ror (age de carvalho) livro

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Page 1: Ror (Age de Carvalho) Livro
Page 2: Ror (Age de Carvalho) Livro

" ,

. :N0' contato inicial eomc trabalho de Ag~de Carva-lho, parece depouca valia tentar vinculã-lo com excessivaprecisão a alguma dss tendências recentes da poesia bra-sileira. Fato que de resto 'só apresenta vantagens pois, se .por um lado, encontrar traços' que permit~ a. inclusãoem um conjunto, 'via de regrafacillta a aproximação, porourm, tende a.simp1ifiçá-Ja, toraanda poprert\énte aca-

,nhada a amplitude da leitura e:all obra, 0 à v6ntade, adisplicência, o achado entre 'súbjto e casuàl, o eventual

, humor de um trocadilho lá o seu tanto gratuito, o relatode episódios que não ultrapassam os limites do pessoal, 'a transcrição pura e simples de situações orais toram com-pondo ao longo das duas últimas décadas um panorama .

· de diluição em que erasempr~ bern-yindo mais um poe-ta e seu tesratn db çotidiano. E bem verdade que es~a si-' ,mação dão foi ex€lusiva, mas concemrou muitas atenções. 'Talvez o melhor da época, na maioria 'dos casos, não este-ja ai, mas também. não está rigidamente ligado a algumaoutra tendência.-, .Entre esses casos pode-se com certeza incluir o de Agede Carvalho, .(')C),uenão quer dizer que sua poesia não deixevisíveis seus parentescos, ainda ~ue is.to ocorra d~ modo

'~.àsvezes bastante énv.iesadQl.otítulo ArqUItetura dos os-SOi (tríplice título de urrrpoema.jie uma pane qe livroe de um livro), a presença recorrente da pedra e um'poe-ma dedicado ajoão Cabral de Melo Neto podem de ime-diato sugerir cenas associações, No entanto, o poema "AI-

-quitetur;! dos ossos" já se inicia CO/Ila conjugação de cons-trução earrebatameuto no verso" 'Edifico furioso esta ma-nhã"~; e a pedra está eorn notável freqãêacialigada à som, 'bFa e à indag:J,çao.1Se há um movimento de associação e I '

afastamento em relação a certos marcos literários, movi-• mento que em si i11jfnina uma produção PQétiq, há tam-'· bém outros movimentos tão ou mais im~onantes.

Seguindo' sua trilha, a poesia do autor de Arena, areia,apresenta sensíveis mudanças no percurso entre seus pri-meiros e seus mais recentes poemas. Um. discurso mais 10n-

, 'gó, um d~curso ínadS i1ilfl.amadoc~d(l!lJ pOUÓl>a pOl!lCOlu,gár a u~a maior contensâ'o, a uma màior 'discrição. Üar-ranjo dos versos, um ou outro neologismo, taras manipu,lações gráficas permanecem como marcas expressivas daluta com as palavras. Em outro âmbito, ainterrogação fla-grante e veemente, as imagens' sucessivas e violentas re-cuam diante da sugestão e,suas ressonâncias, da elipse eseus entreabertos espaços ..E possivd arrolar constantes te-

i I ! . \

IraI •

3:30--

ROR(1980·1990)

A redução no preço deste livro foi possívelpela co-edição patrocinada pela Secretariade Estado da Cultura de São Paulo.

L({] LivrariaL({] Duas Cidades

Page 3: Ror (Age de Carvalho) Livro

· .--..---~-"'" -

AGE DE CARVALHO

ROR(1980"1990)

desenho de Tbomas Kussin

/

Page 4: Ror (Age de Carvalho) Livro

(1980-1990)

Equipe de realização

Projeto de capa I ilustração: Moema CavalcantiProjeto gráfico: Silvia Massaro

Revisão: Herbene Mattioli

Assessoria editorial: Mara VallesSecretaria editorial: Gisela Creni

Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) ROR

Carvalho, Age de, 1958-

ROR: 1980-1990 I Age de Carvalho. - São Paulo:Duas Cidades; Secretaria de Estado da Cultura, 1990.(Coleção Claro Enigma)

BibliografiaISBN 85-235-0014-6

1. Poesia brasileira L Título.11. Série.

90-0891 CDD-869-915

Índices para catálogo sistemático:

1. Poesia: Século 20 : Literatura brasileira 869.915

2. Século 20 : Poesia: Literatura brasileira 869.915

Copyright © Age de Carvalho

Direitos desta edição reservadosà Livraria Duas Cidades Ltda.

Rua Bento Freiras, 158 - São Paulo01220 - Fone: 220-5134 I 220-4702

Page 5: Ror (Age de Carvalho) Livro

PEDRA-UM(1990)

Page 6: Ror (Age de Carvalho) Livro

o CÍRCULO na areia, o

que nogrão degrande

há,

sim sens, não nensa fala sem sentido

que éisto: menos queisto, isso

Ao meu filho, Pedra [9]

Page 7: Ror (Age de Carvalho) Livro

MARAHU REVISIT ADO

alegria de águaruivo ruído meninocirculando pela sala,

FILHO,

De palma em palmaabre-se

a bananeirailegível, as reconciliadas

portas da cabana, o círculoem novos círculos de água

que a pedra sonora inaugura

vê: cílio que se arrastae queima

vírgulacontra a luz

De palma em palmaofertado instante presentefloresce um imaturo diálogo

do ramo calado das mãos

(10) [ 11)

Page 8: Ror (Age de Carvalho) Livro

PAI, uma edradistantepara chorar,

um argumentado líriojacente, sede clarano jarro sem som,e esta conversa arvoradasobre a graça do branco -

"jóias damobilidade' ,

(in Marianne Moore)início da primavera

[12]

A CAMINHO

Do grande Verão, ãa

abre a porta, saúda:

o fumo de rosasdo atriurn parricio,

a contrabandeada estrela síriaque te acena Elena,

guerranos cabelos de Louise

torres de álcool folhas d' alba palmas abertas no sempreTerra!terra parente nos sapatos de Elias e Abraão

Saúda e agradece

Rernida, consoladauma pedra

infartada sobrevoa o coração

[13]

Page 9: Ror (Age de Carvalho) Livro

[ 14]

o MOTOR DE BUDAÀ BEIRAde si, mira

o rio contemporâneoem Gars am Kamp

passando em ando, paisagemSeguimos a seta - a Leste,para o altoleonado de nuvens,

lentas frases do barroabençoando o caminho

De segunda, GrandeMarcha, roncandosobe

a montanhao pequeno Daihatsu

[15 J

Page 10: Ror (Age de Carvalho) Livro

[16]

o PANAMÁ, a gravatafulva-murmurantede algas, esquinas

PASSAGEM

para a visita tardiaà rue D'Ulm: estrelasvarridas do gabinete,verões após, por ti Era julho

floresciam pedrascarregavas a sombra de um rioo Afogado de abril

(se abril era, dataincerta, Marte) Chamavam-nos

agosto, norte, ninguémverões, por ti,Após Irreconciliáveis

I

II

[17]

Page 11: Ror (Age de Carvalho) Livro

UNGARETII ROMA VIGIADA

com a outra buscaaquela, estreladaque se abreao diálogo

Em guarda, quatro ciprestescenturiõesfulguram sobre a cidade

Se una tua mano schiva Ia suentura,

Guarda: ninguémte espera com a mortalhados Sete Mártires Gregosnem te abrigarãodesconsoladas catacurnbasescarlates, a rosa brancatombada à pedra

Da oliveira,mais gue sombra, tenscom anhia

[18] [19]

Page 12: Ror (Age de Carvalho) Livro

11Monikl1 Grond FAZER COM, FAZER DE

A CURA, e sua auraesvaziada de abismo

.O abismo - o íntimoascender

Estar, entreestrelas e pedras,interrompido

um estrelar-se infinito(de boca

contra) ao beijo cruda queda

Resto deervas, tempo, entre dentesdetém-sea palavra-refém,

réstia

[20] [21]

Page 13: Ror (Age de Carvalho) Livro

[22]

LENÇÓIS, BA

I I·

III

NEGRO O. Ainda aqui faloo abismo,

o mstantedentro da queda

mas

já não guardaso osso,o parente óleo noturnocarregando um destino,o nome

manchaque no centroassombrado do corpoamadurecia a dúvida -

Onde,por falar em pedras,

fala-se diamantesob o leito abertodo rio deflorado

Onde,

ela, em sia resposta

o que na pedraé estar,sobre teu corpodeita fala

[23]

Page 14: Ror (Age de Carvalho) Livro

[24]

REVENDO P.P. CONDURÚ CORES

IIII I no olho

louco de AlfonsoFou'hallFerson, o Velho

Negrores, blau deesfumado lume,breus

raivas do brancoà luz ácidada estrela doenteque nos dá companhiaentre grades e ciprestescontra a mente - quemte ouve?

Alvorada amão entrevista em Colorsentre gradesentre-laçando confuso um gestopássaro, cruz

o mundo nas mãos

Com a chave rebeladatens a arte, a alvaporta de cilícios,torna-te o que és: santo,

flor, dragãodedo-

revólver

Hóspede de hospícios

[25]

Page 15: Ror (Age de Carvalho) Livro

[26]

HOLDERLINDA MORTE as festas,o aneltodo dourado-diâpara o inéditode uma vez

Sombra e sombra -todo o negropara os dedosestioladosde Deus

Pro-ferea palavra,

referea ferida

[27]

Page 16: Ror (Age de Carvalho) Livro

A FAIA VERMELHA DE VINCENTUNA DUDA SE VUELVE MEMORABLE

a Teresita Segui

Era a pedra errada, repetia

Nr. 562 - Fagus silvaticaLaciniata,o nome da árvore

E: "sob proteção legal"

Uma verdadeinstaurada pela dúvida(ensolarados pomos de pedra)

Floral,cega-purpúrea,cor-

rompida irmã, aberta --epara sempre enferruja a navalha

entre remorso, ervas

Era a pedra repetia

[28] [29]

Page 17: Ror (Age de Carvalho) Livro

IRMANAMENTE iluminao leão do fósforo

KópTJ, KópTJ, for tbe six seeds of an errarThe Cantos, LXXIX.

[30] [31]

uma boca, restos de conversaSarurno (guarda o anel

que não tivemos, guarda-o, sombra, por nós)

aceso o tabaco da remissão

fumaça

Cerchio d'ombra (errorde assombrado lustro,

Esplendor!)levanta-se aqui agora

tarde um braçomão humana manchaacenando da rurbaa dizer do bardo, dez latas

atadas ao rabo, o quenem mais interessa: inocente

Ese corrompe, ó

em círculos,dragões no ar, tempo

*(Zerou, morreu, ex -

aqui agora tarde- seis figueiras se erguem

pelo erro do velho Ez)

Page 18: Ror (Age de Carvalho) Livro

PESSOA NEGATIVO DE RICARDO REIS

.;

Agua-quando, pedr' estarÓ de fogo ouro ou: o

Bocas roxas (nãode vinho),

sobre a testabranca cresce a erva

Não te chamo Lídia: nada. sabemos sobre o rio das coisas

(32) [33]

Page 19: Ror (Age de Carvalho) Livro

OCUPADO. Sinais inter-calados de conversa nenhuma nemsombra de voz,

a cóleraenroscada na serpente espiralada,ramo de cifras ardendo nos dedos

para Sy/via, Benedito,Max e Miche/

Estar, não-estar: três estrelasde espera zumbem por ti,três estrelas se negam soando,chance de ser

APÓS circular o Ring -

Ó de

[34]

ouro,alta esfera de louros

se

ocup-

ocupado. Tentar de novo

- éramos nós agorao real radiante anela coroar esta mesa rouca

do Salettl-Pavillon, solredor de férias em áustrias austeras,

a contemplativa tília de perfumados pensaresdando sombra a vozes,

uma conversa entre árvoresem julho cafés e o poema (mais tarde)do verão

após

circular o

Ring

[35]

Page 20: Ror (Age de Carvalho) Livro

[36] [37]

POR MALCOLM LOWRY REDOR - redorfala exférica, andara, andar emcírculo

devorando-se

Duplo, cambaleantecai o mundojunto à pálpebra:

*(Ar, ar

doze árvores em chamasrespondem' 'Presente", alguémtrouxe o barco na garrafa,não estás sozinho

contra o muro -beijamos asombra,pronunciamos cinzasobre aexperiência da pedra)

Hélices de álcoolventiladores do inferno,um corpo de gasese destino (não estás sozinho)entra em passagem

*Pedra,pedra-umde ser e sombra,

e desceurna

Page 21: Ror (Age de Carvalho) Livro

BRASILIENSIS I: LOGOMARCA

Quis

o design da canoao diz-que do riscoa Estrela do Nortehévea letra, mata helvética

para a marca' 'Desenho da Selva"quando duas luas irmãs, reluzunindo

no arcose desintegram:

o alvoacerta a flecha

[38]

ROMA, ver notas(Villa Borghese não visitada,

pedra-alma de Adriano, cosmos)

ou: revê-Ia via Greenaway(enviando postais ao morto)n'A Barriga do Arquiteto, ofigo envenenado da simetriareproduzido aos pares

do ventre auri-luminosode Xerokopia, o Duplo

última geração, anno 1986

Outras anotações: cinco laranjasfunéreas alourando a mesa do hotel,

Keats' house (por M.i.)42 graus, noites brancas

[39]

Page 22: Ror (Age de Carvalho) Livro

OUTRO TOM: OUTONO

Desflorecer, aflorar contra -

bruno rorejanteapontao cabelo do futuro,

outro tom outonoa abraçar aviolentada cifra púrpuraquando declino

(falo, far-falho)ramos em flama: f,

fls,has

[40]

(AUSGANG, a saída

Uma portase oferta

experientepara outra porta,aberta

(por dentro,onde já não ardeum passo sobrea neve

ouo próximo

último, sem despedida)

para outra

porta)

[41]

Page 23: Ror (Age de Carvalho) Livro

DESATOU-SE, o último diado Ano - buquês na bocaa celebrar o mortomestre em desastres, dezembrado

Também por nós,festejando, berramas flores da gravatacristal-orvalhada

[42]

POR INNSBRUCK

A cidade em volta -a cidade, entre o colarnorte e o últimodialeto do branco

Estrela ferida,adeus, aqui estreitaso que é nevee parte do esquecimento

[43]

Page 24: Ror (Age de Carvalho) Livro

JUNTOS. Todas as velasse apagaram, aceitemos

Confia: filho, não seio caminho - só tensuma palavra, estaminha

[44]

IN ABSENTIA

E: ainda uma chance -uma pedra se refolhapara o repouso,o instante ésempre presença

Ror de erros,recolho repetidoso que ainda me pertence

[45]

Page 25: Ror (Age de Carvalho) Livro

[47]

NISSO SUMA

que ascendeuse reveloue esqueceu

Quantas vezesainda por repetir?

ponhamos uma pedraEstão comigo, todasde segunda mão,não classificadas

ó anelcírculo mancha ervassombra relva irmãestrela erro tumba

por companhia

[46]

pedra pedra pedra

Page 26: Ror (Age de Carvalho) Livro

ARENA, AREIA(1986)

Page 27: Ror (Age de Carvalho) Livro

Ao meu pai, JoséAo João, meu irmão

A Max Martins

DE AREIA, era a sombracoroando a pedraausente,a ferida do nada

Assoprada sementecelebrada sempre em ti,

a caminho (semti, tusêmen,

rr-repartida suma: um)

De areia era a sombra,de areia aobra

[51]

Page 28: Ror (Age de Carvalho) Livro

DIZ-QUE, e era a dúvidado retornorolando errada na boca

(uma pedra baixando o corpo,uma palavra perdida

baixando à pedra)

THE AGE OF THE OAK

A idade do carvalhoaflora real na pedra(ágrafo círculo da pedra,a sombra e a diferença)aponta para o deserto,declina

o ramo do nomeonde espera uma data,a resposta

dentro, buscandoa abismado caos do instante,o centro,a zoada mais íntima, do início: a

[52] [53]

Page 29: Ror (Age de Carvalho) Livro

BOCA,

a minha e a tua:o ímã das línguas lança promessas,letra-sobre-letra

À vera,a tempestuosa mão da rasurasubjaznegra no plural dos pêlosà procura do selo mais profundo,

funda

[54]

VERMELHO

Tua,de seda e feno

no transe da metáforaa fenda soletrada-sol,vala de luz, vocabulário

Tua, folhagem. Oolhoalcança o Olho,desce aos infernos:

sonha o cabelo da urna, overmelhoda cifra, a feridano centro da fogueira

Tua, tua

[55]

Page 30: Ror (Age de Carvalho) Livro

MARÇO 22, três anosdepois

Círculo brancocalcinadona pedra - ó,

ainda aquiVives,fora do nome,

todo, ósseo

[56]

A IDADE DO CARVALHO

The age of the oakblossoms out of stone(unwritten circle of stone,shadow and difference)points to the desert,articulates

the branch of a name,awaits a date,the answer

[57]

Page 31: Ror (Age de Carvalho) Livro

[58]

YOU'VE A SEA TO LIESOBRE UM CORPO

Caixa -de-árvore,Terra, cabana

do Marahu - sonoro, assim-falas o claro, o louro incêndiodas folhas, alguma linguagem

Seda de graçacorrompida,és

Leste a água, a flor na pedrasalina,duas juras traspassadas no verão:traçaste

a sentençapalavra a palavra, o poema

Ó

negro, leitocrespo de sombrascircunferido,água difícilque esgota-ralo, poema- toda mensagem

Onde o mestre, a trilhaestrelas? Outras palavras

tocaste, violento:tempo, laser, Tens um mar para mentir,

zen,Não és,

ó negro(azo, azar)

a chave, infinita, mestra

[59]

Page 32: Ror (Age de Carvalho) Livro

OS INCÊNDIOS

(Não cantarei o mar: que ele se vinguede meu silêncio, nesta concba.)

Carlos Orummond de Andrade

How alike are the groans of loueto the groans of the dying

Malcolm Lowry

1.

Via-limite. À beira do abismovazrode palavras, o clarão do nomelavra sua chaga em bocanoturna, esplende em erecta paixão:nome, dois nomes e amantes

(o ideograma sangremo de Sada riscado no corpo bár-baro e defunto? Yvonne estelar luzindo maligna nabotelha do Cônsul, sobre a barranca sinistra? o anjo su-jo de Cass espatifado bêbado às botas do poeta? ou

Tu, tu mesmaD.M., arfando histórica na inscrição amorosa da pedra,furiosos cabelos na tempestade, o ramo transtornadodas mãos sobre o rosto do deserto?)

Nome, dois nomes e amantesexasperam a urna escura para nosso verbo,tanta violência, mas tanta ternura:lume de vero exílio, a morte anunciada

[60]

2.

O solrncide no tanque negro e brilha enforcado entre as árvores,11 sol negro clamando por ti, louco astro subornadoJlirando neste esplendor de Lowry maldito girandoqui aqui

O Vale da Sombra da Morte1111 rc constelações, mancha de letra, o azar

(o mar, ondeo Mar?)

bananeiras indecentes alvoroçando suas pernasrnplarnente às serpentes de pluma: antros

do inferno: as formações cruéis, passando: nuvens

V I ios verbais na paz sonora. A latanulfabeta enferruja sua metáfora,/ltlst cego incendeia uma floresta de vocábulospu lavra-vulcão o estrondo da página

v .spera do silêncio

Aqui, ex

[61]

Page 33: Ror (Age de Carvalho) Livro

3.

Cessam os incandescentes signos da luz

Espelhos espaços claridades: tudoconvertido na turva escrita das pedrasonde piso-conciso hieróglifo

(o Mar, ondeo mar?)

Daqui, acima da tardee seu desastre, dos relâmpagosdestroçados, sobre a grave paisagem(feno tornado ouro, nunca queimado)

euescrevo (meto) gravona pele rnonolíticateu nome incinerado,

Nome

[62]

PEDRA

Erro. Ouro e cinza, aos paresa grande Irmã trafica suas letras

Nada te revela: relvarara, uma palavracega floresceu no caminho,azuluz perene na pedraestrangeira

Ergui-a,levo comigo, lida

Sem resposta(ouro e cinza, aos pares)beijo a pedra,sua testa indecifrada:

"D.M."

[63]

Page 34: Ror (Age de Carvalho) Livro

ENTRE PEDRAS, serni-sombras sob o arvoredo, a mãoofende a falha -

lá,entre o fresco rumor das folhase dos ramos lázaros, Láreino azul-redor:

à luz malina, nós, descobertos

[64J

NEGRO, forceja reconhecer a lajemarcada, conspira contra a cripta:

véspera do nome,véstia da paixão toda paixão,aqui

cresce uma cruz na última palavra -

A ofertada, irrepetida, ir-recusável

[65]

Page 35: Ror (Age de Carvalho) Livro

AQUILES, 1982

"Reúno e recuso: aindanão aceito a oferta,despojado, fiel a este corpoexilado de negro e sudário,

os sapatos apartados do barro,a cruz das mãos assinalandoo coração escuro, o mercadoferal das flores, muros de cinza.

Sim, aberto à relva mais ruivae salina, à cidade incendiadae corrupta do rubro lacre,

onde Heitor, lastro vencidoem defesa ao sítio, abre-meas portas para fundar o mastro. ' ,

[66)

OS JARDINS E A NOITE

Scmoarz ist der Scblaf.Georg Trakl

Os jardins e a noite,graves perfumes da noiteE nada. Nada

As ferasdormem nuas em sua severainconsciência de músculos. Eternasestátuas que ornam estes jardinsesquecidos mas reais: esferas do luto

- És ru,caranguejeira, quem nos percorre

tremenda o corpo, o sonho negroonde da janela a morte grita

Tu, bicho obscuro dos números verdes inscri-tos à pata na parede alva na pele da linguagem na falaobstruída do fogo e do sexo aberto apagando este astroostra que mostro quente agora enquanto as árvores e umcasal e o próprio trópico incendeiam distantes o que restada estação o verão que rola alegre inacessível acima deteus tentáculos rancorosos acima de abril o mais crueldos meses num sopro de ternura que desconheces.Câncer de julho,

são as esfinges que fingem contigocontigo desde a treva do ventre. A luz te fere

[67)

Page 36: Ror (Age de Carvalho) Livro

- Eu te amoAs feras (herasde sono) despertamlentas e lambem-se no euA noite acolhe-nos amorosaE nada,

nada

[68]

MÃE

Eu e tu, sombras aliJorge de Lima

Contigo, contigoem tenebrosa es eradesde a treva do ventre- véspera, as eras do sangue

Cresce, cresçodentro,fruta e nome,a luminosa lepra da idadelentamenteconduz o corpo às hastes do ofício

Cresce, cresceo Nome,mancha e destino,o cabelo da letraerrando rumo à residência da palavra:a palavra crespaque te adora e espera,negra,espera, espera

Ergues a camisa de fogo e crime -Mãe!(escura selva, Inferno)- e Lá me tens, promessa

Contigo, contigoem tenebrosa esperadesde a treva do ventre, amém

[69]

Page 37: Ror (Age de Carvalho) Livro

CUATRO TERRITORIOS PARA JULIO Y HUGO

ou amor, jogos-rituaiscom cadeias de luxo,recintos distantes, flores inúteis

2. recintos com floresde luxo, jogos inúteis,cadeias de esquecimento: rituais do amor

3. ou amorJogosdistantesflores rituais

4. cadeias-circuitorituais de esquecimento

espelhismos

ou amor

[70]

CINZAS, tua bocade sombras, interditada

Pedra sob a língua,errante, ondesempre tens o deserto,esta página, gueto da letraperdida, judeu: K

(Tua palavra, tuamais dura palavra- muda, irmã)

Cinzas, tu-a bocade sombras

[71]

Page 38: Ror (Age de Carvalho) Livro

A LETRA DE SER,

como VIU

Edmond jabês,do oásis -

sete vezesaberto o Livro,sete vezesa face de Deus

em questão:I' être, lettre

[72]

PODER, ervas da palavra

Raro arvoredoaquele que enredaazar e erroà sua meta:

a pedra e a florfraturadas na mesma boca

Aflorar da rocha -promessa, metáfora

[73]

Page 39: Ror (Age de Carvalho) Livro

[74]

É a praia que chama,o mar do sempre, sêmen

o POETA

Vigília, um rio presentevertido e vertenteecoa no fórum original:ruína da careta latina,Eneida incendiada, mortoo dador de fogo, nomen-numen

Aqui, tua aventurade ser, o bêbado retornonadaazul

entre onda e vagaágua aliterada

aqui, o espelho cifradoinformado rostoonde

branco, mira-se o alvo nome- geração amarga do eco,rasto verode

Passa o rio, ex -sub, solitário

razão e erro

Éa prata

o corporal tempo e leitoque chama

vaga onda nada

[75]

Page 40: Ror (Age de Carvalho) Livro

REINCARNA tION

and the street was narroweven for a shadow

seven lives, three poetsblack

catunder the wheels of the cab

scrowlingthumps & squashing death

escaped

and the subterranean river speaks lifehidden

by forceof a fateful wordturned against itself

springs through flat annihilation

OUI inheritance -death & lifelife & death

the three into one word: catblack on white

delivering us

o poema Reencamação/Reinoamasia« tem duas versões, escritas si-multaneamente durante sua concepção, em inglês e português, pe-lo poeta norte-americano James Bogan, por Max Martins e por mim,não existindo portanto uma versão original do poema entre os doisidiomas, constituindo-se ambas independentes entre si. (AC)

[76]

REENCARNAÇÃO

e a rua era estreita para a sombrasete vidas, três poetasnegro

o gatosob as rodasdo carro,

o grunhidoda atropelada & esmagada morte

e um rio subterrâneo diz da vida,reclusa

a pulsonuma palavra azaradavoltada contra si

saltando através da perda, aniquilando-a

herdando-a para nós- morte e vida

vida e morteos três numa palavra: gatopreto no branco

libertando-nos

[77]

Page 41: Ror (Age de Carvalho) Livro

ENTEpara Belo/a e Zeca

~gua,pedrafundarnent~de Tales, habita o ser,Ser de antro: grave,

partes à alegriado primeiro filho, cesariano

[78]

MÜHLAUER FRIEDHOF

Me-dita, a

brancasombra da neve,o nevadesse silêncio, fendido: Trakl

(Arde,arde a folha

forasteira, o lourolatim das folhas,o ce o ventoledordas folhas)

Aberta, apedra interrogada

[79]

Page 42: Ror (Age de Carvalho) Livro

ENGLISCHER GARTEN, MÜNCHEN

a Ingnd Rõderer

Aérea-alumbrada

mão do desastre,

que sobrevoou o verão da frutae se fechou na sombrajovem da pedra,na jura grisalha que nos acolhia

(sem simnem não, poesia)

Arvorada em si, assinadabaixou sobre o exiladojardim, aí,

anônima

[80)

SALZBURG, OUTONO

Fulgor da memóriano tráfico das folhas: quedao passo

e outroressoante neste pátioda Waagplatz, A-I

eco do mesmonome, o

rasto apagado neste pasto de pedras,a mesma sede subterrâneaque conduz ao velho poço(água de norurna mecânicamovendo-se em puro estar ,estanque, o secreto lume do círculoesplendendo fechado em sua ruínade urina e sombra)

Cai o passo(e outro) refolhando o poço

abandonado neste paçoe deito e rastreio

c'o

meu olho, teu olhooo

[81]

Page 43: Ror (Age de Carvalho) Livro

EPITÁFIO PARA PAUL CELAN

após a leitura de Grabschrift für François

Num mesmo outubro, num outro outonotraduzo teu poemafechado às cinzasde Francisco, o anônimo

Rogas da pedragrave o que nela é muda:

Palavra, a que tombou,a-para sempre, rosade ninguém,de tumba

[82]

De boca no mundo, arfaa palavra soterradade razão e chão,

Grund

[83]

Page 44: Ror (Age de Carvalho) Livro

À MERDA. Sem que possas florescer,grita a árvore por ti, muda

Áurea-suja, uma palavra contundidaJura -crânio azulado,estrela - memória cegaà cadelamortano asfalto

[84]

NÃO

Desfolhada, mão-de-sete-erros,jogas no vazio tua palavra

não. Três subterrâneoscelestes, três sinaissobre a selva da letra,palavra

negra, clara: Não,o soletrado, calcinado

[85]

Page 45: Ror (Age de Carvalho) Livro

o salpela mãodo rio-sem

DOIS ESCRITOS DE ÁGUA

para Vicente Cecim

A JOÃO CABRALDE MELO NETO

só dizero que se!e duvido saber,

Vertidono Rio Vermelhoem muroindecifrável: Afoxé-Otun-Obá

resposta -um luxuoso dizer, de vagar sem ondae vaga, fluvial, não aliterado;

um dizer repetido na diferença,barrento, semi-dito, em Não fechado;

Fechado o círculo,outra escritaencerrava Keats,26, numa linha d'água:Here fies one whose nametoas writ in water

ou o não-dito, rios sem discurso,nome por dizer ou dizer empedrado;

dizer sim o raro e claro do poema,dizer difícil e atravessado, com margem

Aéreacamisa incendiada do verão,

corpofuneral contemporâneo, éassimtecido o encarnadorito entre homens, áfricasincomunicáveis?

de erro

[86] [87]

Page 46: Ror (Age de Carvalho) Livro

[88]

Vem,

[89]

CANTO DA URCA

Vem, ó tubaixar à praia

onde outrora era rastodas sandálias negras de Ezra(anno 1885) o alvorado centurião

ó tubaixar à praia, belcompanho: si dorrnetz o veillatz?

Acorda,não dorme, vela -

Vem,baixar os degraus

em febre da pedra, ume um,inscrever o grisalho,o que respira gris-empedrado, letrae letra,lepra soletrada - "A'Z"

nomes contrao funéreo sopro do azar

brancoum barco

cresce, aurora héliceincendiadasobre a praia, ondeoutrora era rastodas sandálias negrasde Ezra

Vem, sigamosalvos

Page 47: Ror (Age de Carvalho) Livro

onde

ou

COBRA

Folha em-folha, entrelaçadosao varo tempoíntimo raro,um em um éramosnós,juventude, num:

era a palavra,a mais alta

que embaixo rastejava à covadefendida por ninguém,

mais alta é a estação,o ereto verão da devora,

ooco da obraenvenenada, palavraque se come pelo rabo

(umem uméramosnós)

ramostensos sobre o grão anel da praiaemblemados contra si contra

um coração de madeiraenredando as toscas iniciaisno lenho torturadoparao olvido,

cobra

a frase barrenta do rioo ir, o vindose ouvia-se inacabada, indo, in-do,

água esclarecida em negrorà margem do conhecimentodo rio, riosendosem solução

[90] [91]

Page 48: Ror (Age de Carvalho) Livro

INTERLUZ. o halo bruno da coroadevora o olho, o sinistro

(Digo: isto é o meu corpoescrito, o doloroso textoentrevisto no fulgor da carne,uma ferida)

Inocência do olhar, restoao sexo,

teu V-revelado - travessia

[92]

SEM SIM NEM NÃO

Tardedemais

A flechazarp

ou

da corda

[93]

Page 49: Ror (Age de Carvalho) Livro

[94]

NÃO ERAM DOISo caminho

da porta ao aberto, doiso deserto entre a areia e o texto,entre arena, areiarastro, rastonão eram dois um

lOstante 'na pedra da atenção,mais

sombra sobrea sombramaisumbria

não

Àluz selvagemde quatro chavesde areia, eis

a obra,jogo de sombras -

[95]

Page 50: Ror (Age de Carvalho) Livro

[96)

PEDRO,

[97)

1937-1983

Arena, areia meu filho, do fósforoaceso num diad'alumbramento perfeito,

In, caminho e campode existência interditada, digoa página destinada,

corpodoloroso de fórum e fortuna,o poema e sua experiência de morte- para sempre

que na língua a-final assombro,ror de erros, àprimeira palestra

Reina sob o númeroardente do nadaque assinalou meu pai,sob a chave que revolvea difícil folhagemneste leito do nome: pedra-umde ser e sombra, urna

de luz, lzz

Reina,reina, rés chão

sob o ínfero pano do exílio,no vinho extinto da paixão,sob seteno éter e secreta cinza,a cada degrau da descida(Era a cidade exata, aberta, clara) -aar

auroara

Aurora, A última queda.

Arena, areia

Page 51: Ror (Age de Carvalho) Livro

Reponds, "absent ", toi-même, sinontu risques de ne pas être compns.

René Char

OUTRA VEZfloresce um comércioentre homens maduros etc

eu dizia, Não tem saída,um corpo jogado azar sem dados possíveis irreconhecí-vel sós e ninguém por nós ardendo num círculo sujo deluz do batismo ó ao réquiem cirúrgico numa mesa deoperação sem saídae tu, Mais dez anosé tudo, fim, fragmentos destruídos diário o poema damorte a vida inteira visto revisto e inacabado, respon-dendo "ausente" sob todo risco a não ser que,

que

Outra vezfloresce etc

[981'

A FALA ENTRE PARÊNTESIS(1982)

Poema escrito comMax Martins

à moda da renga

Page 52: Ror (Age de Carvalho) Livro

ParaMari4 Sy/viae Benedito Nunes

Une amitié, ce n'est peut-êtr« qu'un échange de lexique

Edmond jabês

Eu era dois, diversos?Guimarães Rosa

Page 53: Ror (Age de Carvalho) Livro

Marque d'un signet rouge Ia premiêre page dulivre, car Ia blessure est invisible ii son commencement,

Edmond Jabes

1

Das florestas de Blake aos topos da Ásiaquem, da confusão entre chão e carnecom seu púbis, seu discurso e chamas, QUEMDEFENDE TEU ROSTO DESTE SUDÁRIO INFERNAL?

Teu nome é Não em cio e som farpadossinuoso grafito gravado no muromudo contra o tem o Arfanoturno, o olho do astro na memória

Este é o meu céu: numa bandeira turvaincendeia seus últimos signoste insinua às sombras (que estão nos antros

e subsistem ao gráfico parêntesis:Flechas ferindo-se no espelho. Reflexos

Dança indefinida

[103]

Page 54: Ror (Age de Carvalho) Livro

2

E nós dois, doisfálus críticos, acariciando esta cri taque doura em sentidos, cavernade grades negras, selvade pura escrita, rubrica indecifrada:

(poesia)

teu nome é Não em cio e som farpadoscilício escrito, escrita ardendo (dentro,se revendo), ferado silêncio úmido, se lambendo, lábillabiríntima.. E esta línguade pura estria ávida se desfraldando

lâminae se ferindo, se punindo:

[104]

3

As bananeiras indecentes alvoroçando suas pernasamplamente às serpentes de pluma: antrosdo inferno: as formações cruéis, passando: nuvens

É que vens nu, e as nuvens te amoralçamassanham ecos, sonham o silêncio atrás dos muros

Mais alto a fala do sol de ensiná às pedraste insinua às sombras (que estão nos antros- fendas noturnas)

Claro-escurode linguagens subterrâneas, ânuspara a fala de dois espíritos:

Escrirura,filtro de luz, as marcas inscritas no crânioda palavra, verão de alfabetos esquecidos,sílabas, louras mitologias manchadas no muro

Que existe / insiste escuro para manhãs, amanhos, aventuras:A Ilha do Tesouro, a mala do defunto, o escaravelho

- a falase amofina estéril e lisa, espuma

ao gozo de neblinas

[105)

Page 55: Ror (Age de Carvalho) Livro

4

Aludir, aludo:planto medulas

Meus dédalos dedos de medoprometem contato

Tento. Ágrafa,a marginal vagina

subsiste ao gráfico parênresisMas a mão assinala o teu centro, teu

último grito de ti - de ti, verdadeiramente

[106]

).

Os corpos. Pronúncia constelada pelo amore morte de Faustino, entre a crespa coroanegra

e o teso nervo alojado em olho profundoCorpos, faloe vulva - falo

a silva língua genital dos amantes, galo

Para amar / morrer os corpos falam / falhamUm masturba o outro - confabulame se simulam

não se assimilamPois que a palavra é palha combustível

os corposcom seu púbis, seu discurso e chamas

se consomem

- não se consumam

Ilhas de si, confundem-se no incêndionatural (um come o outro), negam-seno abraço, engastados, em seu idioma encadeado-solo a dos uoces

- os corpos: os sexos

se dilaceram, calam neste mar de lábiosque se abrem, ébrios, e se desdizemou se desgastam nesta praia: esfriam

[107]

Page 56: Ror (Age de Carvalho) Livro

6

Já não há mais sonhos Lá e amamos rastrosgastos no asfalto onde se arrasta a asa, restopútrido de um vôo que exalto e cito, excita-mecontra a parede e ex' ala a vício

fala entre parêntesis

(Negro,negro pêlo caligráfico

que recobre selvagem o sexo escrito,sinuoso grafito gravado no muro:

o SONHO ACABOU

O carro-olho velocíssimo. Os girassóislançando-se obscenos aos fachos de luz,faro luminoso. Na estrada. Seguimos)

[108]

7

Um verde vaginal inscreve-se nesta tarde- a alma de Bashô a contemplá-Ia

duma gavetaParadisíaca musa' ácea, páginaem que me iludo ,escrevo , jogo

planto bananeirasTarde-em gue me acena adolescente, fêmea e pornográfica, a morte

Cinema-camaleão,desvanece-se, desdobra-se invertebrada em laranjaazul, dourado - panorama

. onde o mar esporranas rochas, coxas

pernas seios braços púbis cu cinzelados onde penetro, caulemacio, tenro orifício do mal

azul, adentroconvulso róseo vermelho tremendo

branco branco branco(A rã mergulha no velho container.

Gozo)

E perco a fala, brancoE o próprio branco apaga tudo, as cores deste gozoe o próprio gozoneste poçocala o som da água

A tardefulgura arcaica no fogo de seu próprio pó,incendeia seus últimos signos,

ilumina,rara, um rasto inútil de memória, calendáriogiz do esquecimento, palavra

[109]

Page 57: Ror (Age de Carvalho) Livro

8

Jardim de escrita rara arar (orar) entre 15 pedras

Flechas ferindo-se no espelho - reflexos

(110)

9

Voam e voltam setas neste escudomudo, contra o tempo

Arfaum coração de pedra e de silêncio entre palavrassecas que se quebram

e se quebrantamE neste espelho

neste jardim fechado-imóvelum tigre é que nos vê

(puro-feroz)- não vemos

Nos ouve?Atrás da pele, acaso no oco abafado de fúriae mal, sou o outro

inominável? Azulde Trakl no hospício?

Vozes volam para fora desta frase, corpoe arrebentam-se no turquesa violento do verãoÉs um tenebroso corsário no mar salino da melancolia

É desouvindo que nos ouve, o som negando-nosE assim nos é, nos há: não somos

nem penetramos e sumimosnas sombras desse olhar

da areia

Voam e voltam setas neste escudomudo, neste campo de riscos subscritosonde figura tem nome apagado -

ágora telepáticasepulcro verbal- nesta página metáfora do Silêncio

[111]

Page 58: Ror (Age de Carvalho) Livro

10

Sob a folhagema lua de lábios, as facas interditas

o sub-azul olhar de Lícia M. atravessando-me

Sob a folhagemagora as cinzas pânicas se enrubescemnum sonho de palavras flagelando-se

Sob a folhagem(profusão de letras?) rumoreja o nevo

fendido, o obscuro. Quem fala?

quem, da confusão entre chão e carne- que cova ou boca sinistra conclama o nervo

sob a folhagem?

[112]

11

As bananeirasloucasagora dançam prenhasNão mais às nuvenspúberesmas para espelhos-luas,ensangüentadas

Dançame exibem o ventredesvelam o frustoo roxo cacho de egoísmo

- ;J. nossa gulaeste coágulo

(Mancha andrógina: mastro(fruta) em esfola, foda(gruta) vagináceade pé: dança indefinidaCoreografia vegetal)

[113]

Page 59: Ror (Age de Carvalho) Livro

Nascem aranhas louras destas folhasAranhas-homens, homens-bananeiras. Edos lanhos-lábios nasce o nosso mimosebo e saliva de palavras ínguas

Dançamdançam enlouquecidas, defloradassalientes dançam no vento, verãoazul, as bananeiras alegres

Medusaanã de turvas palmas múltiplasmas pura constatação da real

árvore,contemplação da fix.idade

[114]

12

QUEM DEFENDE TEU ROSTO DESTE SUDÁRIO INFERNAL?(Na câmara escura, o pássaromono petrificava os despojos sobre a rochae teu barroco sexo exposto jazia aprisionadosob tua juventude, a tua pele

a peleque deixaste na praia no último verãoa tua pele secava para outra, e caía

Teu rosto era sereno - não vi)

Estes rastros, estas rotas, estes ritosdos olhos de nuvem, ensangüentadosEstes riscos, estas rugas, estes restosde oceano e de cinzas pela praiaO sentido e a denúncia desta flauta quebrando-seA demência irada destes músculos. A ferida -

Quem defende o sudário deste rosto infernal?

[115]

Page 60: Ror (Age de Carvalho) Livro

13

Uma vez mais a aula das cinzas

Desce a estação traficando a folhagemperdida, o rasto que à tua passagem azula:grafo: a pedra, "Ana"

Traçodo meu gozo aos gozos de Anaiz - Joana

Arcanjode Laarcen

os lábios desta jaulaTeu nome de amargura me instrumentafunda o que me escreve e nego transferindo-medos jardins de mim ao resto de tuas frasesA rendiz das folhas, úmido, o mus o mostra olhao texto amado, o rosto soletradoo frio silêncio tátil duvidando-nos

Oh égua aveludada, juventudearranca do meu beijo este saber, sabor de cinzas!

[116]

(O céu se fecha: chuva na mataO bambuzal fulminado, a centelha estilhaçando a poça- estrada para as estrelas

VIDAo que se funda no corpo, em tiser, na raiz destroçada entre as ervas

Noturno, o olho do astro na memória)

[117]

Page 61: Ror (Age de Carvalho) Livro

- eis-me

1514

Este é ue é o sudário. A teiaem que me escrevo e me aliviado san ue aiante na sua cóleraEste é o meu céu. Numa bandeira turva

Claro ideogramasob a lanterna de lepra, discosolar no dorso amarelo-cadeia: tigre

a Palavrasobrevoadapor astros-constelações de minha vida, uma juraadorada no silêncio

Amargo Id e ígneo tigre por dentro, subescrito risco, seta atravessando atreva

em linho corrompido amordaçando a ilhaamordaçando a chaga, aliciando a carneanavalhada, a luanegra na pele - eiserótico-erosivo, o ideograma da morte

a flor da areia

Tu és aquele que escreve e que é escritodas florestas de Blake aos topos da Ásia

Salto relâmpago satori

Ou boustrophédon dentro de jaula rajada,oco ti' gwer, raio apagado de idas e venidas

O Nome na escritura, eisa palavra, o deserto da páginae o vero mistério da fé

Eiso caminho

o branco que firo, a letrao gueto do signo e suas estrelas

Eis-nos, em abandono

[118} [119}

Page 62: Ror (Age de Carvalho) Livro

ARQUITETURA DOS OSSOS(1980)

I IiIi

Page 63: Ror (Age de Carvalho) Livro

Para Cunca,Maria e Cira

OS QUINTAIS

Para Ruy de Bastos Meira

Page 64: Ror (Age de Carvalho) Livro

Tem uma caveira de burro enterrada no mundo.

Cezar Teixeira

OS QUINTAIS

Os quintais do mundonão estão no mundo. Os quintais- arquitetura da manhã - é a tardeque o corpo não regula

ouum sopro que a terra coagulanoutra tarde banida da esfera.

II

(Um beijo de lepra conduzo planeta:sete novos galos mortos: a goelae a faca dentro do dia.

O Equador é uma linha enfiada na carne da cidade)

[125]

Page 65: Ror (Age de Carvalho) Livro

III

Nestes dias de ódio escurotenho um braço no escudoe a espada na claridade. Tenhoa mão na fronte da noite,fecundando a noitecom os gametas da eletricidade.Carrego no corpo a medula da árvore- bicho de frutos. Batizo a cidade:

Santa Maria de Belém do Grão-Pará,eu te esquecerei na Praça da República,longe do Forte e dos canhões,sem teus ingleses dos alfarrábios da Biblioteca Pública,perto dos Correios e do funcionário,na esquina da Riachuelo,

na I? de Março,na zona.

[126]

IV

Va arei ela inexistência da cidade,por sobre os telhados

(nunca mais pelos da Palmeira,que rescendiam a pão,e hoje resistem noutra tarde) da cidade,

sobre a vida que transpira na pele da idadedos meus 20 anos

de poeta,de aprendiz de arquiteto,menino de sonho

e ossos no universo de um quintal do Norte.

Vagarei soturno por entre as mangueirascom o coração exilado da cidade

(talvez num quintal de outro país),como os gases noturnos despreendidos das usinas de

[castanhaperseguindo as nuvens levando uma esperança operária;

como um homem e outro homem(às duas da tarde);

um homem e seu sonho; umBrasil, um brasileiro.

[127]

Page 66: Ror (Age de Carvalho) Livro

v

(A vida grevana neve do coração. Um homem (com sua vida) bebe.

Ri ,dentro do Bar do Parque.Vinte minutos depois, vai ao banheiro

[e suicida-se',Uma mulher (com seu filho) chora em algum canto da cidade).

A vida greva na neve do coração.

VI

Porém, há um universo de estrelase rosas perdidas num quintal,com seus galos matinais e aromas de café ao fogo.

Outro universo, diverso,os quintais da cidadede cercas paredes e muros: geografia escolar.

Um terceiro, o indigente universo da miséria- sol de vermes -

quintais do mundo (que não estão no mundo,mas naquela barriga inchada da criança nigerianaou da Nicarágua,e, com certeza, dessa que vive no Norte do Brasil),

lágrima de ferro.

Todos, contudo, quintais do homem.Pois, o mundo é grande,o quintal é grande.

[128]

VERÃO

As frutas, neste verão,amadurecem distantes e limpas,embora as máquinas trabalhemsob um vento antigo de besouros.

As máquinas do verãotrabalham ao sol do séculopelos fachos da manhã,ausentes da fruta - cão esférico -

amadurecendo na costa do planeta.

O chão, bandeja de terrana queda do cometa: fruta.O mar é o arcoazul para todas as referências.

O verão é móvelquando a fruta a roda da estação.

[129]

Page 67: Ror (Age de Carvalho) Livro

A CADELA

Caminhava grave pela casa,a cadela.

A cabeça quieta era sua altivezquadrúpede no centro da cozinha.

Caminhava. Os olhos, costelas,o mar de ossos, o coraçãopardo e lento - caminhava.

A manhã debruçava-se pela janela: cristais no pó,o púcaro da china, horas de louçabatendo nas palavras na sala da casa.

A cadela caminhava, dura,secular.

(Domingo dormiaprolongado como um funcionário feriado).

Vivera demais. Descansava à sombra,peno ao quarador.

Sonhava farta, invisível,a cadela azul,nua(o sexo velho e molhado,um caranguejo arcaico sob o rabo).

Dormia, vazia.

Outubro doia longe, na Ásia,Quando a Fuluca anunciou: "A Catucha morreu".

[130]

A ÁRVORE

Sem rumo remo nem direçãonavega a árvore- um silêncio que a tudo atenta - oclusaem seu próprio corpo, lenta.

A omoplata do tempoapóia, plena,

o turvo sonho centrípeto(mesmo quando seu coraçãoé uma revolução contidano escudo do caule), e acena-lhe a eternidade

A árvore estanca-se.Sujeita, a espinha curva-se;as nádegas gastas sentam no mundo

Escura,dorme limitada, a árvore.

[131]

Page 68: Ror (Age de Carvalho) Livro

[132] [133]

CANTO DE GALO

Na madrugada dormida,onde a chama

(agora apagada) do diareclama o fogo das manhãs,um galo canta

(apodrecendo rígido ao passar das horas)

COMPOSIÇÃO PARA QUEM VIVE

A CASA Sob o sol do dia,no sereno do pó lunar,a casa será construída.

De alvenaria, urna casaseca, branca.Dentro do universo (querendo,no mapa), um retângulo vivo que roda,'

roda, roda.

A ÁRVORE O fero martranscorre veloz e mudono interior do corpo: árvore.

Page 69: Ror (Age de Carvalho) Livro

A MULHER A que se quer no mundo,e, por isso, absoluta: tamborque deflagra a luta- seja ao pão, ao amor.

A que se quer no homem,no filho, dividida: uma, violenta,que se deixa entrar, infinita;a outra, explodida em carne tenra.

Ainda, a que se posta em si(como uma árvore ou uma casa),fitando o mundo, definitiva.

Que espera, no fundo, o fim- a que não tem pêlos e é sem asas -,e a árvore é sem sentido e a casa contida

OS CONDENADOS· José, vê:a Terra é azul

(como não foi quando nasci),e o homem pisa em plumanavegando os mares da Lua.

Maria/Pedro, eu te querouma estrela no sonho do capinzal,

minha flor.

[134]

ARQUITETURA DOS OSSOS

Page 70: Ror (Age de Carvalho) Livro

o mar envolta-se musculoso em todos os seus azuisenquanto a manhã crepita quente na areia e por entre ocajual a poucos quilômetros dali. Nada cessa sua existênciaentre a plantação e o homem que agora caminha sozinhoà margem da estrada que leva a essa praia inventada numséculo perdido e próxima das frutas .

.Na praia, uma casa amarela ergue-se sobre o arealdeste inferno.

ARQUITE1URA DOS OSSOS

Edifico furioso esta manhãnascida im rovável or sobre meu ombroplúmbeo de lutas

(uma serra que se move),crescida na vergonha argilosa de minhas unhas empobrecidas

em sua carne arruinada, funcionadapelo motor incessante do mar,iluminada pelo mar do sol.,

e finda pelo último homema tomar lugar no espaço(suicidando-se o meio-dia),nesta praia, infinita.

2

A laranja entrega-se em dois sóis líquidosao sono da urina de amanhã: é o verão da frutaque agora serves sem cerimônia nesta jarra velha e sem estilo;entre o mar e a cozinha da casa, na varanda da manhã,em pleno julho.

[137]

Page 71: Ror (Age de Carvalho) Livro

3

A água, a mulher arrepiou-sena eletricidade do mar. Olhaa linha agora: o azulcostura-se em outro azul.

A Terra é redonda, pensa.

4

alavras: sol e câncer.

como em meu

5

Estando a manhã acabada, sujo as unhas de terra e entregoos cabelos ao sacrifício de cortá-Ias. A barba cresce em desa-cordo com o dia. Espuma o oceano em sua raiva azul. Fre-mem as margens ejaculando para o fim. Cega-se a lâmpadavertical do sol. Amadurece a fruta. Vermelha e amarela.

É meio-dia.

[138]

6

A tarde se iniciapelo sono, e é lenta e brandaa tarde da varanda.

Uma onda(a tarde branca)quebra outra quebra a onda

quebra

7

(Meu bisavô extirpava, de quando em quando,um artelho podre. Penso que deve ter coisade sete dedos no par de pés. Mastudo parecia normal).

[139]

Page 72: Ror (Age de Carvalho) Livro

8 11

Começo a decompor-me aos poucos.

9

A noite vem por ruídose cheiros trazidos do mar.Vem também, inversa

(a noite oriental, meu dia),pela anunciação da manhãe sua própria morte e minha carne rediviva.

Caem-me as mãos, e consigo sentir-me.(O nariz, as orelhas, já os perdi).Depois, na fome do crepúsculo, um homemmagro amaldiçoará a vida, esquartejado:

Ó partes perdidas, ó postasfedorentas consumidas na lepra do mundo!

Pelos bichos da terra,pelos vagos desenhos escondidos no muro, vemarrastada a noite em seus claros e escurospenetrando a casa, violandoo quarto, adentrando meu corpoinexistente feito de vapor, de medo,

sem tudo.O dia afogou-se no mar,desesperado.

Ao mesmo tempo,uma tristeza pânica pisou a planície do meu peito

12

lição de anatomia: não existo

10

Estou cego.

[140) [ 141)

Page 73: Ror (Age de Carvalho) Livro

13

A mulher dorme.Possuo-a pensando tê-Iaem minha branca inconsistênciamas estou ausente e não estou em lugar nenhum.

A mulher dorme.

14

Nada me escurece o rostoenquanto caminho para a entrega de meus ossosà calcinação desta noite.

Porém, minhas mãos queimamem minha própria arquitetura.

15

Espero.

[142]

16

Es eco reaver-me em mim mesmo.

17

Desenterro os ossos pensando reconstruir-mena manhã próxima que pousará absurda nesta praiaà margem do mundo.

Tudose dá sob os reinos da invenção: morro,hoje, nunca concluído (uma escultura na areia),sem ruído;

amanhã,como há milhares de anos, estarei vivo(os cabelos num novo incêndio, o corpoinconsútil no espaço)e, recomeçado,

serei inacabado e breve.

[143]

Page 74: Ror (Age de Carvalho) Livro

OS GUINDASTES

Mãos sórdidas, meus guindastes,nada do que deslocasé rota para a humanidade.

Não é nave nem guiana lâmpada do dia.

Nem rumo tampouco mapado mundo que te escapa.

Não é bússola exatanão é vereda não é nada.

És par sujo e pendularquando ando e sou sem razão.

[144]

Eis-me sem governo:o caminho iluminadoé meu traço inacabado.

Meu corpo de evidênciasestá soterrado sob as pálpebras do mundo: escureço(Dizem,

há guerras em países que desconheço).

(145]

Page 75: Ror (Age de Carvalho) Livro

o corpo na praiaé uma voz insegura embaixo do sol.

o corpo na praiaé uma voz insegura embaixo do sol(como uma fruta pronta).

o corpo na praiaé uma voz insegura embaixo do sol(como um fogareiro morto).

o corpo na praiaé uma voz insegura embaixo do sol(como a pedra-pomes gasta nos pés).

Uma fruta,um fogareiro,uma pedra na praia.

[146]

--------------------------------------------- ._.--------~---

o espaço desocupado em inúmeros azuis:o tempo e o mar: a pratadeflagrada por duas esferas imensuráveis,quase corpos, em seu perscrutar simétrico:meus olhos vislumbram o universo efêmeroonde a morte articula-se em seu triânguloregular de eternidade:

a praia, o tempo,o homem.

[147]

Page 76: Ror (Age de Carvalho) Livro

Homem, querem teus cabelosacesos ao solcomo uma flor condecoradaque chora suas partes perdidas num quintal nordestino

- como um fuzil que o salcome, esquecido.

Aviso-te,virão buscar tuas mechasnoturnas em tarde de fome.(A terra arderá em trezentos sóisegípcios, desentendidos).

E, sei, porão fim a tua fonasciaquando tua palavra - párvoa

e sepulta aos famintos - resvalarpara um túmulo de absurdos vespertinos.

[148]"

l"

Tuas palavras de sono e sonho caem súbitono vasto clarão de pedra do sol,esquecidas de teu corpo que não comenenhuma fome porventura sentida nesta tarde

Em abismo,há muito rolaram tuas espadas da bocasem que percebessem a necessidade delas, . .

feito vegetais.

[149]

Page 77: Ror (Age de Carvalho) Livro

Senão pelo corpo,o sol engendrarialuz, os fogos na carne?

E do corpo,como um sistema de sóisa~~drecidos, apenas uma lâmpada,

. pálida e puntiforme (planta aérea,um mineral escuro na noite do subúrbio),

aquece o coração do homem.

[150J

Corpo, árvore móvelabandonada de raiz, pésindizíveis de tanto rumo.

Corpo, matéria violada na densamultidão que já se aproxima,entre o grito próprio e os pássaros de anunciação,em marcha dentro da manhã incontidapelo chão, proclamando a miséria humana.

[151 J

Page 78: Ror (Age de Carvalho) Livro

Aqui, em meu paísirremediavelmente nordestino e miserável,à luz elétrica de meu século,sob todos os alfabetos do medo e da fome;

aqui.entre o homem e o homem(como dois sistemas totaisnum universo de águas inacabado),

aqui vivo.

[152]

Ai, cabelos do sono,viajo azul aos teus reinos, querida.

Permito-me parvo e inútilnestas tardes de sol

_ caranguejeiras de julho.

o oceano bate longe nas costas de Salinas.

[153]

Page 79: Ror (Age de Carvalho) Livro

Recolho-te dos escombros como quem removeflores num inverno infernal. No entanto,é sob o escárnio incandescente do verãoque te trago à luz por minhas mãos.

Entre o fogo e o fogo,luz, somente.

[154r

Minha mãe morreu aos 48 anos;meu ai, aos sessenta. Uma edra,a cadela morreu dura.

Morreu o João: câncer;o Carlito suicidou-se

(novo novo).O Abílio morreu, nunca mais. A Márcia,a Jane. O Zeca, no Rio.O esqueleto do volkswagen enferrujahistórico numa praia da Paraíba.

(Enfrento prematuro a idadeonde meus dentes estarão num álbum

e perdidos para sempre

(não sei aonde não sei aonde, meu deusl)e terei uma lembrança e uma cadeira,

próxima à janela).

[ 155]

Page 80: Ror (Age de Carvalho) Livro

38, salienta o canoque a vida é medida- inútil o hálito dos anos.

(Cala-me portanto a todomotor que dispare acesoo canto

- ~ toda palavra que lavre o tolo engano:vagina,

cabelo, vapor).

Pois, como a vida,a bala arquiteta a mira.

Turvo, feito cão que a bala desvencilhafeito pluma quando o corpo abranda. '

(O tiro escapulido resvala na lembrança).

[ 156]

Abato o tempoproclamando o futuro e convocando todos os deusesenraivecidos que me invadem diariamente e me levam à rua,os olhos queimando, a carne adormecida.

Tempo,luz miserável, facho de fome, minha vida te atravessa cotidiana e de-sapercebida da fúria com que a recebes - fora de mim, que te obser-vo sublevado, cão odioso, inversão medonha de toda vida. Te amaldi-'çoarei enquanto tua incidência for desprezível - e mesmo depois,quando tu, puto, me tomares o corpo e modelares a horrenda escultu-ra que me quiseste desde meu nascimento. Esperas - esperar, ver-bo de tua criação - com que paciência pelo final que a ação ininter-rupta das tuas mãos em pó fazem vislumbrar em matéria tão fraca.

Em vão conferi as idades e as fotografiasiluminadas por manhãs acontecidas; a vida, recordei-a remota maisdo que havia, e quase morro em tuas lâminas de claridade. Mais que ~tudo, caí irreversível em tua pior invenção, Tempo: membro obsole-to, objeto histórico, inutilidade futura: o passado.

[157]

Page 81: Ror (Age de Carvalho) Livro

Em vãofoi tentada a vida,a vida em todas as coisaspelas quais estive em fato.

As iluminaçõesque do ouro banhavam a casa - estas, esqueci-as todas. No entantoa mim foram legadas, e possuo-as no desprezo de seu brilho louro 'de sofismas. Inconciliável.

A mulhernunc~ me terá um filho. Estou velho em demasia para o trabalhod.a mação - e nada se reiniciará a partir deste meu corpo de obsolên-~~ego:me, resoluto e covarde.

. Principio minha ~~ desolação, no imenso desprezo asmlOhas mãos.

Grave, cai a tarde em seu mármore de abandono

[158]

Agora era o sol que vinha por detrás do muro branco e vinhao céu mais cruel e metálico fundido no azul/cinza/verde claro damanhã reiniciada em calor. A claridade oblíqua, dentro do arcosolar,incidia na solidez pétrea do mar, que era calmo e contínuo, e era in-fjnitamente presente este espelho líquido movendo-se na eternidade.O tempo inexistia, raro. O relógio, feito de areia e vento, rolava ve-loz para fora do mundo, e as idades estavam perdidas.

Um homem de bicicleta, na estrada, passavacomo uma imagemterrível aos olhos do outro homem que observava. Instaurava-se ali onovo dia irreal alas com a hora vermelha na ar anta tem o e ame.

Page 82: Ror (Age de Carvalho) Livro

SETE EXERCíCIOS

Page 83: Ror (Age de Carvalho) Livro

A FALA DIDÁTICAa Paulo Preire

Aqui me detenho, disposto:entre homens, a vida pressupõe a FALA,·mecanismos da boca

_- canto ferial.

Aqui me contento, deposto:entre falas, a vida presume o VERBO,flor acesa na boca

- fogo in/transitivo.

Aqui me enfrento, morto:entre verbos, a vida rompe o SILÊNCIO,exercícios do mundo

- a vera boca do povo.

[163]

Page 84: Ror (Age de Carvalho) Livro

11Tbomas Lee Ml1hon

[164J

o ATORUM EXERCÍCIO PARA JOÃO

Que o mar tenha seus azuise a terra, dois terçosimersos; que o mundo desandeinverso ao berço:o pão é do homem,seja na terra, no sal,no inferno do terço.

Ontem, julho plenoum homem chorava-se inteiroprestes a tomar o avião

(menos os olhos, encenandouma comédia de Moliere).

[165J

Page 85: Ror (Age de Carvalho) Livro

DISCURSO

Há palavras que a boca não falae lutas que o homem desconhece.

Uso da palavra (falha, palha)como vivo delas: sem mecanismos- e intensamente.

Das lutas, conheço algumas,e me desfaço de toda armaduraà dura carícia de suas feras.

Mas,há palavras que a boca não falae lutas que o homem desconhece.

Por isso luto: falo.E enquanto falo a vida é apenas seu turvo incêndio.

[166]

CARLOS

Chego as tuas primeiras idades, Carlos,e a dor que me funcionanão é igual a que carregaste,tampouco semelhante àquela que movea fome do mundo.

Compreendo lutar com palavras,feita de consistências diárias e azuis,e, embora talvez ria como em algum temporiste, tenha gestos, atitudes,dores palavras amores;embora mesmo que chegue a tocar um poemacomo tu, a beijá-Ia com pudore desprezá-Ia usado na boca errada,nada será igual nem parecido.

O mundo não é o mesmo.(Como não será adiante e não foi no passado,a minha infância e a tua maturidade).

Contudo, Carlos,caminhamos.

[167]

Page 86: Ror (Age de Carvalho) Livro

RECADO PARA O NATAL DADO EM AGOSTO

Uma voz não se portacomo se carrega uma alegriaou um filho no ventre(apesar de todos virem em abrile do interior do corpo).

Não se traz a vozsenão pelo outro homemque fala de dentro de nós(não como um filho ou uma alegria),posto que dele partimos para a humanidade,pois o mar não é tantonem a terra pouca.

[168]

PEQUENO INVENTÁRIO POÉTICO À MEMÓRIADE OSWALD

ABRIL

Em Algodoal,abril abria fogopor sobre os rochedos da Praia da Princesa.

OS JOGADORES

Zeca e Mand,em marcha, caíram no matonum sonho de álcool e juventude.

Suas costas riscadas- dois tabuleiros ardidos -eram brigas de galo empatadas na rede.

SÉRGIO BRAGA

.- O onanismo está nas mãos!

[169]

Page 87: Ror (Age de Carvalho) Livro

SOCIALISMO

À noitinha, da praia,o vento trazia ao pátio o mare vozes fuzilando a casa. Discutiam.

Uma guerra com cachaça, samba e Lênin.

EU TE AMO

.Ao todo, doze pessoas. Algodoal elétrica no sol artificial, dormia.Um homem enrolava cigarro. ~éu de gaze e estrelas na janela semestilo. Rede de álcool. Mar preto, olho preto junto ao rosto. Ester eManel. - Dói ... Ester / Manel. Man / Est / eerl pentelhinho grosso, ai,meu amor. Sonho de algodão em Algodoal etérea, rosa de espermana perna de Ester, ai, benzinho, que a Terra roda roda sobre ti sobrenós ai, e não pára não pára a Terra como pára uma revolução ai co-mo pára uma rev ... ai, fermata minha,

lento amordesta noite conspirada no ócio de Algodoal!

PESADELO DE ARRIBAR

Um pé de castanha fica.Vai - se vai! - abarrotado de cachaçae mala o bote à Johnnson. Até, mano,que a lembrança é um músculo estriado do esquecimento!

- Até!

[170J

A ÚNGUA INSÓLITA

Page 88: Ror (Age de Carvalho) Livro

[173]

A LÍNGUA INSÓLITA

o curare é uma florbélica

que brota na boca do homem.

Vermelha,sua crosta férrea;ferina, quando da língua uma lançainsólita, verdenta, surge.

Como a prata, o curareé uma palavra durabatendo veraz no dorso do tempo.

Curare - ticuna, genocídio adiado,vooara,ave líquida, uirari,os rios paralíticos do sangue.

Page 89: Ror (Age de Carvalho) Livro

a José Mana de Vi/ar Ferreira

POEMA COMPLEMENTAR SOBRE O RIOA TERRA NÃO É REDONDA

o mundo revelado amplo,junção de paralelas, planoinfinito do homem: o índio integral,a utopia da terra, "Quarto Mundo",

de Gismonti

o rio consagrado: a vazantelembrança que escoa em marébaixa e retoma - água escura- na reamar.

IIO rio sangrado: invólucro de céue margem, e duas visagensdos caboclos amantes. O rio

O mundo tornado curto,quadrado percorrido, turvainfância de Galileu: as arestas do vento,o discurso dos rios, a Amazônia,

cabeleira do mundo

passado: cismando ria crisma, paresque: _dumas lembranças que trabalham a solidão:o paralelo das margens, uma igara partida,as águas sujas que sempre voltam.

[174] [175]

Page 90: Ror (Age de Carvalho) Livro

[176]

BESTIÁRIO

GÊNESIS

Algodoal, duna de silêncios,chão remoto, tua iluminação diáriaapaga em mim o carvão inconsistenteque antes pensava alimentar-me, secaem minha carne gasta (como se exposta ao sol

e curtida por séculos)um rio que nunca houve e que hojesinto paralítico e, por vezes, imagino mover-mesem as águas gerais do sangue- os sais precipitados e atlânticos, as correntesquentes, os riachos, o próprio piso de águasque julgava aos pés quando nunca existiu.

(Nem por isso deixo de desceraos teus infernos matinais e visitar tuas pirâmides de sal,Algodoal, quando teu sono ultrapassa a todas as idadese reside no começo do mundo: eu, navio suicida,galera do medo, nave ue te ercorre inconscientefere teu dorso e te leva a outras eo rafias .

Page 91: Ror (Age de Carvalho) Livro

o homem a mulher do homem (seu sexo) o cãopara a lua asputas h/ases e prontas os ratos os meninos andróginos os que falamfalam falam os que dormem sozinhos os tolos a corja de advogadosque bebem indecentes o comunismo o colunismo social o mal do sé-culo o cego o cego tocador de sanfona da praça. Aquela perna depus que esmola. O tiro fedido no ouvido do poeta (quando José Ve-ríssimo morreu, uma chuva das duas encheu a Presidente Vargas, to-mou o Teatro, varou soleiras e foi parar na Página policial de um Li-beral atrasado lido no Maranhão).

Os analfabetos

os meus culhões disseminados - fóm/ elemen-tar da traição - no coreto no dia num cinema escuro de 1910 à luzdo Halley no obscuro cudo mundo: Grécia obscena de Bunuel, fê-mur esfrangalhado, arco retesado que não dispara, o universo fodi-do de Walt Disney: a Amazônia vendida.

[179]

Page 92: Ror (Age de Carvalho) Livro

BIBLIOGRAFIA

Page 93: Ror (Age de Carvalho) Livro

Do autor:

Poesia

Arquitetura dos ossos. Editora Falângola/Semec, Belém, 1980.A/ala entre parêntesis (renga com Max Manins). Edições Gráphol Grafisal Semec,

Belém, 1982.Arena, areia. Grafisa/Edições Grápho, Belém, 1986.

[183)

Page 94: Ror (Age de Carvalho) Livro

Sobre o autor:

ALMEIDA, Miguel de. "Max e Age, unidos na renga à brasileira". Folha de S.Paulo, 19 jul 1982.

ARAUJO, Lats Correa de. °Estado de Minas, 18 jul 1982.ÁVILA, Carlos. "A fala entre parêntesis". °Estado de Minas, 5 ago 1982.CASTRO, Acyr. "Cantares de amigos". A Província do Pará, 10 out 1982.CECIM, Vicenre. "Rara consciência". Leia Livros, ago 1981.

·'15 pedras". A Província do Pará, 30 mai 1982.CUNI IA, Fausto. Revista Status, secção Livros, mar 1983.CUNHA, Helena Parente. "Do Pará, um poema criado a quatro mãos". O Globo,

29 ago 1982.L6BO, Clodoaldo. "Quando a poesia vem do Pará". A Tarde, Salvador, 4 nov 1986.MENDES, Francisco Paulo. Comentário crítico in Arena, areia. Grafisa/Edições

Grâpho, Belém, 1986.MENEZES, Carlos. "Dois poetas paraenses publicam poema escrito a quatro

mãos, à moda da renga": O Globo, 25 ago 1982.NUNES, Benedito.Comentáriocrítico (prefácio) in Arquitetura dos ossos. Semec,

Belém, 1980."Jogo marcado", in A/ala entre parêntesis . Grafisa/Edições Grápho/Semec,

--Belém, 1982.PALMQUIST, Sérgio. "A fala entre parêntesis". A Província do Pará, 23 mai 1982.PONTES, Mário. "Uma renga e um álbum". Jornal do Brasil, 6 ago 1982.

[184]

ÍNDICE

Page 95: Ror (Age de Carvalho) Livro

/

PEDRA-UM(1990)

o círculo 9Marahu revisitado 10Filho 11P~ 12A caminho 13À beira 14O motor de Buda 15O panamá 16Passagem 17Ungaretti 18Roma vigiada 19A cura 20Fazer com, fazer de 21Negro O 22Lençóis, BA 23Revendo P. P. Condurú 24 .Cores 25Da morte 26Hõlderlin 27Una duda se vuelve memorable 28

ROR(1980·1990)

*

A faia vermelha de VincentIrrnanamenteCerchio d'ombraPessoaNegativo de Ricardo ReisOcupadoApósPor Malcolm LowryRedorBrasiliensis I: LogomarcaRomaOutro rom: ouronoAusgangDesatou-sePor lnnsbruckJuntosIn absentiaNissoSuma

29303132333435363738394041424344454647

Page 96: Ror (Age de Carvalho) Livro

ARENA, AREIA(1986)

De areiaDiz-queThe age of the oakBocaVermelhoMarço 22A idade do carvalhoSobre um corpoYou've a sea to lieOs incêndiosPedraEntre pedrasNegroAquiles, 1982Os jardins e a noiteMãeCuatro territorios para

Julio y HugoCinzasA letra de serPoderO poeta

51525354555657585960636465666769

ÉReincarnationReencarnaçãoEnteMühlauer FriedhofEnglischer Garten, MünchenSalzburg, outonoEpitáfio para Paul CelanGrundÀ merdaNãoA João Cabral de Meio NetoDois escritos de águaCanto da UrcaCobraInterluzSem sim nem nãoÀNão eram dois1937-1983PedroOutra vez

75767778798081828384858687889092939495969798

7071727374

A FALA ENTRE PARÊNTESIS(1982)

Das florestas de Blaee Jardim de, escrita rara 110aos topos da Ásia 103 Voam e voltam

E nós dois, dois 104 setas neste escudo 111As bananeiras indecentes Sob a folhagem 112

alvoroçando suas pernas 105 As bananeiras 113Aludir, aludo 106 Quem defende teu rostoOs corpos 107 deste sudánó infernal? 115

Já não há mais sonhos Lá 108 Uma vez mais a aula das cinzas 116Um verde vaginal Este éque éo sudánó, A teia 118

inscreve-se nesta tarde 109 Claro ideograma 119

ARQUITETURA DOS OSSOS(1980)

OS QUINTAIS

Os quintaisVerãoA cadela

125129130

A árvoreCanto de galoComposição para quem vive

ARQUITETURA DOS OSSOS

ARQUlTETIJRA DOS OSSOS .137Os guindastes 144Eis-me sem governo 145O corpo na praia 146O espaço desocupado em

inúmeros azuis 147Homem, querem teus cabelos 148Tuas palavras de sono

e sonho caem súbito 149Senão pelo corpo 150

Corpo, árvore móvelAqui, em meu paísAi, cabelos do sonoRecolho-te dos escombros

como quem removeMinha mãe morreu aos 48 anos38, salienta o canoAbato o tempoEm vão foi tentada a vida

131132133

151152153

154155

'156157158

Page 97: Ror (Age de Carvalho) Livro

A fala didáticaUm exercício para JoãoO atorDiscursoCarlos

A língua insólitaA terra não é redonda

Recado para o Nataldado em agosto

SETE EXERCÍCIOS

A LÍNGUA INSÓUTA

163164165166167

O homem fi mulher do homem 179

168

PEQUENO INVENTÁRIO pOÉTIcoA MEMÓRlA DE OSW AID 169

173174

Poema complementar sobre o rio 175Gênesis 176

BESTIÁRIO

BIBUOGRAFIA 181

Page 98: Ror (Age de Carvalho) Livro

EXEMPLAR N.'

F.C.

Esta obracomposta pela Paika Realizações GráficasLtda., em Garamond corpo 10, para a Livra-na Duas Cidades, acabou de ser impressa,pela Prol Editora Gráfica, no inverno de/990, na cidade de São Paulo. Da ediçãode 1.500 exemplares, 25 foram impressosem papel Suzano Classic - com a rubricaF. C. (Fora de Comércio) -, numerados eassinados pelo autor.

APOIO CULTURAL: Metal Leve S/AIndâstries de Papel R. Ramenzoni S/A