revista justiça & cidadania

52

Upload: editora-jc

Post on 09-Mar-2016

212 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Editora 83 - Junho 2007

TRANSCRIPT

2 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

�A�n�u�n�c�i�o�_�Z�i�t�_�2�0�5�x�2�7�5�_�L�i�v�r�o

�q�u�a�r�t�a�-�f�e�i�r�a�,� �2�3� �d�e� �j�u�n�h�o� �d�e� �2�0�1�0� �0�8�:�2�4�:�1�0

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 3

EDIÇÃO 83 • junhO DE 2007

06 14POR UM NOVO SUPREMO

CONSELHO EDITORIAL

ORPHEU SANTOS SALLESEDITOR

TIAGO SANTOS SALLESDIRETOR EXECUTIVO

DAVID RIBEIRO SANTOS SALLESSECRETÁRIO DE REDAÇÃO

DÉBORA MARIA M. A. R. DIASREVISÃO

DIOGO TOMAZ E MAURíCIO FREDERICODIAGRAMAÇÃO

VINíCIUS GONÇALVESEXPEDIÇÃO E ASSINATURA

CLEONICE DE MELOASSISTENTE DE EXPEDIÇÃO

EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIAAV. NILO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOLICEP: 20020-906. RIO DE JANEIROTEL/FAX (21) 2240-0429CNPJ: 03.338.235/0001-86

SUCURSAIS

SÃO PAULORAPHAEL SANTOS SALLES AV. PAULISTA, 1765/13°ANDARCEP: 01311-200. SÃO PAULOTEL.(11) 3266-6611

PORTO ALEGREDARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO N°1038, SL.1102ED. PLAZA FREITAS DE CASTRO. CENTRO. CEP: 90010-272TEL.(51) 3211 5344

SALVADORFREDERICO DINIZ GONÇALVESRUA BARÃO DE ITAPUÃ, 60 CONJ. 301CENTRO EMPRESARIAL PORTO CENTERCEP: 40140-060TEL.(71) 3264 3754

BRASíLIAARNALDO GOMESSCN - Q.1 - BLOCO E Ed. CENTRAL PARKFONES: (61) 3327-1228 / 29

CORRESPONDENTEARMANDO CARDOSOTEL (61) 9674-7569

[email protected]

CTP, IMPRESSÃO E ACABAMENTOZIT GRÁFICA E EDITORA LTDA

ISSN 1807-779X

SUMÁRIO

ALVARO MAIRINk DA COSTA

ANDRÉ FONTES

ANTONIO CARLOS MARTINS SOARES

ANTôNIO SOUZA PRUDENTE

ARNALDO ESTEVES LIMA

AURÉLIO wANDER BASTOS

BERNARDO CABRAL

CARLOS ANTôNIO NAVEGA

CARLOS AyRES BRITTO

CARLOS MÁRIO VELLOSO

CELSO MUNIZ GUEDES PINTO

CESAR ASFOR ROCHA

DALMO DE ABREU DALLARI

DENISE FROSSARD

EDSON CARVALHO VIDIGAL

ELLIS HERMyDIO FIGUEIRA

FERNANDO NEVES

FRANCISCO VIANA

FRANCISCO PEÇANHA MARTINS

FREDERICO JOSÉ GUEIROS

GILMAR FERREIRA MENDES

HUMBERTO GOMES DE BARROS

IVES GANDRA MARTINS

JERSON kELMAN

JOSÉ AUGUSTO DELGADO

JOSÉ CARLOS MURTA RIBEIRO

JOSÉ EDUARDO CARREIRA ALVIM

LUIS FELIPE SALOMÃO

MANOEL CARPENA AMORIM

MARCO AURÉLIO MELLO

MASSAMI UyEDA

MAURICIO DINEPI

MAxIMINO GONÇALVES FONTES

NEy PRADO

PAULO FREITAS BARATA

SEBASTIÃO AMOÊDO

SERGIO CAVALIERI FILHO

SyLVIO CAPANEMA DE SOUZA

THIAGO RIBAS FILHO

28

EDITORIAL

A PRESENÇA DE LUCy SCHIMIDT MURTA RIBEIRO

MINISTRO CESAR ASFOR ROCHA ASSUME CORREGEDORIA

MINISTRO MOREIRA ALVES CRITICA PROPOSTA DE ATUALIZAR CóDIGO CIVIL

CRESCIMENTO PLANEJADO NÃO É ESBANJAMENTO

REPRESENTANTES DO POVO OU DOS “DI MENOR”

REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL

A QUEM INTERESSA A VIOLÊNCIA

“BANALIZAÇÃO” DA QUEBRA DO SIGILO

DEVIDO PROCESSO LEGAL

CRIANÇA, PRIORIDADE NACIONAL

PRIVACIDADE E DEFESA

4

13

18

20

22

26

32

36

42

44

48

50

8anosEM DEFESA DAS INSTITUIÇÕES

SENTENÇAS INCONSTITUCIONAIS: INExIGIBILIDADE

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR RODOVIÁRIO URBANO

O TEOREMA DO LIMITE CENTRAL, A JUSTIÇA E A QUESTÃO ENERGÉTICA

38

�A�n�u�n�c�i�o�_�Z�i�t�_�2�0�5�x�2�7�5�_�L�i�v�r�o

�q�u�a�r�t�a�-�f�e�i�r�a�,� �2�3� �d�e� �j�u�n�h�o� �d�e� �2�0�1�0� �0�8�:�2�4�:�1�0

4 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

EDIT

ORI

AL

EM DEFESA DAS INSTITUIÇÕES

Desde junho de 1999 (e lá se vão oito anos), quando lançamos a Revista Justiça & Cidadania, com o benfazejo incentivo do Ministro Carlos Velloso, na ocasião Presidente do Supremo Tribunal

Federal, pautamos sempre como norma a defesa intransigente das Instituições, especialmente do Poder Judiciário e da Magistratura.

Na ocasião, arrivistas em busca de prestígio visando os holofotes da mídia intentaram, com sentido de menosprezar o Judiciário e a Magistratura, a adoção de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, acusando a existência de uma fantasiosa “CAIXA PRETA”.

Foi armada então, com um estardalhaço digno de pantomima teatral, a realização de audiências, convocação de testemunhas, realização de perícias, diligências sem número, para, finalmente, chegar à inconcludente solução de que nada havia sido apurado, a não ser a constatação de irregularidades que já estavam sendo apuradas pelo próprio Poder Judiciário.

Existem, no País, em toda a Magistratura, primeira Instância e Tribunais Superiores, cerca de 15.000 juízes e, nesse total, insignificante é o número de juízes envolvidos com irregularidades e falcatruas, tendo sido exemplarmente aplicado a todos que praticaram as devidas sanções e ainda àqueles pendentes da finalização de apuração, no aguardo do resultado para aplicação da penalidade que lhes couber.

Portanto, qualquer denúncia ou acusação que se faça contra

“AS AÇõES PRATICADAS PELA POLíCIA FEDERAL REPERCUTIRAM EM DECORRêNCIA DA DESMORALIZAÇÃO QUE CAMPEIA LIVREMENTE

NO PAíS, COM AGRADO E APLAUSOS DA POPULAÇÃO, FACE à PRISÃO DE POLíTICOS E EMPRESÁRIOS DE ALTO PRESTíGIO,

ACUSADOS DE CORRUPÇÃO.”

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5

a Instituição é injusta e imerecida, face aos cuidados e interesse dos órgãos superiores do Poder Judiciário, em defender e manter a respeitabilidade e dignidade com que a instituição se comporta, como responsável absoluto da distribuição da justiça como dispõe e determina a Constituição Federal.

Este preâmbulo é necessário, principalmente, neste momento em que investigações procedidas pela Polícia Federal e que deram ensejo às inúmeras prisões estão sendo questionadas face às formas irregulares como foram realizadas, ocasionando a impetração de habeaus corpus, que, por encontrarem amparo legal, ocasionou a decretação da liberdade de todos os denunciados.

É de se reconhecer que as ações praticadas pela Polícia Federal, com as ações como foram efetuadas, repercutiram em decorrência da desmoralização que campeia livremente no país, com agrado e aplausos da população, face à prisão de políticos e empresários de alto prestígio, acusados de corrupção. Entretanto, apesar de bem recebida, essas ações produziram nefasto impacto pela forma vil como foram executadas, pelos excessos e execração pública produzidos, atingindo pessoas inocentes, como aconteceu com o Prefeito de Camaçari, Luiz Carlos Caetano, que, denunciado pela Polícia Federal, sofreu violência inominável, tendo sido algemado, enxovalhado e desmoralizado publicamente, em todo o Brasil, como bandido, para, depois de ouvido pela digna Ministra Eliana Calmom, ser solto e livre de culpa.

O Prefeito de Camaçari, que provou não ter assinado qualquer documento para beneficiar ou favorecer a Construtora Guatamano, afirmou revoltado e em convulsivo choro: “O que fizeram comigo me remeteu aos tempos do regime militar, e a ação da Polícia Federal envergonha a Nação”.

O açodamento das ações da Polícia Federal, com prisões atentatórias contra o cidadão, invasão de casas com arrombamentos de portas, colocação de algemas e outras arbitrariedades e ilegalidades contra o estado democrático de direito que hoje vivenciamos, impõe uma disciplina e aplicação de normas que venham impedir que fatos escabrosos como os divulgados nos jornais e televisão sejam devidamente corrigidos para não mais acontecer.

A calamitosa situação em que se encontra a Administração pública no País, avultando o descalabro moral e cívico que representa o malfazejo e difundido crime de corrupção que campeia livremente em todos os setores da Nação, fez com que a população revoltada e enojada com tanto desmando e corrupção aplaudisse o desmedido rigor como foram conduzidas as investigações e prisões dos suspeitos da prática de crime do colarinho branco.

Os fatos ocorridos com prisões dos denunciados, decreta-das e logo mais revogadas, face aos ditames da lei, tem causado surpresas pelas aparentes divergências havidas entre os ilustres

e dignos Ministros dos Tribunais Superiores, respectivamente a Ministra Eliana Calmon e o Ministro Gilmar Mendes.

A corajosa decisão da Ministra Eliana Calmon, decretando, diante das denúncias e provas apresentadas pela Polícia Federal, as prisões de dezenas de acusados, com apreensão de farto material encontrado, inclusive altas somas de dinheiro nacional e estrangeiro, automóveis de luxo e outros bens, foram, entretanto, revogadas pelo Ministro Gilmar Mendes, face à impetração de habeaus corpus fundamentados por nulidades insanáveis encontradas nos processos preparados pela Polícia Federal.

As decisões do Ministro Gilmar Mendes determinando a revogação das prisões obedeceram às normas e dispositivos legais, que, necessariamente, têm de ser observados, face o estado democrático de direito que vivenciamos. O posicionamento do Ministro ao relaxar as medidas prisionais, por certo levou em conta, além das evidentes lacunas processuais e a evidente intenção dada pelo vazamento de informações, que malévola com requintes de infâmia, relacionaram o nome do homônimo Gilmar Melo Mendes, tentando solertemente atingir e desmoralizar canalhamente o seu nome.

A revolta de Gilmar Mendes em defesa da sua honra e dignidade é plenamente justificada, pois S. Excia. representa no conceito da magistratura e do magistério uma das personalidades mais dignas, que enaltece e dignifica o Supremo Tribunal Federal, pela alta cultura jurídica, experiência, saber comprovado, alta competência e honorabilidade como conduz sua vida particular, profissional e pública, sendo merecedor de todo o apoio, digno de solidariedade e afeição, face o infeliz e infamante despautério produzido por elementos da Polícia Federal.

Também, aplausos continuados e muito merecidos para a Ministra Eliana Calmom, uma verdadeira virtuose das letras jurídicas e destemida magistrada, que em defesa do justo e da verdade não titubeou em determinar o afastamento dos delegados da Polícia Federal, que presumidamente vazaram informações, com as quais tentaram enxovalhar o digno e incorruptível Ministro Gilmar Mendes.

Assim e dentro dos princípios que norteiam a Revista, na defesa intransigente das Instituições republicanas, reafirmamos esses propósitos, em especial, a favor do Poder Judiciário e da Magistratura.

Orpheu Santos SallesEditor

6 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

Teori Albino ZavasckiMinistro do STJ

Professor de Direito da UNB

SENTENÇAS INCONSTITUCIONAIS: INExIGIBILIDADE

A teor do § 1º do art. 475-L, com a redação dada pela Lei 11.232/05, “para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato

normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal”.

Redação idêntica foi atribuída ao parágrafo único do art. 741 do CPC, alterando, no particular, com pequenas modificações, a redação que lhe fora dada pela Medida Provisória 2.180-35/2001.

Os dispositivos, como se percebe, estabelecem uma causa de inexigibilidade (inibindo, portanto, a exeqüibilidade) da obrigação objeto de títulos executivos judiciais, aqui referidos genericamente como sentenças. O presente estudo visa investigar o sentido e o alcance desses dispositivos.

As diversas posições doutrinárias a respeitoDesde seu surgimento em nosso direito positivo, na

sua primitiva redação constante do parágrafo único do art. 741 do CPC, a matéria gerou polêmica na doutrina e na jurisprudência. Por um lado, há os que simplesmente consideraram o dispositivo inconstitucional por ofensa ao princípio da coisa julgada. É posicionamento que

FOTO

: STF

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 7

via para evitar os inconvenientes da inconstitucionalidade. No sistema de controle difuso vigorante no Brasil, todo o juiz, ao decidir qualquer processo, se vê investido no poder de controlar a constitucionalidade da norma ou ato cujo cumprimento se postula em juízo. No bojo dos embargos à execução, portanto, o juiz, mesmo sem prévio pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, está credenciado a recusar execução à sentença que contraria preceito constitucional, ainda que o trânsito em julgado já se tenha verificado”.

Também essa corrente merece críticas. Ela confere aos embargos à execução (ou, se for o caso, à impugnação do devedor) uma eficácia rescisória muito maior que a prevista nos dispositivos ao início referidos, eficácia essa que, para sustentar-se, haveria de buscar apoio não nesses dispositivos infraconstitucionais, mas diretamente na Constituição. Ademais, a se admitir a ineficácia das sentenças em tão amplos domínios, restaria eliminado, de modo completo, pelo menos em matéria constitucional, o princípio da coisa julgada, que também tem assento na Constituição. Comprometer-se-ia também um dos escopos primordiais do processo, o da pacificação social mediante eliminação da controvérsia, eis que se daria oportunidade à permanente renovação do questionamento judicial de lides já decididas. Ensejar-se-ia que qualquer juiz, simplesmente invocando

a inconstitucionalidade, negasse execução a qualquer sentença, inclusive as proferidas por órgãos judiciários hierarquicamente superiores (tribunais de apelação e mesmo tribunais superiores). Em suma, propiciar-se-ia, em matéria constitucional, a perene instabilidade do julgado, dando razão à precisa crítica de Barbosa Moreira:

“Suponhamos que um juiz, convencido da incompa-tibilidade entre certa sentença e a Constituição, ou da existência, naquela, de injustiça intolerável, se considere autorizado a decidir em sentido contrário. Fatalmente, sua própria sentença ficará sujeita à crítica da parte agora vencida, a qual não deixará de considerá-la, por sua vez, inconstitucio-nal ou intoleravelmente injusta. Pergunta-se: que impedirá esse litigante de impugnar em juízo a segunda sentença, e outro juiz de achar possível submetê-la ao crivo de seu próprio entendimento? O óbice concebível seria o da coisa julgada; mas, se ele pode ser afastado em relação à primeira sentença, porque não poderá sê-lo em relação à segunda?”

In medio virtus. Entre as duas citadas correntes (que, com suas posições extremadas, acabam por comprometer o núcleo essencial de princípios constitucionais, o da supremacia da Constituição ou o da coisa julgada) estão os doutrinadores que, reconhecendo a constitucionalidade da norma, buscam dar-lhe o alcance compatível com seu enunciado. Mesmo entre esses, todavia, há divergências.

tem como pressuposto lógico – expresso ou implícito – a sobrevalorização do princípio da coisa julgada, que estaria hierarquicamente acima de outros princípios constitucionais, inclusive o da supremacia da Constituição, o que não é verdadeiro. Se o fosse, ter-se-ia de negar a constitucionalidade da própria ação rescisória, instituto que evidencia claramente que a coisa julgada não tem caráter absoluto, comportando limitações, especialmente quando estabelecidas, como no caso, por via de legislação ordinária.

Há, por outro lado, corrente de pensamento situada no outro extremo, dando prevalência máxima ao princípio da supremacia da Constituição e, por isso mesmo, considerando insuscetível de execução qualquer sentença tida por inconstitucional, independentemente do modo como tal inconstitucionalidade se apresenta ou da existência de pronunciamento do STF a respeito, seja em controle difuso, seja em controle concentrado. Eis, sumariadas, as

razões de Humberto Theodoro Jr., defensor dessa corrente: “A inconstitucionalidade não é fruto da declaração

direta em ação constitutiva especial. Decorre da simples desconformidade do ato estatal com a Constituição. O STF apenas reconhece abstratamente e com efeito erga omnes na ação direta especial. Sem esta declaração, contudo, a invalidade do ato já existe e se impõe a reconhecimento do judiciário a qualquer tempo e em qualquer processo onde se pretenda extrair-lhe os efeitos incompatíveis com a Carta Magna. Ao manter-se a restrição proposta, a coisa julgada, quando não for manejável a ação direta, estará posta em plano superior ao da própria Constituição, ou seja a sentença dispondo contra o preceito magno afastará a soberania da Constituição e submeterá o litigante a um ato de autoridade cujo respaldo único é a res judicata, mesmo que em desacordo com o preceito constitucional pertinente. A ação direta junto ao STF jamais foi a única

“A SEGUNDA CARACTERíSTICA QUALIFICADORA DA INCONSTITUCIONALIDADE QUE DÁ ENSEJO à APLICAÇÃO DOS CITADOS PRECEITOS NORMATIVOS é A DE QUE ELA TENHA SIDO

RECONHECIDA PELO STF.”

8 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

Há quem sustente que a inexigibilidade do título executivo judicial seria invocável apenas nas restritas hipóteses em que houver precedente do STF em controle concentrado de constitucionalidade, declarando (ainda que sem redução de texto) a inconstitucionalidade do preceito normativo aplicado pela sentença exeqüenda. E há quem veja no texto normativo, um domínio maior, abarcando não apenas as situações referidas mas também quando a sentença exeqüenda der aplicação a preceito normativo declarado inconstitucional pelo STF em controle difuso e suspenso por resolução do Senado (CF, art. 52, X); e também quando a sentença exeqüenda nega aplicação a preceito normativo declarado constitucional pelo STF, em controle concentrado.

Ambas as correntes – e nisso merecem crítica – embasam suas conclusões apenas na eficácia subjetiva das decisões em controle de constitucionalidade, só admitindo o cabimento da inexigibilidade das sentenças judiciais nos casos em que o precedente do STF em sentido contrário tenha eficácia erga omnes, direta (em ações de controle concentrado) ou indireta (por via de resolução do Senado).

Exegese do preceito normativo: constitucionalidade e alcance

A constitucionalidade da norma inserta no parágrafo único do art. 741 do CPC e no § 1º do art. 475-L do CPC decorre de seu significado e de sua função. Trata-se de preceito normativo que, buscando harmonizar a garantia da coisa julgada com o primado da Constituição, veio apenas agregar ao sistema um mecanismo processual com eficácia rescisória de certas sentenças inconstitucionais.

Até seu advento, o meio apropriado para rescindir tais sentenças era o da ação rescisória (art. 485, V). Agora, para hipóteses especialmente selecionadas pelo legislador, conferiu-se força semelhante à impugnação e aos embargos à execução. Não há inconstitucionalidade alguma nisso.

Para estabelecer, mediante exegese específica, o conteúdo e o alcance desse novo instrumento, duas premissas essenciais devem ser consideradas: (a) a de que ele não tem aplicação universal a todas as sentenças inconstitucionais, restringindo-se às fundadas em um vício específico de inconstitucionalidade; e (b) a de que esse vício específico tem como nota característica a de ter sido reconhecido em precedente do STF.

Especificidade das sentenças inconstitucionais sujeitas a rescisão por embargos

Realmente, os preceitos normativos comentados não têm a força e nem o desiderato de solucionar, por inteiro, todos os possíveis conflitos entre os princípios da supremacia da Constituição e da coisa julgada. É que a sentença pode operar ofensa à Constituição em variadas situações, que vão além das que resultam do controle da constitucionalidade das normas. A sentença é inconstitucional não apenas quando aplica norma inconstitucional (ou com um sentido ou a uma

situação tidos por inconstitucionais) mas também quando, por exemplo, deixa de aplicar norma declarada constitucional, ou aplica dispositivo da Constituição considerado não-auto-aplicável, ou deixa de aplicar dispositivo da Constituição auto-aplicável, e assim por diante.

Em suma, a inconstitucionalidade da sentença ocorre em qualquer caso de ofensa à supremacia da Constituição, e o controle dessa supremacia, pelo Supremo, é exercido em toda a amplitude da jurisdição constitucional, da qual a fiscalização da constitucionalidade das leis é parte importante, mas é apenas parte.

A solução oferecida pelo § 1º do art. 475-L e pelo parágrafo único do art. 741 do CPC, repita-se, não é aplicá- vel a todos os possíveis casos de sentença inconstitucional. Trata-se de solução para situações especiais, e, conseqüen-temente, não afasta a necessidade de, eventualmente, trilhar outros caminhos (ordinários ou especiais) quando houver sentença com vícios de inconstitucionalidade neles não especificados. Não se esgota, portanto, o debate, hoje corrente sob o rótulo da “relativização da coisa julgada”, com posições ardorosas em sentidos diferentes, uns favoráveis à “relativização” e outros negando-a peremptoriamente.

Admitindo-se, em casos graves em que isso seja inevitável, a necessidade de fazer prevalecer, sobre a coisa julgada, o princípio constitucional ofendido pela sentença, não se descarta a adoção, para tanto, dos mecanismos processuais estabelecidos nos dispositivos aqui comentados, mesmo que a hipótese extrapole os limites neles estabelecidos. É que, pa-ra essas situações excepcionais, não há procedimento previsto em lei, devendo ser adotado – por imposição do princípio da instrumentalidade – o que melhor atende ao fim almejado, de defender a Constituição. Porém, não é essa a utilização a que, ordinariamente, se destinam os referidos mecanismos.

A inexigibilidade dos títulos judiciais, se refere, conforme expressa o texto normativo, a “(...) título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidos pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal”. São apenas três, portanto, os vícios de inconstitucionalidade que permitem a utilização do novo mecanismo: (a) a aplicação de lei inconstitucional; ou (b) a aplicação da lei a situação considerada inconstitucional; ou, ainda, (c) a aplicação da lei com um sentido (= uma interpretação) tido por inconstitucional.

Há um elemento comum às três hipóteses: o da inconstitucionalidade da norma aplicada pela sentença. O que as diferencia é apenas a técnica utilizada para o reconhecimento dessa inconstitucionalidade. No primeiro caso (aplicação de lei inconstitucional), supõe-se a declaração de inconstitucionalidade com redução de texto. No segundo (aplicação da lei em situação tida por inconstitucional), supõe-se a técnica da declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto. E no terceiro (aplicação de lei com um sentido inconstitucional), supõe-se a técnica da interpretação conforme a Constituição.

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9

A redução de texto é o efeito natural mais comum da afirmação de inconstitucionalidade dos preceitos normativos em sistemas como o nosso, em que tal vício importa nulidade: se o preceito inconstitucional é nulo, impõe-se seja extirpado do ordenamento jurídico, o que leva à conseqüente “redução” do direito positivo.

Há situações, todavia, em que a pura e simples redução de texto não se mostra adequada ao princípio da preservação da Constituição e de sua força normativa. A técnica da declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto é utilizada justamente em situações dessa natureza, em que a norma é válida (= constitucional) quando aplicada a certas situações, mas inválida (= inconstitucional) quando aplicada a outras. O reconhecimento dessa dupla face do enunciado normativo impõe que a declaração de sua inconstitucionalidade parcial (= aplicação a certas situações) se dê sem a eliminação (= redução) do enunciado positivo, a fim de que fique preservada sua aplicação na parte (= às situações) tida por constitucional.

É assim também a técnica de interpretação conforme a Constituição, que consiste em “declarar a legitimidade do ato questionado desde que interpretado em conformidade com a Constituição”. Trata-se de instituto hermenêu-tico “visando à otimização dos textos jurídicos, mediante agregação de sentidos, portanto, produção de sentido”, especialmente para preservar a constitucionalidade da interpretação “quando a utilização dos vários elementos interpretativos não permite a obtenção de um sentido inequívoco dentre os vários significados da norma. Daí sua formulação básica: no caso de normas polissêmicas ou plurisignificativas, deve dar-se preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a Constituição”.

Nessa técnica também em maior ou menor medida, declaração de inconstitucionalidade: ao afirmar que a norma somente é constitucional quando interpretada em determinado sentido, o que se diz implícita mas necessariamente, é que a norma é inconstitucional quando interpretada em sentido diverso. Não fosse para reconhecer a existência e, desde logo, repelir interpretações inconstitucionais, não haveria necessidade de utilização dessa técnica. Bastaria que se declarasse, simplesmente, a constitucionalidade da norma, julgando improcedente (e não, como o faz acertadamente o STF, procedente em parte) a ação direta de inconstitucionalidade.

Isso fica bem claro quando se tem em conta que a norma nada mais é, afinal, do que o produto da interpretação. “A interpretação”, escreveu Eros Grau, “é um processo intelectivo através do qual, partindo de fórmulas lingüísti-cas contidas nos textos, enunciados, preceitos,

disposições, alcançamos a determinação de um conteúdo normativo. (...) Interpretar é atribuir um significado a um ou vários símbolos lingüísticos escritos em um enunciado normativo. O produto do ato de interpretar, portanto, é o significado atribuído ao enunciado ou texto (preceito, disposição)”.

E observou, mais adiante: “A interpretação, destarte, é meio de expressão dos conteúdos normativos das disposições, meio através do qual pesquisamos as normas contidas nas disposições. Do que diremos ser – a interpretação – uma atividade que se presta a transformar disposições (textos, enunciados) em normas. Observa Celso Antônio Bandeira de Mello (...) que ‘(...) é a interpretação que especifica o conteúdo da norma. Já houve quem dissesse, em frase admirável, que o que se aplica não é a norma, mas a interpretação que dela se faz. Talvez, se pudesse dizer: o que se aplica, sim, é a própria norma, porque o conteúdo dela é pura e simplesmente o que resulta da interpretação. De resto, Kelsen já ensinara que a norma é uma moldura. Deveras, quem outorga, afinal, o conteúdo específico é o intérprete,

Foto

: STJ

10 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

(...)’. As normas, portanto, resultam da interpretação. E o ordenamento, em seu valor histórico-concreto, é um conjunto de interpretações, isto é, conjunto de normas. O conjunto das disposições (textos, enunciados) é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, um conjunto de normas potenciais. O significado (isto é, a norma) é o resultado da tarefa interpretativa. Vale dizer: o significado da norma é produzido pelo intérprete. (...) As disposições, os enunciados, os textos, nada dizem; somente passam a dizer algo quando efetivamente convertidos em normas (isto é, quando – através e mediante a interpretação – são transformados em normas). Por isso, as normas resultam da interpretação, e podemos dizer que elas, enquanto disposições, nada dizem – elas dizem o que os intérpretes dizem que elas dizem (...)”.

À luz dessas considerações, tem-se como certo que a interpretação, conforme a Constituição, constitui também, em alguma medida, uma técnica de declaração de incons-titucionalidade: ao reconhecer a constitucionalidade de uma interpretação, o que se faz é afirmar a cons-titucionalidade de uma norma (= a que é produzida por interpretação segundo a Constituição), mas, ao mesmo tempo e como conseqüência, declarar a inconstitucionalidade de outra, ou de outras normas (= a que é produzida pela interpretação repelida).

O que se busca evidenciar, em suma, é que as três hipóte-ses figuradas no art. 475-L, § 1º e no art. 741, parágrafo único do CPC, supõem a aplicação de norma inconstitu- cional: ou na sua integralidade, ou para a situação em que foi aplicada, ou com o sentido adotado em sua aplicação.

Pressuposto indispensável: a existência de precedente do STFA segunda característica qualificadora da inconstitu-

cionalidade que dá ensejo à aplicação dos citados pre-ceitos normativos é a de que ela tenha sido reconhecida pelo STF. Já se disse que o novo mecanismo visa solucionar, nos limites que estabelece, situações concretas de conflito entre o princípio da supremacia da Constituição e o da estabilidade das sentenças judiciais. E o fez mediante inserção, como elemento moderador do conflito, de um terceiro princípio: o da autoridade do Supremo Tribunal Federal.

Dessa forma, alargou-se o campo de rescindibilidade das sentenças para estabelecer que, sendo elas, além de

inconstitucionais, também contrárias a precedente da Corte Suprema, ficam sujeitas a rescisão por via de impugnação ou de embargos, dispensada a ação rescisória própria. A existência de precedente do STF representa, portanto, o diferencial indispensável a essa peculiar forma de rescisão do julgado.

Aliás, a inserção desse elemento diferenciador não é novidade em nosso sistema. Ela representa mais uma das várias hipóteses de valorização dos precedentes já consagradas no direito positivo, acompanhando uma tendência evolutiva nesse sentido percebida e anotada pela doutrina. Também na ação rescisória em matéria constitucional, o princípio da supremacia da Constituição, aliado ao da existência de precedente do STF, constitui um referencial significativo, conforme reconheceu o STJ em várias oportunidades, como, v.g., em precedente em que se destacou:

“Na interpretação do art. 485, V, do Código de Processo Civil, que prevê a rescisão de sentença que ‘violar literal disposição de lei’, a jurisprudência do STJ e do STF sempre foi no sentido de que não é toda e qualquer violação à lei que pode comprometer a coisa julgada, dando ensejo à ação rescisória, mas apenas aquela especialmente qualificada. (...) Ocorre, porém, que a lei constitucional não é uma lei qualquer, mas a lei fundamental do sistema, na qual todas as demais assentam suas bases de validade e de legitimidade, e cuja guarda é a missão primeira do órgão máximo do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102). (...) Por essa razão, a jurisprudência do STF emprega tratamento diferenciado à violação da lei comum em relação à da norma constitucional, deixando de aplicar, relativamente a esta, o enunciado de sua Súmula 343, à consideração de que, em matéria constitucional, não há que se cogitar de interpretação apenas razoável, mas sim de interpretação juridicamente correta. (...) A orientação revela duas preocupações fundamentais da Corte Suprema: a primeira, a de preservar, em qualquer circunstância, a supremacia da Constituição e a sua aplicação uniforme a todos os destinatários; a segunda, a de preservar a sua autoridade de guardião da Constituição. (...) Assim sendo, concorre decisivamente para um tratamento diferenciado do que seja ‘literal violação’ a existência de precedente do STF, guardião da Constituição. Ele é que justifica, nas ações rescisórias, a substituição do parâmetro negativo da Súmula 343 por um parâmetro positivo, segundo o qual há violação à Constituição na sentença que, em matéria constitucional, é contrária a pronunciamento do STF”.

Pouco importa, para efeito de inexigibilidade da sentença exeqüenda, a época em que o precedente do STF em sentido contrário foi editado, se antes ou depois do trânsito em julgado. Tal distinção não foi estabelecida pelo legislador. A tese de que somente se poderia considerar os precedentes supervenientes à sentença exeqüenda não é compatível com o desiderato de valorizar a jurisprudência do Supremo. Se o precedente já existia à época da sentença, fica demonstrado, com mais evidência, o desrespeito a sua autoridade.

É indiferente, também, que o precedente tenha sido tomado em controle concentrado ou difuso, ou que, nesse

“A EXISTêNCIA DE PRECEDENTE DO STF

REPRESENTA, PORTANTO, O DIFERENCIAL INDISPENSÁVEL A ESSA PECULIAR FORMA DE RESCISÃO DO JULGADO.”

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 11

último caso, haja resolução do Senado suspendendo a execu-ção da norma. Também essa distinção não está contemplada no texto normativo, sendo de anotar que, de qualquer sorte, não seria cabível resolução do Senado na declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto e na que decorre da interpretação conforme a Constituição.

Além de não prevista na lei, a distinção restritiva não é compatível com a evidente intenção do legislador, já referida, de valorizar a autoridade dos precedentes emanados do órgão judiciário guardião da Constituição, que não pode ser hierarquizada em função do procedi-mento em que se manifesta. Sob esse enfoque, há idêntica força de autoridade nas decisões do STF em ação direta quanto nas proferidas em via recursal, estas também com natural vocação expansiva, conforme tivemos oportunidade de mostrar em sede doutrinária.

A recomendação da doutrina clássica – de que a eficácia erga omnes das decisões que reconhecem a inconstitucionalidade, ainda que incidentalmente, deveria ser considerado “efeito natural da sentença” – está ganhando campo no plano legislativo e jurisprudencial. É assim na ação rescisória em matéria constitucional, conforme já se referiu, onde os precedentes do STF atuam com idêntica força, pouco importando a natureza do processo do qual emanam. O mesmo acontece nos fins do art. 481, parágrafo único do CPC, que submete os demais Tribunais à eficácia vinculante das decisões do STF em controle de constitucionalidade, indiferentemente de terem sido tomadas em controle concentrado ou difuso.

Deve-se aplaudir essa aproximação, cada vez mais evidente, do sistema de controle difuso de constituciona-lidade ao do concentrado, que se generaliza também em outros países e que, entre nós, está conduzindo, no plano do direito infraconstitucional, ao reconhecimento da idêntica força de autoridade às decisões do STF, em qualquer das circunstâncias processuais em que são proferidas.

Não é por outra razão, aliás, que vozes importantes se levantam para sustentar o simples efeito de publicidade das resoluções do Senado previstas no art. 52, X, da Constituição. É o que defende, em doutrina, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, para quem “não parece haver dúvida de que todas as construções que se vêm fazendo em torno do efeito transcendente das decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Congresso Nacional, com o apoio, em muitos casos, da jurisprudência da Corte, estão a indicar a necessidade de revisão da orientação dominante antes do advento da Constituição de 1988”.

A questão do direito intertemporal: inaplicabilidade da norma às sentenças transitadas em julgado em data anterior à de sua vigência

O parágrafo único do art. 741 do CPC foi introduzido pela Medida Provisória 2.180-35, de 24.08.2001 e o art. 475-N, pela Lei 11.232/05. Sendo normas de natureza processual, têm aplicação imediata, alcançando os processos

em curso. Todavia, não podem ser aplicadas retroativamente. Como todas as normas infraconstitucionais, também elas estão sujeitas à cláusula do art. 5º, XXXVI, da Constituição, segundo a qual “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Em observância a essa garantia, não há como supor legítima a invocação da eficácia rescisória dos embargos à execução relativamente às sentenças cujo trânsito em julgado tenha ocorrido em data anterior à de sua vigência. Nesses casos, há, em favor do beneficiado pela sentença, o direito adquirido de preservar a coisa julgada com a higidez própria do regime processual da época em que foi formada.

Aplicação subsidiária às ações executivas lato sensuOs embargos constituem instrumento processual típico

de oposição à ação de execução. É o que estabelece o art. 736 do CPC: “O devedor poderá opor-se à execução por meio de embargos, que serão autuados em apenso aos autos do processo principal”. Portanto, não cabem embargos se não houver ação autônoma de execução, na forma disciplinada no Livro II do Código de Processo.

Ocorre que, no atual regime processual, em se tratando de obrigações de prestação pessoal (fazer ou não fazer) ou de entrega de coisa, as sentenças correspondentes são, segundo a linguagem da doutrina, “executivas lato sensu”, a significar que seu cumprimento se operacionaliza como simples fase do próprio processo cognitivo original.

Dispõe, com efeito, o art. 644 do CPC, na redação dada pela Lei 10.444/02, que “a sentença relativa a obrigação de fazer ou não fazer cumpre-se de acordo com o art. 461, observando-se, subsidiariamente, o disposto neste Capítulo”. O art. 461, por sua vez, estabelece que “na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento”, providências essas que serão cumpridas desde logo, independentemente da propositura de ação de execução. Para tanto, pode o juiz “impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito” (§ 4º) e, ainda, “determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e

“A RECOMENDAÇÃO DA DOUTRINA CLÁSSICA ESTÁ GANHANDO CAMPO NO

PLANO LEGISLATIVO E JURISPRUDENCIAL.”

12 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial” (§ 5º). Esse mesmo regime é aplicável às obrigações de entregar coisa, a teor do que prevê o art. 461A do Código.

Contudo, isso não significa que o sistema processual esteja negando ao executado o direito de se defender, nesses casos. Com efeito, não se pode descartar que, na prática de atividades executivas de sentença relativas a obrigações de fazer, não fazer ou entregar coisa, haja excessos ou impropriedades ou outras das hipóteses elencadas no art. 475-L ou no art. 741 do CPC. Se não se assegurasse ao demandado o direito de se opor a tais medidas, operar-se-ia operando ofensa ao princípio constitucional da ampla defesa (CF, art. 5º, LV).

Ao contrário de negar o direito de se defender, o atual

sistema o facilita. É que, inexistindo ação autônoma de execução, a defesa do devedor pode ser promovida e operacionalizada como mero incidente do processo, dispensada a propositura da ação de embargos. Bastará, para tanto, simples petição, no âmbito da própria relação processual em que for determinada a medida executiva. Terá o devedor, ademais, a faculdade de utilizar as vias recursais ordinárias, notadamente a do agravo, quando for o caso.

Quanto à matéria suscetível de invocação, seus limites são os mesmos estabelecidos para a impugnação e para os embargos à execução fundada em título judicial, de que tratam os já referidos artigos 475-L e 741 do CPC, aí incluída a hipótese de inexigibilidade do título, prevista no parágrafo único. É inevitável e imperioso, no particular, que, nos termos do art. 644 do CPC, haja aplicação subsidiária desses dispositivos às

ações executivas lato sensu.

Suma conclusiva Em suma, a inexigibilidade dos títulos executivos

judiciais, prevista no §1º do art. 475-L e no parágrafo único do art. 741 do CPC, está submetida aos seguintes pressupostos: a) que a sentença exeqüenda esteja fundada em norma inconstitucional, seja por aplicar norma inconstitucional (1ª parte do dispositivo), seja por aplicar norma em situação ou com um sentido tidos por inconstitucionais (2ª parte do dispositivo); e (b) que a inconstitucionalidade tenha sido reconhecida em precedente do STF, em controle concentrado ou difuso, independentemente de resolução do senado, mediante declaração de inconstitucionalidade com redução de texto (1ª parte do dispositivo), mediante declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto ou, ainda, mediante interpretação conforme a Constituição (2a parte).

Estão fora do âmbito material dos referidos embargos, portanto, todas as demais hipóteses de sentenças inconstitucionais, ainda que tenham decidido em sentido diverso da orientação do STF, como, v.g, quando o título executivo: a) deixou de aplicar norma declarada constitucional (ainda que em controle concentrado); b) aplicou dispositivo da Constituição que o STF considerou sem auto-aplicabilidade; c) deixou de aplicar dispositivo da Constituição que o STF considerou auto-aplicável; d) aplicou preceito normativo que o STF considerou revogado ou não recepcionado, deixando de aplicar ao caso a norma revogadora.

As Sentenças também estão fora do alcance daqueles preceitos normativos, ainda que eivadas da inconstitucionalidade neles referida, cujo trânsito em julgado tenha ocorrido em data anterior à de sua vigência. Os dispositivos, todavia, podem ser invocados para inibir o cumprimento de sentenças executivas lato sensu, às quais têm aplicação subsidiária.

Foto

: STJ

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13

Povos asiáticos fazem resplandecer o momento em que as pessoas deixam o nível pessoal dos humanos e partem para a transcendência, como em uma comemoração da partida para outras esferas. É

quando ressoa a metáfora do ciclo de borboletas que nascem em um casulo e, de repente, transgridem de sua couraça para alcançar o vôo para a liberdade plena, para a beleza pura, em movimentos imponderáveis.

Lucy Schimidt transpôs-se de seu casulo para a universalidade do real significado da vida: retornar a Deus, depois de uma viagem de extraordinária coerência com o universo do Criador. Sempre mística, sempre envolta do manto da pureza, a professar o verbo dos valores cristãos, alçando a si mesma para uma existência de rara religiosidade. Construiu sua família, suas amizades – sempre nesta convic-ção da existência da eternidade.

Dia das mães último.Um domingo de maio. Ela ainda respira, assiste e vela por sua obra. Dia seguinte, ela se despede. Último ato de sua jornada, viagem rumo à espiritualidade.

O casulo se rompe: dele desprende-se uma alma que, a cada momento da vida, preparou-se para a purificação, em busca de sua própria construção, de uma dignidade por caminhos longos e cruciais, mas curtos e místicos.

Vi-a pela última vez deitada no leito derradeiro, sua face clara como neve, a revelar um leve e suave sorriso de despedida. Durante algum tempo, permaneci a seu lado, como se tivesse tido com ela uma longa e estreita presença. Orei por todos nós, naqueles momentos sombrios, tristes, pela saudade de sua presença – mas intensos e emocionantes por sabê-la nos corações de todos nós.

Foi então que tive mais que certeza: a presença de Lucy Schimidt Murta Ribeiro será eterna, constante, infinita – como enigma da exata, palpitante e eterna permanência.

Cármine Antônio Savino Filho

Desembargador do TJ/RJ

A PRESENÇA DE LUCy SCHIMIDT MURTA RIBEIRO

Nota do Editor:

A direção da Revista se associa emocionado com a solene e carinhosa manifestação do Desembargador Cármine Savino, que expressa à saudosa e veneranda genitora do Presidente Murta Ribeiro os sentimentos de saudade de quem, em vida, além de espargir amor cristão, deixou sementes benfazejas que frutificaram com os ensinamentos de dignidade e devotamento a Deus.

ARQU

IVO PESSO

AL

14 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

A legislação aprovada no ano passado finalmente fará com que o Supremo Tribunal Federal (STF) volte às origens, avalia o vice-presidente da corte, Gilmar Mendes.

Para o ministro, a súmula vinculante – instrumento que obriga as Justiças de instâncias inferiores e órgãos da administração procederem de acordo com o entendimento do tribunal – e a repercussão geral – critério exigido para que um recurso seja admitido – farão com que o Supremo novamente seja o guardião da Constituição, papel posto de lado devido à excessiva demanda de ações de interesse apenas das partes envolvidas.

Isso somente, porém, não é suficiente. Gilmar Mendes quer a ampliação dos meios de consolidação das decisões da mais alta corte do País. Nesse sentido, ele propõe que o Senado dê mais efetividade às interpretações dos ministros e que os processos de massa sejam suspensos até o pronunciamento do tribunal sobre o assunto. Ele também defende a atuação do STF em relação aos atos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O ministro é contundente: “O Conselho não é um super órgão”, disse.

Jornal do Commercio – Qual é sua expectativa acerca da súmula vinculante?

Gilmar Mendes – Desde 1963, o Supremo adota as chamadas

súmulas, que são resumos de seus julgados para a orientação do próprio tribunal e de toda jurisdição a ela submetida. Creio que hoje tenhamos cerca de 800 súmulas. Elas, porém, não são vinculantes. A partir da Constituição de 1988, verificou-se uma expansão enorme dos recursos. Para se ter uma idéia, em 1988, o tribunal recebia 18 mil processos, basicamente recursos extraordinários. Já em 2000, passados então 12 anos, o tribunal recebia 105 mil. É uma expansão significativa. E, em geral, são processos idênticos. Verificamos, então, que era preciso fazer algo e que o caminho talvez fosse a súmula vinculante, pois fixaria uma orientação, evitando que condutas fixadas pelo STF fossem contrariadas por instâncias judiciais ou administrativas. Isso foi consagrado na Emenda Constitucional 45, de 2004, e regulamentado em 2006. Estamos então a cogitar a edição das primeiras súmulas.

JC – Quais temas serão “sumulados”?

GM – O tribunal está a discutir alguns verbetes. Cerca de oito ou 10 propostas que, em geral, incidem sobre matérias tributárias, providenciárias e ligadas ao procedimento penal e administrativo. Os temas terão de ser objeto de parecer por parte da Procuradoria e de aprovação do Plenário do STF, por dois terços.

Jornal do Commercio

POR UM NOVO SUPREMO

Ministro afirma que leis recentes permitirão que a mais alta corte do País

resgate sua função principal.

FOTO

: TJ/

RJ

Ministro Gilmar Ferreira Mendes

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 15

JC – Existe um prazo?

GM – Acredito que tão logo a lei entre em vigor, no próximo dia 20. JC – Ao julgar, no mês passado, uma ação contra a Justiça do Acre que não reconheceu decisão do STF em relação à progressão de regime penal, o senhor defendeu mudança na função do Senado para que todas as decisões de inconstitucionalidade da corte obtivessem efeito vinculante. Por que o senhor propôs isso?

GM – Essa matéria ainda está pendente de decisão do tribunal. O sistema brasileiro, em matéria de constitucionalidade, gravita em torno de dois processos básicos. De um lado, o controle incidental, que são os processos que passam por todas as instâncias e chegam ao Supremo por meio de recurso extraordinário. Nesse caso, a tradição, que remonta a 1934, recomendava que, se o Supremo declarasse a inconstitucionalidade de uma lei, ele poderia comunicar ao Senado para que este efetuasse a suspensão. Essa tradição se repetiu e está no artigo 5.210 da Constituição de 1988. A partir de 1965 e depois com a Constituição de 1988, consolidamos o que chamamos de controle abstrato, feito por meio da Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade). Nesse caso, o tribunal entende que a decisão que vale é a que aqui se toma. Portanto, a Adin não precisa ser comunicada ao Senado. Aí fiz a seguinte reflexão: antes não havia sequer a Adin, pois ela só começou a ser utilizada a partir de 1965, porém de forma mitigada, se expandido só a partir da Constituição de 1988. Agora, temos uma generalização dessas decisões com efeito geral. Estou dizendo que parece que há algo incongruente nesse modelo, que precisa ser mudado. E a mudança seria uma releitura desse dispositivo quanto ao papel do Senado para que nós possamos, desde logo, entender que cabe ao Senado tão-somente dar publicidade às decisões de inconstitucionalidade que o Supremo lhe comunicou. Se o Supremo entender que a lei é inconstitucional, o Senado deverá ser comunicado e essa decisão deverá valer com efeito vinculante. Portanto, equipararíamos a decisão do controle incidental à decisão do controle abstrato. JC – Qual seria o impacto dessa medida?

GM – Se o tribunal declarasse a inconstitucionalidade de uma lei municipal, por exemplo, ainda que por meio do controle incidental, provocado por terceiros interessados, a decisão valeria erga omnis. Assim, vamos imaginar o IPTU. Digamos que o STF julgue inconstitucional a cobrança de IPTU no Rio de Janeiro. Hoje a decisão só valeria para as partes. Somente se o Senado efetivasse a suspensão é que ela se estenderia para os demais. O que estamos a propor é declaração da inconstitucionalidade para que a decisão tenha efeito erga omnis.

JC – Mas com o Senado desempenhando esse papel, a súmula vinculante não ficaria enfraquecida?

GM – Acho que não. Na verdade, reforçaria a posição do tribunal enquanto corte de perfil constitucional. Essa é minha avaliação. Mas vamos esperar que o tribunal se pronuncie sobre essa proposta.

JC – Com relação à repercussão geral, a lei entrou em vigor no dia 19 do mês passado, mas a aplicação dela depende de uma regulamentação interna do STF. Isso já foi feito?

GM – Estamos discutindo as medidas regimentais e acredito que em pouco tempo tenhamos uma fórmula a ser observada pelo tribunal. De qualquer forma, a partir do dia em que a lei entrou em vigor, os recursos extraordinários já devem ser interpostos com a demonstração da repercussão geral. É uma exigência da lei.

JC – Como o senhor avalia as mudanças legislativas promovidas recentemente?

GM – Tenho a impressão de que no que, concerne à repercussão geral, recomenda-se uma revisão da Emenda Constitucional aprovada, que exige que, para se afirmar a inexistência da repercussão geral, haja oito votos. Isso torna o procedimento extremamente oneroso. Nas cortes constitucionais mundiais (o quorum), oscila em torno de três ou quatro juízes para analisar a repercussão geral.

JC – O STF já definiu quem julgará a repercussão? A lei exige um colegiado…

GM – A idéia básica é que ela seja submetida à apreciação dos membros da corte, mas não necessariamente submetida ao plenário. Estamos discutindo qual será o procedimento mais adequado. Cogitamos, inclusive, adotar um tipo de procedimento virtual. A manifestação poderia ser feita por meio de uma reunião virtual.

JC – Em sua avaliação, qual é o impacto dessas novas leis no papel do Supremo?

GM – Nossa expectativa é a de que o tribunal perca um pouco o perfil que assumiu nos últimos anos: de ser um tribunal quase que de revisão de tudo que se faz nas instâncias ordinárias. Com isso, o STF poderia se concentrar nas demandas de maior significado político, econômico, social, jurídico e institucional. Essa é a idéia básica. Mas, por outro lado, percebemos também que o modelo que vem dominando é irracional, porque fazemos um esforço enorme para produzirmos grandes quantidades de decisões iguais por causa de recursos semelhantes. Temos que fazer alguma engenharia funcional. Por exemplo, suspender processos que estão nas instâncias ordinárias até que nós nos pronunciemos sobre o tema.

JC – Mas isso sem que as partes tenham proposto ao STF? GM – Mesmo que a parte não tenha proposto o recurso extraordinário, as leis hoje já autorizam que alguns recursos possam subir a juízo do presidente e que os demais fiquem

16 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

sobrestados. Isso porque a decisão que vier a ser proferida pelo STF de alguma forma afetará aquele processo, tendo em vista o efeito abrangente e amplo do que se cuida.

JC – O senhor não acha que essa medida não suscitaria críticas por parte da magistratura de que os juízes perderiam autonomia para julgar?

GM – Críticas sempre existirão, mas não acredito que possam ser pertinentes, porque, em geral, se o processo foi decido contrariamente á orientação do STF, é quase certo que, a não ser que haja vício formal, o recurso será provido e que o juiz de primeiro grau terá que executar nossa decisão. É só uma questão de racionalidade de tempo. Isso está em lei hoje. A decisão, embora proferida formalmente em um processo entre A e B, acaba tendo reflexo em outras situações jurídicas. Por isso, é muito comum nos processos vermos uma série de interessados, os chamados amicus curie.

JC – Tendo em vista as leis que foram aprovadas, o senhor acha que uma reforma processual ainda é necessária?

GM – Tenho a impressão que sim. Foram medidas importantes, tomadas isoladamente. Muito provavelmente, daqui a pouco, sugeriremos novas mudanças. Acredito que estamos no caminho certo, no caminho da celeridade com segurança jurídica para decidir as questões realmente relevantes em um tempo adequado. Isso vai produzir certo alívio nas demais cortes que, às vezes, são meras cortes de passagem. Para se ter uma idéia do que isso significa, uma questão constitucional nova, suscitada em qualquer município, chegará ao STF daqui a 14 anos. É um atraso enorme na prestação jurisdicional. E quando o STF não confirma as decisões que vêm sendo tomadas, há uma grande instabilidade jurídica.

JC – Qual seria sua sugestão para diminuir o número de recursos?

GM – Acredito que algumas medidas, tomadas para tratar o recurso como instrumento de interesse geral, foram relevantes. Como criamos um emaranhado de recursos ao longo dos anos, e então havia uma tendência sobre concepção de mais recursos, teremos que descobrir os excessos. E teremos que sugerir eventual mudança.

JC – Como o senhor analisa a imagem do Judiciário depois das iniciativas que visavam a combater o nepotismo e os salários acima do teto do funcionalismo?

GM – Nesse sentido, foi positiva a criação do Conselho Nacional de Justiça. A Constituição de 1988 atribuiu um significado enorme ao Judiciário. Um significado ímpar, se olharmos nossa tradição constitucional. Isso produziu certo isolamento. Muitos tribunais têm dificuldade para exercer a atividade de corregedoria, daí a necessidade, que se revelou indispensável, da criação de um órgão nacional de supervisão e de planejamento. Parece-me que, apesar de eventuais críticas, o conselho vem cumprido a missão de tornar o Judiciário mais transparente.

JC – Em algumas situações, o STF teve que rever as decisões do CNJ. Nos casos do pagamento de Jeton aos conselheiros e do teto salarial, a corte julgou contra o órgão. Como o senhor avalia isso?

GM – Acho inevitável no sistema de forte feição judicialista como o nosso. O Conselho está submetido ao STF. O CNJ não é um super órgão. É um órgão submetido ao Supremo. É isso o que diz a Emenda Constitucional 45, de forma expressa, assentando que as ações contra o conselho serão propostas perante o STF. Acredito que isso seja um ponto de equilíbrio. Todos estão sujeitos à lei.

“MUITOS TRIBUNAIS TêM DIFICULDADE PARA EXERCER A ATIVIDADE DE CORREGEDORIA, DAí A NECESSIDADE, QUE SE

REVELOU INDISPENSÁVEL, DA CRIAÇÃO DE UM óRGÃO NACIONAL DE SUPERVISÃO E DE

PLANEJAMENTO.”

FOTO

: STF

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 17

18 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

MINISTRO CESAR ASFOR ROCHAASSUME CORREGEDORIA GERAL DO C.N.J.

O Ministro César Rocha, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), despediu-se da Corregedoria Geral do Tribunal Superior Eleitoral, face ter sido eleito pela unanimidade de seus colegas do STJ para o

exercício da Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça.César Rocha, ao longo dos últimos anos, já ocupou diversos

outros cargos na cúpula do Judiciário nacional como integrante daquela Corte Superior da Justiça brasileira. Como corregedor geral da Justiça Eleitoral, foi responsável, no ano passado, pela coordenação de todo o trabalho de efetivação do pleito eleitoral e, nos julgamentos do TSE, foi o responsável por algumas das decisões que motivaram intenso debate no meio político brasi-leiro, inclusive, a mais recente, tratando da fidelidade partidária, ao afirmar, com a aprovação dos demais integrantes do TSE, que o mandato eletivo pertence ao partido e não ao político que o detém. O tema foi provocado pelo PFL, hoje denominado de Democratas, em consulta feita ao Tribunal Superior Eleitoral.

Jornal do Brasil – Após esses anos como ministro e corregedor geral da Justiça Eleitoral Brasileira, qual sua visão sobre esses ramos do Judiciário?

Ministro – É uma Justiça a ser sempre exaltada, pois é a que dá efetividade à jurisdição, vale dizer, que tem suas decisões mais cumpridas, dispensando filigranas processuais que só retardam o andamento das ações.

JB – Quais outras diferenças entre a Justiça Eleitoral e a Justiça comum, por exemplo?

Ministro – Principalmente duas. A primeira, a celeridade com que julga a quase totalidade das ações. A segunda, suas decisões repercutem apenas nas vidas de quem está sendo julgado e de seus familiares, amigos e correligionários – o que já seria muito. Vai além, alcança a sociedade inteira, pois não julgamos apenas pessoas, senão mandatários políticos, decidimos os destinos de pessoas, de cidades, de estados, do País. E também decidimos os destinos do hoje e os destinos do porvir de todas essas entidades.

JB – A Justiça Eleitoral brasileira hoje, tal como está estruturada, tem condições efetivas de bem desempenhar seu papel?

Ministro – Claro que sim. Para se ter uma idéia, nas eleições de 2006 (para Presidente da República, vinte e sete governadores, vinte e sete senadores e milhares de candidatos a deputados federais e estaduais), em um universo de cerca de cento e vinte e seis milhões de eleitores, de vinte mil candidatos, trezentos e cinqüenta mil urnas, distribuídas neste País de extensão continental, em menos de cinco horas, após o encerramento da votação, os resultados já estavam praticamente anunciados. Tudo sem que à Justiça Eleitoral fossem lançados queixumes, desconfianças ou críticas,

Luis Orlando Carneiro

Jornalista do Jornal do Brasil

Ministro Cesar Asfor Rocha

FOTO

: STJ

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19

senão aplausos e elogios, dirigidos por vitoriosos e vencidos.

JB – Isso lhe exigiu, como xerife das eleições, muito trabalho?

Ministro – Demais. Como Corregedor Geral da Justiça Elei- toral, enfrentei momentos tormentosos, além daquelas dificuldades cotidianas presentes na vida de qualquer magistrado, já que julgar é sempre um ato solitário, mesmo quando a decisão é colegiada, daí ser sempre um instante aflitivo. Trabalhei além dos limites de minhas forças, em contato permanente com os presidentes, corregedores e juízes dos Tribunais Regionais, a quem sou muito agradecido, percorrendo este país, às vezes, visitando três estados em um só dia, em um trabalho preventivo e silencioso, com equilíbrio, sem alarde, como de meu perfil.

JB – Ao longo do exercício do cargo de ministro corregedor do TSE, alguns de seus votos motivaram vários debates no mundo político brasileiro, como a mais recente sobre a questão da fidelidade partidária. Já é tempo de reformarmos as legislações eleitoral e partidária?

Ministro – Sim. Nessas eleições, a Justiça Eleitoral vivenciou importantes instantes de quebra de paradigmas, que cumpriram, sem dúvida, relevante papel em ambiências sociais passadas, mas inadequadas às vivências atuais. Refiro-me a três, pelo menos, de que fui relator: o primeiro, quando dificultou o registro de candidato que tivera conta desaprovada em exercício anterior de cargo público; o segundo, que resultou em uma distribuição mais eqüitativa dos recursos do chamado fundo partidário, possibilitando a sobrevivência dos partidos políticos menores; o terceiro, mais recente, que consagrou a chamada fidelidade partidária, ao disciplinar o mandato pertencente ao partido, e não ao

parlamentar. Todas dotadas dos melhores e mais elevados princípios éticos, morais e de probidade.

JB – Qual sua visão sobre o sistema político-eleitoral brasileiro, após sua atuação como corregedor do Tribunal Superior Eleitoral?

Ministro – Carece de ser modernizado e atualizado. Penso que o Congresso Nacional deve voltar a debater sobre o funcionamento de campanhas e as prestações de contas, sobre a adoção do voto distrital misto, sobre propaganda e pesquisas eleitorais, sobre os limites de atuação do Presidente da República, do Governador e do Prefeito candidatos à reeleição, senão mesmo acabar a própria reeleição.

JB – Neste momento em que alguns integrantes da Justiça Federal estão envolvidos em escândalos, o que deve mudar nas corregedorias das Justiças Federal, Estadual e Trabalhista?

Ministro – Esses fatos são profundamente lamentáveis e provocam revolta. Essas corregedorias devem desenvolver um trabalho preventivo mais contundente e ter a iniciativa de investigar mais profundamente ao primeiro sinal de desvio de conduta de qualquer magistrado, até mesmo porque os rumores e indícios, em regra, chegam ao conhecimento, primeiramente, à ambiência da própria magistratura.

Entretanto, quero destacar dois fatos: primeiro, que a quase totalidade da magistratura é integrada de homens sérios, dedicados e comprometidos com os melhores princípios da moralidade e da ética; segundo, essas investigações e prisões de seus poucos juízes envolvidos em atividades criminosas foram determinadas por juízes, o que mostra que o Poder Judiciário não compactua, como não poderia deixar de ser, com esse tipo de comportamento.

“NOSSO MAIOR SONHO é TER UMA JUSTIÇA BRASILEIRA QUE POSSA DISTRIBUIR JUSTIÇA NÃO COMO IGUARIA DE FESTA,

MAS COMO O PÃO NOSSO DE CADA DIA.”

20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

MINISTRO MOREIRA ALVES CRITICA PROPOSTA DE ATUALIZAR CóDIGO CIVILGiselle Souza

Jornalista do Jornal do Commercio

FOTO

: STF

Ministro AP. Moreira Alves, do STF

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21

O ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF), José Carlos Moreira Alves, condenou qualquer proposta que vise à alteração do Código Civil para regulamentar temas cujos

aspectos jurídicos ainda não estão completamente definidos. Em palestra sobre os cinco anos de vigência da legislação, durante almoço promovido pela Câmara Americana de Comércio (Amcham), no Rio de Janeiro, o ministro disse que esses temas devem ser regulamentados, primeiro, por leis ordinárias e complementares. “O Código Civil, como todo código, deve tratar de matérias já estratificadas, cujo Direito já evoluiu, e não de matérias experimentais”, disse o ministro

Na avaliação de Moreira Alves, a evolução tecnológica tem ocorrido de forma tão vertiginosa que a colocar na legislação, sem qualquer debate ou entendimento pré-definido, acabaria provocando maiores prejuízos, uma vez que uma das funções do conjunto é justamente estabelecer regras para os atos jurídicos decorrentes das relações entre pessoas físicas e jurídicas.

“Por isso, o Código deve tratar de temas já estratificados. Conseqüentemente, a modernização dele se dá em face do código anterior, e não de questões altamente polêmicas, que tratam não só do aspecto jurídico mas também moral, e que deveriam ficar justamente nas leis extravagantes, que são muito mais facilmente modificáveis do que um sistema como o Código Civil”, disse o ministro, que classifica de “extravagantes” as normas que justamente não compõem o código.

Moreira Alves fez uma análise do Código Civil nestes cinco anos. O ministro integrou a comissão responsável pela elaboração do anteprojeto da lei, criada em 1969. Foram seis anos de trabalho. Em 1975, a proposta do novo código finalmente foi levada ao governo, que, logo em seguida, o encaminhou ao Congresso. Lá, o projeto tramitou até ser aprovado em 2002. De acordo com Moreira Alves, a demora na tramitação do projeto não prejudicou o conteúdo da legislação aprovada em 2002, visto que o próprio Congresso se ocupou de realizar as principais atualizações.

Para o magistrado, a legislação, agora, precisa superar outras críticas. “Uma das críticas que se fazia ao Código Civil era de que ele engessava o Direito. Por isso que se estabeleceram as chamadas cláusulas gerais, que acabaram dando mais poder ao

juiz e, portanto, abrindo o sistema normativo. Agora vem a crítica contrária, a de que se deu poder demais ao juiz”, disse.

“Ficamos com aquela história do velhinho, da criança e do burro. Se a criança monta o burro, reclama-se do velhinho estar a pé. Se o velhinho monta, então, dizem que isso também é um absurdo. E se os dois montarem, a critica continua porque o burro estaria sendo sobrecarregado. Ou seja, sempre há possibilidades de críticas.” – afirmou o ministro, destacando princípios estabelecidos na nova lei. Entre eles, a que trouxe uma definição para morte real e presumida. “Esse é um instituto que visa à proteção dos bens do ausente, cuidando para que os bens sejam preservados”, disse.

Personalidade jurídicaOutro ponto criticado no evento foi a banalização do instituto

da desconsideração da personalidade jurídica. O advogado e chairman da Amcham, Márcio Tadeu Guimarães Nunes, lamentou o fato de, por vezes, a Justiça brasileira responsabilizar pessoas que sequer figuraram no processo de conhecimento para garantir a execução dos créditos sentenciados.

“A Justiça, seja envolvendo as questões de trabalho ou do consumo, não vem respeitando o princípio da responsabilidade limitada do sócio, por meio do qual ele só responde em casos excepcionalíssimos e graves, como o de abusos e fraudes, e não necessariamente pelo fato de não pagar uma obrigação. Não pagar uma obrigação pode decorrer de questões sazonais, econômicas ou dos riscos próprios do negócio, que todos têm que correr, inclusive trabalhadores eventualmente empregados”, afirmou o advogado.

De acordo com Nunes, as partes precisam provar quem realmente os lesou. “Elas devem usar de todos os mecanismos para provar que o empregador as fraudou, por exemplo. O que não dá é aplicar a teoria pelo simples fato de que uma verba não foi paga. Tem que se identificar os motivos que não levaram ao pagamento, se esses motivos foram ilícitos, ilegais e não decorrentes de uma frustração do negócio, de ele ter dado errado. Os trabalhadores já dispõem de inúmeros mecanismos para chegar ao patrimônio pessoal do dono da empresa”, disse.

Ao evento da Amcham, esteve presente o presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, José Carlos Schmidt Murta Ribeiro, entre outras autoridades.

22 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

O Projeto de Lei Complementar (PLP)01/01, de 2007, que compõe o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo, condiciona o crescimento do País à contenção de gastos

com pessoal de forma quase linear. Condições específicas como a da Justiça Federal foram ignoradas e, se for aprovado sem ressalvas, o que se pode esperar é o engessamento da Justiça Federal até o ano de 2016. Todos os projetos de crescimento planejado – pensados, discutidos e avaliados ao longo dos últimos anos –, destinados a resolver não apenas o estrangulamento da atual estrutura como também a evitar problemas futuros, estarão inviabilizados.

Essa projeção preocupante do futuro foi feita pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) em audiência pública realizada na Câmara dos Deputados. Dentre os que estão sob ameaça de congelamento por nove anos, temos o projeto de criação de 230 varas federais (PL 5829/05), estruturação das Turmas Recursais, criação de novos Tribunais Regionais Federais (PEC 544/2002) e acréscimo do número de desembargadores federais, em discussão no Conselho da Justiça Federal (CJF) para posterior encaminhamento ao Congresso Nacional.

É evidente a necessidade do esforço conjunto e coordenado dos três poderes a fim de conter os gastos públicos e impulsionar o crescimento do País. Entretanto, devem ser observadas situações específicas como a da Justiça Federal, que somente agora passou a viabilizar planejamento estratégico para atender o crescimento geométrico no número de processos. O que está em jogo é uma estratégia necessária à gestão competente e racional, pois os atuais gargalos na estrutura da Justiça Federal inviabilizam a prestação jurisdicional célere e eficiente.

O referido projeto ainda apresenta vício de inconstitu-cionalidade, pois compromete, na substância, a autogestão do Poder Judiciário, com evidente malferição ao pacto constitucional da independência dos três poderes.

Ademais, o controle das despesas públicas não pode ser estabelecido de forma a contraditar os dispositivos legais previstos na Constituição. A Emenda Constitucional n° 45, de 2004, em seu art. 5°, prevê que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Portanto, é incoerente a aprovação de um controle das contas em que se compromete severamente o funcionamento célere e eficaz da Justiça Federal, impedindo que esse segmento do

CRESCIMENTO PLANEJADO NÃO É ESBANJAMENTO

Walter Nunes da Silva Júnior

Juiz Federal e Presidente da AJUFE

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 23

Judiciário atenda aos anseios de milhares de cidadãos que necessitam de seus serviços para uma vida mais digna.

A realidade é que a Justiça Federal, em razão do alto volume de processos em tramitação, é pequena para atender à crescente demanda que lhe é encaminhada para deliberação. Conforme dados do Conselho da Justiça Federal (CJF) e do Conselho Nacional da Justiça (CNJ), que serão a seguir expostos e analisados, quando comparada às Justiças Estadual e do Trabalho, observa-se o desequilíbrio em todos os indicadores. Vamos ao exame.

Evolução do número de processos em tramitaçãoNo Brasil, a litigiosidade chega a pouco mais de 40 milhões

de processos, número excessivo, mesmo para uma população estimada em 188 milhões. Desse estoque de processos, mais de 10,7 milhões tramitam nas primeira e segunda instâncias da Justiça Federal.

A progressão no número de processos no âmbito da Justiça Federal de base é fantástica. Em 1997, havia, na primeira instância, 2,1 milhões de processos em tramitação. Este número atingiu 6,8 milhões em 2005.

De 1997 a 2001, a distribuição no primeiro grau federal teve

um aumento de 960.765 mil processos; de 2001 para 2005, saltou para mais de 3.722.972 milhões. No total do período, ou seja, oito anos, o número de processos aumentou em 4.692.737 milhões. Em termos percentuais, de 1997 a 2001, cresceu 45,80%, de 2005 a 2001, 120,61% e, no período todo, alcançou o percentual impressionante de 221,657%.

No segundo grau federal, há também uma evolução, embora não seja tão uniforme quanto na primeira instância. Entre os anos de 1995 e 2000, houve um aumento de 98% no número de pleitos, subindo de 585,8 mil para cerca de 1 milhão. De 2002 para 2003, entretanto, ocorreu uma queda – chegando a 861,8 mil processos. Isso decorreu da criação, em janeiro de 2002, dos Juizados Especiais Federais, uma vez que os processos neles ajuizados não chegam aos Tribunais Regionais.

Ainda assim, já em 2004, o número de processos nos Tribunais Regionais Federais voltou a crescer e, em 2005, manteve-se a tendência de crescimento e atingiu a marca de 974,9 mil processos, quantidade inferior apenas ao ano de 2000.

Ou seja, mesmo com a criação dos Juizados Especiais, verifica-se que, a partir de 2004, a tendência é de crescimento da demanda nos Tribunais Regionais Federais, a uma média

FOTO

: AJU

FE

24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

anual de 3,02%. Por outro lado, a taxa anual de crescimento na primeira instância no período de oito anos foi de 30,15%. O aumento da demanda nessas duas instâncias, sem que a estrutura acompanhasse esse ritmo, saturou o funcionamento da Justiça Federal.

Número de magistrados no Poder JudiciárioParalelamente a este quadro, há também um evidente

desequilíbrio em relação ao número de magistrados nos segmentos do Poder Judiciário. No primeiro grau, há 8.084 juízes estaduais, 2.286 do trabalho e 1.116 federais.

Ou seja, em número de juízes de primeira instância, a Justiça Estadual é quase oito vezes maior e a do Trabalho, o dobro. A defasagem se acentua na segunda instância: 1.431 desembargadores estaduais, 463 do trabalho e apenas 138 federais. Isto é, a Justiça Estadual é dez vezes maior e a do Trabalho, três vezes, em comparação com a Justiça Federal.

Os números abaixo comprovam a disparidade no número total de magistrados entre os segmentos do Poder Judiciário.

Justiça Federal – 1ª instância – Desembargadores e Ministros – 1.254

Justiça do Trabalho – 1ª instância – Desem-bargadores e Ministros – 2.749

Justiça do Estado – 1ª instância – Desem-bargadores e Ministros – 10.583

São cinco Tribunais Regionais Federais contra 24 Tribunais Regionais do Trabalho e 27 Estaduais – um em cada estado da Federação. Com a Constituição de 1988, acompanhando o crescimento da Justiça Estadual, a Justiça do Trabalho implantou projetos de expansão, especialmente referentes ao processo de interiorização.

A Justiça Federal, no entanto, teve seu processo de regiona-lização feito com bastante comedimento, devido ao receio de sua pulverização. Com isso, foram criados apenas cinco Tribunais Regionais Federais. A 2ª Região, com os Estados do Rio de Janeiro (sede) e Espírito Santo; a 3ª Região, São Paulo (sede) e Mato-Grosso do Sul; a 4ª Região, Rio Grande do Sul (sede), Paraná e Santa Catarina e a 5ª Região, Pernambuco (sede), Sergipe, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. A 1ª Região, por sua vez, ficou com 14 unidades da federação: Distrito Federal (sede), Minas Gerais, Goiás, Tocantins, Bahia, Maranhão, Piauí, Manaus, Pará, Rondônia, Amapá, Macapá, Acre e Roraima.

Como se observa, após mais de 18 anos, é preciso repensar a estrutura organizacional da Justiça Federal, a fim de torná-la mais equilibrada e melhor compassada com a vasta dimensão territorial do Brasil, o que implica a necessidade de criação de novos tribunais, especialmente na primeira região.

Urge, igualmente, o aumento do número de desembar-gadores, até para implementar a previsão constitucional contida no § 3º do art. 107 da Lei Fundamental, que projetou a criação das Câmaras Regionais, no âmbito dos Tribunais

Regionais Federais, como instrumento indispensável para “assegurar o pleno acesso do jurisdicionado à justiça em todas as fases do processo.”

Média de processos por magistradoQuando analisado o número de processos, o quadro

se inverte. Enquanto na Justiça Federal tramitam, aproxi-madamente, 10,3 milhões de ações, na Justiça do Trabalho, são apenas 2,8 milhões. Só na primeira instância, a Justiça Federal tem 9,3 milhões de processos e a do Trabalho, cujo número de juízes é três vezes superior ao da Justiça Federal, apenas 2,5 milhões.

Com isso, o número de processos por juiz federal atinge uma média de 9.551, o que não permite a prestação jurisdicional com celeridade e qualidade. Na Justiça do Trabalho, a média é de 2.079 processos e, na Estadual, 2.885, uma proporção razoável nestes dois segmentos do Poder Judiciário. Quanto ao número de processos por desembargador, também há sobrecarga superior na Justiça Federal, com uma média de 7.064 processos, enquanto na Justiça do Trabalho é de 1.593 e, na Justiça Estadual, de 1.221. Estes números mostram a saturação sofrida pela Justiça Federal em razão da crescente demanda e do reduzido número de magistrados, seja na primeira seja na segunda instância.

Evolução de processos distribuídosNote-se que o número excessivo de feitos por juiz se

dá pelo aumento de ações novas distribuídas. Quando se compara a evolução da demanda na Justiça Federal com a Justiça do Trabalho, há o desequilíbrio na quantidade de processos entregues a cada um destes segmentos.

Em 1997, foram distribuídos à Justiça do Trabalho 2,4 milhões de processos e apenas 901 mil à Justiça Federal. Hoje, a Justiça Federal tem uma distribuição de ações superior à Justiça do Trabalho. Enquanto esta manteve certa uniformidade, embora com a tendência de queda, a Justiça Federal teve aumento no número de processos. Segundo os

“...APóS MAIS DE 18 ANOS, é PRECISO REPENSAR A ESTRUTURA

ORGANIZACIONAL DA JUSTIÇA FEDERAL, A FIM DE TORNÁ-LA MAIS EQUILIBRADA E MELHOR COMPASSADA COM A VASTA

DIMENSÃO TERRITORIAL DO BRASIL, O QUE IMPLICA A NECESSIDADE DE

CRIAÇÃO DE NOVOS TRIBUNAIS, ESPECIALMENTE NA PRIMEIRA REGIÃO.”

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 25

dados de 2004, foram distribuídos à Justiça Federal 2,6 mi- lhões, enquanto à Justiça do Trabalho, apenas 2,2 milhões.

O aumento significativo da produtividade dos juízes federais não se mostra suficiente para a diminuição do acervo dos processos, pois a estrutura atual é insuficiente para dar conta do estoque de processos. Enquanto a Justiça do Trabalho, entre 1997 e 2004, teve uma discreta queda no número de ações distribuídas, na Justiça Federal, o crescimento foi de 193,21%.

Evolução dos Juizados Especiais FederaisNos Juizados Especiais Federais, modelo de justiça que traz

maior acesso ao judiciário, principalmente ao segmento mais carente da população, este cenário torna-se ainda mais grave. Em 2002, foram ajuizadas 213,7 mil ações, subindo para 916,4 mil em 2003. Já no ano de 2005, os Juizados Especiais atingiram a estrondosa marca de 2,5 milhões, aumento de mais de 1.069% em relação a 2002. A média de processos por juiz é de mais de 28 mil, o que torna impraticável seu funcionamento a contento.

A diminuição dos processos distribuídos, entre os anos de 2004 e 2005, com o arrefecimento da demanda, mostra que os advogados têm preferido superestimar o valor da causa, a fim de endereçar os pleitos para a jurisdição comum. Isso porque, em alguns Juizados Especiais, como no caso de São Paulo, capital, embora o processo seja totalmente informatizado, a audiência é marcada, em média, oito meses após a petição ser ajuizada.

O Juizado Especial Federal, no período de 2002 até 2006, distribuiu quase R$ 8 bilhões. Quando analisada a evolução das Requisições de Pequeno Valor (RPVs), foram viabilizados, em 2002, mais de 47,6 milhões. Em 2004, quantia superior a R$ 2,3 bilhões. Já no ano de 2005, este montante subiu para mais de R$ 2,9 bilhões. Entretanto, em 2006, em razão de seu estrangulamento, foi paga a quantia pouco superior a R$ 2 bilhões, o que demonstra que o volume de ações já compromete o funcionamento desse segmento do Poder Judiciário, grande instrumento de distribuição de renda no País.

Novo limite de gastos com pessoal

O limite de gastos com pessoal estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal era um dos obstáculos de ordem

financeira para a ampliação da Justiça Federal. Esta, na previsão orçamentária, ficou com uma fatia que inviabilizava seu crescimento. A fim de redimensionar os limites orçamentários que tinham sido previstos para o poder Judiciário da União, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) ingressou junto ao Conselho Nacional da Justiça com o Pedido de Providências n° 165.

Com isso, o CNJ, órgão estratégico do Poder Judiciário, por meio de seus órgãos técnicos, reconheceu a inadequação daqueles limites e, em decisão unânime, acolheu o pleito da AJUFE, determinando a redistribuição dos índices, o que representou um crescimento no orçamento da Justiça Federal de aproximadamente R$ 1,2 bilhão.

Merece menção o trecho do voto do Conselheiro Vantuil Abdala, na parte em que ele asseverou:

16. O pedido da Ajufe objeto do presente proce-dimento é para que nova reformulação de percentuais seja adotada na Resolução nº 05, de sorte a possibilitar maior margem de recursos para a Justiça Federal, sob pena de se inviabilizar o seu crescimento futuro.

17. É verdade que, na época da edição da Lei Complementar nº 101/2000, a Justiça do Trabalho já contava com 24 Tribunais Regionais, estando o seu processo de ampliação bem adiantado em relação à Justiça Federal.

(...)19. As necessidades atuais da Justiça Federal auto-

rizam seja realizada nova readequação nos l imites da Resolução nº 05 do CNJ, até porque a disponibilidade orçamentária em vigor inviabiliza até a implantação do Plano de Cargos e Salários dos servidores, em prejuízo de todo o Poder Judiciário Nacional.

Como se vê, a necessidade de expansão da Justiça Federal é reconhecida não apenas pelo Conselho da Justiça Federal, mas igualmente pelo Conselho Nacional de Justiça, de modo que o PLC 01, de 2007, conquanto mereça ser aprovado, deve ser alterado, a fim de excepcionar a aprovação dos projetos estratégicos da Justiça Federal de criação de novas varas, estruturação das turmas recursais, aumento do número de desembargadores e criação de novos Tribunais Regionais Federais.

“O AUMENTO SIGNIFICATIVO DA PRODUTIVIDADE DOS JUíZES FEDERAIS NÃO SE MOSTRA SUFICIENTE PARA A DIMINUIÇÃO DO ACERVO DOS PROCESSOS, POIS A ESTRUTURA ATUAL é

INSUFICIENTE PARA DAR CONTA DO ESTOQUE DE PROCESSOS.”

26 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

David Ribeiro Santos Salles

Secretário de redação da Revista Justiça e Cidadania

REPRESENTANTES DO POVO OU DOS

“DI MENOR”

Causa estupefação o posicionamento de alguns Deputados Federais e Senadores da República na questão que envolve a redução da maioridade penal, contrariando, diametralmente, o pensamento da

maioria da população, que, ouvida em pesquisa nacional, se posicionaram aberta e declaradamente a favor da redução para 16 anos.

Nesse contexto, pesquisa realizada pelo Senado dá conta que 73% dos consultados são favoráveis à redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. O tema é controverso, mas seria bom os Senadores e Deputados Federais prestarem atenção nas tendências populares. A população opinou, também, pela prisão perpétua, no caso de crimes hediondos. Apoiou a redução dos benefícios e prerrogativas para os condenados a penas mais longas. Sinais estão sendo dados pela opinião pública, que não agüenta mais a progressão da violência, incontrolável pelo Poder Público.

No site da Câmara dos Deputados, consta a relação da idade penal no mundo, onde apenas 4 países, inclusive da América do Sul, Colômbia, Costa Rica, Equador e Venezuela, são favoráveis à maioridade aos 18 anos. Será a influência da religião católica? Em outros países de cultura mais avançada, a maioria opta pela idade aos 14 anos, como a Áustria, Bulgária, Alemanha, Itália, Japão, Romênia e Rússia, além dos Estados Unidos, cuja criminalidade do menor se dá aos 7 anos (idade mínima da maioria dos Estados de acordo com a tradição anglo-saxã da “common law”), e demais países, tais como,

Austrália, Índia e Líbano, aos 7 anos, e Canadá, Espanha e Holanda, aos 12 anos. A idade de responsabilidade criminal no Reino Unido começa aos 10 anos, e são impostas multas por comportamento anti-social a menores a partir de 10 anos de idade.

Diante deste quadro, não há que se falar em proteção das garantias individuais dos direitos do menor. O exemplo dos países mais adiantados – culturalmente – e que sentiram a gravidade do problema, não deixam dúvidas de que o assunto tem que ser tratado com mais energia e prevenção, merecendo melhor análise por parte dos representantes do provo.

As mortes e as violências – que ocorrem cotidianamente – praticadas por menores que, infelizmente, já, aos 12 anos, se encontram em bárbara delinqüência, estão demonstrando que a sociedade não suporta mais discussões e posições melífluas de sentimentalismo, pois, se os menores não conseguem a reabilitação, por culpa e falta de medidas saneadoras do governo nos presídios, por outro lado, a sociedade não pode pagar e sofrer as agruras e desgraças que se abatem todos os dias nas vias públicas deste país despoliciado e sem segurança, deixando, conseqüentemente, a população desprotegida.

É preciso reagir às regras da violência estabelecidas pelo crime organizado, adotando normas que venham livrar o cidadão de ser refém de traficantes, homicidas, bandidos e menores aliciados por criminosos especializados em terror urbano.

O que acontece, principalmente, no Estado Fluminense, além das grandes cidades, constitui a desmoralização do

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27

Estado Democrático de Direito, insuportável de ser aceite em uma sociedade civilizada.

Basta de leniência, acomodação e tolerância. O Estado tem obrigação constitucional de dar educação e condições de emprego aos milhares de menores que se encontram desamparados nas vias públicas, mas não pode tolerar, face uma hipocrisia farisaica em defesa de uma hipotética qualificação de direitos humanos, que continuem acontecendo as barbaridades praticadas pelas menoridades, que se espalham atrevidos e desaforadamente pelas ruas das cidades.

Está na hora, e não é sem tempo, de os representantes do povo atenderem aos clamores dos que os elegeram como delegados, votando as leis que a sociedade reclama e impõe como medida urgente, democrática e necessária para sanar esse mal que afeta toda a sociedade. Os bons e os inocentes não podem continuar pagando com a vida a desgraça e infelicidade que a sociedade enfrenta e não tem condições de erradicar. Portanto, dos males o menor, já que o governo não tem condições de educar esses menores como a Constituição garante, que sejam segredados da sociedade para garantia e salvaguarda da população que se queda, infelizmente, abandonada.

De mais a mais, que os congressistas cumpram os compromissos e responsabilidades que assumiram ao pleitear os votos de seus eleitores, e assumam e respondam com os deveres do ofício, alterando e introduzindo, na legislação, as

medidas que a população vem reiteradamente exigindo.Daí, pergunta-se: os Deputados e Senadores foram

eleitos para representar e fazer valer os direitos e aspirações do povo, ou para transigir e defender o indefensável? Ora, o poder de agir do administrador não está ao sabor exclusivo de seus humores, paixões pessoais, excentricidade ou critérios personalíssimos.

Interpretando o direito por analogia, o Novo Código Civil, que outorga plenos poderes aos maiores de 18, considerando-os maiores absolutamente capazes e antecipando a maioridade civil (que até então só ocorria aos 21 anos) – um cidadão de 18 anos, há muito, já não é criança. Aos 16, já é tido como relativamente capaz, com poderes para trabalhar e, inclusive, escolher seus governantes.

Não se trata de colocar o menor infrator em uma penitenciária juntamente com criminosos adultos, mas que haja uma internação sem limite de tempo máximo pré-determinado, pois, a legislação que rege a matéria estabelece que “em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos.”, ex vi, o § 3º do art. 121, do Estatuto da Criança e do Adolescente, e, principalmente, que a futura instituição não represente uma escola de crimes, como era vista a FEBEM, ironicamente chamada Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor, hoje com outro nome, mas com os mesmo vícios e “padrões de qualidades”.

O povo pede mudanças.

ARQ

UIV

O J

C

28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

é de inegável evidência, como faz ver Sergio Cavalieri Filho, que, em razão do número de pessoas transportadas diariamente nos grandes centros urbanos, o transporte coletivo de pessoas tornou-

se instrumento fundamental para o cumprimento das funções sociais e econômicas do Estado moderno, apesar das deficiências que, por razões também diversas, se fazem presentes.

Mesmo sendo uma das atividades negociais de forte natureza jurídica, o Código Civil de 1916, todavia, dela não cuidou; o Código Comercial de 1850 apenas fez breve referência ao tema no capítulo relativo aos condutores de Gêneros e Comissários de Transporte (arts. 730 a 756).

Já o Código Civil de 2002, em seus artigos 730 a 756, tratando de forma mais abrangente, regula, de um lado, o transporte de pessoas (arts. 734 a 742) e, de outro, o transporte de coisas (arts. 734 a 756).

Na dicção do art. 730 do Código Civil em vigor, “pelo contrato de transporte, alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas”.

Dispõe, ainda, que “aos contratos de transporte, em geral, são aplicáveis, quando couber, desde que não contrariem as disposições deste Código, os preceitos constantes da legislação especial e de tratados e convenções internacionais” (art. 731).

Mesmo antes da vinda a lume do Código Civil de 2002, ratificando o caráter inovador que o caracterizava no momento de sua edição, o Código de Proteção e de Defesa do Consumidor – CDC –, por sua vez, já regulava a relação entre o transportador-fornecedor e o consumidor-usuário em seu artigo 14.

A responsabilidade do transportador pelos danos causa-dos a terceiro e os ocorridos com os passageiros durante o transcurso contratado, mantido o desafio à argúcia dos operadores do direito, é causa ainda de acaloradas divergên-cias, com posições doutrinárias e jurisprudenciais no mais das vezes inconciliáveis, apesar de sedutoras.

Nas grandes metrópoles brasileiras, onde a violência e a insegurança campeiam, os incêndios causados em ônibus por ações criminosas, assim como os objetos lançados da rua com o intuito de causar danos aos passageiros e a reiterada prática do crime de roubo, com emprego de arma de fogo, vêm, de forma assustadora, fazendo parte do cotidiano de cada cidadão brasileiro.

São questões que merecem a atenção redobrada dos aplicadores do direito, em especial no que se refere à fixação da responsabilidade civil e mensuração do valor indeniza-tório pelos danos decorrentes.

Atento à complexidade que o tema apresenta, é de rigor que o exame seja feito mediante a separação entre a responsabilidade do transportador urbano pelo

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR RODOVIÁRIO URBANOJosé Carlos Maldonado de Carvalho

Desembargador do TJ/RJ

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 29

dano causado ao pedestre por atropelamento, daquela cujo dano se verificou durante a viagem.

Na primeira hipótese, é questão incontroversa que a responsabilidade do transportador rodoviário pelos danos causados aos pedestres, por atropelamento, tem natureza extracontratual, já que entre o veículo atropelador e a vítima não havia, até então, vínculo jurídico anterior.

Mesmo reconhecida como extracontratual, tanto a doutrina como a jurisprudência não divergem ao considerar que a responsabilidade civil do transportador de

pessoas é objetiva, fundada na teoria do risco.

De fato, fundada no risco administra-tivo, a responsabilidade extracontratual tem amparo no art. 37, parágrafo 6°, da Constituição Federal de 1988, consideran-do-se que o transporte coletivo de pessoas é serviço público concedido ou transferido através de permissão, sendo aplicável, porém, apenas em relação a terceiros.

Refere-se Cavalieri Filho à possibilidade de aplicação do Código de Proteção e de Defesa do Consumidor – CDC – nessas hipóteses, tendo-se em mira que a lei consumerista em seu art. 14, caput, atribui responsabilidade objetiva ao fornecedor de serviços, equiparando ao consumidor, em seu art. 17, todas as vítimas do evento.

Penso, todavia, que a manutenção da dicotomia existente, apesar da inebriante proposta de sua não aplicação, ainda mantém especial relevância e elevada praticidade, como, por exemplo, na fixação do termo inicial para a contagem dos juros e da correção monetária, pois, em se tratando de responsabilidade extracontra-tual, conta-se a partir do evento danoso; sendo contratual, a contagem se inicia a partir da citação, como assim sinalizado através de remansosa jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

Diante também de sua natureza objetiva, na responsabilidade contratual, ainda que comprovada a culpa de terceiro, responde o transportador pelos danos causados ao passageiro durante o percurso contratado.

Trata-se, como é cediço, de contrato de adesão, em que ao passageiro só é facul- tado, no momento do embarque, aderir às cláusulas previamente estipuladas pelo transportador.

Como assinalam os estudiosos da matéria, a espécie reúne as características de um contrato consensual, bilateral, oneroso e comutativo.

Daí, para sua implementação e efetivação, basta o simples encontro de vontades, que, por gerar direitos e obrigações para ambas as partes, mantém em sua execução o necessário equilíbrio econômico entre as respectivas prestações.

Inicia-se com o embarque do passageiro e só termina com seu efetivo desembarque sem que se alterem as condições de incolumidade do transportado. Basta, portanto, que o passageiro inicie seu ingresso no ônibus, com o que se tem manifestada, ainda que tacitamente, sua vontade em aderir

ARQ

UIV

O P

ESSO

AL

30 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

ao contrato. O pagamento da passagem não é, conseqüen-temente, elemento essencial para a validade do negócio jurídico.

Destaca-se, portanto, como característica mais impor-tante do contrato de transporte, a cláusula de incolumidade do passageiro, que nele se encontra implícita.

Por certo, e sem qualquer dúvida, tem o transportador o dever de zelar pela integridade física e psíquica do passageiro, após seu embarque e durante todo o trajeto contratado.

A cláusula de incolumidade é, como aduz José de Aguiar Dias, inerente ao contrato de transporte de pessoas, pois quem utiliza um meio de transporte regular celebra com o transportador uma convenção cujo elemento essencial é sua incolumidade, isto é, a obrigação, que assume o transportador, de levá-lo são e salvo ao lugar do destino.

Daí porque, fácil é concluir, a obrigação assumida pelo transportador, além de objetiva, é também de resultado, não se exigindo do passageiro, em caso de dano, a prova sobre quem, culposa ou dolosamente, deu causa ao evento danoso; basta que seja provado pelo vitimado o contrato de transporte, o dano e o nexo de causalidade.

Por se tratar de prestação de serviços, a relação contratual se submete, ao contrário daquela que não está assentada em uma relação jurídica antecedente, ao regramento específico do Código de Defesa do Consumidor. Responde, pois, o transportador também nessa hipótese objetivamente, ou seja, independentemente da existência de culpa, pela má prestação ou defeito do serviço de transporte (art. 14, caput, do CDC). Assim, uma vez demonstrado o fato, o dano e a relação de causalidade, assume o transportador a obrigação de indenizar o consumidor integralmente.

Em contraponto à responsabilidade objetiva do transportador rodoviário, o Código de Defesa do Consumidor prevê como causas excludentes da responsabilidade do prestador de serviços: I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II – a culpa (fato) exclusiva do consumidor ou de terceiro, e, por entendimento doutrinário-jurisprudencial, razão pela qual não se indicado no CDC, o caso fortuito e a força maior (art. 14, parágrafo 3°, incisos I e II, do CDC).

No que se refere ao fato exclusivo do passageiro, como esclarece Cavalieri Filho, “quem dá causa ao evento é o próprio passageiro, e não o transportador. O transporte, ou melhor, a viagem, não é causa do evento, apenas sua ocasião”.

Rompido, pois, o nexo de causalidade, por afastada se tem a responsabilidade civil do transportador.

Por outro lado, “se o prejuízo sofrido pela pessoa transportada for atribuível à transgressão de normas e instruções regulares, o juiz reduzirá eqüitativamente a indenização, na medida em que a vítima houver concorrido para a ocorrência do dano” (art. 738, Código Civil).

Da mesma forma, “se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano” (art. 945, Código Civil).

Apesar da crítica doutrinária, a expressão “culpa concorrente”, ao contrário do que é apregoado, não deve ser interpretada em seu sentido estrito, mas sim em seu sentido mais abrangente, ou seja, como concorrência de causas, ou de responsabilidade.

A culpa concorrente, ou concorrência de causas, não quer dizer que a parcela de responsabilidade que venha a ser atribuída pelo juiz à vítima seja reconhecidamente tão intensa a ponto de romper o nexo de causalidade, excluindo, assim, a responsabilidade do transportador rodoviário.

Com efeito, comprovada a participação efetiva do passageiro também como causa determinante do resultado lesivo, tem-se por admitida a concorrência de causas, trazendo como conseqüência a redução do valor indenizatório, de acordo com a gravidade de sua conduta, em confronto com a conduta do autor do dano (art. 945, CC).

O Superior Tribunal de Justiça, por seu turno, assim vem se posicionando: “havendo culpa concorrente, as indenizações por danos materiais e morais devem ser fixadas pelo critério da proporcionalidade” ( REsp 773.853/RS).

Sob o mesmo fundamento, assim se mostram os REsps 704.307/RJ, 257.090/SP, 555.468/ES, 705.859/SP e EDRESP 705.959/SP.

Também o fato exclusivo de terceiro, desde que compro-vadamente doloso, é causa de exclusão da responsabilidade civil do transportador de passageiros urbanos.

Muito embora a súmula n° 187 do Supremo Tribunal Fede-ral faça expressa referência à não exclusão da responsabilidade contratual do transportador por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva, o que veio a ser positivado no novo Código Civil (art. 735), a doutrina e a jurisprudência continuaram a sustentar que, por estar ligado ao risco do transportador

“ATENTO à COMPLEXIDADE QUE O TEMA APRESENTA,

é DE RIGOR QUE O EXAME SEJA FEITO MEDIANTE A SEPARAÇÃO ENTRE A RESPONSABILIDADE DO

TRANSPORTADOR URBANO PELO DANO CAUSADO

AO PEDESTRE POR ATROPELAMENTO, DAQUELA CUJO DANO SE VERIFICOU

DURANTE A VIAGEM.”

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 31

e, conseqüentemente, relacionado à organização de seu negócio, o fato culposo de terceiro, por se tratar de fortuito interno, não afasta a responsabilidade que ao transportador é atribuída.

Entendemos, todavia, que a razão ainda permanece com o ilustre desembargador Sergio Cavalieri Filho.

De fato, a ação dolosa de terceiro estranho à relação contratual é, além de absolutamente imprevisível, também inevitável, já que não guarda qualquer ligação com os riscos inerentes ao transporte rodoviário de passageiros.

Os modernos doutrinadores, em razão da responsabili-dade objetiva do transportador e da obrigação de resultado que se reconhece como ínsita em todo contrato de trans-porte, fazem a divisão do caso fortuito em fortuito interno e fortuito externo.

Apregoam, com nossa adesão, que, sendo o fato causador do dano imprevisível e, por conseguinte, inevitável, ligado, porém, à organização da empresa transportadora e relacionado aos riscos com a atividade por ela desenvolvida, como, por exemplo, o rompimento de um pneu ou a pane do veículo transportador que dê causa a um incêndio por problemas elétricos, caracteriza o fortuito interno que, ligado ao risco do empreendimento, não afasta a responsabilidade civil pelos danos daí decorrentes.

Já o fortuito externo, por não guardar qualquer relação com a atividade da empresa transportadora, afasta a obrigação de cunho reparatório, já que, como conclui Sérgio Cavalieri Filho, citando Agostinho Alvim, se aproxima da força maior.

Logo, o fato doloso e exclusivo de terceiro, por se tratar de fortuito externo, rompe o nexo de causalidade, exonerando, assim, a responsabilidade civil do transportador urbano.

No que se refere a assaltos em ônibus, hoje, lamentavel-mente, ocorrência tão comum no noticiário nosso de cada dia, apesar de algumas posições contrárias, ainda se mantém no cenário doutrinário-jurisprudencial como causa exonerativa da responsabilidade civil do transportador.

De fato, não é dever das empresas transportadoras combater o crime, já que sua prevenção é dever exclusivo do Estado.

Poder-se-ia, como assim conduz o saudoso desembargador Luiz Roldão de Freitas Gomes, “quando muito, cogitar-se de responsabilidade da transportadora, quando, ciente de sua reiterada prática em determinados locais, nada houvesse feito no sentido de denunciá-los à autoridade pública, pleiteando medidas de sua prevenção e ainda insistindo em se deter naqueles lugares”.

Em diversas oportunidades, o Superior Tribunal de Justiça tem se posicionado no mesmo sentido, consolidando o entendimento de que “o transportador só responde pelos danos resultantes de fatos conexos com o serviço que presta” (REsp 468.900/RJ).

Ainda sobre o tema, convém remarcar, equipara-se o roubo com arma de fogo, como afirmado pela Corte Superior, ao fortuito externo, que, por ser equiparado à

força maior, apresenta-se como fato totalmente estranho ao serviço de transporte (REsps 286.110/RJ e 435.865/RJ). Daí a conclusão de que a força maior, por ser produzida por terceiro, é inevitável, ainda que previsível.

Da mesma forma, o arremesso de qualquer objeto por transeunte contra ônibus no curso da viagem também confi-gura fortuito externo, o que também exclui a responsabilidade do transportador rodoviário.

Em recente manifestação de vandalismo e desprezo à pessoa humana, determinada facção criminosa promoveu o incêndio doloso em diversos ônibus no Estado de São Paulo, fato também ocorrido, em menor proporção, no Estado do Rio de Janeiro.

Apesar das críticas lançadas pela mídia no que se refere à possibilidade de serem evitadas tais ocorrências, é certo que a previsibilidade sobre o dia e o local em que cada uma delas ocorreria deixou claro a inevitabilidade daqueles resultados danosos.

O transportador urbano, diante da permanente obrigatorie-dade de manutenção do serviço concedido, não poderia, em todos esses casos, evitar o dano, que se mostrou inevitável, mantendo incólume o lado físico e psíquico dos passageiros.

Como solução, de lege ferenda, propõe Sérgio Cavalieri Filho a criação de um seguro social do qual participariam os empresários do transporte de passageiros, os passageiros e o Poder Público concedente do serviço, através do qual se constituiria um fundo para indenizar as vítimas de fatos externos ao transporte.

A fórmula do DPVAT é atraente, em termos de parâmetro, para a instituição de seguro obrigatório, tendo as seguradoras, em conjunto, como partícipes da providência, disciplinando-se, via atuarial, um campo tão difuso e maléfico aos empresários do ramo.

“O FATO EXCLUSIVO DE TERCEIRO, DESDE QUE COMPROVADAMENTE

DOLOSO, é CAUSA DE EXCLUSÃO DA

RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR

DE PASSAGEIROS URBANOS.”

32 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL

IntroduçãoÉ um tema inevitável ultimamente e sua crescente

importância justifica a pletora de manifestações a respeito, embora nem todas com conhecimento de causa, como também é inevitável.

Tenho escrito com freqüência sobre previdência social e programas congêneres, bem como, naturalmente, sobre sua reforma. Na esperança de que minhas observações possam ser úteis, reúno aqui as principais delas. Anima-me, sobretudo, a expectativa de que elas possam servir de subsídio para os estudos que devem estar sendo levados a efeito em função do Plano de Aceleração do Crescimento, o PAC. Se as idéias e sugestões por mim apresentadas não tiverem o mérito intrínseco esperado, o registro delas pode ter alguma valia como eventual ponto de partida para debate das questões respectivas pelo Fórum Nacional da Previdência Social, ao lado das contribuições de outras fontes.

Sem oferecer aqui um rol objetivo de propostas, limito-me a indicar alguns pontos prioritários para um projeto de reforma, o qual decerto conterá proposições mais específicas e mais completas. Em trabalho posterior, ainda a tempo de ser eventualmente utilizado pelo Fórum, espero poder apresentar uma lista mais ampla de alterações da legislação previdenciária a meu ver também aconselháveis.

Nem todos acreditam no êxito imediato dos novos estudos previstos. Existe até quem entenda que o projeto de reforma a ser elaborado terá o mesmo destino inglório da maioria dos documentos dessa natureza, que não saem do papel. Não é improvável, porém, em qualquer hipótese, os estudos efetuados decerto terão valor teórico, doutrinário. Espero, que, se for o caso, o mesmo aconteça com minhas modestas considerações.

Setores correlatosParece oportuno começar pelo fato nem sempre levado na

devida conta de que a previdência social está estreitamente ligada a outros setores da ordem socieconômica, dos quais, por isso, depende de várias formas.

DemografiaO primeiro deles é a demografia, mais importante para

a previdência social do que para os programas correlatos. Embora nem sempre se dê a devida atenção a isso, a previdência social é uma modalidade de seguro, o seguro social, seu virtual sinônimo, e como tal se baseia em dados atuariais, por sua vez decorrentes em boa parte das condições demográficas, aí incluída a composição das famílias em constante e acentuada evolução.

Legislação trabalhistaA seguir vem a legislação trabalhista, tendo à frente a forte

tendência das relações de trabalho no sentido da redução do número de empregos. Parece fora de dúvida que a principal falha programática de nossa previdência social está na gritante insuficiência de sua cobertura, que, apesar de discutíveis artifícios, não atinge metade da força de trabalho. É generalizado entre autoridades e especialistas o entendimento de que uma solução satisfatória só poderá ser encontrada com a participação da legislação trabalhista.

EconomiaOutra falha grave é a exigüidade do valor dos benefícios

previdenciários, bem caracterizada pela anomalia de dois

Celso Barroso LeiteAdvogado Especialista em Previdência Social

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33

terços deles terem valor igual aos do salário mínimo. Por isso, o reajustamento deste é sempre um drama para a previdência social, sem falar nos aposentados e pensionistas. Repetindo, trata-se, como sabemos, de seguro social e, por isso, o valor dos benefícios corresponde ao dos salários. Assim, menos que previdenciário ou trabalhista, este é um problema ligado à econo-mia como um todo e que só poderá ser resolvido mediante me- lhoria das condições econômicas em geral, aí incluídos os salários.

Fala-se muito, hoje, em retomada do crescimento econômico, e o próprio PAC pretende ser um reforço dele. Na medida em que esse objetivo seja alcançado, pode-se esperar não só que os salários aumentem, mas, sobretudo, que diminua o peso do salário mínimo na folha de salários da força de trabalho. O Governo parece ter vislumbrado essa possibilidade, pois acredita até que o desenvolvimento econômico resolverá a chamada crise da previdência social. Mais uma vez, especialistas discordam de autoridades, tendo em vista, acertadamente, que as dificuldades previdenciárias não são apenas de natureza econômica.

Aspectos teóricosDe um ponto de vista mais teórico, a previdência social

é um programa de proteção social sob a forma de seguro, o seguro social, seu virtual sinônimo, sendo por muitos considerada com acerto o mais eficiente meio de cuidar do futuro que a humanidade já encontrou em termos coletivos, isto é, sociais, como está em sua denominação.

Seguro social e atuáriaEm razão de sua natureza e suas características, ela tem de

obedecer a adequados critérios atuariais, ou seja, à chamada

matemática do seguro. Daí a impropriedade de lhe ser atribuída a responsabilidade por programas que, embora também de proteção social, não têm natureza securitária, independendo, para seu custeio, das contribuições dos segurados e suas empresas inerentes à previdência social.

No momento em que mais de uma vez se cogita a reforma desta, é indispensável atentar para essa diferença essencial, porque muitas de suas dificuldades decorrem da confusão a esse respeito, feita até mesmo pela legislação pertinente e que é preciso corrigir. Novamente, para ficar bem claro, os programas assistenciais podem ter seu mérito, porém não são de responsabilidade da previdência social. É bem provável que seja esta uma ocasião oportuna para se procurar corrigir o que está errado nesse particular.

Já é mais do que tempo para uma revisão atuarial da previdência social, não só para deixar bem clara sua natureza securitária, que não se confunde com a da assistência social, mas também para verificar se permanecem atuais seus valores de benefícios e receitas, bem como as respectivas espécies.

Quanto à receita, o momento não poderia ser mais oportuno, pois o Governo, entre outras providências raciona-lizadoras de cunho contábil, acaba de procurar regularizar, em boa parte, mediante indenização à previdência social, o destino do valor das renúncias fiscais que a oneravam, embora o verdadeiro renunciante seja o Tesouro. Essa correta medida atinge, inclusive, a famigerada isenção da contri-buição previdenciária patronal outorgada pela Constituição a entidades beneficentes de assistência social, mas concedida também, irregularmente, a entidades que não têm essa natureza.

ARQ

UIV

O P

ESSO

AL

34 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

Seria boa ocasião, igualmente, para se cogitar de eliminar do quadro de benefícios as aposentadorias por tempo de contribuição e especial, medida alvitrada a seguir. Quando isso acontecer, talvez por imposição da realidade, terá de ser feita revisão atuarial.

AposentadoriaSem falar, então, nos programas assistenciais, basicamente,

previdência social significa aposentadoria, no sentido de poder permanecer em casa (aposentos) sem exercer qualquer atividade econômica. Salvo engano, esse termo é peculiar a nossa língua. Nos demais países, em geral, a denominação está ligada simplesmente a afastamento da atividade.

Como benefício previdenciário, e é assim que ela existe hoje, a bem dizer por toda parte, é um pagamento a que o trabalhador faz jus quando deixa de trabalhar, custeado mediante contribuições dele e de sua empresa, em condições e valores estabelecidos por legislação própria.

Em inglória exceção no mundo previdenciário, onde normalmente só existe aposentadoria por idade, sabemos que, no Brasil, existem quatro tipos dela: por idade, por invalidez, por tempo de contribuição e especial. Duas são, sem dúvida, desnecessárias e até contraproducentes.

Em termos previdenciários, a idade é a única contingência inelutável da vida humana. Nem todos envelhecem, é claro, porém só deixa de envelhecer quem morre antes de atingir os limites etários previstos. Tempo de contribuição é um critério ultrapassado e sem razão de ser. Invalidez é uma incapacidade total cada vez menos freqüente. E a aposentadoria especial é a mais descabida de todas.

A aposentadoria por idade é a mais importante delas; na verdade, o mais importante de todos os benefícios da previdência social. As condições para direito a ela (basicamente idade e tempo de contribuição) variam de uns países para outros, mas parece haver tendência no sentido de, no mínimo, 65 anos de idade para o homem e 60 para a mulher, com tendência também para uniformização desse limite mínimo.

A aposentadoria por invalidez tem sua razão de ser, mas inexiste também em muitos países. Conheço-a pouco e por isso deixo de me situar no caso, limitando-me a encarecer para ela a atenção dos estudos previstos; mas, para não deixar passar em claro, cito, a propósito, o artigo “O cálculo da aposentadoria por invalidez – Uma interpretação razoável”, de Carlos Alberto Pereira de Castro (“Revista de Previdência Social”, nº 313, dez 2006).

A aposentadoria por tempo de contribuição é, sem dúvida, um anacronismo e um contra-senso. Tenho bons argumentos contra ela, porém acredito poder limitar-me ao capítulo 14 do livro “Reforma da Previdência”, que focalizo mais adiante. Aí está dito com propriedade e segurança tudo que é preciso dizer contra esse esdrúxulo benefício previdenciário.

Com certa surpresa verifico que o autor não verbera com a mesma veemência outro benefício que também é preciso eliminar: a inútil e prejudicial aposentadoria especial. Aqui

me reporto a vários trabalhos meus nesse sentido, publicados, principalmente, na “Revista de Previdência Social”. Como no caso anterior, fica o presente registro, para que ela não escape à aperfeiçoadora atenção dos responsáveis pelos estudos do PAC.

Auxílio-doençaOutro importante benefício previdenciário é o auxílio-

doença, que, mais adequadamente, deveria chamar-se auxílio-incapacidade, porque, na verdade, é de incapacidade para o trabalho que se trata. Conforme sabemos, esta pode ocorrer sem aquela, ou vice-versa, embora a maioria dos casos seja mesmo de doença. Em seu livro adiante citado, Fábio Giambiagi examina lúcida e detidamente a questão da perícia médica, da qual depende o direito ao benefício.

Crise futuraÉ corrente a idéia de que a previdência social enfrenta

uma crise cada vez mais grave e pode chegar de uma hora para outra a uma situação de conseqüências imprevisíveis. Não é bem assim. O conjunto seguridade social, que, como sabemos, também inclui assistência médica e assistência social, está realmente em situação preocupante.

Entretanto, deixando de lado esses dois programas, é preciso reconhecer, para maior facilidade na busca de soluções, que as dificuldades da previdência social, a rigor, não são só suas, porém, decorrem, principalmente, de lhe serem atribuídos encargos que não são de sua responsabilidade. Isso a curto prazo, como se receia.

Com mais tempo, ela também encontrará pela frente obstáculos difíceis de transpor, inerentes a sua própria natureza e características. Esse ponto é tão importante que, a meu ver, não deverá deixar de merecer atenção prioritária entre os estudos voltados para a reforma prevista no PAC.

Se vier a acontecer com este projeto o que com freqüência ocorre com outros, o mundo não vai acabar. As preocupações se justificam e existem razões para previsões pessimistas, porém ainda não será o fim. O pior de tudo será a perda de mais uma oportunidade de resolver, pelo menos, em boa parte, um dos mais sérios problemas nacionais, como de muitos outros países. A solução não é fácil, nem poderia ser, mas vai ficar cada vez mais distante à medida que deixar de ser buscada.

“EM TERMOS PREVIDENCIÁRIOS, A IDADE é A úNICA CONTINGêNCIA

INELUTÁVEL DA VIDA HUMANA.”

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 35

Na hipótese negativa de destino inglório, o projeto do PAC servirá quando nada de valioso acervo de conhecimentos e idéias, ajudando a aceitar as modificações que se impõem.

Um livro oportunoPor feliz coincidência, no momento exato em que

o Governo instaura um grupo de trabalho de alto nível incumbido de estudar bases para nova reforma da previdência social, o economista Fábio Giambiagi publica um lúcido livro precisamente com esse título: “Reforma da Previdência” (Rio, Elsevier/Campus, 2007).

As duas epígrafes do título sugerem outras tantas idéias básicas da obra. “O encontro marcado” decerto se refere às conseqüências negativas do continuado adiamento de alterações indispensáveis, embora o autor também aceite que isso não acarretará o fim do mundo.

A outra é mais longa e mais clara: “A difícil escolha entre nossos pais e nossos filhos”. No texto, está patente que ele considera mais importante cuidar dos jovens que dos idosos, ao contrário do que faz nosso sistema de proteção social. Entretanto, para não deixar dúvida quanto a seu apreço pelos idosos, dedica o livro ao avô.

São 228 páginas de texto singelo, objetivo, nada economês, rico manancial de informações, análises, dados estatísticos, comentários, e, naturalmente, sugestões. Seria difícil e ina-dequado procurar apresentar aqui um resumo de seu valioso conteúdo. Parece suficiente e preferível registrar que, além de seu tema básico, indicado pelo título e pelas epígrafes, ele trata amplamente de outros, como programas assistenciais, salário mínimo e benefício mínimo, reajustamento dos benefícios.

Sem contar lembretes, por vezes, implícitos de medidas necessárias ou convenientes, o livro tem duas sugestões que dependem de alteração de dispositivos constitucionais: instituição de um benefício mínimo, destinado a substituir, para esse fim, o salário mínimo; e redução dos auxílios assistenciais a 50% do benefício. Ambas as sugestões estão fartamente justificadas.

Não acompanho Giambiagi quanto ao engessamento de um novo valor no texto constitucional, com as conhecidas dificuldades para sua eventual alteração. Aceito a fixação de

um benefício básico, porém preferiria que a Constituição determinasse sua criação por lei; e não consigo afastar a idéia alternativa de um percentual do salário mínimo, decerto mais fácil de conseguir. Quanto menos previdência social na Constituição, tanto melhor.

No capítulo final, ganham relevo três princípios básicos que, a seu ver, pecisam estar presentes na reforma: o benefício deve ser proporcional às contribuições; quem contribui deve receber mais do que quem não contribui; o segurado deve escolher sua previdência social, no sentido das condições dela.

“Reforma da Previdência” contém muito mais do que está dito aqui. Comporta restrições, naturalmente; o próprio autor declara, em mais de uma passagem, que não pretende ser dono da verdade; e também registrei uma ou outra discordância. Seja como for, é um livro útil, valioso e, sobretudo, oportuno.

ConclusãoEste modesto trabalho não requer e talvez não comporte

conclusões, propriamente, além do que está expresso ou implícito em seu texto. Principalmente, está consignado aí, e não custa repetir, que a previdência social é considerada por quem sabe das coisas o mais eficiente meio que a humanidade já encontrou de cuidar do futuro profissional das pessoas.

Sabemos que a população economicamente ativa, a PEA, à qual ela se destina como forma de seguro, é a base econômica da sociedade, sustentáculo natural de seu lado social; e a previdência social, como virtual corolário da legislação trabalhista, é sua base pessoal ao viabilizar a continuidade do elemento essencial que os salários e outras formas de rendimento constituem.

Dito de outra maneira, a previdência social é indispensável fator de equilíbrio da ordem socioeconômica. Na medida em que ela funcione a contento, segundo sua natureza e características, os demais programas sociais serão menos necessários, perdendo importância.

Se o projeto a cargo do Fórum Nacional da Previdência Social conseguir incorporar estas realidades básicas, teremos dado relevante passo à frente.

“A PREVIDêNCIA SOCIAL é INDISPENSÁVEL FATOR DE EQUILíBRIO DA ORDEM SOCIOECONôMICA.”

36 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

César Muniz

Cte. do Comando de Policiamento do Interior

Coronel/PM

A QUEM INTERESSA

A VIOLÊNCIA

Revista Justiça & Cidadania – Coronel, com sua vivência de 35 anos na polícia militar, como o senhor vê a questão da violência no Brasil?

Coronel – Há trinta e sete anos atrás, eu entrava na Polícia Militar, como aluno da Escola de Formação de Oficiais da Polícia Militar do antigo Estado da Guanabara. A minha decisão de ser policial militar foi muito influenciada por dois tios que já eram da PM e a família toda tinha orgulho deles. Depois de formado, quando comecei a entrar em contato com a realidade da violência e da criminalidade é que passei a perceber que os “policiólogos” de plantão só falavam e escreviam sobre de quem tinha culpa, mas nunca a quem interessava, que, a meu ver, é o primeiro ponto a ser combatido.

Os experts sempre seguiram pelo caminho mais fácil, atribuindo a culpa à Polícia, principalmente a Militar, pois ela é quem faz o policiamento ostensivo.

Sempre alegavam que não havia nenhuma guarnição policial no local onde foi cometido o crime, como se pudesse haver um policial para cuidar de cada habitante. A Polícia Civil também leva a culpa e a principal acusação é a taxa mais baixa do mundo de elucidação de crimes.

RJC – E as causas da criminalidade. O tema não era abordado?

Coronel – Claro que era. Quase tudo era apontado como causa: trafico de drogas, tráfico de armas, permissivi-dade das leis, falta de controle de natalidade, racismo, filmes violentos, a ênfase que a mídia dá aos crimes, o endeusamento dos criminosos, a desagregação familiar, a televisão, a corrupção, etc.

RJC – O senhor falou que o principal fator é discutirmos o tema sobre a quem interessa a violência. A quem interessa?

Coronel – Até hoje, esse tema é tabu, porque os interesses envolvidos são muito fortes. São políticos que se aproveitam da “cortina de fumaça” causada pela criminalidade para esconder o que estão fazendo, são nossas elites que se beneficiam da corrupção e da péssima distribuição de renda, e outros que não posso falar, porque a violência encurrala a classe média, que é a grande formadora de opinião, e a impede de ir para ruas discutir temas de importância para o País, como a questão da criminalidade, da corrupção, das ameaças explícitas sobre questão da

Nota do Editor:A entrevista do Coronel César Muniz, abordando a violência com benefício dos vivandeiros da política e elites beneficiárias da corrupção, face ao livre transporte de drogas e armas para o tráfico, deixa anterver, nas entrelinhas, aspectos correlatos, que merecem uma abordagem maior e mais completa, além de apontar falhas e mazelas no combate ao crime, com deficiências na prevenção e aplicação das leis penais.

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37

integridade territorial da Amazônia, alvo da cobiça das grandes potências internacionais, as questões salariais, as verbas de representação dos parlamentares, a aprovação de leis que beneficiam a determinados grupos e marginais, etc. Na outra ponta, a classe pobre fica refém dos traficantes, porque o Estado, em sentido amplo, não se faz presente como é sua obrigação constitucional.

RJC – E a mídia não entra nisso?

Coronel – Claro, ela é uma das principais beneficiadas pela violência. Apresentar com grande destaque uma ação criminosa dá IBOPE para a mídia eletrônica e faz vender mais jornais e revistas. Basta notar-se que todas as reportagens agraciadas com prêmios nacionais e internacionais, pelos jornalistas brasileiros, tratam da violência e do mundo cão. Quando um jornal expõe, em sua primeira página, um “anúncio” de um traficante oferecendo R$ 5.000,00 pela cabeça de um policial e outro noticia que tráfico exige a morte de 150 policiais, perguntamos: a quem interessa isso?

RJC – E nosso Congresso Nacional?

Coronel – Existe violência em todo o mundo. Entretanto, os países têm uma política nacional de combate à violência. No Brasil não. Cada Estado que cuide a sua maneira de sua segurança. A quem interessa isso? Quando o Congresso Nacional não aprova leis que irão diminuir a criminalidade, a quem interessa isso?

Nós somos o único país do mundo que permite, por lei, que um marginal entre para a polícia e esta é obrigada a aceitá-lo. A quem interessa isso? Mas a Polícia Federal tem agido com rigor. Tem razão, a operação furacão expôs até onde vai o crime organizado no País e como ele está tomando conta das instituições. Se não fizermos nada agora, esse monstro vai crescer de tal forma que o Estado será dominado por ele.

RJC – Existem ONGs interessadas na violência?

Coronel – Há um verdadeira indústria de ONGs voltadas para o combate à violência. Elas conseguem rios de dinheiro para fazerem pesquisas, estudos que só atendem às veleidades acadêmicas de seu gestores, que se aproveitam da notoriedade que elas lhes conferem para escrever livros, fazer palestras, seminários, etc. Tudo muito bem pago. Claro que existem ONGs sérias, mas são minorias.

RJC – Esse estado de coisas pode nos levar a uma ditadura?

Coronel: Podemos até especular que tudo isso é uma bem urdida manobra, junto com a desmoralização completa do Congresso nacional e dos políticos, com o sucateamento e desmotivação das Forças Armadas, com o apoio de determinadas lideranças políticas e pela elite brasileira, para que se crie um clamor popular pela volta da ditadura.

“OS experts SEMPRE SEGUIRAM PELO CAMINHO MAIS FÁCIL, ATRIBUINDO

A CULPA à POLíCIA, PRINCIPALMENTE A MILITAR,

POIS ELA é QUEM FAZ O POLICIAMENTO OSTENSIVO.”

ARQ

UIV

O J

C

38 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

Jerson Kelman

Diretor-Geral da Agência Nacional de Energia Elétrica Professor da COPPE-UFRJ

O TEOREMA DO LIMITE CENTRAL, A JUSTIÇA E A QUESTÃO ENERGÉTICA

Jerson Kelman é engenheiro formado pela UFRJ com Mestrado em Hidráulica, e obteve título PHD em Hidrologia e Recursos Hídricos pela Colorado State University. É professor de Recursos Hídricos da COPPE-UFRJ desde 1973, além de ser considerado, internacionalmente, um dos mais conceituados técnicos especialistas em águas e energia, tendo recebido, em Kioto, no Japão, o maior galardão no gênero, o troféu “GREAT WORD WATER” e, em conjunto com o Ministro das águas do Egito, o prêmio de 100 mil dólares oferecido pelo Rei Hussan II, por sua reconhecida capacidade teórica e técnica.

“THE kING HASSAN IIGREAT wORLD wATER PRIZE”

Nota do editor

O artigo de Jerson Kelman aborda assuntos de alta relevância, que diz respeito a futuras decisões da Justiça, sobre o licenciamento das usinas hidroelétricas que estão sendo objeto de demandas judiciais, com reflexo altamente negativo perante os empreendedores, face à conseqüente incidência no custo das obras.

A matéria abordada pelo Diretor-Geral da ANNEL é extremamente didática e, apesar do uso da matemática, calha bem para elucidar o assunto que, no momento, torna-se de grande importância devido à eminente gravidade dos perigos de previsível apagão, caso a questão da construção das hidroelétricas não seja conduzida com lógica, bom senso e rapidez.

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 39

Suponhamos que a aprovação de um candidato em um concurso dependa de sua nota final, que aqui vamos chamar de X. Suponhamos ainda que esta nota final dependa de várias notas parciais, dadas por

examinadores diferentes. Por exemplo, o primeiro examinador dará a nota Y1, o

segundo Y2, o terceiro Y3, e assim sucessivamente. Vamos assumir ainda que existam vinte examinadores, e que todos eles costumem dar notas variando uniformemente de zero a dez. Isto é, se examinássemos o registro de notas dadas por qualquer um dos examinadores, ao longo dos anos, constataríamos que ele é “neutro” ao dar notas.

Por “neutro”, queremos dizer que ele não demonstra qualquer tendência, tanto de atribuir notas boas quanto más. A Figura 1 mostra graficamente esta propriedade. Trata-se da “densidade de probabilidades” de Y. Nesse caso, em que o examinador é neutro, a curva mostra que não há maneira de se saber de antemão em qual intervalo é mais provável que caia a nota parcial de um candidato qualquer .

Figura 1 Densidade de probabilidade da nota dada por um avaliador neutro

Se X for definido como a média aritmética dos Y’s, isto é, se X = média {Y1, Y2, Y3,...., Y20} = (Y1+Y2 +Y3+....+Y20) 20, e se os examinadores não forem mutuamente influenciáveis, a densidade de probabilidades de X terá aspecto “normal” – semelhante a um perfil de sino e muito diferente da reta horizontal que caracteriza a densidade de probabilidade de Y –, como se vê na Figura 2.

A curva mostra, por exemplo, que há muito mais “densidade de probabilidade” no intervalo entre quatro e seis de que entre seis e oito. Isto quer dizer que é mais provável que a nota final caia entre quatro e seis do que entre seis e oito .

Figura 2 Densidade de probabilidade da nota final, média das 20 avaliações

O aspecto de sino da densidade de probabilidades da média aritmética foi primeiro observado por Abraham de Moivre, um matemático que, em 1733, publicou um trabalho sobre o número de “caras” que se observava ao jogar sucessivamente uma moeda, na brincadeira de “cara ou coroa”. Esta descoberta foi demonstrada rigorosamente, quase um século depois, em 1816, por Johann Carl Friedrich Gauss,

ARQ

UIV

O J

C

40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

possui plena liberdade para formar seu convencimento técnico, não sendo vinculado a nenhum outro órgão estatal, nem mesmo à vontade de seus superiores hierár-quicos. Ainda que sujeita às leis vigentes no país, seria desejável que essa liberdade de convencimento fosse sujeita a revisões, como ocorre com os juízes de primeira instância. Se fosse assim, cada decisão institucional, do Ministério Público, resultaria da média de muitas visões, e, portanto seria normal, no sentido matemático. Como, ao contrário, a instituição toma decisões por meio do tirocínio solitário de cada procurador, pode-se afirmar que o Ministério Público não é normal, novamente no sentido matemático, como se verá na seqüência.

Podemos idealizar o processo mental e psicológico que leva um Procurador da República a atacar na Justiça a legalidade da construção de uma usina hidroelétrica, por exemplo, utilizando o modelo matemático já descrito. Vamos imaginar que ele atribua uma nota Y, de forma neutra, para a causa em foco, sendo Y tanto mais próximo de zero quanto maior for sua convicção de que o empreendimento fere a legalidade. E suponhamos que ele decida por iniciar a ação se Y for menor que 2. Se forem vinte os procuradores debruçados sobre o mesmo tema, todos atribuindo notas Y’s uniformemente entre zero e dez, a posição do Ministério Público dependerá da menor das notas, e não da média.

Para esse exemplo, o método decisório definido pela Constituição de 1988 para o Ministério Público pode ser representado matematicamente por X = mínimo {Y1, Y2, Y3,....,Y20}. Se X for inferior a 2, o Ministério Público iniciará ação na Justiça, embora, na prática, a decisão decorra da iniciativa de um único procurador. A Figura 4 mostra a densidade de probabilidade para X.

Figura 4Densidade de probabilidade da nota final, mínima das 20 avaliações

Observa-se que a densidade de probabilidade para X maior que 2 é praticamente nula. Isto quer dizer que, nesse exemplo, a probabilidade de que X seja superior a 2 (condição necessária para que a obra escape de questionamento na Justiça, por iniciativa do Ministério Público) é muito pequena. Na realidade, igual a apenas a 1%.

Esta quase certeza de que grandes empreendimentos hidroelétricos serão objeto de disputa judicial tem

um físico e matemático, que provou um dos resultados mais relevantes da matemática-estatística, o chamado Teorema do Limite Central.

Graças a esse trabalho, a curva normal é também chamada de “curva de Gauss”, e hoje é possível fazer cálculos exatos em muitos campos científicos. Por exemplo, no hipotético caso acima enunciado, a probabilidade de que a nota final caia no intervalo entre oito e dez é igual a 5%. Se, por hipótese, fosse esse o critério de aprovação no concurso – nota final acima de 8 –, haveria, em média, vinte candidatos para cada aprovação. Conseqüentemente, se o número de candidatos fosse menor do que vinte vezes o número de vagas, o mais provável é que haveria sobra de vagas.

Em diversas outras circunstâncias, a curva normal é também aplicável, inclusive para tabular a freqüência das decisões da Justiça sobre uma tipologia qualquer de crime, digamos assassinato. Nesse caso, cabe ao júri popular responder a algumas perguntas formuladas pelo presidente do Júri. Cada jurado, individualmente, e depois o júri, coletivamente, forma sua convicção por meio de um processo mental e emocional que poderia ser assemelhado ao de “dar notas parciais” ao réu, sob diversos ângulos em que o assunto possa ser examinado.

O réu teve a intenção de matar a vítima? Se sim, Y1 assume um valor perto de zero, se não, perto de dez. As nuances são capturadas por notas intermediárias. O crime foi cometido por motivo fútil ou torpe? Se sim, a Y2 é dado valor perto de zero, se não, perto de dez. O réu utilizou-se de meio que tornou difícil ou impossível a defesa da vítima? Se sim, Y3 perto de zero, se não, Y3 perto de dez. E assim sucessivamente. Por sua vez, o juiz, ao determinar a sentença, fará um processo mental e emocional assemelhado para chegar à nota final X, como uma média dos diversos Y’s. Quanto mais perto X for de zero, mais severa será a pena.

Naturalmente, a mesma analogia poderia ser adotada para as decisões colegiadas, tomadas pelos tribunais superiores. E como as decisões singulares dos juízes de primeira instância podem sofrer revisão de tribunais superiores, pode-se afirmar que as decisões finais da Justiça tendem à normalidade, no sentido matemático da expressão.

Todavia, não é essa a situação do Ministério Público. Como se sabe, a Constituição de 1988 destaca a independên-cia funcional como um dos princípios institucionais do Ministério Público (art. 127, §1º), in verbis:

Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

§ 1º – São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.

Significa dizer que cada membro do Ministério Público

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41

sido percebida pelos empreendedores como um risco extra, que é precificado por todos os concorrentes que comparecem a leilões organizados pelo Governo para concessão de novas usinas. Isso significa que os consumidores pagam mais do que seria estritamente necessário.

Na proposição e acatamento de ação civil pública para proteção do meio ambiente, prevista na Constituição Federal, é de se supor que a seguinte questão seja respondida positivamente pelos decisores tanto do Ministério Público quanto do Judiciário: “a construção da usina causa danos ambientais?”. Percebe-se que, se for apenas essa a pergunta a ser respondida, não haverá qualquer nova construção em nosso país, visto que é praticamente impossível realizar uma obra sem danos ambientais. Como isso não é razoável, é preciso, também, responder uma segunda pergunta: “a não-construção da usina causa outros danos, sociais, econômicos, energéticos, e também ambientais?”

Em geral, a resposta é também positiva. Se o país não conseguir produzir energia elétrica por usinas hidroelétricas, grandes ou pequenas, que dependem de uma fonte renovável – a água –, ficará sem energia ou a terá, porém produzida por fonte não renovável e mais cara, em geral algum derivado de petróleo. O resultado será a elevação das tarifas de eletricidade e o agravamento do efeito estufa – um efeito ambiental global, e não local. Alternativamente, pode-se recorrer à energia nuclear, que é apenas mais cara, mas não causa efeito estufa.

Isso não quer dizer que se pretenda um salvo conduto para a construção de hidroelétricas. Haverá casos em que a construção não será recomendável, por conta de dano ambiental excessivo ou por exigir o reassentamento de significativo contingente populacional.

Há muita esperança depositada em novas tecnologias para produzir eletricidade com menos danos ambientais e sociais. Trata-se das usinas bioelétricas, eólicas e solares (células fotovoltaicas). No caso da bioeletricidade, é de se esperar um vigoroso crescimento no futuro próximo. Nos próximos vinte anos, se 10% da área hoje usada para pasto for convertida em cana de açúcar, o etanol brasileiro poderá substituir 5% de toda gasolina utilizada no mundo, com significativa redução do efeito estufa. Como efeito colateral, e positivo, haverá significativo incremento da produção de bioeletricidade, com custos competitivos com a hidroeletricidade. Porém, não na escala necessária para atender ao crescimento da demanda por energia elétrica.

Há razoável potencial eólico no Brasil. No entanto, a energia produzida por usinas movidas a vento ainda é cara, custando cerca de o dobro da produzida por hidroelétricas. No caso de usinas solares, a economicidade é ainda mais desfavorável, sendo a energia cerca de dez vezes mais cara do que a produzida por hidroelétricas.

Desde os anos 80, pesquisadores americanos e

europeus, do campo das ciências sociais e humanas, onde se enquadra a ciência do Direito, entendem que uma decisão que leva em conta os múltiplos objetivos só é razoável quando se aproxima do ideal e se afasta do indesejável . No caso de construção de usinas hidroelétricas, o “ideal” é que não haja qualquer impacto local, tanto ambiental quanto social. E o “indesejável” é que falte energia barata. A decisão será “ótima” se conseguir equilibrar os dois olhares, como faz o cérebro quando combina as mensagens enviadas pelos olhos em uma só visão integrada. É o que nos permite ter o senso de perspectiva.

Senso de perspectiva é o que não faltou à Ministra Ellen Gracie, presidente do Supremo Tribunal Federal, quando decidiu suspender, em parte, a execução do acórdão proferido pela 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, nos autos do AI 2006.01.00.017736-8/PA, que impedia o IBAMA de prosseguir com o licenciamento da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu. A disputa havia ingressado no Judiciário por meio da Ação Civil Pública 2006.39.03.000711-8, ajuizada pelo Ministério Público Federal perante a Vara Federal de Altamira/PA. Na decisão, a Ministra Ellen Gracie afirmou:

“Considero o acórdão impugnado ofensivo à ordem pública, aqui entendida no contexto da ordem administrativa, e à economia pública, quando considerou inválido, neste momento, o Decreto Legislativo 788/2005 e proibiu ao IBAMA que elaborasse a consulta política às comunidades interessadas...

...é também relevante o argumento no sentido de que a não-viabilização do empreendimento, presentemente, compromete o planejamento da política energética do país e, em decorrência da demanda crescente de energia elétrica, seria necessária a construção de dezesseis outras usinas na região com ampliação em quatorze vezes da área inundada, o que agravaria o impacto ambiental e os vultosos aportes financeiros a serem despendidos pela União...

...a proibição ao Ibama de realizar a consulta às comunidades indígenas, determinada pelo acórdão impugnado, bem como as conseqüências dessa proibição no cronograma governamental de planejamento estratégico do setor elétrico do país, parece-me invadir a esfera de discricionariedade administrativa, até porque repercute na formulação e implementação da política energética nacional.”

Para concluir, convém responder novamente à pergunta anteriormente formulada. A paralisação da construção de uma usina hidroelétrica causa sim danos ambientais, sociais, econômicos e energéticos a milhões de brasileiros. Sem energia elétrica, ou com energia, porém cara, o Brasil ficará menos competitivo e terá dificuldade em resgatar da pobreza um grande contingente populacional, ainda submetido a péssimas condições ambientais, principalmente nos grandes centros urbanos.

42 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

Da Redação

“BANALIZAÇÃO” DA QUEBRA DO SIGILO

O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal STF, em entrevista ao jornalista Luiz Orlando Carneiro, do JB, disse que está havendo, por parte de juízes, uma “banalização”

da quebra do sigilo telefônico para fins criminais. Acrescentou que os magistrados têm de “frear essa volúpia persecutória, na qual a exceção acaba por se tornar regra”.

“Estamos vivendo uma quadra assustadora, e os magistrados devem estar mais atentos aos valores envolvidos, só autorizando interceptações telefônicas de forma setorizada, e não generalizada, quando existirem indícios fortíssimos de ilícitos penais.”, declarou o ministro.

O ministro Marco Aurélio sublinhou que, quando fala em “valores envolvidos”, refere-se às cláusulas pétreas do artigo 5 da Constituição referentes à inviolabilidade da intimidade e da vida privada das pessoas, de sua própria casa e do sigilo de dados e das comunicações telefônicas. A seu ver, a Lei 9.296\96 – que regulamenta as escutas telefônicas para fins de prova em investigação criminal – tem sido freqüentemente desrespeitada.

“A lei prevê que a autorização judicial será fundamentada, sob pena de nulidade, indicando também a forma de

execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de 15 dias, renovável por igual tempo, uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova. Escutas que ultrapassem esse período visam bisbilhotice.”, explicou Marco Aurélio

O ministro lembrou que, nas investigações que culminaram com a Operação Furacão, foram autorizadas escutas telefônicas durante 202 dias, e que os advogados dos magistrados denunciados pelo Ministério Público Federal só puderam ter acesso – para preparar as defesas prévias – a discos rígidos, com parte das desgravações, porque seria “impossível” transcrever em papel todas as conversas gravadas, o que consumiria 48 mil folhas.

Perguntado sobre o que achava do fato de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter sido informado pelo ministro da Justiça, Tarso Genro, com antecedência, de que a casa de um de seus irmãos seria objeto de uma ordem de busca e apreensão, Marco Aurélio respondeu: “Se o presidente devia ter conhecimento do fato por dever de ofício, tudo bem”.

“No entanto, se o motivo foi o parentesco, trata-se de um caso de transgressão de normas no campo penal. O aviso pode ter prejudicado a diligência. Aos amigos tudo, aos inimigos o ferrão.” – concluiu com ironia.

Ministro Marco Aurélio Mello

FOTO

: STF

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 43

44 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

Celso Bastos foi um grande sistematizador do Direito Constitucional Brasileiro. Sua obra é densa e incomparável desde seus cursos até os Comentários à Constituição de 1988, passando pelos inúmeros

pareceres – sempre pautou-se em linguagem objetiva e moderna – na demonstração de um direito brasileiro para os brasileiros, e não simplesmente preocupado com o direito estrangeiro, como amparo às regras brasileiras. A criação e manutenção do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, fundado em 1979, e sua Revista. Como seu Presidente, durante dez anos, acompanhei amplamente sua atuação como Diretor Geral, com o total comando das atividades administrativas, financeiras e culturais, e na realização de 23 Congressos Brasileiros de Direito Constitucional.

Notabilizou-se nos direitos e garantias, com ênfase ao devido processo legal, por isso, esta memória histórica de lembrança dos primórdios e pioneiros introdutores dessa cláusula no direito brasileiro.

A partir da Constituição de 1988, surgiram as aplicações do devido processo legal por força do dispositivo constitucional (art. 5º, LIV) tanto na doutrina quanto na jurisprudência, e até na legislação (Estatuto da Criança). Entretanto, é importante olhar os passos anteriores na falta de norma constitucional específica sobre o assunto.

A Constituição de 1824 apenas tracejou o devido processo legal quando assegurou as garantias no processo (art. 179), aliás asseguradas sempre até a Constituição de 1988, ainda que a V

Emenda à Constituição americana (1791) já existisse quando promulgada a nossa imperial. Explica-se tal ausência, porque o direito imperial sempre foi forte com a influência francesa, somente abrandada na Constituição de 1891, com a busca do estado federativo e o modelo judicial americano. Na Carta de 1891, assegurava-se a plena defesa, no processo criminal, com recursos e meios essenciais a ela, e proibição de prisão sem prévia formação de culpa (art. 72, § 14). Vítor Nunes Leal traz apropriada explicação: “nunca incorporamos à nossa doutrina e à nossa jurisprudência as conseqüências que a construction da Corte Suprema tem extraído da larguíssima cláusula due process of law. Sempre fomos menos judiciaristas no tocante à atividade da administração pública, como se pode ver, entre muitos exemplos, da inteligência restritiva que nossos tribunais costumam dar...” (Problemas de Direito Público, pg. 290).

A partir da criação do Estado brasileiro, formalmente com a Constituição de 1824, esta não serve de exemplo para a pesquisa de avultado instituto como o devido processo legal, mesmo porque nem nos Estados Unidos, o direito e a jurisprudência tratavam do tema, ênfase dada já ao início do século XX. A Carta de 1824 padecia da estrutura peculiar concentradora do poder do monarca, no exercício absoluto do Poder Moderado. Como observa Paulo Bonavides, esse poder pessoal ignorava os cânones expressos do texto básico (História Constitucional do Brasil, 1989, pg. 7).

Na doutrina tradicional, João Mendes Júnior aproximou-se do devido processo legal, para quem o processo era meio

DEVIDO PROCESSO LEGAL: A INSERÇÃO NO BRASIL

Roberto Rosas

Professor de Direito da UNB

“DESDE 1824, TODAS AS CONSTITUIÇõES BRASILEIRAS OCUPARAM-SE COM AS GARANTIAS PROCESSUAIS PENAIS, MAS

SEM êNFASES àS GARANTIAS CIVIS.”

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45

para a segurança constitucional dos direitos, marcado de forma adequada para não haver ofensa da garantia constitucional da segurança dos direitos. Essa orientação era feita segundo princípios filosóficos, concretizados no processo pleno ou ordinário, com atos imprescindíveis ao procedimento ordinário, chegando-se à efetiva segurança constitucional dos direitos (João Mendes Júnior – Direito Judiciário Brasileiro, 4ª ed., 1954, pg. 197).

Desde 1824, todas as Constituições brasileiras ocuparam-se com as garantias processuais penais, mas sem ênfases às garantias civis.

Serviu de consolo aos juristas a observação sempre constante e sintetizada por Castro Nunes da falta do princípio do devido processo legal, mas atendido por outros princípios constitu-cionais inseridos já na Constituição de 1891 (art. 72): direito à vida (abolida a pena de morte), à liberdade, à propriedade, e especialmente o art. 78 (1891) – “A especificação das garantias e direitos expressos na Constituição não exclui outras garantias e direitos não enumerados, mas resultantes da forma de governo que ela estabelece e dos princípios que consigna.” Aí arrematou Castro Nunes – equivalem, por constru-ção jurisprudencial, à cláusula america-na due process of law (Teoria e Prática do Poder Judiciário, 1943, pg. 617, nota 21).

Lúcio Bittencourt afirmou a presença do due process of law no direito brasileiro. Se o regime constitucional brasileiro buscou, no americano, sua diretriz, e a incorporação de garantias fundamentais, elas estão protegidas no direito brasileiro segundo o devido processo legal. (C.A. Lúcio Bittencourt – O Controle Jurisdicional da Constitucionalidade das Leis, 1997, pg. 90).

José Frederico Marques provou a vigência do due process of law no direito brasileiro, segundo dispositivo constitucional da época, e, portanto, ninguém seria privado da vida, da liberdade ou da propriedade sem o devido processo legal. (José Frederico Marques – A garantia do due process of law no direito tributário – Revista de Direito Público, nº 5, pg. 28, 1968).

Com a Constituição de 1946, surgiu nova esperança democrática e abertura após significativo período dilatorial. Refletiu-se, então, nessa carta de grande projeção política e institucional, enfeixada já no art. 141, § 4º, a tutela do direito ao processo, o Juiz natural para a garantia da reparação

da lesão sem qualquer diminuição ou subtração do seu acesso. Tal direito à tutela jurisdicional foi repetido nas cartas posteriores (1967 – art. 150, § 4º e 1969 – art. 153, § 4º).

Como a Carta de 1946 foi a luz institucional depois das trevas ditatoriais, a Carta de 1967 teve o mesmo destino, como representação de mais uma abertura, mas continuam a tutela jurisdicional penal sem grandes esforços com a tutela civil, pelo menos expressamente, apenas o princípio do juiz natural, e do direito de ação faltando o princípio da legalidade. No entanto, como herança de 1891, acertava-se a inserção de outros direitos e garantias além daqueles nominados na Carta inerentes do regime democrático e dentre eles está o princípio da legalidade. Portanto, enfeixaram-se os grandes princípios formadores do devido processo legal.

Assinale-se o pioneirismo dos doutrinadores após 1967 e 1969.

46 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

Santiago Dantas elaborou profundo estudo sobre a aproximação do due process of law entre sistema americano e brasileiro, especialmente na aplicação da isonomia, segundo a lei (F.C. de San Tiago Dantas – Igualdade perante a lei e due process of law – Problemas de Direito Positivo, Forense, 1953, pg. 35). Após acentuação, a característica do império da lei, afirma: “O Poder Legislativo, em tal regime, não escapa à limitação constitucional, e os atos que pratica, embora tenham sempre forma de lei, nem sempre são leis, por lhes faltarem requisitos substanciais, deduzidos da própria Constituição. Esses requisitos se deduzem de um princípio, que é o centro fiscal do regime jurídico político: o princípio da igualdade. Graças a ele, podemos atingir, no direito constitucional brasileiro, nos Estados Unidos, a Corte Suprema construiu, partindo do due process of law (Santiago, pg. 63).”

Em 1986, Antônio Roberto Sampaio Dória tratou da aplicação do due process of law no Direito Tributário, indicando postulados cardiais da tributação (limitação da competência tributária, igualdade perante os tributos, vedação de tributos impeditivos de atividades lícitas, proibição de tributos confiscatórios) (A .R. Sampaio Dória – Direito Constitucional Tributário e Due Process of Law, Forense, 1986). Destaque-se a aplicação do devido processual substancial.

Em 1973, Ada Pelegrini Grinover publicou importante trabalho sobre o devido processo legal, com ênfase no processual. (As garantias constitucionais de direito de ação, RT).

Também de assinalar-se o estudo de Humberto Theodoro Jr. (1987) – A execução de sentença e a garantia do devido processo legal (Ed. AIDE).

A jurisprudência enunciou expressamente o devido processo legal antes de 1988. Como se vê em acórdãos do extinto Tribunal Federal de Recursos. (AMS 78673 – Rel. Min. Carlos Velloso – Rev. TFR 56/218; Ag.MS 87679 – D.J. 25.6.1981, pg. 6264).

Na Constituinte de 1987, o devido processo legal veio forte por sugestão do então Ministro do TFR Carlos Mário Velloso ao Deputado Michel Temer, que levou ao debate, passando pelas várias fases legislativas e redacionais até se converter no texto do art. 5º, LIV – “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (Carlos Roberto de Siqueira Castro – O Devido Processo Legal e a Razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil – Forense, 1989, pg. 376).

O exame histórico anterior a 1988 tem grande significado, porque se a Suprema Corte americana, desde o início do século XX, debateu o due process of law, não só o processual, mas, principalmente, o substancial, explica-se o grande silêncio introdutório do instituto no Brasil. Ainda que a Carta de 1891 fosse fundada no direito constitucional americano, os doutrinadores não tinham interesse no direito americano, e sim no direito francês e italiano, à exceção de Rui Barbosa, grande iniciador da temática americana jurídica no Brasil, principalmente a doutrina de John Marshall.

Na jurisprudência clássica sobre o poder de tributar, há famoso acórdão do STF, relatado por Orosimbo Nonato,

onde se entrevê o devido processo legal (substancial) na aplicação da proporcionalidade em relação à tributação. O excesso não pode chegar à destruição, e o exercício do poder de tributar fica nos limites do exercício do direito de propriedade, da liberdade de trabalho, comércio e indústria. No caso concreto, a municipalidade aumentou tributo desmensuradamente, tornando impossível a utilização de um serviço (RE 18331, julgado em 1951 – RF 145/164), o que levou a Corte Suprema a considerar: “O poder de taxar não pode chegar à desmedida do poder de destruir, uma vez que aquele somente pode ser exercido dentro dos limites que o tornou compatível com a liberdade de trabalho, do comércio e de indústria e com o direito de propriedade”.

Em outra oportunidade, o Supremo Tribunal (1968) considerou sem proporcionalidade a suspensão do exercício da profissão àquele que preso em flagrante delito ou com denúncia recebida, em razão de enquadramento na Lei de Segurança Nacional (HC 45232).

Ao julgar a constitucionalidade de lei que exigia requisitos para o exercício de uma profissão para a qual não há capacidade técnica, e estabelecia o registro em conselho de classe (corretor de imóveis), considerou a falta de razoabilidade: “A regulamentação dessa profissão, portanto, em princípio, já não atende às exigências de justificação, adequação, proporcionalidade e restrição, que constituem o critério de razoabilidade, indispensável para legitimar o poder de política” (Voto do Min. Rodrigues Alckimin, Repres. n.º 930 (1976)).

Ao tratar da elevação de taxa judiciária, o Supremo Tribunal considerou o excessivo aumento como não proporcional ao serviço oferecido (Repres. 1077 (1984)).

Aqui estão lembranças dos períodos anteriores à Constituição de 1988, porque esta deu importância ao devido processo legal e, a partir dali, consagrou-se não somente o processual mas também o devido processo substancial, fundo na proporcionalidade e razoabilidade.

“O EXCESSO NÃO PODE CHEGAR à DESTRUIÇÃO, E O EXERCíCIO DO PODER DE TRIBUTAR FICA NOS

LIMITES DO EXERCíCIO DO DIREITO DE PROPRIEDADE,

DA LIBERDADE DE TRABALHO, COMéRCIO E INDúSTRIA.“

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 47

48 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

CRIANÇA, PRIORIDADE NACIONAL

Thiago Ribas Filho

Desembargador Ap. do TJ/RJCoordenador da Comissão Estadual

Judiciária de Adoção do TJ/RJ

CRIANÇA, PRIORIDADE NACIONAL AR

QU

IVO

PES

SOAL

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 49

Um dos maiores problemas do Brasil, sabem-no todos os brasileiros, é o das crianças e adolescentes em estado de abandono, em grande quantidade nas ruas e em abrigos, sendo surpreendente que

as autoridades públicas e a população – inegavelmente de boa índole – não tenham a consciência da gravidade de sua situação, a exigir uma ação efetiva em seu benefício.

O artigo 1ssssastante claro ao expressar que:“Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária.”

Aos Juízes da Infância e da Juventude cabe a proteção a esses menores e é nesse mister que a legislação determina que busquem sempre em primeiro lugar, reintegrá-los em sua família biológica e, em segundo, se isto não se afigurar possível, colocá-los em regime de adoção, onde a prioridade para adotar é dos brasileiros e, na inexistência de nacionais que os queiram abrigar, disponibiliza-los a lares estrangeiros.

A Constituição do Brasil é taxativa no sentido de que, na apreciação de todas as questões que envolvam crianças e adolescentes, deverá sempre prevalecer o superior interesse dos menores e quem deverá pronunciá-lo é o Juiz, que é o seu guardião.

Os Juízes da Infância e Juventude, no exercício dessa função – que é uma das mais importantes do Judiciário –, sabem perfeitamente que o ser humano não é uma ilha, o interesse de um menor não se restringe a ele, mas alcança às pessoas que o cercam, a partir de seus pais, e, por isso, de há muito tempo, atuam como orientadores de toda essa gente, para conseguir dar o melhor destino possível a essas crianças e adolescentes, integrando-os em lares bem formados.

O trabalho que os Juizados vem realizando, com o acompanhamento dos menores nos próprios abrigos, (onde nem sempre contam com a colaboração de Assistentes Sociais, e quando os têm, raras vezes dão o tratamento devido aos abrigados), patrocinando cursos para os pais biológicos e para as pessoas que desejam adotar, cuidando do cadastramento das atividades do genitores desempregados para que tenham oportunidade de conseguir trabalho, é importantíssimo.

Ignorando tudo isso, está sendo apresentada, no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, uma estranha proposta de “desjudicialização das ações de assistência social nos Juizados da Infância e da Juventude, a pretexto de obediência à regra resultante da redação dada ao parágrafo 2º, do art. 98, da C.

R. F. B/88, pela Emenda Constitucional nº.45, de dezembro de 2004. Ali está disposto:

“As custas e emolumentos serão destinados exclusi-vamente ao custeio de serviços afetos às atividades específicas da Justiça”.

É mais que claro que a referência feita ao final desse dispositivo não pode ser tomada ao pé da letra, deve ser examinada em contexto maior, com o espírito de grandeza com que precisam ser interpretados os textos legais, voltados para o homem, pois já é passado o tempo em que se entendia que os Juízes deveriam tratar apenas de decidir processos, sem se preocupar em resolver, efetivamente, a situação neles contida. O magistrado não é, como se afirmava, “a boca da lei” e, para ser assim, melhor e mais garantido seria substituí-lo por uma máquina eletrônica que recebesse os dados frios da questão posta em Juízo e, misturando-os, encontrasse a solução para o caso.

Alegam os “técnicos”, autores da proposta, que os magistrados devem se limitar aos julgamentos das questões relativas à convivência familiar (guarda, tutela, adoção, destituição do poder familiar), o que para eles seria fácil e sem perda de muito tempo, sendo da competência exclusiva do Conselho Tutelar a aplicação das medidas protetivas.

Só quem não conhece a realidade brasileira ignora as dificuldades que têm os Conselhos Tutelares em exercer sua função, já que nem sequer meios materiais lhes são fornecidos pelas autoridades municipais para atuar.

Essa situação é reconhecida pelo valoroso e respeitado Jurista Hélio Bicudo, em entrevista publicada no Jornal do Brasil, do dia 05.03.07, onde diz:

“Aposto a minha mão direita se os Conselhos Tutelares funcionam em alguma parte do país. O tratamento dado à criança e ao adolescente nas instituições municipais e estaduais deixa enormemente a desejar”.

Se é certo que o valor das custas e emolumentos não podem ser utilizados exclusivamente em atividades de assistência social, mais certo é que a vedação constitucional não alcança os trabalhos sociais ligados diretamente à função jurisdicional.

Esta é a razão de nosso alerta para que não prospere a proposta de redução da atividade de nossos juízes, seja ela retirada ou de pronto rejeitada, considerando que os chamados “serviços sociais” que prestam – não têm apenas essa natureza social – vão muito mais além, enquadram-se, na Constituição, nas garantias inalienáveis dos cidadãos.

50 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007

As sucessivas e bem-sucedidas iniciativas do Ministério Público e da Polícia Federal, no desbaratamento de esquemas elaborados para conduzir licitações através de aliciamento de autoridades e parlamentares,

embora devam ser louvadas, não escondem violações que estão sendo perpetradas contra a Constituição Federal e contra o direito do cidadão, que, por pior que seja, faz jus a ter sua imagem preservada e seu direito de defesa amplamente assegurado até final condenação.

Em recente manifesto, 12 eminentes advogados criminalistas denunciaram não só a cinematografia das prisões preventivas realizadas, como, o que é pior, o impedimento ao acesso aos documentos de acusação, ao ponto de terem que obtê-los junto a jornalistas, que os receberam de imediato, mesmo nos processos que deveriam correr em segredo da justiça, como determinou o Ministro Cesar Peluzzo, na operação contra os bingos.

Tais autoridades, cuja eficiência na investigação não se discute – houve indiscutível aperfeiçoamento nos serviços de inteligência da Polícia Federal, o que é bom para uma sociedade desiludida com os governantes –, não perceberam, todavia, que correm o risco, todas elas, sem exceção, de serem processadas por danos morais causados à imagem das pessoas, conforme determina o art. 5º, inc. X, da Constituição Federal.

Mais do que isto, as ações de ressarcimento pelos danos morais causados são imprescritíveis (art. 37 § 5º da C.F.), vale dizer, estão todos eles sujeitos, até a morte, a sofrer ações dessa natureza, que podem ser propostas tanto diretamente por aqueles que se julguem atingidos em sua imagem, nestas buscas de efeitos cinematográficos, como pelo próprio Estado, para se ressarcir do que for obrigado a pagar às vítimas inocentes atingidas por essas medidas.

Na euforia dos bons resultados obtidos, o que é de se louvar, repito, esqueceram, todavia, que o direito constitucional é um conjunto de normas fundamentais que preserva todos os cidadãos, em um Estado democrático de direito, mesmo os criminosos, que têm seu direito à ampla defesa assegurado pelo art. 5º inc. LV da lei suprema.

Tendo já, repetidas vezes, elaborado pareceres para as Polícias Federal e Estadual, sublinhando a dignidade e a importância de sua atuação, sinto-me à vontade para alertar quanto a tais comportamentos excessivos, que terminam provocando uma reação negativa da sociedade, ainda que

PRIVACIDADE EDEFESA

a investigação em si mesma seja profilática e necessária à purificação de costumes políticos.

O Ministro Tarso Genro, que é um professor de Direito – recebemos juntos o mérito Judiciário do Tribunal Superior do Trabalho – e que conhece a lei suprema, necessita refletir sobre as possíveis conseqüências de tais excessos, que maculam a seriedade das operações e permitem legítima reação dos atingidos.

O direito de defesa é o grande diferencial entre as ditaduras, onde não existe, e as democracias, que o garantem. Atingi-lo, através de desqualificação dos acusados pela mídia, por restrições ao acesso a documentos ou pela violação da imagem e da privacidade, é, de rigor, lançar sementes de um Estado arbitrário, em um país que luta por firmar sua democracia.

Que os bons resultados obtidos até o presente não sejam tisnados pelo arbítrio na execução das medidas para alcançá-los. Até para não deixar impunes os culpados, pelas nulidades que poderão vir a ser decretadas, em virtude dessas violações.

Dizia Canuto Mendes de Almeida, saudoso titular de Direito Processual Penal da USP, que o processo penal não é formatado para garantir a sociedade, mas, exclusivamente, o amplo direito de defesa do criminoso, que, como cidadão, só deve ser condenado se solidamente comprovado seu delito. Esta é a regra a que estamos submetidos todos, o povo e, principalmente, os governantes.

Ives Gandra da Silva MartinsProfessor Emérito das Universidades Mackenzie,

UNIFMU, UNIFIEO Membro do conselho editorial

ARQ

UIV

O J

C

2007 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 51

52 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2007