revista subversa v 2 n 7 2015
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SUBVERSA
EDIÇÃO ILUSTRADA | FOTOGRAFIA | Caroline Aguiar
GUILHERME PIMENTA | MAURICIO LIMA |
BRENO RICARDO| JORDANO SOUZA | EVANDRO CAMARGO |
SAMUEL H. DIAS | DIEGO DE TOLEDO LIMA|
MAURICIO CHEMELLO |JOSÉ EUGÊNIO DE ALMEIDA|
LETÍCIA MONTEIRO | VINICIUS BANDERA|
FERNANDA FATURETO | RAFAELA MANICKA
ISSN 2359 – 5817
Volume 2 | n.º 7 | Abril 2015
WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA
@CANALSUBVERSA
Subversa | literatura luso-brasileira |
V. 2 | n.º 7
© originalmente publicado em 15 de Abril de 2015 sob o título de
Subversa ©
Edição e Revisão:
Morgana Rech e Tânia Ardito
Fotografia:
Caroline Aguiar
Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados
como autores desta obra.
Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos
textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem
com a realidade.
SUBVERSA
GUILHERME PIMENTA | © CANELAS | 5
MAURICIO LIMA | © O VELHO SOZINHO|10
BRENO RICARDO | © AS MAGNIFICAS REVELAÇÕES DE UM
SUBCONSCIENTE LIVRE| 14
JORDANO SOUSA | © CAMINHOS | 17
EVANDRO CAMARGO | © LENDAS PARAGUAÇUENSES | 19
SAMUEL H. DIAS | © PIERRE | 22
DIEGO DE TOLEDO LIMA |© CORRENTES DA LIBERDADE | 25
MAURICIO CHEMELLO | © VOCÊ SABE QUE EU NÃO SOU DEUS
| 27
JOSÉ EUGÉNIO DE ALMEIDA | © VISITAS DE DOMINGO | 29
LETÍCIA MONTEIRO | © A MORTE DO CISNE | 32
ESPECIAIS
VINICIUS BANDERA | © TINHA UM ABISMO NO FIM DO
CAMINHO | 34
FERNANDA FATURETO | © A SOLIDÃO | 40
RAFAELA MANICKA|© INVERNO| 43
V. 2 | N.º 7 | 15 DE ABRIL DE 2015
EDITORIAL
Este número, para além das conquistas que comemoramos e as
que já planejamos para o mês de Abril na Subversa, dedica-se também
a referir a essência libertária da literatura.
Em Portugal, o mês de Abril traz consigo os ventos libertadores do
dia 25, que marcou a Revolução no ano de 1974, data em que vem à
tona, todos os anos, discussões, manifestações, homenagens e novas
formas artísticas de abordar o momento em que o país venceu a
ditadura salazarista.
Repare que em “abordar”, neste caso, habitam muitos outros
verbos possíveis: protestar, relembrar, questionar, doer, orgulhar, sentir. E,
dentro de “sentir”, mais uma série de outras coisas e por aí fora. Mas a
questão é que, para a literatura, mesmo quando nenhum verbo dá
conta de explicar a luta desmedida pelo poder e pelo aprisionamento
social e individual, ainda é possível reinventar a linguagem, criar verbos
impossíveis, novas formas de palavras, imagens, ritmo e, enfim, expressar
aquilo que não se pode comunicar de outra maneira.
Nestas páginas, o que encontrarão é basicamente isso, maneiras
de dialogar com esta força dinâmica da vida que aprisiona e liberta,
constantemente, desde as mais delicadas sutilezas aos sentimentos e
materialidades mais fortes e concretos. Para nos ajudar, a fotógrafa
mineira Caroline Aguiar trabalhou conosco estes temas e, ainda que
repleta de afazeres acadêmicas, se aventurou por estas belas imagens.
Com vocês, o sétimo número do volume dois.
Boa leitura.
As editoras.
5
GUILHERME PIMENTA
Belo Horizonte, MG.
Canela de pássaro na água enquanto os olhos fixos na vela do
barco procuram algum apoio. O voo é calculado. A ave vira sua asa
direita de lado e o vento carregado de sal performa tarefa bem feita,
consegue empurrar o animal em uma curva perfeita. Canela de
pássaro sente a brisa e nem se atreve a tremer, porque quem avisa o
seu dever à comida perde a oportunidade de comer. E para quê, me
diz você, vem um pássaro sem maldade pousar em um barco em bela
tarde, senão para comer?
Tarde bela, sim. Azul que contrasta com o branco da vela e,
acima dela, o predador arrasta asa e cerra os olhos analíticos ao
convés. Ao invés de se apressar como da última vez, dez minutos entre
mastro e ar fez-se muito bem – e quando é que não faz? Um tempo a
mais e nada acontece. Quase o impulso vence e a ave desce no susto
em direção ao chão.
CANELAS
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Mas não. Desta vez mais tenso, o pássaro mantém o bom senso e
espera por alguma ação. Desta vez o tempo lhe deu razão. Saído ao
vento, o dono do espólio olha em volta e bota o pé em cima da caixa
que os olhos de predador almejam, enquanto a pata o firma com fervor
e atenção.
Caixa azul.
O azul é o mesmo do mar, mas neste não pode o pássaro
simplesmente entrar em um mergulho. E olha que ele se enche de
orgulho ao piar sobre seus feitos, um sem número de jeitos de pescar.
Mas por que então toda essa fixação pela caixa azul, se para o sul tudo
que se vê é mar? É maldade, porém pura realidade, que a refeição é
mais segura quando o peixe já não é vivo para nadar. Talvez quando
ele era mais jovem e delgado; agora ele vem voando meio de lado e a
canela sempre sente mais gelado o ar.
A vida segue em frente, você sabe, e quem não se adapta bem
cabe o próprio fim também naquela caixa.
O peito abaixa até a asa se deitar. Meio sem jeito no convés, o
homem firma os pés e olha o infinito. O dia é bonito, a ave bem sabe,
mas não é possível que este estranho animal fique ali parado até que o
tal dia se acabe.
Será? O tempo passa lá e lá, e o enfado é indiscutível quando um
apito corta o ar. É daqueles de pena arrepiar, não fosse a cena em
seguida. A ave tem a oportunidade de sua vida quando o homem de
média idade segue o som barco adentro. O apito, que não foi fraco, foi
sim aviso sobre algum momento. No alto e no centro, o pássaro estava
sozinho outra vez.
Hora de descobrir se a resposta para sua escassez de comida está
ali. Há um mês, sem esperança em voo de despedida, ele avistou o
azul, não tão natural quanto o mar ao sul, sendo aberto pelo animal
quase nu. Lá dentro havia peixe cru, quando ele morre e ainda não
perdeu seu frescor; quando ele não luta mais, mas ainda mantém todo
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o sabor. Uma bela truta que de cima da vela um exímio caçador
reconhece tão bem. Naquele dia também a ave pousou e foi além.
Dona de si, quis tomar o peixe a força, como tanto fez no mar. Só que
dessa vez não era o azul, e sim um homem nu a quem tinha que
enfrentar.
Faz um mês e o abdômen ainda dói.
A espera valeu e o pássaro está sozinho desde que o homem
desceu. Escondido atrás da vela, deslizou devagarinho quando
percebeu que não havia mais apito. Patas na lona, canela firme, a ave
estática esperava que algum som lhe viesse à tona.
Bom, o animal continuou lá em baixo.
O coração quietou o faixo e lhe permitiu ouvir os próprios passos.
Uns dois foram em falso e lhe falta agora a concentração, de quase
botar para fora sua última refeição — dela mal se lembrava. Nada
acontece, nada. Pata depois de pata, esquerda e direita, tudo em
ordem para que a caminhada fosse feita com cuidado. Caminhar, sim,
porque faz muito barulho voar de lado. A caixa parecia ser mais baixa
vista do alto. De perto, seu azul não lembrava em nada o mar; mesmo
assim, ali estava a solução. Enfim!
Alguma coisa porém estava errada, uma informação que lhe
faltava: como abrir aquela caixa? É fácil para o outro animal, que em
vez de asas tem dois membros que parecem pedaços de pau com
ganchos no fim.
Contra patas e canelas fracas, dá pena até em mim.
Em um pulo, nela ela estava em cima. Não estava em clima de
esforço, a dor da fatiga crescente em seu torso, e bicar lhe costuma dar
enxaqueca – ainda mais se contarmos o nervosismo, que sempre deixa
a boca seca. Mas pássaro não é rico, não tem braços nem tem dente,
portanto não lhe resta nada além do bico – nada que lhe viesse à
mente. E ave bica baixo quando quer. Fica um barulhinho qualquer que
até brisa disfarça. Só que a caixa azul parece carapaça. Impenetrável.
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Bica-bica que fica mais alto que brisa, dá dica para as ondas que
tentam competir. Elas também ficam para trás. A bicada aumenta de
volume, um pouco mais de cada vez.
Um erro de estratégia, pois bem. Erro comum, porém, quando
ficamos sem paciência. Assim, totalmente distraído, o pássaro não
percebeu a emergência.
Os tais ganchos do outro animal o acertaram com violência e a
ave foi jogada para longe, sem rota – a asa de lado forçando
cambalhota. Sem saber se estava caindo ou voando, conseguiu firmar-
se no ar, dois palmos da superfície do mar. Subiu num voo em círculos
porque voa de lado, recuperando-se do enjoo e do estômago
embrulhado. O dono da caixa acompanhava com seu olhar a nova
rota baixa, ele e seu mau-olhado.
O pássaro vestiu seu rosto magoado em resposta àqueles olhos
que diziam para ficar longe do que é meu. Ou seu, mas nunca da ave
que não é dona de nada. Agora, qualquer lugar onde haja sinal de
lona é zona proibida. O pássaro perdeu a oportunidade de sua vida, e
agora é esperar o dia em que o mar vem lhe levar.
Será?
Claro que não! Se um pássaro tem um coração que bate, ainda
há, antes que o tempo lhe mate, razão suficiente para lutar.
O mergulho de lado foi diagonal, capaz de assustar qualquer
animal com tamanha determinação. O coração bateu nas asas, bem
quando o bico chegava para o ataque. Aquele animal enorme de
araque tentou seus ganchos, com tanta lentidão que a ave deu a volta
antes deles terminarem sua rota. O homem girou, mas quem se
importa? O pássaro não, pois seu coração é bem mais forte. Não
importa que voe de lado quando se é tão determinado.
Humilhado, o animal tentou de novo, e essa tentativa eu louvo
por ter sido mais consistente. Foi um golpe diferente, mas de resultado
igual. Mal o animal se recuperou, o pássaro investiu em golpe fatal,
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golpe direto no rosto do tal inimigo. No susto ele gritou, dançou e
recuou, tropeçou na caixa azul. Com o impacto ela caiu e se abriu,
enquanto o animal sumiu de costas na água.
E o silêncio.
O silêncio da vitória.
Depois de tanto tempo, a oportunidade de sua vida. Que alegria!
Com mais água do que o mar em seu bico – jeito que eu também fico
quando faminto – o pássaro que agora é rico caminha até seu prêmio.
Mas em um milênio você não verá comparável decepção. Seu
coração ficou bem pequeno ao saber que ali dentro não havia
pescado. O conteúdo tinha sido trocado! Ao invés de peixe fresco
havia uma porção de cilindros, algo pesado. Tudo errado, tudo. O
pássaro sentiu ódio, lógico, mais salgado que o sódio do mar. Decidiu
sua volta ao ar, mas não sem antes usar seu bico.
Esse cilindro é de furo fácil. Deve ser por isso que estava seguro
por carapaça. Esperava qualquer coisa a sair dele, menos água.
Corrigiu-se para não se trair: não é água, é algo amarelo e amargo.
Não lembra nem água de lago, que também tem a sua cor. Pelo
menos não era tão ruim o sabor. E os venenos não são bons. Pena que
não era nada perante a cena que imaginou: uma caixa com peixes
frescos.
O cheiro, o sabor, e a brisa amena. Mas é hora de ir embora,
voltar para seus restos.
De novo o tédio.
Mas não! Ele está diferente, percebeu quando a última canela
passou a corda que segura a vela. Aquele líquido é remédio?
Ou é milagre ou ele está medicado: ele agora voa reto, e é o
mundo que está de lado.
GUILHERME PIMENTA é designer e escritor, poeta e romancista com diversos
livros auto publicados. Possui o blog Sobre Pessoas, onde escreve textos de até
quinhentos caracteres. Mesmo sem ponto nenhum, prefire ir direto ao ponto.
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MAURICIO LIMA
Novo Hamburgo, RS.
O VELHO SOZINHO
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- Posso usar esta cadeira? – perguntou o velho sozinho
- Claro – respondi.
Ele prontamente
sentou ao meu lado
Eu havia imaginado
que ele pegaria a cadeira
e se sentaria em algum outro lugar
Aquilo que estava de fato acontecendo
eu não conseguia imaginar
Desespero e solidão transbordavam em sua voz,
eu,
como há muito já havia transbordado,
só fiquei um pouco desconfortável,
irritado,
pois só queria ficar
só
Comíamos em silêncio,
tentei pensar em poesia,
ver uma outra coisa que eu não veria,
que não diria,
mas a realidade era avassaladora
O velho sozinho
sentado
comia
Acho que ele só queria
sentar ao lado de alguém
tanto quanto eu
de ninguém
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Parecia abandonada
um bando de nada
nadando
quase afogada
Olhei de relance
Ele parecia emburrado...
Ou seria
enrugado?
Parecia que esperava
que algo esperasse por ele,
mas não aparecia!
Começou então
a sugar a carne
que estava presa
no meio dos dentes
Era uma sinfonia
coerente
com toda aquela gente
presa aquele lugar
Sem me despedir,
com um aceno
com a cabeça,
meio não dado
meio não visto,
levantei
e fui embora,
como se sugado por entre os dentes
daquela tarde vazia
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A minha cadeira, vazia,
o faria companhia,
não fosse ele não estar lá,
o velho
amigo (?)
Eu estava com tanta fome
que me dava azia
Na minha cabeça
eu já tinha comido,
mas sequer havia feito o pedido
MAURICIO GOLDANI LIMA é gaúcho da cidade de Novo Hamburgo. Professor,
músico e poeta, amante e incentivador das artes. Escreve desde 2007, mas
participa de publicações em revistas gaúchas desde 2014. No momento,
trabalha para o lançamento de seu primeiro livro de poesias.
14
BRENO RICARDO
Belo Horizonte, MG.
AS MAGNÍFICAS REVELAÇÕES DE UM
SUBCONSCIENTE LIVRE
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De repente o mato virou gramado! O parque malcuidado onde
eu me encontrava, tomou ares de guia turístico e eu me senti o mais
rico viajante. Relaxei e ri, perdi o equilíbrio de mim mesmo, enquanto
fugia das angústias desse mundo demasiadamente real. A minha mente
se esvaziou quase por completo. Estive sem problemas e pude ver o
quão belas são as nuvens de algodão flutuando no céu como eu
flutuava na terra. Éramos bem semelhantes, porque os dois éramos a
leveza e a liberdade do recriar-se sem dificuldades. Elas pareciam
saídas de um desenho animado; essa textura se expandia e chegou a
transformar-me a mim e ao caminho por onde ia. Era um caminho
mágico, como nas lendas da Idade Moderna ou ainda como os
clássicos da Disney. Continha pedras brancas que brilhavam como o sol
que nelas refletia seu poder e beleza: uma sutil extravagância; um
exclusivo show de magnificência!
Eu as amei, principalmente, porque estava com o coração livre
das paixões do passado e despreocupado quanto às do futuro. (É assim
que eu sempre estou, atordoado na angústia do não-ser, afinal, o
pretérito e o porvir nada mais são que o se iludir). Estando no presente
como o mais puro dos selvagens, pude desfrutar o vão mineral e ele me
satisfez profundamente. Nesse caminho mágico de aventuras surreais,
eu pulei um calango grande como um jacaré. Ele não quis ser visto
quando o olhei de ré – e transformou-se em uma raiz sem sentido, ali no
chão: raiz sem árvore, como o louco que não desenvolveu seu
potencial de loucura.
Depois recaiu uma normalidade sobre tudo e foi tão de repente
que me perguntei se na verdade ela não veio sobre o nada,
preenchendo-o de suas mesmices, mas... Não!; não é dada disso! Eu
estou mentindo, perdão! Em verdade em verdade vos digo que,
aproximando-me de casa, me preocupei com a minha mãe e avó que
lá estavam. As duas não poderiam saber de toda essa maravilha que
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Deus me revelou em seu mundo comum! Ter-me-iam por drogado,
louco ou quem sabe um profeta como os bíblicos mendicantes.
Estava imerso em tais conjecturas quando me vi em casa.
Arregalei meus olhos que estavam baixos e disse algumas poucas
palavras (é absolutamente dispensável lembrar-me delas). Então, entrei
para o quarto e me deitei. Assim foi que me pus a entrar nas notas das
músicas que ouvia, tornando-me um com elas. As sensações ímpares
somaram-se e potencializaram as muitas imagens aleatórias de minha
mais tenra infância. Eram pedaços de chão, uma vasilha, um colchão,
essas coisas sem graça, juntas e misturadas, se combinando e
recombinando formando algo demais contemporâneo. Balancei minha
cabeça com as mãos e sucedeu-se que me movi energicamente com
a maleabilidade de uma borracha (ou seria leve como um papel?).
Não sei ao certo. Fato é que ondulei na apreciação de meu presente
interior.
E mais tarde, dormi. Foi positivamente um desmaio, já que nada
mais vi de que viesse a me lembrar. Meu inconsciente estava
descansado depois de revelar à consciência, tudo o que guardava em
sua caixinha de lembranças e recalques.
Então, o celular despertou e, como todos os dias, saí para o
trabalho.
BRENO RICARDO escreve poemas, peças teatrais e crônicas. Já foi diretor de
um grupo de teatro amador; possui três livros publicados on-line; e,
atualmente, publica crônicas no blog da Capela Anglicana do Bom
Samaritano, além de poemas e pequenas reflexões em sua página no
Facebook.
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JORDANO SOUZA
São Gotardo, MG.
CAMINHOS
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tropeçando nas pedras
do meu bairro antigo,
percebi como um estalo
de duas línguas famintas
que o caminho era apenas
para ser seguido, sem medição,
sem lógica concreta.
caminhos são feitos pelos pés,
a mente apenas os interpreta.
JORDANO JOÃO BATISTA DE SOUZA escreve desde a adolescência, já publicou
vários poemas em blogs e revistas digitais, tendo alguns textos classificados em
concursos. Atualmente o autor se dedica aos Haicais e poemas sobre o
cotidiano. Depois de passar por Goiás e Brasília, voltou a morar em Minas
Gerais, onde continua escrevendo.
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EVANDRO DO CARMO CAMARGO
Paraguaçu Paulista, SP.
LENDAS PARAGUAÇUENSES
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I - O amedrontador
É sempre difícil falar do passado. A memória nos trai e lembramo-
nos do que melhor ou pior nos convém – dependendo do grau de
saudomasoquismo do momento. Mas há tempos venho pensando em
algumas figuras que fizeram parte de minha infância e juventude e que
sempre, de uma maneira ou de outra, punham-me desconsertado, uma
vez que tudo que é alheio ao que se convencionou chamar
normalidade causa estranheza. Como nos informa Drummond em seu
belíssimo conto “A doida”, toda cidade tem seus doidos, mas são eles
de matizes tão distintos e possuem tais e quais particularidades que não
poderiam jamais ser postos num mesmo balaio.
O primeiro desses vultos tão especiais que me ocorre é o de um
ser que até hoje não sei se existiu deveras ou era fruto de minha
imaginação infantil; advirta, contudo, que dois ou três amigos, já
grandes – porque em pequenos nunca mencionáramos tal figura –
afirmaram tê-lo visto, assim como eu. Tratava-se de um homem
estranhíssimo, cuja idade devia correr por volta dos 30 anos; possuía
uma cabeça descomunal, com ralos cabelos castanhos bem claros mal
cobrindo a testa enorme. Trajava mais ou menos à moda de Bruce
Banner logo após voltar da terrível transformação em Incrível Hulk, qual
seja, uma calça de brim bege pela canela com a barra em frangalhos,
uma camisa surradíssima de mangas curtas, também tirante a bege,
talvez com um xadrez bem desbotado e quase imperceptível ao fundo,
sempre aberta bem abaixo do peito, que era vermelho e, à distância,
parece que áspero, como a crista de um galo, crestado que era de sol.
Seus pés, a exemplo da cabeça, eram igualmente desproporcionais de
grandes em comprimento, espessura e largura. Uns pés atualmente
quase desusados, mas dos quais havia razoável monta à época,
quando não constituía novidade alguma perambular descalço pela
cidade.
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O curioso era que o tal não era alguém palpável, conversável,
convivível. Sempre que o via, estava ele atrás de um alguma árvore de
tronco grosso, de modo que, no mais das vezes, o mais que víamos era
parte de sua hedionda cabeçorra, a observar-nos sorrateiro.
Amedrontador. Parece que se locomovia a pequenos saltos; sim,
saltitava. Semelhava, por vezes, alguma espécie já extinta de elo
perdido entre um pássaro e um ser humano – não me esqueço de uma
versão de O médico e o monstro do Piu-piu e Frajola em que o primeiro
dos dois se transforma em um pássaro monstruoso ao beber a
famigerada poção.
Que me lembre, via-o sempre em lugares onde havia crianças –
normalmente, perto da quadra do GEP, meu querido e inesquecível
colégio da 1ª à 8ª série –, observando sem nada dizer ou fazer. De
repente, que é feito do homem? Sumia como que por encanto. Pra
onde ia? Onde vivia? Teria família? Que teto cobria sua cabeça? E seu
quarto, sua cama, seus pertences... Mistério profundo. Como profundo e
misterioso é o coração humano.
EVANDRO DO CARMO CAMARGO é colaborador frequente da Subversa
e dispensa biografia.
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SAMUEL H. DIAS
Muzambinho, MG.
Pierre
23
Despejando seu ódio, fazendo assim com que os laços se partam, eu então troco
as letras por imagens e elas me retornam sentimentos.
Assim como crianças que nos dão um motivo a mais para guardarmos as boas
lembranças do passado.
O Pintor, define as mais belas cores para capturar ao máximo a bela arte
daquele momento.
Caracóis azulados caem de minhas mãos e afogam-se na areia doce.
O Que eu posso desejar partindo deste momento.
A grande torre começa a desmoronar lentamente.
Desistir absolutamente rumo à loucura.
Ser individualista.
Aos poucos vai me abandonar para não cobrir seu pequeno coração com
minhas manchas.
Eu desejei por algo em algum momento da minha vida?
Mas isto não é recíproco.
Nem ao menos as pessoas que gostamos...
Vagarosamente desaparecendo entre a névoa criada pelo meu coração.
Contando os segundos para dormir.
Sono eterno, pasmo.
Por favor, não deixem este céu ainda mais azulado.
Voltando para algum bom momento...
Um laço é criado de forma que nos tornemos apenas um, a esperança é cruel.
Vamos nos ver ao menos uma última vez, antes que...
Eu me fecho em um mundo onde suas palavras mergulham em trevas,
transformando as boas lembranças em um monstro que nos devora.
Bebendo desta fonte de pessimismo e a cicatriz incurável novamente volta a
arder, dentro de um frasco azul...
Em algum momento eu realmente estive vivo?
A figura encapuzada e sentada em uma cadeira empoeirada ao meu lado,
começa então a digitar meu nome em sua máquina, ouço engrenagens...
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Cada gota de sangue tem um valor perdido e os ossos brancos ficam em minha
mente.
Eu me dissolvo neste poço de mentiras
Lentamente.
Adeus e obrigado.
SAMUEL H. DIAS
25
DIEGO DE TOLEDO LIMA
Joanópolis, SP.
Cansado, sensação que representava perfeitamente meu momento.
Mesmo assim insisti no caminho, apesar das negativas de pessoas próximas.
No exagero daquele calor os passos prosseguiam lentamente, vencendo a
poeira da estrada. O chapéu de aba larga e o sapatão de trabalho duro,
sinônimos de suor e superação.
CORRENTES DA LIBERDADE
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Perdi as contas de quantos obstáculos já havia superado, assim como o
número de poemas lidos nas semanas anteriores. Aliás, números não importavam
mais, nem frações e estatísticas.
O céu azul me ajudou a esquecer de detalhes de uma vida, dramatizados
na hora anterior dentro de um carro, a caminho do parque. Cansado da
dramaturgia televisiva preferi a vida real, em traços instantâneos de paixão e
tristeza, sentimentos tão próximos e ao mesmo tempo distantes na alma humana.
Viajante solitário, acompanhado do silêncio de uma estrada qualquer,
perdida no tempo contemporâneo: Vá em frente rapaz!
Advindo de uma pessoa externa soou como música em meu peito,
acompanhado dos latidos de cachorros nos sítios próximos.
Homem livre, não tinha raiz fincada em lugar algum... Diferente daquele
arbusto que localizei encostado numa cerca. Lembrei-me de uma antiga poesia,
entoei a despedida e fui em frente:
“É aí que estou acorrentado por mim mesmo à terra que sou eu mesmo
Pequeno ser imóvel a quem foi dado o desespero
Vendo passar a imensa noite que traz o vento no seu seio
Vendo passar o vento que entorna o orvalho que a aurora despeja na
boca dos lírios
Vendo passar os lírios cujo destino é entornar o orvalho na poeira da terra
que o vento espalha
Vendo passar a poeira da terra que o vento espalha e cujo destino é o
meu, o meu destino
Pequeno arbusto parado, poeira da terra preso à poeira da terra, pobre
escravo dos príncipes loucos.”
(O escravo – Vinicius de Moraes)
DIEGO DE TOLEDO LIMA é técnico, engenheiro e servidor público estadual.
Andarilho e cronista, com ênfase na vida do campo e natureza. Autor do livro
“Crônicas Mantiqueiras”.
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MAURICIO CHEMELLO
Porto Alegre, RS.
VOCÊ SABE QUE EU NÃO SOU DEUS.
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Eis que coloquei um pé para fora de casa e fui.
subi a rua e passei pela padaria e fui
quando vi a sua casa eu parei
as janelas fechadas
o cachorro dormindo
e o silêncio gritando
baixei a cabeça e fui
dobrei a esquina saltando o meio-fio
quando alcancei a praia
eu não parei
entrei na água de sapatos
caminhei até tocar as mãos
triste constatação
eu não conseguiria nunca alcançar o outro lado vivo
então voltei
desdobrei a esquina manchando a calçada
levantei a cabeça e fui
quando revi a sua casa eu reparei
as janelas estavam abertas
o cachorro latia...
...eu bobo te vi
e você me reconheceu
todo molhado de amor.
MAURICIO CHEMELLO é Mestre em Teoria da Literatura pela PUCRS, com estudos
voltados à área da Escrita Criativa e Estética da Recepção, e Professor de
Oficinas de Literatura.
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JOSÉ EUGÊNIO BORGES DE ALMEIDA
Maragogi, AL.
Desfiz a barba com pressa. Vesti-me que já tocavam a campainha. Visitas a
penetrarem no meu mundo, a invadir tudo, as perguntas que exigem respostas, o
sorrir às piadas sem graça, o obrigar meu corpo a fazer sala e eu fora dali, longe,
ausente. Várias fugas ao banheiro na desculpa de dores de barriga, o meu
refúgio de hora a hora a enfrentar-me refletido ao espelho, sem graça, apático.
Coubesse eu no ralo da banheira e lá ia eu na água quentinha até a fossa e num
murro, abrir a tampa e fugir dali todo sujo de excrementos, mas feliz, em plena
liberdade. Mas voltava à sala cheio de covardia a aturar o cunhado que só boca
aberta a dizer merdas, eu a rir em anuência, a concordar com as suas conclusões
ilógicas, anulando-me só para não prolongar a conversa. Ele a mudar de assunto
para outro sem interesse algum, a aturar as suas lembranças da meninice da qual
VISITAS DE DOMINGO
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não participei e ele a descrever em todos os pormenores tintim por tintim,
buscando nomes que não conheço em situações que não vivi. Bebi uma garrafa
inteira daquele vinho tinto alentejano que tanto gosto, aproveitando a distração
da minha mulher tão entretida nas lérias do irmão prolixo. Elevei meu nível de
tolerância à custa da vinhaça. Maravilhosa pomada. Já conseguia tirar partido
de tanta conversa inútil, ou seja, sorrir como bom ouvinte sem ouvir porra
nenhuma, refugiando-me dentro da minha cabeça, nas circunvoluções frontais,
numa cadeirinha que lá tenho reservada para o meu volumoso traseiro. De lá
consigo enxergar além dos homéricos falantes e só suas bocas se mexem sem
produzir som algum, num doce diálogo de surdos. Esses subterfúgios são cômodos
e providenciais, neles vou entrando cada vez mais profundamente dentro de
mim, naquele aconchego, como um porto ansiado numa tempestade, onde se
joga a âncora e não se quer mais velejar. Encostar os costados na preguiça dos
tempos e simplesmente ficar. Numa exclusão de mim próprio que às vezes
assusta-me por não conseguir achar uma explicação que seja transmitida por
palavras e que possa ser aceite ao comum dos mortais que me cercam nesta
vida de merda.
Visitas fora, aconchego-me no sofá e pura e simplesmente, não
penso em nada, fecho os olhos e adormeço. Tão bom.
JOSÉ EUGÊNIO BORGES DE ALMEIDA é médico e começou a escrever há quatro
anos, com 64. Nesta jornada, já reuniu 39 prêmios em concursos literários diversos,
publicou o romance juvenil “Uma Luz no Fim do Túnel” e está em fase final de
edição de “Labirinto Eterno”, finalista do Prêmio SESC 2014, a sair pela Editora W5.
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LETÍCIA MONTEIRO
Guaratinguetá, SP.
sei que enxergo além de uma pele;
eu sei
que cada passo desesperado,
cravando trilha nos dois pontos
do mundo, de um barbante,
do meu quarto,
me trouxe até aqui.
Eu te adoro
em suas vísceras mais sujas — e se pudesse, nelas
A MORTE DO CISNE ou COMO HEI DE AGRADECER, MEU QUERIDO,
POR ME CONCEDER ESTA DANÇA?
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encharcaria
meus pulmões; ah, respirar
a cópula do céu com a terra!
— Vísceras. O diamante no barro.
Você me juntou o sangue à carne. É um alívio
como quando os homens viram
o mar
novamente fechado; apreciar a morte
dos mais nobres
inimigos! ou apreciar
a tão estranha
liberdade — e eu te adoro
no afogamento de seus ombros
no canibalismo de seus olhos.
Te ofereço minhas cicatrizes. É o que restou
da estrada: poemas inchados na pele.
Ademais, empresto-lhe a dor da minha língua, uma reticência
do corpo. Toma: devolva quando quiser. E espero
que você me furte
o que não consigo revelar
— E o que de você me atravessa?
Até onde te alcanço no horizonte?
LETÍCIA GABRIELA MONTEIRO é estudante de Letras na USP e pretende estudar
adaptações literárias para o cinema infantil.
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VINICIUS BANDERA
TINHA UM ABISMO NO FIM DO CAMINHO
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Rio de Janeiro, RJ.
Ele chegara à ilação de que era o momento de voltar, mas não sem antes
cumprir o que se propusera como missão. Nisto consistia o seu dilema. Já divisava
o objeto de seu desejo, o qual vinha perseguindo lograr havia anos, mas, entre
ver e ter, tinha um abismo. Como transpô-lo? Nisto também consistia o seu
dilema. Voltar era só dar meia-volta, como no quartel. O caminho do retorno era
muito mais dilatado e demorado do que aquele exíguo espaço que o separava
do que viera buscar. Não obstante, ir em frente pressupunha atravessar o abismo
(pior do que atravessar o deserto). Não sabia nem ouvira dizer quem o houvera
conseguido e como. Ele passava os dias com os olhos presos à outra margem,
tendo que procrastinar o seu desiderato. Se o seu olhar pudesse servir-lhe de
ponte; congeminou certa vez. É como alguém que, nadando através do
Atlântico, da América para a Europa, chegando nas cercanias de Lisboa, dá-se
conta de que uma inexequível providência há a obstar que alcance os poucos
mais de mil metros derradeiros; daí, vem-lhe à razão a alternativa, não se sabe se
pior ou não, de tentar voltar. Para ele, a volta não seria tão dificultosa, mas, como
no caso do Atlântico, não conseguiria concluí-la (por suposto, tal inferência
parece óbvia dada à nímia limitação física humana). Não por uma questão de
tempo. Gastara quase todo o seu tempo útil de vida inútil em ir em direção ao
que colimara, deslindando ali e acolá, sempre tendo um norte cartesiano. Para
voltar seria menos penoso, pois já conhecia os recônditos do percurso, embora
tornar-se-ia mais pesado, porquanto teria que carregar o incomensurável fardo
da frustração. Adentrar aos confins da terra prometida e não poder prosseguir...
O pouco tempo que lhe restava era-lhe suficiente para viver o que viera buscar,
mas com esse abismo à frente o tempo estava-lhe esvaindo como uma
hemorragia que ele não sabia como estancar. Não há como parar o tempo,
donde se conclui que não havia como parar com a sua hemorragia. Só lhe
restava tentar vencer o abismo intransponível ou voltar. Não conseguia entrar em
Lisboa, então fazia-se mister que retomasse. Já não aguentava nadar os mil
metros e alguma coisa, mesmo que não houvesse a impossibilidade de que
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falamos; aguentaria voltar através das milhares de milhas? Moisés morreu
instantaneamente. Deus concedeu-lhe a clemência de o tirar do dilema de não
ter como ir nem voltar. E a ele, haveria um deus a adjudicar a morte em seu favor,
sem dor nem desespero, como se tratasse de um sono do qual não se acorda? O
caminho da vinda, por mais sacrifícios e armadilhas que lhe tenha custado, fora
um bálsamo diante do momento que se lhe apresentava. Se dependesse de sua
vontade optaria por não ter chegado próximo de seu objeto, a ponto de sentir-
lhe a presença, a despeito de que ainda não lhe discernisse o ponto exato em
que se encontrava. Preferia continuar indo a uma distância tal que não
imaginasse tão extensa ela era, mas com consciência de que tinha que ir
seguindo, seguindo, seguindo... sem nenhuma previsão de quando chegaria o
momento de parar, pois já se sentia próximo do que viera buscar; tomar-se-ia
premente, pois, perscrutar mais um pouco para um ponto, menos para outro, que
parecia ser por ali. Como um navio que estivesse se preparando para atracar ao
cais, ou um avião circulando para pousar. Imaginem um avião nessa situação e
sem poder aterrisar. Era o que estava ocorrendo com ele, guardadas as devidas
proporções. O combustível acabando, a hemorragia incontida. A decisão tinha
que ser tomada estando ele premido por situações análogas: lanço-me ou não
por sobre o abismo, e como? O como era tudo o que obliterava a sua decisão.
Pouso no mar (se houver) ou em uma estrada, um terreno qualquer extenso e
plano? O avião não tinha combustível para voltar nem para alcançar um
aeródromo alternativo. Ele não tinha tempo (o combustível maior dos seres vivos)
para voltar; morreria logo no primeiro terço do percurso. O avião cairia ou
pousaria sobre um local plano que talvez pudesse encontrar. Ele, esvaecido pela
sua humana condição agônica; como pular sobre o abismo? Vira umas árvores
por perto, espaçadas umas das outras. Pensou em fazer de uma delas, ou mais
de uma, uma ou mais de uma, vara. Já assistira a competições de salto com
vara. O atleta vinha correndo com uma vara na mão e, em dado momento,
fincava-a no chão e se projetava para além dela, ultrapassando uma altura de
alguns metros, não sabia precisar quantos, caindo incólume sobre a areia
acolhedora. Pela televisão, ele estimava que se tratava de uma altura
equivalente a três ou quatro homens enfileirados na vertical. Quanto ao abismo
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que se dispunha a arrostar, não sabia presumir quantos dezenas de homens
deitados no sentido longitudinal seriam necessários para cobrir o seu diâmetro. O
seu tormento aumentou quando ele, em um ímpeto de desesperança, fez-se
uma pergunta cabalística: se eu por um milagre qualquer ultrapassar o abismo,
conseguirei alcançar o que vim buscar, a que dediquei quase toda a minha vida,
ou não? Sentou-se no chão, olhou para um e outro lado, para trás, levantou-se e
andou por perto, indo e vindo; simplesmente não soube responder à pergunta
que jamais se houvera colocado até então. E se eu chegar mais perto, implica
deduzir que isto me facilitará a travessia? De perto há mais possibilidade do que
de longe? Mesmo que haja, pode ser que surja um abismo justamente quando se
está a poucos passos do fim. Noventa e nove por cento foram vencidos, mas era
no um por cento restante que estava o que buscava e o que buscou por toda a
vida. É como o gol no futebol: de nada vale a bola bater na trave dezenas,
milhares, milhões... de vezes; se não entrar, não é gol. Sem gol não há vitória. Sem
vitória; viver pra que? Sim, ultrapassar o abismo... Que abismo? É físico, como
aquele que ele tinha visto em um antigo filme de cowboy? Não importa se
concreto ou ideal, para os fins colimados que para si traçara parece-nos que um
abismo é um abismo, isto é, algo intransponível ou de quase impossível
transposição. Se alguém não consegue fazer algo, está diante de um abismo.
Abismo é então mais do que um obstáculo, empecilho, estorvo. É, é, não poder
fazer algo, pela simples razão iniludível de que é impossível fazê-lo. Niestzsche
afiançou que somente voa sobre abismos quem tem vocação de águia. Aqui
estamos tratando de seres humanos. E o nosso ultrapassar não se refere tão-
somente a façanhas metafísicas, mas também, sobretudo, físicas. Ele, o que
precisava sobrepujar o abismo, poderia dizer que as uvas estavam verdes e
desistir de seu intento. Como estaria confortado se assim o fizesse, gastaria o
irrisório tempo de que dispunha a sobreviver por ali mesmo, ou então voltaria
devagarzinho, sem pressa de percorrer o retorno, porquanto não haveria mesmo
tempo de cumpri-lo ao menos em sua terça parte, já o dissemos. Mas não podia
desistir. Não era coisa sua. Algo sobrenatural, ou pelo menos insólito, instava-o a
tentar prosseguir. Talvez fosse mais confortável desistir sempre que um abismo
maior nos impusesse a tanto. Pareceria ser como um avião - novamente ele; será
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que já pousou ou se esfacelou? - desfazendo-se de combustível e carga para
aumentar a sua velocidade de cruzeiro diante de uma emergência surgida de
inopino; quem sabe alguém passando mal a bordo. Mas o ser humano tem coisas
e sentimentos, principalmente estes, que lhe não deixam impune se deles se
desfizer. Entendemos o espírito de seu aforisma, Nietzsche, mas o nosso problema
é outro, precisamos ultrapassar o abismo por baixo, em seu plano térreo e
telúrico; a águia não faria isso. Conseguiria tão egrégia rainha dos céus dar um
salto - não voar - e chegar sã e salva à outra margem? Nem nós, nem você,
grande pensador do caos. Voar é um apanágio dela, a natureza lho deu; quanto
a nós, reservou-nos o atributo de nos mantermos eretos e andando, quando
muito, correndo. Também podemos vencer o abismo voando, basta-nos não
mais que tomarmos um avião. E aquele do qual vimos falando: já caiu, ou
pousou? Já se foi o tempo suficiente para o seu combustível findar. Nunca
saberemos de seu desfecho nem o dessa pessoa que teve por contumácia a
missão de sobrepujar o abismo para, com isso, contemplar, ou não, e até viver,
ou não, o litigo que ele próprio lhe arrogara como destino; não se sabe o que era,
pode ter sido uma verdade axiomática.
VINICIUS BANDERA é formado Ciências Sociais (UFF) e História (UFF). Pós-
graduado (lato sensu) em Filosofia Contemporânea (UERJ), Sociologia Urbana
(UERJ) e Política Internacional (Fundação Escola de Sociologia e Política de São
Paulo). Mestre em Ciência Política (UNICAMP), doutor em Sociologia (UFRJ) e pós-
doutor em História Social (USP). Professor universitário e autor do livro Liberalismo e
cientificismo: conflito de paradigmas na correção/proteção de menores na
virada do século XIX para o XX (Editora UFRJ, no prelo), que foi escolhido em
seleção nacional. É autor de centenas de textos literários e científicos. Publicou
Náufragos da fé, pela Laço Editorial, Deus fez a noite para matar o dia pela
Editora Autografia e a coletânea Mulheres da vida (Editora Multifoco, no prelo).
Finalista no Prêmio de Literatura SESC/Editora Record categoria conto 2012/2013.
Segundo colocado no concurso nacional de literatura Prêmio Lima Barreto,
promovido pela Academia Carioca de Letras, com a coletânea de contos
intitulada Volver a empezar (2014). Diretor, roteirista e editor de longas metragens
em HD digital.
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FERNANDA FATURETO
Uberaba, MG.
O sol interrompia a solidão disposta no quarto, entre frestas da persiana. O
corpo da mulher nu refletido no espelho voltado para a cama antevia a cena
que poderia ser refeita horas antes. O dedo ereto tocando-se em movimentos
circulares enquanto o rosto explodia num vermelho ocre e pernas se comprimiam
mais para perto de si, numa tentativa repentina de aplacar a devassidão de
sentimentos que lhe chegavam. Um corpo mergulhado numa rotina automática
da cidade. Comprimido entre estações de metrô, boletos bancários, filas de
cinema, estacionamentos, bitucas de cigarro. Entregue à maquinaria pesada de
fazer render o dinheiro de uma empresa multinacional com suas mesas de
trabalho, cadeiras ergométricas. Um corpo que ao chegar ao apartamento, ao
atravessar o campo minado entre a portaria e o elevador, esperar minutos para
A SOLIDÃO
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chegar ao seu andar, encarar vizinhos desconhecidos como uma batalha, abrir a
porta com a chave que emperra; trancá-la, tirar os sapatos de salto médio, botar
Billie Holliday pra tocar, olhar-se nesse mesmo espelho cúmplice pela espera
ínfima da morte rítmica. Um espasmo.
Um corpo se entrega à cama emaranhada como se lhe restasse
apenas mais uma noite. E as pequenas convulsões provocadas por cada toque
lhe devolvem a dignidade de estar ali, presente, como corpo, enquanto avenidas
e ruas não perdem o movimento usual. Da janela aberta se ouve buzinas e cheiro
de gasolina em contraste com o doce do perfume que se espelha pelo quarto
numa mistura inusitada que a excita. Estar sozinha aquela noite era o grito de paz
que não se podia ouvir na presença de outro. Em meio a cada espasmo, as mãos
percorriam os lençóis e se contraía a boca. Lampejos de lembrança de um algum
amor lhe vinha à memória, jantares, sorrisos, diálogos interrompidos.
Sozinha era como se pudesse reconstruir seu passado de sonho e
medo em um quebra-cabeça que permitia limpar todo o vestígio de erros.
Preparava-se para enfrentar outro dia com o corpo reestabelecido e íntegro. Um
corpo adormecido recuperava a paz. Da janela, avistava-se o sol surgindo e seus
feixes a convidavam para a manhã. O mesmo sol que acordava e lhe
desnudava a vista: nua entregue ao sono que feixes de luz vinham atiçar.
Acordar esse corpo que descobriu o torpor era ressignificá-lo diante de cada
instante de automatismo vivido no dia anterior. Descobri-lo ativo em meio à
engrenagem.
Ao acordar e silenciar o ocorrido noite adentro, a mulher tornava-se
cúmplice de seu próprio gesto. Abriu os olhos e de longe se olhou no espelho. A
imagem refletida garantia a ela outro tempo possível: do reconhecimento íntimo
de si contra o qual o cotidiano esbarrava sorrateiro. O sol brilha mais forte. Depois
do rompimento algo perdura.
FERNANDA FATURETO é autora do livro de poemas Intimidade Inconfessável
(Editora Patuá, 2014), colaboradora da Revista Samizdat e bacharel em
Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero
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RAFAELA MANICKA
Curitiba, PR.
Hoje o dia amanheceu frio. E, logo que acordei, percebi o porquê. Tudo
bem, o inverno está chegando, a tendência é ter os pés gelados
mesmo. Mas todo mundo sabe eu sei que o meu inverno dura o ano
todo. Pelo menos desde o dia que perdi você.
Eu ainda não sei como tudo aconteceu. Não sei se foi erro meu ou seu.
Provavelmente meu. Ou seu, porque sabe, essa mania que tenho de
colocar toda a culpa nas minhas costas eu ainda não perdi. E,
provavelmente, não vou perder. Acontece.
Aprendi que a natureza das coisas é exatamente essa: a gente vai,
enfrenta tudo, conhece alguém bacana pra te ajudar a enfrentar esse
tudo e no final... Ah, no final cada um vai pro seu lado e você continua
INVERNO
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indo e enfrentando tudo. Problema quando esse tudo agrega uma
pequena carga emocional, né? É. Não sei você, mas eu não sei lidar
direito com os meus mais sinceros sentimentos.
Tanta gente já tentou me mostrar que não vale a pena ficar
alimentando lembranças de um passado nada ruim. Se me perguntam
de você, digo que está bem, quando na verdade nunca mais soube da
sua vida. Fiquei sabendo por aí que você já me esqueceu. Prefiro não
acreditar, por mais que eu tente. Mas na minha cabeça, tudo o que a
gente passou irá permanecer e, um dia, você vai voltar correndo e
dizer: "eu me enganei".
***
Esquentou um pouco. É que preparei meu café, sabe? Na verdade, já
até arrumei a cama pra dar aquela sensação de que você continua
aqui; que não foi embora. Lembro das risadas que a gente dava
quando contávamos um ao outro o que sonhamos. E das broncas que
recebi por sempre estar com o pé no chão. Ah, os beijos de bom dia, eu
guardei todos. Eles ainda são seus.
Estive pensando e, hoje, nem que seja só hoje, eu vou te procurar. Nem
que seja em um livro, uma música ou um outro alguém. A saudade me
pegou de jeito, preciso amenizá-la.
Sabe aquele seu livro de adolescente que eu tanto debochava? Então,
eu já folheei umas páginas algumas vezes, e confesso que me
surpreendi com as palavras. Sabe, coisas do tipo "A dor pode até estar
te machucando hoje, mas algo melhor do que aquilo que você já teve
está te esperando. O ontem já passou, não adianta ficar pensando no
que não deu certo. E o amanhã nunca se sabe. Vai que sua grande
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chance de mudar tudo isso está bem ao seu lado. Dê uma olhada,
perder o que nem se tem você não vai." a gente não lê todo dia.
***
Resolvi pensar um pouco em mim. Comecei pelo rosto. Tirei a barba que
um dia você tanto criticou. Dei um trato nas minhas roupas também. Já
não estava pegando bem aquela camiseta que te servia de pijama.
Dei pro cara ali, tá vendo? Ele tava passando frio. Afinal, ainda é
inverno. Mas é aquela coisa, consegui encontrar uma maneira de
amenizar os meus pés gelados. Bom, não só os pés.
Encontrei uma pessoa, sabe? Às vezes o que a gente realmente precisa
é de alguém que se importe. E acredite, eu também me importo. Sei
que o que a gente teve foi rápido intenso, mas eu tô feliz com esse meu
novo rumo. E eu consegui te deixar um pouco de lado.
Encerro por aqui a minha rotina de escrever sobre você e para você.
Um dia, eu sei, as lembranças vão insistir em reaparecer. Mas aí o
inverno já vai ter passado e não vai ter tanto problema.
RAFAELA MANICKA é formada em Publicidade e Propaganda pela
Universidade Positivo e, desde 2010, possui o “Amanhã tanto faz”,
projeto literário onde posta textos que escreve sobre a vida em suas
diversas formas.
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Edição e Revisão:
Morgana Rech e Tânia Ardito
Recepção de originais:
Colaboração especial:
CAROLINE AGUIAR