, virado para um mundo doirado impossível em pleno séc.

XX, com a sua “aurea mediocritas” de humildade e pobreza, o ideal neotomista

duma “pax ruris” medieval, um mundo sem electricidade nem revolução in-

dustrial a maculá-lo, com o “bom selvagem” salazarista condensado naquele

campónio que regressa a casa, à pequenina casa portuguesa [...], depois dum

dia de trabalho no amanho da terra, essa mãe-terra que miticamente o Chefe

queria como fundamento, princípio e fim de toda a riqueza, sob um céu imó-

vel e sempre azul onde Deus velava pela tranquilidade universal e pelo bom

andamento da sociedade portuguesa, tão fiel ao culto do Cristo sobre um

altar caseiro, Chefe invisível do Universo, de que o presidente do Conselho

seria afinal o natural delegado terreno, e o Chefe de família o seu represen-

tante também natural, nessa célula base da sociedade que é a Família [...]

[Medina, 1993, p. 17].

Concebendo o Novidades, enquanto voz da Igreja hierárquica, comomediador entre Deus trino e o povo católico, entre a terra e o céu, formula-se a sua síntese doutrinal na trilogia pedagogia católica – educaçãonova – homem novo. Esta tríade oferece-se como uma ideia organizadorados sentidos do educar, expressos no jornal, e que se tornaram perceptí-veis na forma das áreas temáticas, anteriormente enunciadas.

20 Consulte-se João Medina, 1993, p. 18.

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o jornal católico novidades 25

A pedagogia católica fundamenta-se na filosofia existencial cristã,a qual concebe a existência como condição de desenvolvimento da indi-vidualidade, construção do ser homem e realização humana enquantotal, a vida é essencialmente pedagógica – a vida é aprendizagem dacondição humana – e a pedagogia católica é essencialmente concepçãode vida (Hovre, 1934, p. 432) – ela é oportunidade de o homem se for-mar, crescer como homem e atingir a realização humana.

A educação nova, no construto que conceptualiza o pensamentopedagógico do Novidades, não é coincidente com a pedagogia da escolanova ou dita, por vezes, pedagogia activa, assim como se vai demarcandodesta, à medida que ela é vista como uma pedagogia essencialmente ateia,ao ser perfilhada pelos regimes comunistas do pós-guerra. Por educaçãonova, compreende-se a doutrina pedagógica direccionada não só para aformação intelectual, mas também física, social e moral. A escola, quesegue tais orientações, não se centra na instrução, ensinando conteúdosque não são apropriados ao desenvolvimento mental das crianças ou quenão têm utilidade prática, mas prepara homens e mulheres para a vida.

O homem novo é o homem e a mulher que recebem a instrução apro-priada às capacidades intelectuais e às expecativas que o social tem de-

Esquema 2SÍNTESE DOUTRINÁRIA DO NOVIDADES E ÁREAS

TEMÁTICAS SOBRE EDUCAÇÃO POR ELE CONTEMPLADAS

HOMEM NOVO

EDUCAÇÃO NOVA

PEDAGOGIA CATÓLICA

Sistema Educativoe Currículos

Educação e Professores

Género e Educação

Educação e EscolaEnsino Particular

Educação e Escola

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les e a formação cívica, moral e religiosa que possibilita a integração noEstado que se norteia pelo ideário Deus, pátria e família. Este homemnovo desempenha um papel na família, na sociedade e na Igreja de acor-do com o género e a classe social a que pertence, no cumprimento zelo-so do dever, no reconhecimento e respeito pela autoridade e na admiraçãoe devoção pelos mais nobres valores religiosos, pátrios e presentes àvida familiar.

Não pretendendo chegar a uma síntese conclusiva, mas a um esboçodas ideias inculcadas pelo Novidades, julga-se conveniente reconhecerque o alargamento do período trabalhado, certamente, vai facilitar a cla-rificação do(s) sentido(s) do educar. Por outro lado, pensa-se que o alar-gamento do acervo, prolongando o período pós-guerra vai esclarecer seo pensamento pedagógico do Novidades se afasta das posições assumi-das pelo Estado, passando os católicos, conforme sugere Braga da Cruz,“de uma aceitação quase unânime e de uma colaboração forte em mui-tos domínios [...] para uma crescente tensão e insatisfação, e para umadesagregação dessa colaboração, com passagem aberta a uma oposiçãoexpressa, tanto em termos hierárquicos como em termos laicais” (Cruz,1999, p. 15).

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o jornal católico novidades 27

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Este texto apresenta alguns dos resultados de um estudo acerca da produção e circulaçãode conhecimentos entre professores, tomando como fontes nucleares os manuais pedagó-gicos publicados no Brasil entre 1930 e 1971. Tais livros são escritos para uso em escolasnormais, durante aulas de disciplinas diretamente relacionadas a questões educacionais, asaber, pedagogia, didática, metodologia e prática de ensino. Pretende-se identificar algu-mas características dessa produção e os modos pelos quais o conjunto de textos examina-dos constrói e divulga saberes sobre o ofício docente.LEITURAS PARA PROFESSORES; MANUAIS PEDAGÓGICOS; IMPRENSA PEDAGÓ-GICA; FORMAÇÃO DOCENTE; SABERES PEDAGÓGICOS.

This article presents some results of a study about the production and circulation ofknowledge among teachers. The study mentioned uses, as its main source of data, theeducational manuals published in Brazil from 1930 to 1971. These books were written forteachers in pre service education courses during classes of subjects directly related toteaching: pedagogy, didactics, methodology and teaching practice. We try to identify somecharacteristics of this production and the ways they construct and spread educationalknowledge.READING PRACTICES AMONG TEACHERS; EDUCATIONAL MANUALS;EDUCATIONAL PRINTING PRESS; TEACHER PRE SERVICE EDUCATION;EDUCATIONAL KNOWLEDGE.

Uma história dasleituras para professores

análise da produção e circulação desaberes especializados nos manuais

pedagógicos (1930-1971)*

Vivian Batista da Silva**

* Este texto foi originalmente apresentado na 25ª Reunião Anual da ANPEd, realizadaem Caxambu entre os dias 29 de setembro e 2 de outubro de 2002. A referida comu-nicação integrou o GT 2 de História da Educação.

** Mestre e doutoranda em história da educação pela Faculdade de Educação da USP.

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30 revista brasileira de história da educação n° 6 jul./dez. 2003

Introdução

Identificar características dos manuais pedagógicos brasileiros, talcomo o presente trabalho se propõe, corresponde a um esforço de cola-borar para uma história de leituras para professores. Os livros em pautasão assim denominados por terem sido escritos a fim de desenvolveremos temas previstos para o ensino de disciplinas profissionalizantes doscurrículos de instituições de formação docente, no caso, aquelas direta-mente relacionadas com questões educacionais, a saber, a pedagogia, adidática, a metodologia e a prática de ensino. Trata-se de um tipo detexto elaborado a partir dos programas oficiais e que contém de formamais detalhada do que essas prescrições os conhecimentos a serem efeti-vamente ensinados aos normalistas (Correia, 2001). Nesse sentido, essegênero assume uma posição muito peculiar na literatura educacional(da qual se destacam a imprensa periódica e outras obras feitas paraorientar o exercício do magistério, a exemplo de guias sobre temas deordem moral, administrativa ou metodológica), pois, ao reunir e siste-matizar conteúdos tipicamente escolares, propõe-se a tratar de maneirasucinta e acessível o que há de “essencial” em termos de educação, fa-vorecendo assim um primeiro contato do leitor com essas questões.

Este estudo analisa 44 títulos publicados entre 1930 e 1971 (verQuadro 1), localizados em acervos1 de São Paulo e Campinas, os quaisreúnem um número significativo de obras na área educacional. A datainicial da pesquisa define-se em função de mudanças levadas a efeitoem escolas normais de vários estados do Brasil e, principalmente, deum notável aumento de publicações destinadas aos futuros professo-res2. Delimitando o marco final, considera-se a promulgação da Lei deDiretrizes e Bases – LDB – n. 5.692, que substitui as antigas institui-ções pela Habilitação Específica para o Magistério e ainda o fato de,

1 Biblioteca da Faculdade de Educação da USP; Biblioteca da Faculdade de Educa-ção da UNICAMP; Biblioteca da PUC-SP; Biblioteca Municipal Mário de Andrade eo acervo do Instituto de Estudos Educacionais Sud Mennucci.

2 Sobre a história de cursos de formação docente no Brasil, ver, por exemplo, Tanuri(1969, 1973 e 2000), Almeida (1993) e Vidal (1995).

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uma história das leituras para professores 31

nesse momento, as edições se apresentarem por meio de recursos tipo-gráficos mais sofisticados. Isso articula-se à modernização do setor edi-torial, permitindo uma produção mais ágil e acelerada, com a utilizaçãocada vez maior de ilustrações, fotografias e uma diagramação marcadapela ocupação menos massiva da página, a exemplo do que acontececom a maior parte das obras publicadas no país durante esse período.Tais mudanças refletem-se nos livros destinados ao uso escolar – con-junto ao qual o corpus aqui analisado se integra – motivando o queDécio Gatti Júnior (1998) assinala como a passagem dos “antigos ma-nuais escolares” para os “modernos livros didáticos”.

Quadro 1TÍTULOS E AUTORES DOS MANUAIS

PEDAGÓGICOS ESTUDADOS

TÍTULO AUTOR

1. Didática (nas escolas primárias) . . . . . . . . . . . . . João Toledo2. Introdução ao estudo da Escola Nova . . . . . . . . . Lourenço Filho3. As modernas diretrizes no ensino primário(escola ativa, do trabalho ou nova) . . . . . . . . . . . . . FranciscoVianna4. Escola brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . João Toledo5. Planos de lição: noções comuns . . . . . . . . . . . . . . João Toledo6. Técnica da pedagogia moderna: teoria eprática da Escola Nova . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Everardo Backheuser7. Pedagogia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Djacir Menezes8. Fundamentos do método – problemasmetodológicos do ensino primário . . . . . . . . . . . . . . Onofre de Arruda Penteado Jr.9. Práticas escolares – 1º volume . . . . . . . . . . . . . . . Antônio D’Ávila10. Práticas escolares – 2º volume . . . . . . . . . . . . . . Antônio D’Ávila11. Práticas escolares – 3º volume . . . . . . . . . . . . . . Antônio D’Ávila12. Manual de pedagogia moderna(teórica e prática) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Everardo Backheuser13. Como educar as crianças . . . . . . . . . . . . . . . . . . Aristides Ricardo14. Prática de ensino: o ensino e a aprendizagem,as técnicas de ensino, os planos de ensino, arealidade do ensino, a verificação do ensino . . . . . . Theobaldo Miranda Santos15. Prática do ensino primário: diário deatividades da professoranda para uso dasescolas normais e institutos de educação . . . . . . . . . Brisolva de Brito Queirós et al.

(continua)

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TÍTULO AUTOR

16. O quadro-negro e sua utilização no ensino . . . . Luíz Alves de Mattos17. Pedagogia – teoria e prática (de acordo com oprograma do Curso Normal e com as diretrizesdo ensino primário) – 1º volume . . . . . . . . . . . . . . . Antônio D’Ávila18. Fundamentos de educação (princípiospsicológicos e sociais, elementos de didáticae administração escolar) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Afro do Amaral Fontoura19. Metodologia do ensino primário (contendo amatéria dos 2º e 3º anos do Curso Normal) . . . . . . Afro do Amaral Fontoura20. Lições de pedagogia (rigorosamente deacordo com o programa oficial das EscolasNormais 1º ano) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Aquiles Archêro Jr.21. Introdução à pedagogia moderna . . . . . . . . . . . Theobaldo Miranda Santos22. Metodologia do ensino primário (de acordocom os programas dos Institutos de Educaçãoe das Escolas Normais) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Theobaldo Miranda Santos23. Didática mínima . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Rafael Grisi24. Processologia na escola primária . . . . . . . . . . . Caio de Figueiredo Silva25. Métodos e técnicas do estudo e da cultura: ler,escrever, conversar, estudar, adquirir cultura . . . . . Theobaldo Miranda Santos26. Compêndio de pedagogia moderna – de acordocom os programas do Concurso de Ingressono Magistério das Escolas Normais . . . . . . . . . . . . . Romanda Gonçalves;

Alcy Villela Bastos eLéa da Silva Rodrigues

27. A linguagem didática no ensino moderno . . . . . . Luíz Alves de Mattos28. Introdução à didática geral . . . . . . . . . . . . . . . . Imídeo Giuseppe Nérici29. Noções de metodologia do ensino primário –de acordo com os programas dos Institutos deEducação e das Escolas Normais . . . . . . . . . . . . . . . Theobaldo Miranda Santos30. Noções de pedagogia científica – para uso dasescolas normais, institutos de educação efaculdades de filosofia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Theobaldo Miranda Santos31. Didática geral – de acordo com os programasoficiais de 1ª e 2ª séries do Curso Normal dasescolas do estado do Rio de Janeiro . . . . . . . . . . . . . Romanda Gonçalves Pentagna32. Sumário de didática geral . . . . . . . . . . . . . . . . . . Luíz Alves de Mattos33. Introdução à prática de ensino –1a série normal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Amadice Amaral dos Reis et al.34. Metodologia e prática moderna de ensino . . . . . Angelina de Lima

(continua)

(continuação)

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uma história das leituras para professores 33

O problema que mobiliza a presente análise refere-se às práticas deorganização e circulação de conhecimentos profissionalizantes nos im-pressos em pauta e o que se procura apreender são as características dosdiscursos tidos como “excelentes” para conduzirem o ofício de ensinar.Ou seja, o propósito central é identificar alguns dos modos pelos quaisse constitui uma cultura profissional docente, entendida como um am-plo conjunto de elementos, dentre os quais estão as tarefas cotidianas nasala de aula, a convivência com os alunos, as conversas entre colegas, apartilha de uma identidade comum, a integração de experiências pessoaisàs atividades de trabalho, bem como a assimilação de valores, compe-tências, crenças, hábitos e informações que buscam instaurar modalidadesde interpretação e ação junto às situações de ensino (Perrenoud, 1993).Uma dimensão como essa diz respeito às maneiras como um grupo ela-bora, vive e pensa sua realidade e, tomando-se como referência algunspressupostos assinalados por Roger Chartier (1990), pode ser apreendidamediante o exame de textos – no caso, os manuais pedagógicos – queconstroem e tentam impor formas de apreender e intervir num determi-

TÍTULO AUTOR

35. Didática geral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Afro do Amaral Fontoura36. Didática geral – para uso das Faculdades de

Filosofia e das Escolas Normais . . . . . . . . . . . . . . . Onofre de Arruda Penteado Jr.37. Manual do professor primário – o professor, aescola, o aluno, os métodos, as medidas, asinstalações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Theobaldo Miranda Santos38. Diretrizes de didática e educação . . . . . . . . . . . . Ismael de Franca Campos39. Ensino: sua técnica – sua arte . . . . . . . . . . . . . . Ruy Santos de Figueiredo40. Prática de ensino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Afro do Amaral Fontoura41. Noções de prática de ensino – de acôrdo comos programas dos Institutos de Educação e dasEscolas Normais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Theobaldo Miranda Santos42. Noções de didática geral – para uso dasescolas normais, institutos de educação efaculdades de filosofia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Theobaldo Miranda Santos43. Pedagogia e didática modernas . . . . . . . . . . . . . Benedito de Andrade44. Ensinando à criança: guia para oprofessor primário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Alayde Madeira Marcozzi et al.

(continuação)

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nado espaço. Assim, ao identificar algumas modalidades de produção ecirculação do conhecimento pedagógico, o trabalho aqui apresentadoinsere-se no quadro dos estudos voltados para uma história das leituraspara professores.

Os esforços de análise incidem sobre a identificação dos objetivos erecomendações de uso do gênero em questão, das temáticas desenvolvi-das ao longo das páginas, bem como de iniciativas quanto à escrita ecirculação do material. Tais interrogações são tratadas mais demora-damente em dissertação de mestrado já desenvolvida junto à área dehistória da Educação e cujos resultados são aqui parcial e brevementeretomados3. Esse trabalho apresenta uma retomada dos currículos e pro-gramas prescritos para a escola normal no estado de São Paulo, com ointuito de apreender articulações entre os planos de estudo e os temastratados no repertório em análise. Em seguida, atenta para os modospelos quais as edições se dirigem ao seu público leitor, identificando osobjetivos do gênero a partir das declarações constantes nos prefácios;bem como das recomendações de uso dos manuais divulgadas em rese-nhas publicadas em periódicos educacionais. Considerou-se necessáriotambém reconstituir as características materiais dos escritos, com baseem observações de Chartier (1990) a respeito da importância das inves-tigações sobre os “suportes do texto”, ou seja, as disposições tipográfi-cas, a organização das páginas, a apresentação das ilustrações e outrostipos de recursos técnicos por meio dos quais os livros chegam aos lei-tores. Numa segunda parte, a pesquisa examina o conteúdo dos ma-nuais, interessando-se particularmente pela forma como eles reúnem esintetizam saberes pedagógicos. Isso permite conhecer os tipos de apro-priação e divulgação da bibliografia utilizada pelos autores, levando-seem conta proposições de Pierre Bourdieu (1990) acerca da produção deleituras em determinados espaços. Num último momento, são retoma-das regulamentações oficiais no que tange à elaboração e adoção das

3 Trata-se do estudo intitulado História de leituras para professores: um estudo daprodução e circulação de saberes especializados nos “manuais pedagógicos” bra-sileiros (1930-1971), o qual foi desenvolvido pela autora junto à Faculdade deEducação da USP (2001).

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obras estudadas, visando a mostrar o seu lugar no mercado editorialbrasileiro.

Explicitando as estratégias utilizadas na investigação, vale retomaras proposições feitas por Robert Darnton (1990) acerca de um modelode análise mediante o qual é possível examinar a produção de impres-sos. Embora essa difusão varie conforme o lugar, a época, o tipo detexto e o público ao qual ele se destina, é possível falar de um ciclo devida comum, o qual passa pelo escritor, editor ou livreiro, impressor,distribuidor, vendedor e leitor. Convém, nesse sentido, atentar para cadafase do processo, em sua globalidade e diante das possíveis variaçõesao longo do tempo, bem como em todas as suas relações com outrossistemas, seja o econômico, o social, o político e o cultural. Sem dúvida,trata-se de um grande empreendimento, cujas potencialidades de examesão aqui reconhecidas quando se atenta para diversos aspectos envolvi-dos na edição de manuais pedagógicos, sem, evidentemente, exaurirtodos os elementos aí envolvidos. Na medida do possível e num primei-ro momento, busca-se evidenciar os objetivos dos autores, as formastipográficas assumidas pelos escritos graças ao trabalho dos editores,ilustradores e impressores, as recomendações oficiais quanto à publica-ção de textos escolares e, mais precisamente, quanto aos tópicos a se-rem desenvolvidos pelos livros de pedagogia, didática, metodologia eprática de ensino destinados aos alunos da escola normal. Na pesquisarealizada, procede-se ao exame de currículos e programas desse curso,na cidade de São Paulo especialmente, no intuito de apreender as rela-ções entre os planos oficiais e os conteúdos das obras. Com o objetivode identificar expectativas relacionadas a esse material, recorre-se a pe-riódicos educacionais circulantes no período – a saber, a Revista Brasi-leira de Estudos Pedagógicos (Rio de Janeiro, a partir de 1944); a Revistado Magistério (São Paulo, 1952-1963); a revista Atualidades Pedagógi-cas (São Paulo, 1950-1962) e a revista Educação (São Paulo, 1927-1961) – que publicam resenhas e comentários sobre os manuais.Examina-se também prefácios dos próprios livros, identificando-se asformas pelas quais estes se auto-representam. E recorre-se ainda à legis-lação que ordena a produção e circulação da literatura escolar em geral,bem como a estudos acerca do desenvolvimento de iniciativas editoriais

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no país (Hallewell, 1985), a fim de compreender o significado do gêne-ro estudado nesse setor. Assim, e tomando os manuais pedagógicos comofonte nuclear, é possível reconstituir os modos pelos quais esses textosintegram o mercado literário e, sobretudo, o processo de formação deprofessores primários.

No que tange ao lugar deste trabalho no conjunto das produçõesbrasileiras na área de história da educação, as considerações de Catani eFaria Filho (2001) podem auxiliar. Ao examinar as características dosestudos apresentados nas Reuniões Anuais da Associação Nacional dePós-Graduação e Pesquisa em Educação – ANPEd – desde 1985 – datade criação do Grupo de Trabalho História da Educação (GT 2) – osautores observam um interesse especial, a partir dos anos de 1990, portemas como profissão docente, fontes e metodologia, estudos de gêne-ro, saberes escolares e livros e práticas de leitura. A esse respeito, ereferindo-se também a uma notável diversificação das fontes, eles assi-nalam a existência de novas perspectivas de análise e o fortalecimentoda produção nacional. Por sua vez, o presente exame articula-se a umadessas linhas que têm motivado boa parte das atividades dos pesquisa-dores da área, recaindo sobre a história da leitura e dos impressos4 ou,mais especificamente, sobre o texto escolar, na medida em que, como jáfoi assinalado, os manuais pedagógicos fazem parte das leituras promo-vidas pela escola, pois são escritos que ordenam o conjunto de saberes aserem transmitidos aos normalistas, além de definirem com isso deter-minados modos de transmissão e apreensão desses conhecimentos. Paraalém da função de formar estudantes, o gênero em pauta assume outratarefa, qual seja, a de subsidiar a constituição da identidade de profissio-nais – professores primários – que devem atuar na formação de outrosalunos. Tais elementos conferem aos manuais pedagógicos um lugarmuito especial e a investigação aqui proposta visa a contribuir para o

4 Entre as produções brasileiras que incidem sobre livros e leituras, é possível citaros textos de Vidal (1999, 1996 e 1997), Peres (2000), Oliveira (1968), Munakata(1999), Godinho Lima (1999), Gatti Jr. (1999), Faria (1984), Carvalho (1992),Oliveira (1984), Bittencourt (1993), Batista (1999), Boto (1997), Galvão (1998),Vidal Carvalho (2000).

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conhecimento da história desses livros, mediante o exame de várias fontese a sistematização de informações capazes de favorecer o desenvolvi-mento de futuras pesquisas.

Os “auctores” segundo os “lectores”

Antes de assinalar diferentes fases identificadas no processo de cons-trução e circulação de saberes no corpus examinado, no período com-preendido entre 1930 e 1971, convém destacar algumas especificidadesdos manuais pedagógicos no conjunto da literatura educacional. A esserespeito, é num texto intitulado Leitura, leitores, letrados, literaturaque Pierre Bourdieu (1990) chama a atenção para a diferença entre o“lector”, aquele que segundo a tradição medieval interpreta um discur-so anterior, e o “auctor”, responsável pela elaboração de uma obra origi-nal. Tal distinção é aqui especialmente importante, pois os escritoresdos manuais apresentam ao seu público, num texto aparentemente coe-rente e unificado (Roullet, 1998), a síntese de uma ampla bibliografia,produzida por diversos nomes e relacionada a diferentes ramos de estu-do. Assim, essas “leituras de leituras”5 contidas nos textos analisadosconstituem-se a partir da explicação que os seus autores, enquanto leito-res, fazem de algumas idéias. E, decerto, essa interpretação é o que moldao entendimento que os normalistas constroem das obras citadas.

Nos manuais, é possível identificar formas específicas de apropria-ção das fontes utilizadas. Os avanços da psicologia, da sociologia, dafilosofia, da pedagogia, da história, entre outras áreas comumente men-cionadas nesses livros, passam de uma lógica científica (ou pelo menosesse é o estatuto a elas delegado) a uma perspectiva de interpretação que

5 O termo “leituras de leituras” é utilizado por Denice Catani (1994) num texto sobreas resenhas bibliográficas publicadas na revista Educação (São Paulo, 1927-1961).Baseando-se em Pierre Bourdieu, a autora assinala o fato de que as resenhas sãoproduções derivadas. O comentarista refere-se a obras de outros autores e produzuma leitura que conduzirá à legitimação, ou não, destas. Os autores dos manuaispedagógicos, por sua vez, operam o mesmo tipo de mecanismo.

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permite situar as contribuições desses conhecimentos para o ofício deensinar. Dessa forma, a literatura examinada define-se pela alusão aautores e títulos consagrados e os seus conteúdos, como sugere Bourdieu,corresponde a um universo de referências “que são indissoluvelmentediferenças e reverências, distanciamentos e atenções” (1990, p. 145). Nes-sa transposição, são construídos saberes norteadores da prática docenteou, como diria o autor de um dos títulos analisados, Rafael Grisi, sabe-res capazes de “fazer a Pedagogia ‘descer do céu à terra’” (1956, p. XIII),a partir de duas espécies de operações: primeiramente, uma relativa àadequação de informações dos vários campos para explicar fatos docotidiano escolar e, em segundo lugar, um tipo de leitura usada para jus-tificar recomendações sobre como os docentes devem proceder no exer-cício do magistério.

Nesse sentido, a idéia de apropriação é nuclear para compreender anatureza dos manuais pedagógicos e a forma pela qual eles se produzema partir da incorporação de leituras feitas pelos seus produtores, o quetorna necessário o esclarecimento desse conceito, tal como é explicitadopor Roger Chartier (1991) quando se refere à liberdade ao mesmo tem-po criadora e regulada dos leitores, bem como às múltiplas interpreta-ções das quais um pensamento é suscetível. A relevância dessasconsiderações tem sido assinalada para o desenvolvimento de estudosempreendidos pelo próprio autor a respeito da história da leitura e dasedições na França e reconhece-se a fertilidade dessas contribuições parao entendimento dos modos de produção e circulação dos saberes educa-cionais. As hipóteses de Chartier conduzem a indagar acerca dos usosque os escritores dos manuais fazem do que lêem, buscando apreenderas práticas envolvidas na síntese e na divulgação da literatura por elesmencionada.

Importa, dentro dos limites aqui estabelecidos, assinalar as particu-laridades das relações entre o contexto de produção da bibliografia cita-da e os conhecimentos pragmáticos contidos nos livros, de modo que seconheça o processo de passagem de um para o outro. Quais obras eautores são usados nos manuais pedagógicos brasileiros entre 1930 e1971? As referências são sempre as mesmas ao longo do tempo? De quemodo as citações são apresentadas nos textos? Enfim, como os produto-

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uma história das leituras para professores 39

res desse corpus favorecem o acesso dos futuros professores a determi-nadas informações? Num banco de dados construído com base nessasindagações, estão relacionados dados que dizem respeito à bibliografiae aos nomes citados ao longo das páginas de cada título examinado,bem como a recorrência de transcrições literais, das indicações de leitu-ras e dos resumos de idéias. Cada menção a autor e livros está anotada,identificando-se também os modos pelos quais essa apropriação é ex-posta: no corpo do texto, em nota de rodapé, na bibliografia, com trans-crição literal do discurso ou não. Tal sistematização contabiliza um totalaproximado de 25 mil registros, dentre os quais estão incluídas citaçõesa áreas de saber, eventos educacionais, países, comunidades trans-nacionais e periódicos, o que pode ser útil também para outras pesqui-sas que porventura venham a ser desenvolvidas, como é o caso da tesede doutorado que dá continuidade a esta investigação.

Nessa ordenação de informações, é possível ver que o autor maiscitado em todo o período é John Dewey (594 vezes)6 e, com relação àbibliografia, recebem destaque os títulos constantes no Quadro 2. O reper-tório é composto por livros nacionais e estrangeiros, tendo sido, nesteúltimo caso, mencionados na maior parte das vezes em versões tra-duzidas. Também é notável a recorrência de manuais originalmente es-critos para sintetizarem o que seus autores consideram o “essencial” emtermos de educação e que, ao integrarem a bibliografia de outras obrasda mesma espécie, têm o seu conteúdo reinterpretado em razão de no-vos interesses: é o caso em que um autor de manuais se torna leitor deoutros manuais para incorporá-los ao seu texto e/ou deles retirar inspi-ração7.

6 Há ainda os nomes de Aguayo y Sánchez (429 vezes), Ovídio Decroly (298 vezes),Edouard Claparède (289 vezes), Georg Kerschensteiner (230 vezes), JohannFriedrich Herbart (222 vezes), Johann Heinrich Pestalozzi (203 vezes), MariaMontessori (198 vezes), Jean Jacques Rousseau (197 vezes) e Afro de AmaralFontoura (192 vezes), tomando-se aqui apenas os dez nomes mais citados.

7 Entre 1930 e 1946, os títulos mais utilizados são assinados por Dewey ecorrespondem a: Democracy and education, Como pensamos e a tradução Demo-cracia e educação. Outros livros referidos nesse período são: Educação progressi-va (Anísio Teixeira), Novos caminhos e novos fins (Fernando de Azevedo), L’école

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Quadro 2ALGUNS DOS TÍTULOS MAIS CITADOS NOS MANUAIS

PEDAGÓGICOS BRASILEIROS ENTRE 1930 E 1971

TÍTULO LÍNGUA AUTOR RECORRÊNCIA

Democracia e educação Tradução John Dewey 43 vezesThe nature and direction Inglês William Burton 25 vezes for learningComo pensamos Tradução John Dewey 21 vezesEducação progressiva Português Anísio Teixeira 20 vezesVida e educação Tradução John Dewey 16 vezesDidática magna Tradução J. Comenio 16 vezesL’école active Francês Adolph Ferrière 13 vezesDemocracy and education Inglês John Dewey 10 vezesLa educación nueva Espanhol L. Luzuriaga 6 vezesTestes ABC Português Lourenço Filho 6 vezes

A educação e a crise brasileira Português Anísio Teixeira 5 vezes

active (Adolph Ferrière) e Sociologia educacional (Delgado de Carvalho). Con-vém assinalar que não há nesse momento nenhum manual pedagógico estrangeirode pedagogia, psicologia, sociologia, filosofia, biologia, metodologia, prática deensino e didática que seja citado mais de cinco vezes. Livros como esse começama ter mais destaque entre 1947 e 1959, quando Didática da escola nova, textooriginalmente escrito por Aguayo, é o mais citado. A seguir vêm Pedagogia cientí-fica, do mesmo autor; Manual de pedagogia moderna, Ensaio de biotipologia edu-cacional, Técnica da pedagogia moderna, Aritmética na escola nova, manuaisbrasileiros assinados por Everardo Backheuser; os 3 volumes de Práticas escola-res (Antônio D’Ávila); Introdução ao estudo da Escola Nova (Lourenço Filho);Didactica o direccion del aprendizaje (González); A escola primária (TheobaldoSantos); Metodologia do ensino primário (mesmo autor); Manual do professorprimário (do mesmo autor); Metodologia das ciências físicas e naturais (Almeida);além de Fundamentos do método (Penteado Jr.) e Fundamentos de educação(Fontoura). No decorrer dos anos de 1960 até 1971 os textos mais referidos sãomanuais brasileiros de didática, pedagogia, psicologia educacional, metodologia eprática de ensino, dentre os quais estão: Didática geral, Fundamentos da educa-ção, Psicologia educacional, Metodologia do ensino primário, O planejamento noensino primário, Prática de ensino e Sociologia educacional, todos assinados porAfro do Amaral Fontoura; Introdução ao estudo da Escola Nova, de LourençoFilho; Práticas escolares, de Antônio D’Ávila; Fundamentos do método, de Pentea-do Jr.; Sumário de didática geral, Os objetivos e o planejamento do ensino e O

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uma história das leituras para professores 41

Tal sistematização apresenta os títulos mais relevantes dentre a biblio-grafia usada nos manuais pedagógicos brasileiros durante todo o perío-do estudado neste trabalho. Entretanto, o lugar das referências passa poralgumas mudanças ao longo do tempo. Considerando os anos compre-endidos entre 1930 e 1946, quando, aliás, a Escola Nova é o principaltema, o nome mais recorrente é o de John Dewey, citado 193 vezes aotodo8. Interessa reconstituir, na medida do possível, o papel desse autorno campo educacional brasileiro e os tipos de leituras realizadas da obradesse autor nos manuais pedagógicos. Com relação ao pensamentodeweyano, Amaral (1976) observa que esse teórico norte-americanoveicula ideais da tradição de seu povo, concebendo a democracia comoa forma de vida mais apropriada ao progresso e exaltando as poten-cialidades da inteligência humana. Ela ainda afirma que a originalidadede Dewey (1859-1952) está na racionalização e teorização de tal pro-grama, ao elaborar uma filosofia que oriente a educação à luz dos prin-

quadro-negro e sua utilização no ensino, de Luíz Alves de Mattos; Manual depedagogia moderna, O professor e Técnica da pedagogia moderna, de EverardoBackheuser; Didática geral, de Imídeo Nérici; Pedagogia e didática modernas, deBenedicto de Andrade; Noções de filosofia da educação, Metodologia do ensinoprimário, Noções de prática de ensino, Filosofia da educação e Noções demetodologia do ensino primário, de Theobaldo Miranda Santos. Os manuais estran-geiros então citados são os seguintes: Didática da Escola Nova e Pedagogia cientí-fica, de Aguayo; Didactica o direccion del aprendizaje, de Diego González;Pedagogia, de Lorenzo Luzuriaga; Didactica general, de Schmieder; Didacticageneral y especial, de Clotilde Rezzano; Didactica general, de Hugo Calzetti; Te-oria de la enseñanz o didactica general, de Ruiz Amado; Pedagogia geral, doportuguês Mário Vianna e Pedagogia, de Paul Barth.

8 Em seguida, temos Ovídio Decroly (88 vezes), Johann Friedrich Herbart (74 ve-zes), Georg Kerschensteiner (51 vezes), Edouard Claparède (40 vezes), Kilpatrick(46 vezes), Maria Montessori (34 vezes), Johann Heinrich Pestalozzi (29 vezes),Alfred Binet (22 vezes), Sigmund Freud (22 vezes), Adolph Ferrière (40 vezes),Edward Lee Thorndike (18 vezes), dentre outros que integram o movimentoescolanovista e são até hoje consagrados entre os professores. A única exceção é ocaso de John Peter Wynne, cujo nome é um dos mais mencionados (84 vezes),embora atualmente não seja tão conhecido. Segundo Onofre de Arruda PenteadoJr., em seu Fundamentos do método (1938), manual que mais cita esse autor, ele éresponsável por trabalhos versando sobre uma nova concepção de método geral deensino, tendo sido aluno de John Dewey na Universidade de Columbia.

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cípios democráticos. Por sua vez, Franco Cambi, em seu História dapedagogia, refere-se a esse autor de maneira muito entusiasta, conside-rando-o“o maior pedagogo do século XX” e um importante nome doescolanovismo. No seu entender, Dewey inspira debates e experiênciaseducacionais em diversas instituições do mundo e propaga “a lição dopragmatismo americano” (1999, p. 546).

No que tange às modalidades de apropriação da filosofia deweyana,cabe aqui recorrer a alguns casos exemplares. A observação principalrefere-se ao fato de que é comum a lógica de exaltação do autor, emboraas leituras realizadas da obra de Dewey tenham se transformado ao lon-go do tempo, passando da ênfase nas finalidades de uma organizaçãoescolar tida como “renovada” para a exposição de argumentos justifi-cando a descrição de técnicas e métodos de ensino a serem empregadospelos professores no exercício do magistério. As afirmações de Louren-ço Filho ilustram a divulgação das idéias do teórico norte-americanonos manuais pedagógicos brasileiros das décadas de 1930 e 1940. As-sim como aparece em outros livros do período, em Introdução ao estu-do da Escola Nova são destacados dados biográficos, apresentando onome como um dos “grandes filósofos da atualidade”. No manualtransparecem os louvores e o respeito: “Pragmatista, no melhor sentidoda palavra, ele não crê no valor do pensamento desinteressado, nem sedeixa embriagar por elocubrações metafísicas. Mas não desdenha a teoriae o valor do pensamento” (Lourenço Filho, 1930, p. 170, grifos nossos).

Referindo-se especificamente ao livro How we think, do qual há umexcerto traduzido no Introdução ao estudo da Escola Nova, o autor domanual elogia o fato de Dewey não conceber uma “educação verdadei-ra sem uma cultura do pensamento”, a qual “não funciona em abstrato,nem é passível de uma construção puramente formal. É efeito de neces-sidades que ao homem se apresenta no meio físico e social”. Prosse-guindo, Lourenço Filho esclarece que o sentido pragmatista da obra deDewey reside na “disciplina do pensamento, que compete à educação”(1930, p. 171). Desse modo, examinando-se as referências contidas nosmanuais, observa-se que as principais contribuições do teórico para ocampo educacional correspondem às pesquisas sobre o pensamento e asimplicações daí decorrentes para a definição das finalidades do trabalho

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pedagógico. De fato, a maioria das referências ao teórico nos manuaispedagógicos visa a consagrá-lo e, tomando-se esse caso exemplar, épossível dizer que entre as publicações da década de 1930 estas marcasde apropriação são bem visíveis.

Depois de 1946, Dewey deixa de ser o teórico mais citado, emborao seu nome continue sendo muito recorrente9. Desde os finais dos anosde 1940 até 1971, o escritor de Didática da Escola Nova, Aguayo, apa-rece como o nome mais referido nos manuais então publicados. Dadosos limites impostos ao presente trabalho, cabe apenas lembrar a atuaçãodesse educador cubano em cursos de formação docente e na reorganiza-ção das escolas populares de seu país, no sentido de imprimir a elas umadireção renovadora. No Diccionario de pedagogia dirigido por Luis Sarto(1972), o autor é apresentado como uma ilustre figura contemporâneado campo educacional, devendo-se a ele a fundação de um laboratório

9 Num segundo momento e simultanemente à proliferação de manuais de metodologiae prática de ensino, nos idos de 1950, os nomes consagrados do movimentoescolanovista continuam a ser utilizados, como é o caso de Dewey (154 vezesmencionado nos textos dos 15 manuais do período), Decroly (81 vezes), Claparède(86 vezes), Pestalozzi (67 vezes), Rousseau (67 vezes), Kerschensteiner (62 ve-zes), Herbart (54 vezes), Montessori (50 vezes), Fröebel (42 vezes), Comenius (41vezes), Thorndike ( 35 vezes), Spencer (32 vezes), Rude (44 vezes) e Ferrière (23vezes), para citar apenas alguns dos exemplos mais notáveis. Mas, diferentementedo que se verifica até então, passam a ser citados também autores de manuais dedidática, pedagogia, psicologia educacional, filosofia da educação, dentre outrasdisciplinas dos currículos de cursos de formação docente. Foi o caso de Aguayo ySánchez (181 vezes), Everardo Backheuser (95 vezes), Theobaldo Miranda Santos(43 vezes), Antônio D’Ávila (62 vezes) e Lourenço Filho (58 vezes). Essa tendên-cia em usar autores de manuais prossegue, acentuando-se entre 1960 e 1971, mo-mento no qual as produções atentam predominantemente para metodologias etécnicas didáticas. Embora Dewey (citado 230 vezes nas páginas dos 20 livrosentão publicados), Decroly (113 vezes), Rousseau (83 vezes), Pestalozzi (82 ve-zes), Claparède (129 vezes), Montessori (93 vezes), Thorndike (88 vezes) eKerschensteiner (74 vezes) sejam referências ainda muito presentes, o destaque aautores de “sínteses” do pensamento educacional aumenta. Exemplos importantessão os de Aguayo (240 vezes), Afro do Amaral Fontoura (172 vezes), TheobaldoMiranda Santos (76 vezes), Diego González (87 vezes), Lorenzo Luzuriaga (72vezes), Luíz Alves de Mattos (91 vezes), Antônio D’Ávila (75 vezes), LourençoFilho (66 vezes), Everardo Backheuser (44 vezes), Onofre Penteado Jr. (21 vezes),Imídeo Giuseppe Nérici (17 vezes) e Benedito de Andrade (11 vezes).

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para o estudo da criança na Universidade de Havana, onde, também,havia se formado pedagogo. Entre 1960 e 1971, outro autor muito utili-zado foi Lorenzo Luzuriaga (citado 72 vezes), pedagogo e historiadorespanhol. Num estudo sobre a apropriação da obra desse autor nos li-vros de história da educação publicados nessa época, Mirian Warde(1998) observa que a sua obra é lida, porém, não é incorporada comofonte. Em primeiro lugar, ela assinala que o autor é interpretado segun-do o padrão historiográfico de corte religioso, embora tenha tido umaatuação marcadamente socialista e laicista. Em segundo lugar, há a hi-pótese de que o projeto original de Luzuriaga para construir uma histó-ria da pedagogia baseada em práticas e processos de organização dotrabalho escolar não tem espaço para se concretizar no campo acadêmi-co brasileiro do período, o qual é fortemente hierarquizado e sedimentado,sendo favorável à reconstituição das tendências pedagógicas e de seus“grandes” mentores. Embora Warde tenha analisado a apropriação dopensamento de Luzuriaga em livros que não fazem parte do conjuntodos manuais pedagógicos aqui estudados, as suas considerações são úteisporque destacam modalidades de interpretação da obra do autor.

Longe de exaurir todos os aspectos envolvidos na leitura que os es-critores dos manuais fazem das obras de autores muito citados ao longodas páginas, convém chamar a atenção para o lugar da bibliografia deDewey nas produções entre 1950 e 1971, o qual se diferencia por umarecorrência menor, se comparada com os anos de 1930 e 1940, e tam-bém por um outro tipo de apropriação. Retomando alguns excertosilustrativos e localizados nos idos de 1950, são notáveis as declaraçõesconstantes em Introdução à pedagogia moderna, no qual TheobaldoMiranda Santos tece elogios a John Dewey no capítulo intitulado “Aeducação e o pragmatismo”. O escritor declara estar referindo-se a uma“figura sugestiva e poderosa [...] que mais profundamente tem influen-ciado as doutrinas e os métodos da chamada educação renovada” (San-tos, 1955a, pp. 44-54, grifos nossos). Assim, diferentemente das decla-rações de Lourenço Filho, tais apreciações deixam entrever a ênfase nascontribuições do pensamento deweyano para orientar o que o professordeve fazer em situação de aula. Essa perspectiva é também especialmen-te evidenciada no capítulo “utilização do compêndio” em Didática míni-

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ma (Grisi, 1956), no qual o escritor censura o uso do livro escolar, de-fendendo a adoção de revistas e jornais infantis, pois estes poderiamdespertar o interesse dos alunos. Fundamentando seu argumento, RafaelGrisi traduz e transcreve um trecho de Democracy and education, em queDewey afirmaria, em tom irônico, “que o lema de certos autores de li-vros didáticos é: pouco importa o que se escreva para uso das criançasna escola, contanto que elas detestem a leitura” (Grisi, 1956, p. 36). Esseé apenas um dentre outros casos muito comuns de argumentos que vi-sam a mostrar a aplicabilidade das proposições deweyanas na definiçãode atividades a serem desenvolvidas em sala de aula.

Entre 1960 e 1971, o chamado “tecnicismo” tem uma posição nu-clear no discurso educacional, até mesmo nos manuais pedagógicos. Tra-ta-se de uma “renovação radical e capilar da pedagogia”, atenta sobre-tudo às questões de instrução (Cambi, 1999). No caso brasileiro, essatendência está relacionada com a política desenvolvimentista do Regi-me Militar (Cunha & Góes, 1985) e configura-se por uma preocupaçãomuito forte com os recursos técnicos desenvolvidos pela ciência e apli-cáveis ao domínio educacional. Assim, Democracia e educação éfreqüentemente utilizada no intuito de se atestar a relevância dos meiosintuitivos no processo de aprendizagem. Ainda com uma finalidadeilustrativa, vale retomar uma citação localizada em Didática geral (Pen-teado Jr., 1965), na parte relativa à “matéria do ponto de vista do apren-diz”. No manual está escrito que o “problema do ensino consiste emconservar a experiência do estudante movendo-se na direção daquilo queo adulto formado já conhece. Por isso é necessário que o mestre conhe-ça ao mesmo tempo a matéria e as necessidades e capacidades caracte-rísticas do estudante” (Penteado Jr., 1965, p. 80). O autor do manual nãofaz maiores apreciações sobre os trechos transcritos, expondo apenas aspalavras de Dewey quanto aos modos tidos como “ideais” para se con-duzir o magistério. Nota-se, então, a presença mais marcante de trans-crições às quais não se acrescentam comentários mais detidos, mas queressaltam os contributos do teórico norte-americano como um “grandereformador dos métodos da educação” (Penteado Jr., 1965, p. 237).

Em suma, tais constatações induzem a indagar acerca das diferentesconcepções relativas ao que merece ser lido pelos professores. Nos ma-

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nuais pedagógicos, esse mecanismo é operado sistematicamente: sele-cionando o que há de “essencial” para a profissão docente, eles exercema autoridade de ensinar o que se tem por mais legítimo na área, funda-mentando as práticas “ideais” para o professorado. As consideraçõesaqui realizadas pretendem favorecer uma reflexão sobre os modos deprodução e circulação de saberes no campo educacional.

Sobre as representações da prática docente

Como foi dito, os manuais pedagógicos apropriam-se de diversosconhecimentos, adequando-os em escritos aparentemente claros e con-cisos, ora para explicar questões ligadas à escola, ora para fundamentarrecomendações a serem seguidas pelos professores em situação de aula.Trata-se de representações entendidas no sentido sugerido por Chartier(1991), ou seja, esquemas que dão sentido a uma realidade. No caso,define-se aquilo que é importante para constituir uma cultura profissio-nal docente, o que apresenta variações ao longo do tempo, como já dei-xa entrever a análise do conjunto de obras e autores utilizados. Outroindício a ser considerado nesse processo refere-se aos temas privilegia-dos, os quais podem ser identificados desde os títulos e índices dos li-vros. Num primeiro momento, situado entre os anos de 1930 até 1946,observa-se uma atenção voltada para a explicação dos postulados daEscola Nova. A partir de finais dos anos de 1940, diferentemente, asquestões metodológicas começam a receber um espaço notável, estandopresentes nos nomes das obras e constituindo-se como objeto de inte-resse na maior parte dos capítulos desenvolvidos ao longo das páginas.Essa tendência acentua-se nas décadas de 1960 e 1970, com as descri-ções sistemáticas a respeito de técnicas pedagógicas. Tais mudançaspodem ser descritas da seguinte forma:

• 1930 a 1946: o entusiasmo pelo movimento escolanovista;• 1947 a 1959: a proposição de metodologias de ensino;• 1960 a 1971: a apresentação de tecnologias a serviço da eficiência

das atividades pedagógicas.

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Nas décadas de 1930 e 1940, os manuais dedicam-se à difusão dasidéias de renovação educacional, como evidenciam os títulos de Intro-dução ao estudo da Escola Nova (Lourenço Filho, 1930), As modernasdiretrizes do ensino primário (Vianna, 1930) e Técnica da pedagogiamoderna (Backheuser, 1934). O prefácio do livro de Onofre de ArrudaPenteado Jr., Fundamentos do método (1938), embora não faça referên-cias diretas ao escolanovismo, assinala a atuação de autores como JohnDewey, um dos nomes mais reconhecidos do movimento. Nessa pers-pectiva, trata-se de informar aos leitores as “múltiplas modalidades deescola ativa surgidas por toda parte” (Vianna, 1930) ou sintetizar asquestões teóricas e práticas sobre o tema. Há ainda o esforço de resumiros conhecimentos produzidos por psicólogos, biólogos, sociólogos eoutros profissionais, “dentro de orientação científica e positiva”, comoafirma Djacir Menezes ao introduzir o seu livro intitulado Pedagogia(1935) e, no âmbito de um “plano de topografia geral, em escala reduzi-da, situando apenas os acidentes capitais”, Lourenço Filho procura apre-sentar um “estudo isento, objetivo, em que as coisas se descrevem e secomparam, mais do que se julgam”. Sustenta-se uma suposta imparcia-lidade dos conteúdos e a valorização de um “juízo imparcial”, como dizo padre Leonel Franca ao comentar o texto de Everardo Backheuser.Entretanto, cada nota de apresentação refere-se a um tipo de entendi-mento sobre a Escola Nova e os prefácios já revelam a ausência de umconsenso em torno das proposições em questão. Em Introdução ao es-tudo da Escola Nova procura-se, por exemplo, situar os “acidentes ca-pitais” do movimento escolanovista e em Técnica da pedagogia modernaindaga-se inicialmente “O que era afinal a Escola Nova?”

As diversas modalidades de compreensão expostas nos manuaisdecorrem, como sugere Marta Carvalho (1998), de diferentes tipos de in-teresses característicos do campo educacional naquele momento. A au-tora esclarece que com a criação do Ministério da Educação e Saúde peloGoverno Vargas, em 1930, ampliam-se as possibilidades de estruturaçãodo sistema de ensino, estimulando a disputa pelo controle ideológico etécnico da escola. Dois grupos organizam-se com o intuito de regular ocotidiano das salas de aula e consolidar, dessa forma, uma hegemonia cul-tural. Um deles reúne os chamados “católicos”, ou seja, os membros do

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laicato intelectual e integrantes da Associação Brasileira de Educação (aABE) desde os anos de 1920 até 1932, quando passam a se articular aagremiações religiosas. De outro lado estão os “pioneiros”, como sãodesignados, trata-se de membros ativos da ABE, que também atuam juntoao governo, promovendo reformas educacionais a partir de princípiosliberais e democráticos. Deste último grupo faz parte Lourenço Filho e,entre os “católicos”, está Everardo Backheuser, cujo livro é, até, prefa-ciado por um padre. Convém assinalar aqui tais diferenças, porque elasinspiram proposições em torno da apropriação dos postulados da Esco-la Nova. Nesse sentido, tanto os “católicos” como os “pioneiros” atuamjunto ao mercado editorial para difundir a sua compreensão acerca dasteorias e preceitos tidos como “ideais” para a cultura pedagógica do pro-fessorado. No entender de autores da época, como Fernando de Azeve-do (1958), a instalação do Estado Novo teria interrompido esse debate,ao promover a centralização das decisões sobre a organização escolar. En-tretanto, convém ponderar esse tipo de visão, que reforça uma supostaantagonia entre católicos e pioneiros, desconsiderando o fato de que,como mostra Cunha (1999), a propaganda do escolanovismo empreen-dida nas décadas iniciais do século XX estimula, entre os educadores demodo geral, a adequação de informações produzidas pela psicologia, so-ciologia, entre outras áreas, para explicar questões de aprendizagem e pro-por a racionalização das práticas pedagógicas.

Assim configurado, o discurso educacional constitui-se pela utiliza-ção de outros campos e disciplinas científicas. Com a redemocratizaçãodo país, tal discurso evidencia também o ideário característico da políti-ca desenvolvimentista do Governo Kubitschek. Nessa perspectiva, acre-dita-se que todas as tarefas escolares devam ser planejadas para garantira eficiência e disciplina das atividades, adequando-as ao desenvolvimentosocial e econômico do país que então está pautado sobretudo na industria-lização (Cunha, 1999). E os manuais pedagógicos publicados entre fi-nais da década de 1940 e durante os anos de 1950 passam a versar pre-dominantemente sobre a prática e metodologia do ensino, enfatizando,ao longo dos capítulos, aspectos relacionados ao planejamento do tra-balho docente, desde a definição dos objetivos até as estratégias de trans-missão de conhecimentos aos alunos e de avaliação. Tais aspectos são

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assinalados já nos prefácios, como exemplificam as declarações de An-tônio D’Ávila quando da apresentação de seu Pedagogia – teoria e prá-tica (1954). O autor assinala a necessidade de “ao lado da lição pedagó-gica teórica e geral”, “apresentar um conjunto de normas práticas, dediretrizes e sugestões para a ação docente do mestre, dando-lhe, ao mes-mo tempo, a informação esclarecedora de problema e subsídios de estu-do, compendiados em leituras, referências, estatísticas e depoimentos,consorciando, assim, a teoria e a prática pedagógicas”.

Os elogios referentes à metodologia de ensino continuam presentesnos manuais publicados ao longo dos anos de 1960. Como observa NilsonMachado (1980), trata-se de uma crença comum entre os educadores,segundo a qual problemas como a repetência escolar poderiam ser solu-cionados a partir de opções exclusivamente metodológicas ou medianteo uso de recursos tecnológicos no encaminhamento das atividades dosprofessores junto aos seus alunos. Luíz Alves de Mattos, em O quadro-negro e sua utilização no ensino (1968), ilustra essa tendência ao afir-mar que a melhoria qualitativa do ensino brasileiro só será possívelmediante o “emprego da moderna tecnologia didática”, a qual pode ser“altamente sofisticada e dispendiosa” ou mesmo mais modesta e acessí-vel, como é o caso do quadro-negro, dos álbuns seriados entre outros, osquais estariam ao alcance dos “países subdesenvolvidos”.

Esse “tecnicismo”, como denomina Machado (1980), restringe osargumentos a um nível operacional, levando em conta apenas os méto-dos e recursos a serem empregados e desconsiderando uma compreen-são mais ampla da atividade pedagógica, atenta a questões de ordemsocial e cultural. Também Jorge Nagle (1976) refere-se à existência deum movimento de “tecnificação” da literatura educacional, o qualtransparece nos títulos, prefácios e temas mais tratados pelos manuais.No entender do autor, essa tendência está entre as principais deficiênciasobservadas em todo o conjunto de produções da área na época. Issoporque as preocupações centradas em objetivos, currículo, medida eavaliação da aprendizagem geralmente não se articulam com questõesdo sistema escolar, quais sejam, ideais e valores educativos, instituiçõesescolares ou mesmo tópicos relacionados à ordem social mais ampla, asaber, informações a respeito da vida política, econômica e cultural.

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Nesse sentido, Nagle reconhece um esforço para restringir a discussãodos problemas, do que decorre um distanciamento de reflexões maisabrangentes. Como se procura evidenciar aqui, tal fragmentação é pro-gressivamente incorporada ao conteúdo dos livros examinados, nos anosde 1960 e início da década seguinte, destacando-se cada vez mais assupostas virtudes das metodologias e técnicas para a boa condução dotrabalho docente.

Em suma, pode-se afirmar que os manuais pedagógicos brasileiros,entre 1930 e 1971, enfatizam diferentes maneiras de se conduzir a for-mação e o aperfeiçoamento do magistério, expondo desde a constitui-ção de uma cultura profissional sob os auspícios da Escola Nova,passando pela política de racionalização do trabalho dos professores,até o processo de tecnicização do ensino. Para tanto, são reunidos sabe-res produzidos por diversos autores ou, como diria Rafael Grisi (1956),a “pedagogia das cátedras” e transpostos para a “pedagogia da terra”,primeiramente num sentido de adequar esses conhecimentos para expli-car fatos do cotidiano escolar e, como ocorre principalmente a partir dosanos de 1950, com o intuito de utilizá-los para justificar regras reco-mendáveis para o professorado no exercício do magistério. Ao longo dotempo, o que se vai configurando como elemento imprescindível à cul-tura pedagógica refere-se aos aspectos mais restritos da sala de aula.

Ao se identificar esses três momentos na história dos manuais peda-gógicos brasileiros, pode-se reiterar que o intuito do presente trabalho éoferecer elementos para uma reflexão acerca das leituras destinadas aosprofessores. O principal objetivo da análise é assinalar as especificidadesdos manuais pedagógicos no processo de produção e circulação de sa-beres especializados e o modo como esses livros, amplamente divulga-dos entre os normalistas, mobilizaram determinadas referências (autores,obras nacionais e internacionais) para criar um discurso próprio, instau-rando determinadas maneiras de pensar e agir no magistério.

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A Revista Escola Argentinareflexões sobre um periódico

escolar nos anos 20 e 30

Miriam Waidenfeld Chaves*

Este trabalho pretende mostrar, por meio de uma investigação histórico-cultural do texto,o modo como a revista pedagógica da Escola Argentina no antigo Distrito Federal, nofinal dos anos de 1920 e primeira metade dos anos de 1930, constrói um discurso que temcomo objetivo legitimar tanto o seu projeto educacional quanto o da Diretoria de Instru-ção a que se vincula. Procede-se a uma análise não só dos estratagemas discursivos utili-zados pela Revista Escola Argentina como também do objeto que a comunica – seu su-porte –, dificultando, desse modo, a produção de leituras independentes do próprioimpresso.ANÍSIO TEIXEIRA; REVISTA ESCOLA ARGENTINA; ESCOLA ARGENTINA; PROJETOPEDAGÓGICO; ESTRATAGEMAS DISCURSIVOS.

The purpose of this article is to demonstrate that the magazine published by the ArgentinaSchool in Federal District in the end of the 20´s and in the first half of the 30´s, builds upa certain discourse which aims to validate both its educational project, as well as the oneof the Instruction Department to which the school is linked. This is achieved through ahistorical-cultural investigation of the text and an analysis both of the stratagems ofdiscourse utilized by Revista Escola Argentina and of the object being communicated, itssupport, thus aiming to produce a certain type o reading of the printed text.ANÍSIO TEIXEIRA; REVISTA ESCOLA ARGENTINA; ARGENTINA SCHOOL;EDUCATIONAL PROJECT; STRATAGEMS OF DISCOURSE.

* Doutora em história da educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio deJaneiro.

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Principalmente a partir dos anos de 1990, o campo da pesquisa emhistória da educação no Brasil tem crescido bastante e pesquisadorestêm desenvolvido seus trabalhos com base em temas pouco pensadosaté há alguns anos.

Além disso, a maior familiaridade com os autores da Escola dosAnnales possibilitou a esses pesquisadores se apropriar de um instru-mental teórico-metodológico que acabou por lhes impor toda uma novaperspectiva para seu fazer histórico; ou seja, legitima-se um novo modusoperandi, que permite ao historiador da educação enxergar outros ân-gulos do já pesquisado, reinterpretar o já interpretado e, por que nãodizer, trazer à tona novas dimensões sociais da própria realidade educa-cional brasileira já estudada.

Nessa perspectiva, um olhar mais apurado sobre o período das refor-mas educacionais de âmbito estadual no Brasil dos anos de 1920 e 1930,pressupõe que os pesquisadores fiquem atentos para as novas questões,possibilitando a fabricação de outras leituras a respeito do mesmo tema.

Conseqüentemente, este texto, fruto de minha tese de doutorado1, aose alinhar a tantos outros que começam a se preocupar com as práticasescolares do tempo do Império e do início da República, insere-se em umtipo de investigação que privilegia a sala de aula, as matérias escolares,os livros didáticos e as revistas escolares produzidas nessa mesma épo-ca, permitindo que, desse modo, se entendam as dimensões das reformasdo ensino a partir de sua própria estrutura interna; ou seja, este trabalhose enquadra em um tipo de perspectiva que procura definir as reformas apartir da maneira como foram sendo viabilizadas pelas escolas: segundoos seus artifícios discursivos, suas limitações e possíveis inovações.

Este trabalho objetiva trazer à tona os estratagemas discursivosconstruídos pela Revista Escola Argentina2 que, assim, passa a ser en-tendida como uma produção cujo texto procura impor uma determinada

1 A escola anisiana dos anos 30: fragmentos de uma experiência – a trajetória pe-dagógica da Escola Argentina no antigo Distrito Federal (1931-1935). Rio deJaneiro, Departamento de Educação – PUC, 2001.

2 Publicação da Escola Argentina, cujo primeiro e último número são de 11/1929 –exemplar não encontrado na escola à época da pesquisa – e de 12/1935 – última

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leitura do projeto pedagógico, tanto da escola que a edita quanto daspróprias Diretorias de Instrução3 a que se vincula, já que se parte doprincípio de que a Escola Argentina é uma escola modelo dessas mes-mas instâncias administrativas. Ou, ainda, acredita-se que a Revista Es-cola Argentina deve ser vista não apenas como um meio de as autoridadesda escola legitimarem suas idéias na comunidade escolar, mas, também,uma maneira de a Diretoria de Instrução, nos anos de 1920 e 1930,impor seus ideais na própria escola.

Entretanto, o que nos faz afirmar que a Escola Argentina possa sercompreendida como uma escola modelo do final dos anos de 1920 eprimeira metade dos anos de 1930, para que o discurso proferido em seujornal também seja considerado como um efeito de sentidos produzidospelas próprias administrações a que se vincula? Por que se pode dizerque os artigos da revista exprimem os anseios tanto da Escola Argentinaquanto das Diretorias de Instrução do final dos anos de 1920 e da pri-meira metade dos anos de 1930?

A resposta para tais questões se divide em duas partes.A primeira delas diz respeito à trajetória da escola, posto que sua

história se encontra marcada por uma série de inovações prescritas pe-las reformas azevediana e anisiana.

A Escola Argentina é uma escola do Rio de Janeiro que, apesar deter sido inaugurada na gestão de Carneiro Leão, em 1924, ganha visibi-

edição arquivada na escola. Assim, apesar da ausência do primeiro número impe-dir um maior conhecimento sobre a história do seu surgimento, sua existência, aoatravessar a gestão tanto de Fernando de Azevedo quanto de Anísio Teixeira, apre-senta fôlego editorial suficiente para mostrar que objetivava expressar os ideaispedagógicos de ambas as administrações, que, naquele momento, procuravam es-timular no interior das escolas as mais variadas atividades. É importante, ainda,salientar que em virtude da precariedade dos registros encontrados na escola, pra-ticamente não há informações adicionais sobre a revista, a não ser aquelas contidasnos exemplares, que poderão ser conhecidas ao longo deste artigo.

3 Administrações, de Fernando de Azevedo e de Anísio Teixeira, que se inserem emum projeto pedagógico semelhante, que se aprofunda durante a reforma anisiana,que transforma a Diretoria de Instrução em Departamento de Educação, em 1o defevereiro de 1932. Porém, como a maioria dos exemplares encontrados foi publicadasob a gestão de Anísio Teixeira, a análise privilegia esta administração.

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lidade quando, em 1929, durante a administração de Fernando de Aze-vedo, adquire um prédio próprio em estilo neocolonial4 na Rua 24 deMaio, no Engenho Novo, e posteriormente, com Anísio Teixeira noDepartamento de Educação, quando adota o Sistema Platoon5, torna-seexperimental6 e transfere-se, em 1935, para um outro edifício inspiradoem uma concepção arquitetônica moderna e arrojada, em Vila Isabel,mais exatamente na Avenida 28 de Setembro.

Conseqüentemente, pressupõe-se que, pelo fato de a escola se en-contrar marcada pelos feitos acima mencionados, ela mesma se distin-gue de tantas outras, que não tiveram sua história construída com basenessas inovações que, por sua natureza, podem ser consideradas comosendo a própria materialização das idéias pedagógicas dos educadorescitados7.

Parte-se da hipótese de que o papel da Revista Escola Argentina erao de justamente divulgar e legitimar as ações da escola e das Diretoriasde Instrução, o que implica afirmar que o modo como estruturava seudiscurso ainda instituía o tipo de leitura que os leitores deveriam teracerca dessas mesmas ações pedagógicas.

A segunda argumentação para responder à questão colocada baseia-se no fato de que esta análise, ao definir a Escola Argentina enquantouma territorialidade espacial e cultural que exprime o jogo dos agentes

4 Neste novo endereço, não só é editado o primeiro número do jornal, como tambémoutras atividades são desenvolvidas, já que neste novo espaço há uma biblioteca,duas oficinas e um laboratório de ciências.

5 Sistema pedagógico-administrativo, criado nos EUA, em 1912, que objetivava ummelhor aproveitamento do tempo e do espaço escolar por meio da criação de pelo-tões de alunos, que, sem salas de aulas fixas, circulariam entre elas a partir de umhorário preestabelecido (Bourne, 1970).

6 A Escola Argentina é uma das cinco escolas experimentais que a partir do decreton. 3.763, de 1o de fevereiro de 1932, teria que se transformar em um verdadeirolaboratório, destinado a ensaiar os novos métodos de ensino que mais tarde deve-riam ser assimilados pelas demais escolas do antigo Distrito Federal.

7 Entretanto, considerar a Escola Argentina uma escola modelo não exclui a possibi-lidade de que haja outras escolas modelos, já que algumas também se tornaramPlatoon, experimental, e obtiveram uma sede moderna, tanto na administração deAnísio Teixeira quanto na de Fernando de Azevedo.

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sociais – alunos, pais, professores, diretores, diretor de instrução etc. –que a compõem (Nóvoa, 1995, p. 16), toma a Revista Escola Argentinacomo um veículo que expressa a vontade e os desejos desses mesmosagentes, já que são eles seus produtores, consumidores e incentivadores.Ou ainda, por se partir do princípio de que a escola é um espaço inter-mediário – além de se estruturar como um pequeno mundo que possuiseus valores, modos de regulação e imaginário, também reproduz, emcerta medida, os sonhos de seus idealizadores (Fernando de Azevedo eAnísio Teixeira) –, entende-se que o seu periódico igualmente exprimeessa variedade das forças – internas e externas – que a constitui.

Portanto, este trabalho pretende elaborar um entendimento acercado modo como o discurso produzido pela Revista Escola Argentina con-segue plasmar em seus leitores uma certa leitura autorizada sobre o pro-jeto da escola e da própria Diretoria de Instrução durante o final daadministração de Fernando de Azevedo e ao longo de toda a gestão deAnísio Teixeira. Procurará mostrar que a revista da Escola Argentinapode ser definida como uma publicação que sintetiza a maneira como asreformas estaduais de Fernando de Azevedo e, principalmente, de Aní-sio Teixeira vão, na prática, concretizando-se; o que faz com que sepossa inferir que o que era nela editado seja visto como uma expressãodo modo como a pedagogia moderna era implementada, veiculada eaceita por aqueles que se encontravam no interior da própria escola –alunos, professores e diretores.

Reforçando a afirmação anterior, é importante salientar que esse tipode imprensa – pedagógica – se expande nos anos de 1920 e 1930 noBrasil, com o intuito de divulgar as idéias escolanovistas que, por dese-jarem promover uma mudança de mentalidade no mundo educacional,transformam a escola em um instrumento eficaz de organização nacio-nal através da organização da cultura (Carvalho, 1995, p. 61).

Esclarecidos tais pontos, resta agora iniciar a análise do periódico.

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Algumas considerações acerca do significado deuma análise histórico-cultural do texto

Primeiramente, há que se considerar que uma análise histórico-cultu-ral do texto exige que a revista seja vista como um corpus documental devastas dimensões, que precisam ser investigadas para que seus sentidossejam revelados (Chartier, 1992, p. 211); o que implica não perder de vistaa idéia de que os textos da revista não existem fora do objeto que os co-munica, e isto, sem sombra de dúvida, faz parte da significação.

Dessa maneira, as características da impressão do periódico, as es-tratégias da escrita contidas em suas páginas e a própria intenção deseus produtores definem não apenas as formas de sua escrita e impres-são, mas, fundamentalmente, os modos de leitura que seus leitores de-veriam seguir (idem, ibidem).

Nesse caso, se é na relação entre o próprio texto, o objeto que comu-nica esse mesmo texto e o ato que o apreende que se encontra a comple-xidade da leitura de todo e qualquer impresso (idem, p. 220), este trabalhoprecisará levar em consideração as particularidades editoriais e de es-crita da revista, uma vez que será somente de acordo com este procedi-mento que se poderá explicitar o tipo de leitura que seus produtorespretendiam criar: o de aceitação do projeto pedagógico tanto da escolaquanto da Diretoria de Instrução.

Portanto, cabe a partir de agora particularizar esses processoscontroladores do texto, não esquecendo, evidentemente, que esses me-canismos de convencimento procuram quase sempre abafar diferençase tensões, ou melhor, leituras independentes.

O que escrever e imprimir quer dizer: a análisepropriamente dita do periódico

Se Chartier (1992), em seu artigo Textos, impressão, leitura, afirmaque, do ponto de vista da história cultural, o entendimento de qualquertexto deve levar em consideração o próprio texto, o objeto que o comu-nica e o ato que o apreende, não se pode deixar de chamar a atenção

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para dois pontos importantes. Primeiro, que este trabalho, não esque-cendo que os três pólos da compreensão do significado de um texto nãodevem ser vistos isoladamente, abordará os dois primeiros, em funçãoda dificuldade de achar, nos dias de hoje, algum leitor – aluno, professore diretor – que pudesse relatar suas impressões acerca de sua experiên-cia educacional na Escola Argentina. Segundo, se o texto historicamen-te se encontra em constante movimento, que gera diferentes interpreta-ções através do tempo, esta análise sobre a Revista Escola Argentina,escrita na década de 1930, estará recortada por uma leitura atual, arespeito não só da história da educação daquela época como tambémdas próprias idéias pedagógicas veiculadas naquele período, e isto ne-cessariamente fará parte da significação.

Antes de qualquer análise, é necessário saber que a Revista EscolaArgentina é um tipo de impresso produzido pela Escola Argentina paraum público que não se restringia aos alunos, pais de alunos e professo-res, mas abrangia leitores de outras escolas do antigo Distrito Federalassim como de escolas na Argentina, uma vez que seu objetivo não eraapenas fixar determinados padrões pedagógicos, culturais e sociaisnos alunos de sua comunidade, mas também divulgar seu trabalho pe-dagógico e até criar laços de solidariedade e fraternidade com a naçãovizinha.

Nessa perspectiva, a Revista Escola Argentina pode ser vista comoum tipo de imprensa pedagógica, cujo objetivo editorial ultrapassa emmuito os muros da escola. Também precisa ser entendida como um guiadidático, que sugere e indica caminhos que poderiam ser seguidos pelosprofessores; como um livro didático para os alunos, que vêem transcritonos seus exemplares o conteúdo pedagógico dado em sala de aula, e,finalmente, como uma produção educacional que pretendia propagandearo próprio projeto de educação, tanto de Fernando de Azevedo quanto deAnísio Teixeira para as escolas da capital do país. Exemplo dessa postu-ra pode ser confirmado pelo número de setembro/outubro de 1932 quenoticia que o educador baiano havia inscrito o nome do jornal na Biblio-teca Central da Educação, reconhecendo que esta revista expressavanão apenas os ideais da escola, mas do próprio Departamento de Educa-ção do Rio de Janeiro.

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66 revista brasileira de história da educação n° 6 jul./dez. 2003

Um ponto significativo que não deve ser esquecido é o fato de onome da escola encontrar-se no título do periódico, já que tantas outrasrevistas escolares da época necessariamente não ligavam seu nome aonome da escola. Talvez essa atitude se deva a um desejo de seus produ-tores iniciais, na época sob a administração de Fernando de Azevedo, deratificar a homenagem à nação argentina ou, ainda, procurar reforçar onome da escola na memória da cidade, uma vez que houve uma série demal-entendidos a esse respeito8.

Freqüência e periodicidade

Tanto a freqüência quanto a periodicidade indicam que sua publica-ção variava em função de certos acontecimentos, muitas vezes alheios àspróprias determinações editoriais. Entretanto, o jornal teve uma existên-cia de seis anos, de novembro de 1929, período ainda da administração deFernando de Azevedo, até, pelo menos, o fim da gestão de Anísio Tei-xeira, dezembro de 1935, data do último número encontrado na escola.

No que diz respeito à freqüência, percebe-se que se entre o primeiroe o segundo exemplar, de julho de 1930, há um intervalo de cinco me-ses9, entre dezembro de 1934 e julho de 1935 há um outro de quatromeses. Se a primeira interrupção deveu-se a “motivos imperiosos”, asegunda não é justificada oficialmente em nenhum artigo, apesar depoder ter sido em função de a escola, no primeiro semestre de 1935, terse voltado para sua mudança de endereço.

Em relação à periodicidade, a revista variou de mensal, de novem-bro de 1929 a outubro de 1930, a bimestral, de novembro desse mesmoano a novembro de 1933; no ano de 1934, tem início uma publicação dequatro em quatro meses e em 1935, inicia-se uma edição irregular deapenas dois números, provavelmente como um anúncio de seu fim: ju-lho/agosto e setembro/dezembro.

8 Quando a escola se transfere para a Rua 24 de Maio, seu nome deveria ser mudadopara Escola Delfim Moreira, mas Fernando de Azevedo ratifica o nome Argentinano novo endereço.

9 Durante os meses de janeiro e fevereiro não há publicação do jornal.

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a revista escola argentina 67

Nesse caso, cumpre notar que justamente em 1935, ano conturbadopara o próprio Departamento de Educação, devido às pressões externasque Anísio Teixeira começa a sofrer, a revista saiu apenas duas vezes, nãohavendo também nenhuma indicação de que tivesse continuado a existirem 1936. Assim, cabe perguntar: será que o periódico e o projeto peda-gógico que estava em curso na escola se extinguem com a saída do edu-cador baiano do Departamento de Educação do antigo Distrito Federal?

Se essa resposta exige outra pesquisa, pelo menos indica que temsentido a análise de seu periódico, que, como se verá a seguir, apontapara uma determinada versão dessa mesma história, que, nesse caso,poderia ser integralmente contada através de um total de 27 númeroseditados: um de 1929, cinco de cada ano de 1930, 31, 32 e 33, quatro doano de 1934 e dois do de 193510.

O suporte da revista: as estratégias editoriais

No que diz respeito ao formato da revista, percebe-se que em todasas edições permanece sempre o mesmo. Medindo 21,5cm x 14,5cm, tor-na-se bastante fácil de ser carregada, manuseada e lida, já que, além dotamanho ser conveniente, trata-se de uma brochura impressa. Enfim, nota-se que a Revista Escola Argentina, apesar de ser um periódico escolar,era editada com bastante cuidado e, por que não dizer, sofisticação.

Quanto ao número de páginas, pode variar de 13, quando a revistaera mensal e tem início sua bimestralidade, até 21, 35 ou 47 páginas,quando passa a ser editada de quatro em quatro meses, demonstrandoque há elementos suficientes para serem analisados.

Em relação ao tamanho dos textos, eles mudam bastante. Publicam-se desde pequenas poesias escritas por alunos até longos artigos peda-gógicos – três páginas, por exemplo – direcionados tanto aos pais dosalunos quanto aos professores.

No que diz respeito a esse aspecto, cabe uma ressalva – a diversidadede seções e temas existentes em cada número – e duas considerações.

10 Este trabalho analisa os seguintes exemplares encontrados na escola: dois de 1930;cinco de 1932 e 1933; um de 1934 e dois de 1935.

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Primeiro, que essa variedade indica que o jornal era de fato publica-do para toda a comunidade escolar “argentina” e para quem estivesseinteressado em conhecer as atividades da própria escola, uma vez queos assuntos tratados nas seções iam da notícia mais simples – os aniver-sários do mês da escola, prestação de contas sobre a situação financeirada caixa escolar, troca de correspondência entre os alunos da EscolaArgentina e das outras escolas da cidade e da Argentina, receitas culiná-rias, piadas etc. – até concursos pedagógicos direcionados aos alunos;redações; poesias escritas pelos alunos; exposição dos conteúdos e dasatividades educacionais da escola; descrição das festas promovidas pelaescola; divulgação de campanhas contra a “vadiação”, o alcoolismo, atuberculose e o fumo; textos assinados pela diretora quando desejavaanunciar alguma coisa importante; verdadeiros conselhos aos pais a res-peito de como se deveria educar os filhos e, ainda, artigos de váriostipos procurando difundir as premissas da pedagogia moderna.

Alguns exemplos a seguir ilustram as afirmações citadas:

1- Concursos pedagógicos (edição de mar./abr. de 1933):a) Para o primeiro ano: compor com as letras abaixo o nome dassalas de nossa escola: CRAOSL GMESO.b) Para o segundo ano: interpretar a capa da revista.c) Para o terceiro ano: com G sou animal; com R sou roedor; com Psou ave doméstica; com M não deixo vivo. (duas sílabas)d) Para o quarto ano: é órgão do nosso corpo, sem a primeira letraestá nas igrejas? (três sílabas); Qual fruta, trocando-se uma letra, épreposição? (duas sílabas); Ele é jóia, ela é tempo de verbo. (duassílabas)

2- Redação (edição de jul./ago. de 1932):Riquezas do Brasil: a cana.Depois do café, a cana-de-açúcar é uma das maiores riquezas danossa pátria. A cana não é brasileira. Foi das Índias para a ilha Ma-deira e, daí, veio para o Brasil.Foi Martim Afonso de Souza quem a trouxe, tanto assim que ascapitanias que mais prosperavam foram Itamaracá e S. Vicente emvirtude da produção da cana-de-açúcar [...] (5a série)

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3- Exposição de conteúdo (edição de maio/jun. de 1933):Na sala de ciências: respiração.Os órgãos da respiração são: fossas nasais e boca, traquéia, que éum canal em cuja parte superior se acha a laringe, órgão da voz , osbrônquios (dois) e dois pulmões.A respiração se faz em dois tempos [...] (4a série)

4- Campanha contra a “vadiação” (set./out. de 1932):Para tratar de assuntos concernentes ao ensino, à disciplina, aos in-teresses, enfim, de caráter educativo, reúnem-se mensalmente as pro-fessoras da Escola Argentina, sob a presidência de D. Joaquina Daltro.Na última reunião, discutiu-se um meio de acabar com a vadiaçãode certos alunos. Isso deu lugar à idéia de se fazer uma campanhacontra a vadiação. Publicamos, a seguir as instruções a que nos refe-rimos [...]:a) Os alunos vadios e indisciplinados serão submetidos a uma seve-ra observação das professoras, a fim de que nesses 15 dias se apli-quem ao estudo e à obediência na escola, pois na segunda quinzenade outubro serão feitas as listas dos candidatos à promoção e nãopoderá haver na escola alunos desinteressados, que perturbem asprofessoras na última fase do ano escolar [...]

5- Palestra para os pais proferida em uma reunião do Círculo de Paise Professores (set./out. de 1932):A família e a educação[...] A obra da família será incompleta se a criança não está educada.Compete aos pais a missão de completar a formação da criança, oque exige dos progenitores muito mais qualidades e virtudes do quepossam imaginar. Os pais são os primeiros educadores.[...] A primeira qualidade do educador é a calma, o dominar-se a simesmo. Há necessidade de confirmar com o próprio exemplo o queos lábios dizem.Cuidado com a diferença entre o falar e o agir dos pais para com osfilhos [...]Educar uma criança é principalmente viver diante dela uma vidaque a estimule a viver melhor; para educar uma criança é preciso, senão for santo, ao menos trabalhar para sê-los.

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Segundo, diante da multiplicidade de temas, algumas seções podemser consideradas definidoras do perfil pedagógico da revista. Entre elas,destacam-se “Colaboração de Pais e Mestres”, sempre com longos ar-tigos educacionais dirigidos aos professores, pais de alunos e até aosalunos, quando as mudanças pedagógicas ocorridas na escola eram co-municadas; uma coluna que, por meio de redações e poesias, enalteciaas riquezas naturais e os vultos históricos nacionais e argentinos; umespaço de meia página ou mais reservado para anúncios do comérciocarioca – Casa de Saúde da Gávea; Estamparia Colombo e CasaMattos –, dando indícios de que a revista almejava integrar-se à suacidade e, por último, uma espécie de editorial, bastante curto, com umamédia de dez ou vinte linhas, que, sempre na contracapa, anunciava suapublicação; diferentemente dos outros artigos, quase nenhum deles eraassinado.

A seguir, alguns exemplos:

1- O Círculo de Pais na Escola Nova (mar./abr. de 1933):No século que atravessamos, a visível preocupação, universalmentedifundida, é a criança, com o cortejo de direitos a que faz juz; resu-mindo, estes privilégios são: uma educação esmerada, sob todos osaspectos, e a utilização das faculdades para que elas se tornem umelemento de progresso, e, talvez, de glória para seu país [...]Aproximando o lar da escola, o Círculo de Pais presta um conside-rável auxílio à educação: leva o professor a conhecer os entes quetransmitiram ao aluno a herança fisiológica e mental, e a conhecer oambiente onde a criança vive domesticamente; torna-se assim maisfácil a avaliação de sua mentalidade e a escolha dos processos maisaconselháveis em cada caso.

2- Poesia exaltando as riquezas nacionais (set./out. de 1933):Eu amo meu paísEle é tão belo!São seus campos sempre verdes e floridos,E seu céu sempre azul, sempre singelo.

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As montanhas de meu país são verdejantes,A bandeira de minha pátria – altaneira.Suas cores são: verde, amarelo, azul e branco.Minha bandeira é a bandeira brasileira!

Tudo é lindo no meu Brasil!Nenhum o imita.Quando eu digo a alguém que eu sou brasileiraDe orgulho, o meu coração palpita.(Adiléia Neves – 5a série)

Do ponto de vista da diagramação, a revista obedece a um estilovisual – algum desenho, marca ou título com letra desenhada e em negri-to – que destaca o início e o fim de cada seção. Além desse artifício, operiódico também se utiliza de algumas fotos, principalmente de perso-nalidades históricas ou da escola – vale ressaltar a edição de julho eagosto de 1935 sobre a inauguração do novo prédio, que vem recheadade retratos sobre a festa – e vários desenhos de alunos e do própriojornal, propondo adivinhações e exercícios.

Um último aspecto editorial a ser analisado é a capa e a contracapaque, em virtude da sua importância, encontra-se logo a seguir, em umitem específico.

Os significados implícitos da capa e da contracapa: o recurso visuale o apelo a certos lemas

A capa de cada número tem sempre uma fotografia ou desenho, cujotema se refere a algum aspecto da nossa realidade, tanto social quantocultural – Descoberta da América, Festa de São João, paisagem amazô-nica, brasões e bandeiras, fotografia de San Martin, a foto da própriaescola ou dos alunos etc. –; e por algum lema que congrega e une osalunos à comunidade – Tudo nos une, nada nos separa, de Saens Peña;O trabalho eleva e nobiliza o homem; Trabalhai, crianças e enobreceis oBrasil ou Sois a esperança da Pátria, crianças. Estudai!

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A contracapa, além de imprimir algumas das frases anteriores, apa-rece dividida em duas partes, separadas por linhas que perfazem um qua-drado e um retângulo. Enquanto a primeira forma se encontra na partecentral da folha, para que aí seja escrito o editorial, a outra fica na partesuperior da página, para que dentro dela possa aparecer em destaque onome da escola, o preço da assinatura, o mês da publicação, o endereçoe a expressão “Órgão dos alunos da Escola Argentina”, que a partir doexemplar de mar./abr. de 1933 é substituído por “Revista Pedagógica,Didática, Educativa e Recreativa”; isto sugere uma mudança de status darevista, já que essa alteração parece dar mais legitimidade ao periódico11.

Há que se notar que todo esse detalhamento da capa e da contracapaapenas mostra que a Revista Escola Argentina era muito bem prepa-rada, e que os seus editores, com uma preocupação explícita bastantegrande, procuravam, por meio de estratégias visuais e de escrita, incutircertos sentimentos pátrios em seus leitores, além de estimular nas crian-ças o desenvolvimento de determinados comportamentos que objeti-vavam a formação de um determinado tipo de aluno que futuramentetambém tivesse uma determinada postura perante a sociedade, sua cida-de e seu país.

Enfim, pressupõe-se que, por meio desses estratagemas, a revistadesejava fixar em seus leitores uma imagem do Brasil, enquanto umanação que deveria ter orgulho de seus heróis, suas festas, sua natureza esua gente. Além disso, percebe-se que esse objetivo também era estimu-lado por meio da publicação de vários artigos que procuravam desen-volver alguns sentimentos, tais como o da esperança e o da fraternidadee do trabalho, enquanto uma atividade humana que enobrece o homem,que é o próprio responsável pela construção da nação brasileira.

Assim, os desenhos e as frases da capa e da contracapa conjuntamentese fundem em torno de um mesmo projeto, que objetivava a elaboraçãode uma certa leitura sobre o Brasil e os brasileiros que, naquele momen-to, precisavam ser modificados em função das novas exigências sociais;ou, ainda, a utilização desses artifícios mostra que a revista, como qual-

11 Aspecto este que será trabalhado no próximo item.

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quer impresso pedagógico da época, estava preocupada em contribuir paraa organização da nação por meio da cultura – idéias, valores e compor-tamentos – veiculada em seu espaço escolar (Carvalho, 1995, p. 61).

A eficácia simbólica do discurso da revista: aprodução de uma leitura autorizada

Falar sobre a revista da Escola Argentina do ponto de vista das es-tratégias de sua escrita é ter em mente que a eficácia simbólica de seudiscurso não se encontra apenas nas palavras escritas em suas páginas,mas na autoridade de quem as edita, já que o poder das palavras nadamais é do que um poder delegado por aqueles que a produzem (Bourdieu,1996). Supõe ainda entender que se a Revista Escola Argentina se re-veste de certa autoridade é porque as próprias autoridades da escola areconheceram como um veículo legítimo de divulgação de suas idéias.

Portanto, o sentido da eficácia simbólica de suas palavras deve serbuscada “na relação entre as propriedades do discurso, as propriedadesdaquele que o pronuncia [neste caso, daquele que o escreve] e as proprie-dades da instituição que o autoriza a pronunciá-lo [escrevê-lo]” (Bordieu,1996, p. 89). Pode-se dizer, então, que o sucesso de suas “operações demagia social que são os atos de autoridade (ou então, o que dá no mes-mo, os atos autorizados), está subordinado à confluência de um conjun-to sistemático de condições interdependentes que compõem os rituaissociais” (idem, ibidem).

Conseqüentemente, a revista da Escola Argentina, ao se enquadrarem um tipo de imprensa especializada, escrita por alunos, professores,diretores e pais de alunos, apesar de estender seu alvo para além dosmuros da escola, tem como principal propósito atingir sua própria co-munidade escolar, que, como qualquer instituição, é composta por gru-pos diferenciados, com quantidades de força simbólica também dife-renciadas, o que faz com que a maior ou menor legitimidade dos artigosdependa de quem os escreve e assina – aluno, professor, diretor ou paide aluno. Desse modo, a “magia social” das palavras impressas na re-vista já se estabelece elegendo entre os grupos menos autorizados –

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alunos e pais de alunos – aqueles que têm as condições – pedagógicas,culturais e sociais – de participar da feitura dessa “magia” discursiva, oque garante, também, o seu reconhecimento social perante esses pró-prios grupos que, na maior parte das vezes, são apenas chamados paracumprir ordens e não para participar da produção de qualquer tipo deatividade proposta pela escola.

Desse ponto de vista, essa leitura bourdieudiana do discurso permi-te que a Revista Escola Argentina seja definida como um impresso que,por seu dever, função, e “em suma, sua competência (no sentido jurídi-co do termo)” (idem, p. 101), fala em nome da própria Escola Argentina.Portanto, deve ser entendida como um meio de comunicação consagra-do e legitimado por toda a comunidade escolar, já que sua feitura émarcada por toda uma série de ritos de instituição (idem, p. 97); ou me-lhor, de acordo com determinadas estratégias que objetivavam atingir seualvo: expressar, anunciar e divulgar seus feitos pedagógicos com umaintenção didática bastante grande, uma vez que seus artigos ensinam,recomendam, aconselham e, finalmente, indicam caminhos a seguir.

De outro lado, apesar de a revista utilizar-se de uma série de estraté-gias de legitimação, uma interpretação cuidadosa não pode deixar deperceber as resistências, o jogo de forças e as lutas que deveriam tersido travadas dentro desse pequeno mundo escolar “argentino” e que arevista, de um jeito ou de outro, vai procurar abafar. Ou seja, como aRevista Escola Argentina se define de acordo com as bases do discursojornalístico (Mariani, 1993) que, por princípio, seleciona o que deve serpublicado e retido na memória de seus leitores e o que não deve sereditado por não ser “importante” o suficiente para ser lembrado no futu-ro, urge igualmente captar suas estratégias de apagamento e silenciamen-to, a fim de que só assim se consiga obter um quadro mais claro sobre amaneira como os projetos, tanto azevediano quanto anisiano, eram re-cebidos e implementados pela Escola Argentina.

Desse modo, a revista deve ser entendida (Mariani, 1993, p. 33)como um instrumento que

capta, transforma e divulga acontecimentos, opiniões e idéias da atualidade –

ou seja, lê o presente – ao mesmo tempo em que organiza um futuro – as pos-

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síveis conseqüências desses fatos do presente – e, enquanto passado – memória

– a leitura desses mesmos fatos do presente, no futuro.

Assim, a Revista Escola Argentina, sob o duplo mecanismo dessetipo de discurso, que ao mesmo tempo libera várias vozes, faz com queapenas algumas se legitimem com força e autoridade, ao divulgar váriasopiniões, simultaneamente, apaga, enfraquece ou ainda anula a fala in-dependente de certas vozes, demonstrando que a luta pela legitimaçãodos significados nas páginas desse impresso jornalístico deve ter sidoárdua, cheia de artifícios e, provavelmente, com a presença da censura –aspecto constitutivo desse tipo de imprensa.

Nesse caso, há que se estar ciente de que a revista, provavelmente,tenha se utilizado da censura, não apenas por meio de atos conscientes,mas também por meio de artifícios inconscientes, já que os processos deinternalização dos comportamentos incentivados pela escola podem tersido tão competentemente assimilados pela comunidade escolar e, prin-cipalmente, pelos responsáveis pela revista, que o maior desafio destetexto seja justamente desenvolver um verdadeiro trabalho de detetivepara que estes artifícios, que de alguma maneira encontram-se incrusta-dos em algum lugar do periódico, venham à tona.

A mudança de status da revista: afinal, quem são seusprodutores?

Do ponto de vista das intenções dos produtores da revista, uma con-sideração acerca da mudança inscrita no alto da contracapa de “Órgãodos alunos da Escola Argentina” para “Revista Pedagógica, Didática,Educativa e Recreativa”, em março de 1933, com certeza, é um bomatalho para se chegar a esses possíveis mecanismos de silenciamento.Cabe perguntar: Qual o significado dessa mudança? Há por trás dessanova enunciação algum sentido implícito? Esse ato representa algumaação de censura?

Acredita-se que de fato exista algum não dito implícito nessa mu-dança de atribuição que necessariamente remete para o questionamentode quais eram os setores da escola responsáveis pelo/pela jornal/revista;

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ou melhor, que grupos escolares ele/ela representava? Ou, ainda, o jor-nal/revista fala em nome de quem? Era produzido e editado por quem?

Como resposta, ver-se-á que os produtores do jornal/revista podemser encontrados em dois níveis. Os primeiros, de forma explícita, são osalunos12 e os demais, de maneira implícita, são os professores e a direto-ra da escola.

Esse duplo mecanismo imediatamente salta aos olhos quando sesalienta que existem duas estratégias diferentes contidas nas própriaspalavras utilizadas para caracterizar o jornal/revista que ainda definemresponsáveis e objetivos também diferentes. Uma é que, enquanto ór-gão dos alunos, parece que o que se desejava enfatizar era o fato de ojornal pertencer aos alunos da Escola Argentina como se, apesar de tam-bém ser feito por professores – as edições apontam para esse fato –,apenas eles fossem os responsáveis. Além disso, essa atitude ainda su-gere que a escola igualmente almejava ressaltar que era uma instituiçãoque estimulava a participação dos alunos nas diversas atividades, sendoeles mesmos os seus responsáveis. Daí o jornal ser reconhecido comosendo uma “obra infantil”.

Já a outra estratégia – revista pedagógica, didática, educativa e re-creativa – reforça a idéia de que o periódico seria mais do que um sim-ples jornal de alunos; deveria ser uma revista pedagógica da escola,cujos responsáveis seriam implicitamente os dirigentes da escola. As-sim, deixaria de falar apenas em nome dos alunos para passar a repre-sentar oficialmente a própria escola como um todo.

O sentido dessa mudança pode ainda ser notado pelas palavras es-colhidas para o segundo nome do periódico – pedagógica, didática,educativa e recreativa –, o que implica ao mesmo tempo enfatizar eespecificar os objetivos da revista. Desse modo, esses quatro termos,além de poderem ser vistos como sinônimos, pelos produtores/leitoresda revista, também possuem seus significados específicos; ou seja, seenquanto ênfase o uso repetitivo dos sinônimos da palavra educar no

12 De tempos em tempos, a equipe jornalística é mudada por meio de eleição e os seusnomes, discriminando o diretor, vice-diretor, redator-chefe etc., são anunciadospelo jornal/revista.

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título tem o intuito de ressaltar que a revista é um impresso exclusiva-mente pedagógico, do ponto de vista da utilização específica dos quatrotermos, seus usos podem ser analisados como uma forma de discriminarminuciosamente não só o que vai poder ser encontrado na revista, mastambém para quem se dirige, já que naquela época pedagógica referia-se à teoria da educação e do ensino, didática ao estudo das técnicas doensino, educativa a processos de desenvolvimento da capacidade infan-til e recreativa a algo que diverte. Conseqüentemente, com esse novotítulo, a revista demonstra que irá divertir e ensinar as crianças, introdu-zir os professores nos novos métodos de aprendizagem e mostrar aospais as modernas teorias educacionais.

Enfim, esse novo título, simultaneamente repetitivo e discriminatório,chama a atenção para o fato de que os editores da Revista Escola Argen-tina queriam frisar que se tratava de um impresso educativo no seu sen-tido mais geral, mas com objetivos bastante claros, já que essa mudança,estrategicamente, ocorre logo após a escola se tornar experimental; ouseja, o periódico passa a ter a função de divulgar o que se experimenta-ria de novo na escola.

Além dessas ressalvas, outras mudanças ocorrem após a alteraçãodo título.

É a partir dessa alteração que a seção “Nossas lições” surge na re-vista, com o resumo dos conteúdos da matéria dada em sala de aula,tornando-se o impresso um verdadeiro livro didático com o objetivo dedispensar “a compra dispendiosa de compêndios, adquirindo, por pe-queno preço, a interessante Revista” (editorial de mar./abr. de 1933).

Por esse aspecto, também, desfaz-se a idéia de que a reforma anisiananão se preocupava com a questão do conteúdo, mas apenas com a reno-vação dos métodos.

Com o novo nome, a revista passa a publicar uma quantidade bemmaior de desenhos de alunos, parecendo que quer provar que continua-va sendo dos alunos. É justamente a partir dessa modificação, mais es-pecificamente em 1934, que os artigos escritos e assinados pelos alunospassam a discriminar não apenas sua série e turno, mas também suaidade, querendo com isso identificar ainda mais o aluno e, por que nãodizer, mostrar como, desde cedo, também são capazes de produzir poe-

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sias, redações e responder exercícios, o que, em última instância, impli-caria expor o próprio sucesso pedagógico da escola.

Por último, cabe chamar atenção para o fato de que nesse novo mo-mento a revista continua mostrando que os alunos permanecem respon-sáveis pelo periódico. Justamente na última página do número em que ojornal dá lugar à revista encontra-se um comunicado dizendo que paraque a “Revista se torne mais original, mais interessante, resolvemos que,nos números a seguir, a capa seja ilustrada pelos alunos da Escola Ar-gentina” (destaque meu). Ou seja, esse texto, além de clamar pela res-ponsabilidade e continuidade da participação do aluno, mostra que, quandoo periódico se definia como um “órgão dos alunos”, não eram eles quefaziam sua capa, indicando que esse órgão, de fato, não tinha total auto-nomia, e por isso possuía uma instância superior implícita que o controla-va e definia as formas de sua edição.

Quanto à utilização do sujeito indeterminado no verbo sublinhado,percebe-se aquilo que já foi dito sobre os editoriais, ou melhor, a exis-tência de uma falta de vontade em explicitar de quem era a responsabi-lidade última do jornal/revista.

De outro lado, se o segundo nome reforça e legitima o impresso,assim como o projeto da escola, o fato de em um primeiro momento serum “órgão de alunos” e depois “revista pedagógica” não quer dizer muitacoisa no que diz respeito ao tom de seus artigos, uma vez que enquantojornal dos alunos também procurou legitimar as premissas da escola. Omesmo se pode dizer dos artigos escritos e assinados pelos alunos nosdois momentos do periódico. Igualmente, cumpriam um papel legitima-dor das propostas pedagógicas da escola; os mais importantes estavama cargo dos alunos responsáveis pelo jornal/revista e os demais eramselecionados pelas professoras e pela comissão editorial do jornal/re-vista que, com certeza, comungava nos ideais da escola.

O que se quer ressaltar é que os alunos, considerados como um gru-po com menor quantidade de força simbólica, encontravam-se mais fa-cilmente sujeitos às estratégias de dominação da escola, uma vez que osque não se adequavam deveriam sofrer algumas punições, e aqueles queescreviam para o jornal provavelmente seriam os que mais facilmentehaviam internalizado as normas da escola – os eleitos para os cargos de

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direção do jornal/revista e os que tinham seus artigos escolhidos paraserem publicados.

Entretanto, apenas uma vez, talvez porque as reclamações dos alu-nos tenham sido enormes, os produtores da revista permitiram que fosseexposto em suas páginas um prenúncio de descontentamento, mas, comose verá logo a seguir, bastante tímido e cheio de resignação.

Esse fato ocorre especificamente através da publicação de várias car-tas e artigos em que os alunos protestavam contra a mudança de endereçoda escola – da Rua 24 de Maio para a Avenida 28 de Setembro13 –, já queessa transferência, entre outras coisas, queria dizer que esses alunos daantiga Escola Argentina, que durante algum tempo já vinham participandodo projeto pedagógico da escola – sistema Platoon e escola experimen-tal –, por não irem para a nova Escola Argentina, um prédio moderno,espaçoso e bem equipado, ficariam impedidos de continuar a estudar emuma escola tão especial para o Departamento de Educação; ou seja, con-tinuariam a estudar no mesmo endereço – Rua 24 de Maio – mas, em umaescola de nome Sarmiento, com nova equipe de professores e direção.

As cartas de “protesto” são publicadas na edição de set./dez. de 1934,período em que a escola se encontrava prestes a mudar de endereço:

Tivemos uma verdadeira surpresa, ao saber que nossa escola tinha mudado o

nome para Sarmiento. Fiquei na verdade um pouco triste, a princípio, pois já

estava acostumada com o antigo nome. Mas, refletindo um pouco, vi que não

tinha razão para tanto, pois Sarmiento foi um vulto de valor na grande nação

Argentina [Leonora P., 15 anos].

Estive muitos dias doente e hoje quando cheguei à escola – Escola Argenti-

na – recebi a notícia que esta tinha mudado de nome. Chama-se Escola

Sarmiento... Gosto da Argentina. Gosto dos argentinos. Gosto dos dois no-

mes: Escola Argentina e Escola Sarmiento [Djalma Cerqueira, 10 anos].

Fiquei muito entristecida quando entrei na sala de música e soube que as

nossas queridas diretoras e professoras irão para a nova Escola Argentina.

13 Quando o prédio na Avenida 28 de Setembro ficou pronto em 1935, a Escola Ar-gentina na Rua 24 de Maio passou a se chamar Escola Sarmiento.

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Eu, que já me acostumei com estas professoras, estranhei muito...

Mas que fazer? Devo terminar o curso nesta escola por ser perto de casa. Mas

estou vendo que não é possível. A avenida 28 de Setembro é longe, mas é para

lá que eu quero ir... [Déa Figueiredo, 11 anos].

Desse modo, essa “reclamação” levanta duas questões. A primeiraaponta para o fato de que esse “desacordo” é publicado porque, emúltima instância, representa um aval de aceitação pelos alunos do proje-to da escola, indicando que uma possível oposição por parte deles deve-ria ser quase nula, já que esse setor entendia como uma honra poderestudar em uma escola tão bem considerada pelos meios educacionaisda cidade. A segunda diz respeito ao modo como os responsáveis pelaescola – em todas as instâncias – trataram o ensino dessa mesma escola;ou seja, as decisões pedagógico-administrativas estiveram acima daaprendizagem dos alunos, uma vez que sua não transferência para onovo prédio demonstra que houve certo descaso em relação ao processode ensino, que, com certeza, deve ter sido afetado negativamente poressa mudança.

Quanto aos artigos escritos pelos professores, também expressamessa mesma consonância com relação ao que se passava na escola. Ouverdadeiramente concordavam com as suas propostas educacionais ounão ousavam dela discordar, pelo menos internamente ou explicitamen-te, já que algumas entrevistas de professores à “Coluna Página de Edu-cação”, do Diário de Notícias, contêm várias críticas às inovaçõespedagógicas propostas pelo Departamento de Educação do antigo Dis-trito Federal, durante a gestão de Anísio Teixeira.

Mais fácil ainda é notar a ausência de crítica nos artigos dos pais dealunos, que, além de serem pouco freqüentes, vinham, apesar de assi-nados, em nome do Círculo de Pais e Mestres da escola, que, sem som-bra de dúvida, deveria ser um órgão que falava em nome da direção daescola.

Desse modo, cabe a questão: Os pais dos alunos da Escola Argentinafreqüentavam a associação em grande número para que então se pudes-se afirmar que faziam parte de um contingente de peso nas decisões daescola?

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Não se sabe. A revista, em nenhum momento, reclama do esvazia-mento dessas reuniões, apesar de a “Coluna Página de Educação”, nova-mente, publicar alguns artigos em que professores de outras escolasafirmam que era uma tarefa bastante árdua manter esses encontros comum número considerável de pais em seus estabelecimentos de ensino.

Talvez esse silenciamento seja porque a escola não desejasse tornarpública uma falha em uma de suas instituições escolares – a baixa fre-qüência dos pais nas reuniões de sua Associação de Pais e Mestres –, oque implicaria mostrar que nem tudo aquilo que a escola propunha pe-dagogicamente era passível de sucesso.

As estratégias lingüísticas: a formação de umdeterminado tipo de aluno

Se no item anterior conseguiu-se explicitar as intenções dos produ-tores da revista e, principalmente, mostrar quem são esses mesmos pro-dutores, resta ainda se deter no sentido lingüístico de certas estratégiasda escrita, já que só assim se poderá ter uma visão global do significadoeditorial da revista.

Nessa perspectiva, é necessário que se tome como referência o con-ceito de “formação discursiva” da análise do discurso. Por meio dele setorna possível compreender o próprio sentido lingüístico/social contidono uso exagerado de determinada classe gramatical que aparece nostextos do periódico: o adjetivo ou palavras de outra classe gramaticalque também cumprem a função de qualificar um substantivo.

Portanto, se não se trata mais de considerar o periódico do ponto devista do sujeito que o escreve, mas de levar em conta sua enunciaçãocomo algo correspondente a uma certa posição social e histórica, emque seus enunciadores também se revelam (Maingueneau, 1989, p. 14),o léxico escolhido para fazer parte dos artigos da revista passa a serentendido como um elemento definidor dos próprios comportamentos eidéias que a escola desejava incutir em sua comunidade escolar; oumelhor, essa postura, ao partir do pressuposto que “não existe relaçãode exterioridade entre o funcionamento do grupo – [no caso, a escola] –e o seu discurso – [ o periódico] –, sendo preciso pensar, desde o início,

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em sua imbricação” (idem, p. 55), defende a idéia de que é necessáriocombinar as coerções que possibilitam a escolha de determinadas pala-vras com as que possibilitam a existência do grupo, já que tanto a for-mação discursiva quanto o grupo que a produz são regidos pela mesmalógica.

Enfim, para a análise do discurso, as palavras proferidas pelo gruponão lhe são exteriores, o que faz com que se conclua que a instituiçãodiscursiva possui duas faces: uma que se liga ao social e a outra à lin-guagem (idem, p. 55), que urge ser investigada.

De acordo com essa argumentação, ver-se-á como o uso exageradode certos adjetivos define e explicita o próprio sentido do projeto peda-gógico da Escola Argentina.

Em primeiro lugar, a maioria dos adjetivos encontrados nos textosda revista tem a função de qualificar o Brasil, a Argentina, seus heróis esua gente, como se desejasse produzir em seus leitores apenas os senti-mentos de amor, admiração, devoção e respeito para com esses mesmospaíses. Nesse caso, destacam-se: “imenso Brasil”; “nobre nação Argen-tina”; “linda bandeira brasileira”; “pátria grandiosa”; “gloriosos irmãosamericanos”; “grande general”; “audazes descobridores”; “grande mártirTiradentes”; “destemido povo platino”; “Guarani, essa jóia literária”;“opulenta natureza”; “matas espessas”; “grande rio”; “idioma pátriotão rico e belo”; “terra do meu Brasil, ardente e bela”; “bravos heróis”;“grande maestro Villa Lobos”; “tudo aqui é grandioso”; majestoso Lar-go de São Francisco.

Em segundo lugar, destaca-se um outro grupo de adjetivos, que pro-cura fazer brotar um certo sentimento de compaixão pelas pessoas po-bres e sofridas. É como se desejasse não só estimular o assistencialismo,mas também, por meio de uma lição de moral, criar no leitor uma per-cepção de que deve estar agradecido pela vida que tem, precisando, emcompensação, ser um bom filho e um bom aluno, enfim, um bom meni-no ou uma boa menina. Esses adjetivos são: “pobre camponês”; “ho-nesto lavrador; “crianças desvalidas”; “meninas pobres”; “homembondoso e honesto”; “seu pai era pobre”; “triste infância”; “pranto do-loroso”; “nobre ação”; “boa Eneida”; “bom servente”; “uma meninabonita, mas muito má”, “bom coração”; “pobre artista”; “velho cabo-

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clo”; “em lúgubre, humilde e bafienta caverna”; “a filha era esforçadanos estudos”.

Em terceiro lugar, há a referência sempre respeitosa e carinhosa fei-ta aos dirigentes da escola e aos seus patronos argentinos, que sistema-ticamente fornecem vários presentes à escola. Entre eles destacam-se“estimado”, “digno”, “digníssimo”, “distintíssimo”, “querido”, “gran-de” e “ilustre”.

De outro lado, os alunos são descritos como sendo ou devendo ser“doces”, “pequenos”, “devotados”, “pequeninos”, “humildes” e “gen-tis”, o que faz com que tenham que entender que, diferentemente dasautoridades, o lugar social que ocupam nas relações sociais é o de terque respeitar e reverenciar esses mesmos grupos, uma vez que se en-contram posicionados em um lugar hierarquicamente inferior. Entretan-to, ainda são descritos como sendo “um bando alegre” que participa debonitas e alegres festas com “lindos trabalhos”.

Através do uso exagerado do diminutivo ainda pode ser notado umcerto estilo carinhoso e infantil que predomina nos textos. Talvez setrate de uma estratégia que queira reforçar a idéia de que o periódico,apesar de também ser produzido e direcionado para adultos, é funda-mentalmente uma “obra infantil”, escrita e dirigida para os alunos. En-tre eles destacam-se: “aos coleguinhas”, “meus amiguinhos”, “minhamãezinha”, “em caderninhos”, “os brasileirinhos”, “meu livrinho”,“cartinha”, três palavrinhas”, “querido jornalzinho”, “rostinho de crian-ça”, “mãozinhas mimosas”.

Aí se encontram reveladas as condições de produção da revista –suas estratégias, intenções, significados e silêncios – que, sem sombrade dúvida, expressam com riqueza de detalhes o que se passava no inte-rior da Escola Argentina no final dos anos de 1920 e primeira metadedos anos de 1930.

Algumas considerações finais

Esta análise, ao trazer à tona os efeitos de sentido da escrita da Re-vista Escola Argentina, possibilita três considerações.

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A primeira delas sugere que esse tipo de imprensa durante as déca-das de 1920 e 1930 tinha o objetivo explícito de ser mais do que umsimples jornal escolar. Propunha-se, na verdade, a transformar-se emum instrumento poderoso das Administrações de Instrução Pública, que,desse modo, poderiam, com eficiência, difundir suas idéias, hábitos ecomportamentos para todo seu alunado.

A segunda é a possibilidade que a leitura da revista nos oferece depoder visualizar o tipo de aluno que a escola desejava formar: um aluno“modelo” – participativo, mas responsável e que teria que acima de tudoamar e respeitar sua escola, sua família, sua pátria, assim como a Argen-tina e todo o continente americano – que correspondesse às novas exi-gências tanto pedagógicas quanto culturais e sociais de uma sociedadeque procurava modernizar-se.

A terceira e última consideração, como uma conseqüência das duasanteriores, mostra que a revista constrói uma imagem bastante positivada escola. Indica que sua ação pedagógica parecia ser suficientementecompetente não apenas para que os seus alunos assimilassem os valoresacima descritos, mas também para que ela própria fabricasse uma ima-gem pública de que suas propostas educacionais eram assimiladas “semproblemas” por toda a comunidade escolar; ou melhor, as estratégias deconvencimento utilizadas pela revista nos fazem supor que as autorida-des da escola obtinham sucesso em pelo menos dois de seus objetivos:conseguiam fixar uma imagem de que Escola Argentina era eficiente –seus alunos aprendiam as lições propostas – e de que se definia comotendo um projeto coletivo que era, inclusive, por ela própria elaborada eabsorvida sem dificuldades e grandes resistências.

Enfim, tudo indica que a Revista Escola Argentina definitivamentecumpria com o seu papel: funcionava como um ótimo veículo de propa-ganda, tanto da Escola Argentina quanto das Administrações Públicas aque se vinculava; principalmente a de Anísio Teixeira, já que é durantea sua gestão que a revista ganha força e amadurece.

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Fonte Primária

Revista Escola Argentina (1931-1932) – Arquivo da Escola Municipal Argenti-na/Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro.

Referências Bibliográficas

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CHARTIER, Roger (1992). “Textos, impressão, leituras”. In: HUNT, Lynn. A novahistória cultural. São Paulo, Martins Fontes.

MAINGUENEAU, Dominique (1989). Novas tendências em análise do discurso.Campinas, Pontes.

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Instrução pública e formaçãode professores em Minas Gerais

(1825-1852)*

Walquíria Miranda Rosa **

* Este texto é parte das reflexões feitas em minha dissertação de mestrado intitulada:Instrução Pública e profissão docente em Minas Gerais (1825-1852).

** Pedagoga, mestra em educação pelo PPGE-FaE/UFMG. Professora auxiliar de his-tória da educação da Universidade do Estado de Minas Gerais, do Unicentro MetodistaIzabela Hendrix e da Faculdade de Educação e Estudos Sociais de Itabitiro/UNIPAC.Pesquisadora do GEPHE–FaE/UFMG e do NEPHE–FaE/UEMG.

Esta pesquisa tem por objetivo compreender as representações produzidas sobre a profis-são docente e as capacidades específicas do professor na primeira metade do século XIX,momento em que se buscava organizar a instrução pública primária mineira. O períodoanalisado foi de intensos debates sobre a organização do sistema de ensino primário, etambém marcado pela produção de discursos por meio dos quais foi veiculada a necessi-dade de organização da instrução pública e da formação dos professores, bem como acriação de uma Escola Normal na qual estes pudessem ser formados.PROFISSÃO DOCENTE; INSTRUÇÃO PÚBLICA; FORMAÇÃO DE PROFESSORES.

The goal of this research was to understand the roles of the teaching occupation and theteacher’s specific abilities in the first half of the nineteenth century, a moment when thepublic elementary schooling of the state of Minas Gerais, Brazil, was being organized.In the analyzed period deep arguments on the organization of elementary school systemtook place. Concepts were produced about the need to organize the public schooling andthe teachers formation, as well as the creation of a “Escola Normal” (‘Normal’ refers tothe function of defining procedures; this institution is responsible for the teachers formation)where the teachers would be trained.TEACHING OCUPATION; PUBLIC SCHOOLING; TEACHING FORMATION.

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Neste artigo, são tratados aspectos da institucionalização da instru-ção pública primária e da formação de professores na província mineirana primeira metade do século XIX, trazendo contribuições para a refle-xão destas questões a partir de uma documentação rica e ainda poucoexplorada nas pesquisas realizadas na história da educação brasileira.

A formação de professores em Minas Gerais é abordada a partir dodebate produzido na sociedade na primeira metade do século XIX. Essedebate se dá por meio da produção e circulação de impressos, especifi-camente do jornal O Universal. Esse jornal foi veículo de produção ecirculação de um discurso sobre a necessidade de organizar a instruçãopública primária e de formar os professores que nela iriam atuar.

Discute ainda estratégias utilizadas pelos governantes, no que tangeà produção de uma legislação específica para produzir e legitimar a or-ganização da instrução e a formação dos professores na primeira meta-de do século XIX em Minas Gerais. Percebe-se que esse foi um períodode intensos debates sobre o tema e de uma produção sistemática de leisque procuravam instituir tal necessidade.

Por fim, trata a questão da formação dos professores através da pro-dução de discursos sobre a necessidade de formação junto aos própriosprofessores. Essa estratégia se dá, sobremaneira, a partir da escrita feitapelo professor Francisco de Assis Peregrino, após a volta de uma via-gem à França em 1839, de um documento intitulado por ele de Memó-ria. Essa viagem teve como objetivo cumprir exigências de um contratorealizado pelo professor com a província mineira, a fim de que fossemobservados a instrução e os métodos de ensino utilizados naquele país,na tentativa de depois propor uma organização da instrução primária emMinas Gerais.

Organização da instrução pública em Minas Gerais

É a partir da década de 1820 que a importância da formação dosprofessores é discutida de forma mais intensa em Minas Gerais. Essadiscussão esteve atrelada a uma organização que se propunha para oensino público naquele período.

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A necessidade acerca da escolarização da população, principalmen-te daquelas que eram consideradas pelos dirigentes como as “camadasinferiores da sociedade”, foi intensamente discutida nas províncias detodo o Império na primeira metade do século XIX; o mesmo acontecia emMinas Gerais. Observa-se, nas discussões sobre a importância de se or-ganizar um sistema público de ensino e de escolarizar a população, aprodução de um discurso, no qual a falta de uma formação específica dosmestres de primeiras letras passa a ser colocada como a principal causapara o pouco sucesso da instrução primária na província de Minas Gerais.

Percebe-se, nesse momento, uma crescente intervenção do Estadona instrução pública. Diversas leis foram produzidas com o objetivo degarantir a freqüência da população livre à escola e de normatizar a for-mação que seria dada aos professores que atuariam no sistema públicode ensino.

Ao analisar as fontes1 do período em questão, podemos indiciar queos professores que ensinavam até então foram considerados incapazes edesinteressados pelos dirigentes mineiros. Os saberes e as práticas esco-lares utilizados por eles foram desqualificados. Era preciso, segundo osdirigentes, garantir um outro conjunto de saberes os quais eles deveriamdominar.

Para compreendermos melhor esse processo de desqualificação peloqual passa o professor primário na primeira metade do século XIX emMinas Gerais, torna-se necessário compreendermos quem era esse profes-sor e em que condições ele atuava e qual organização se propunha paraa educação primária nesse momento.

Os professores que atuavam nas poucas escolas régias ou nas cadei-ras públicas de primeiras letras herdadas do período colonial eram reco-nhecidos ou nomeados pelos órgãos do governo responsáveis pela

1 As fontes consultadas para essa pesquisa foram: relatórios de presidentes da pro-víncia de Minas Gerais, ofícios dirigidos a professores pelos presidentes de pro-víncia e de professores aos presidentes, documentos referentes à Escola Normal deOuro Preto. O jornal O Universal, manuais utilizados na Escola Normal para aformação dos professores, a legislação referente à instrução pública produzida epublicada no período estudado, ofícios escritos por professores, provas realizadaspelos professores após freqüentarem a Escola Normal de Ouro Preto.

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instrução, e davam suas aulas em lugares improvisados e precários. Namaioria das vezes, os alunos dirigiam-se para a casa do mestre ou damestra, que algumas vezes recebiam ajuda para o pagamento do alu-guel. O período de aula era de 4 horas, dividido em duas sessões: umadas 10 às 14 horas e outra das 14 às 16 horas. Os professores ensinavampelo método individual. Tal método consistia em que o professor, mes-mo quando tinha vários alunos, ensinasse a cada um deles individual-mente.

O número de escolas régias e de cadeiras públicas era bem reduzi-do. Há indícios de que a rede de escolarização doméstica era bem maiordo que a da rede pública estatal, o que garantia o acesso de alguns quenão a freqüentavam ao aprendizado das primeiras letras2. Nesse caso, osprofessores eram contratados pelos pais e davam aula em locais, namaioria das vezes, também por eles organizados.

Outro modelo de educação escolar que no decorrer do século XIX foiconfigurando-se, segundo Faria Filho (2000), “é aquele que os pais, emconjunto, resolvem criar uma escola, e para ela, contratam coletivamen-te um professor, ou uma professora”. A diferença fundamental destemodelo de ensino é que o professor não mantém nenhum vínculo com oEstado, apesar dos esforços deste para influenciar tais experiências.

Com o progressivo fortalecimento do Estado Imperial e com a dis-cussão cada vez maior acerca da importância da instrução escolar, es-trutura-se uma representação de que a construção de espaços específicospara a escola era imprescindível. Juntamente com essa representação éconstruída a idéia de que era preciso formar um novo professor e dar aele uma formação específica.

Várias foram as estratégias utilizadas pelos governantes mineiros epela elite local, no sentido de construir uma nova representação acercados professores primários. Entre elas, podemos citar a produção e circu-lação do discurso jornalístico, do qual tomamos como exemplo o jornalO Universal, iniciada em 1825.

2 Em 1827, Bernardo Pereira Vasconcelos sustentava que, em Minas Gerais, havia23 escolas públicas e 170 escolas privadas.

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O Universal3, apontado como um dos mais importantes jornais deMinas Gerais na primeira metade do século XIX, foi publicado por umperíodo de 17 anos (1825-1842). Desde o seu primeiro número com apublicação de uma matéria intitulada “Educação elementar”, na qualtraz à cena a defesa do método mútuo, o jornal defende a necessidade deescolarização para toda a população. Em suas páginas, é possível cons-tatar um intenso debate sobre a educação elementar e sua importânciapara a civilização e moralização da população. Através do jornal é pos-sível compreender “a luta política por afirmar a importância da instru-ção pública no processo de consolidação do Estado Nacional e naexpansão, entre nós do ideário civilizatório e cientificista do século XIX”(Faria Filho, 1999a, p. 119).

A importância que é atribuída à instrução e sua organização na pri-meira metade do século XIX fica explícita com a publicação da citadamatéria “Educação elementar”, que tinha por objetivo divulgar e propa-gar o método mútuo. Tal matéria ganha destaque durante os 16 primei-ros números do jornal, publicados entre 18 de julho e 22 de agosto de1825, tendo sido dividida em cinco partes, sendo elas: Introdução, Ori-gem do Novo Sistema na Inglaterra, Princípios em que se funda essesistema, Emprego das diferentes classes de meninos na escola e um sub-item deste último: Disciplina das Escolas – Prêmio. A cada dia de publi-cação, dedicavam-se duas páginas inteiras à explicação do método mútuo4

e os benefícios advindos de sua implantação.A matéria inicia-se com críticas ao sistema de instrução seguido até

então no Brasil, no qual era adotado o método individual, afirmando ser

3 O jornal O Universal foi publicado em Ouro Preto. Seu primeiro número foi edita-do em uma segunda-feira no dia 18 de julho de 1825 e o último no dia 10 de junhode 1842.

4 Segundo Bastos (1999), “o método mútuo foi sistematizado por A. Bell e J. Lancaster.No método mútuo, a responsabilidade é dividida entre o professor e os monitores,visando a uma democratização das funções de ensinar”. Tem como postulado adiversidade das faculdades, a desigualdade de progresso, de ritmos de compreen-são e de aquisição. A escola é dividida em classes diferentes, conforme as disci-plinas e o grau de conhecimento dos alunos, nessa classificação a idade não temnenhuma interferência. Os alunos assim divididos participam do mesmo exercício.

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ele dispendioso e limitado. Defende, em contraposição, a necessidadede uma educação para todo o povo, com o propósito de generalizar umaeducação de qualidade, sem grandes despesas para o governo e cuidan-do também para que fosse rápida e para que o trabalhador não fosseprivado do tempo que deveria ser empregado no trabalho5.

A adoção do método mútuo por parte de escolas e professores éapontada como a solução para o problema. A principal virtude do méto-do mútuo, segundo a matéria publicada no jornal, era a economia queele possibilitava, uma vez que permitia que um só professor, auxiliadode monitores, pudesse ensinar a um número maior de alunos, podendoencarregar-se de instruir até mil alunos. Possibilitava também que osalunos ficassem menos tempo na escola.

O principal problema a ser resolvido para o autor6 da série de artigossobre a educação elementar era a morosidade e a ineficácia do métodoindividual, que fazia com que o aluno freqüentasse por um longo espa-

5 Essa preocupação ficava evidente, quando em 1826 encontramos no dia 10 de fe-vereiro, uma carta publicada intitulada Carta de Americus, na qual o autor afirmaque o “fim principal da educação he fazer de hum individuo o instrumento da suapropria felicidade [...]”. Nessa carta, o autor defende a educação como um todo,devendo ela conter a educação física, moral e intelectual. Afirma que a educaçãomoral tem que ser de responsabilidade da família e a terceira da escola. A referidacarta é publicada em duas partes, sendo a segunda publicada no dia 20 de fevereirodo mesmo ano. Na continuação da carta, ao falar da importância do trabalho, de-fende que o homem deve trabalhar, mas quem trabalha, segundo Americus, nãoconsegue estudar, daí a necessidade que o conhecimento seja dado proporcional-mente à condição social dos indivíduos. Americus defende também que a educa-ção deve vir na infância/adolescência. Tempo em que, segundo ele, fisicamente ohomem não está apto para o trabalho e da educação colherá frutos depois. Aqui sepercebe a preocupação do autor com o fato de que se possa conciliar a instruçãoescolar com o tempo dedicado ao trabalho. Era preciso que o tempo escolar quequeria se instituir levasse em conta os outros tempos sociais, principalmente otempo reservado ao trabalho. Essa passa a ser uma das principais questões a seremresolvidas pelos dirigentes mineiros na ampliação do sistema de ensino.

6 Suspeitamos que a série de artigos denominada “Educação elementar” publicadano O Universal em 1825 tenha sido de autoria de Hipolito da Costa. Essa suspeitase dá pois em outubro de 1816 foi publicada uma série de artigos no CorreioBrasiliense assinada por este autor que em muito se assemelha com a publicaçãorealizada no jornal mineiro (cf. Bastos, 1999).

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ço de tempo a escola, saindo mal sabendo ler e escrever. Isto, além deprejudicar os alunos, gerava altos custos para a província, sem ao me-nos ter resultados positivos.

A economia era o princípio básico no qual se baseava o métodomútuo, uma vez que o governo se limitaria aos gastos do salário de umsó professor, às despesas da casa (escola), lápis, borracha, pedra e ou-tros materiais essenciais para o ensino. O princípio de economia eratambém pensado em relação ao tempo, ou seja, no método mútuo osalunos gastariam menos tempo para aprender a ler, escrever e contar doque, no método individual, pois, aprenderiam com os monitores, o que,segundo os defensores do método mútuo, contribuía para o melhor apro-veitamento do tempo. Além do mais, a adoção do método resolveria oproblema da falta de professores, fato comum à época e consideradopelos dirigentes mineiros uma das principais causas do atraso em que seencontrava a educação primária.

A divisão do tempo também fazia parte das preocupações trazidaspela adoção do método mútuo. O horário de início e término da aula eradefinido, bem como o aproveitamento de todo o tempo em que os alu-nos se encontravam na escola. Todas as ações a serem executadas pelosalunos eram pensadas de forma que o tempo não fosse “desperdiçado”.

Na última parte da matéria publicada no jornal, o autor põe-se adescrever, a título de exemplo, como o método funciona. Chamando“Emprego das diferentes classes de meninos na escola”, o autor dá, ini-cialmente, exemplos de como pode funcionar as diferentes classes, acomeçar da primeira. Essa classe era composta por meninos mais no-vos, que nada sabiam, assim sendo, iniciavam o aprendizado do alfabetoe orações da cartilha. Aprendiam a ler e escrever na mesa de areia, pas-sando depois a copiar cartas do ABC no papel, seguindo pela memo-rização das letras, alcançando-se a seguir a aprender as sílabas simples.Os alunos deveriam ficar próximos ao professor. Cada um dos discípu-los deveria ser ensinado individualmente, portanto, a classe não podiaser muito numerosa. Era calculado um tempo de três semanas para queos alunos aprendessem o alfabeto.

Nesta série de artigos publicados sobre o método mútuo no jornal OUniversal, fica evidente quais eram as grandes questões a serem resol-

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vidas para a melhoria da instrução pública, na visão dos dirigentes – omelhor aproveitamento do tempo e a redução dos gastos. A maior com-plexidade da organização da instrução proposta pelo método mútuo traztambém uma discussão sobre a necessidade de oferecer uma formaçãoadequada aos professores primários.

Dois anos depois, veio a público aquela que seria a principal estraté-gia de divulgação e expansão do método de ensino mútuo no país: a leide 15 de outubro de 1827. Nela, foram definidos vários aspectos dainstrução pública relacionados às escolas e aos professores, às matériasensinadas, aos métodos e outros. Essa lei determinava a criação de es-colas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares mais popu-losos, estabelecendo, ainda, quais os conteúdos a serem ensinados e queestes deveriam ser ensinados pelo método mútuo.

Os defensores do método mútuo defendiam-no como uma poderosaarma na luta para fazer com que a escola atingisse um número maior depessoas. Tal crença fez com que em Minas Gerais algumas escolas fos-sem organizadas segundo tais ordenamentos pedagógicos. No ano de1829, o conselho da província mandou publicar um livro com não maisde 14 páginas com o seguinte título: Castigos Lancasterianos – emconsequência da Resolução do Exmo. Conselho de governo da Provín-cia de Minas Gerais, mandando executar pelos Mestres de 1as letras ede gramática Latina. Neste livro, consta uma lista de castigos lancaste-rianos para serem aplicados nas escolas de primeiras letras da provín-cia. O que denota a importância que foi atribuída a tal método.

O documento era assim dividido: Instrumentos e Modos de castigosLancasterianos; das Cadêas de Páo, a cesta, a Caravana, Proclamaçãodos erros de um offensor Perante a aula, Falta de limpeza, da prisãodepois da aula, tom de cantar ao ler, escritos de vergonha, outra qualida-de de castigos, das offensas e queixas, principais faltas que ocorrem nasaulas, regra e ordem pela qual os decuriões fazem suas queixas, cartasrecomendatórias e emulação entre classes. Percebe-se que o grande pro-blema imposto pelo método mútuo refere-se à questão da ordem nasescolas. Os castigos propostos tinham como objetivo manter a ordem ea disciplina em sala, com a intenção de garantir o melhor e maior aprovei-tamento do tempo.

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Para que a ordem fosse garantida, além de castigos de natureza físi-ca e/ou moral, os quais chamam a atenção pela extrema crueldade, de-fende-se com veemência o estabelecimento da hierarquia entre os alunose a obediência estrita a ela, enfatizando a importância de os decuriõesnão descuidarem da execução de suas tarefas. Reforçando mais umavez a idéia da emulação e da competição entre os meninos.

Mesmo com a intensa propaganda sobre a superioridade do métodomútuo, ao analisar as fontes, principalmente os debates realizados sobrea instrução no jornal O Universal, a maioria das escolas, mesmo nacapital da província, continua a adotar o método individual. Já no iníciodos anos de 1830 era constatada a inviabilidade do método na provínciamineira. Primeiramente, porque o método mútuo exigia espaços adequa-dos e uma variedade e quantidade grande de materiais pedagógicos parautilização dos alunos, os quais não eram disponibilizados, dificultandosua eficácia e aplicação. Em segundo lugar, porque os dirigentes minei-ros alegaram que os professores não eram devidamente formados paraensinarem através do método, pois não havia uma instituição que osformasse adequadamente.

Ao longo dos anos, as discussões sobre o melhor método de ensinocontinuarão a ocupar a atenção daqueles que organizavam a instruçãopública, juntamente com a discussão acerca da necessidade de formarum professor que melhor pudesse praticá-lo. Paralelamente ao discursojornalístico, são produzidas outras estratégias para a consolidação doobjetivo de organizar a instrução e de normatizar esse ramo da adminis-tração pública, como é o caso da produção de uma legislação específicapara a área.

Produzindo a organização do sistema de instrução:a lei n. 13 de 28 de março de 1835

Nos discursos produzidos pelos presidentes da província mineira, ainstrução pública encontrava-se em um estado lastimável e precisavaser organizada. A necessidade de instruir e civilizar a população é clara.Em relatório enviado à Assembléia Legislativa Provincial no ano de

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1833, o presidente Antônio Paulino Limpo de Abreu mostra que o esta-do indesejável da instrução se dava devido ao fato de que:

1º os pais de família não procurão, como lhes cumpre, da educação primaria

de seus filhos: 2º de não terem os professores públicos um interesse imediato

no augmento do número de seus discipulos: 3º da alluvião que há de escolas

particulares, as quaes fora de toda a inspeção do governo, não offerecem

garantia alguma da educação da Mocidade, já quanto a pericia, já pelo que

respeita a moralidade dos mestres.

Esse trecho do relatório deixa clara a preocupação da província emorganizar a instrução, seja pela cobrança em relação aos deveres dospais em mandar os filhos à escola, seja pela necessidade de formar osprofessores, ou ainda pela necessidade sentida de inspecionar como eonde estava ocorrendo a educação na província mineira.

No ano de 1835, como seqüência dos debates que se travavam em re-lação à constituição do Estado Nacional e da importância de garantir aunidade e uniformidade do Estado Imperial em todas as províncias dopaís, o debate acerca da necessidade de organizar o sistema de instruçãoganha maior intensidade. O desrespeito pelas leis e a conseqüente falta demoralidade se davam, segundo a elite, em virtude do atraso em que se en-contrava a educação, sendo este considerado o “grande mal da sociedade”.

Em Minas Gerais, esse debate ganha mais destaque com a instala-ção da Assembléia Legislativa Provincial, no ano de 1835. No dia 2 defevereiro, é publicada, em O Universal, a fala do presidente da provín-cia, Bernardo Jacintho da Veiga no ato de instalação da Assembléia. Opresidente continua dizendo da importância da instrução pública, dossalários dos mestres, da necessidade de habilitá-los, da pouca freqüên-cia dos alunos às aulas e do pouco resultado obtido pelo método mútuoque fora adotado em algumas escolas.

Através de O Universal, é possível acompanhar a intensa movimen-tação da Assembléia Legislativa na tentativa de organizar a instruçãopública. As iniciativas iam tanto no sentido de realizar debates sobre aimportância da educação, quanto em relação ao estabelecimento de umalegislação que viesse a organizá-la e aos investimentos financeiros que

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eram realizados7. Várias reuniões da Assembléia Legislativa Provincialsão publicadas no jornal.

Uma das tentativas mais importantes para organização da instruçãopública realizada pelos dirigentes mineiros é noticiada no dia 23 de fe-vereiro de 1835, quando se informa que foi lido, na sessão da Assem-bléia Legislativa Provincial, no dia 18 do mesmo mês, o projeto dodeputado Bernardo Vasconcelos sobre a instrução pública. Esse projetoamplamente discutido refere-se ao que será depois a lei n. 138.

O projeto ganha destaque durante muitas reuniões da AssembléiaLegislativa e em vários números do jornal, que publica toda a movi-mentação e discussão sobre ele. No dia 25 de fevereiro, o projeto dodeputado Bernardo Vasconcelos é publicado na íntegra.

O jornal, a partir das análises feitas, tinha a clara preocupação detornar público todo o esforço que vinha sendo realizado pela Assem-bléia Legislativa Provincial para que a instrução pública pudesse alcan-çar seus objetivos. Nos anos seguintes (1836, 1837 e 1838) são publicadasvárias falas de presidentes da província sobre a instrução pública, quenos permitem perceber como se produziram a necessidade de organizara instrução pública e a formação do professores e como, aos poucos, osdirigentes mineiros foram tomando para si a responsabilidade pela or-ganização do sistema de instrução que se queria instituir.

Assim, em 28 de março de 1835, a lei n. 13 é sancionada pelo vice-presidente da província Antônio Limpo Paulino de Abreu, atendendo aodisposto no Ato Adicional de 1834. Até então, o sistema de ensino naprovíncia mantinha uma organização próxima aos tempos coloniais. Onúmero das escolas era pequeno, estando longe de satisfazer as necessi-dades de uma população dispersa em uma grande extensão territorial(Mourão, 1959).

7 Ao analisarmos os relatórios dos presidentes de província no período imperial,notamos que esse interesse e tentativa de organização davam-se também em ter-mos de investimentos financeiros. Segundo os relatórios, eram gastos mais de umterço das rendas da província com a instrução.

8 A lei n. 13 foi criada em 1835, tendo sido a primeira lei mineira a propor uma orga-nização para a instrução pública primária.

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A partir da implementação da lei, a instrução pública é dividida emdois graus: a escola de primeiro grau ensinaria “a ler, escrever e a práti-ca das quatro operações”, e, a de segundo, ensinaria “a ler, escrever, arith-mética até as proporções, e noções gerais dos deveres moraes e religio-sos”. As escolas de 2º grau, de acordo com o art. 2º da lei, eram aquelasque funcionariam em cidades e vilas em que se julgasse conveniente, edo “1º grau em todos os lugares em que attenta a população, poderemser habitualmente frequentadas por vinte e quatro alumnos pelo menos”.As escolas que não tivessem o número de alunos estipulados seriam fe-chadas e os seus professores demitidos.

O objetivo das “escolas de primeiras letras”, tão defendidas pelosdirigentes mineiros, era generalizar para toda a população as primeirasnoções sobre saber ler, escrever e contar. Não se imaginava por outrolado, uma relação desta escola com outros níveis de instrução como osecundário e o superior (Faria Filho, 1999b).

De acordo com Faria Filho (1999b), em estudos realizados sobre aconstituição da cultura escolar em Minas Gerais no século XIX “instruiras classes inferiores era tarefa fundamental do Estado brasileiro e, aomesmo tempo, condição mesma de existência deste Estado e da Na-ção”. A instrução era vista como uma das principais estratégiascivilizatórias do povo e possibilitaria preparará-lo para um “projeto depaís independente, criando também as condições para uma participaçãocontrolada na definição do destino do país”.

Ainda segundo Faria Filho (2000, p. 137), buscava-se “constituir,entre nós as condições de governabilidade, ou seja, a criação de umestado independente, mas também, dotar este Estado de condições degoverno”. Entre essas condições, sem dúvida a fundamental era “dotaro Estado de mecanismos de atuação sobre a população”. Nessa pers-pectiva, a instrução como um mecanismo de governo permitiria nãoapenas indicar os melhores caminhos a serem trilhados por um povolivre, mas também “evitaria que este mesmo povo se desviasse do ca-minho traçado”.

A primeira metade do século XIX foi o momento de fortalecimentode uma perspectiva político-cultural para a construção da nação brasi-leira e do Estado Nacional. Nesse sentido, a legislação aparece com um

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caráter normativo. As discussões sobre a importância da instrução estãorelacionadas à necessidade de se estabelecer, no Império, como nos es-clarece Faria Filho, o império das leis. Para o autor,

Isto significava, por um lado, instituir o arcabouço jurídico-institucional de

sustentação legal do Estado Imperial, nas suas mais diversas manifestações e

funções, e, por outro lado, fazer com que os mais diversos estratos sociais

que viviam ou, mesmo, que exerciam funções de governo, viessem a obede-

cer às determinações legais [2000, p. 137].

Desde 1827, data da primeira lei sobre instrução pública no Impé-rio, foram estabelecidas várias outras leis no intuito de normatizar ainstrução. A partir do Ato Adicional de 1834, com a descentralização dapolítica administrativa do ensino, as províncias passam a estabelecersuas próprias leis sobre tal assunto. Dessa forma, a partir de 1835, asAssembléias Provinciais e os presidentes de província passam a produ-zir um número significativo de textos legais, o que demonstra que anormatização legal se constituiu em uma das principais formas de inter-venção do Estado no serviço de instrução (Faria Filho, 2000).

A legislação volta-se também para a formação dos professores.Pelo art. 7o da lei n. 13, foi criada a primeira Escola Normal de MinasGerais, a Escola Normal de Ouro Preto, onde deveria ser ensinado ométodo de ensino “mais expedito, e ultimamente descoberto, e pratica-do nos países civilizados”. Para tanto, pelo do art. 8o, o governo ficavaautorizado a contratar quatro cidadãos brasileiros para se instruíremdentro ou fora da província a fim de reger essa escola e aquelas estabe-lecidas no art. 6o.

As escolas particulares, segundo o art. 9o, eram permitidas, inde-pendentemente de licença do governo, desde que os professores fossemhabilitados na forma da lei. Todos os professores que abrissem escolassem serem devidamente habilitados seriam suspensos e multados, po-dendo até mesmo serem punidos com prisão de 15 a 60 dias. Criou-se,ainda, o cargo de delegado de ensino que tinha por prerrogativas no-mear visitadores, professores substitutos, suspender professores, fazerobservar a lei e os regulamentos e as ordens do governo.

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Pela lei n. 13, o governo da província mineira pretendia exercer con-trole sobre a instrução pública primária em todas a suas dimensões, mar-cando até os dias de estudo, as horas de cada lição, os suetos9, o tempo,as férias, o método dos exames públicos, o regimento, a polícia das esco-las, bem como a forma de concursos que tinham lugar no provimento dascadeiras vagas.

A lei n. 13 e seu regulamento, de n. 3, possibilitam a produção de es-tratégias para legitimar a necessidade de formação dos professores. É apartir da criação das escolas de primeiras letras no ano de 1827 e, no casode Minas Gerais, a partir da lei n. 13 em 1835, que se intensifica a preo-cupação com a formação dos professores tornando-se uma questão cen-tral. É nesse momento que os vários discursos produzirão um sentido paraa questão da formação dos professores, através das representações que seconstroem sobre quem deveria ser professor e os conhecimentos que eledeveria adquirir.

Essa preocupação com a formação dos professores se traduz comclareza através da criação de uma Escola Normal. Tal escola tinha porobjetivos habilitar os professores para ensinarem nas escolas criadas, e,principalmente, buscar estabelecer um maior controle sobre a formaçãodos professores através da prescrição de determinadas práticas.

Apesar de todas as tentativas trazidas pela implementação da lei n.13 de se organizar a instrução pública, muitas eram as dificuldades quese colocavam. As dificuldades apontadas pelos presidentes de provínciadiziam respeito à falta de materiais, de locais adequados para realizaçãodas aulas e a falta de professores preparados, de uma instituição que osformasse, bem como a falta de inspeção e a conscientização dos paissobre a importância de mandarem seus filhos à escola.

Segundo os relatórios dos presidentes de província, tornava-se mui-to complicado inspecionar a prática dos professores, pois estes ensina-vam em escolas isoladas, muito distantes uma das outras. Na tentativade resolver a situação foram criados os círculos literários. Estes eram

9 Suetos são feriados escolares.

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em número de quinze, sendo que cada um tinha um delegado de ensino,nomeado pelos presidentes da província. Aos delegados de ensino ca-bia, entre outras funções, nomear os visitadores que fiscalizavam o tra-balho dos professores, conforme já dissemos.

A necessidade de organizar a instrução pública está colocada, tantoquanto a necessidade de “derramá-la para todas as classes da sociedade”,e que é intensamente divulgado e discutido através de O Universal. Há,porém, que fazer dessa preocupação dos dirigentes mineiros, tambémuma preocupação dos pais, uma vez que um dos maiores empecilhoscolocados para a não escolarização da população era a pouca importân-cia que estes davam à escolarização dos filhos. Muitas vezes, as escolasexistiam, mas não funcionavam porque não havia alunos suficientes. Afalta de alunos era, às vezes, relacionada à suposta irresponsabilidade dosprofessores para com o ensino. No entanto, nem sempre isso era verda-de. É o que se percebe, quando no dia 21 de agosto de 1835, ao comen-tar sobre o salário dos professores no jornal, afirma-se que:

em verdade a causa do estado decadente de nossas escolas públicas não é só

devido ao mestres, é também aos pais de família, que muito pouco cuidam da

instrução de seus filhos, e esses poucos que os mandam às escolas não dei-

xam que se aperfeiçoem como convém, resultando daqui que os professores

estejam continuamente em penosos trabalhos sem jamais poderem apresen-

tar um resultado de suas fadigas.

Essa preocupação está presente em O Universal desde a década de1820, quando Americus, em sua carta publicada em 10 de fevereiro de1826, denuncia que muitos pais gastam dinheiro fazendo caprichos dosfilhos, mas não se preocupam em gastar com algo tão importante quantoà sua educação. Nota-se que se torna necessário conscientizar os pais daimportância de dar educação aos filhos e para que estes assumissem odever de mandar seus filhos para a escola. No entanto, muitas vezes, ascrianças deixavam de ir à escola por terem que trabalhar para ajudaremos pais nas tarefas ligadas à agricultura e à manutenção da casa, dificul-tando assim a concretização dos objetivos da elite dominante.

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A baixa freqüência dos alunos, a alta evasão escolar e a preservaçãoda educação caseira eram comuns e sinalizavam valores apegados ao“governo da casa”. O debate sobre a questão feminina vem somar-se aessa questão, uma vez que algumas famílias insistiam em manter asmulheres sem os conhecimentos mais básicos da instrução. Se, no casoda educação dos meninos, a resistência do governo da casa era agravadapela pequena, ou inexistente, presença de instrução pública nas provín-cias, no caso das meninas era ainda pior. Em qualquer das situaçõesconfigurava-se a reação dos poderes privados à intervenção crescentedo Estado, que tentava colocar sob seu controle a educação e a instruçãodas famílias com intuito de reafirmar seu projeto centralizador, confor-me nos mostra Ilmar Mattos (1996).

Pela lei n. 13, os governantes mineiros buscavam atuar sobre essaquestão, estabelecendo no art. 12 que os pais de família eram obrigadosa dar aos seus filhos a “instrução primária do 1º grau ou nas escolas pú-blicas, ou particulares, ou em suas próprias casas, e não os poderão tirardellas, enquanto não souberem as matérias próprias do mesmo grau”. Ainfração deste artigo, segundo a lei, resultaria na punição com a aplica-ção de uma multa de dez a vinte mil reis, caso fossem intimados por trêsvezes e não corrigissem tal falta. Essa determinação, criticada por al-guns presidentes de província e pessoas influentes na sociedade, ao quetudo indica, segundo as fontes consultadas, foi muito pouco colocadaem prática.

Aliada à questão dos pais terem que mandar seus filhos para a esco-la vai colocando-se outra, qual seja, a incapacidade dos pais de educa-rem e ensinarem corretamente as crianças. Aqui, percebe-se a produçãoda escola como o lugar autorizado para a socialização da infância assu-mindo assim uma importância crescente como locus privilegiado de trans-missão de saberes e de costumes.

Nesse processo, o que se percebe é que, para se afirmar a escolacomo principal instituição responsável pela instrução e educação da in-fância, seus defensores tiveram que deslocar dessa centralidade outrasinstituições e processos socializadores, como a família e a Igreja (FariaFilho, 1999b). Talvez fosse esse o objetivo do jornal O Universal ao

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publicar determinados artigos, como um intitulado: “A pouca importân-cia que é dada aos mestres”, que circulou no dia 11 de outubro de 183910 .

Nesse artigo, é ressaltada a obrigação dos pais em zelarem pela edu-cação de seus filhos, sendo a educação colocada como um bem precio-so, “fonte de virtude, da felicidade, da opulência e grandeza dos povos”.Ressalta, sobretudo, a importância de deixar a cargo de educar seus fi-lhos, o preceptor (professor). Ele, e somente ele, segundo o artigo, teriaa influência moral necessária para educar, nem mesmo o ministro dareligião, teria essa capacidade.

Nessa matéria, a missão do mestre é elevada, dele dependeria o “de-senvolvimento das qualidades nascentes de uma alma tenra”. Ressaltamtambém quais devem ser as qualidades do mestre, devendo este ter co-nhecimento e habilidade de comunicá-los:

[...] além ser dotado de costumes virtuosos e irrepreensivos, da incansável

paciencia, na certeza de que, não fazendo uso dessas qualidades, não só dei-

xa imperfeita a educação, que lhe confiarão, como levanta obstáculos

inseparávéis aos esforços do pedagogo espiritual, a quem incube inspirar a

juventude, por meio da máximas da religião.

Ao se produzir a idéia de que somente o mestre é capaz de ensinarcom clareza e perfeição um “bem tão precioso” para a vida da criança e,conseqüentemente, da sociedade, vai produzindo-se também a idéia deque a família não tem condições de exercer com êxito tal tarefa, por nãodispor das condições necessárias para garantir uma boa educação aosseus filhos.

Fica evidente, nesse momento, que se produzia um discurso no quala família é desqualificada para a função que até então vinha exercendo.Mais que isso, percebe-se, sobretudo, a construção de estratégias quevisavam produzir a necessidade do professor como uma condição es-sencial para a organização da instrução. A partir de então, construiu-se

10 Esse mesmo artigo havia antes sido publicado no jornal Panorama, em Portugal,para os pais de família.

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um modelo de professor que deveria ser formado. Também foram pro-duzidas determinadas características e atribuições que caberiam àqueleque seria o “sujeito autorizado a formar as novas gerações” (Faria Filho,1996).

Segundo Muaze (1999), ao discutir a descoberta da infância no sé-culo XIX, mesmo algumas famílias preferindo a educação domésticadevido à baixa qualidade das escolas, havia por parte dos pais a inten-ção de educar melhor os filhos11. A escola foi lentamente consideradafundamental para a educação das crianças.

Organizando os espaços e aproveitando o tempo: aquestão dos métodos de ensino

No decorrer dos anos de 1830, a idéia de que a instrução escolar aten-deria de forma efetiva o objetivo de moralizar e educar o povo é afirma-da como central. As discussões sobre qual o melhor método de ensino aser adotado continua a ganhar a atenção dos dirigentes mineiros. O mé-todo simultâneo é considerado aquele que melhor atenderia às especifi-cidades da instrução escolar, uma vez que ele permitia que as classesfossem organizadas de forma mais homogênea, ao mesmo tempo em queo professor atenderia a mais alunos de uma só vez, racionalizando destaforma o tempo escolar. Os conteúdos seriam organizados em diversosníveis e a turma dividida em cinco divisões e oito classes.

A defesa do método simultâneo é realizada principalmente pelo pro-fessor Francisco de Assis Peregrino que, após assinar contrato com ogoverno da província mineira, passou dois anos na França para se instruirno método de ensino que lá era ensinado12. O edital do contrato foi publi-cado em O Universal no dia 29 de abril de 1835. Aqueles que fossem con-

11 Mariana Muaze (1999) demonstra que a instrução infantil, ao longo dos oitocen-tos, viria a se transformar em um elemento de diferenciação social. Segundo aautora, a instrução infantil tinha que acompanhar o processo civilizador pelo qual aboa sociedade e o Império ambicionavam passar.

12 Este contrato foi estabelecido pela lei n.13.

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tratados deveriam instruir-se no método de ensino “mais expedito e ulti-mamente descoberto”, e nas matérias definidas pela legislação em vigor.

Os candidatos deveriam também estar versados ao menos na gra-mática da língua nacional, latina e francesa, provando por documentosa regularidade de sua conduta. O governo assegurava aos candidatospor dois anos um subsídio anual de seiscentos e oitenta mil réis, além deuma ajuda de custo para a viagem de ida e volta. Ao final dos dois anos,os candidatos voltariam e ficariam obrigados a estabelecer escolas deprimeiras letras, ficando obrigados a regê-las por um espaço de dez anos.Para tanto, o governo asseguraria a eles um ordenado de oitocentos milréis anuais.

Antes de fazerem os contratos, os candidatos faziam fiança idônea egarantiam a reposição destas quantias caso não comparecessem ao finaldos dois anos para assumir os encargos determinados ou, se mesmo vol-tando, não quisessem exercer o magistério ou ainda, se não se mostras-sem devidamente instruídos nas matérias exigidas e caso abandonassemas cadeiras antes de terminarem os dez anos exigidos, bem como se poromissão, ou irregularidades, fossem suspensos ou demitidos.

Ao voltar da viagem em 1839, o professor Francisco de Assis Pere-grino escreveu uma Memória na qual propunha a reorganização do sis-tema elementar de ensino através da adoção do método simultâneo. Assimcomo para os defensores do método mútuo, também para o professorPeregrino o método individual era cheio de imperfeições, não permitin-do um bom aproveitamento do tempo, o que fazia com que os alunosficassem anos seguidos na escola sem nada aprenderem de útil.

Para o professor, o referido método também levava à indisciplina,pois “aquele aluno que acaba a lição não tem mais o que fazer e fica naociosidade, enquanto o professor se ocupa individualmente de cada alu-no”. Ressaltava ainda que o uso de um livro diferente por cada aluno,enviado pelos pais, contendo estes erros de gramática e ortografia e que“não interessam a mocidade, causando-lhe muitas vezes prejuízos”, eramuito prejudicial para o bom andamento da instrução primária.

Na Memória, o tempo gasto em cada método é detalhadamente cal-culado pelo professor Peregrino. Ele atribui ao método individual, porcausa da sua morosidade, a razão pela qual o sistema público de ensino

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não apresentava os resultados desejados. A ociosidade em que se encon-travam os alunos é também por ele criticada. Mesmo imaginando umaescola com todas as condições favoráveis, com um bom professor e onúmero ideal de alunos, ele não vê possibilidades de o método individualconseguir bons resultados para o sistema de ensino.

A partir de tal constatação, o professor Peregrino passa a defender ométodo simultâneo como aquele que melhor atenderia as necessidadesda província mineira. Ao iniciar a defesa do método simultâneo, Peregrinoassim se expressa:

Não haverá pois um meio de melhorar o systema de ensino, e de economizar

mais o tempo, fazendo que um certo número de alumnos aproveite da mesma

lição sendo elles classificados em grupos conforme seus graos de inteligência,

e estabellecendo-se nesses grupos ou classes uma emulação de cada instante?

Em seguida, o professor passa a descrever detalhadamente o méto-do simultâneo. Na descrição feita pelo professor Peregrino a respeito dométodo defendido, a eficácia deste estava diretamente relacionada aomelhor aproveitamento do tempo escolar, tanto pelos professores, quantopelos alunos. A análise do documento reafirma que naquele momentode instituição do sistema de ensino público primário em Minas Gerais,as formas de delimitação, organização e utilização do tempo eram asprincipais questões a serem resolvidas para o bom andamento da insti-tuição escolar.

O estabelecimento do método simultâneo somente se torna possívelcom a produção de materiais didáticos pedagógicos, como livros e cader-nos para os alunos e a disseminação paulatina de materiais como o qua-dro-negro, que possibilitam ao professor fazer com que diversos gruposfiquem ocupados ao mesmo tempo. Sobretudo, o pleno estabelecimentodo método terá que esperar a construção de espaços próprios para a es-cola, o que ocorrerá, no Brasil, apenas na última década do século XIX.

Nos meados da década de 1840, com o objetivo declarado de unir ométodo simultâneo, o mútuo e algumas partes do individual, com todas asvantagens de cada um e “retirando os defeitos que neles havia”, foi cria-do o método misto. Esse método parece ter sido definitivamente escolhido

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para ser ensinado na Escola Normal de Ouro Preto, no final dos anos de1840, conforme nos indica a análise dos exames realizados pelos profes-sores que a freqüentavam. Essas provas, realizadas entre os anos de 1846até 1850, nos permitem confirmar como os métodos de ensino ganhamcentralidade na formação daqueles que seriam os futuros professores.

Percebemos, que tanto o discurso da necessidade de instruir a popu-lação e organizar um sistema público de ensino, como o discurso danecessidade da formação de habilidades e saberes específicos que o pro-fessor deveria ter para ingressarem na carreira do magistério públicoprimário, já estava cristalizado na década de 1840. Nos ofícios avulsos,dirigidos a professores e delegados literários, encontramos a exigênciapara que os candidatos ao magistério e aqueles que já se encontramexercendo a função obtenham o mais rápido possível sua habilitação naEscola Normal da capital. Como nos mostra o trecho abaixo:

Sendo indispensável que Vme. se mostre convenientemente habilitado nas

matérias de que trata o artigo 7º da lei nº 13, afim de que possa ser titulado

professor substituto na Aula Normal nos termos do artigo 8º da mesma lei,

resolvi marcar lhe para esse effeito o prazo de dous mezes, ficando na

intelligencia de que dentro delle não requerer os necessários exames, e não

apresentarem os documentos necessários para obeter o provimento, não podera

comntinuar no exercicio, e nem ser pago do ordenado [códice 360, 1844 –

Arquivo Público Mineiro].

As discussões sobre os métodos de ensino no Brasil, como pudemosobservar, vai processar-se no entendimento dos métodos como uma for-ma de organização da classe e dos tempos escolares, e não necessaria-mente como uma forma de ensinar. Essas discussões estarão presentesdessa forma dos meados da década de 1820 até os meados da década de1870, quando então se estabelecem novas reflexões advindas da defesado método intuitivo13.

13 É a partir das discussões sobre o método intuitivo, no final do século XIX, junta-mente com as discussões advindas da psicologia e da biologia, que se iniciam asdiscussões sobre a relação ensino-aprendizagem.

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Até aqui tratamos especificamente das discussões sobre o melhoraproveitamento dos tempos escolares. Outra questão que ganha desta-que nesse momento é a preocupação com a organização do espaço esco-lar. Ao se constituir e construir a especificidade da forma escolar, comseus tempos, sujeitos e modos de organização, transmissão de conheci-mentos, na produção de um modo de socialização específico da escola.A organização é pensada de forma detalhada, sendo considerada pri-mordial para que a eficácia do método adotado fosse garantida.

O domínio do espaço escolar pelo professor, através da organizaçãoeficaz deste, vem somar-se ao domínio dos métodos de ensino, propor-cionando um melhor aproveitamento do tempo escolar discutido anterior-mente, devendo estes formar um conjunto das novas habilidades do pro-fessor que atuaria no sistema de ensino de primeiras letras.

O professor Peregrino, ao propor um plano para melhorar a instru-ção pública em Minas Gerais, também trata desta questão, afirmando aimportância da organização do espaço no processo de organização dainstrução pública nas primeiras décadas do século XIX.

Como apontam Viñao Frago e Agustín (1998), o espaço escolar nãoé neutro, ele também educa. O espaço é todo organizado de forma quegaranta a eficácia do método seguido e ao mesmo tempo para educar.Na proposta feita pelo professor Peregrino, o espaço é organizado deforma que as janelas não levem o aluno a se distrair olhando para o queacontece nas ruas. A cor das paredes e o tipo de chão utilizado são pen-sados para propiciar um ambiente mais higiênico, afinal essa era umaclara preocupação no século XIX. Nas paredes, são ainda espalhadosletras do alfabeto, os sons e articulações mais utilizados na língua pá-tria, máximas de moralidade, retrato do imperador e outros detalhes quevisavam contribuir para o processo de educação, moralização e civiliza-ção dos alunos.

O professor Peregrino detalha como deve ser o local onde é esta-belecida a escola. Para ele, devia-se geralmente escolher para estabele-cimento de uma escola uma casa que esteja em lugar bem elevado, ebem arejado, que seja colocado no centro da povoação, ou “Distrito quepertencer a escola, porque assim se facilita mais a frequencia dosalumnos”. Segundo ele, “a casa deve ser de tal sorte construída, que os

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alumnos estando em suas classes, tenham a sua esquerda ao Nascente,donde receber a luz”.

Para Escolano (1998, p. 28), não apenas o espaço-escola, mas tam-bém sua localização, a disposição dele na trama urbana dos povoados ecidades, tem de ser examinada como um elemento curricular. Nessemomento, a escola, instituição em construção, localizava-se em casas eigrejas, guardando ainda uma certa intimidade familiar com o mundoprivado. Eram escolas isoladas, estruturadas para atender a determina-das finalidades domésticas ou religiosas, por exemplo – e traziam con-sigo símbolos, signos, sensibilidades e valores próprios deste mundo.

As formas, as dimensões da sala, o pavimento, o teto, as paredes ejanelas são também pensados de forma que possam contribuir para aboa aprendizagem dos alunos e para que esses não se distraiam com ascoisas que se passam na rua. O professor aconselhava que na parte supe-rior das paredes se traçassem as letras do alfabeto, os sons e articulaçõesmais usadas na língua pátria, algumas sentenças notáveis, ou máximasde moralidade, e finalmente os algarismos numéricos, tudo em grandescaracteres bem talhados e de diferentes formas.

Cada detalhe é definido a priori. A localização dos armários, doquadro-negro e do honorífico, a pêndula, a tábua de marca (usada paraavisar ao professor que o aluno irá retirar-se da sala momentaneamen-te), a talha, as mesas, os bancos, as ardósias, todos esses objetos têmseus usos e locais prescritos.

Também a posição do professor no estrado mostra como a organiza-ção do espaço é articulada para afirmar hierarquicamente a posição as-sumida pelo professor. Mesmo no método mútuo, no qual este conta comajuda dos monitores, essa localização não deixa que se pense que o profes-sor não tem mais o controle sobre o processo educativo. A cadeira do pro-fessor deveria estar sob uma eminência de dois palmos, que era feita pormeio de um estrado de dois degraus. Este estrado ocupa um espaço de 12palmos de comprimento, e nove de largura. Deve ser colocado em umadas extremidades da sala, e de tal sorte que o professor, estando assenta-do em seu lugar, tenha à sua frente todos os alunos voltados para si.

As formas silenciosas de ensino que se pretendia na primeira meta-de do século XIX estão marcadas de formas bem definidas. A promoção

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do melhor aluno é definida pela marca de prêmio e pelos escritos depunição. A questão da religião é também pensada ao se organizarem osespaços. Cada escola deveria ter “na parede, e acima da cadeira do pro-fessor um crucifixo, e o retrato do Imperador. Em um paiz que tem areligião, e forma de Governo do Brasil não seria preciso uma grandedissertação para saber-se o effeito moral d’estes dous objectos”. A vigi-lância em relação aos hábitos de higiene, a perda de tempo que ir aobanheiro poderia acarretar, bem como a possibilidade de não controlar oque acontece na latrina, podendo isto trazer males à moral dos alunos,fez com que esse lugar fosse detalhadamente pensado pelo professorPeregrino ao escrever a Memória.

O espaço escolar, como afirmam Viñao Frago e Agustín (1998, p. 69),

não é, pois, um contenedor, nem “um cenário”, mas sim “uma espécie” de

discurso que institui em sua materialidade um sistema de valores, e de mar-

cos para o aprendizado sensorial e motor e toda uma semântica que cobre

diferentes símbolos estéticos, culturais e ainda, ideológicos. Em suma, como

a cultura escolar, da qual forma parte, “uma forma silenciosa de ensino. Qual-

quer mudança em sua disposição, como lugar ou território, modifica sua na-

tureza cultural e educativa.

Considerações finais

Como podemos perceber através das reflexões feitas até aqui, e comochama atenção Faria Filho (1999b), a instituição escolar não surge novazio de outras instituições, como muitos textos querem nos fazer crer.Os defensores da escola e de sua importância no processo de civilizaçãodo povo tiveram que “lentamente deslocar tradicionais instituições deeducação e instrução, apropriando-se, remodelando ou recusando a tem-pos, a espaços, a conhecimentos, a sensibilidades e a valores próprios àsmesmas”. Mas não apenas isso, “a escola teve também de inventar, deproduzir, o seu lugar próprio, e o fez, também em íntimo diálogo comoutras esferas e instituições sociais” (p. 127).

Era clara a necessidade de estender as possibilidades de acesso dapopulação à escola. A preocupação se dava, sobretudo, em relação aos

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rudimentos do ler e escrever, estendendo-se, porém, aos homens livres.Ao estudar a instrução escolar em Minas Gerais no século XIX, pode-mos afirmar que a maior preocupação daqueles que estavam no poderera quanto à melhor forma de utilização do tempo. Esta questão, estan-do no cerne da modernidade, não poderia deixar de ser um aspecto cen-tral no interior dos processos de escolarização.

Uma melhor e mais eficiente organização e utilização dos temposescolares foram a grande preocupação daqueles que estavam envolvidosna discussão sobre o processo de escolarização no século XIX e quedefendiam a centralidade da escola na vida nacional, na formação de umpovo ordeiro e civilizado. As determinações sobre os conteúdos escolaresestavam intimamente relacionados à organização e à utilização dos tem-pos escolares e, em decorrência, relacionados aos métodos pedagógicos,e ainda, mais especificamente, à organização das turmas e das classes.

Trazendo aqui o conceito de discurso fundador de Orlandi (1993), po-demos dizer que as discussões sobre os métodos de ensino e, conseqüen-temente, sobre o melhor aproveitamento do tempo, dos espaços escolarese da organização do sistema público de ensino, iniciam um discurso fun-dador sobre a necessidade de formação dos professores.

A formação dos professores não mais será pensada a partir da déca-da de 1820, até as primeiras décadas do século XX, sem que se discutaa questão dos métodos de ensino. A legitimidade da formação do pro-fessor será conferida através do domínio que este possuía em relação aotempos e espaços escolares. As discussões sobre os métodos de ensino,que enfocavam a questão da organização da classe, do espaço e o papeldo professor como agente e organizador da instrução, vai ao mesmotempo produzir a necessidade da formação do professor para o sistemade ensino que se pretendia organizar.

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O ensino da história da educação e aprodução de sentidos na sala de aula

Clarice Nunes*

* Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estáciode Sá. Pesquisadora associada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Uni-versidade Federal Fluminense.

Os principais destinatários deste artigo são os professores de história da educação e estu-dantes dos cursos de graduação em pedagogia. Seu objetivo é refletir sobre o ensino dahistória da educação a partir do processo de aprendizagem da própria autora nessa área deconhecimentos e do modo como mobilizou o que aprendeu no ensino. Para tanto, relaci-ona sua experiência vivida com experiências discentes escolhidas. Torna viva a voz doaluno, através de depoimento de arquivo privado e de um dossiê escolar. Os efeitos daação do professor sobre o estudante são trabalhados pela analogia dos ensinos da históriada educação e da pintura. As finalidades da história da educação, as dificuldades discen-tes, a seleção de conteúdos básicos e algumas situações de aprendizagem são discutidascom o intuito de mostrar como múltiplos sentidos são construídos na sala de aula pormeio da interação pedagógica.HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO; ENSINO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO.

This article was written focusing education history professors and students of pedagogycourses. Its purpose is to present a reflection on the teaching of education history bytaking into account the author’s self-learning process in that knowledge area, and the wayshe put into action what she learned when teaching. She relates her own living experiencewith selected student’s ones. Through a private file report and a school dossier, she makesthe student’s voice alive. The teacher’s action effects upon the student are apprehendedby the analogy between education history and painting teachings. The history educationgoals, the student difficulties, the selection of basic contents and some learning situationsare discussed with the objective of showing how multiple senses are built in the classroomthrough the pedagogic interaction.HISTORY OF EDUCATION; TEACHING OF HISTORY OF EDUCATION.

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Hay que aprender a ver en los “huecos” de las cosas que muereny escuchar en los silencios de las voces que se apagan.

Ramón Soler

Apesar do abalo provocado pela crítica à modernidade e mesmo dasua crise no século XX, nós, educadores, não abandonamos a crença deque educar é preciso e de que, como tantos de nós já afirmaram, daeducação ninguém escapa. Não escapamos também de vivenciar, nassalas de aula, a insatisfação com os modelos explicativos que usamos; adificuldade em lidar com o campo de representação do passado, bastan-te alargado pelas pesquisas recentes; a luta contra a banalização, o aligei-ramento e a simulação do passado pela tirania dos mass media que,através dos filmes, das novelas, de programas jornalísticos impõem oimpério dos acontecimentos e recriam epopéias destinadas ao consumo,atraindo nossos alunos e afastando-os cada vez mais das narrativas his-tóricas escritas e verbais. O curioso é que esse mal-estar persiste nummomento em que a história da educação que produzimos se ampliou ese enriqueceu.

A constatação dessas dificuldades não precisa necessariamente imo-bilizar-nos desde que as encaremos como elementos que interrogam asnossas escolhas teóricas, as nossas narrativas e o nosso papel social. Oensino, como qualquer outra atividade considerada profissional, depen-de das pessoas nele envolvidas e da situação em que se inserem. Ossaberes sobre os quais se apóiam são sempre fragmentários e provisórios,o que evidencia não necessariamente deficiências, mas característicasque escapam ao imperativo de qualquer ordem racional preestabelecidae que determinam aspectos fundamentais da experiência vivida. Comoadverte Octavio Paz:

Creo que el fragmento es la forma que mejor refleja esta realidad en mo-

vimiento que vivimos y somos. Más que una semilla, el fragmento es una

particula errante que sólo se define frente a outras partículas: no es nada si no

es una relación [1970, p. 1].

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O que faz um professor quando ensina? Convida alguém a aprenderalgo sobre alguma coisa a partir do repertório que ele mesmo forjou deconteúdos, abordagens, ferramentas, materiais, técnicas, enfim de tudoque faz parte da sua cultura profissional, dos seus modos de fazer. Quandoo professor explica está exercendo uma função do ensino que não éexclusivamente sua, já que a possibilidade de explicar também está pre-sente em outros agentes na própria sala de aula, como os estudantes, eem outros contextos e situações por outros agentes que não sejam nemprofessores nem estudantes. Quando, no entanto, o professor o faz, umamplo conjunto de fatores interfere e o seu modo de fazer vai produzindo-se em ações nem sempre totalmente conscientes e sistematizadas, masque podem incluir procedimentos como a separação parcial dos argu-mentos, sua hierarquização tendo em vista a facilidade da aprendiza-gem, a citação de exemplos, a localização da idéia dentro de aspectos deum corpo teórico escolhido, a devolução reformulada de uma perguntacom a intenção de clarear o esquema mental que a formulou e outrasações não totalmente planejadas e ou sistematizadas, mas produzidasno calor da interação pedagógica e que não são automaticamentetransferidas de uma situação de ensino para outra. Esses procedimentosconstituem, no entanto, o enredo aparente de uma exposição dialogadaem sala de aula.

Enquanto coloca em ação esses modos de proceder, o professor estásimultaneamente avaliando, de modo instantâneo e implícito, e em dife-rentes graus e nuanças, o nível de dificuldade à compreensão que estácriando aos estudantes sob sua condução e seus efeitos na recepção dasua mensagem naquele instante; a clareza da sua própria exposição e asnecessidades novas que ela cria para si mesmo e para os alunos; suaspróprias hesitações e dúvidas. Ele está trabalhando, portanto, no ladooculto do aparente. A explicitação dessa face oculta ainda não esgota oque está acontecendo na interação pedagógica. Esta ainda abriga maisuma face: o oculto do oculto.

Nesse nível, o professor está ajudando os estudantes a internalizaremalgumas funções que ele mesmo aprendeu e desempenha para que seusalunos se tornem, eles próprios, professores de si mesmos. Que funçõessão essas? A organização do pensamento, as habilidades de compara-

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ção, análise e síntese, a imaginação pedagógica, a capacidade de sele-ção da informação e resolução de problemas, a construção de uma com-preensão e da sua comunicação. Essa intenção múltipla e delicada,realizada no oculto do oculto, faz toda a diferença e está no coração doconceito de autonomia da relação ensino-aprendizagem. Esse lado ocultodo oculto só é acessível, no entanto, através do vivido, do que seduz eatrai o aluno para a atmosfera pedagógica que o professor propicia emsala de aula.

Quando ensina, o professor produz efeitos para além do próprio en-sino e, qualquer que seja o seu estilo, caminha por dentro de uma duplatensão: de um lado, cultiva, reformula, desenvolve os saberes que legi-timam suas práticas educativa e pedagógica; de outro lado, abdica do quesabe (mesmo que em parte) com o intuito de abrir novos espaços de sa-ber para si mesmo e facilitar, para o outro, a realização do seu própriomovimento, que restitui o que lhe foi expropriado: o reencontro consigomesmo e com o prazer de aprender, a religação entre afeto e razão, acompetência de formular questões e procurar respostas às indagaçõesfundamentais que o afligem como ser humano, social e histórico. Eletrabalha, portanto, na elaboração de um contra-poder que pode, se exer-cido de modo radical, colocar em xeque o que ele mesmo se tornou.

Como a pintura a que se dedica o artista, o ensino do professor emsala de aula, embora previsível, contém algo impalpável, mas efetivo: ogesto de ensinar. Esse gesto fluido, mas decisivo, é aquele momento emque se opera o encontro do estudante e do professor com o conhecimen-to produzido e com um modo de aprendê-lo. Modo esse que, apesar daimposição de uniformização e homogeneização dos espaços e dos tem-pos escolares, ainda não é totalmente conhecido, muito menos partilha-do. A aprendizagem e o ensino configuram-se numa complicada urdidurana qual se articulam o conhecimento existente, o funcionamento cogniti-vo individual e os processos sociais de transmissão dos saberes. Nãoexiste uma relação linear e automática entre os processos de ensino eaprendizagem, como tendemos a acreditar. Geralmente, focalizamos maiso ensino do que a aprendizagem. Se muito já se escreveu sobre o ensino,muito pouco se escreveu sobre o ensino da história da educação, muitomenos ainda sobre como se aprende essa história.

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Todo professor reflete sobre seu trabalho. Eu mesma, no meu pro-cesso de reflexão, dediquei-me a investigar a história da história da edu-cação (1992, 1995b e 1996). Não voltarei a esses estudos, porém. Meuobjetivo neste texto é focalizar o ensino da história da educação pelaperspectiva do meu próprio processo de aprendizagem e de como certosaspectos desse processo vêm interferindo no meu modo de ensinar e decompreender como se opera o ensino. Não se trata enfaticamente de umdepoimento, mas mais propriamente de um ângulo que considerei perti-nente e estimulante para trabalhar o tema e que me permite dar forma epublicizar um legado que permanece invisível, mas que constitui tam-bém o patrimônio de quem se dedica desde 1974 a investigar esta áreade conhecimentos e a publicar os resultados de suas pesquisas. Essepatrimônio não é apenas produto de meus esforços isolados, mas tam-bém, e principalmente, o resultado da minha inserção num investimentocoletivo, já que foi constituído a partir de inúmeras relações travadasem todas as instituições que trabalhei esses anos, públicas ou privadas,confessionais ou não.

Discorro sobre o ensino da história da educação como uma baga-gem construída nas inúmeras salas de aula pelas quais passei, nas ban-cas de concursos e defesas de dissertações e teses, nas reuniões deprofessores e suas intermináveis discussões sobre currículo e propostasde reformulação de cursos, nas conversas informais com colegas e alu-nos nos corredores e nas mesinhas de bar, nos empréstimos de livros,nas estantes das bibliotecas, nos arquivos privados e públicos, namilitância das associações docentes. Apesar de a minha experiência pro-fissional incluir a graduação e a pós-graduação, privilegiei, neste texto,como principais interlocutores e destinatários, os professores de histó-ria da educação e estudantes dos cursos de graduação em pedagogia.

Esse texto não tem a pretensão de ser definitivo, nem tem o propósi-to de oferecer prescrições. Inspiro-me na atitude do genial pintor espa-nhol Goya (1746-1828) que, em suas telas, retratou os eventos do seutempo e denunciou, através da arte, sem qualquer intuito moralizador edoutrinador, problemas ainda atuais: as injustiças sociais, a crueldadefísica e psicológica, a violência. Ao retratar a cultura da sua época e osdesvarios e sonhos humanos foi, ao mesmo tempo, transformando sua

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observação e encontrando-se na própria pintura. Nesse exercício, am-pliou seus conteúdos temáticos e transformou os problemas de técnicano problema maior das formas expressivas. Ele que, sabendo tirar parti-do das próprias limitações, transformou o tremor das suas mãosenvelhecidas em técnica que extraiu intensidades peculiares das suaspinceladas. Ele que, às vésperas da morte, aos 81 anos, foi capaz deescrever, num desenho, ao lado de sua assinatura: Aún aprendo.

Bagagem remexida

Explicitar a própria experiência adquirida no ensino não é uma tare-fa simples, muito menos tranqüila. Em diversos momentos, ao escrevereste texto, a minha sensação foi a de tentar conter o mar numa xícara dechá. Remexer a bagagem me fez compreender melhor a resposta quePedro Nava deu a uma repórter, quando foi provocado a dizer algumaspalavras às novas gerações. Com toda a simplicidade, ele respondeu:“Nada tenho a dizer!” Diante da insistência da moça, acrescentou o quecito de memória: “Minha filha, a experiência vivida é um farol que ilu-mina para trás! O que a juventude tem diante de si é o futuro”.

Aí está um ponto nevrálgico que explica, em parte, as resistências queencontramos quando ensinamos história da educação e que se traduzemna mesma pergunta que Paul Ricoeur fez a si mesmo quando, assumin-do a perspectiva de um estudante de segundo grau entediado com a his-tória (e a geografia), procurou entender o que provocava esse tédio. Comoligar o ensino da história às inquietações do presente e às preocupaçõescom o futuro que os jovens experimentam? (Ricoeur, 2002).

Diante da sua “platéia cativa” o que faz um professor de história daeducação? O que afeta o que ele faz? Como faz? A palavra fazer parecesimples, mas não dá conta das múltiplas possibilidades do que se faz edo como se faz, nem da complexidade da relação entre ambos os aspec-tos. O ensino da história da educação é um campo de dissenso por contados múltiplos paradigmas que abraçamos com relação à educação e àsopções que defendemos com relação às teorias da história. É um campoonde se toma partido e, por isso mesmo, exige a apresentação de alter-

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nativas diferentes das nossas próprias para que os estudantes possamconfrontá-las. No entanto, qualquer que seja nosso compromisso políti-co e ideológico, o fato é o de que só promovemos a aprendizagem a par-tir de práticas significativas. Mas o que é uma prática significativa? Éaquela que desinstala, que reorganiza a nossa estrutura de conhecimen-to e nos mobiliza para a ação. É aquela que repercute interiormente doponto de vista dos afetos e da cognição.

Flagrantes de um itinerário

Comecei a ensinar história da educação de um lugar pouco confor-tável: o do desamparo. Nunca havia lecionado essa disciplina para agraduação, mas sempre há uma primeira vez. Só é possível pesar a an-gústia de não saber pelo investimento na direção do saber, o que seexplicita pelo itinerário de leitura de um educador, das horas que dedi-cou a esse exercício, fazendo-se um leitor que não somente seja capazde ler o texto, mas ler-se nele. Curiosamente, esse lugar aproxima pro-fessores e alunos, apesar das inúmeras tentativas desajeitadas de profes-sar o que se aprende. A aprendizagem no ensino foi sendo um processode descoberta de um sujeito dividido, mas entusiasmado. Quem nãocomete desacertos? Claro que os cometi, mas aprendi a lidar com omedo de errar e reconstituí minha própria trajetória refletindo, a partirdo não saber, procurando compreender a tríplice alienação (psicológica,social e política) a que foi submetida a minha geração pelo regime auto-ritário instalado a partir de 1964 (Nunes, 1987).

Havia certo conhecimento prévio. Nele foram decisivas as leiturasde sociologia da educação, disciplina da qual fui monitora no períodode minha formação pedagógica, e que, posteriormente, lecionei para agraduação em cursos de formação de professores de instituições priva-das em São Paulo. Minha trajetória no ensino de história da educaçãoteve, portanto, como introdução, o estudo sociológico da educação.Durante boa parte da minha experiência profissional os vínculos entre asociologia e a história da educação permaneceram, o que me propiciouidas e vindas freqüentes entre esses dois campos de conhecimento, ex-

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pressas também na minha dissertação de mestrado e na minha tese dedoutorado.

A sociologia da educação a que me refiro era aquela apoiada na Teo-ria da Dependência e na Teoria da Reprodução, como por exemplo ostrabalhos de Manfredo Berger (1976), Pedro Garcia (1977), Baudelot eEstablet (1976), Bourdieu e Passeron (1975), Luiz Antonio Cunha (1975),ou então sociólogos, como Bárbara Freitag (1977) que, na revisão dasteorias da educação mais conhecidas, incorporava Althusser e AntonioGramsci. A maioria dessas leituras contribuiu para fazer ruir as repre-sentações vulgares acerca das instituições pedagógicas, mas tambémprovocou, em professores e estudantes, sentimentos de indignação, im-potência e pessimismo. Colocava-se, no entanto, como pensamento al-ternativo à hegemonia dos estudos apoiados na Teoria do Capital Hu-mano, cujos temas privilegiavam a educação como investimento, seuscustos e as relações entre mercado de trabalho e formação profissional edos trabalhos inseridos numa postura pedagógica tecnicista, preocupa-da com modelos pragmáticos-utilitários que primavam por enfatizarpropostas de avaliação de cursos, de currículos, recursos audiovisuaisetc. A escolha dessas leituras sinalizava o desejo de romper com o pensa-mento pedagógico dominante, denunciando o caráter seletivo, excluden-te, reprodutor, autoritário e dominador das ações educacionais econdicionando toda mudança educativa a uma transformação estruturalda sociedade.

A questão que mobilizava a discussão naquele momento era comocompreender a transposição dos padrões educacionais de um paíshegemônico para um país periférico. A Teoria da Dependência procura-va mostrar como, no plano da sociedade subdesenvolvida, a educação(tanto a intencional como a não intencional) tinha a função de reforçaras demandas simbólicas das classes dominantes e dominadas, reprodu-zindo uma estrutura social determinada e como, no plano externo, seexercia a dominação da nação hegemônica sobre a periferia (Garcia,1977, p. 105). Nessa linha de pensamento, surgiram várias dissertaçõesde mestrado e algumas teses de doutorado com propostas de investiga-ção histórico-sociológica, publicadas no final da década de 1970 e noinício dos anos de 1980. Duas leituras foram decisivas para mim nesse

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período: Educação e desenvolvimento social no Brasil (1975), de LuizAntonio Cunha, e Escola, Estado e sociedade (1977) de Bárbara Freitag.

A primeira obra, fruto de pesquisas desenvolvidas pelo autor desde1972, teve grande aceitação nos cursos de pedagogia e foi bastante uti-lizada em concursos, citada em outros livros, dissertações e teses. Esteêxito se deve, segundo Carlos Roberto Jamil Cury, ao fato de que o au-tor efetuava o rompimento com o caráter abstrato predominante dos tra-dicionais textos de sociologia da educação, permitindo que os leitoresreavaliassem sua visão da escola como via de ascensão social (Cury,1981, pp. 155-156). Como Luiz Antonio Cunha afirmou, sua inspiraçãoreprodutivista havia sido forte e perceptível no seu livro através das ca-tegorias de reprodução, dissimulação e inculcação. A Teoria da Violên-cia Simbólica, de Bourdieu e Passeron, permitiu-lhe preencher o vazioque suas outras fontes inspiradoras deixavam a respeito dos aspectosque pretendia estudar, além de permitir, pela vertente weberiana de Areprodução (1975), a incorporação da sociologia da educação de Otá-vio Ianni, Marialice Foracchi e Luiz Pereira (Cunha, 1981, pp. 125-127)1.Ora, esses autores foram os que li quando monitora de sociologia daeducação. Eu encontrava, portanto, nessas leituras, um ambiente de re-conhecimento que me facilitava a elaboração das primeiras reflexõessobre a pedagogia. De fato, foi pelas mãos de Luiz Pereira e MarialiceM. Foracchi, na quinta edição do seu livro Educação e sociedade: leitu-ras de sociologia da educação (1970), que tive contato, pela primeiravez, com três autores marcantes na minha peregrinação de leitora: Aní-sio Teixeira, Antonio Candido e C. Wright Mills. Já no final da décadade 1970, a crítica à política educacional de Bárbara Freitag sacudiu oseducadores. Mais importante do que sua retrospectiva histórica da edu-cação, ou a análise da política educacional dos anos de 1960 e 1970, erao seu “quadro” teórico que considero a melhor síntese até então realiza-da sobre o papel e a função da educação nas teorias sociológicas e eco-nômicas.

1 Outras fontes inspiradoras de Luiz Antonio Cunha foram Paulo Freire, os “radicaisamericanos” Robert Levin e Martin Carnoy. Também, Ivan Illich e Basil Bernstein(cf. Cunha, 1981, pp. 126-127).

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Ao lado das leituras da sociologia da educação, fui descobrindo oshistoriadores da sociedade brasileira como Ilmar Rohloff de Mattos(1994), dentre outros; historiadores da educação, como Jorge Nagle(1973), Vanilda Paiva (1973), Otaíza de Oliveira Romanelli (1978),Eliane Marta Teixeira Lopes (1985), dentre outros; os filósofos da edu-cação, como Durmeval Trigueiro Mendes (1983) e Leandro Konder, queme apresentou a Antonio Gramsci em meados da década de 19802. Meupercurso multifacetado, híbrido, incluiu também leituras de psicologiasocial (Ecléa Bosi) e de antropologia cultural, influenciada que fui porRoberto da Matta e Alba Zaluar Guimarães (meus professores no cursode mestrado em educação, no inesquecível Instituto de Estudos Avança-dos em Educação da Fundação Getúlio Vargas) e por colegas queridoscomo Arno Vogel e Magali Alonso de Lima. No âmbito da antropologiapude realizar, no início da década de 1980, pesquisas que me abriramum leque de autores fascinantes (Erving Goffmann, Howard S. Becker,Gilberto Velho), ampliando meu conhecimento no âmbito das ciênciassociais e iniciando-me numa rica experiência de pesquisa que deixouem mim as suas marcas3. O contato com a investigação antropológicaantecipou a minha motivação para escrever e ensinar uma espécie dehistória antropológica, tal qual, assim o entendia, eram produzidos ostrabalhos de certos historiadores que ia lendo por sugestão de IlmarRohloff Mattos. O que constituía o fazer de Lucien Febvre (1956), RobertDarnton (1986), Georges Duby (1987), E. P. Thompson (1989) para mim,naquele momento, poderia ser definido pelo esforço que representa, nas

2 Durante uma disciplina realizada sob a condução de Leandro Konder, na PUC–Rio, acabei produzindo um texto sobre Gramsci que está citado nas referênciasbibliográficas no ano de 1990. Esse mesmo texto, com modificações, foi publicadoem Cahiers du Brésil Contemporain, Paris, n. 15, pp. 127-149, 1991.

3 Ver Arno Vogel et al., Quando a rua vira casa, Rio de Janeiro, Convênio IBAN/FINEP,1981; Clarice Nunes, “Lição de vida: aprendendo a ser professor”, Legenda, Rio deJaneiro, vol. 5, n. 9, pp. 25-43, ago./dez. 1984; Em co-autoria com Maria AparecidaFranco e Sandra Camarão, A construção cotidiana de um perfil: o professor desegundo grau, ANDE, São Paulo, vol. 4, n. 7, pp. 47-51, 1984; Em co-autoria comMaria Aparecida Franco, Hélio Silva e Sandra Camarão, “O papel do professor e suaconstrução no cotidiano escolar – um estudo sobre o professor de segundo grau noRio de Janeiro”, Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, vol. 66, n. 154,pp. 416-431, set./dez. 1985.

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palavras de Geertz (que as toma emprestadas de Gilbert Ryle), “um ris-co elaborado para uma descrição densa” (Geertz, 1978, p. 15).

Essa trajetória, compreendo enquanto escrevo, foi favorável paraque identificasse tanto questões básicas relativas à epistemologia dasciências sociais e da história quanto valores de fundo político e ideoló-gico indissoluvelmente a elas ligados. Ela também me propiciou oenraizamento da leitura em atividades práticas de ensino e pesquisa, jáque lia com o intuito de construir respostas às indagações que ia colo-cando; a flexibilização do pensamento, já que a alternância dos regis-tros me permitia cotejar lugares diferentes da produção de conhecimento,a relação entre eles e deles com as experiências vividas, além de umaatenção focalizada nos pressupostos que fundamentam a construção dediferentes versões dos acontecimentos históricos na perspectiva da edu-cação. Provocou, também, a problematização de algumas análises deautores marxistas e uma abertura maior às interpretações fenome-nológicas.

Os autores lidos, sobretudo os historiadores citados, ensinaram-meque, ao contrário de um projeto no qual as hipóteses são explicitadas deantemão, o que importava era construir essa explicitação, para que otexto ganhasse movimento e interesse. Nada estaria definido a priori,embora isso não significasse a inexistência de um plano anterior. Escre-ver a história seria também recriar uma atmosfera (aquela sugerida pe-los arquivos), preparando o leitor para o deslocamento de época, espaço,mentalidade. Como traduzir no ensino a sedução da pesquisa?

Minha atitude, nas relações que estabeleci com essas leituras, foi ade ouvir com os olhos, buscando entender não propriamente o que di-ziam as palavras mas o que se dizia entre elas, constituindo meu espaçointelectual, como ponto de encontro de diversas obras com toda a possi-bilidade de diálogo entre elas, o que pressupunha o jogo das afinidadese das oposições. Criava, portanto, um texto variorum, na expressão deOlinto Heidrun, isto é, cada texto lido era assumido na escrita e nãoestava sozinho. Gozava da companhia de outros, mesmo que não fos-sem claramente enunciados (Heidrun, 1996, p. 74).

Foi no ensino que filtrei e ordenei o que lia, buscando descobrir aposição de cada obra lida dentro de um conjunto e as peculiaridades de

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cada uma, delimitando um território de saber a partir do qual pudesselavrar o meu ensino no campo da história da educação. Ainda me recor-do do prazer com que trabalhei a disciplina introdução às ciências daeducação, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), na década de 1980, onde, com base na discussão sobre a pertinência,ou não, de considerar a educação uma ciência, enveredávamos numaventurosa viagem pela história da história, pela história da antropolo-gia, pela história da sociologia, pela história da psicologia, articulandoas “descobertas” que fazíamos às aplicações dos conhecimentos dessasáreas de estudo na pesquisa em educação.

As obras que li traduzem posições e valores diante do mundo, sina-lizando um processo de produção de sentidos que ocorre no plano cole-tivo e é tecido por uma fisiologia, uma história e uma biblioteca, comopropõe Goulemot.

O sentido nasce, em grande parte, tanto desse exterior cultural quanto do

próprio texto e é bastante certo que seja de sentidos já adquiridos que nasça o

sentido a ser adquirido. De fato, a leitura é jogo de espelhos, avanço especu-

lar. Reencontramos ao ler. Todo o saber anterior – saber fixado, institucio-

nalizado, saber móvel, vestígios e migalhas – trabalha o texto oferecido à

decifração. Não há jamais compreensão autônoma, sentido constituído, im-

posto pelo livro em leitura. A biblioteca cultural serve tanto para escrever

quanto para ler. Chega mesmo a ser, creio eu, a condição da possibilidade da

constituição do sentido [...].

[...], assim como a biblioteca trabalha o texto oferecido, o texto lido trabalha

em compensação a biblioteca. A cada leitura, o que já foi lido muda de senti-

do, torna-se outro. É uma forma de troca [...] [2001, pp. 114-116].

A biblioteca cultural, acrescento eu, serve também para ensinar. Oprocesso contínuo e perseverante de troca nas leituras foi tecendo ascaracterísticas do lugar a partir do qual ensino e que pode ser concebidocomo uma oficina de recriação da produção da história da educaçãorealizada por pedagogos, historiadores, filósofos e sociólogos da educa-ção, que tanto se distinguem pelas suas perspectivas e interesses, quan-to se aproximam pelo projeto e pela prática de interrogar fontes especí-

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ficas e outras de diferente natureza (econômicas, políticas, por exem-plo). Um lugar que reconhece as fronteiras entre a filosofia, a história ea sociologia da educação como convenções instituídas (Nunes, 1999).Um lugar no qual o desafio de uma epistemologia da história ultrapassaos limites do campo específico de trabalho intelectual dessa disciplina eabre um conjunto de interrogações e um universo explanatório que in-clui o conhecimento histórico, mas não se esgota nele (Wehling, 1992,p. 155). Um lugar que, de um lado, depende da problemática que for-mula e, de outro, das fontes que dispõe. Um lugar decidido por um corteda razão que separa a história da educação de outras histórias e, ao mes-mo tempo, a relaciona com outras histórias de sociologias de e/ou filo-sofias de. Um lugar que surge do cruzamento entre a iniciativa pessoal ea necessidade social. Um lugar que parte de uma posição gnoseológicaintermediária entre a universalidade científica e a singularidade inefá-vel (Veyne, 1983, p. 76).

O meu processo de aprendizagem partiu da sociologia da educaçãopara a história da educação, com incursões no campo da filosofia, dasciências sociais e da arte4. Esse processo faz parte de um projeto maior(menos visível) de superação da minha própria fragmentação como serhumano. Ainda, aprendi sempre em resposta às necessidades e aos de-sejos da minha prática na pesquisa e no ensino, seja como monitora,seja como professora de cursos de graduação em pedagogia e cursos delicenciatura (mas não só deles, já que minha experiência profissionalinclui a docência em todos os níveis do ensino). Ao mesmo tempo quetrabalhei no aprofundamento do conhecimento da história (do levanta-mento de fontes, das suas teorias, da investigação em arquivos, do pen-samento social e educacional brasileiro) caminhava na direção do seudescentramento, isto é, ia compreendendo que qualquer centro é uma

4 Não tive espaço, pelas opções que fiz, de tratar neste artigo das minhas relaçõescom a arte, sobretudo a literatura e a dança, embora a relação com a pintura sejaindicada no texto. Estou preparando uma reflexão específica sobre esta questão aser publicada, em breve, pela editora Cortez. A publicação, coletânea que inclui aparticipação de diversos educadores, tem o título provisório de Movimento, cons-ciência e educação e está sendo organizada pela professora Julieta Calazans, daUniversidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

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construção e não um lugar naturalmente instituído. A história da educa-ção seria então um ponto do enredo da cultura humana, estabelecidonum ambiente de tensão e luta pela destruição e ou preservação de al-guns sentidos, pela construção de outros. Como mobilizei o que aprendino ensino? É o que pretendo tratar nas próximas seções de uma maneirasucinta, que consegue realçar apenas alguns aspectos e procura levarem conta os destinatários do ensino, suas finalidades, a definição dosconteúdos básicos e de que maneira são ensinados.

A interação pedagógica

O que define a sala de aula é a interação entre professores e estudan-tes. Ao interagir com estudantes que não sabem realizar uma reflexãohistórica, ou ao menos valorizá-la, sentimo-nos desconfortáveis. Nossatendência é formular baixas expectativas desses alunos. Criticamos seuinadequado processo de seleção através dos exames vestibulares. Con-denamos a estrutura do ensino que inclui programas vastos e tempodiminuto na carga horária dos cursos de pedagogia, as imposições des-cabidas de coordenadores e/ou diretores em relação a uma efetiva preo-cupação educativa, e que opõe a aula e o cumprimento do programa aoutras situações de aprendizagem que poderiam ser mais vivas, moti-vadoras e pertinentes ao nível de interesse e de conhecimentos dos estu-dantes. Abominamos a rigidez e a segmentação da organização curricular,dos calendários e dos processos de avaliação, dentre outros aspectos.Não bastassem todos esses constrangimentos, muitos de nós trabalha-mos em mais de uma instituição, lutamos com salários insuficientes earcamos com as despesas do nosso próprio aperfeiçoamento.

Encalacrados entre o que podemos fazer e o que efetivamente con-seguimos fazer, sofremos as dores da “síndrome de um trabalho quevoltou a ser trabalho, mas que ainda não deixou de ser mercadoria”(Codo, 1999, p. 13). Toda a nossa luta é, portanto, contra a alienaçãoque produz o sofrimento psíquico nas instituições escolares ao provocara contínua tensão nas relações sociais, no controle da própria atividadedesenvolvida e na conexão entre razão e afeto. Quando essas tensões

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não são adequadamente trabalhadas, exaurimos emocionalmente e nosdefendemos evitando, tanto quanto possível, o envolvimento pessoal naatividade docente, transformando os alunos em números, esgarçando arelação de confiança, fundamental no processo educativo, lidandoinsatisfatoriamente com o controle sobre o meio de aprendizagem. En-tramos no burnout (Codo, 1999, p. 388).

Há os que, depois de conseguirem os mais altos títulos universitários,afastam-se dos cursos de graduação. Há os que permanecem enfrentandoas dificuldades de discernir entre os entraves que constituem, de fato, obs-táculos intransponíveis ao processo pedagógico e os que são desafios queestimulam o seu avanço. Presos, como adverte Codo (idem, p. 387), a uma“racionalia” predefinida que determina os conteúdos a serem dados e quedevem ser assimilados pelos alunos em determinado tempo e seqüência,tornamo-nos vulneráveis às pressões que sofremos dentro e fora da uni-versidade e que repercutem na sala de aula, fragilizando a convivência ea sociabilidade, ambos, em última instância, meios pelos quais ensi-namos. Embora reconheça a existência desses problemas e sua seriedade,não vou desenvolvê-los nessa oportunidade5. Problemas, como os deestrutura e organização institucional, são temas de discussão, posiciona-mento e embate coletivo, mas há outros de nossa integral responsabili-dade dentro da sala de aula. Sobre esses últimos, focalizarei a minha aná-lise, convidando os leitores a um exercício de imaginação pedagógica.

Essa imaginação nada tem que ver com a ficção, mas com a elabora-ção de um outro lugar mental e emocional para a resolução de problemasque nos afetam e que passa pela demolição dos nossos estereótipos e pre-conceitos, sobretudo com relação aos alunos com os quais lidamos. Vale,nessa oportunidade, estar atento à sabedoria daquele provérbio iídiche queafirma que “se nem todos se contentam com a própria experiência, con-tentam-se, no entanto, com o próprio cérebro”. Infelizmente, somos pri-

5 Para quem quiser se aprofundar na análise desses temas, recomendo a leitura deWanderley Codo, citado nas referências bibliográficas, e o livro de J. M. Esteve,S. Franco e J. Vera, Los profesores ante el cambio social, Barcelona, Anthropos/México, Universidad Pedagógica Nacional, Secretaría de Educación Pública,1995.

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sioneiros de nossas mentes e permanecemos perdidos no labirinto denossas filosofias, encontrando sempre saídas e respostas que na realida-de não permitem nem sair nem responder (Bonder, 1995, p. 40).

Não percamos tempo com o conhecimento exaurido. Saibamos, comoensina Febvre, “saber no saber, saber pedir luces”, e olhemos para nos-sos alunos e para suas dificuldades de um novo modo, como o professorCandido Portinari (1903-1962), por exemplo, que lidava com empatiaao perceber a insegurança dos iniciantes nos concursos de ingresso naUniversidade do Distrito Federal. No dia em que apanhou Héris Guima-rães copiando o desenho de sua melhor amiga, chegou de mansinho edisse:

– Não olha ali, não. Acho que você vai fazer uma laranja como tem que ser,

porque você não está viciada. [...] você é aquela pessoa que não sabe nada,

acho que você não sabe nada mesmo, mas está bom não saber nada, vem e

senta aqui [Guimarães, 1983].

Seriam tão diferentes os problemas que apontamos hoje, daquelesque apontávamos há anos? Na relação com os estudantes, o maior obs-táculo que identificamos em sala de aula para desenvolver nossos pro-gramas é a ausência do domínio da leitura e da escrita. Tem sido recorrentea nossa queixa de que os alunos não sabem ler, nem escrever. Mas quemsão esses alunos?

Nos cursos de pedagogia pelos quais tenho passado, seja em insti-tuições públicas ou privadas, encontro, em sua maioria, alunas trabalha-doras (professoras de educação infantil e do ensino fundamental,crecheiras, instrutoras de escolas dominicais evangélicas, comerciárias,bancárias, por exemplo) que fizeram esta opção, não necessariamentepor uma possível preferência por essa área de atuação. Muitas das pro-fessoras e crecheiras fazem o curso por exigência dos seus empregado-res e abrigam a esperança de uma melhoria salarial e ascensão profissio-nal. Encontro estudantes jovens, recém-saídas de escolas de segundograu públicas ou mulheres maduras, casadas e com filhos. Seus paistêm, geralmente, nível elementar de instrução; poucos concluíram o se-gundo grau. Em suas histórias de escolaridade são recorrentes episódios

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de repetência, mudança freqüente de instituição escolar e, às vezes, lon-gos períodos fora da escola. Esses eventos também aparecem nas traje-tórias dos poucos estudantes homens desses cursos. Quase todos ale-gam pouca disponibilidade para leituras ou para freqüência aos locaisde fruição de cultura, como cinemas ou teatros. Quando não está ausen-te a motivação para os estudos, faltam-lhes condições materiais. Algunsdesses estudantes carregam pesados ressentimentos contra a escola, poisnão se sentem pertencendo a esse mundo. Seu conhecimento prévio dahistória da sociedade brasileira, com raras exceções, é fragmentado eacrítico. Afirma Valéria Moreira6:

Stanislaw Ponte Preta, no Samba do Crioulo Doido, casou Tiradentes com a

Princesa Leopoldina. Está certo? Está errado? Se fosse prova de história do

Brasil a professora dava zero. O samba fez o maior sucesso. Questão de

lugar [1989, pp. 30-32].

Se o professor coloca o aluno no lugar do saber desqualificado, oaluno também coloca o professor no lugar do exclusivo responsável pelasua aprendizagem. Ele espera que o professor resolva para ele um pro-blema que é seu. O choque de expectativas é declarado. Podemos revertê-las se mudarmos nossa atitude mental. O professor renuncia à crença deque o conhecimento que o aluno traz, alicerçado nas suas experiênciasde vida, é de segunda classe, assim como abdica da idealização de umaexperiência pedagógica totalmente bem-sucedida para tomá-la como ummodelo a ser repetido (Cabrini et al., 1994, p. 15). O aluno abandona acômoda posição de esperar que o saber chegue até ele e assume a ini-ciativa de sua aprendizagem. Vamos trabalhar a parte que compete aoprofessor.

6 Valéria Moreira não cursou pedagogia. Estudou ciências sociais numa instituiçãotradicional, ainda hoje considerada referência na cidade do Rio de Janeiro. Escolhisua trajetória com o intuito de evidenciar que as dificuldades e os problemas dainteração pedagógica na tarefa de construção do pensamento não estão presentesapenas nos cursos de pedagogia e que os estudantes dos nossos cursos vivem situa-ções similares às de outros mais prestigiados.

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O universitário que está à sua frente é uma pessoa em contínuo pro-cesso de alfabetização. Geralmente, produz uma relação mecânica e in-feliz com a escrita e não domina o enunciado comunicativo culto. O queclassificamos de deficiências mais freqüentes na escrita do aluno, comoorações incompletas, falta de articulação dos parágrafos, repetições,abundante uso de conectivos, erros de concordância, pequena utilizaçãoda informação disponível etc. são transferências para a escrita das mar-cas da oralidade, de uma cultura informal e desescolarizada. Ele traz simum conhecimento prévio sobre a história como matéria escolar e sobre oconhecimento histórico. As características desse conhecimento foramestudadas por Mario Carretero, um autor que tem se dedicado à revisãoda literatura internacional sobre o ensino e à investigação das relaçõesentre os aspectos disciplinares, cognitivos e didáticos do ensino das ciên-cias sociais e da história. Esse conhecimento prévio se explicita atravésda linguagem do aluno, assim como, através dela, evidenciam-se todasas suas dificuldades, dramáticas para os professores de história da edu-cação (mas não só para estes), porque o trabalho no seu âmbito é umaatividade discursiva e de raciocínio (Carretero,1997, p. 23).

Afirma Carretero que o conhecimento prévio que o aluno traz éconstituído de construções plenas de significado pessoal e que influemna grande resistência que ele tem para modificar suas concepções. Es-sas construções são implícitas e bastante distanciadas dos conceitos ouinterpretações consideradas adequadas pelos professores. Sua força étão grande que os estudantes lidam com as novas informações de talmaneira que não só se recusam a mudar suas idéias e atitudes sobre ostemas estudados, como costumam alterar as informações recebidas paramanter suas posições. Essa resistência acontece, diz ele, porque estamoslidando com valores e para estabelecer estratégias didáticas e até admi-tir que o estudante possa ter a opção de não querer mudar a sua linhaideológica, o professor precisa partir dessa resistência, conhecê-la. Em-bora se detectem modificações na percepção dos alunos submetidos àação da escola, pesquisas sobre o alcance da interferência das diferentesposições historiográficas dos docentes nas construções pessoais dos es-tudantes mostram que, enquanto os professores trabalham com sua vi-são preferida, os alunos tendem a manter posições positivistas maismoderadas diante do que estudam (idem, pp. 22-23).

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É muito interessante uma tabela que Carretero constrói, apoiado emachados de outros autores, e que revela, num estudo tentativo, os está-gios de percepção dos estudantes sobre o trabalho do historiador, as fonteshistóricas, a compreensão da evidência histórica, a empatia com outrossujeitos no passado (idem, pp. 45-48). Darei um uso diferente às infor-mações dessa tabela, deslocando-as do arranjo proposto. Podemos reco-nhecer, nos resultados das pesquisas realizadas pelo autor citado junto aadolescentes e jovens europeus, aspectos que, de um modo assistemático,notamos também em nossos próprios alunos.

Assim, identifiquei as características do primeiro estágio de percep-ção do conhecimento histórico dessa tabela no meu contato com alunosdos cursos de pedagogia. Geralmente, os estudantes admitem que a ma-téria é necessária, às vezes interessante, sempre difícil. Consideram oconhecimento histórico como algo dado. Para eles, o professor diz averdade porque o que se sabe está correto. Não distinguem evidência deinformação e não sabem explicar o que faz o historiador, ou acreditamque seja alguém que lê documentos para simplesmente transmitir o queneles leu (idem, pp. 41-49).

O raciocínio que os estudantes trazem para as aulas de história daeducação é o da vida cotidiana, tecido sobre situações que têm relevân-cia para eles. É um raciocínio capaz de elaborar argumentos e de contra-argumentar usando a linguagem do dia-a-dia. É dinâmico e depende docontexto. Aplica-se a tarefas abertas, criando várias possibilidades deresolução de problemas (idem, pp. 108-109). É desse raciocínio que te-mos de partir.

Nesse ponto, as contribuições da sociologia do conhecimento e dapsicologia social muito ajudam à compreensão desse aluno que recebe-mos em sala de aula, e da interação pedagógica que com ele travamos. Asreflexões de Peter Berger e Thomas Luckmann (1978) sobre a constru-ção social da realidade ou o estudo das representações sociais, elaboradopor Serge Moscovici (1978), dentre outros, ajudam-nos a redimensionara importância do senso comum no qual estão mergulhados os estudantese a compreender as relações entre representações e práticas sociais.

As estruturas significantes imaginadas nas representações que os es-tudantes (mas não só eles) criam sobre o conhecimento produzido e com

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o qual mantêm contato funcionam, nos seus discursos, como hipóteses eintervêm como instrumentos organizadores de conteúdo e operadores desentido, como esclarece Denise Jodelet (1990). Funcionam como teoriasimplícitas com uma dupla função: dar conta das operações do pensamentona vida cotidiana e integrar as novidades. O contato entre a novidade e osistema de representação anterior do sujeito faz com que as representa-ções sejam tanto inovadoras quanto rígidas, às vezes dentro do mesmosistema, fenômeno que Moscovici denomina de “polifasia cognitiva”. Aspossíveis mudanças na forma de pensar ocorrem quando uma representa-ção entra em contato com outros sistemas de pensamento através daspráticas (Jodelet, 1990, p. 9). Os estudantes ancoram os conhecimentosnovos que os professores transmitem sobre posições já estabelecidas. É apartir delas que as novas informações e valores podem tornar-se familia-res e a estrutura cognitiva anterior ser superada e ou ressignificada.

Se vemos apenas o estudante como um incapacitado porque lhe fal-ta a cultura erudita, deixamos de aproveitar a oportunidade de tomarcomo ponto de partida o seu raciocínio da vida cotidiana para promovera ruptura com formas mecânicas de pensar o conhecimento histórico epromover o raciocínio denso e abstrato, que leva em conta não apenasos agentes pessoais e suas intenções na produção da história, mas tam-bém uma análise da estrutura social na qual sejam incluídas tanto asações humanas quanto as condições que lhes sustentam.

Na nossa tarefa de desconstruir as representações desabonadorasque (in)conscientemente forjamos dos estudantes, reconheçamos queexiste um saber que é produzido desde o lugar do aluno, ainda que nãolegitimado, e se a tentativa de produzir um discurso sobre essa questãoé válida, mais relevante é instituir, na prática, um outro aluno, devol-vendo-lhe a palavra, sobretudo a palavra escrita.

Como diz Valéria Moreira, autora-testemunha da sua trajetória es-colar:

No ginásio aprendi com Silva, o Joaquim, que Caxias transformou-se no herói

da Guerra do Paraguai. Anos depois li em Galeano, o Eduardo, que o Paraguai

era, então, o único país independente da América Latina e, pelo fato de sê-lo,

se recusava a comprar produtos industrializados da Inglaterra em troca da

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venda de matéria-prima. Pois bem, a Inglaterra armou a maior estratégia e o

Brasil, a Argentina e o Uruguai entraram na história de gaiatos. O Caxias saiu

herói e o Paraguai ficou arrasado no mínimo porque a guerra deu conta de

grande parte da população masculina econômica e sexualmente ativa.

O Joaquim conta a história de um jeito, o Eduardo conta de outro e a Valéria

só sabe, de fato, que paraguaio odeia brasileiro.

A escola, dependendo da conjuntura considera o que Joaquim falou ou o que

o Eduardo disse. O que a Valéria sabe, embrulha e joga no lixo. Não é saber.

[...]

Se fôssemos levar em consideração os indivíduos que constituem as turmas

que ano após ano ingressam na universidade, os problemas aí discutidos se-

riam os que constam nos currículos oficiais ou seriam outros? Se levássemos

em consideração não os indivíduos mas as classes sociais, de que forma a

luta de classes se explicitaria na composição curricular e nos procedimentos

pedagógicos? [Moreira, 1989, pp. 31-47].

Toda a dificuldade que o professor de história da educação sente nocontato com turmas heterogêneas quanto à capacidade de percepção eraciocínio histórico é passar dos estereótipos sobre o conhecimento his-tórico para o entendimento de que o conhecimento histórico é construído.Pensar seria justamente viver a experiência da relação entre sujeito eobjeto; assumir a diferença das representações e espantar-se com o desco-nhecido. Só o trabalho duro de suspensão das certezas (as nossas e as dosoutros) permite que habitemos plenamente nosso próprio mundo, princi-piando a aprendizagem de um certo vocabulário, um certo estilo de inter-rogar, de dar inteligibilidade ao que se aprende, de pensar historicamente.

Para que ensinar história da educação? O queensinar?

Todo professor de história da educação conhece aquela sensação deque há demasiada história para ser ensinada em tão pouco tempo. Nadiscussão das reformulações curriculares, a história da educação, comexceção de algumas poucas instituições, tem perdido espaço para outras

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disciplinas, cujos professores asseguram trabalhar seus temas a partir deuma perspectiva histórica, como se isso suprisse as necessidades do alu-no na construção do raciocínio histórico.

Essa disputa, que resulta em perda de espaço da história da educaçãodentro dos currículos, revela a existência de um sentimento difuso de queessa disciplina está muito distante do que os educadores estão fazendo eexperimentando no presente. Essa necessidade, pensam alguns, seria maisprontamente atendida por disciplinas voltadas para questões relativas aoplanejamento educacional ou políticas públicas de educação, por exem-plo. Apesar de toda crítica às marcas disciplinares, elas continuam fortese não temos conseguido convencer nossos colegas, muito menos os alu-nos, da importância da história da educação. Infelizmente, ainda é percep-tível a necessidade que muitos docentes têm de uma história militante nopior sentido da expressão, isto é, aquela que define alguns sentidos eapenas eles como os únicos legítimos de serem ensinados, numa centra-lização teórica perniciosa, discurso que cala os outros e não se autodenun-cia em seu alto grau de generalidade, isto é, não estabelece seus própriosdomínios e limitações (Nunes, 1999, p. 57).

Paul Ricoeur observa que a projeção dos conteúdos que ensinamospara fora do tempo presente e para fora do espaço em que circulamosfaz com que a história, mesmo a mais recente, pareça distante da vida e,no entanto, um certo distanciamento – como assegura – é constitutivodo conhecimento histórico (2000, p. 372). Além da referida projeçãodos conteúdos estudados para fora do tempo presente e de um espaçoconhecido, a reelaboração didática dos conhecimentos produzidos nocampo da história da educação em conhecimentos ensinados pelos cur-sos de pedagogia provoca uma alienação de outro tipo, já que estes sãoseparados da própria fonte que os gerou.

Como mostra Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro, em sua tese dedoutorado (2002), esse processo de separação e recriação dos conteú-dos incluiria operações complexas, descritas por Chevallard quando assu-me a concepção de transposição didática de Verret7. Alguns conheci-

7 Segundo a autora citada, a noção de transposição didática foi enunciada por Verretem sua tese Les temps des études, defendida na França em 1975. No início da

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mentos produzidos, ou partes deles, são selecionados em uma nova sín-tese cujo objetivo é a sua pedagogização. Esta se orienta pela racio-nalidade que pretende promover a adequação dos conteúdos seleciona-dos ao público a que se destina. Esses conteúdos selecionados acabamse dissociando da subjetividade que os produziram, tornando-se des-personalizados. São, então, racionalmente separados em seqüências quegarantem a ordenação e o caráter progressivo da aprendizagem e expli-citamente definidos em termos de abrangência e extensão. São avalia-dos através da elaboração de procedimentos de verificação da aprendi-zagem que avalizam a aquisição do conhecimento pelo estudante8.

Esse processo acarreta algumas conseqüências, como chama aten-ção a autora. A primeira delas: o saber ensinado, sofre uma descontex-tualização com relação às problemáticas do campo científico a partir doqual foi gerado. Desenraíza-se graças ao constrangimento que a culturaescolar impõe. Torna-se um outro saber (recriado pela cultura escolar)que necessita da interlocução com o saber acadêmico, através de umadiscussão epistemológica, para que seus sentidos possam ser revelados.Esse distanciamento dos conteúdos ensinados em relação ao saber acadê-mico que o gerou provoca uma contínua necessidade de compatibilizaçãocom este último e com as próprias demandas da sociedade, já que aque-les “envelhecem” (2002, pp. 82-83).

Destaco a afirmação da autora, apoiada em Chevallard, de que osprofessores trabalham na transposição didática, mas não são seus prin-cipais autores. Quando o professor produz “o seu curso” a transposiçãodidática já se iniciou há muito tempo, através de técnicos, professoresmilitantes, representantes de associações, ao que acrescento, grupos e

década de 1980, Chevallard e Joshua utilizaram este conceito no campo do ensinoda matemática (cf. Monteiro, 2002, pp. 78-19).

8 Chevallard denomina essas diferentes operações de dessincretização, desperso-nalização, programabilidade, publicidade e controle social da aprendizagem.Monteiro faz reparos a essa concepção, seja pelo uso complicado do termo transpo-sição (que designa mais deslocamento do que ruptura no processo de constituiçãode saberes), seja pelo fato de o autor não levar em consideração outros saberes queentram na constituição do saber escolar além do saber ensinado, seja por deixar delado aspectos axiológicos, o que não discutirei nesse texto. Ver Monteiro, 2002,especialmente pp. 78-89.

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publicações especializados (2002, p. 81). Se aceitarmos essa afirmação,o professor em sala de aula – elo de uma corrente que se inicia com aprodução do conhecimento científico e chega ao aluno – é sempre umco-autor na produção do conhecimento pedagógico. Ser co-autor nãodiminui a importância do seu trabalho. Pelo contrário. Dele se solicitaque saiba o fundamental: para que ensina história da educação.

Quando ensino história da educação para estudantes como os quedescrevi, minha intenção é a de que cada um deles, na medida dos seuslimites e possibilidades, se dê conta mais profundamente da sua própriaexperiência como pessoa e aluno, aprendendo a usar uma linguagempública e, portanto, mais elaborada. Tenho o objetivo central de contri-buir para que desnaturalizem a escola na qual estudam e/ou trabalham,isto é, compreendam os processos que a engendraram, a disseminaram ea colocaram em xeque. Essa intenção e esse objetivo vão se corporificar(ou não) em maneiras de organizar o trabalho pedagógico, traduzir cer-tos temas em problemas, programas, projetos de atividades e referênciasbibliográficas para as tradicionais disciplinas história da educação gerale história da educação brasileira9. O recorte, abrangência, ordenação,articulação e abordagem dos temas definidos dependem da proble-matização que se faça, do tempo e dos recursos disponíveis (sobretudoda bibliografia), da adequação junto aos estudantes. Suas soluções nãosão simples e colocam no centro da ação pedagógica a postura episte-mológica que assumimos e as concepções de educação que abraçamos.Essa complexidade não escapou à estudante Valéria que, ao refletir so-bre as “maravilhas” da universidade na qual estudou, advertiu:

9 Alguns exemplos de temas possíveis: A polissemia dos termos história e educação.Fontes e teorias da história da educação. Modelos culturais de transmissão dossaberes/fazeres e de produção do conhecimento (a oralidade, a escrita e a mídia).Raízes da cultura e da escola ocidental. Criação da escola moderna, seu desenvol-vimento e crise (concepção de infância, os espaços e tempos escolares, objetosescolares e métodos de ensino, teorias pedagógicas e formação de especialistas).Culturas orais e cultura escrita em confronto na sociedade colonial brasileira; pro-jetos e práticas escolares para a formação da aristocracia e das camadas popularesna sociedade imperial brasileira; projetos de República e a implantação da escolamoderna; redes de escolarização e projeto repartido de educação no país; acordosestrangeiros e educação brasileira.

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[...] uns e outros (professores) não tinham o hábito de explicitar, aos educandos,

de onde vinham nem aonde pretendiam chegar, como se soubessem de ante-

mão, o que era bom para nós.

[...] Aliás, adequar os conteúdos à realidade da “clientela” era normalmente

confundido com “baixar o nível”, donde talvez possamos inferir que os con-

teúdos abstratos estavam acima do nível dos alunos concretos. Mas como

alguns alunos estavam em “outro” nível, era necessária uma complicada ope-

ração matemática para se chegar a uma média aritmética que atendesse às

necessidades de todas as faixas de alunos que constituíam a turma. Tal ope-

ração, porém, resultava, na maioria quase absoluta dos casos num quebra-

cabeça ao qual ficavam faltando peças fundamentais [Moreira, 1989, p. 43].

Que peças fundamentais seriam essas? A valorização da experiênciado aluno, a contextualização dos conteúdos ensinados e das fontes his-tóricas utilizadas, a desconstrução do senso comum e o trabalho com osconceitos, uma outra postura perante a avaliação. Reconhecer o que épreciso é mais fácil do que realizá-lo. A tradução metodológica das pos-turas teóricas em ações na sala de aula é um percurso árido, “el cual esun como camino por el Sahara, en el conocimiento no se construye comoentretenimiento ni por simples preocupaciones teóricas” (Zemelman,2001, p. 7). A última seção do meu texto será destinada, portanto, àapresentação de algumas situações pedagógicas.

Como ensinar?

Os preparativos para uma aula nos sintonizam com as situações quevamos viver com os estudantes, embora a organização pedagógica sejaardilosa pela cadeia de controle (mais ou menos rígida, dependendo dacultura institucional) que se estabelece de diretores sobre coordenado-res, de coordenadores sobre professores e de professores sobre alunos.Cremos que o “provão”, a que vêm sendo submetidos os alunos univer-sitários, aperta o nó das exigências feitas sobre os docentes, sobretudonas instituições privadas. De forma distorcida, a ação pedagógica acabapor ser direcionada pela avaliação “dos estudantes”, “do curso”, “da

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instituição” e não pelos objetivos eleitos. No entanto, não temos efetivocontrole sobre o processo de aprendizagem dos nossos alunos. Esta éuma aposta aberta sem qualquer garantia de sucesso. O professor ensinanão propriamente porque tem muito conhecimento, mas porque algo daordem do indizível, que se sustenta no seu gesto de ensinar, e que incluio conhecimento, mas também a intuição e a sensibilidade, toca o alunoe mobiliza o seu desejo de aprender. Ele ensina menos pelas palavras emais pelo contágio do seu entusiasmo com relação àquilo que se propõea ensinar (Tuchman, 1991). A importância da atuação pedagógica doprofessor é mais perceptível quando a interação entre ele e o aluno falhae o aluno, ao invés da sala de aula, prefere os corredores.

Somos da opinião que as escolas devem ter muitos corredores com bancos,

onde as pessoas possam se sentar para simplesmente não fazer nada quando

lhes der na telha e que, evidentemente, a permanência aí não seja proibida

pela direção.

Onde, então, não há corredores se faz necessário criá-los! [Moreira, 1989, p. 63].

Desenvolvimento de projetos articulados aoprograma de ensino

Que fazer para que os alunos prefiram as salas de aula? Valorizemossua experiência. Essa valorização pode principiar pela elaboração dasua trajetória de vida, na qual se inclui a memória escolar. A experiênciaque tenho tido com estudantes de graduação e licenciatura tem sidoencorajadora. A discussão das suas memórias escolares aponta, na cir-cularidade dos testemunhos, problemas recorrentes e significativos daeducação brasileira que podem ser tratados pelo professor no plano co-letivo como eixos organizadores de discussão. Permite trabalhar sobreos lugares de memória (bibliotecas, arquivos, museus, a própria escola),os objetos de memória (fotos, cadernos, livros, diários), o movimentodas memórias na história e as relações entre memória e esquecimento.Alerta os estudantes para o fato de que quando confeccionam sua me-mória escolar estão construindo representações de si próprios para eles

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mesmos e para os que os rodeiam. Estão instituindo também um modode lembrar, de estruturar suas idéias para serem transmitidas. Estão ain-da não só produzindo conhecimento, mas também ressignificando a edu-cação e a cidadania.

Quando propomos essa atividade, resgatamos a memória, na acepçãoda qual nos lembra Paul Ricoeur, ou seja, como aquela primeira abertu-ra que os seres humanos estabelecem com o passado (2002, pp. 374-375).Costumo iniciar meus semestres letivos nos cursos de graduação comessa atividade, o que dá um sentido mais preciso ao meu trabalho: per-mitir que o estudante refaça o trajeto da memória à história. Trabalharcom a memória do estudante é uma forma de estimular o reconhecimen-to de si mesmo, a valorização da sua experiência e a liberação dos entra-ves que coloca à comunicação quando se sente inseguro por não dominarainda um vocabulário especializado.

As autobiografias, as memórias e diários têm constituído documen-tos singulares e decisivos para a reconstituição de aspectos dos proces-sos educativos de outras épocas históricas, com ricos testemunhos sobreos modos de educação familiar, escolar e ambiental de determinadasgerações ou certos grupos sociais, aspectos concretos de vivências dotrabalho e cultura escolar (uso dos espaços e tempos escolares, percep-ção que os professores têm de si mesmos como grupo profissional, pro-cessos de aquisição de leitura e escrita, seus usos e efeitos, a formaçãode comunidades de leitores etc. (Viñao Frago, 2000; Souza, 2000; Lopes& Galvão, 2001).

Os arquivos das escolas, embora quase nunca usados no ensino, tam-bém ajudam o estudante a compreender os problemas da produção deuma memória graças à dispersão e à destruição dos acervos escolares(Nunes, 1992). No entanto, será a nossa própria utilização dos registrosque as escolas guardam, mesmo lacunares, que vai, ao mesmo tempo,ajudando a forjar e a espalhar a consciência da sua importância junto àsinstituições que os portam. Por que não utilizá-los nas atividades curri-culares aí desenvolvidas? Quando as escolas começam a organizar a suamemória em torno de pequenos museus escolares, ou exposições, os ar-quivos costumam emprestar seus documentos e apenas nessas ocasiõeseles são solicitados, mas por que não trabalhar os dossiês dos estudan-

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tes, os álbuns fotográficos, os jornais ali produzidos como material paraprovocar a aprendizagem de disciplinas como a nossa?

Em minha experiência pessoal, as memórias como fonte de pesqui-sa histórica em educação constituem a ponta de um iceberg que vamosgradativamente desnudando. Quando seguimos as pegadas do que sedisse sobre a escola, trabalhamos com memórias agarradas a um “con-texto” de infância que se remete a uma doxa urbana mutável, recortadapelas lembranças envolvidas na escrita, na escuta, no momento e noscostumes. As memórias dos alunos e professores, dos poetas e dos cro-nistas da cidade compõem, de maneira sempre mutável, o que chamaría-mos de “realidade” da escola e os sentimentos e as opiniões que sobreela se forjaram. É nessa imbricação que chegam até nós múltiplas per-cepções do espaço escolar, percepções que se reenviam incessantemen-te umas às outras e que enlaçam também imagens do espaço urbano,constituindo um estoque de informações criticamente trabalháveis.

Na década de 1980, tive a oportunidade de realizar um levantamen-to das trajetórias de estudantes e professores que haviam freqüentado aescola pública carioca nos anos de 1930. Esse trabalho foi realizadocom alunos de graduação do curso de pedagogia noturno e diurno, numafaculdade particular isolada, durante um semestre, e combinou históriatemática com história de vida, pois buscávamos relacionar o que já “sa-bíamos” de modo informal sobre o tema com as informações das expe-riências vividas dos depoentes.

Realizamos em conjunto um roteiro básico que acabou permitindorecolher, numa experiência-piloto, depois ampliada, informações sobreo “contexto” da infância (a família de origem, a casa, o bairro, as rela-ções de vizinhança e o lazer) e o “contexto” das escolas primárias nasquais os entrevistados trabalharam. As entrevistas foram gravadas,transcritas e analisadas em conjunto. Os resultados foram além das ex-pectativas iniciais. Chegamos a obter detalhes que sequer imagináva-mos até sobre outros momentos inicialmente não previstos no projeto.Obtivemos também informações relevantes sobre estrutura e organiza-ção escolar, o currículo, método e sanções pedagógicas, a formação doprofessor primário, seu acesso e trajetória na carreira. Os resultados ini-ciais desse trabalho coletivo foram publicados na revista da faculdade

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(Nunes, 1985). Alguns anos mais tarde, os resultados dessa pesquisa,confrontados com fontes de arquivos privados, foram utilizados paraelaborar uma investigação de maior fôlego sobre a escola pública nacidade do Rio de Janeiro.

Essa experiência pedagógica teve uma atmosfera que se aproximou,guardadas as devidas peculiaridades, da experiência de camaradagemque o professor Candido Portinari viveu na Universidade do DistritoFederal, em meados da década de 1930, ao transformar sua sala de aulade artes plásticas numa espécie de ateliê do “Quatrocento”, onde todosos problemas relativos ao ensino eram administrados pelo mestre e seusalunos, driblando exigências burocráticas e mostrando aos estudantescomo lidar com a adversidade. Se não havia pincel redondo, pintava-secom pincel de parede, com escova de dentes, com bucha de pano, com odedo. Héris Guimarães nunca esqueceu essa lição de vida. Foi dessaforma que aprendeu a trabalhar com alunos ricos, “remediados” e po-bres (Guimarães, 1983).

Projetos pedagógicos como o que citei, ou a ele assemelhados, criamuma escuta motivada e introduzem atitudes da pesquisa no ensino. Sãofactíveis no tempo mínimo disponível e dão a oportunidade ao aluno, nãosó de entrar em contato com os problemas e possibilidades do métier dohistoriador, mas também de produzir textos que têm significado para alémda avaliação do professor, criando um circuito de leitura entre os estudan-tes e incentivando-lhes o hábito de correção contínua de seus própriostextos. Reescrever não é castigo. É necessidade do ofício de quem lidacom a palavra escrita. É a humildade (e não humilhação) de refazer, quetambém está presente em outras aprendizagens.

Quando se pinta, tem-se que pintar com humildade. O quadro que se faz em

escola, em que se está aprendendo, ou em que se está pesquisando, é um saco

de pancada, vale tudo. Não se deve ter amor ao quadro, mas amor à arte, ao

que se está fazendo.

[...] O mistério é pegar o quadro como se não soubesse de nada, como se

fosse o primeiro quadro, porque de fato é uma coisa nova que você vai fazer

[Guimarães, 1983].

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A questão do significado da tarefa também é fundamental quandofocalizamos os tradicionais seminários realizados por equipes de alu-nos. O que Valéria Moreira descreve em 1989 continua a acontecer em2003 nas salas de aula:

Os seminários geralmente eram feitos em grupo. Ao abordar três capítulos de

uma obra, o mais comum (num grupo de, por exemplo, seis pessoas) era

dividirmos cada capítulo ao meio, de tal forma que cada um ficava encarre-

gado da metade do capítulo, e na hora da apresentação funcionávamos como

os três sobrinhos do Pato Donald: o primeiro começava, o segundo continuava

e o terceiro concluía. Após uma semana já não sabíamos mais sobre o que

tínhamos falado.

Se chegamos a ler um livro por inteiro foi muito. Geralmente líamos um ou

dois capítulos. Pensamos em propor à direção da escola que incluísse no

currículo um curso sobre fichamento de texto; isto porque todos os professo-

res nos pediam fichamento, mas nunca ninguém ensinou como deveria ser

feito [Moreira, 1989, pp. 43-44].

Meus melhores resultados com os alunos foram obtidos quando con-seguia criar a oportunidade de que apresentassem seus trabalhos paraum público mais amplo, para além da sala de aula. Cheguei a prepararseminários com estudantes de graduação que foram apresentados, comoculminância de um processo de estudos, ao final do semestre, para di-versas turmas da faculdade. Dentro de sala de aula foram práticas esti-mulantes os seminários realizados em torno da vida e obra de educadoresescolhidos (de preferência lidávamos com diferentes obras de um mes-mo autor) ou de romances de autores brasileiros e estrangeiros. A discri-minação das tarefas e o cronograma de atividades dos seminários eramdefinidos em conjunto e com antecedência. A responsabilidade da leitu-ra era distribuída no início do semestre, assim como datas-chave de acom-panhamento das tarefas. Os seminários só ocorriam após a leitura e odebate em classe que preparava a redação de pequenos textos a seremapresentados. Esse tipo de trabalho ajuda o estudante a forjar, se é quenão tem, hábitos de leitura, estudo e escrita. Obriga-o a lidar com o livroem sala de aula (e fora dela), a listar temas centrais e secundários nas

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obras lidas, a pesquisar obras de comentaristas, a obedecer e/ou refor-mular roteiros de trabalho previamente estabelecidos, a compartilhar osseus achados.

A clareza da escolha quanto a um livro, e não outro, é fundamental.Quem nunca praticou este tipo de proposta, pode fazer uma experiênciaexploratória, com a indicação da leitura de um mesmo texto para toda aturma, e o planejamento de atividades comuns antes de se lançar à varie-dade de experiências de leitura em sala. A mesma advertência vale parauso de filmes de época ou vídeos educativos. É preciso um trabalhoanterior do professor sobre este material antes de sugerir qualquer ativi-dade aos alunos. Mais significativo do que fichas de acompanhamentoda atividade é a colocação de questões que ajudem a problematizar asrepresentações de educação que emergem desses e de outros recursos,como poesias, crônicas, letras de música, cartilhas, livros didáticos, ca-dernos, artigos de jornais. Vale aí a advertência que fazem tanto Marce-lo Badaró Mattos (1998) quanto Paulo Knauss (2001) sobre o uso dedocumentos em sala de aula: não são adereços.

Esses tipos de atividades estimulam os alunos. Lembro-me, por exem-plo, da empolgação e empenho dos estudantes lendo Menino de enge-nho, de José Lins do Rego; Olga, de Fernando Morais; 1968: o ano quenão terminou, de Zuenir Ventura; 1984, de George Orwell, entre outros.Esse tipo de proposta exige o cuidado na escolha dos livros e um estudoprévio do professor para avaliar que aspectos dos livros lidos contribuempara fazer compreender melhor as práticas educativas e podem ser arti-culados tanto a temas privilegiados no programa, quanto a questões daprodução da história ou a resultados de investigações recentes no âmbi-to da história da educação e/ou das ciências sociais.

Trabalhar com romances traz toda uma possibilidade de discussãosobre as aproximações e distanciamento entre eles e as narrativas histó-ricas, partindo-se da premissa de que há diversas maneiras de contar opassado. Quando o romance escolhe o passado “real” e o povoa compersonagens de fantasia que podem realizar ações e expressar sentimen-tos comuns a personagens de outras épocas, cria enredos que ajudam acompreender melhor a própria história, porque o romancista desenha oprocesso pelo qual certas causas vão produzindo efeitos. Parece-me que

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esta técnica está presente na pesquisa histórica, apenas com uma dife-rença. O romancista parte da pesquisa histórica e inventa os persona-gens e as ações tentando aproximá-las da realidade modelada pela culturada época na qual pretende construir a sua trama. O historiador realiza apesquisa dando contorno mais nítido a atores e comportamentos mode-lados pela cultura da época na qual seu interesse está centrado. Ele tam-bém inventa, joga arriscadamente numa hipótese, mas sua invenção équalitativamente diferente da do romancista, já que dele se exige quedemonstre o que afirma.

Se sucumbirmos à rotina da sala de aula, ela se torna insípida,empobrecida. O que conta não é a quantidade de estímulos e assuntos,mas o envolvimento do aluno e o esforço de professores e estudantespara fazer bem feito o que se faz em sala de aula. O que conta é um en-contro significativo. A opção por esses projetos de trabalho exige umaproveitamento integral e constante das horas dedicadas às aulas, a dis-tribuição equilibrada do tempo entre várias atividades previstas e suacoordenação atenta por parte do professor. Este não é o único provedorde recursos para o ensino. Essa tarefa pode ser partilhada com o estu-dante e a instituição escolar, mas cabe a ele apontar e reforçar essa pos-sibilidade. Ele pode indicar, por exemplo, caso o estudante tenha acessoà internet, sites interessantes para pesquisa na área ou ainda estimular osalunos, não só a estudarem os conteúdos escolhidos, mas a elaborarem,com ele, a partir da compreensão de um assunto e de sua síntese, o ma-terial didático a ser utilizado com a turma (transparências, no caso douso de retroprojetor ou, até, com mais ousadia, apresentações em PowerPoint). Através de procedimentos mais ou menos simples (dependendodas circunstâncias) humanizamos, colorimos e dinamizamos a sala deaula, tornando, de fato, os estudantes co-autores importantes do nossotrabalho e rompendo com a cadeia normatizadora do conhecimento queaprisiona os agentes da prática educativa no óbvio (Knauss, 2001, p. 33).Se a situação que vivemos em sala de aula nos deprime está na hora dearriscar um novo caminho. Que temos a perder?

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A leitura, compreensão de textos e o trabalho comos conceitos

É recorrente o sentimento entre os professores de que o aluno resis-te ao trabalho conceitual. Alguns trazem uma verdadeira aversão pelostextos teóricos. Como operar o trânsito da palavra ao conceito? Minhainsatisfação com o que observava ser o uso de um jargão, mas não odomínio de um conceito, levou-me diversas vezes a alterar tanto meusmodos de proceder em sala de aula, quanto a bibliografia utilizada. Va-léria Moreira sinaliza, com bom humor, a dificuldade do estudante:

As palavras, que ali subiam como num piscar de olhos à categoria de concei-

tos, saíam das nossas bocas como sapo pulando no brejo. Falava-se muito, por

exemplo, em classe dominante. Entidade tão abstrata como Deus no céu, essa

classe, na terra, era a grande responsável por todos os nossos males. De con-

creto, o certo é que ali, dentre aquelas paredes, jamais foi encontrado um re-

presentante legítimo daquela classe para que pudéssemos matar a curiosidade,

vendo-lhe a cara e a coragem, e submetê-lo a algumas experiências laborato-

riais que comprovassem o que os livros diziam [Moreira, 1989, p. 44].

Os conceitos ou categorias são instrumentos do pensamento que aju-dam o historiador a organizar o material coletado, a partir de perguntas,e oferecem inteligibilidade ao problema focalizado (Lopes, 1994, p. 20).Eles também têm uma história que precisa ser reexaminada e são maiscompreensíveis quando examinamos o seu uso pelos autores estudadosa partir da perspectiva historiográfica escolhida. Como se faz isso? Te-nho tentado realizar leituras conjuntas com os estudantes em que colocoo foco sobre o modo como o autor constrói a sua argumentação, o queimplica examinar a forma como usa conceitos, mas não só eles10.

10 Estudamos também as metáforas e o seu papel organizador e persuasivo que estápresente no processo inicial de aquisição do conhecimento pela sua característicade analogia condensada e facilitadora da comunicação. As metáforas também es-tão presentes nos textos. Existe, como advertem Mazzoti e Oliveira, uma continui-dade funcional entre o senso comum, o pensamento filosófico e o conhecimento

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Escolho propositadamente textos curtos e densos até para exploraras possibilidades de estudo que exigem: exame da articulação das idéiase do trânsito de afirmações particulares para enunciados gerais; consul-ta a dicionários e obras de referência; a remissão a outros textos do autorlido e a textos selecionados de comentaristas; a elaboração de glossáriose sínteses. O procedimento é o de “desbastar” o texto por dentro e desdo-brar certos fios de pensamento, com implicações para a construção doraciocínio histórico. Os textos curtos são lidos também com os objeti-vos de desencadear a discussão de um tema e rever pontos de vista jádebatidos. Geralmente, em um semestre, concilio a leitura de um livrocom diversos textos curtos. Quando não encontro textos curtos que con-sidero adequados à problemática em foco eu mesma pesquiso o assuntoe os escrevo. Como adverte Geraldi: “A leitura de um texto curto [...]não exerce uma função aleatória na sala de aula. Com os textos curtos, oprofessor poderá exercer sua função de ruptura no processo de compreen-são da realidade” (2002, p. 64).

Um dos conceitos ou categorias fundamentais é a noção de tempo. Ahistória, como sugere Paul Ricoeur, apresenta uma maneira de recortá-loque difere da conversação cotidiana e da narrativa literária (2002, p. 370).Aí pode ser focalizado e debatido o uso simultâneo de distintas nomen-claturas e seus significados: o tempo do relógio, o tempo das conjuntu-ras, o tempo das eras, os marcos históricos. É importante que o estudanteperceba que periodizar já é interpretar e que existe uma simultaneidadede tempos num mesmo recorte empírico (Carretero, 1997, pp. 39-40;Zemelman, 2001, p. 6). A partir de pesquisas realizadas procuro mostrarque a interpretação exige esforços diferentes se acompanhamos as exigên-cias do próprio objeto de estudo. Assim, para entender a crise da Univer-sidade do Distrito Federal em 1935, na qual ensinou o pintor CandidoPortinari, foi preciso acompanhar detalhadamente os eventos políticos epedagógicos no tempo da curta duração. Já para entender o peso de cer-

científico. Nesses últimos, porém, o modo de operar estabelece acordos em tornode quais procedimentos são considerados legítimos (2000, pp. 17-18). Estejamosatentos às metáforas que os estudantes usam para trabalhar sobre elas.

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tas decisões políticas quanto aos testes aplicados nas escolas públicasprimárias cariocas foi preciso retroceder à década de 1910 e prosseguiraté a década de 1940, indo além do recorte estabelecido.

O descompasso entre alunos e professores ocorre, como salientaCarretero, pela tendência dos primeiros explicarem acontecimentos his-tóricos em termos das intenções dos sujeitos e os segundos tenderem atrabalhar com modelos explicativos históricos de tipo estrutural (1997,pp. 55-71). O que importa é fazer a travessia entre um pólo e outro,definindo atividades com objetivos intermediários, tais como: distin-guir e contextualizar diferentes tipos de fontes primárias relativas aoobjeto de estudo; construir argumentos práticos sobre ações e eventosrealizados e que funcionem como hipóteses explicativas; introduzir osconceitos de modo progressivo e a partir de narrativas históricas. A trans-missão de conceitos desenraízados dos textos em que se dá o seu usoresulta numa aprendizagem mecânica. Minha proposta vai na direçãoinversa, ou seja, operar com textos (ou trechos selecionados deles) quepermitam perceber o conceito em ação e trabalhar sua polissemia, seudesdobramento em outros conceitos, suas variantes.

Duas atividades motivadoras e que suscitam discussões proveitosassão pesquisas exploratórias de curto alcance com público diferenciado epesquisas com recortes temporais bem delimitados a partir de eventoshistóricos escolhidos. No primeiro caso, os alunos fazem um sucintotrabalho de campo entrevistando algumas pessoas de diferentes sexos,faixas etárias, classes sociais, situação profissional sobre sua visão dehistória e de educação. Essa atividade, muito simples, é enriquecida comcontribuições de autores de diferentes tendências, o que permite a com-paração e provoca muitas questões, algumas das quais apontam para asrelações entre presente e passado, o papel da escola, da televisão e daimprensa na disseminação de certas representações, peculiaridades decompreensão, se notadas, em grupos com determinadas características.No segundo caso, o estudante lida com as diferentes visões pelas quaiso mesmo evento é retratado, dependendo da visão de mundo, da posturae das escolhas de quem o relata. Algumas vezes, temos o prazer de veresses pequenos trabalhos se desdobrarem em monografias de final decurso.

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Em ambas as atividades os alunos procuram informações e as orga-nizam em pequenos textos. Esses textos, a princípio, trazem as marcasda informalidade (frases soltas, parágrafos sucintos, observações) e ser-vem para explorar o que aprenderam. É a partir dessa escrita informalque se inicia a escrita formal. Os alunos reescrevem, ampliando e refor-mulando aspectos que a discussão apontou, sob a orientação do profes-sor. Essa reelaboração pode ser executada de forma variada: em duplas,em grupos, e mesmo individualmente. Antes da sua realização, as ativi-dades sugeridas precisam ser cuidadosamente explicadas e os resulta-dos discutidos em conjunto. O feedback do professor é fundamental esua perseverança na correção solidária traz resultados muito bons. Quan-do a turma é numerosa trabalho, buscando o efeito de demonstração,sobre algumas respostas e crio condições de os estudantes refazeremseus trabalhos em conjunto e/ou individualmente, após o debate coleti-vo. Se o estudante escreve apenas nas provas, perde a oportunidade deexercitar-se sem a carga de tensão que uma situação de avaliação sem-pre acarreta para todos os envolvidos. No entanto, a avaliação pode,sem caráter punitivo, estar presente o tempo todo como diagnóstico ecorreção de rumos do ensino em sala de aula. O exercício dessas açõespedagógicas implica dar atenção ao que o aluno produz e estar recepti-vo para uma constante negociação da realidade.

A multiplicidade de sentidos com que lidamos nos obriga a não re-duzir as atividades didáticas no ensino da história da educação ao pro-blema ideológico e conseqüente substituição de uma versão da históriapela outra. Quando escolhemos uma versão, criamos arbitrariamenteuma hierarquização, tanto com relação às interpretações do passado,quanto às interpretações do presente. É preciso ter consciência dessegesto, portanto. Essa ordenação classifica e essa classificação é a ques-tão fundamental contida na relação entre conhecimento e poder, que seexpressa não apenas na avaliação, mas na existência de códigos queimpregnam as relações pedagógicas e que nem sempre se comunicam,pois nem todos os discursos estão autorizados a penetrar na instituiçãoescolar. De qualquer forma, as provas e/ou outros instrumentos a partirdos quais se atribuem notas aos alunos são instrumento de poder doprofessor. Há aqueles que criam várias chances de os alunos “tirarem os

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seus pontinhos”, mas há os que são implacáveis com a falta de familia-ridade dos estudantes com os autores lidos ou com a norma culta. Algu-mas experiências são desastrosas.

Um belo dia, numa prova, caiu uma questão sobre o método dialético. De-

pois de termos lido algumas vezes o prefácio de Introdução à crítica da

economia política e termos ficado intrigados com o fato de Marx, o Karl, ter

conseguido sintetizar em meia dúzia de páginas um trabalho que fora desen-

volvido durante algumas décadas, concluímos que dialética era a relação entre

a ação e o pensamento.

Pois bem. Para responder à questão da prova nos imaginamos caminhando

pela Rua do Ouvidor preocupados com o pagamento do aluguel no próximo

dia trinta; seria dialética a relação entre esse andar, pé após pé, e a preocupa-

ção com a falta de dinheiro para saldar compromisso de ordem econômica?

Sim, porque era a seguinte a nossa infra: morávamos numa casa que era

propriedade privada de outrem. Sendo a propriedade de outrem, assináramos

contrato mediante o qual nos responsabilizávamos por depositar num banco,

a cada dia trinta, quantia estipulada pelo proprietário, auxiliado por seu inte-

lectual orgânico: o advogado dono da imobiliária.

E a super?

Qual equilibrista, andando na corda bamba de sombrinha, o jeito era não

atrasar o pagamento. Caso contrário este seria acrescido de multa de 20%

sobre o valor do aluguel.

[...] Como não alcançáramos compreender o raciocínio, só nos restaria, se

fosse o caso, repeti-lo tal qual tinha sido formulado por Marx, o Karl.

O problema proposto na prova evidentemente se constituiu numa questão

para Marx, o Karl, mas não chegou a se constituir num problema para nós.

Na tentativa de articular concreto e abstrato, acabamos por aparecer na cena

em meio a um enunciado teórico por natureza.

Tiramos zero na prova. Não fomos dialéticos o suficiente para explicar à

professora quão séria era a questão para nós [Moreira, 1989, pp. 46-47].

Se, de um lado, nos queixamos da escrita que permanece colada aoautor lido ou extravasa em questões do cotidiano, de outro, não aponta-

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mos nem criamos alternativas para o salto criador do aluno. De saída, épreciso considerar que a originalidade absoluta não existe. No séculoXVII, a imitação ou emulação de certos autores considerados modelosde um certo discurso eram aceitas e incentivadas. Quem escrevia busca-va, sobretudo, aperfeiçoar um modelo. No processo de tornar nossa alinguagem a cópia se situa no nível menos elaborado de escritura, já que“copiar é a liberdade de escrever em seu ponto mais baixo” (Schneider,1990, p. 31). Sejamos, nesse ponto, compreensivos sem ser indulgen-tes. Exercitemos a exigência sem jamais esquecer que é preciso tempo eesforço para sobreviver às influências recebidas.

O domínio da escritura é um processo lento. Será que não formula-mos, romanticamente, uma expectativa de originalidade e criatividade dotrabalho escrito do estudante? Parece certo, no entanto, que só se apren-de a escrever, escrevendo. E se o pulo do gato ou, em outras palavras,aquela experiência intransferível que cada um precisa construir com aescrita não é ensinada, ela pode pelo menos ser conduzida pela escutaatenta do texto, por deslocamentos dentro da língua que podem ocorrersobretudo pela reflexão que o professor faz com o aluno sobre o texto queeste produziu. Como dizia Candido Portinari: “O professor não pode ficarno palco, ele tem de ficar na platéia [...] Ele tem de ir junto com os alu-nos” (Guimarães, 1983). O talentoso professor Portinari conduzia seusalunos da cópia à criação. Como nos relata Héris Guimarães:

– Olha o modelo e vai fazer. Agora inventa um fundo para o modelo, dizia

Portinari, e eu criava em cima de uma cópia. Quer dizer, eu firmava uma

técnica, ficava firme no desenho, na valorização, na construção, para dar

asas à imaginação. E era necessário fazer o fundo que pertencesse àquela

figura: na valorização, na cor, em tudo. Vejam como é difícil, o que a pessoa

tem de fazer para chegar a isso! Quando se chega a esse ponto, a pessoa está

solta e sabe pintar [1983].

Aulas de pintura não são aulas de história da educação, mas como éprovocante a atitude de Portinari que cria passos intermediários de vivên-cia pedagógica a partir de elementos simples. Numa das suas primeirasaulas de artes plásticas convidou seus alunos universitários a pintar um

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ovo. Decepção geral. A aula começava e, a partir dos trabalhos dos alunos,ele interferia, mostrando que um ovo parece leve mas é pesado. Pareceliso mas é rugoso. Parece branco, mas há tantos tons de branco! (Guima-rães, 1983). A aula findava e o que era decepção havia se transformado emespanto diante da dificuldade de pintar o que parecia óbvio!

Isso vale para a escrita. Se não construímos, com o aluno, um cami-nho para a produção do seu texto, ele não sairá do estágio a que já che-gou, não enriquecerá o seu vocabulário, nem desenvolverá modosalternativos de dizer. Quando ele trabalha com uma carta, um memorialde professor, um artigo de jornal, a letra de uma música, poesias (as deCora Coralina sobre a escola são ótimas), crônicas, contos, um livroparadidático, um artigo de revista pedagógica, um romance, um relatode pesquisa, ele está ampliando suas possibilidades de leitor. Quando lêfontes com pensamentos divergentes sobre uma mesma questão, se vêmobilizado a perguntar: Quem terá razão? Que história da educação éessa, a que está escrita?

Se pudesse sintetizar o que aprendi dessa experiência de levar ou-tros a exercitarem uma maior liberdade com relação à escrita da históriada educação, poderia dizer que os caminhos mais frutíferos foram aque-les em que busquei compartilhar experiências vividas e relacioná-lascom livros e leituras; integrar a leitura e a escrita; integrar a linguagemda história da educação com outras linguagens. Esse esforço exige umdomínio razoável da massa de informações, mas exige ainda algo maiscomplexo: um trabalho de desconstrução do já aprendido, a percepçãodo aluno no seu tateamento do terreno e a atitude de deixá-lo aprender.Nesse sentido, noto que, com o passar do tempo, tenho falado cada vezmenos em minhas aulas. Antes, buscava as palavras certas. Hoje, procu-ro apenas a palavra necessária, aquela que sirva de passagem de umsilêncio a outro.

Embora não tenha feito referências explícitas às minhas concepçõesde história e/ou de educação, delas tratei o tempo todo. Todas as con-cepções têm a sua força, a sua verdade e suas limitações. Preferi queminhas prioridades transparecessem dos aspectos que selecionei da ex-periência vivida, mas que inevitavelmente acabam deslizando no texto.Defendo a necessidade de um investimento na direção da teorização do

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ensino da história da educação, convite que estendo a todos os interes-sados na questão. Tratar do ensino sob o ângulo do meu processo deaprendizagem liberou-me dos constrangimentos que eu mesma inicial-mente me coloquei para focalizar o tema. Como o pintor que tenta repro-duzir na tela o peixe vermelho do seu aquário11 vi, com espanto, o peixemudar de cor. O encarnado foi tornando-se negro! Essa mudança aca-bou com minha intenção de absoluta (e impossível) fidelidade. Deixan-do-me levar gostosamente pela lição viva da metamorfose, pintei, notexto, um peixe verde.

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A história daeducação programada

uma aproximação da história da educação ensinadanos cursos de pedagogia em Belo Horizonte

Luciano Mendes de Faria Filho*

José Roberto Gomes Rodrigues**

O texto busca contribuir com o esforço desenvolvido pela SBHE e por alguns pesquisa-dores de chamar a atenção para a necessidade de se discutir de forma sistemática a ques-tão do ensino de história da educação no Brasil. Apesar de configurar-se como uma disci-plina dos cursos de formação de professores, ainda no século XIX, e daí retirando partede sua precária legitimidade no campo da educação, o ensino de história da educação nãotem sido objeto de reflexão sistemática por parte de seus praticantes, sejam eles professo-res ou pesquisadores. No texto fazemos algumas análises sobre o ensino de história daeducação brasileira em cinco instituições de ensino superior de Belo Horizonte. Para tan-to, analisamos oito programas de ensino elaborados pelos professores dessas instituiçõese repassados aos alunos de seus cursos de pedagogia.HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO; ENSINO; PEDAGOGIA.

Following the steps of the SBHE and other researchers, this work aims at focusing on thenecessity to systematically discuss the question of how the history of education is beingtaught in Brazil. Even though it has been part of the official curriculum of teacher trainingcolleges since the XIXth century, which partly explains its somehow precarious legitimacyin the educational field, the teaching of the history of education has not yet been theobject of a systematic reflection among those who make use of it, be them professors orresearchers. In this work, we will offer a few analyses of how the history of Brazilianeducation is approached by five institutions of further education in Belo Horizonte. Inorder to do so, we analysed eight programmes elaborated by teachers of the giveninstitutions and offered to the students of pedagogy courses there.HISTORY OF EDUCATION; TEACHING; PEDAGOGY.

* Professor doutor da Faculdade de Educação da UFMG.** Professor mestre de história da educaçãp da UNEB.

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Il faut bien s’imaginer les dilemmes d’unprofesseur confronté à des étudiants qui ne

sont pas destinés à être eux-mêmes historiens et quiattendent du cours un profit dans leur future pratique

profissionelle. La connaissance du passé n’estpas en effet pour eux une fin, mais un moyen.

Compère, 1995, p. 34

Como se ha repetido muchas veces, el esdudio de lahistoria de la educación cumpre, al menos, una doble

función en su proceso formativo. Por una parte, les(profesores) ofrece los recursos intelectuales que

necesitam para analizar e interpretar su ámbito de trabajodesde una perspectiva histórica, así como para lograr una

comprensión inteligente del lugar que ellos mismosocupan en dicho contexto. Por otra parte, les permite

desarrolar una conciencia histórica, de caráter crítico,que debe precaverles frente a las abundantes

concepciones deterministas y las explicaciones intemporales de los hechos educativos en que participan.

Ferrer et al. 2002, p. 15

Introdução

Falar do ensino de história da educação deveria implicar, necessaria-mente, situar esta disciplina no quadro mais amplo das disciplinas quecompõem a formação do professor nos cursos de pedagogia e nas de-mais licenciaturas, e em sua relação com o campo acadêmico de pesqui-sas nesta área. Além disso, seria de se esperar uma reflexão específicasobre a história das disciplinas e suas relações com o ensino e a pesqui-sa na área. No entanto, estes aspectos fogem ao objetivo e ao escopodeste texto, seja por falta de tempo dos autores, seja porque o assunto játenha sido mais bem trabalhado em outros momentos e/ou por outraspessoas com mais propriedade (Nunes, 1995, 1996; Kuhlmann, 1999).

Apesar destas reticências, este nosso texto quer contribuir com umesforço desenvolvido pela Sociedade Brasileira de História da Educa-ção (SBHE) e por alguns pesquisadores de chamar a atenção para anecessidade de se discutir de forma sistemática a questão do ensino dehistória da educação no Brasil. Apesar de configurar-se como uma dis-

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a história da educação programada 161

ciplina articulada desde os cursos de formação de professores, ainda noséculo XIX, e daí retirando parte de sua precária legitimidade no campoda educação, o ensino de história da educação jamais foi objeto de refle-xão sistemática por parte de seus praticantes, sejam eles professores oupesquisadores.

Há uma unanimidade entre os pesquisadores da área de que nas úl-timas décadas, com o desenvolvimento dos cursos de pós-graduação,da organização de congressos e sociedades científicas, houve uma reno-vação acentuada das pesquisas na área e um fortalecimento do perfilacadêmico deste campo de pesquisa. No entanto, parece-nos que apenasrecentemente se vem fortalecendo a preocupação com as discussõesacerca do ensino da disciplina, praticamente inexistindo pesquisas quetratem desta temática (Vidal & Faria Filho, 2003).

A negligência para com as questões relacionadas ao ensino, sobretudoaquele que se dá no âmbito do ensino superior não é, no entanto, carac-terística apenas de nossa área. Mesmo em áreas que já construíram umarelativa tradição em pesquisas sobre o ensino, como a história e a geogra-fia, por exemplo, pouco se discute o ensino que ocorre nas universidadesou faculdades em suas respectivas áreas. As explicações para isto devemser buscadas, portanto, para além dos marcos disciplinares, nas regrasuniversitárias relativas à construção do prestígio e poder acadêmicos.

Neste sentido, o que nos propomos a fazer neste texto é, de formamuito preliminar, algumas análises sobre o ensino de história da educa-ção brasileira em cinco instituições de ensino superior de Belo Horizonte.Para tanto, vamos nos ater unicamente à análise dos programas de ensi-no elaborados pelos professores dessas instituições e repassados aosalunos de seus cursos de pedagogia. Reunimos, ao todo, oito programas,já que na Universidade Federal de Minas Gerias (UFMG) a mesma dis-ciplina comportava, à época (2001), três programas diferentes. Já naUniversidade Federal de Minas Gerias (UEMG), eram duas as discipli-nas a tratar da história da educação brasileira.

É importante considerar ainda que, além de se tratar de escola deBelo Horizonte e de cursos de pedagogia, os programas referem-se ainstituições públicas e privadas, a universidade e centros universitários,cujos professores, no momento da pesquisa, quase todos participavam

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das discussões e pesquisa sobre história e historiografia desenvolvidasno âmbito do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação(GEPHE), da Faculdade de Educação da UFMG.

O trabalho com os programas tem, obviamente, uma série de limi-tes, os quais já foram exaustivamente apontados pelos historiadores docurrículo, da cultura escolar e das disciplinas, entre outros, e dos quaistemos consciência. Todos sabemos, no entanto, que tais limites, umavez considerados, não impedem que a partir dessa documentação possa-mos tecer algumas considerações sobre o ensino da história da educa-ção “programada” para ser ensinada aos alunos. Ou seja, sabemos queos programas objetivam práticas e são espaços de práticas e de disputas,as quais se dão, no entanto, em torno de prescrições, e não em relaçãoàquilo que será ou não efetivamente trabalhado.

Assim, supondo sempre este distanciamento dos programas em re-lação aos conteúdos efetivamente desenvolvidos em sala, esperamospoder contribuir para o entendimento para a escolha que um determina-do grupo de professores realiza dentro do universo de possibilidades(de conteúdos, temas, bibliografia e autores) para compor aquilo queacha que deve ser ensino de história da educação para um determinadogrupo de alunos.

Por outro lado, ao explicitar as escolhas feitas e as seleções opera-das, pensamos poder ajudar na compreensão de questões cruciais paranossa área de atuação, tais como: Quais as relações entre a pesquisa e oensino de história da educação? Estaria o ensino de história da educaçãoincorporando as inovações temáticas propostas pela pesquisa na área?Como os professores têm lidado com este problema? Qual história daeducação tem sido escolhida quando se trata de formar professores?Com quais critérios têm trabalhado os professores no momento da sele-ção temática e bibliográfica?

Os nomes da disciplina

No que se refere à denominação da disciplina, prevalece a denomi-nação comum de história da educação, muito embora possamos encon-

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trar programas com denominação diferente. Na Pontifícia UniversidadeCatólica de Minas Gerais (PUC-MG), na UFMG, e na Fundação Minei-ra de Educação e Cultura (FUMEC), a disciplina é chamada simplesmentede história da educação, nome ao qual se pode acrescentar ou não umnúmero identificador de sua posição da grade curricular do curso – II,na UFMG, e III e IV, na FUMEC. Já na UEMG, a disciplina denomina-seestudos históricos, nome seguido de um complemento que a especifica:A educação brasileira no século XX – o pensamento educacional e suasbases sociais e políticas ou educação na formação social moderna –sociedade brasileira e educação. E no Centro Universitário de Belo Ho-rizonte (UNI-BH), além de história da educação, ela é também denomi-nada de fundamentos históricos da educação.

Observa-se, pois, que na UFMG, na FUMEC e na UEMG, existe maisde uma disciplina de história da educação na grade curricular do cursode pedagogia e que, os programas de que estamos tratando, supõemuma integração entre elas. Assim, é de se supor, logicamente, que paraos cursos de história da educação II (na UFMG) ou as história da educa-ção III ou IV (na FUMEC), o aluno já terá cursado a disciplina anterior-mente. A mesma integração parece estar suposta nos programas daUEMG, onde o aluno cursaria a disciplina história da educação: educa-ção na formação social moderna – sociedade brasileira e educação, an-tes de outra que trata especificamente do século XX. No entanto, istonão aparece explícito no programa.

No caso da PUC-MG, se se considera a bibliografia indicada, pode-se considerar que na mesma disciplina pretende-se tratar tanto da histó-ria da educação “geral” quanto da história da educação no Brasil, o quenão ocorre com nenhum dos outros estabelecimentos.

As ementas e os objetivos

No que se refere às ementas das disciplinas, em todos os programas,busca-se apontar para as relações entre a educação e a constituição his-tórica da sociedade brasileira. Alguns chamam a atenção para a relaçãoentre educação e capitalismo e/ou industrialização, para a questão da

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exclusão social e apontam para a necessidade de problematizar o mo-mento atual da educação brasileira dentro do curso.

Estas dimensões aparecerão, também, no momento de elaboraçãodos objetivos do curso. Neles os objetivos aparecem, sistematicamente,como o de levar o aluno a analisar, sistematizar e compreender a histó-ria da educação brasileira, além de contribuir para o redimensionamentodas práticas escolares e/ou para a compreensão da educação atual.

Observa-se nas ementas e nos objetivos uma ausência de uma discus-são específica sobre a questão historiográfica. No entanto, é precisoconsiderar que, talvez, esta tenha sido trabalhada nos semestres anterio-res do curso ou, mesmo, no interior mesmo da discussão dos assuntosespecíficos. Cumpre, ainda, chamar a atenção para o fato de as ementasserem muitos gerais, e por vezes genéricas, e não darem conta, comoveremos mais à frente, da dispersão temática abordada pelos programas.

No que se refere à abrangência geográfica e temporal dos assuntostratados nos programas, conforme já foi explicitado, todos tratam doBrasil e, com exceção dos programas da UEMG e um dos programas daUFMG, abrangem do século XVI ao XX. No caso dos programas daUEMG, um abarca do século XVI ao início do século XX e outro trataapenas do século XX. No caso do programa da UFMG, ele trata dosséculos XIX e XX.

No entanto, ao se especificarem os temas a serem tratados e ao seescolher a bibliografia a ser adotada, estas temporalidades amplas dãolugar a múltiplas temporalidades. Assim, nos programas convivem, ladoa lado, temporalidades demarcadas a partir de uma história política (Mo-narquia, República, Revolução de 30, Estado Novo, Golpe de 1964 eConstituição de 1988), com temporalidades propriamente educacionais.No entanto, em se tratando destas últimas, não há muito consenso sobrecritérios de periodização. O mais das vezes, utilizam-se as reformas oudatas de edição de leis educacionais como marcos importantes dastemporalidades. No entanto, outros critérios também são utilizados, comoaquele que utiliza o período de 1870 a 1920 como significativa paranossa história educacional.

Ainda no que se refere aos períodos demarcados nos programas, háuma clara ênfase ao período a partir de 1870, observando-se, no entan-

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to, uma presença significativa de temas explicitamente referidos ao sé-culo XIX como um todo.

Os conteúdos e a bibliografia selecionados

Para o estudo das temáticas presentes nos programas e dos assuntosescolhidos pelos seus autores para o detalhamento dessas temáticas, gos-taríamos de chamar a atenção para o quadro I, a seguir.

Quadro IINCIDÊNCIA DE TEMÁTICAS

NOS PROGRAMAS ANALISADOS

Temáticas N. de Programas

Política Educacional 8Escola Nova 7Reformas Educacionais 6Pensamento Educacional 6Movimentos Sociais e Educação 6Instituições Escolares 5Legislação Educacional 5Métodos de Ensino 5Mulher/Questões de Gênero 4Profissão Docente 4

Religião e Educação 4

Observa-se, em primeiro lugar, que considerando os temas (assun-tos) de maior incidência nos programas de ensino analisados, as escolhasdos professores têm recaído sobre temáticas eminentemente escolares,ou seja, a história da educação ensinada tem sido, grosso modo, umahistória da educação escolar.

Em segundo lugar, observa-se que os programas, geralmente, arti-culam-se em torno de temas consagrados pela historiografia educacio-nal brasileira. Assim, a temática das políticas educacionais ocupa o topo

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das preocupações comuns dos professores responsáveis pela produçãodos programas, sendo o único tema a aparecer, pelo menos explicita-mente, em todos os programas. Em seguida, vem um conjunto de temasque a historiografia educacional brasileira constituiu, ao longo dos anos,como fundamentais para a disciplina, seja no âmbito do ensino ou dapesquisa (pensamento educacional, Escola Nova, reformas educacio-nais...).

Em relação a esses temas, é preciso atentar para o fato de que o seudesdobramento, nos programas, em assuntos específicos de ensino/dis-cussão, pode dar lugar a “subtemas” inovadores dentro de temáticasditas “tradicionais”. Este é o caso, algumas vezes, do estudo da EscolaNova que, ao ser detalhado, dá lugar, em alguns programas, às discus-sões sobre higienismo e eugenia, por exemplo.

Pode ocorrer também de um tema mais geral ser tratado sistematica-mente de forma reduzida. Assim, a questão da relação entre religião eeducação dá lugar, na verdade, ao estudo da ação dos jesuítas no chama-do período Colonial e a temática da profissão docente é enfocada quaseexclusivamente a partir da questão da formação de professoras nas es-colas normais.

Mas não é apenas o desdobramento dos temas gerais, e por vezestradicionais, em assuntos específicos, que demonstra a gama muito ricade aspectos específicos que são selecionados pelos professores no mo-mento da confecção dos programas. Uma análise deles mostra que, aolado daqueles temas mostrados no quadro, um número relativamentegrande de outros temas são explicitados. Assim, aparecem nos progra-mas temáticas tais como: adolescência, analfabetismo, ensino superior/universidade, escolarização, etnia, gênero e educação da mulher, higie-ne e educação, infância, inovação educacional, instituições escolares,leitura, método de ensino, organização escolar, práticas educativas,profissionalização do ensino, sistema de ensino.

Dentro desta dispersão temática, é interessante notar que o ensinosuperior/universidade aparece como um tema específico. Não é de es-tranhar isto, pois os programas tratam de uma história da educação ele-mentar/primária/1o grau, e muito pouca atenção dão à educação infantil(0 a 6 anos), ao médio/secundário/2o grau e ao superior/universidade.

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Daí o fato de esses níveis aparecerem, muitas vezes, destacados dentrodo programa, indiciando um tratamento mais rápido e superficial deles.

Ainda no que se refere à dispersão temática, uma análise das biblio-grafias adotadas pelos programas é também muito reveladora. Para pro-ceder esta análise, organizamos alguns quadros, os quais passamos acomentar a seguir.

O número total das obras referidas nos oito programas é de 184. Noentanto, como era de se esperar, um programa repete obras citadas nosoutros. Assim, verificamos que, desconsiderando as repetições, os pro-gramas arrolam 99 obras diferentes em suas bibliografias. Verificamos,também, que mais de dois terços das obras aparecem apenas uma vez noconjunto dos programas e que nenhuma obra aparece em todos os pro-gramas. Porém, se 34,3% das obras aparecem em mais de um programa,22,2% são repetidas em apenas dois deles.

Quadro IIFREQÜÊNCIA DE COMPARECIMENTO DOS LIVROSARROLADOS NAS BIBLIOGRAFIAS DOS CURSOS

Freqüência N. Títulos %

2 vezes 22 22,23 vezes 7 7,14 vezes 2 2,05 vezes 1 2,06 vezes 0 007 vezes 1 1,01 vez 66 65,7

Total 99 100,0

Considerando, ainda, o número de obras repetidas três ou mais ve-zes (12,1%), verifica-se que os professores trabalham com “textos”muitos diversificados em suas aulas. Tal diversificação pode, por umlado, ser necessária para se trabalhar com a diversidade de temas veri-ficada anteriormente, pois, senão, como trabalhar com um programa

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que abrange desde o século XVI até as modernas transformações naeducação escolar provocadas pelo uso do computador?

Por outro lado, tal dispersão pode, também, denunciar a ausência dereferências claras e de obras que as objetivem – e de um mínimo deconsenso sobre o que seria importante ensinar em história da educaçãobrasileira. A este respeito, o quadro seguinte oferece-nos indícios bas-tante interessantes.

Várias são as formas de nos aproximarmos do quadro III e de anali-sar as obras nele indicadas. Em qualquer delas, não poderíamos deixarde assinalar a especificidade do Manifesto dos Pioneiros... documento(monumento) dos mais emblemáticos da história da educação brasileira.Em virtude da natureza deste texto, a qual destoa bastante dos demais,nas análises que se seguem, não vamos, pois, enfocá-lo.

Quadro IIIRELAÇÃO DAS OBRAS CITADAS TRÊS OU

MAIS VEZES NO CONJUNTO DOS PROGRAMAS

Obra Natureza Número de 1ª ediçãovezes citadas

1 “Cultura e educação libertária no Brasil Artigo 3 1982no início do século XX”

2 Educação popular e educação de adultos Livro 3 19733 Estado militar e educação no Brasil Livro 3 19934 O golpe na educação Livro 3 19895 História da educação no Brasil: 1930-1973 Livro 3 19786 História da educação Livro 3 19897 Manifesto dos educadores da educação nova Artigo 3 19328 A escola e a República Livro 4 19899 Perspectivas históricas da educação Livro 4 1986

10 Analfabetismo no Brasil: da ideologia dainterdição do corpo à ideologia nacionalista Livro 5 1989

11 500 anos de educação no Brasil Coletânea 7 2000

Ainda antes de passarmos à análise dos dados do quadro III, é neces-sário dizer que o livro 500 anos de educação no Brasil foi citado sete

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a história da educação programada 169

vezes, mas em apenas três programas. Ou seja, o fato de constituir-seem uma coletânea permite que diferentes capítulos da obra sejam cita-dos no mesmo programa de curso, o que não ocorre com as demais obras.

Numa primeira classificação, poderíamos dizer que, formalmente,trata-se de oito livros de autoria única ou em co-autoria, um artigo e umlivro/coletânea, reunindo, este último, artigos de mais de 20 pesquisado-res. De outro modo, poderíamos dizer, também, que dos textos citados,um foi publicado pela primeira vez nos anos de 1970, oito nos anos de1980 e, finalmente, um foi publicado em 2000. Este quadro, no entanto,parece diferenciar-se bastante quando vamos analisar as obras/textos quesão citados apenas uma vez: aí, o que se impõe é a atualidade da produ-ção, boa parte dela referente a pesquisas realizadas nos anos de 1990.

Em seguida, poderíamos dizer que destes 10 textos, apenas dois (His-tória da educação e 500 anos...) se propõem a tratar da história da educa-ção brasileira do século XVI aos nossos dias; um deles trata de aspecto es-pecífico da educação brasileira (educação popular e educação de adultos)ao longo de nossa história; outros seis tratam de abordagens gerais ou detemas específicos da educação brasileira do final do século XIX e ao lon-go do século XX, sendo que dois deles se referem apenas ao período pós-1964; o último (Perspectivas históricas da educação) não se refere a umtempo específico, pois se trata de um livro de introdução historiográfica.

No que se refere aos assuntos enfocados, três dos livros apresentamuma abordagem de assuntos gerais da história da educação brasileira(História da educação no Brasil, História da educação e 500 anos...), umtrata, como já citado, de uma reflexão historiográfica e os seis restantestratam de aspectos específicos de nossa história educacional. Aqui, cum-pre chamar a atenção para o fato de que o único livro escrito por um só au-tor que trata da história da educação brasileira da Colônia “aos dias atuais”(História da educação), não foi escrito originalmente para a utilização emcursos superiores, mas sim nos cursos normais de nível médio1.

Estes elementos anteriormente identificados indicam-nos que asobras mais citadas nos programas referem-se, em sua maioria, a aspectos

1 Este livro trata, na verdade, da história da educação geral e brasileira.

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específicos da história da educação brasileira, que nem sempre foram es-critas por historiadores da educação. Aqui é importante salientar, maisuma vez, o número muito pequeno de obras comuns aos vários programase a ausência de obras que foram (são) referência para a historiografia daeducação brasileira. A título de exemplo, podemos citar a Cultura brasi-leira I (Fernando de Azevedo), que aparece em apenas um programa, e oEducação e sociedade na Primeira República (Jorge Nagle), que não apa-rece em nenhum dos programas estudados. O quadro IV nos mostraquantas vezes um mesmo autor aparece nas bibliografias dos programasde cursos analisados. Para produzi-lo, somamos o número de vezes que oautor aparece num mesmo programa e/ou em diversos deles. Assim, se,por exemplo, um autor apareceu duas vezes em um determinado progra-ma e uma vez em outro, ele aparece em nosso quadro como se tivesse sidoreferido três vezes. O fato de o número de autores referidos ser maior doque o número de obras é causado pelo fato de que uma mesma obra podeter mais de um autor.

Quadro IVFREQÜÊNCIA DE COMPARECIMENTO DOS AUTORES

ARROLADOS NAS BIBLIOGRAFIAS DOS CURSOS

Freqüência N. de Autores %

2 vezes 26 24,53 vezes 12 11,34 vezes 1 1,05 vezes 3 2,86 vezes 2 1,91 vez 62 58,5

Total 106 100,0

A primeira constatação que este quadro nos permite é uma grandedispersão dos autores com os quais os professores trabalham. No conjun-to, vimos que os programas trabalham com mais de 100 autores diferen-tes. No entanto, o fato de 42% dos autores terem sido citados mais de umavez – na verdade, desses, mais de 24% o foram apenas duas vezes – nos

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a história da educação programada 171

mostra que a dispersão dos autores é menor do que a das obras. Ou seja,nos programas, as obras variam mais que os autores.

Assim, no que se refere às temáticas abordadas, à bibliografia e aosautores citados, podemos considerar que os programas, apesar de man-terem certos temas consagrados pela historiografia, parecem acolherassuntos de interesse mais recente. Daí, em parte, a explicação para oleque bastante aberto de autores e obras referidas.

Doutra parte, conforme salientamos, a especificidade da reflexãohistoriográfica não encontra acolhida nos programas, o que de resto podeser reafirmado pela baixa incidência de obras que se ocupam dessa ques-tão no conjunto dos programas. Algumas possíveis razões para este fatoforam explicitadas quando da análise das ementas.

No entanto, aqui esta questão nos interessa por outra razão: parachamar a atenção para a baixíssima incidência de obras sobre história ehistoriografia brasileira nos programas. O fato é que, ao analisarmos abibliografia dos programas, detectamos que há um número muito redu-zido de obras que não se referem diretamente à educação. Destas, ape-nas dez títulos referem-se à história do Brasil.

Finalmente, ainda no que se refere a estas questões que estamostratando, nota-se que, apesar de todos os programas se referirem generi-camente ao Brasil, os seus responsáveis não ficam alheios à realidademineira. A história da educação mineira é muito recorrente, quer seja aoespecificar temas ou assuntos a serem trabalhados, quer seja na biblio-grafia selecionada para o curso.

Algumas considerações sobre o ensino e a pesquisaem história da educação

Se considerarmos estudos recentes sobre a pesquisa e a produçãocientífica em história da educação no Brasil (Alves, 1998; Carvalho,2000, 1998; Catani & Faria Filho, 2002; Veiga & Pintassilgo, 2000;Vidal & Faria Filho, 2003; Warde & Carvalho, 2000; Xavier, 2001) ve-remos que o exame dos programas nos revela que o ensino da disciplinanos cursos de graduação em pedagogia dialoga fortemente com aque-

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las. Ou, dizendo de outra forma, não parece existir um grande distan-ciamento entre o que pesquisamos e publicamos e aquilo que os profes-sores de Belo Horizonte selecionam para ensinar para seus alunos.

As temáticas que mais aparecem nos programas e os períodos aosquais se enfatiza são os mesmos tanto na pesquisa quanto no ensino.Também a dispersão temática é apontada nos balanços recentes sobre aprodução acadêmica da área, o mesmo acontecendo com as múltiplastemporalidades dos objetos específicos enfocados.

A baixa incidência de textos que trazem grandes sínteses da históriada educação brasileira também parece ser a forma como aparece noâmbito do ensino uma problemática muito presente nas discussões daárea: a de que os enfoques teórico-metológicos adotados por boa partedos pesquisadores da área se caracterizam, dentre outras coisas, peloabandono da pretensão de grandes sínteses e valorizam a busca pelotrabalho verticalizado sobre temas específicos. Parece que se passa noensino o mesmo que na pesquisa: os nossos alunos saberiam cada vezmais de temas cada vez mais delimitados temporal e espacialmente.

Talvez os programas que estejamos analisando sejam muito particu-lares e não revelem o movimento do ensino da disciplina em todo opaís. No entanto, mesmo considerando este fato, se estes fenômenos sãominimamente verdadeiros, eles não deveriam nos preocupar? A ausên-cia de livros e abordagens de síntese, que sem dúvida parece ser refor-çada pela sistemática de publicação de coletâneas e pela “indústria dacópia” de artigos e capítulos de livro, não estaria significando um em-pobrecimento da formação dos professores e, mesmo, dos futuros pes-quisadores? Qual o sentido de um aluno conhecer profundamente sobreum determinado objeto singular se ele não dominar os conhecimentos ea cultura histórica da área para poder dimensionar o seu significadodeste objeto no conjunto da história da educação brasileira?

Aqui, mesmo correndo o risco do exagero, é preciso ponderar se ainovação que ocorre no âmbito da pesquisa, com a multiplicidade deenfoques e objetos, não poderia estar trazendo mais prejuízos do queenriquecimentos ao ensino da disciplina. Talvez não devêssemos ser tãoalvissareiros ao saldar como positivo o diálogo tão prontamente entre oensino e a pesquisa em nossa área. Aqui, a ausência de uma cultura

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a história da educação programada 173

histórica sólida, a qual possibilitaria, até mesmo, a elaboração de sínte-ses mais complexas sobre a nossa história educacional, pode significarque ao invés de avançarmos na formação cultural e histórica de nossosalunos de pedagogia, estejamos regredindo e empobrecendo esta mes-ma formação.

Conforme afirmava, recentemente, Justino Magalhães:

As funções de professor fomentam um raciocínio convergente, articulado,

integrado e integrador, esclarecido e esclarecedor; um raciocínio fechado em

torno de questões conclusivas. Enquanto o registro de investigador se despe

de sentido se não for (in)conclusivo, aberto, questionador, provocativo, di-

vergente. O discurso do professor é um discurso de compromisso, de

mediatização entre o saber/o ponto da situação desse saber (conhecimento) e

o seu público, ou os seus públicos. Enquanto o discurso do investigador é de

abertura a novas categorias conceptuais e por vezes, fragmentário; é meta-

discursivo: estrutura-se sob uma lógica hipotético-problemática: é projectivo

e constrói o seu sentido, numa lógica meta-historiográfica e historiográfica

[1998, p. 10].

Talvez esteja no momento de, também no ensino, começarmos apensar no justo equilíbrio entre a inovação e a tradição e deixarmos deconsiderar que a novidade é, por si só, positiva e benéfica para a forma-ção. Se, por um lado, é preciso fazer a crítica da nossa tradição discipli-nar e dos problemas que esta trouxe para o ensino, é preciso, também,considerar que somente se inova verdadeiramente se conhece aquiloque se quer superar. É por isso que desde muito se sabe que o movimen-to do ensino é o oposto daquele da pesquisa: enquanto este visa ao desco-nhecido, aquele pretende ensinar o que já se conhece, aquilo que, pelatradição, veio tornando-se a cultura da área. Mas, hoje, qual a culturahistórica em educação temos para ensinar? Qual história da educaçãotemos ensinado?

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Educação edesenvolvimento nacional*

Geraldo Bastos Silva

O tema central deste texto produzido por Geraldo Bastos Silva, em 1965, foi objeto deestudo do III Curso de Treinamento de Pessoal em Planejamento Educacional, oferecidopela Divisão de Aperfeiçoamento do Magistério, do Centro Regional de Pesquisas Edu-cacionais “Prof. Queiroz Filho”. O texto apresenta um momento histórico da educaçãonacional, interrogando sobre o problema da “eficiente operação da escola dentro da mul-tidão de fatores em interação contínua na realidade sociocultural”. A resposta vem associadaà consideração dos aspectos culturais da instituição escolar no contexto de subdesenvol-vimento econômico do país.ENSINO SECUNDÁRIO; DESENVOLVIMENTALISMO; EDUCAÇÃO BRASILEIRA.

The central theme of this produced by Geraldo Bastos Silva in 1965, was a subject ofstudy at the third Personnel Training Course on Educational Planning. This course wasoffered by the Department of Improvement of the Teaching Staff of the national educationhistory in Brazil, and relates the issue of “school efficient operation” to a multitude ofsocio-cultural factors. The answer, therefore, takes into consideration the cultural aspectsof this institution within the context of economic underdevelopment of Brazil.HIGH SCHOOL; DEVELOPMENT; BRAZILIAN EDUCATION.

* Mimeo. CRPE (Centro Regional de Pesquisas Educacionais), Fundo: Carlos Mascaro,1965. Centro de Memória da Educação FEUSP – Universidade de São Paulo.

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Introdução

Como toda instituição social, a escola existe para realizar fins deter-minados, atender a necessidades surgidas no processo da vida social eresolver problemas relacionados com a continuidade e a expansão davida coletiva.

O caráter estrutural ou configurado da vida social e o seu permanen-te dinamismo fazem da própria existência da escola, como de toda equalquer instituição, um problema: o problema do seu adequado funcio-namento, sem atritos que comprometam a consecução dos fins precisosa que ela deve visar, ou levem a uma realização desses fins que impeçaou dificulte a satisfação de outras necessidades também vitais; ou o depermitir a eficiente operação da escola dentro da multidão de fatores eminteração contínua na realidade sociocultural.

Como se apresenta esse problema, cujo estudo é indispensável paraque se possam estabelecer as linhas mestras de uma política de edu-cação, no caso de uma sociedade como a brasileira, na qual:

1o – A cultura que dá expressão às tentativas de solução dos seusproblemas é, em grande ou maior parte, uma cultura constituída deelementos, valores e instituições transplantados, isto é, não gera-dos por processos endógenos ocorridos nessa sociedade, como severifica, precisamente, em relação à escola?

2o – A economia encontra-se em estado de subdesenvolvimento, oque a constrange, para não ficar em posição insustentável peranteas nações plenamente desenvolvidas – cujo poderio e cuja influên-cia tendem a criar um sistema de relações no qual permanecer emestado de subdesenvolvimento eqüivale à estagnação ou à deca-dência – a fazer de toda sua cultura e da educação, particularmen-te, mediante a utilização da experiência dessas nações e a criaçãode um repertório original de soluções, um instrumento de eficiên-cia vital e de desenvolvimento econômico?

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Noção de cultura transplantada

A compreensão da formação brasileira como caso de transplantaçãocultural superou, há muito, o estado polêmico. É, hoje, uma categorialargamente utilizada na interpretação da realidade brasileira.

Caio Prado Júnior expressa muito bem esse conceito ao dizer:

Ocorre em relação a nossos países latino-americanos uma circunstância ele-

mentar – talvez por isso mesmo freqüentemente esquecida ou subestimada –

e que, contudo, tem grande significação. Refiro-me tanto ao fato de que so-

mos constituídos de populações em sua maioria estranhas, por sua origem e

tradição cultural, ao meio geográfico em que se encontraram por efeito da

colonização, bem como as contingências a que foram submetidas. E, por

isso, nem sempre souberam adaptar-se devidamente e, sobre a base das no-

vas condições em que se acharam, elaborar uma cultura própria e original1.

“A cultura”, diz ainda Caio Prado Júnior,

não é um elemento abstrato e sobreposto às contingências e experiências

humanas. Tem um conteúdo muito concreto e intimamente relacionado com

a vida do homem. Em seus objetivos se destina a servir ao homem e a sustentá-

lo na luta pela existência; em sua origem, se forma e se inspira nesta luta e na

experiência que ela proporciona. Sendo assim, a cultura de um povo, para ser

verdadeira e genuinamente sua, necessita ligar-se intimamente às contingên-

cias de sua formação e evolução – contingências materiais (o meio físico que

é o seu) e contingências humanas: as circunstâncias próprias de sua

constituição histórica. Deve ser a expressão fiel da experiência de cada povo,

atuando em seu meio particular. Isso faltou ao Brasil e aos brasileiros. Temos

vivido, ainda hoje vivemos, segundo modelos estranhos2.

O fato de transplantação é, sem dúvida, como acentua Caio PradoJúnior, fonte de inúmeros desajustamentos entre nossa cultura e nossa

1 Caio Prado Júnior, “Caracter y desarrollo de la cultura brasileña”, em Expresión,Buenos Aires, ano 1, t. 2, mar. 1947.

2 Idem, p. 7.

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realidade mesológica, desajustamentos que vão desde os que esse autorassinala em relação à esfera da vida orgânica (alimentação, vestuário,abrigo etc.), até os que se referem ao campo da técnica de produção,exemplificados estes no caso da construção de nossa indústria siderúrgica,em relação à qual somente nos teríamos mostrado capazes de seguir asolução adotada nos países ricos em carvão, ao invés de nos termoscapacitado para utilizar nossa abundante energia hidráulica3.

Se passássemos dos setores da cultura material e da relativa à vidaeconômica para o das instituições políticas, que não se devem ajustarapenas às condições do meio físico, mas, sobretudo, às do meio psicoló-gico e social, que é, ao mesmo tempo, causa e efeito da cultura, muitose mais numerosos exemplos de desajustamentos poderiam ser colhidosna bibliografia da sociologia política brasileira4.

Esses exemplos demonstrariam o equívoco daqueles que, desde nossaIndependência, adotaram a atitude que Guerreiro Ramos classificou deexemplarista, isto é, a que consiste em advogar a adoção literal de insti-tuições estrangeiras, ou em imaginar que o problema de nossa constitui-ção como nação se resolveria pela adoção das instituições vigentes nospaíses lideres da época.

O evidente erro dos que tomavam essa atitude, esquecidos das ine-vitáveis deformações que essas instituições sofreriam sob a influênciadas condições estranhas em que deveriam funcionar ou do caráter pre-datório que poderiam assumir, encontra sua antítese na atitude dos quetentam criar, para o país, uma superestrutura, tanto quanto possível, ade-quada às circunstâncias particularíssimas do meio.

Segundo Guerreiro Ramos, teria sido o Visconde do Uruguai o pio-neiro desta última atitude. Um outro seu precursor seria Silvio Romero.

3 Caio Prado Júnior cita as seguintes palavras de Pandiá Calógeras: “Se a energiahidráulica houvesse predominado sobre os combustíveis nos países de industriali-zação avançada, a maioria dos problemas industriais estaria resolvida em funçãoda eletricidade. Nós, a quem falta combustível, formulemos de novo tais problemas,adotando uma nova variante e amplos horizontes se abrirão à nossa perspectiva”.

4 Ver, entre outros, Oliveira Vianna, Instituições políticas brasileiras, Rio de Janei-ro, José Olímpio, 1949; Nestor Duarte, A vida privada e a organização políticanacional, São Paulo, Editora Nacional, 1939; Vitor Nunes Leal, “Eleitoralismo,enxada e voto”, Rio de Janeiro, em Revista Forense, 1948.

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Mas é com Alberto Tôrres e, sobretudo, Oliveira Vianna, que ela se tor-na sistemática e ativa.

Como diz ainda Guerreiro Ramos, a quase totalidade desses estudos“considera a transplantação como uma condição patológica de nossasociedade, resultante da ação pouco esclarecida de nossos quadros di-rigentes”. Especialmente por negligenciarem o fator econômico, nãovêem que as transplantações são algo consubstancial à formação brasi-leira enquanto formação inicialmente colonial.

Graças a ela saltamos várias etapas de desenvolvimento, o um território no

qual se distribuíam tribos na idade da pedra lascada passou de repente para o

plano da história européia. Não seria por meio do mero crescimento vegetativo

que isto poderia ocorrer. A transplantação foi um expediente historicamente

necessário para que se tornasse possível, a seu tempo a nação brasileira [Ver

Nota A].

O nosso problema nacional, o problema de nossa organização, não éo de prescindir de transplantações, mas o de fazê-las servir, tendo cons-ciência da sua inevitabilidade, ao programa de nosso pleno desenvolvi-mento, dando-lhos caráter instrumental em relação aos nossos própriossitos conscientes e às condições objetivas em que, com o máximo rendi-mento, as instituições transplantadas devem operar.

A educação brasileira como transplantação

No campo da educação, a idéia de transplantação enquanto conceitointerpretativo da realidade brasileira já foi assinalada pelo professorAnísio Teixeira, nas seguintes palavras:

Não poderemos, entretanto, analisar com justeza a situação escolar brasileira

presente, sem antes considerar que o nosso esforço de civilização constituiu

um esforço de transplantação para o nosso meio das tradições e instituições

européias, entre as quais tradições e instituições escolares. E a transplanta-

ção não se fez sem deformações graves, por vezes fatais. Como a escola foi e

será, talvez, a instituição de mais difícil transplantação, por isso que pressu-

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põe a existência da cultura especializada que procura conservar e transmitir,

nenhuma outra nos poderá melhor esclarecer sobre o modo por que se vem,

entre nós, operando a transplantação da civilização ocidental para os trópi-

cos e para uma sociedade culturalmente mista5.

A prioridade na utilização da categoria de transplantação, como con-ceito interpretativo da situação educacional brasileira, pertence, talvez,ao trabalho sobre “o problema na escola de aprendizagem industrial noBrasil”, no qual o caráter transplantado de nossa educação é expressonos seguintes termos: “Nossas instituições escolares participam da mesmainspiração idealista, do mesmo caráter da transplantação que se verificaem outros setores institucionais. Se não se tem, em geral, consciênciadisso, o fato ainda mais digno do exame”6.

Os inevitáveis desajustamentos envolvidos em toda transplantação ti-nham suas raízes identificadas, no caso da educação, da seguinte forma:

Ao se transplantarem as instituições educativas, não se pode transplantar

com as mesmas a tradição comunitária, a herança docente do grupo de que se

originam. Daí resulta que essas instituições perdem, no grupo receptor toda

ou quase todo eficácia, ou são reinterpretadas ou deformadas isto é, passam

exercer funções compatíveis com a estrutura social e econômico em que são

instaladas [Ramos, Garcia & Silva, 1953, p. 144].

O ponto de vista defendido pelos autores desse trabalho era, em outrostermos, o de que, sendo a cultura brasileira, em seu todo, um produto detransplantação, e a educação brasileira um aspecto particular da vidasociocultural, como acontece com a educação de qualquer país a proble-maticidade inerente a qualquer transplantação cultural se reflete ou sereproduz no caso da transplantação escolar.

5 Anísio Teixeira, “A crise educacional brasileira”, em Revista Brasileira de Estu-dos Pedagógicos, Rio de Janeiro, vol. XIX, n. 50, p. 23, abr.-jun. 1953.

6 Guerreiro Ramos, Ewaldo do Silva Garcia e Geraldo Bastos Silva, “O problema daescola de aprendizagem industrial no Brasil”, em Estudos Econômicos, Rio deJaneiro, ano IV, n. 11/12, p. 144, set.-dez. 1953.

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Nossa escola é, realmente, uma instituição transplantada, nascidade uma tentativa de enxertar, em nosso meio, uma instituição que nelenão encontra seus pressupostos culturais necessários e que, além disso,se antecipou sempre às exigências e condições objetivas do meio social,especialmente em sua expressão econômica.

Esta idéia de antecipação é um dos aspectos do conceito de trans-plantação que maior realce merece. É, na verdade, o fato de que a nossaescola representa uma transplantação e antecipa, de certo modo, as con-dições objetivas que permitiriam sua existência plenamente eficaz, quenos dá a explicação do sentimento de contínua frustração que acompa-nha nossos esforços escolares os quais têm sempre resultados aquémdos esperados e, portanto, são sempre desencorajadores por seu escassoou nulo rendimento.

As queixas contra a “decadência do ensino” são talvez tão velhasquanto nossa própria escola, sendo sua significação objetiva quase ex-clusivamente de um eco ou reflexo, na consciência, do desajustamentoentre a escola e as condições reais do meio em que existe, do ponto devista das quais a escola é uma instituição precoce ou antecipada.

Antecipação, por exemplo, foi a tentativa dos jesuítas de, “numa so-ciedade que pelo agrarismo latifundiário e escravocrata, pelo desenvol-vimento urbano rudimentar e pela precária existência de classe média,revivia, de certo modo, as condições feudais, fundar, pela transplantação,a educação que na Europa correspondia à sociedade burguesa post-renas-centista” isto é, o ensino clássico-humanista , o qual “não tinha conexãogenuína com as condições da sociedade colonial”7.

Antecipação houve, igualmente, nas primeiras tentativas de cria-ção, após a Independência, de uma escola popular, sendo muito signifi-cativas as esperanças que se depositaram, na época, no chamado “ensino

7 Geraldo Bastos Silva, “A ação federal sobre o ensino secundário e superior até 1930”,em Revista do Serviço Público, Rio de Janeiro, ano XVIII, vol. 69, n. 3, pp. 347-348, dez. 1955. Para interpretação da educação humanista como expressão da soci-edade burguesa, ver Anibal Ponce, Educación y lucha de clase, Buenos Aires, J.Hector Matera, 1951, caps. V e Vl.

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mútuo”, expediente que se afigurava capaz do expedito milagre deescolarizar toda a população infantil e que fora, em seu país de origem,a Inglaterra da época da Revolução Industrial, uma tentativa de inspira-ção filantrópica de subtrair, pela instrução, os menores das condiçõesdesumanas do trahalho fabril e dos seus efeitos (Ver Nota B).

Ainda que de passagem, cumpriria assinalar uma condição de or-dem geral que concorre para dar ao esforço de construção de nosso sis-tema escolar, em seu conjunto, o caráter de antecipação: trata-se do graude diferenciação social, perante o qual o desenvolvimento de nossa edu-cação, quer primária quer média, esteve dificultado ou limitado pelaausência de condições que permitissem a formação de uma verdadeiraprofissão docente, sendo o ensino uma atividade suplementar, eventualou transitória, e não uma ocupação permanente e exclusiva, quando nãouma atividade substitutiva de malogrados em outras profissões.

Acentuando o caráter antecipatório dos primeiros esforços de im-plantação, no Brasil, de um sistema de educação profissional, diziam,no aludido trabalho sobre a escola de aprendizagem, os seus autores“Menos que de necessidades objetivas, esses antecedentes históricos doensino profissional brasileiro, constituídos por iniciativas fragmentári-as, oficiais ou de particulares, correspondiam ao sentimento despertadonas elites pela verificação, realizada por efeito do contraste em relaçãoaos países europeus mais desenvolvidos, da ausência de um verdadeiroartesanato”8.

Mas isso não ocorreu apenas em relação ao ensino profissional.Nossas instituições escolares, em todos os ramos e graus de ensino, nãose formaram espontaneamente, não foram precedidas de ensaios e errosrealizados no decorrer do próprio processo transmissor da cultura, pro-cesso a partir do qual se passaria da educação informal ao ensino delibe-rado, e deste à educação sistemática em instituições especializadas.

Ao contrário, essas instituições surgiram sem qualquer precedênciaorgânica e natural, foram completamente criadas, estabelecidas num meio

8 Guerreiro Ramos, Ewaldo da Silva Garcia e Geraldo Bastos Silva, “O problema daescola de aprendizagem industrial no Brasil”, op. cit., p. 147.

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no qual não se inseriam segundo o critério de exigências endógenas. Eassim se fazia porque se esperava dessas instituições o milagre de modi-ficar substancialmente esse meio, criando as necessidades ou exigênciasa que elas devessem satisfação, conformando-o segundo o padrão dassociedade, que nos emprestavam o modelo de acordo com o qual cons-truíramos nossa escola, fazendo-a saltar etapas no sentido de atingir oestado evolutivo já alcançado por tais sociedades.

Exemplarismo e antiutopismo na concepção doensino que nos convém

A consciência do caráter transplantado de nossa educação não nosdeve levar a certa espécie de idealização das condições em que funcionaa escola de outros países, nos quais, pela presença de uma culturaendógena, formada pela sedimentação de longa experiência histórica, aescola encontra condições mais favoráveis de existência.

Essa idealização das condições em que existe nesses países, precisa-mente aqueles que considerávamos mais cultos e adiantados, esteve sem-pre presente nos planos e concepções que elaboramos para o desenvol-vimento de nosso sistema educacional, caracterizando, no que diz respeitoà educação, uma atitude de tipo exemplarista.

Tal atitude conduz superestimar o poder da escola como foco decriação cultural, a esperar dela mais do que ela pode dar, na suposiçãode que a ocorrência daquelas condições mais favoráveis à sua vida, nospaíses onde isso acontece, é precisamente efeito da sua ação, tendendo-se, em conseqüência, a pleitear a difusão dos estabelecimentos de ensi-no, em nosso meio, a fim de criar condições semelhantes.

As raízes mais profundas de tal atitude, no entanto, não devem serprocuradas num peculiar instinto de imitação de que freqüentementesão acusadas nossas elites. Elas se encontram, antes, em crenças e con-cepções que condicionaram a educação, de modo geral, em determina-da fase da história do Ocidente.

Houve, realmente, na história das idéias pedagógicas, um momentoem que, pela confluência do filantropismo do Iluminismo e da crença

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no progresso, a educação foi concebida como panacéia para todos osmales sociais, como instrumento infalível, milagroso, de aperfeiçoamentohumano e progresso nacional. Dizia-se que “abrir escolas é fechar pri-sões”, assim como se atribuía à ação da escola a vitória prussiana de1780 sobre a França ou surpreendente desenvolvimento econômico dosEstados Unidos.

Não é de admirar, portanto, que, entre nós, se tenha depositado naescola muitas de nossas esperanças de progresso econômico e aperfei-çoamento cultural. Somente é de registrar o caráter acentuadamenteretórico ou declamatório com que se exprimiam tais esperanças, as quaisraramente se fizeram acompanhar de ações eficazes no sentido do em-prego dos meios materiais necessários à sua concretização.

No campo das realizações práticas, estivemos sempre muito aquémdo mínimo que se deveria ter feito para que houvesse proporção entre oque dizíamos esperar da ação escolar, mesmo levando em conta a estru-tura de nossa economia, até há pouco predominantemente agrária, e abaixa renda nacional que a caracteriza.

Diante dessas circunstâncias econômicas e da falta de um espírito,falta de iniciativa local semelhante à que existiu nos Estados Unidos,por exemplo, o qual poderia ter permitido o desenvolvimento escolarcom o caráter de empreendimento das comunidades, a ação escolar emnosso país repartiu-se entre as áreas de governo geral e regionais (pro-vincial ou estadual) e a iniciativa privada, marcada esta última, contu-do, menos pelo intento de atividade pedagógica livre do controle estataldo que pelo simples espírito de empresa, sem qualquer outra preocupaçãoque a de uma simples prestação remunerada de serviço.

Além disso, a ação do governo era inevitavelmente levada a assu-mir, como efetivamente assumiu, uma forma centralizada, quer se tra-tasse de área de governo geral–centralização nacional, quer das áreasde governos regionais–centralização provincial ou estadual. Uma dascaracterísticas mais salientes da ação centralizadora consistia na impo-sição de padrões, uniformes em toda a extensão das respectivas áreas,sem que houvesse nenhuma previsão de ajustamento desses padrões àdiversidade de situações locais em que as escolas realmente existiam.A adaptação mais ou menos simulada, ou mais menos formal, a tais

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padrões se tornava, assim, ou valorizar, em face dos consumidores, oserviço que forneciam, mediante o visto ou a fiscalização do poder pú-blico.

Em tal situação de desnível, entre uma alardeada fé no poder daeducação e o estado de insuficiência quantitativa e qualitativa do siste-ma escolar, de uma parte, e os padrões oficiais e efetivos que norteavama vida das escolas de outra, fomos vivendo até o momento em que apressão das condições objetivas começou a atuar no sentido de fazer daexpansão e do aperfeiçoamento qualitativo da nossa educação não mais,apenas, um reclamo de nossa vaidade patriótica, mas um imperativo denosso desenvolvimento e de nossa própria sobrevivência como nação.

Nesse momento, contudo, começou igualmente a se esboçar umanova atitude em relação à escola, atitude que chamaremos antiutópica,pois envolve, implícita ou explicitamente, uma concepção mais realistado valor e do poder da educação.

Parte essa atitude do pressuposto, dúvida mais plausível, de que ascondições que se verificam nos países geralmente considerados por nósexemplares, em matéria de ensino, não são devidas à ação da escola, porserem, ao contrário, as que modelam a instituição escolar, no que elatem de socialmente operante.

E, em conseqüência, passa-se a admitir, em face de nossas condi-ções diversas, seja por peculiaridade de caráter nacional, seja por efeitode condições morais ou econômicas, que nossa escola não pode ser tãoperfeita ou tão eficiente quanto à desses países, e, como cada povo tema educação que merece, só nos resta esperar que nossas condições semodifiquem até ser realmente exigida, ou permitida, uma escola com omesmo padrão da escola dos países modelos (Ver Nota C).

Em forma subentendida, essa atitude faz sentir-se no fato de que aeducação, hoje em dia, é com menor freqüência objeto de declaraçõesretóricas acerca de seu poder absoluto ou dos ingentes sacrifícios quepor ela se devem fazer.

Mas a atitude antiutopista tem, além disso, uma expressão ostensivana idéia de que educação é uma obra que se pode empreender de qual-quer forma, improvisadamente e com os meios materiais e humanos maisprecários. Abrir escolas boas ou más, perfeitas ou deficientes, com ou

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sem professores devidamente capacitados, torna-se uma nova forma demística educacional, bem adaptada, aliás, aos intuitos demagógicos deuns ou à “ Livre empresa” de outros...

Assim, o que tal atitude demonstra é que houve, realmente, a passa-gem súbita de uma concepção da eficácia absoluta da educação para ada sua total importância, as quais, no entanto, são, ambas, reveladorasde uma inadequada concepção das relações entre a escola e estruturainstitucional em seu conjunto, entre a educação e a totalidade do proces-so sociocultural, entre o sistema escolar e as condições sociais de umanação.

A concepção sociológica da educação

Nenhuma sociedade apresenta condições ideais para a existência daescola, quer dizer, condições que permitam o funcionamento dessa ins-tituição sem atritos nem desajustamentos, mas com plena utilização deenergias no sentido de objetivos bem definidos e realizáveis, com inte-gral convergência da ação educativa tanto da escola quanto das demaisagências sociais.

Em algumas sociedades, as condições serão mais favoráveis e emoutras menos, nunca, porém, serão ideais no sentido de permitir que aescola se harmonize com a totalidade da vida sociocultural de um povoa tal ponto que o processo da educação escolar se entrose perfeitamenteno processo total da vida social.

O dinamismo, a contínua mudança que se verifica na vida social,feita de contradições, de desajustamentos e da permanente procura denovos ajustamentos, torna impossível tal entrosamento.

A própria natureza da instituição escolar, porém, faz com que emnenhuma sociedade a escola seja um produto, totalmente espontâneo,do desenvolvimento vegetativo da vida cultural, uma projeção orgânicada totalidade e da cultura de um povo, uma expressão da autenticidadedessa cultura.

Essa afirmativa não significa, de modo algum, a negação do concei-to sociológico da educação como processo de transmissão da cultura

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através das gerações, processo que envolve os indivíduos desde o nasci-mento e se prolonga após o término da escolaridade.

Esse conceito, fazendo da educação escolar–educação institucionali-zada, formal, sistemática – um caso particular do processo geral da edu-cação, corrige a anterior concepção “compartimentalizada” da educação,na designação de Mannheim (Ver Nota D), e indica ao mesmo tempo, anecessidade de organizar-se o trabalho escolar como prolongamento esistematização, seleção e fortalecimento das influências educativas daprópria vida social em seu conjunto.

Salientando o caráter global do processo educativo, escreve RolandCorbisier:

Conservadora desse legado, a comunidade humana, quando atinge certo grau

de desenvolvimento e de consciência, se empenha não só em conservá-lo mas

em transmiti-lo procurando modelar os indivíduos de acordo com o ideal

humano e a concepção da vida que caracterizam a sua cultura. Como ação e

influência constante da comunidade sobre o indivíduo, a educação não se reduz

ao aprendizado de certas técnicas ou especializações que permitiriam o exer-

cício de uma profissão ou ofício qualquer, mas coincide com a vida humana,

que, por natureza, se desenrola no seio de uma comunidade, na atmosfera da

“polis”. Entendida como o conjunto de estímulos, solicitações e influências

que determinam, por reflexo ou impregnação, o pensamento e a conduta dos

homens em sociedade, a pedagogia transborda dos limites das escolas, liceus

e universidades, para identificar-se com a política, isto é, com a missão de que

está investida a comunidade de formar os homens de acordo com os ideais e

valores da cultura de que é portadora9 .

É esse conceito sociológico da educação que nos faz compreendernão só a importância decisiva, a preponderância dessas influências edu-cativas difusas, assistemáticas e informais do meio social em seu con-junto, sobre a ação especializada, sistemática e formal da escola, mas a

9 Roland Corbisier, Situação e problema pedagógico, p. 20.

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situação primordial, originária de tais influências e a natureza secundá-ria, derivada da ação da escola10.

A educação tem uma finalidade social ampla, qual seja, a de sociali-zar, mediante a transmissão de cultura como totalidade ou no seu núcleode valores universais mais relevantes, os imaturos das novas gerações.Assim, antes de haver objetivos específicos a serem atingidos pelo tra-balho de uma instituição social especializada, que é a escola, os objeti-vos da educação emergem, de modo completo, do processo mesmo davida social, situam-se no plano dos valores e ideais de uma sociedade.

Historicamente, a escola surge em grau avançado do desenvolvimen-to da vida social e da cultura. Nas fases iniciais desse desenvolvimento,vislumbram-se indícios de instrução deliberada e formal, mas tais indí-cios não chegam a estabelecer uma instituição especializada que impri-ma ao processo educativo caráter sistemático e possa, com acerto, serchamada de escola.

A educação tem, assim, nessa primeira fase, caráter assistemático,realizando-se mediante o processo de progressiva participação dos ima-turos nas atividades sociais, participação pela qual se vão desenvolven-do e modelando suas personalidades, ao mesmo tempo que adquirem ashabilidades necessárias à vida de adultos e são submetidos, em certasoportunidades, a determinada instrução formal destinada a inculcar-lhesa necessidade de velar pela conservação do grupo e a ensinar-lhes osmeios de assegurá-la11.

A crescente complexidade da vida social, representada pela necessi-dade de novas instituições, que caracterizam o regime de vida urbana,acompanhada do enriquecimento da cultura, de que o aparecimento dalinguagem escrita é expressão particularmente relevante, por ser a con-

10 “The things outside the schools matter even more than the things inside the schools,and govern and interpret the things inside”, diz Michael Sadler, citado por Kandel(The new era in education, Boston, Houghton Mifflin Co., 1995, p. 56), o qualcomenta: “he might have added also that it is the function of all concerned witheducation to be aware of ‘the things outside schools’, for the are forces that deter-mine the character of education”.

11 Ralph Turner, Las grandes culturas de la humanidad, México, Fondo de CulturaEconómica, 1948, pp. 98 e ss.

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dição de um saber literário, determina, em fase posterior, o aparecimen-to da escola.

Origina-se, realmente, essa nova instituição da importância que ad-quire a necessidade de transmitir uma literatura escrita e de ensinar cer-tas pessoas a escrever. E a escola se desenvolve, pela primeira vez, nasantigas culturas do Oriente sob o controle de uma classe sacerdotal oude escribas seculares para os quais a arte da escrita é essencial, emborao objetivo da educação, em sentido amplo, permaneça essencialmente omesmo das culturas primitivas12.

A escola, produto do invento e problema

A passagem da educação como processo geral para a educação comoprocesso escolar marca, nesse campo, a transição da fase da descobertacasual para fase do invento, distinguidas por Mannheim como duas dasetapas gerais do pensamento em sua função de instrumento de soluçãodos problemas enfrentados pelo homem em suas situações existenciais.

A fase da descoberta casual caracteriza-se pela circunstância de que

em um mundo no qual o homem luta com natureza diretamente, e no qual a

seleção natural regula todo o processo, um indivíduo ou um grupo descobre

acidentalmente, entre grande número de possibilidades, os tipos de reação

que se ajustam a uma situação dada. O trabalho do pensamento consiste en-

tão em recordar a solução correta que foi descoberta...Os grupos que não

podem conservar nem transmitir a maneira acertada de fazer as coisas desa-

parecem inevitavelmente.

Nessa fase, a educação consiste, essencialmente, em conservar etransmitir os processos acertados de fazer as coisas, e se realiza de modoassistemático e predominantemente informal, e seu conteúdo são “os

12 R. Freeman Butts, A cultural history of education, Nova York, McGraw-Hill, 1947,pp. 20 e 22.

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mandatos positivos e os tabus que os antepassados da tribo elaboraramna base dos descobrimentos casuais e que devem ser cumpridos fiel-mente”13.

Da mesma maneira que “ainda hoje reagimos ante muitas situaçõesum tipo de pensamento e de conduta que ainda se acha no nível do des-cobrimento casual”, ainda hoje grande parte do processo educativo é feitaassistemática e informalmente, como o era entre os povos preletrados.

A fase do invento começou “quando os utensílios e as instituiçõesforam conscientemente modificados e, portanto, dirigidos para fins de-terminados”14. No campo da educação, essa fase se caracteriza pela emer-gência da instrução formal e, posteriormente, pelo aparecimento dainstituição de educação sistemática, a escola.

É por ser um invento criado conscientemente, dirigido para fins de-terminados e introduzido na vida social de um povo, que a escola temesse caráter artificial, ao qual se referiu Anísio Teixeira, ao escrever: “Aescola em parte já é de si uma instituição artificial e abstrata, destinadaa complementar, apenas, a ação de educação, muito mais profunda eextensa que outras instituições e a própria vida ministram”15.

Esse caráter artificial da instituição escolar leva-nos de volta ao pro-blema, que de início assinalamos, da escola em geral, da instituição es-colar de qualquer tipo ou grau, bem como do sistema escolar em seuconjunto, problema que se encontra na raiz das questões especiais queafetam cada escola ou o sistema todo.

Resume-se o problema educacional em fazer funcionar harmonio-samente as instituições escolares no contexto das influências difusas,assistemáticas e informais do meio social, influências originalmente re-sultantes de um processo formativo, por descobertas casuais e seleçãonatural, que se confunde com o próprio processo da gênese e acumula-ção da cultura.

13 Karl Mannheim, Libertad y planificación social, México, Fondo de Cultura Eco-nómica, 1942, p. 136.

14 Idem, p. 137.15 Anísio Teixeira, “A crise educacional brasileira”, op. cit., p. 24.

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Tal problema independe, até certo ponto, da circunstância especialde serem tais influências, em determinada sociedade, expressão de umacultura transplantada e não de uma cultura formada endogenamente nopróprio ambiente em que a escola funciona.

A problematicidade é, pois, inerente à própria instituição escolar,urbi et orbi, como decorrência de seu caráter artificial, o que eqüivale adizer que as influências propriamente educativas, e não meramente ins-trutivas desta última, serão sempre, parcialmente e em graus variáveis,toleradas apenas, reforçadas ou neutralizadas pelas influências, de al-cance mais amplo, do meio social em conjunto.

Assinalar o caráter artificial e inventado da escola, no entanto, cor-responde a afirmar que a escola é algo criado deliberadamente para aten-der a problemas surgidos no curso da existência humana, algointencionalmente construído para satisfazer a necessidades surgidas noprocesso da vida social de um povo, e, assim, dirigido para fins ou obje-tivos determinados.

A diferença entre descoberta casual e invenção não é uma diferençaentre categorias de objetivos, mas entre métodos de consecução e deaproveitamento da experiência anterior.

O método, na fase da descoberta casual, é o de ensaios e erros queigualmente se aplica ao objetivo da conservação e transmissão das des-cobertas feitas. Na fase do invento, há a procura inteligente de soluçãode um problema conscientemente percebido; solução a que se chega porintuição divinatória ou raciocínio e cujos resultados devem, pelos mes-mos métodos, ser conservados e transmitidos, ou ainda, conscientemen-te modificados. Em ambos os casos, porém, o estímulo do pensamentosão sempre os problemas de ordem técnica ou de ordem social que ohomem tem de enfrentar para assegurar sua sobrevivência ou a existên-cia do grupo, dependente da conservação e do enriquecimento dos valo-res materiais e morais que constituem seu patrimônio.

O problema atual da escola

A invenção de qualquer instituição social, como a escola, por exem-plo, visa à solução de determinados problemas.

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Kandel assinala o fato de que a educação sempre se fez sem plano ecresceu sem qualquer idéia de sistema. “Historicamente”, diz ele, “osdiferentes ramos da educação que constituem um sistema nacional deeducação desenvolveram-se mais ou menos independentemente, foraminfluenciados por diferentes forças sociais e outras, e não o resultado deum plano organizado”. A escola secundária e a superior, para o treinamen-to de líderes, observa Kandel, surgiu em primeiro lugar. A escola públicaelementar e obrigatória veio depois e sem nenhum propósito de articula-ção com a escola secundária. A escola profissional, precedida pelo apren-dizado, estabeleceu-se depois da rápida expansão industrial e comercialdo século XIX, à parte não só da escola elementar como da secundária16.

Essas observações de Kandel revelam justamente o fato de que osvários tipos de escola se instituíram como instrumentos de solução deproblemas não só diferentes, mas, de certo modo, independentes. Hoje,temos consciência do problema total da educação, e entre os pedagogosse formula a aspiração por uma organização escolar mais sistemática,que articula melhor o conjunto dos diferentes tipos de escola. Na raizdessa consciência, há uma situação objetiva que realmente exige umavisão total do problema educativo tal como atualmente se apresenta.

Há, pois, um problema educacional peculiar ao desenvolvimento dasociedade em sua fase atual que, de pontos de vistas distintos, chama-mos sociedade de massas, sociedade industrializada, sociedade da fasetecnológica, ou, expressando a tendência que o processo histórico assu-me nela, sociedade planificada.

Convém lembrar que a idéia de sistema, em educação, não é propria-mente nova. Seus antecedentes podem ser seguidos até o século XVIII,pelo menos. Durante a Revolução Francesa, foi uma das inspiraçõesmais constantes dos propugnadores da educação pública. Nessa época,quando as condições da sociedade tecnológica apenas se anunciavam, aidéia de sistema exprimia o propósito de fundar ou estabelecer uma or-ganização escolar baseada em critérios racionais e não apenas costu-meiros ou tradicionais, e essa pretensão de fundar ou estabelecer um

16 I. L. Kandel, Educação comparada, São Paulo, Editora Nacional, 1947, vol. 1,pp. 25-26.

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sistema de educação ex-nihilo explica talvez o pouco êxito da Revolu-ção Francesa em matéria de ensino.

Hoje, quando já se encontra bem adiantado o processo de desenvol-vimento da sociedade tecnológica, a exigência de sistematização ou pla-nejamento do conjunto das escolas se impõe não só em virtude daspróprias condições sociais objetivas mas também das profundas conse-qüências, de ordem cultural e econômica, que a aplicação da ciência eda técnica criam para a educação.

O problema educacional dessa fase tecnológica não decorre somen-te do caráter artificial, inventado, da instituição escolar, mas principal-mente do fato de que a tomada de consciência da artificialidade da escolanos obriga a concebê-la não apenas in abstrato, ou a inventá-la por viado raciocínio, mas o pensá-la de modo concreto, referindo-a a objetivosespecíficos e limitados, e apreendendo-a em função da situação total emque se apresenta.

Na fase anterior, não se fazia mister pensar mais detidamente nasrelações da escola com as outras instituições sociais, nem mesmo pen-sar necessariamente na relação entre as várias escolas no sistema esco-lar, circunstância essa que explica o crescimento não planejado dossistemas escolares, assinado por Kandel.

Isso acontecia porque não se apresentava o problema da direçãoracional das relações entre a escola e as outras instituições sociais, oudas relações entre os vários tipos de escolas, setores esses que constitu-íam um vazio no qual o acaso ou a ação fortuita de causa e efeito levavaa adaptações espontâneas, automáticas, pois só na aparência uma novaescola, um novo plano de ensino eram criações inteiramente novas: suamaior parte, como diz Mannheim17, se originava de um processo seleti-vo de descobrimento, lento e tradicional, e o que pareceria novo apenasutilizava o que já existia, modificando-o conscientemente segundo prin-cípios e com vistas e objetivos mais ou menos explícitos.

Nessa fase, além disso, porque não era objetivamente necessárioconsiderar cada instituição no contexto real em que devia funcionar,

17 Karl Mannheim, Libertad y planificación social, op. cit., p. 159.

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podia-se pensar em estabelecer uma escola ou um sistema escolar, nosentido de partir de uma idéia perfeitamente clara, apriorística, de quedevia ser a instituição, para, em seguida, adaptá-la ao mundo mais am-plo em que deveria funcionar, mediante o uso e a experiência prática,quando adquirisse a instituição artificialmente construída, a elasticida-de vital necessária18.

Um dos aspectos do problema educacional da fase tecnológica é, por-tanto, a imperiosa necessidade de sistematização das várias espécies deinstituições escolares, a articulação dessas instituições entre si e tambémcom as influências educativas do meio sociocultural em seu conjunto.

O problema da sistematização das várias espécies de escolas pare-ceria talvez afetar somente as relações externas das instituições escola-res. Na verdade, porém, mesmo com referência apenas a esse aspectodo problema da articulação da escola com a sociedade total, ainda commaior evidência o problema educacional da fase tecnológica se apre-senta como o de uma completa reforma da instituição escolar.

O problema educacional dessa fase não consiste apenas na duplaarticulação das escolas entre si e do sistema escolar com a vida social,mas, também, em conexão com esse aspecto, e de alcance muito maior,no problema de transformar o processo e o conteúdo da educação emcada um dos tipos de escola que constitui o sistema escolar, num momentodado, a fim de os pôr em consonância com as condições da sociedadenesse momento.

Necessidade de pesquisa dos principia media

O fato de que se tenha de partir de uma situação existente, cujamodificação se impõe, apresenta o problema educacional, nessa fase,como o da reforma ou do planejamento do sistema escolar, se conside-rarmos afastada a possibilidade de fundação ou estabelecimento de umasociedade totalmente nova e do seu respectivo sistema de educação,como, de certo modo, aconteceu na Rússia.

18 Idem, ibidem.

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Em outros termos, deve-se partir daquilo que existe, planejando-sesegundo objetivos imediatos, a serem realizados pela direção do pro-cesso em curso nas instituições existentes, e de acordo com as relaçõesque se estiverem verificando entre o sistema escolar e as outras institui-ções sociais, assim como entre os vários tipos de escola que constituemo sistema escolar.

Como a tecnologia – intrinsecamente, por meio da uniformidade,que tende a realizar, dos modos da organização das atividades humanasem função de critérios universais e quase unívocos de racionalização, e,extrinsecamente, pela ampliação dos círculos de contatos humanos e dopoder dos centros de integração cultural, econômica e política – produzuma crescente difusão das mesmas tendências sociais entre os povosmais afastados, o problema educacional de fase tecnológica apresenta,igualmente, aspectos comuns nas várias sociedades.

Em outros termos, a fase tecnológica, que historicamente ocorreuprimeiro em determinadas sociedades, em virtude da força expansivaque lhes imprime e que é própria das tendências sociais que a consti-tuem e que fazem dela, realmente, uma fase de evolução humana e nãoum mero episódio histórico, envolve progressivamente as outras socie-dades no mesmo processo civilizatório, provocando assim uma acelera-ção de mudança social no sentido da plena adoção, por parte delas, dasformas de civilização tecnológica (Ver Nota E).

No entanto, assim como as tendências e os fatores especiais que con-figuram a fase tecnológica só podem ser adequadamente compreendi-dos, o que não implica negar certa ordem de leis e fatores universais queoperam na sociedade em qualquer de suas fases, como a concreção his-tórica particular de leis especiais do tipo chamado por Mannheim deprincipia media e que regem a vida social e a cultura nessa fase, assimtambém, nas diversas sociedades particulares, que já ingressaram nessafase, encontram-se fatores e tendências peculiares que a configuram comouma realidade individual e única19.

19 Sobre os principia media e a necessidade e importância de sua determinação, ver KarlMannheim, Libertad y planificación social, op. cit., parte IV: “El pensamiento alnivel de la planificación”, especialmente os caps. IV e VI.

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Assim, o problema educacional da fase tecnológica apresenta, emcada sociedade, não apenas pelo fato de estar cada um delas em fasediferente do processo de advento da civilização tecnológica, uma confi-guração peculiar resultante dos fatores e tendências operantes no pro-cesso histórico e individual de formação de cada sociedade e de seusistema escolar.

Além disso, porque estamos ainda na fase inicial da era tecnológica,da qual não transcorreram sequer dois séculos, contra cerca de cinqüen-ta das fases anteriores da história humana, é natural que os seus váriosproblemas, entre os quais se inclui o educacional, apenas estejam come-çando a se fazer sentir, circunstância essa que, aliada ao fato de as mu-danças nos vários segmentos da realidade sociocultural ocorrerem des-compassadamente – em uns se verificando a sobrevivência de valores einstituições de épocas anteriores, enquanto em outros se observam no-vos ajustamentos às situações emergentes –, significa não só que essesproblemas se compõem de aspectos heteróclitos, mas também que ossistemas institucionais destinados a enfrentá-los são trabalhados por ten-dências contraditórias, prolongamentos de situações anteriores e respos-tas às situações emergentes.

O conhecimento preciso da situação existente, em que atuam ten-dências contraditórias dessa espécie, é o primeiro requisito de qualquersolução adequada do problema. Seu ponto de partida, no que diz respei-to ao problema educacional, é o fato de a origem, independente dosvários tipos de escolas – expressão da situação desse problema, nas fa-ses anteriores –, apresentar-se na forma de problemas específicos, a cadaum dos quais corresponde um desses tipos de escola.

A partir desse dado básico, tal conhecimento objetivará o modo peloqual se constituíram os sistemas nacionais de educação, os fatores deordem social, cultural, política, ideológica e econômica que condicionamsua formação, fatores gerais operando sobre todos os sistemas educacio-nais, e fatores particulares que o estudo comparativo dos vários siste-mas permitirá discernir.

Como desempenha, entre os fatores que provocaram a tendência à sis-tematização das organizações escolares, papel saliente o fator político, tra-duzido pela ação do Estado no desenvolvimento da educação pública –

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dirigida para fins políticos e custeada pelos fundos públicos e no estabe-lecimento do controle de todas as escolas por meio de uma organizaçãoadministrativa específica, o aspecto do problema educacional como pro-blema a ser enfrentado pela ação pública terá o merecido relevo.

A conjugação dos fatores de ordem ideológica –, representados pelocrescente amadurecimento de uma concepção de vida democrática eque atuam no sentido da exigência de igualdade de oportunidades deeducação para todos os imaturos, sem consideração da posição de clas-se social e de situação econômica –, e dos fatores econômicos, que ope-ram no sentido de fazer da educação instrumento de eficiência produtivadas populações e de obter a melhoria de suas condições de vida pelodesenvolvimento econômico, é de importância decisiva para a adapta-ção do sistema escolar às exigências da sociedade teológica.

Educação e desenvolvimento econômico

O grau de desenvolvimento em que se encontra um país tem suaexpressão pedagógica ou escolar em índices numéricos, tais como a taxade alfabetização da população, a porcentagem da população em idadeescolar que efetivamente freqüenta as escolas, duração da escolaridademédia e outros. Nos países desenvolvidos ou em processo de aceleraçãode seu desenvolvimento, observam-se tendências muito nítidas à elimi-nação do analfabetismo, à crescente escolarização da população infantile adolescente, ao aumento progressivo da escolaridade média.

A obtenção de níveis mais altos de alfabetização e de escolarização,bem como de certo prolongamento da escolaridade média, constitui,portanto, objetivo de toda política de desenvolvimento no que diz res-peito ao seu aspecto educacional.

Em nenhum outro aspecto, porém, mais que no da educação, faz-semister, para a formulação adequada dessa política, a compreensão exatadas relações causais envolvidas no processo do desenvolvimento eco-nômico e social.

Partindo da incontestável verdade de que “o desenvolvimento eco-nômico é apenas um valor instrumental, enquanto o desenvolvimento

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social se configura como um valor terminal”20, devemos reconhecer nodesenvolvimento escolar o valor não só terminal – como aspecto que édo desenvolvimento social – mas também o valor instrumental, pois odesenvolvimento econômico implica sempre um aspecto técnico, querconsista este na acumulação de novos conhecimentos científicos e noprogresso da aplicação desses conhecimentos, quer se defina como umprocesso de assimilação da técnica predominante na época21. Em ambosos casos, está implícito o problema da formação e de adestramento dosagentes capazes de realizar novos conhecimentos e aplicar os conheci-mentos disponíveis, ou de assimilar a técnica existente.

Ora, a duplicidade do valor da educação, do ponto de vista do desen-volvimento econômico, provoca uma série de equívocos que é indispen-sável desfazer para formular uma adequada política de desenvolvimento.

Os dois primeiros desses equívocos decorrem diretamente do pró-prio desconhecimento dessa duplicidade axiológica do desenvolvimen-to escolar, da confusão entre os seus valores, do que resulta, antes detudo, a pregação à outrance do desenvolvimento escolar, como se osníveis desses desenvolvimento, tais como se apresentam nos países de-senvolvidos, pudessem ser atingidos independentemente das condiçõesobjetivas, especialmente econômicas, que os tornam possíveis.

Tal confusão nada mais é do que um aspecto particular daquela ati-tude de exemplarismo educacional que assinalamos, e cuja conexão comas idéias filantrópicas e iluministas, surgidas no século XVIII, e com acrença no progresso, características do século XIV, sugerimos.

Foi, realmente, dentro da configuração ideológica criada por essesfatores, que a difusão da escola passou a ser considerada como uma dasmetas mais importantes, quando não a meta suprema, do progresso social.

O desenvolvimento da educação passava assim a ser um alvo em simesmo, ou a reivindicação máxima da época, como diz Anísio Teixeira:“Os povos porfiavam, em verdadeira emulação política, por essa con-

20 Roberto Campos, “Cultura: desenvolvimento”, em Introdução aos problemas doBrasil, 1956, p. 222.

21 Ver Ewaldo Corrêa Lima, “Política de desenvolvimento”, idem, p. 58.

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quista, que fornecia ao pensamento das elites e às aspirações das massasalgo como uma nova mística – mística da educação popular. As naçõespassaram a se classificar, entre si, tanto mais civilizadas quanto maisescolarizadas fossem as suas populações”22.

Mas, além dessa valorização absoluta do desenvolvimento escolarcomo índice e objetivo do processo total do desenvolvimento, ocorreainda um segundo equívoco, o do exagero do valor instrumental do pri-meiro em relação ao segundo.

A educação tem sido considerada não apenas como índice de pro-gresso ou sinal, o mais expressivo, de adiantamento social, mas, igual-mente, como instrumento infalível e indispensável do desenvolvimentoeconômico. Por seu intermédio, qualquer nação poderia atingir segura erapidamente o grau de prosperidade observado nos países mais desen-volvidos, não havendo assim investimento mais compensador do que asdespesas com a educação pública.

O equívoco, portanto, como o do exagero do valor terminal do de-senvolvimento escolar, resultava, ainda nesse caso, na ignorância docaráter condicionado desse desenvolvimento, isto é, de uma insuficien-te percepção do fato de que os índices numéricos do crescimento esco-lar são função de condições infra-estruturais das quais esse crescimentonão é causa, por isso mesmo que nelas encontra os seus reais fatoresdeterminantes.

A eliminação do analfabetismo, por exemplo, só é um desideratorealmente viável quando deixa de ser função apenas de uma exigência,digamos moral, de esclarecimento das camadas populares, para tornar-se uma conseqüência das modificações que consubstanciam a transmis-são de uma estrutura socioeconômica predominantemente agrícola erural, para uma economia crescentemente industrial e urbana na qual,além de ser condição de eficiência social o indivíduo, a capacidade deler e escrever encontra permanente motivação em tipos de contratossociais, que no meio rural, são menos freqüentes e menos intensos.

22 Anísio Teixeira, “A educação que nos convém”, em Revista Brasileira de EstudosPedagógicos, Rio de Janeiro, vol. XXI, n. 54, p. 16, abr.-jun. 1954.

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Outrossim, a tendência de igualar-se a matrícula, nas escolas ele-mentares e médias, à quota da população imatura, bem como ao cres-cente prolongamento da duração média da escolaridade, que assinala aefetivação da primeira, somente se podem verificar em correlação como desenvolvimento econômico e social.

“Uma economia subdesenvolvida – diz o professor Oliveira Júnior,referindo-se especialmente ao curso secundário de tipo tradicional, mas,na verdade, acentuando um fato que atinge a escolaridade de nível mé-dio de modo geral, seja qual for o tipo de escola – não pode mantermuitas – centenas de milhares de jovens longe das atividades produto-ras até os 19 ou 20 anos, dedicados apenas aos estudos”23.

E a própria educação universal e gratuita de nível primário, formu-lada com exigência doutrinária desde o século XVIII e programada po-liticamente pela Revolução Francesa, somente começou a ser realizadade modo generalizado, como assinala ainda o professor Oliveira Júnior,após o considerável aumento da produtividade em virtude da revoluçãotecnológica, do qual também são efeitos das mesmas forças sociais quepermitiram reduzir consideravelmente as horas de trabalho e “vão aospoucos libertando as crianças das peias do trabalho, ensejando-lhes maiornúmero de anos de escolaridade”24. O desenvolvimento escolar está,pois, na dependência do desenvolvimento econômico, como efeito deri-vado, que é deste último.

Contudo, essa afimativa não pode servir de argumento em favor deuma atitude quietista em relação ao desenvolvimento escolar, que con-sistiria em relegar a plano secundário a preocupação de promovê-lo, àespera de que o desenvolvimento econômico o determinasse mecanica-mente, segundo uma relação unilinear de causa e efeito.

Tal argumento desconhece a circunstância, já assinalada, de que odesenvolvimento econômico é um meio, cujo fim é o desenvolvimentosocial e de que o escolar é um dos aspectos – bem como o fato de que a

23 Ernesto Luiz de Oliveira Júnior, Doze ensaios sobre educação e tecnologia, Rio deJaneiro, CAPES, 1956, p. 17.

24 Idem, p. 41.

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educação tem, efetivamente, um valor instrumental em relação ao de-senvolvimento econômico.

O corretivo dessa atitude quietista em relação ao desenvolvimentoescolar reside na adequada concepção do seu valor instrumental, con-cepção essa que nos permite desfazer o terceiro equívoco resultante doduplo aspecto – instrumental e final – do desenvolvimento escolar.

Consiste esse equívoco na adesão dos interessados no desenvolvi-mento escolar a formas educacionais predominantes em muitos paísesque há cem anos ingressavam na fase industrial, carregando o peso deuma tradição pedagógica em grande parte anterior ao progresso tecno-lógico.

Se esses próprios países tiveram ou estão tendo dificuldade em li-quidar essa tradição, conservando ao longo de seu desenvolvimento es-colar, durante muito tempo ou até hoje, formas educacionais ou partedelas em progressivo retardo com respeito a seu progresso não só socialmas econômico, não é de admirar que os países que somente agora tran-sitam da fase de subdesenvolvimento para a condição de países desen-volvidos, os quais, como é o caso do Brasil, estabeleceram suas institui-ções escolares mediante transplantação, sintam a mesma ou até maiorrelutância em desembaraçar-se dos arcaísmos pedagógicos.

No entanto, para que o desenvolvimento escolar torne-se instrumentode desenvolvimento econômico, é indispensável que se verifique essasuperação, a fim de que não só o aumento involuntariamente produzido,mas também o que deve ser deliberadamente procurado, dos índicesquantitativos do desenvolvimento escolar não onerem o aceleramentodo desenvolvimento econômico, mas o incentivem e o sirvam.

O problema escolar de um país emdesenvolvimento

A consideração do desenvolvimento, como acabamos de ver, levou-nos de volta ao problema de transplantação. A história educacional bra-sileira, em sua maior parte uma história reflexa, que releva o contínuoesforço em colocar nossa educação em nível equivalente ao das nações

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mais adiantadas, chega a um momento de crises quando se torna evi-dente que a transplantação das instituições escolares, dessas nações parao nosso país, não pode ser feita literalmente, mas deve pressupor umaatitude crítica que nos permita determinar as transplantações que pos-sam contribuir para acelerar o nosso desenvolvimento total, especial-mente econômico.

Até recentemente, as instituições educacionais transplantadas nãotiveram o papel que delas se esperava em relação ao nosso progressoeconômico e social, e isto se deveu à prevalência de condições econômi-cas de subdesenvolvimento, que não só tornavam impraticável uma acen-tuada expansão quantitativa do sistema escolar, mas também, dado o fatode que a educação escolar não tinha função realmente útil e necessária apreencher, irrelevante o problema da qualidade e do tipo de ensino.

Assim, o inevitável desajustamento entre as instituições transplan-tadas e uma realidade social e econômica faseologicamente anterior, erasuportável, pois, apenas tocado o país pelas transformações tecnológi-cas, o correspondente subdesenvolvimento escolar reduzia esse desajus-tamento a setores da população imatura.

Todavia, a partir do momento em que a transição para o estádio dedesenvolvimentos se precipita, e se assinala a tendência à expansão quan-titativa do sistema escolar, essa expansão, impondo-se como atitudedeliberada de aceleração do desenvolvimento, torna o desajustamentoinsuportável pelo ônus que acarreta para o próprio processo de desenvol-vimento.

Nessa fase de transição de estádio de desenvolvimento para umacondição de prosperidade econômica, fundada no progresso tecnológicae na planificação cuidadosa das inversões, assumem caráter realmentenocivo a fé em um valor instrumental absoluto de educação e, especial-mente, a crença de que qualquer educação escolar é melhor do que ne-nhuma, de que é conveniente a difusão de escolas de qualquer modo,sem uma lúcida determinação prévia do tipo de ensino e dos objetivosesperados, e sem a devida atenção às condições de instalação, de pro-fessorado e de eficiência didática.

A eficiência do ensino é, sem dúvida, nessa fase, critério básico,pois é o que permite verificar se o tipo de ensino escolhido, além de ser

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viável, é o mais indicado. A determinação desse tipo, no entanto é oobjetivo final e mais importante, para cuja consecução devem convergiras tentativas de interpretação teórica e a experimentação sistemática,devendo ambas receber o maior estímulo possível, a fim de que os in-vestimentos em instalações e as despesas de manutenção se façam nasmelhores condições de rentabilidade.

Em contradição com a crença na eficácia de qualquer educação, devetornar-se um postulado irrecusável a tese de que a educação pode ounão ter valor instrumental em relação ao desenvolvimento, dependendode sua qualidade e de seu tipo. Quanto ao seu tipo de ensino, podemosdizer, de modo geral, na medida em que se torna preponderante o valorfinal da educação, reclamada como um meio que permitiria colocar apa-rentemente um país subdesenvolvido no nível educacional, do ponto devista dos tipos e do grau de difusão, que se julgam próprios dos paísesadiantados, o resultado a que se chega é tornar nulo ou negativo o valorinstrumental do ensino.

É este, precisamente, o caso do nosso ensino secundário, cuja recenteexpansão, realizada na vigência de uma estrutura seletiva e inflexívelque, no entanto, não consegue prevalecer sobre o desejo interesseiro oudemagógico de criar maiores oportunidades de educação por meio deempresas às vezes pouco escrupulosas, de “educandários gratuitos” oude ginásios públicos instalados de afogadilho e dispondo de verbas in-suficientes, – resultou na sua transformação em mecanismo de desen-caminhamento de parcela considerável de nossa juventude das atividadesrealmente produtivas.

Em contraste com a acelerada expansão do ensino secundário, estáo moderado crescimento do ensino médio não secundário, isto é, o ensi-no industrial, agrícola e comercial. No entanto, não há setor educacio-nal que, em comparação com o constituído por esses ramos de ensino,apresente maior margem de coincidência entre o valor final e o valorinstrumental do ponto de vista do desenvolvimento. Essa coincidênciajustificaria não só crescentes inversões destinadas a promover o desen-volvimento escolar, mas também, com o fim de incentivar a matrícula, apermissão de acesso a seus diplomados, especialmente aos do ensinotécnico-industrial, às escolas superiores de todos os ramos, em igualda-

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de de condições com os diplomados pelo curso secundário, conforme asugestão do professor Oliveira Júnior, pois é incontestável que “só po-deria haver vantagem para o país em possuir nas profissões liberais al-guns elementos com formação de grau médio nitidamente tecnológica”25.

Mas, se o ensino industrial e o agrícola, pelo fato de exigirem insta-lações muito dispendiosas e que mais onerosas se tornam em virtude dapequena matrícula resultante de persistência de preconceitos contra otrabalho, só podem ser promovidos pela iniciativa do poder público,especialmente o federal, o ensino comercial, implicando um custo-alu-no mais baixo, atenderia, de modo certamente mais consentâneo com asnecessidades do desenvolvimento do país, ao desejo de ampliar as opor-tunidades de educação média, da parte iniciativa particular, caso estafosse mais esclarecida ou tivesse objetivo mais alto que o da simplesprestação remunerada de um serviço de grande demanda ou a buscademagógica de prestígio, fins para os quais a maior estimação social doensino secundário o torna mais indicado.

Mas, não só no campo de ensino médio, a procura irrefletida ouinteresseira do desenvolvimento escolar com o valor final ou abstrato,conduziu a uma situação de neutralização ou negação do valor instru-mental desse desenvolvimento. Também no campo do ensino primárioe no ensino superior situações análogas se apresentam.

No ensino primário, em relação ao qual já se verificaram em nossopaís, como no mundo todo, de modo geral, esforços mais amplos e maispromissores que no campo do ensino secundário, no sentido de seu ajus-tamento às necessidades dos tempos modernos, essa situação se carac-teriza, na descrição de Anísio Teixeira, pela “progressiva simplificaçãodo ensino, com a redução dos horários para alunos e professores”; pela“redução do currículo a um corpo de noções e conhecimentos rudimen-tares, absorvidos por memorização, e a elementaríssima técnica de lei-tura e da escrita”; pela “improvisação crescente de escolas sem condiçõesde funcionamento e sem assistência administrativa e técnica”26.

25 Idem, p. 92.26 Anísio Teixeira, “A educação que nos convém”, op. cit., p. 22.

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No ensino superior, já se faz sentir a mesma crescente improvisaçãode escolas, “sobretudo daquelas em que a ausência de técnicas específi-cas permite a simulação, ou o ensino simplesmente expositivo, como asde direito, economia e filosofia e letras” ainda no diagnóstico de AnísioTeixeira27, ao qual conviria acrescentar que, também aqui, a iniciativaprivada se coloca na vanguarda, mas freqüentemente, de modo maisinteresseiro ainda, com o propósito de caça às subvenções governamen-tais e de posterior encampação total dos institutos pelo governo federal,o qual já se vê a braços com encargos financeiros desproporcionados,em face não só de outras despesas com os de mais graus de ensino,como das necessidades reais do desenvolvimento do país.

Em vista da situação, aqui apenas esboçada, vigente nos vários grause ramo da educação brasileira, podemos dizer que, se há em nosso pro-blema educacional um aspecto quantitativo de aumento do número dematrículas, de unidades escolares, de professores, há também, não me-nos grave e não menos importante, um aspecto funcional que envolve arevisão dos princípios que informa cada tipo e cada grau de ensino, ainvestigação continuada das condições de funcionamento de cada umdesses tipos e graus, o planejamento do conjunto do sistema escolarpara o fim de fazê-lo servir, em todos e em cada um dos seus elementosconstitutivos, os quais se devem articular dinâmica e harmoniosamenteentre si, às necessidades do desenvolvimento.

São aspectos, ambos, que se verificam igualmente nos países plena-mente desenvolvidos, nos quais, sob o efeito do progresso tecnológico,foi possível e necessário, desde antes da Primeira Gerra Mundial, tornarprogressivamente obrigatória a escola primária, intensificando-se, emseguida, a revisão crítica da educação elementar, que se continua após aúltima guerra ao mesmo tempo que se opera a simultânea revisão críticada educação de nível médio e o esforço de prolongamento da obrigatorie-dade escolar até este nível.

Mas enquanto nesses países o aspecto funcional está simplificadopela circunstância de representarem seus sistemas escolares o resultadode uma experiência histórica de caráter mais genuíno, num país ainda

27 Idem, p. 23.

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208 revista brasileira de história da educação n° 6 jul./dez. 2003

subdesenvolvido, como o Brasil, o aspecto quantitativo, complicado pelacircunstância de serem transplantadas as instituições escolares, o que astorna de precárias raízes na realidade sociocultural, assume vulto gigan-tesco, pois implica vencer o subdesenvolvimento escolar ao mesmo tem-po que o econômico, de tal sorte que os investimentos que se fazemnum destes setores podem induzir à despesas possíveis no outro.

As nações adiantadas, ao ingressarem no século XX, como diz AnísioTeixeira, viram-se

aparelhadas com um sistema escolar que só caberia desenvolver e ampliar,

em face das necessidades novas, que os tempos vinham trazer-lhes. O hábito

da escola havia sido estabelecido, a previsão de recursos para a sua manuten-

ção definitivamente implantada e, o que é mais, as conseqüências práticas da

educação escolar reconhecidas como muito mais importantes do que as pre-

vistas, antes, de simples obra humanitária de esclarecimento28.

É verdade que muitos desses países, cujos sistemas escolares têmsuas origens na fase anterior ao desenvolvimento industrial, continuamafetadas por sobrevivência em progressivo retardo com relação às exi-gências da sociedade tecnológica, sobrevivência essas que sentem difi-culdades em superar, conforme dissemos.

Superá-las, no entanto, é mais fácil para esses países do que para umpaís subdesenvolvido, como o Brasil, resolver o problema que decorredo fato de ser aguçada a consciência da deficiência quantitativa do sis-tema escolar, modelado, aliás, segundo formas educacionais transplan-tadas, antes de que dispuséssemos dos recursos necessários à correçãodessa deficiência, e enquanto aumenta, como efeito da transição para afase de desenvolvimento, a pressão de uma população cada vez maisnecessitada de educação escolar.

Nossa situação, portanto, é uma situação de perplexidade, de confu-são e contradição, como diz Anísio Teixeira, pois “atingimos a consciên-cia de necessidades equivalentes às dos povos mais desenvolvidos em

28 Idem, p. 17.

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nossa época, mas desaparelhados de verdadeiras escolas, estamos a quererimplantá-las com a filosofia de épocas anteriores”29. E o sinal visíveldessa situação é, realmente, essa multiplicação puramente aparente deoportunidades educativas, a que alude ainda Anísio Teixeira.

Tal situação resulta, em última análise, do fato de que a precipitaçãoimplicada pelas tentativas de transplantação, tendo de início determina-do que instituições escolares permanecessem como que em estado desuspensão coloidal e com seu desenvolvimento quantitativo retardado,foi finalmente ultrapassada pela rapidez das transformações econômi-cas e sociais.

A estrutura escolar que, há trinta anos, ainda poderia, em sua maiorparte, ser considerada muito avançada em relação às exigência objeti-vas, hoje não mais satisfaz ao imperativo dessas exigências, as quais seexprimem de modo mais ostensivo na forma de uma desordenada ex-pansão escolar que atinge especialmente aquele tipo de ensino médioque, tendo por destinação normal o ensino superior, menos assegura,quando essa destinação é frustrada, uma integração saudável dos ado-lescentes nas atividades de produção.

Mas essas novas condições objetivas, que marcam a passagem deuma estrutura social e econômica predominantemente agrícola para umaestrutura crescentemente industrial, envolvem também a exigência defazer da escola um instrumento de desenvolvimento, de tirar da expan-são escolar o caráter de ônus improdutivo ao desenvolvimento total.

É, portanto, uma tarefa de sincronização da educação com as neces-sidades do desenvolvimento a que se impõe, e essa tarefa envolve arevisão crítica da estrutura e do funcionamento do sistema escolar, a fimde que se torne possível o seu conveniente planejamento.

Na parte em que essa revisão crítica enfrente o problema de ajustara educação às condições da sociedade tecnológica de modo geral, mui-tas lições temos a tirar do esforço que, nesse sentido, vêm fazendo asnações plenamente desenvolvidas, e de cujos resultados novas trans-plantações teremos necessariamente de fazer.

29 Idem, p. 18.

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Mas, não só para determinar quais devam ser, segundo o critério deaceleração do desenvolvimento, essas transplantações anteriores quepodem servir de pontos de apoio para o novo planejamento da educaçãonacional, é necessário uma cuidadosa interpretação dos aspectos peculia-res de nossa evolução educacional.

Antes que a era tecnológica se resolva em uma síntese cultural deâmbito certamente mais amplo que o de todas as sínteses anteriores, aeducação, como as demais manifestações da cultura, deverá inserir-seno projeto nacional de cada povo, que procura suas raízes no seu pró-prio passado.

Notas

Nota A – Guerreiro Ramos. “O tema da transplantação na interpre-tação sociológica do Brasil”, Serviço Social, São Paulo, ano XIV, n. 74,1954, p. 75. Em termos semelhantes se exprime Nelson Werneck Sodréem seu estudo histórico-sociológico da cultura brasileira:

No diagnóstico dos estudiosos do passado, e alguns do passado ainda próxi-

mo, existe uma anomalia que não pode deixar de chamar a atenção de todos.

É que tais estudiosos consideraram, e nisso estavam incorrendo em erro evi-

dente, a transplantação como um ato de vontade. Colocavam o problema

como se houvesse duas ou várias soluções, e a escolha má fosse feita entre

elas. Ora, a realidade era bem diversa. Não havia duas ou mais soluções. No

quadro da estrutura colonial – que avança além do período colonial – a imi-

tação, a cópia, a aceitação de postulados externos sem exame, tudo aquilo

que englobamos no conceito de transplantação, abrangendo desde institui-

ções até idéias literárias, não era uma escolha, era o único caminho. A trans-

plantação é um fenômeno específico do sistema colonial, não é um caso

particular do Brasil. Dentro do sistema colonial, não há outra solução.

Introdução aos problemas do Brasil, (Rio de Janeiro, Instituto Su-perior de Estudos Brasileiros, 1956, p. 178) – No mesmo ciclo de confe-rências a que pertence o estudo citado, Guerreiro Ramos tratou da

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problemática da realidade brasileira, desenvolvendo a categoria maisgeral de transplantação numa série de categorias analíticas que são asseguintes: duplicidade, heteronomia, alienação, amorfismo e inautenti-cidade. A interpretação do caráter transplantado da educação brasileira,que no presente trabalho é apenas esboçada, teria muito a lucrar se ten-tássemos a ampliação do sistema de referência proposto por GuerreiroRamos à análise da situação educacional brasileira. Aliás, é de justiçaressaltar que a obra já publicada, de Guerreiro Ramos, desde o Progres-so de sociologia no Brasil (Rio de Janeiro, Est. de Artes Gráficas, 1953)até à Introdução crítica à sociologia brasileira (Rio de Janeiro, Edito-rial ANDES, 1957), é rica não só de indicação esparsa sobre aspectosdeterminados dessa situação mas de análise de facetas de nossa realida-de, cujos resultados podem ser extrapolados no sentido de sua aplicaçãoaos nossos problemas educacionais.

Nota B – Aludindo ao fato de a lei de ensino de 1827 – o únicoresultado concreto das preocupações em prol do ensino que se manifes-taram depois da Independência e antes de permitir ao ato adicional queo encargo da instrução primária, fora do município da Corte, fosse trans-ferido para as províncias – já fazer referência ao ensino mútuo, e repor-tando-se às esperanças que, depois, o chamado método de Lancastercontinuou o despertar em relação à rápida difusão do ensino, observaRoberto Moreira que tal sistema não teve grande extensão prática noBrasil:

Vários presidentes de Províncias lamentam a sua não aplicação, certos esta-

vam de que ele poderia resolver o problema da instrução pública. Por outro

lado, parece que o nosso problema não era o de atender, por um só professor,

a um grande número de alunos. Os relatórios nos apresentam sempre escolas

com pequenas matrícula, aquém dos mínimos aceitáveis mesmo moderada-

mente.

O nosso povo vegetava no obscurantismo e não sentia grande necessidade de

instrução [...] Um país pobre, cujo trabalho estava todo entregue ao braço

escravo, devia ter as camadas populares em situações de miséria, com pouca

possibilidade profissional, mormente nas áreas rurais ou nas cidades do inte-

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212 revista brasileira de história da educação n° 6 jul./dez. 2003

rior, de modo que a instrução não teria função utilitária, parecendo mesmo

luxo, próprio dos senhores ricos que podiam mandar seus filhos para as capi-

tais, às aulas de latim e às academias. Acresce a tudo isso o problema do

magistério, a que se referiam os presidentes como se tratasse de uma calami-

dade pública [J. Roberto Moreira, Introdução ao estudo do currículo da es-

cola primária, Rio de Janeiro, Cileme, 1955, p. 27].

Diz ainda Roberto Moreira que “viveram os responsáveis pela ins-trução pública, ao tempo do Império, na angústia de um problema quenão podiam resolver”, e que “tentávamos realizar, quase sem mudançaou adaptabilidade própria, o que se realiza na Europa” (idem, p. 33).

Nota C – Podemos dizer que a meio caminho na passagem da atitu-de exemplarista à posição antiutopista, conservando em parte certos as-pectos daquela atitude e antecipando traços desta posição, situa-se o im-perativo da simples alfabetização como objetivo imedidato do esforçoeducacional brasileiro. Da atitude exemplarista conservou essa posiçãointermediária a avaliação da situação educacional brasileira segundo cri-tério inspirado na situação dos países mais desenvolvidos: sendo umacaracterística desses países a alta taxa de alfabetização, alcançar umataxa equivalente se afigurava o meio necessário e suficiente de nos al-çarmos ao mesmo nível de desenvolvimento social e econômico dessasnações. Da posição antiutopista antecipa a atitude intermediária o “ní-vel de aspiração” mais modesto e mais facilmente atingível diante dasnossas condições de país pobre: ainda que não nos seja possível realizaruma educação mais completa e acabada, devemos dar ao povo aquelemínimo de instrução que consiste no domínio da leitura e da escrita,mínimo que é o máximo que se pode fazer nas condições vigentes. Detal atitude disse muito expressamente Anísio Teixeira: “A idéia de quenão podíamos ter escolas como as estrangeiras, mas devíamos tentar asimples alfabetização do povo brasileiro, devemos convir, triste ou alegre-mente, foi a primeira idéia brasileira autóctone no campo da educaçãoe, talvez, por isso mesmo, destinada a uma grande carreira” (“Padrõesbrasileiros de educação escolar e cultural”, Revista Brasileira de EstudosPedagógicos, Rio de Janeiro, vol. XXII, n. 55, p. 9, jul.-set. de 1954).

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educação e desenvolvimento nacional 213

Nota D – Karl Mannheim, Diagnóstico de nuestro tiempo, México,Fondo de Cultura Económica, 1946, pp. 62 e ss.

En resumen, la sociología se nos há aparecido desde el primer instante como

una ayuda eficaz del maestro en sus esfuerzos por superar la compartimenti-

zación y la menguada concepción escolástica de la educación, ya que en sus

enseñanzas le orienta hacia las necesidades de la sociedad. Tropezamos

tambiém com la sociología como un auxiliar en la tarea de coordinar la práctica

educativa com las influencias que provienen de instituciones distintas de la

escuela, es decir, la amilia, la inglesia, la acción benéfico-social, la opinión

pública, etc. Vimos que sólo puede captar el sentido auténtico de la educación

si su funcionamiento se basa sobre un estudio a fondo de la conducta humana

en sus aspectos sociológicos. Nos encontramos de nuevo a la sociología en

calidad de elemento auxiliar en la interpretación de muchos de los conflitos y

desajustes psicológicos de los indivíduos, mero reflejo de los desajustes pre-

sentes en su circunstancia social imediata. Por último, la sociologia se nos

mostró, asimismo, como una ayuda para la comprensión de las fuentes pro-

fundas de deterioro de nuestra vida moral e cultural, originadas por la

desentigración de la tradición y de la estructura social dominante [p. 68].

A contribuição positiva da aplicação da sociologia ao estudo da edu-cação justifica o programa de uma sociologia educacional que, nas pa-lavras de Fernando de Azevedo,

pelo estudo das condições concretas da atividade educacional e suas relações

com as outras manifestações, econômicas, políticas, religiosas, etc., da vida

social, pretende conhecer a natureza dos fatos de educação, estabelecer as

relações constantes entre os fenômenos pedagógicos e outras categorias de

fatos sociais, entre o sistema social pedagógico e outras categorias de fatos

sociais, entre o sistema social pedagógico e o sistema social geral, e chegar,

por essa forma, à teoria dos mecanismos educacionais considerados de al-

gum modo in abstrato, isto é, despojados das condições precisas de lugar e

tempo [Sociologia educacional, São Paulo, Editora Nacional, 1940, p. 51].

A esse programa, formulado, como se sabe, sob a inspiração do pen-samento durkheimiano, há certamente a incorporar as contribuições da

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214 revista brasileira de história da educação n° 6 jul./dez. 2003

sociologia educacional norte-americana, a qual, embora dominada “me-nos pela idéia de observar a realidade social e refletir sobre ela do quepela de empreender a sua reforma ou reconstrução” (Fernando de Aze-vedo, 1940, p. 43), esforçou-se por ampliar os seus quadros de referênciasob o efeito, entre outros estudos sociológicos, da “descoberta e inter-pretação do significado e função da cultura”, “da compreensão do im-pacto da mudança social” e da verificação empírica da importância da“dinâmica da classe social no crescimento e desenvolvimento dos edu-candos” (cf. Dan W. Dobson, “Educational sociology throught twenty-five years”, The Journal of Educational Sociology, vol. 26, n.1, pp. 2-6,setembro de 1952). Sobre classe social e educação: Theodore I. Lenn,“Social class: conceptual and operational significance for education” (TheJournal of Educational Sociology, vol. 26, n. 2, pp. 51-61, outubro de1952). Além desses aspectos macrossociológicos, cujo estudo tem cons-tituído a tarefa predominante da sociologia educacional, deve esta in-cluir a aplicação de conceitos analíticos destinados a retratar os váriosaspectos da vida da escola enquanto grupo social dotado de dinâmicaprópria e até mesmo possuidor de uma cultura em grande parte autógena,bem como traduzir os vários aspectos da relação entre professor e alu-no. Para essa microssociologia da vida escolar, o livro de Willard Waller(Sociology of teaching, New York, John Willey, 1932) representou há25 anos um trabalho pioneiro e que continua a ser o único da bibliogra-fia norte-americana, ao que sabemos. Recentemente, a revista Educa-ção e Ciências Sociais (Rio de Janeiro, ano I, n. 2, pp. 139-162, agostode 1956) divulgou interessante tentativa de análise sistemática dessesaspectos microssociológicos da educação, de autoria do professor An-tonio Candido, sob o título “A estrutura da escola”. É preciso ainda acen-tuar, com referência aos aspectos macrossociológicos, que essa “teoriageral” dos fenômenos educacionais “considerados de algum modo inabstrato, isto é, despojados das condições precisas de tempo e lugar”,para conjurar o perigo do excesso de generalidade, a que se expõe comoconseqüência da preocupação de apenas “observar a realidade social erefletir diante as tarefas de interpretação, reconstrução e condução dossistemas escolares, a fim de que o conhecimento sociológico da educa-ção, como todo pensamento, seja referido a uma situação e orientação

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educação e desenvolvimento nacional 215

no sentido de transformá-la. Uma das condições prévias e básicas paraisso é que o conhecimento sociológico, sem diluir-se em história da edu-cação, tenha sempre presente o caráter eminentemente histórico do fe-nômeno educacional. A história da educação, como todo conhecimentohistórico, preocupa-se “com a percepção absolutamente exata do fatosingular, tal como o deparamos em situações únicas”. Em contraposiçãoao ponto de vista da história, está o dessa teoria geral da educação con-siderada in abstrato, que trataria a educação como existente em um“mundo em geral”, precindindo das qualidades individuais de cada sis-tema pedagógico, a fim de procurar os fatores gerais que condicionamtodos os sistemas escolares (cf. Karl Mannheim, Planificación y libertadsocial, México, Fondo de Cultura Económica, 1942, pp. 153 e 160). Entreo ponto de vista da história e o da teoria geral da educação, deverá situ-ar-se um ponto de vista especial que, partindo do caráter essencialmentehistórico da educação, como de toda realidade social, e sem dispensarcerta teoria dos fatores gerais, visa, no entanto, a descobrir também aque-las leis especiais que regem a educação em um lugar e em um tempodados (cf. idem, ibidem, p. 159). E para a inserção desse ponto de vista,ao qual corresponde também a concepção da história como campo deexperimentação e reformas, a que alude Mannheim, faz-se necessário oconceito da problematicidade essencial da escola, da qual decorrem osproblemas particulares que afetam cada escola de qualquer tipo e grau eo sistema escolar em seu conjunto.

Nota E – Em seu estudo sobre situação e alternativas da cultura bra-sileira, ao tratar dos contatos culturais entre povos afastados no espaço,que se intensificam em conseqüência do progresso tecnológico, RolandCorbisier assinala um dos efeitos secundários da ampliação dos círculosde contato, que, ao mesmo tempo, se constitui como um perigo para aconservação do caráter original e até mesmo da sobrevivência das cul-turas que se iniciam na assimilação da técnica européia:

A universalização da ciência e da técnica européia tornará cada vez mais

intensa essa forma de contato, a distância, entre diversas culturas. O inter-

câmbio cultural, entre povos arcaicos e subdesenvolvidos e a moderna técni-

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216 revista brasileira de história da educação n° 6 jul./dez. 2003

ca ocidental, tenderá a estabelecer uma forma de contato em que os povos da

periferia, que são objeto e não sujeito da história, assumirão, cada vez mais,

ao menos em primeiro momento, uma atitude passiva e receptiva, pois a

incorporação da técnica européia é condição básica de sua emancipação. A

contrapartida desse processo é a tendência crescente à uniformização, à des-

truição da originalidade regional e ao desaparecimento das culturas como

“kosmos” autônomos e peculiares. Não se trata de progresso mas do preço

que se vai pagar, no mundo todo, pela expansão da revolução tecnológica

[Introdução aos problemas do Brasil, 1956, p. 199].

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Resenhas

Friedrich Froebel: o pedagogo dos jardins deinfância

autora Alessandra Arcecidade Petrópoliseditora Vozesano 2002

A obra Friedrich Froebel: o pedagogo dos jardins de infância,de Alessandra Arce, integra a coleção Educação e conhecimento, coor-denada pelo professor Antônio Joaquim Severino, publicada pelaeditora Vozes. Essa coleção, que tem por objetivo apresentar linhasbásicas do pensamento de grandes teóricos da educação, adquire umganho maior com a obra sobre Froebel, um teórico de suma impor-tância para a história da educação infantil.

Ao introduzir a obra, Arce lembra que a denominação em ale-mão Kindergarten – kind: criança; garten: jardim – foi criada porFroebel para identificar as instituições para crianças em idade pré-escolar. O termo jardim-de-infância é coerente com sua concepção,pois para ele, a infância é comparada a uma planta que necessita deágua, solo rico, nutrientes e luz do sol, tudo sob os cuidados de umbom jardineiro ou jardineira que saiba ouvir as necessidades de cadaplanta, ou seja, de cada criança.

A autora lamenta a ausência de mais obras de Froebel, a únicaobra traduzida é a Educação do homem (UPF,2001) e a Revista doJardim da Infância (1896-1897) uma tradução parcial produzida pelaEscola Caetano Campos, espaço do primeiro jardim-de-infância pú-blico no Brasil.

No primeiro capítulo, Arce preocupa-se em situar o leitor no tem-po em que Froebel viveu. Para isso recorre ao historiador inglês E.Hobsbawm, especialmente à sua obra A era das revoluções (1996) quetrata da história européia entre 1789 e 1848, fase que quase coincidecom a de Froebel, (1782 a 1852). Esse período de guerra – como asnapolêonicas – e Revoluções – como a Francesa, a Industrial e as de1848 – faz triunfar a indústria do capitalismo, a liberdade e a igualda-

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de para a sociedade burguesa liberal. Registra ainda dados históricossobre uma Europa agrária com relações conflituosas entre campo ecidade que contrastavam com a rápida ascensão comercial,manufatureira e atividades intelectuais e tecnológicas. Neste período,o caminho para o ideal liberal do indivíduo eram as revoluções, as-sim a autora analisa brevemente a Revolução Industrial, que teve iní-cio na Inglaterra, uma nação que já apresentava características de umaeconomia capitalista anterior a essa revolução. Apesar da influênciainglesa na economia européia, o texto lembra ainda a influência daFrança que, pelo Iluminismo, sustenta as principais categorias da con-cepção de um modelo liberal burguês na qual a educação desempe-nharia um papel essencial para formar o cidadão para o novo regime.

Ressalta de forma substancial que nesse período – apesar dosprincípios de liberdade, igualdade e fraternidade – as distinções so-ciais existiam e a chave para ascensão social era o talento de cadaindivíduo, isso era exemplificado com o mito de Napoleão, um ho-mem comum que chegou ao poder utilizando seu talento pessoal.Após as revoluções, abre-se então a carreira para o talento e a educa-ção passa a significar o triunfo dos méritos, individualizando-se o fra-casso e o sucesso, intensificando o desprezo da classe dominante pelamassa de trabalhadores. A pouca inteligência atribuída aos pobres eramotivo suficiente para mantê-los à beira da indigência trabalhando nasfábricas, incansavelmente, para dar exemplos aos filhos. Arce desta-ca os artistas e intelectuais que interferiam nos assuntos públicos comclara função social e relação direta com o público buscando desenvol-vimento pleno do ser humano em um esforço para encontrar saída paraos problemas sociais agravantes da época. O Romantismo é um exem-plo dessa atitude, nele a infância era considerada o melhor da naturezahumana e que era corrompida pela sociedade. Essas idéias deram su-porte a muitos teóricos da época como Rousseau e o próprio Froebel,que consideravam a infância portadora de toda a bondade e pureza.Conclui este capítulo registrando que a Alemanha – da era das revo-luções – em que Froebel viveu, era um país conservador e retrógra-do. E a pedagogia deste autor é construída em meio às contradiçõese realidade social daquele momento histórico, daí a importância docuidado da autora em localizar o tempo e o espaço em que Froebelviveu, objetivando facilitar a compreensão da vida, obra e princípioseducacionais que ela abordará no segundo capítulo.

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Segundo Arce, a infância do autor pode ter influenciado em suaformação autodidata. O pai, pastor, ensinou-o a ler, escrever, calcu-lar e principalmente os princípios religiosos do protestantismo, mar-ca da concepção educacional froebeliana. Na universidade, estudoufilosofia e ciências naturais que exerceram grande influência em suasconcepções. Aluno de Schelling, Karl Christian e Krause, que fa-ziam parte do movimento romântico, Froebel incorpora em sua peda-gogia a natureza como obra perfeita de Deus, a unidade dos contráriose a harmonia das formas com as crianças que concretizam nos cha-mados “dons”. Para ele, a natureza é um símbolo do espírito divinoe a criança deve viver em harmonia com esta, para naturalmente seharmonizar com o espírito divino. Ainda sobre a natureza, Froebeldefende que ela é objetiva, real e permanente, possui uma unidadeque é Deus, não desvincula homem da natureza cuja essência é espi-ritual, teológica – os dons vêm daí – e como um símbolo, a naturezadeve ser reconhecida como um poderoso instrumento educacional epedagógico.

Distante do mundo acadêmico – considerado por ele como umespaço de conflitos distante da realidade – Froebel inaugura sua es-cola em uma fazenda longe dos grandes centros, mantendo-se alheioàs discussões sociais e econômicas do período, ao contrário de Pes-talozzi, de quem Froebel discordava, também de sua metodologiacom crianças pequenas que desde cedo eram iniciadas na leitura e naescrita. Apesar das diferenças, Froebel incorporou vários princípiosde Pestalozzi, entre eles a percepção como ponto de partida para aeducação da primeira infância e a importância do papel da mulhercomo educadora nata nesse processo. Arce registra ainda que para esteeducador alemão, o processo de exteriorização e interiorização duran-te a primeira infância são confusos e para mediá-lo, necessita de vidae atividade, não de conceitos e palavras, para ele o professor deveriaobservar seu aluno para entender sua dinâmica, essência, potencial etalento, princípios exigidos para a sociedade de sua época. Na meto-dologia froebeliana, três pontos eram fundamentais: seguir Jesus –modelo da perfeição humana – preservando a liberdade de cada umpara desenvolver seus talentos; desenvolver no educando o princípiode que o homem e a natureza possuem existência em Deus, orientan-do-o para uma vida pura e santa e respeitar a natureza, a ação de Deuse a manifestação espontânea do educando.

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Em 1816, Froebel funda o Instituto de Educação em Griesheim,no qual permanece durante 13 anos e onde escreve sua mais impor-tante obra filosófica A educação do homem, em 1826. Com esselivro, o autor introduz uma discussão da psicologia do desenvolvi-mento como fundamento da educação, atrelando a cada estágio –primeira infância, infância e idade escolar – um tipo de educação.Na escola, tudo deveria ser vivido e levar as crianças a pensar, defen-dia Froebel, o princípio da auto-atividade livre em sua escola funda-menta mais tarde os pilares do movimento escolanovista: o professortrabalhando baseado nos conhecimentos prévios dos alunos.

Nessa obra, o autor enfatiza a necessidade de educar a infânciaem conjunto com a família, a infância se torna o centro da família eo talento da criança definiria seu lugar na sociedade, além de insistirna figura da mãe como educadora nata da primeira infância. Dá ên-fase aos trabalhos manuais entendendo o trabalho como benéfico,mas que sem a religião embrutece o ser humano, visão esta que nãose entende como crítica às condições de trabalho da época e simpara a pregação da aliança entre religião, temperança e laboriosidade,pensamento da ética protestante. Para a proposta da criança se auto-educar, Froebel elege o jogo e a brincadeira como referência, for-mas como a criança utiliza para expressar seu mundo e geradores dodesenvolvimento da primeira infância. Criou brinquedos educati-vos chamados de “dons” como uma forma de desenvolver a inteli-gência e essência da criança brincando, para assim mostrar seutalento. Os seis primeiros “dons” de Froebel são explicitados nestecapítulo no qual Arce lembra que esse material está reunido no livroPedagogia dos jardins de infância, de 1917 e no jornal A Hora Do-minical, no qual o autor publica posteriormente a continuidade demais quatro de seus “dons”. Em 1840, Froebel funda o primeirojardim-de-infância (Kindergarten), um centro para orientar e culti-var nas crianças menores de 6 anos, suas tendências divinas, suaessência humana através dos jogos e atividades livres. Um recantoentregue às mulheres, únicas capazes de cultivarem nas criancinhasseus talentos e germes da perfeição humana ligada a Deus. Com aexpansão desses centros, Froebel inicia vários cursos para a forma-ção das jardineiras, mulheres dotadas de todos os requisitos para aeducação. Apesar de Froebel nunca ter se envolvido com política,em 1851 foi acusado de ateísmo e de ser socialista; foram proibidos

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os jardins-de-infância na Alemanha. Faleceu em 1851 sem que suasinstituições voltassem a funcionar.

A difusão da pedagogia froebeliana e sua influência no Brasil éanalisada no terceiro capítulo no qual a autora discorre sobre o apoioque este educador teve das mulheres para a continuidade e expan-são de sua obra pela Europa e Américas, como a Baronesa VonMarenholtz-Bulow que descreve em seu livro Reminiscences ofFriedrich Froebel seus diálogos com ele até sua morte. Essa baro-nesa é responsável pela disseminação dos jardins-de-infância portoda a Europa. Na América, especialmente nos EUA, a pedagogiafroebeliana é divulgada por Margarethe Schurz, Elizabeth Peabodye Susan Elizabeth Blow e é através do trabalho das duas últimas queessa pedagogia chega ao Brasil. Em 1896, na Escola Normal Caeta-no Campos, em São Paulo, cria-se o primeiro jardim-de-infância pú-blico do país, um espaço destinado para crianças da elite que contavacom uma extensa equipe de professoras que traduziram trechos deFroebel na Revista do Jardim de Infância de 1896 a 1897. Arce sa-lienta a importância dessa revista como fonte de estudos sobre ametodologia froebeliana no Brasil, destacando trechos dela para queo leitor conheça um pouco sobre o conteúdo desse material que vemsendo estudado por pesquisadores da área de educação infantil noBrasil.

No capítulo quatro, a autora discorre sobre a atualidade da obrade Froebel, ressaltando mais uma vez a ligação de Froebel com suaépoca e a necessidade de ser estudado de forma cuidadosa. Lembraque os princípios do autor ainda repercutem na atualidade, especial-mente no lema “aprender a aprender” difundido intensamente nacorrente que se denomina como “construtivista”. O uso das brinca-deiras e jogos na educação infantil teve Froebel como um dos seusprecursores. A obra desse educador não pode ser desvinculada doseu período histórico na qual queria descobrir os talentos individuaisda criança para inseri-lo melhor em seu meio, melhor adaptação so-cial e a tão desejada harmonia com a humanidade. Com isso, vinhaà tona o caráter individualizante da escola, na qual deveria atenderaos interesses individuais da criança. Froebel parte de uma infânciaidealizada, crendo na criança como semente de pureza do amanhã,como se todos partissem do mesmo ponto e com as mesmas condi-ções, um fato que não era verdadeiro na época, nem hoje. A autora

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ainda questiona a força das idéias de Froebel presentes na atualidadee indaga se houve evolução ou apenas colocou-se o velho vinho emnovas garrafas. Reforça sua indagação ressaltando se, como Froebel,não estaríamos adotando uma atitude romântica em relação à escola,colocando-a como solução para os problemas socioeconomicos e seainda não temos mulheres que trabalham com crianças pequenasutilizando-se da figura idealizada da mãe sem assumir uma posturaprofissional como na pedagogia froebeliana. Arce conclui sua escri-ta com vários questionamentos atuais indicando para o leitor a impor-tância de se estudar o autor e suas idéias no interior do contexto emque foram produzidas. Fecha sua obra com um capítulo sobre o “Usodo jogo” extraído do livro A pedagogia dos jardins de infância (1917)de Friedrich Froebel, ilustrado com alguns “dons” do mesmo autor.

Diane ValdezProfessora de História da Educação da Universidade

Estadual de Goiás, mestra em História pela UniversidadeFederal de Goiás (UFG) e doutoranda em História e

Filosofia da Educação pela UNICAMP

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Historia de la educación (EdadContemporánea)

autores Alejandro Tiana Ferrer;Gabriela OssenbachSauter e FernandesFlorentino Sanz(coordenadores).

cidade Madrieditora UNED

ano 2002

Historia de la educación (Edad Contemporánea), obra que reú-ne artigos dos autores signatários e de seus colaboradores FedericoGómez R. de Castro (UNED), Manuel de Puelles Benítez (UNED),María del Mar del Pozo (Universidad de Alcalá), Agustín EscolanoBenito (Universidad de Valladolid) e Julio Ruiz Berrio (UniversidadComplutense de Madrid), apresenta-se como subsídio didático aosprofissionais de educação que necessitam conhecer o sistemas edu-cativos em que pretendem atuar. Entendem os coordenadores da obraque compreender o modo de constituição e a configuração mutantedos sistemas de ensino constitui elemento valoroso para a formaçãodesses profissionais, uma vez que a história não só pode oferecer osrecursos intelectuais necessários para a análise e interpretaçãoperspectivadas daqueles sistemas, como também permitir o desen-volvimento de uma consciência crítica, que os imunizaria contra osdeterminismos e as explicações intemporais dos fatos educativos deque participam.

Embora tendo definido previamente o público a que a obra pre-tende atingir de imediato, ou seja, os estudantes que desejam tornar-se profissionais da educação no sistema de ensino espanhol,compreendem os autores que estudantes e profissionais de outrospaíses, bem como os diletantes, terão nela um bom guia e funda-mento para incursões ulteriores à matéria. A resenha desta obra jus-tifica-se, pois, pelo reconhecimento de sua valia para o leitor

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brasileiro, que nela poderá obter informações preciosas sobre assun-tos e realidades entre nós vagamente conhecidos ou, por vezes, ab-solutamente ignorados1.

Advertindo que a obra não se pretende completa ou exaustiva,os coordenadores afirmam ter selecionado para suas consideraçõesapenas os temas universais mais importantes e significativos para umestudante que deseja trabalhar no sistema educativo espanhol, moti-vo pelo qual, aliás, tais temas se alternam com outros especificamenteespanhóis. Para esta seleção, distinguiram na evolução histórica daeducação na Idade Contemporânea (iniciada com a Revolução Fran-cesa e ainda inconclusa) três grandes períodos, a cada um dos quaisse dedica uma unidade. Embora admitam que em cada um dos paí-ses considerados a gênese e a evolução do sistema de ensino públicotiveram características diferençadas, os coordenadores da obra pos-tulam a existência de fenômenos comuns que permitem explicá-lascomo transformações de amplo escopo, que, tendo afetado primei-ramente o mundo ocidental, converteram-se mais tarde em fenôme-no universal. Os casos nacionais analisados no livro, entretanto,circunscrevem-se à mais imediata “vizinhança cultural e geográfi-ca” e limitam-se, ainda de acordo com os coordenadores, aos paíseseuropeus cujos casos foram considerados relevantes para o cote-jamento do caso espanhol, em cada uma das unidades. Tal decisão,assumida apesar dos inconvenientes do estreitamento e das prová-veis acusações de eurocentrismo, teria atendido à necessidade de trataros temas com maior profundidade.

Os coordenadores da obra entendem que os sistemas educativosconstituem parcelas determinadas dos sistemas sociais, nos quaissurgem e se desenvolvem, e a cujo desenvolvimento servem. Poreste motivo, sua formação e evolução não podem ser explicadas sema concorrência dos fatores coetâneos de ordem econômica, política,social e cultural a que se encontram relacionados. Assim, em auxílioà mínima compreensão histórica, os capítulos que abrem as três unida-des do livro repassam em linhas gerais o “contexto histórico”, de-

1 Esta obra, entretanto, não se encontra disponível em livrarias brasileiras.Ela integra o catálogo de publicações didáticas da Universidad Nacionalde Educación a Distancia. Para acesso a outros títulos, informações e ser-viços, recomenda-se a consulta ao site http://www.uned.es.

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marcando o período e situando as grandes tendências que o configu-ram, à maneira de um manual de história. Advertem os coordenado-res, entretanto, que o leitor deverá aprofundar em outras obras osseus conhecimentos de história geral, a fim de que possa compreen-der melhor os processos educativos analisados.

A primeira unidade oferece uma visão panorâmica dos fato-res que incidiram sobre a origem dos sistemas educativos nacionaisnos países ocidentais selecionados (França, Alemanha, Espanha eInglaterra), explicando como o Estado, entre finais do XVIII e prin-cípios do XIX, tomou para si a tarefa de organizar um conjunto deinstituições de amplitude nacional destinadas à educação formal, como fim de oferecer ao menos o ensino elementar aos habitantes de seuterritório. O capítulo incide sobre os antecedentes imediatos do pro-cesso, situados no pensamento ilustrado do século XVIII e nos mo-vimentos que culminaram com a queda do antigo regime na Europa,e sobre as relações entre Estado liberal e educação, no momento emque se promove a transição da “educação estamental” para a “edu-cação nacional” e que se encarece a necessidade de os sistemas deensino se converterem em agentes de difusão dos valores que pro-moveriam a consciência nacional e a integração da sociedade emtorno da pátria. Justifica-se assim a preocupação daqueles Estados(com exceção da Inglaterra, apresentada como contraponto) com ainstrução pública, embora seus projetos educativos não tenham tidoaplicação imediata.

A segunda unidade trata da evolução dos sistemas educativos, demeados do século XIX à segunda metade do século XX, e põe focona relação entre educação e industrialização, fenômeno que se encon-trava em germe na unidade anterior (e circunscrito ao caso da Ingla-terra), mas que, sobrepondo-se aos condicionantes políticos quedefiniram o estágio anterior de gênese dos sistemas educativos, mar-cou este período com influxos sobre a organização e métodos daescola primária (com a ascendência do desenvolvimento científico etecnológico na compreensão dos processos didáticos e dos fins alme-jados pela educação) e sobre a organização do sistema educativo (coma disseminação da escola primária e a “segmentação” e progressiva“democratização” da escola secundária nos sistemas nacionais). Oscondicionantes políticos, por sua vez, ressurgem na análise da reaçãodos setores conservadores da sociedade, destacadamente a Igreja,

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diante dos princípios liberais que presidiram ao avanço do Estadosobre a escola pública no período anterior. Por fim, a crescente com-plexidade do pensamento pedagógico exige nesta unidade um espa-ço, ainda que breve, para o estudo das correntes que acompanharama evolução e extensão dos sistemas escolares ao longo do século XIX.

Os sistemas educativos nacionais haviam prometido uma edu-cação fundada nos princípios de igualdade, liberdade e fraternidade,mas um dos resultados de sua implantação foi justamente a segrega-ção dos educandos por classes sociais ou por ramos diferenciados,com o que se formaram sistemas duais ou bipolares. Em conseqüên-cia, os conflitos sociais, que foram aumentando ao longo do séculoXIX, fizeram-se sentir também no mundo educativo, permitindo oaparecimento de diversos grupos e movimentos, que reivindicarammodelos alternativos e efetivamente igualitários. Dentre todas as ten-dências que influíram sobre a configuração dos sistemas educati-vos, a obra apresenta o socialismo, o fascismo e o movimento daEscola Nova, para a análise do qual os coordenadores sabiamentefizeram alargar-se o âmbito cultural e geográfico previamente defi-nido, para que fossem abarcados os Estados Unidos, país para onde,ao longo deste período, o eixo civilizatório francamente foi se des-locando.

A terceira unidade dedica-se à reconstrução dos sistemas educa-tivos depois da Segunda Guerra Mundial, evento cujo impacto foidecisivo, tanto sobre as condições materiais das nações envolvidas,como sobre os modos de pensar a educação e a formação do ho-mem. Pode-se afirmar que o impacto da guerra tenha acelerado trans-formações anteriormente anunciadas nos sistemas educativos,marcando o período com a expansão quantitativa, a abertura a no-vos públicos e a contribuição de tais sistemas para o desenvolvi-mento de novas formas de organização política e social. Nesteprocesso de democratização, que não foi linear e homogêneo, po-dem ser identificadas várias fases (diversificadas consoante os blo-cos geopolíticos então formados): a fase de reconstrução dos sistemaseducativos nacionais, fundada na revisão e redefinição dos níveiseducativos e de seus currículos; a fase de expansão e desenvolvi-mento, orientada pela convicção de que a educação era fator chavepara o desenvolvimento econômico; a fase de revisão crítica, emque as contradições e lacunas dos sistemas de ensino são vigorosa-

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mente criticadas, conduzindo à chamada crise mundial da educação,que teve lugar durante as décadas de 1970 e 1980. A derradeira fasecaracteriza-se pelo acionamento de mecanismos de reforma perma-nente dos sistemas educativos e pelo enfrentamento entre as políti-cas neoliberais e social democráticas em matéria de educação.Deixada de lado na presente obra, dada a sua proximidade e à “ne-cessidade de novos estudos”, a última fase foi substituída por umcapítulo consagrado à evolução da educação na Espanha durante ofranquismo, com o que se pretendeu atender aos interesses específi-cos do público-alvo primordial da publicação.

Por terem querido salvaguardar o caráter didático da obra e a suaunidade, os coordenadores adotaram um esquema similar para o tra-tamento dos temas, procedimento que resultou em capítulos equiva-lentes em extensão e linguagem, de compartilhada e coerenteperspectiva de análise. Com efeito, cada um dos colaboradores pare-ce ter sacrificado o estilo pessoal em favor da coerência integral e daclareza de exposição, o que conta pontos positivos na avaliação daobra. Didaticamente orientadas são também as caixas com cronolo-gias, biografias e conceitos-chave, que complementam os textos.Cada unidade inclui uma bibliografia comentada, para aprofunda-mento ulterior (a cargo do leitor), além de pequenas antologias de do-cumentos considerados fundamentais para a compreensão dos temas.

Destaque-se como positiva a opção, bem sustentada, de marcaros períodos da história da educação contemporânea por seus crité-rios intrínsecos, comprovando mais uma vez que a abordagem dosfatos educativos pode ter autonomia relativa diante dos fatores polí-ticos e econômicos, sem que, entretanto, o peso destes seja ignoradoou dispensado na análise daqueles. Também valorosa é a alternânciade antigos e novos temas da história da educação, ambos sustenta-dos pelas mais recentes contribuições das pesquisas realizadas naárea. A propósito, teria sido interessante incluir tópicos que, semserem exaustivos ou desviarem-se do foco principal das análises (oEstado), trouxessem à cena com maior destaque os alunos e suasfamílias, os professores e suas práticas cotidianas, os livros de leitu-ra e os demais impressos de caráter pedagógico, de circulação e usointernos ou externos à escola.

Por fim, um reparo a ser feito: com a ausência gritante de Portu-gal, o critério de vizinhança cultural e geográfica, alegado para a

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seleção dos países cujos casos são estudados, vê-se contrariado. Jána primeira unidade, a publicação não apresenta a gênese do sistemaeducativo do país que, ao lado da Espanha, conforma a tradição cul-tural ibérica, fazendo com que o leitor perca a oportunidade de acer-car-se de fatos relevantes como, por exemplo, as reformas pombalinasda instrução pública. Encabeçadas pelo Marquês de Pombal e forja-das no peculiar Iluminismo português – progressista, reformista, na-cionalista, humanista e católico –, tais reformas teriam ilustrado bemos temas da secularização (com a expulsão dos jesuítas, que até en-tão monopolizavam a educação no reino) e da modernização dosmétodos de ensino (com a introdução da filosofia moderna e dasciências naturais na Universidade de Coimbra).

Em que pese a lacuna mencionada, a obra em epígrafe reúne asqualidades exigidas por sua destinação primeira: clareza de objeti-vos, delimitação precisa, atualização, linguagem simples e unifor-me, coerência entre os diversos autores, bom uso de recursos de apoioao texto. É uma boa obra a recomendar aos estudantes dos cursos degraduação e pós-graduação, que com sua leitura poderão obter umabase sólida para os aprofundamentos necessários à compreensão darica trama da história da educação contemporânea.

Bruno Bontempi JúniorProfessor do Programa de Estudosde Pós-Graduação em Educação:

História, Política, Sociedade da Pontifícia

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Universidade Católica de São Paulo

O exercício disciplinado do olhar: livros, leiturase práticas de formação docente no Instituto deEducação do Distrito Federal (1932-1937)

autora Diana Gonçalves Vidalcidade Bragança Paulistaeditora EDUSF

ano 2001

O livro constitui a publicação, na íntegra, da tese de doutoradoda autora, defendida em 1999, no programa de pós-graduação emeducação da Universidade de São Paulo (USP), sob orientação deMarta Carvalho.

O trabalho de Diana tem como temática o estudo das práticasde formação docente presentes num espaço modelar: o Instituto deEducação do Distrito Federal. Sua periodização contempla o mo-mento situado entre 1932 e 1937, em que a instituição afirmou-secomo locus de experimentação e construção de práticas esco-lanovistas, sob a direção de Fernando de Azevedo e, posteriormen-te, Anísio Teixeira.

Tendo em vista tal objeto, a pesquisa situa-se na confluência(ou entrecruzamento) de diferentes tradições de investigação em his-tória da educação: o estudo das teorias pedagógicas – tendo comofoco a Escola Nova, da profissão docente – centrando-se na sua for-mação, a análise das práticas sociais de letramento – tendo comocenário sua inserção no espaço escolar do Instituto.

O trabalho da autora contribui ao articular tais temáticas, a par-tir de uma perspectiva historiográfica fundada na Nova História e,mais exatamente, a história cultural. Não se proclama uma filiaçãoteórica ao longo do texto, nem se desenvolve uma apresentação daperspectiva metodológica utilizada. Ao contrário, a sólida funda-mentação conceitual emana da pesquisa. Ao lançar mão de umamultiplicidade de fontes primárias (entrevistas, leis, decretos, regu-

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lamentos, programas, plantas arquitetônicas, correspondências, fo-tografias, livros, revistas, artigos etc.), é possível construir um retra-to do Instituto de Educação, em seu cotidiano, tendo como referênciaa apropriação do ideário escolanovista, através da institucionalizaçãode práticas que materializassem seus pressupostos.

Ao mesmo tempo, os diferentes atores se fazem presentes, res-gatando-se o discurso institucional, a fala das alunas e professores,da direção. Tal polifonia é que irá dar sustentação ao trabalho, emque as análises se mostram diretamente articuladas e sustentadas nagarimpagem, entrecruzamento e interpretação das fontes.

É importante destacar essa questão, na medida em que grandeparte da produção mais recente da história da educação no Brasilbusca afirmar e proclamar sua filiação as correntes historiográficascontemporâneas, principalmente recorrendo à história cultural deRoger Chartier, citando ou parafraseando trechos dos autores, demaneira que certifique o leitor dessa filiação teórica. A autora superatal perspectiva, dando a ver, em sua construção textual, o referencialteórico – metodológico que a sustenta. Assim é que a centralidadedo estudo das práticas, a ênfase na apropriação dos discursos, a aná-lise das materialidades que conferiam sentido ao projeto de forma-ção docente, afirmam-se como eixos da investigação.

O período histórico (e/ou objeto contemplado), a Escola Nova,traz alguns embaraços ao pesquisador da história da educação brasi-leira. O projeto escolanovista constitui talvez o período e objeto maisestudado nos trabalhos da área. Se isso permite ao investigador umasubstantiva produção a partir da qual ancorar suas análises, por ou-tro, encerra o perigo da repetição dos mesmos pressupostos já estabe-lecidos sobre o tema, aplicados a um aspecto ainda não contemplado.O trabalho de Diana supera tal percalço através de uma sólida e mi-nuciosa investigação que faz emergir o conjunto de práticas que con-feriam sentido ao projeto escolanovista, no interior de um espaço deformação docente.

Assim é que a investigação se insere numa tradição de estudossobre a Escola Nova, lançando, no entanto, um olhar diferenciadosobre o tema, que contribui para superar análises estabelecidas. Taltradição de estudos é marcada por permanências e rupturas na pers-pectiva de compreensão do projeto escolanovista, que cabem ser maisbem compreendidas.

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Por muito tempo, os estudos ficaram presos ao discurso oficialou jurídico, a partir da leitura construída pelos principais teóricosdesse movimento de renovação sobre seu lugar na história da educa-ção brasileira. Como demostram os trabalhos de Marta Carvalho,autores como Fernando de Azevedo produziram uma leitura sobre aeducação em que o movimento escolanovista aparece como produ-ção do novo, em completa ruptura com um passado de atraso e igno-rância. Posteriormente, estudos ancorados numa visão fundada numaperspectiva de cunho sociológico tomaram o movimento escolano-vista como expressão pedagógica do ideário socioliberal de seus for-muladores, estabelecendo uma leitura mecanicista do mesmo.

Mais recentemente, uma série de estudos, referidos numa pers-pectiva historiográfica de recurso sistemático a fontes primárias ante-riormente desconsideradas, bem como a investigação dos fenômenoseducativos contemplando a longa duração, produziu um olhar dife-renciado. Nesse, a Escola Nova é compreendida no interior de umasérie de movimentos históricos de renovação da educação voltadospara a constituição de uma modernidade pedagógica. Tal moderni-dade, em sintonia com as transformações vividas nas sociedades oci-dentais nos últimos três séculos, buscava produzir um projeto deformação das novas gerações, através de sua escolarização.

Ao mesmo tempo, essa tradição de construção de uma moderni-dade pedagógica se deu marcada por sucessivas rupturas. É no inte-rior desse movimento de permanências e deslocamentos que a EscolaNova adquire sentido e afirma sua singularidade.

No trabalho da autora, por outro, destaca-se que a Escola Novanão constituiu um movimento único e homogêneo. A investigaçãobusca dar visibilidade às significativas diferenças entre os principaisatores voltados para a produção e circulação do ideário escolanovis-ta. O trabalho confere centralidade à apresentação e análise das vi-sões diversas que produziram acerca do lugar social da escola, suaorganização e as estratégias de reformulação das práticas pedagógi-cas, bem como da formulação de um projeto de formação docente.

Assim é que a perspectiva desenvolvida pela autora se mostraem diálogo com a recente produção historiográfica sobre a EscolaNova brasileira, a qual vem permitindo ressignificá-la, compreen-dendo tanto sua continuidade e ruptura em relação a movimentospedagógicos anteriores, como contemplando as singularidades dosdiversos projetos postos em cena no período.

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Destaca-se, no caso dessa pesquisa, a análise das práticas de-senvolvidas sob a direção de Anísio Teixeira, à frente da instituição,voltado para “a constante reflexão sobre o fazer” (p. 250) e as deFernando de Azevedo, que o antecedeu, de ensino com uma sólidafundamentação científica, que deram origem a dispositivos diferen-ciados de formação, fazendo com que práticas fossem secundarizadas,abandonadas ou substituídas ao longo do período investigado.

No interior do projeto escolanovista, a pesquisa contempla aprofissão docente, em sua formação, outro eixo de investigações sis-tematicamente analisado na produção historiográfica mais recente.O estudo confere visibilidade a ousadia do projeto de formação deprofessores, principalmente na gestão Anísio Teixeira, caracterizadopela organicidade, sistematicidade e articulação da proposta em cena.Através do estudo da autora é possível perceber os dispositivos acio-nados pelos responsáveis pela escola, dispositivos esses voltados paraa formação de um professor – pesquisador, cujas relações com oconhecimento deveriam ser mediadas pelo constante e sistemáticocontato com o escrito, através de variadas práticas de letramento,que se mostravam marcantes na escola.

Evidencia-se como no cotidiano da instituição, pretendia-se oque a autora chama de exercício disciplinado do olhar, quer seja:“fosse o olhar sobre a criança, sobre as relações ensino–aprendiza-gem ou sobre o estudo dos textos, suporte de uma prática laboratorialque transformava o aluno em pesquisador e em objeto de pesquisa;o ensino em técnica e em permanente crítica”. Emerge do trabalho aformação de um professor munido de conhecimentos rigorosos nosdiferentes campos da educação, ao mesmo tempo que capaz de aliara prática à reflexão, com a leitura e produção de artigos e monografias,material que possibilitasse uma reflexão sistemática, principalmen-te sobre o aluno.

A Escola Normal é retratada não como conjunto de princípiosdesvinculados das ações cotidianas da instituição, mas como sistemade práticas, cujo sentido articulava-se com uma proposta de formaçãodesse professor-pesquisador. A constituição de diferentes dispositivosde experimentação e pesquisa não constituíam recursos erráticos, ouiniciativas fugazes, mas através do estudo de Diana evidencia-se aorganicidade e coerência da proposta de formação, uma das estraté-gias fundamentais postas em cena no período de reformulação das

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práticas escolares sob a égide da Escola Nova. A instituição, percebi-da como espaço modelar, era pensada como locus de irradiação parao grosso do professorado e, sendo assim, eram formulados dispositi-vos de interlocução com os demais espaços escolares.

Ao mesmo tempo, evidencia-se que o projeto posto em cenanão se sustentava numa proposta de formação de professores quetivesse em conta as professoras concretas que ministravam aulas noDistrito Federal, ou que pretendiam ingressar na carreira docente.Ao formular um currículo voltado para uma formação de cinco anosde duração, com rígidos critérios de seleção para entrada na escola(até mesmo com a utilização de referenciais antropométricos), comexigência de aproveitamento superior aos demais espaços de forma-ção, evidencia-se a concepção de constituição de um corpus profis-sional elitizado , distinto do grosso do professorado. É tal contradiçãoque irá contribuir para o progressivo malogro ou abandono da arqui-tetura do modelo de formação pensado principalmente por AnísioTeixeira, embora marcas residuais tenham permanecido ao longo dahistória da instituição.

Pensando na tradição de estudos sobre história da formaçãodocente, verifica-se que as Escolas Normais, instituídas ainda queprecariamente ao longo do século XIX, afirmaram-se como espaçosprivilegiados de qualificação profissional. Os diversos e sucessivosprogramas de formação, à parte suas significativas diferenças, tive-ram em comum a transmissão de saberes e metodologias pedagógi-cas vinculadas sob o apanágio do novo, do moderno, em rupturacom os saberes da tradição, advindos da experiência do professora-do, desqualificados e identificados com o passado ou a ignorância.

Ao longo da história dos espaços de formação docente, deu-se oprogressivo adensamento e sofisticação dos conhecimentos trans-mitidos no interior desses espaços, com a conformação de currícu-los, a entrada de novas disciplinas, que iriam exigir um tempo cadavez maior dedicado à formação do professorado. A especializaçãodessa formação iria marcar uma diferenciação entre os professoresformados nas instituições e os que não tiveram uma qualificaçãooficializada.

Com a Escola Nova, a formação docente afirmou-se como cen-tral para a consolidação de sua proposta, sendo que no Instituto deEducação, sob a gestão de Anísio Teixeira o curso era elevado à

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formação superior. Com isso, reforçava-se a elitização da formaçãopretendida e seu fosso em relação ao conjunto do professorado.

Tal experiência, marcada pelo arrojo de sua concepção e comoaponta a autora, uma cetra arrogância na articulação do projeto foiprogressivamente perdendo fôlego, não apenas pela demissão deAnísio Teixeira, mas sob efeito da implementação do Estado Novo.Continuaram alguns aspectos da instituição, realizados de forma ir-regular e residual, num curso agora em nível secundário e não maissuperior, demonstrando o caráter descontínuo dos processos de for-mação docente postos em cena no Brasil.

Em tempos de discussão quanto ao projeto de formação docen-te na contemporaneidade brasileira é enriquecedor lançar o olharsobre as nossas “normalistas, vestidas de azul e branco, trazendo umsorriso franco no rostinho encantador”, como cantava a música. Ouao perturbarem, com seus ares modernos, o cotidiano do poeta pro-vinciano, no dizer de Drummond e pensar nas permanências e rup-turas no processo de constituição da identidade desse sujeito social.

Maria Cristina Soares de GouvêaProfessora da Faculdade de Educação da Universidade

Federal de Minas Gerais (UFMG)

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Templos de civilização: a implantação da EscolaPrimária Graduada no estado de São Paulo,1890-1910

autora Rosa Fátima de Souzacidade São PauloFundação editora UNESP

ano 1998

Elaborado originalmente como tese de doutorado de Rosa Fáti-ma de Souza1, Templos de civilização debruça-se sobre a fundação einstitucionalização dos grupos escolares no estado de São Paulo en-tre os anos de 1890 e 1910. Fruto de um extenso levantamento do-cumental e bibliográfico, a análise enquadra-se no conjunto depesquisas históricas e historiográficas da educação brasileira que,principalmente, a partir de finais da década de 1980 tem privilegia-do o caráter histórico das práticas educativas que caracterizam asinstituições escolares.

Dessa perspectiva, as modificações no modelo e cultura escola-res dos estabelecimentos de ensino primário articulam-se no textoàs características sociais, políticas e econômicas do estado de SãoPaulo do período. Por outros termos, o livro possibilita descortinaras maneiras como os grupos escolares incorporaram e se apropria-ram e, do mesmo modo, como elaboraram, modificaram e retornaramà sociedade os discursos e representações de progresso, cientificidadee civilização presentes ao projeto republicano.

Os interesses que motivaram a defesa da intervenção educacio-nal como um instrumento de remodelação social e consolidação doregime republicano foram muitos. No correr da segunda metade doséculo XIX – destaque para as experiências testadas pelas escolasamericanas de confissão protestante a partir, principalmente, da dé-

1 Defendida em abril de 1997 na Faculdade de Educação da USP, sob orien-tação de Maria Cecília Sanchez Teixeira.

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cada de 1870 – acirraram-se os debates concernentes aos métodos,saberes e práticas escolares. Reconhecer as crianças enquanto seresem desenvolvimento, bem como portadoras de curiosidades, dúvi-das e questionamentos, tornava-se uma constante na reflexão da-queles que se propunham a repensar a educação brasileira.

Às escolas, além de repassar conhecimentos, caberia a funçãode ensinar regras de comportamentos e desenvolver o caráter dosalunos. Procedimentos higiênicos, modos bem-educados, importân-cia do trabalho e predisposição à abdicação de interesses individuaisem razão de aspirações coletivas eram alguns dos ensinamentos quecomplementariam o ler, escrever e contar nos espaços e tempos es-colares. Desse modo, instrução e educação deviam caminhar juntasno processo de formação das crianças.

Foi no bojo dessas propostas de reformulação educacional queas idéias de Jean-Henri Pestalozzi ganharam destaque na arena edu-cacional. Reunindo “[...] o apelo à experiência e à observação, oestímulo à curiosidade da criança, a organização do programa par-tindo do concreto para o abstrato, do simples para o geral, do conhe-cido para o desconhecido” (p. 170), caracterizava-se o “métodointuitivo” como um deslocamento nas práticas e saberes escolares.Afinal, deviam os alunos não só “escutar” os ensinamentos, mastambém observá-los e intuí-los pelas atividades dos professores.

Como argumenta Rosa F. de Souza, os republicanos muito seapropriaram desse conjunto de ideais de reforma educacional paraconsolidar a distância que os separava dos tempos passados. Apre-goavam, então, a necessidade de “[...] fundar uma escola identificadacom os avanços do século, uma escola renovada nos métodos, nosprocessos de ensino, nos programas, na organização didático-peda-gógica; enfim, uma escola moderna em substituição à arcaica e pre-cária Escola de Primeiras Letras existente no Império” (p. 29).

Nesse movimento, no início da década de 1890, regulamentava-se a lei que estabelecia a criação dos grupos escolares no estado deSão Paulo. Alocados em prédios de arquitetura monumental, comespaços reservados ao “[...] gabinete para a diretoria, sala para ar-quivo, portaria, depósito, biblioteca, laboratórios, oficinas para tra-balhos manuais, ginásio, anfiteatro e pátios para recreio” (p. 128),cada grupo podia comportar de 4 a 10 escolas isoladas.

Em relação à precariedade e ao improviso das edificações (pa-róquias, cadeias, cômodos de comércio) e das práticas de ensino (en-

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sino individual, método lógico de alfabetização) que, via de regra,definiam as escolas públicas do Império, destaca a autora que signi-ficaram os grupos escolares uma tentativa de racionalização admi-nistrativa e pedagógica. Racionalização administrativa, porqueestabelecia a reunião de escolas isoladas e a setorização do trabalhopelos espaços e tempos escolares. Racionalização pedagógica, por-quanto estipulava a classificação dos alunos, o ensino simultâneo, ométodo analítico de alfabetização e o método intuitivo.

Adentrar aos Templos de civilização, alicerçada por um levan-tamento de fontes primárias e secundárias realizado com muita pro-priedade, permitiu à autora indiciar, também, a função social que osrepublicanos delegaram à educação. A rígida distribuição e controledos espaços e tempos escolares; a “classificação igualitária (homo-gênea) dos alunos” (p. 33); o aperfeiçoamento dos exames de avalia-ção; a fragmentação das matérias e atividades; o quadro de horários;o repicar dos sinos à entrada, recreio e saída; a divisão dos alunosem salas homogeneizadas; as marchas, cantos e exercícios ginásticosque ditavam o ritmo das atividades; a “passagem do aluno de lugarinferior para superior na mesma classe, o elogio perante a classe, oelogio solene perante as classes reunidas, distribuição de cartões deboa nota, cartões de merecimento e louvor e a inclusão do nome doaluno no quadro de honra” (p. 147); dentre outros aspectos demons-travam que a obediência, organização e vigília constituíam-se comoelementos fundamentais no cotidiano dos grupos escolares.

A esse ambiente disciplinar interno aos grupos devem ser acres-centados os cuidados e requintes tomados durante a construção dosmonumentais edifícios; as festividades de encerramento de ano; osdesfiles dos batalhões infantis; as exposições escolares, o “[...] ir evir da escola [que] correspondia a uma apropriação do espaço urba-no, um itinerário de reconhecimento da cidade por meninas e meni-nos, a coabitação das ruas, praças, calçadas por diferentes grupossociais” (p. 126); as comemorações cívicas que se encarregavam deabrir a escola “[...] à cidade, à rua, à sociedade, aos alunos, aos seuspais, aos seus amigos e suas famílias [...]” (p. 261).

A descrição e análise das circunstâncias internas aos grupos e suasimplicações com o ambiente urbano paulista possibilitaram Rosa F.de Souza afirmar que

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Os republicanos deram à educação um lugar de destaque, sendo o

grupo escolar representante dessa política de valorização da esco-

la pública; dessa forma, eles conferiam a um só tempo: visibilida-

de à ação política do Estado e propaganda do novo regime

republicano. [...]. Em certo sentido, o grupo escolar, pela sua arqui-

tetura, sua organização e suas finalidades aliava-se às grandes for-

ças míticas que compunham o imaginário social naquele período,

isto é, a crença no progresso, na ciência e na civilização [p. 91].

Um investimento educacional a serviço da modernização, higie-nização e disciplinamento do meio social: assim pode ser definida aexperiência dos grupos escolares paulistas que, em um certo sentido,devem ser vistos “[...] no interior dos projetos de modernização e deconstrução de novas formas de gestão das cidades e de seus habitantesimplementados pelo poder público no Estado de São Paulo” (p. 92).

O investimento justificava-se. O final do século XIX e início doXX foi um período muito conturbado. Um enorme contingente deestrangeiros invadiu São Paulo em busca de melhores condições devida. Em terras brasileiras, depararam-se com um grande número denacionais que, do mesmo modo, disputavam cotidianamente opor-tunidades de emprego. A abundante oferta de mão-de-obra ocasio-nou não só a desvalorização salarial, mas também elevou o númerode indivíduos que não encontrando trabalho aglomeravam-se naslocalidades de maior movimento das cidades. Golpes, prostituição,jogatinas, sujeiras, degradação, roubos, drogas passaram a se consti-tuir como uma constante no cenário urbano paulista.

Esse quadro de degradação, cada vez mais presente ao cotidia-no urbano, contrastava aos ideais defendidos e amplamente divulga-dos pelo projeto republicano. Nesse sentido, organizar, higienizar edisciplinar a população das cidades apresentavam-se como questõesfundamentais para a tentativa de ingressar São Paulo no movimentodo moderno.

Sob essa ótica, a experiência educacional paulista foi modelar.Acompanhando, de certo modo, nos dizeres da autora, o “[...] cami-nho percorrido pelo café [...] a distribuição regional da criação dosprimeiros grupos escolares [...]” (p. 93) privilegiou aquelas locali-dades que, por terem sido alvos de levas de imigrantes, apresenta-vam elevada concentração urbana. Era nessas cidades que “moravao perigo das multidões” (p. 92).

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De fato, a conformação de procedimentos salubres, a profusãode regras de sociabilidade e a divulgação dos ideais republicanosperpassavam todos os aspectos dos grupos escolares. Objetivavameducar não apenas o corpo docente e discente, mas exercer “influên-cias modernas” em toda a sociedade. Nessa direção, pode-se com-preender a monumentalidade das edificações em função de umaintenção de recortar e divulgar na sociedade um espaço grandioso eespecífico destinado à educação. A homogeneização dos alunos eadoção de novos métodos e práticas como uma tentativa de transfor-mar os espaços e tempos escolares em dispositivos disciplinares ehigiênicos. A intensa valorização e (re)significação de aspectos docotidiano escolar (uniformes, cadernos, festividades, cânticos, hi-nos etc.) enquanto insígnias à República.

No entanto, entraves à implementação dos grupos escolares fo-ram sentidos logo nos primeiros anos de suas existências. Os “[...]diferentes tipos de escolas primárias, diferentes programas de ensi-no e diferentes níveis de formação de professores” (p. 60) dificulta-ram tremendamente esses investimentos educacionais que almejavamuniformizar e padronizar o ensino público paulista.

De qualquer modo, pondera a autora, as discussões e efetivasalterações promovidas pelos grupos escolares no modelo e culturaescolares do estado de São Paulo foram importadas por outros Esta-dos e auxiliaram a compor o padrão do ensino primário brasileiro.Aproximadamente sete décadas, foi esse o período em que estive-mos sob as influências dos Templos de civilização.

O trabalho de Rosa F. de Souza apresenta-se como uma instigantee coerente investigação acerca da criação e implementação dos gru-pos escolares paulistas. O mergulho realizado pela autora na “caixa-preta” dessas instituições modelares em busca de práticas e saberesescolares contribui, assim, para a abertura do campo histórico ehistoriográfico, permitindo que outros elementos sejam incorpora-dos à reflexão sobre a educação paulista e brasileira de finais doséculo XIX e início do XX.

José Cláudio Sooma Silva Mestrando do Programa de Pós-Graduação

em História da Educação e Historiografia da Universidadede São Paulo (USP)

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Nota de Leitura

Negativos em vidro: coleção de imagens doColégio Antônio Vieira (1920-1930)

autora Stela Borges de Almeidacidade Salvadoreditora EDUFBAano 2002

A publicação dos resultados desta pesquisa significa uma contri-buição, não só para o campo da história da educação, mas tambémpara o tratamento e análise da fotografia como fonte documental.Iniciado com a elaboração do guia de fontes fotográficas para a edu-cação na Bahia, o estudo teve continuidade em sua tese de doutora-do, apresentada nesta obra.

A partir da coleção de fotografias do Colégio Antônio Vieira,uma série com uma temática definida, Stela Borges de Almeida cons-trói uma interpretação das imagens e da representação por elas en-gendrada, e aponta diversas outras possibilidades de análise,estimulando olhares.

A obra foi estruturada em cinco partes. A primeira, dedicada àtranscrição de entrevistas realizadas com: o padre José ManuelSanchez, diretor do colégio de 1960 a 1963, que realizou uma orga-nização das fotografias com o objetivo de preservar a memória docolégio; o padre Carlos Bresciani, jesuíta estudioso da história daCompanhia de Jesus; o professor Thales de Azevedo, aluno do colé-gio de 1914 a 1919, médico e professor; e, Pierre Verger, fotógrafofrancês que residiu durante muito tempo na Bahia. Ao evocar, com asentrevistas, lembranças de pessoas diretamente ligadas à instituição,suscitadas pelas imagens, ou ao incorporar olhares mais distantes,ainda que com alguma relação com a temática das fotos, a autoraprocurou constituir o que chamou de “Um ponto de partida”, títuloda primeira parte de seu livro.

A atuação dos padres jesuítas não se restringia ao âmbito escolar,conforme se constata pela observação de imagens da cidade apresen-tadas na segunda parte do trabalho, “Imagens da cidade da Bahia”. A

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autora amplia a análise das fotografias, ao lembrar que, apesar de asimagens retratarem a remodelação da paisagem urbana, destacandoaspectos que sugerem beleza, a cidade enfrentava, no mesmo perío-do, diversas mazelas sociais, que não figuram entre os elementosenfocados.

Inserido na cidade, seja pelas relações sociais estabelecidas pe-los alunos, seja pela relação simbólica estabelecida pelo olhar dosjesuítas ao produzir imagens da cidade, ou, ainda, pela determinaçãoespacial, o Colégio Antônio Vieira foi o foco articulador dessas rela-ções. “Imagens do espaço escolar” trata, especificamente, dos espa-ços ocupados pelas práticas educativas religiosas do colégio na cidadede Salvador, desde a sua fundação, em 1911.

A última parte, “Grupos photographicos”, subdivide-se de acor-do com os eixos temáticos do catálogo do acervo. “Os professores eos alunos” é o primeiro dos temas, e expõe aspectos dos processosdisciplinares e hierárquicos nos quais se fundamentavam as práticaspedagógicas, religiosas e sociais jesuíticas, no colégio e na cidade.O conjunto das imagens de grupos de professores e alunos permiteinvestigar a historicidade do período, expressa no vestuário, porexemplo, e as relações estabelecidas no âmbito escolar.

Os jesuítas produziram um conjunto de imagens, resultante desuas pesquisas realizadas em Salvador e no interior do estado daBahia. Esse conjunto é apresentado em Os naturalistas. As imagensforam utilizadas como recurso pedagógico, divulgadas em uma re-vista de circulação internacional e dispostas em uma exposição rea-lizada no colégio, entre 1920 e 1930.

Além dessas imagens, foram apresentadas também aquelas re-lativas aos seguintes eixos temáticos: Os congregados Marianos, Oteatro e a música, Os escoteiros e Os esportes, constituídos por ima-gens de práticas e aspectos relativos à vida religiosa, educativa, so-cial e cultural da instituição, evidenciando preocupações que nortea-ram as atividades e personagens que encarnaram as práticas e assimbologias. Agrupadas em Outras imagens, algumas singularesfotografias permitem múltiplas interpretações.

No tocante à metodologia e ao conjunto documental, a obra nãose restringiu à análise das fontes; é fruto de um projeto que abrangeua recuperação das imagens em negativos em vidro, a organização doconjunto em eixos temáticos e a catalogação. Nesse sentido, Negati-

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vos em vidro: Coleção de imagens do Colégio Antônio Vieira, 1920-1930 constitui-se também como um instrumento para outras pesqui-sas na área de história da educação na Bahia.

Para facilitar o acompanhamento da análise das imagens foto-gráficas, o catálogo do acervo foi desmembrado e colocado ao finalde cada um dos eixos temáticos trabalhados nas respectivas partesda obra. No anexo, o catálogo foi apresentado integralmente.

Rachel Duarte AbdalaMestranda em História da Educação da

Faculdade de Educação – USP

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Orientação aos Colaboradores

A Revista Brasileira de História da Educação publica artigos,resenhas, traduções e notas de leitura inéditos no Brasil, relacionadosà história e à historiografia da educação, de autores brasileiros ouestrangeiros, escritos em português ou espanhol, reservando-se o di-reito de encomendar trabalhos e compor dossiês. Os artigos devemapresentar resultados de trabalhos de investigação e/ou de reflexãoteórico-metodológica. As resenhas devem discorrer sobre o conteúdoda obra e efetuar um estudo crítico, além de poder versar sobre textosrecentes ou já reconhecidos academicamente. As notas de leitura de-vem trazer uma notícia de publicação recente.

Seleção dos trabalhosOs artigos são submetidos a dois pareceristas ad hoc, sendo ne-

cessária a aprovação por parte de ambos. No caso de divergência dospareceres, o texto será encaminhado a um terceiro parecerista. A pri-meira página deve trazer o título da matéria, sem indicar nome e in-serção institucional do autor. Deve conter também o resumo emportuguês ou espanhol e o resumo em inglês (abstract), com exten-são máxima de sete linhas, e cinco palavras-chave em português ouespanhol e em inglês. Em folha avulsa, o autor deve informar o títulocompleto do artigo em português e em inglês, seu nome, titulação einstituição a que está vinculado, projetos de pesquisa dos quais parti-cipa, endereço, telefone e e-mail.

As resenhas e notas de leitura são avaliadas pela Comissão Edi-torial.

Normas gerais para aceitação de trabalhosOs originais devem ser encaminhados em três vias impressas e

uma cópia em disquete, observando-se o formato: 3 cm de margemsuperior, inferior e esquerda e 2 cm de margem direita; espaço entrelinhas de 1,5; fonte Times New Roman no corpo 12.

Os trabalhos remetidos devem respeitar a seguinte padronização:Extensão mínima e máxima, respectivamente:

• Artigos – de 30 mil caracteres a 60 mil caracteres (aproxima-damente de 15 a 30 páginas). Cada resumo que acompanhar

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o artigo deverá ter, no máximo, 700 caracteres (contandoespaços). Para contar os caracteres no Word, no item “Ferra-mentas”, a opção “Contar palavras”. Para as palavras-chave,consultar as Bases de Dados: Lilacs, Medline, Sport Discus.

• Resumos e abstracts – os resumos e abstracts dentro decada artigo não devem ter mais de 4 linhas cada.

• Resenhas – de 8 mil caracteres a 15 mil caracteres (aproxi-madamente de 4 a 8 páginas).

• Notas de leitura – de 2 mil caracteres a 4 mil caracteres(aproximadamente de 1 a 2 páginas).

As indicações bibliográficas, no corpo do texto, devem vir noformato sobrenome do autor, data de publicação e número da pági-na entre parênteses, como, por exemplo, (Azevedo, 1946, p. 11). Asreferências no final do texto devem seguir as normas da ABNT NBR6023:2000. Notas de rodapé, em numeração consecutiva, devem tercaráter explicativo.

Vale notar que todas as citações devem vir entre aspas e nãodevem estar em itálico, salvo trechos que se deseja destacar.

A Comissão Editorial não aceitará originais apresentados comoutras configurações.

A revista não devolve os originais submetidos à apreciação. Osdireitos autorais referentes aos trabalhos publicados ficam cedidospor um ano à Revista Brasileira de História da Educação.

Serão fornecidos gratuitamente aos autores de cada artigo cincoexemplares do número da revista em que seu texto foi publicado.Para as resenhas e notas de leitura publicadas, cada autor receberádois exemplares.

Os originais devem ser encaminhados à Comissão Editorial, comsede no Centro de Memória da Educação – Faculdade de Educação,Universidade de São Paulo. Av. da Universidade, 308 – Bloco B –Terceira Fase – Sala 40, CEP 05508-900, São Paulo-SP.

Informações adicionais podem ser obtidas no e-mail: [email protected] ou no telefone (11) 3091-3194, das 13h às 18h.

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CONTENTS

EDITORIAL 7

ARTICLES

The catholic newspaper Novidades: meaning(s) of educate 9Maria José Remédios

A history of reading for teachers: an analysis of the production and circulation ofspecialized knowledge in educational manuals (1930-1971) 29Vivian Batista da Silva

The journal Escola Argentina: thoughts about a school magazine in the twentiesand thirthies 59Miriam Waidenfeld Chaves

Public instruction and teachers’ formation in Minas Gerais (1825-1852) 87Walquíria Miranda Rosa

The teaching of History of Education and the production of meanings inclassroom 115Clarice Nunes

A look on teaching of History of Education in the pedagogicals courses inBelo Horizonte 159Luciano Mendes de Faria Filho e José Roberto Gomes Rodrigues

National development and education 177Geraldo Bastos Silva

BOOK REVIEWS

Friedrich Froebel: o pedagogo dos jardins de infância 217By Diane Valdez

Page 248: Revista Brasileira de História da Educaçãocadermevalsaviani.weebly.com/uploads/7/9/1/7/7917091/rbhe6.pdf · temáticas sobre educação, identificadas, com a matriz doutrinária

Historia de la educación (Edad Contemporánea) 223By Bruno Bontempi Júnior

O exercício disciplinado do olhar: livros, leituras e práticas de formaçãodocente no Instituto de Educação do Distrito Federal (1932-1937) 229By Maria Cristina Soares de Gouvêa

Templos de civilização: a implantação da Escola Primária Graduada noestado de São Paulo, 1890-1910 235By José Cláudio Sooma Silva

READING NOTES

Negativos em vidro: coleção de imagens do Colégio Antônio Vieira (1920-1930) 241By Rachel Duarte Abdala

GUIDES FOR AUTHORS 245